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Analise Umberto Eco

O desafio que Umberto Eco propõe-se a resolver no primeiro texto de seu livro “Seis passeios
pelos bosques da ficção” é o de responder como se constitui o processo de interpretação de
um texto narrativo. O escritor identifica premissas conclusivas para a implicação última de sua
tese: a interpretação é uma relação entre o leitor-modelo e o autor-modelo. Contudo, o que é o
leitor-modelo e quem é o autor-modelo? Mais ainda, qual a necessidade de se estabelecer uma
relação entre ambos os lados, quando se há apenas o texto, puro e simplesmente, aguardando
o leitor ávido a se debruçar sobre suas páginas? Não obstante, alguns outros ainda dirão que o
autor estabelece de antemão o sentido do texto e apenas nos é dado o papel, enquanto
leitores, de seguir suas pegadas já definidas no bosque.

Como ponto de partida para sua argumentação, Eco destaca o conceito elogiado por Italo
Calvino: a rapidez do texto. Em Eco toda narrativa de ficção é conduzida fundamentalmente de
forma acelerada. Basta imaginar a multiplicidade de personagens e de acontecimentos desse
mundo e ponderar a impossibilidade de dizer tudo sobre ele, portanto o leitor, para vislumbrar
tal cenário, precisa “preencher as lacunas” da narrativa. De fato, além de não terminar nunca,
seria extremamente indevido que o autor descrevesse tudo o que o leitor devesse
compreender.

Acerca da velocidade, Eco nos apresenta um trecho da obra da italiana Carolina Invernizio e,
resumidamente, uma referência ao escritor Franz Kafka. No texto de Carolina, por exemplo, há
uma paleta de descrições climáticas, arquitetônicas e sonoras, enquanto a leitura de
Metamorfose, de Kafka, inicia-se com a frase “Certa manhã, ao despertar de sonhos agitados,
Gregor Samsa se viu transformado num inseto gigantesco”. Percebe-se que o público de
Carolina não seria saciado com o trajeto narrativo de Metamorfose onde não existem
justificativas descritas pelo autor referindo-se porquê de as coisas acontecerem como
aconteceram. Com efeito, a velocidade será determinada pelo tipo de leitor a que se destina.

Tal necessidade da composição de uma história, onde o autor nos presenteia com lacunas a
serem preenchidas, é mais bem representada pela segunda premissa que Eco identifica (da
qual vou tratar mais afetuosamente nos próximos parágrafos) de que um bosque é
precisamente uma metáfora para o texto narrativo: quando não há trilhas definitivas, qualquer
um pode decidir qual caminho seguir, fazendo assim sua própria trilha.

Há casos onde o narrador quer que passemos a eternidade imaginando o que aconteceu na
continuação de sua história, como o final de Arthur Gordon Pym, de Poe, que termina com a
aparição dramática de “uma figura humana velada, muito maior em suas proporções que
qualquer pessoa que habita entre os homens.” Não me surpreende que Julio Verne e H. P.
Lovecraft, ambos escritores de ficção, tenham buscado preencher essa lacuna dando
continuidade à história. Em outros casos, existem autores que denunciam nossa situação de
perdidos no bosque, brincam com nossas trilhas tortuosas e mostram o quanto somos
incapazes de progredir de maneira autônoma.
Considerando a multiplicidade de alternativas à história, os leitores intuem que um texto, assim
como um bosque, é um emaranhado de trilhas confusas e infinitas a serem seguidas. Eco, no
entanto, deixa bem claro que o leitor precisa fazer escolhas razoáveis para o preenchimento
dessas lacunas ou, utilizando a segunda metáfora, decidir qual trilha adotar.

No texto de ficção o bom senso não deve ser o filtro das nossas decisões como leitores, do
contrário nunca concluiríamos que o próximo personagem de um conto como “Chapeuzinho
Vermelho” seria um lobo que fala. Contudo, se não é o bom senso, qual o critério utilizado para
escolher esse ou aquele caminho?

Para responder essa pergunta, cerne da tese de Umberto Eco, é necessário definir o conceito
de Leitor-Modelo, de Leitor-Empírico, de Autor-Modelo e de Autor-Empírico: O leitor-empírico
de Eco é preso à experiência de leitura enquanto envolvimento particular: sente-se cúmplice do
texto, às vezes o encara como seu próprio reflexo. Absorve o texto de maneira errada em
relação ao tipo de leitor que o autor tinha em mente, no caso o leitor-modelo, aquele que
interpreta um texto sem se envolver pessoalmente, buscando compreender a intenção da
narrativa e, necessariamente, sustentar a ideia do texto cooperando para seu desígnio último.
Enquanto o leitor-empírico faz uso do texto, toma o bosque como seu “jardim particular”; o
leitor-modelo interpreta segundo as regras do jogo.
Mas que regras são essas sobrepujadas pelo leitor-empírico, que o leitor-modelo segue
entusiasmado?

Naturalmente, o autor dispõe de sinais de gênero específicos que pode usar a fim de orientar
seu leitor-modelo (ECO, 1994, p.16)

Eco elucida a aplicação de tais sinais através dos contos de fada, ao iniciar a narrativa com
“Era uma vez”. Com isso, o autor manda um sinal especificando o tipo de leitor-modelo exigido
na leitura da história, nesse caso uma criança ou alguém disposto a pensar como tal. Nota-se
como Eco distribui as funções de cada integrante do processo de interpretação. Em suma, é
razoável dizer que o leitor-modelo é aquele que lê o texto de acordo com a intenção do autor
ao dirigir-se ao público. São essas as singulares conclusões pressupostas por Eco ao
identificar que:

O leitor necessariamente preenche as lacunas do texto narrativo, migalhas deixadas pelo


autor-modelo para a compreensão da intenção do texto.
Essas lacunas são universais e, para segui-las com sucesso, devem-se obedecer às regras
estabelecidas pelo autor-modelo.
Quanto ao autor, Eco nega a importância da biografia do mesmo no processo de interpretação.
Não há nenhum interesse em conhecer a vida, as particularidades e as motivações de James
Joyce ou Dostoievsky na leitura de Ulysses ou de Os Irmãos Karamazov. Por mais atraente
que seja apreciar a história pessoal de cada indivíduo como se fôssemos companheiros
freqüentes, nada nos ajuda na arte de interpretar seus textos – “não passam de mexericos”.
Para Eco existem três entidades a serem consideradas na interpretação do texto. Através do
exemplo extraído da obra Sylvie, de Gérard de Nerval, nota-se a presença do personagem,
identificado como Gérard Labrunie – muitas vezes confundido com o autor empírico Nerval -,
um “cavalheiro que nasceu em 1808 e morreu (suicidando-se) em 1855” do “eu” narrador,
aquele que conta a história; e, por fim, do autor-modelo, a voz autônoma que guia o texto
desde o primeiro capítulo até a última letra do epílogo, direciona o olhar investigativo do leitor-
modelo e prepara o caminho perfeito para o diálogo entre a intenção do texto e o receptor.

uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer
a seu lado. Essa voz se manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções
que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como o leitor-
modelo (ECO, 1994, p. 21).

Segundo Eco, essa voz não tem gênero e poderia ser confundida com o estilo do texto, claro e
evidente, se não fosse pelo fato de que ela não permanece acima da sua obra, mas se mantêm
junto do leitor-modelo com bastante afeição e cuidado. Enquanto o leitor-modelo de Eco não
apenas interage com o texto, mas nasce com o próprio texto, sendo o apoio essencial da
interpretação. De fato, seria plausível afirmar que existem leitores-modelos para todos os tipos
de textos. Tanto para a narrativa aberta, que presenteia o leitor com alternativas no bosque,
quanto para textos que preveem um leitor dócil, histórias inflexíveis e romances pornográficos.

Talvez o conceito geral ainda esteja borrado, devido às circunferências concedidas para
responder a primeira grande questão, muito embora fosse necessário fazê-la para sua
compreensão total. Porque então a interpretação consiste na relação entre o leitor-modelo e o
autor-modelo? Bom, se fosse diferente o bosque seria um espaço infinito, com caminhos
intermináveis e a intenção do texto não seria identificada enquanto não se estabelecesse uma
afeição entre o receptor e as regras desse maravilhoso jogo.

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