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ESCREVER A LEITURA

Roland Barthes, 1970, Le Figaro littéraire.

Nunca vos aconteceu, ao ler um livro, interromper constantemente a vossa leitura,


naã o por desinteresse, mas, pelo contraá rio, por afluxo de ideias, de excitaçoã es, de
associaçoã es? Numa palavra, naã o vos aconteceu ler levantando a cabeça?
Foi esta leitura, simultaneamente desrespeitadora, pois corta o texto, e
enamorada, pois volta a ele e dele se alimenta, que tentei escrever. Para a escrever, para
que a minha leitura se tornasse por sua vez objecto de uma nova leitura (a dos leitores
de S/Z), tive evidentemente de tentar sistematizar todos os momentos em que
“levantamos a cabeça”. Por outras palavras, interrogar a minha proá pria leitura era
esforçar-me por captar a forma de todas as leituras (a forma: uá nico lugar da cieê ncia),
ou ainda: fazer apelo a uma teoria da leitura.
Peguei pois num texto curto (o que era necessaá rio aà minuá cia da tarefa), o
Sarrasine de Balzac, novela pouco conhecida (mas Balzac naã o se define precisamente
como o Inesgotaá vel, aquele de quem nunca se leu tudo, salvo por vocaçaã o exegeá tica?), e
parei constantemente de ler esse texto. A críática funciona, ordinariamente (e naã o se
trata de uma censura), quer ao microscoá pio (esclarecendo pacientemente o pormenor
filoloá gico, autobiograá fico ou psicoloá gico da obra), quer ao telescoá pio (perscrutando o
grande espaço histoá rico que rodeia o autor). Privei-me desses dois instrumentos: naã o
falei nem de Balzac nem do seu tempo, naã o fiz nem a psicologia das personagens, nem
a temaá tica do texto, nem a sociologia da anedota. Reportando-me aà s primeiras proezas
da caê mara, capaz de decompor o trote de um cavalo, tentei de algum modo filmar a
leitura de Sarrasine em caê mara lenta: o resultado, creio, nem eá exactamente uma
anaá lise (naã o procurei captar o segredo deste texto estranho) nem exactamente uma
imagem (naã o posso ter-me projectado na minha leitura; ou, se assim eá , foi a partir de
um lugar inconsciente bem aqueá m de “mim proá prio”). O que eá pois S/Z? Simplesmente
um texto, o texto que escrevemos na nossa cabeça quando a levantamos.
Esse texto, que deveríáamos nomear com uma soá palavra: um texto-leitura, eá mal
conhecido, porque haá seá culos que nos interessamos desmedidamente pelo autor e
absolutamente nada pelo leitor; a maior parte das teorias críáticas procuram explicar
porque eá que o autor escreveu a sua obra, segundo que pulsoã es, que obrigaçoã es, que
limites. Este privileá gio exorbitante concedido ao lugar de onde a obra partiu (pessoa ou
Histoá ria), esta censura incidente sobre o lugar para onde vai e se dispersa (a leitura)
determinam uma economia muito particular (embora jaá antiga): o autor eá considerado
como o proprietaá rio eterno da sua obra, e noá s, seus leitores, como simples
usufrutuaá rios; esta economia implica evidentemente um tema de autoridade: o autor,
pensa-se, tem direitos sobre o leitor, constrange-o a um certo sentido da obra, e esse
sentido eá naturalmente o bom, o verdadeiro sentido: de onde uma moral críática do
sentido recto (e do seu erro, o “o contra-senso”): procura-se estabelecer o que o autor
quis dizer, e nunca o que o leitor entende.
Apesar de alguns autores nos terem eles proá prios advertido que eá ramos livres de
ler o seu texto a nosso modo e que em suma se desinteressavam da nossa escolha
(Valeá ry), ainda naã o nos damos bem conta de como a loá gica da leitura eá diferente das
regras de composiçaã o. Estas, herdadas da retoá rica, continuam a parecer referir-se a um
modelo dedutivo, quer dizer, racional: trata-se, como no silogismo, de constranger o
leitor a um sentido ou a um desfecho: a composiçaã o canaliza; a leitura, ao contraá rio (o
texto que escrevemos em noá s quando lemos), dispersa, dissemina; ou pelo menos,
perante uma histoá ria (como a do escultor Sarrasine), vemos bem que uma certa
obrigaçaã o de caminhar (de “suspense”) luta incessantemente em noá s com a força
explosiva do texto, a sua energia digressiva: com a loá gica da razaã o (que faz que a
histoá ria seja legíável) mistura-se uma loá gica do síámbolo. Esta loá gica naã o eá dedutiva, mas
associativa: ela associa ao texto (a cada uma das suas frases) outras ideias, outras
imagens, outras significaçoã es. “O texto, soá texto”, dizem-nos, mas o texto sozinho eá uma
coisa que naã o existe; haá imediatamente nesta novela, neste romance, neste poema que
leio, um suplemento de sentido, de que nem o dicionaá rio nem a gramaá tica saã o capazes
de dar conta. Foi deste suplemento que quis traçar o espaço ao escrever a minha
leitura do Sarrasine de Balzac.
Naã o reconstituíá um leitor (nem mesmo voá s ou eu), mas a leitura. Quero dizer que
toda a leitura deriva de formas transindividuais: as associaçoã es engendradas pela letra
do texto (mas onde estaá essa letra?) nunca saã o, façamos o que fizermos, anaá rquicas;
saã o sempre tiradas (colhidas e inseridas) de certos coá digos, de certas líánguas, de certas
listas de estereoá tipos. A leitura mais subjectiva que se possa imaginar nunca eá senaã o
um jogo conduzido a partir de certas regras. De onde veê m estas regras? Por certo que
naã o do autor, que naã o faz mais do que aplicaá -las a seu modo (que pode ser genial, por
exemplo em Balzac); visíáveis muito aqueá m dele, essas regras veê m de uma loá gica
milenar da narrativa, de uma forma simboá lica que nos constitui mesmo antes do
nascimento, numa palavra, desse imenso espaço cultural de que a nossa pessoa (de
autor, de leitor) naã o eá senaã o uma passagem. Abrir o texto, fundar o sistema da sua
leitura, naã o eá , pois, apenas pedir e mostrar que eá possíável interpretaá -lo livremente; eá ,
sobretudo e muito mais radicalmente, forçar o reconhecimento de que naã o existe
verdade objectiva ou subjectiva da leitura, mas apenas uma verdade luá dica; todavia o
jogo naã o deve ser aqui compreendido com uma distracçaã o, mas como um trabalho – do
qual contudo o esforço se tivesse evaporado; ler eá fazer trabalhar o nosso corpo (desde
a psicanaá lise que sabemos que este corpo excede em muito a nossa memoá ria e a nossa
conscieê ncia) ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e
que formam como que a profundidade cambiante das frases.
Imagino perfeitamente a narrativa legíável (aquela que podemos ler sem a declarar
“ilegíável”: quem naã o compreende Balzac?) sob os traços de uma daquelas figurinhas
subtil e elegantemente articuladas de que os pintores se servem (ou se serviam) para
aprenderem a “morder” as diferentes posturas do corpo humano; ao ler, tambeá m noá s
imprimimos uma certa postura ao texto, e eá por isso que ele eá vivo; mas essa postura
que eá invençaã o nossa, soá eá possíável por existir entre os elementos do texto uma relaçaã o
estabelecida, em suma uma proporção: tentei analisar essa proporçaã o, descrever a
disposiçaã o topoloá gica que daá aà leitura do texto claá ssico simultaneamente o traçado dos
seus limites e a sua liberdade.

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