Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 157

1

2
Página 3

Cadernos de formação

O método

(auto) biográfico

e a formação

ANTOLOGIA ORGANIZADA POR:

ANTÓNIO NÓVOA

MATHIAS FINGER

PARTICIPAÇÃO DE:

ADÈLE CHENÉ, PIERRE DOMINICÉ,

FRANCO FERRARROTTI, CHRISTINE JOSSO,

GASTON PINEAU

MINISTÉRIO DA SAÚDE

DEPARTAMENTO DE RECURSOS HUMANOS DA SAÚDE

CENTRO DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO PROFISSIONAL

LISBOA 1988

3
Página 4

TÍTULO
O MÉTODO (AUTO)BIOGRÁFICO E A FORMAÇÃO

AUTORES
Adèle Chené
Pierre Dominicé
Franco Ferrarotti
Matthias Finger
Christine Josso
António Nóvoa
Gaston Pineau

TRADUÇÃO
Maria Nóvoa

CAPA
Amilcar Branco

EDIÇÃO
Ministério da Saúde
Departamento dos Recursos Humanos da Saúde
- SUBDIRECTORIA GERAL
Enfermeira Mariana Diniz de Sousa
Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional
- DIRECTOR
Esaú Dinis
- TÉCNICOS DO PROJECTO PROSSALUS
Ilda Freitas
Rui Guerra
Margarida Jordão
Fernanda Pires Marques

COMPOSIÇÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTO


PENTAEDRO, Publicidade e Artes Gráficas, Lda.
Praceta da República, Loja B, Póvoa de St.o Adrião, 2675 ODIVELAS
Tels: 987 61 80/987 07 41

CADERNOS DE FORMAÇÃO N.º 1


MARÇO DE 1988

4
Página 5

ÍNDICE

PREÂMBULO
Pág. 7
I
INTRODUÇÃO
Pág. 9
II
SOBRE A AUTONOMIA DO MÉTODO BIOGRÁFICO
Pág. 17
III
DA FORMAÇÃO DO SUJEITO... AO SUJEITO DA FORMAÇÃO
Pág. 35
IV
O PROCESSO DE FORMAÇÃO E ALGUNS DOS SEUS COMPONENTES RELACIONAIS
Pág. 51
V
A AUTOFORMAÇÃO NO DECURSO DA VIDA: ENTRE A HETERO E A ECOFORMAÇÃO
Pág. 63
VI
AS IMPLICAÇÕES SÓCIO-EPISTEMOLÓGICAS DO MÉTODO BIOGRÁFICO
Pág. 79
VII
A NARRATIVA DE FORMAÇÃO E A FORMAÇÃO DE FORMADORES
Pág. 87
VIII
A BIOGRAFIA EDUCATIVA: INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO DE
ADULTOS
Pág. 99
IX
A FORMAÇÃO TEM DE PASSAR POR AQUI: AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO
PROSSALUS
Pág. 107
X
O QUE A VIDA LHES ENSINOU
Pág. 131
BIBLIOGRAFIA SOBRE AS HISTÓRIAS DA VIDA
Pág. 155

5
6
Página 7

PREÂMBULO

Nenhum serviço de formação permanente pode reduzir a sua actividade aos modelos
tradicionais aceites, consubstanciados, via de regra, na formação em sala. Precisa sim de
constantemente questionar a sua prática em ordem a conseguir uma maior eficácia e qualidade.
Terá, com efeito, de impor-se um esforço de persistente renovação metodológica se se
quiser responder aos desafios de uma formação para a mudança, enquanto fomentadora de
novas atitudes, produtora da inovação de práticas, integradora de novos saberes.
Estas preocupações terão que estar alicerçadas num trabalho de investigação capaz de avaliar
sistematicamente os processos educativos, de problematizar os modelos utilizados e de ensaiar
modalidades formativas que introduzam as inovações pertinentes.
Assim, sem abandonar as técnicas tradicionais, antes aperfeiçoando-as, importa
experimentar novas formas capazes de levar a um maior empenhamento de cada um na sua
própria formação, ao mesmo tempo que se reforça o envolvimento das instituições e a
aproximação aos problemas emergentes do exercício profissional.
Neste quadro, se inscrevem, entre outras, a formação à distância, a investigação-acção, a
formação assistida por computador, a alternância, a formação auto-tutorada, a pedagogia de
projecto.
O objectivo de revalorizar a função dos textos de apoio, e mais gene- ricamente a
informação, pela componente formativa que integram, subscreve-se neste contexto.
A vitalidade dos documentos escritos, permite, na verdade, uma utilização múltipla e versátil,
quando conjugada com outros suportes pedagógicos ou integrada em metodologias dinâmicas.
O Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional, até ao presente, elaborou e procedeu à
divulgação de textos policopiados sobre "Estatística", "Aprovisionamento, "Noções Fundamentais
de Direito Disciplinar" e "Regime Jurídico de Pessoal" devendo ser distribuídos, oportunamente,
outros da mesma natureza.

7
Página 8
PREÂMBULO

Abre-se, agora, uma nova fase editorial em que se irão imprimir os textos acima
referidos e iniciar a publicação de textos de índole mais especificamente pedagógica.
Os Cadernos de Formação, de que se publica o primeiro número, na linha de duas
Brochuras sobre o Projecto de Formação de Formadores PROSALUS1, pretendem
consagrar esta ideia e tem como objectivo apoiar o desenvolvimento da formação
permanente através da divulgação de textos, experiências e ensaios que se mostrem
oportunos.
O tema escolhido para este primeiro caderno - O MÉTODO (AUTO) BIOGRÁFICO E
A FORMAÇÃO - insere-se na preocupação do Centro de Formação e Aperfeiçoamento
Profissional de disponibilizar informações e perspectivas actualizadas sobre educação de
adultos, indo ao cerne do processo de formação naquilo que ele tem de mais dinâmico e
vital.
E não se estranhe que um Centro de Formação Permanente, situado num serviço
Central de Administração Pública e mais propriamente na área da Saúde, se interesse pela
problemática teórica da formação do adulto e dela dê conta. Na verdade, a função
técnico-normativa, que substancialmente lhe incumbe, ficará estéril, se não souber
alimentá-la com os princípios, numa constante vitalização dos seus fundamentos teóricos.
Reflectir sobre os percursos vitais dos processos de formação dos adultos constitui um
desafio demasiado aliciante e prometedor para ter sido possível recusá-lo.
Embora constituindo um documento de apoio à formação de formadores
desenvolvido no quadro do Projecto PROSALUS, que tem beneficiado do apoio do Fundo
Social Europeu, este Caderno assume-se como um instrumento formativo de utilidade
para todos quantos se interessam pelos problemas da formação.
O Departamento de Recursos Humanos, agradece aos organizadores da presente
antologia, António Nóvoa e Matthias Finger, envolvendo na mesma expressão de gratidão
todos os autores dos diferentes textos, Adèle Chené, Pierre Dominicé, Franco Ferrarotti,
Christine Josso, Gaston Pineau e ainda os próprios organizadores, que também
assumiram a autoria de textos.
Lisboa, Março de 1988
DEPARTAMENTO DE RECURSOS HUMANOS

8
Página 9

I
INTRODUÇÃO

MATTHIAS FINGER e ANTÓNIO NÓVOA

9
10
Página 11

INTRODUÇÃO

"Concebido numa perspectiva sistémica, o plano de formação procurou evitar


uma estrutura escolarizada, assegurando uma articulação dinâmica entre as onze
unidades de formação, onde se incluem os momentos de avaliação, entendidos numa
perspectiva formativa. Em ligação com estas unidades, o plano de formação é atravessado
por duas linhas verticais que têm como objectivo:

- assegurar a continuidade entre os diversos conteúdos e facilitar a coerência do


plano de formação;

- estimular uma reflexão sobre os percursos e as trajectórias individuais de


formação;

- favorecer a articulação entre os conteúdos da formação e uma prática concreta


enquanto gestores da formação.

A primeira linha vertical consiste numa pesquisa baseada no método


(auto)biográfico ou das histórias de vida através da qual cada participante procurará
reflectir sobre o seu próprio processo de formação e tomar consciência das estratégias,
dos espaços e dos momentos que para ele foram formadores ao longo da sua vida. Esta
abordagem acompanhará o conjunto junto do plano de formação, constituindo urna
espécie de coluna vertebral que servirá de sustentáculo ao conjunto das acções
desenvolvidas durante as 400 horas de formação.

A segunda linha vertical (estágio) baseia-se no modelo de investigação-acção e


tem como preocupação central assegurar a ligação entre os conteúdos teóricos e uma
intervenção concreta no domínio da formação."

Este texto, extraído da brochura de apresentação do PROSALUS 86, não deixa


quaisquer dúvidas quanto à importância concedida às histórias de vida no quadro deste
projecto de formação de gestoras da formação para estabelecimentos e serviços do
Ministério da Saúde. A Antologia de Textos que agora se publica é a consequência lógica
da importância que esta abordagem adquiriu no âmbito do PROSALUS e advem da
necessidade de dar a conhecer ao público português interessado pela problemática das
ciências da educação e da formação de adultos um conjunto de reflexões em torno da
utilização das histórias de vida (ou do método biográfico ou das biografias educativas ou
como instrumento de investigação-formação.

11
Página 12
Alguns destes textos são inéditos, tendo sido redigidos expressamente para esta
antologia; outros são versões revistas ou corrigidas pelos próprios autores de trabalhos
publicados recentemente. Eles procuram, por um lado, situar historicamente o método
biográfico e a sua integração no campo das ciências sociais e humanas e, por outro lado,
ilustrar a utilização das histórias de vida no domínio da formação.
Os debates em torno da utilização do método biográfico no domínio das ciências
da educação e da formação de adultos são relativamente recentes. No entanto, esta
perspectiva metodológica surge no final do século XIX na Alemanha, como alternativa à
sociologia positivista, sendo aplicada pela primeira vez de forma sistemática pelos
sociólogos americanos dos anos vinte o trinta (Escola de Chicago). O método biográfico
desencadeou, no decurso da sua evolução histórica, importantes polémicas
epistemológicas e metodológicas, que o opuseram a uma prática positivista das ciências
sociais. Hoje em dia, a luta pelo reconhecimento de um estatuto científico ao método
biográfico mantém-se bem viva, nomeadamente no campo da sociologia. O primeiro
texto desta Antologia, da autoria de FRANCO FERRAROTTI (Universidade de Roma),
intitulado Sobre a autonomia do método biográfico (pp. 17-34), evoca os debates que
marcaram a consolidação da biografia como método autónomo de investigação no
interior das ciências sociais. Para Franco Ferrarotti é necessária uma renovação
metodológica, tornada inevitável pela crise generalizada dos instrumentos heurísticos da
sociologia, que assegure a construção de métodos de investigação que possibilitem um
novo conhecimento sobre o homem social.- "Se nós somos, se todo o indivíduo é, a
reapropriação singular do universal social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o
social a partir da especificidade irredutível de uma praxis individual".
É interessante observar que a introdução do método biográfico no domínio das
ciências da educação não provocou grandes debates teóricos e epistemológicos; menos
impregnadas do que as outras ciências sociais por urna perspectiva positivista, as ciências
da educação compreenderam de modo algo intuitivo a importância do método biográfico,
que se veio a revelar não apenas um instrumento de investigação, mas também (e
sobretudo) um instrumento de formação. A escolha dos textos que integram esta
Antologia foi orientada pela preocupação de fornecer aos leitores, nomeadamente às
pessoas que trabalham na área da formação, um painel diversificado das várias aplicações
que o método biográfico tem suscitado no interior das ciências da educação, durante os
últimos anos. Deste modo, após o artigo de Franco Ferrarotti, com carácter introdutório,
inserem-se um conjunto de textos que procuram abarcar os cinco campos de investigação
e de formação onde a aplicação do método biográfico se tem revelado mais estimulante
e frutuosa.
1
O método biográfico permite que seja concedida uma atenção muito particular
e um grande respeito pelos processos das pessoas que se formam: nisto reside

12
Página 13

uma das suas principais qualidades que o distinguem, aliás, da maior parte das outras
metodologias de investigação em ciências sociais. Respeitando a natureza processual da
formação, o método biográfico constitui uma abordagem que possibilita ir mais longe na
investigação e na compreensão dos processos de formação e dos sub-processos que o
compõem. O texto de CHRISTINE JOSSO (Universidade de Genebra), escrito para esta
Antologia, intitulado Da formação do sujeito... ao sujeito da formação (pp. 35-50), procura
justamente reflectir sobre esta problemática, através da resposta a três grandes
questões:
- Que é a formação do ponto de vista do sujeito?
- Como se forma o sujeito?
- Como aprende o sujeito?
2
Valorizando os processos de formação e assumindo a totalidade da história de
vida de uma pessoa, o método biográfico facilita o desenvolvimento de uma sociologia
holística da formação, mais adequada à especificidade de cada indivíduo. Enquanto
instrumento de investigação-formação, o método biográfico permite considerar um
conjunto alargado de elementos formadores, normalmente negligenciados pelas
abordagens clássicas e, sobretudo, possibilita que cada indivíduo compreenda a forma
como se apropriou destes elementos formadores. O método biográfico permite que cada
pessoa identifique na sua própria história de vida aquilo que foi realmente formador. O
texto de PIERRE DOMINICÉ (Universidade de Genebra), O processo de formação e alguns
dos seus componentes relacionais (pp. 51-61), sintetiza um conjunto de conhecimentos
no âmbito da sociologia da formação, construídos através da utilização do método
biográfico.
Começando por referenciar o seu próprio percurso de investigador, que o
conduziu, da avaliação pedagógica à abordagem biográfica, o autor põe a tónica nas
dimensões relacionais do processo de formação exemplificando com três aspectos: O
universo das relações familiares enquanto contexto de formação, Um processo de
autonomização relativamente à família e A escola e a vida profissional, outro tempo
relacional da história de vida. "Sublinhando a importância do contexto familiar como o
lugar que marca todo o processo de autonomização, e mostrando o papel desempenhado
por um professor ou um interlocutor em momentos-encruzilhada da vida, quisemos
indicar que a formação se modela através de uma socialização inseparável das aquisições
escolares ou dos efeitos da formação contínua".
3
A problemática da autoformação constitui um dos eixos de investigação mais
interessantes no domínio da sociologia da formação. Ora, esta problemática foi
consideravelmente aprofundada através da utilização do método biográfico, na medida
em que foi possível um melhor conhecimento dos momentos e dos factores constituintes
do processo de autoformação; aliás, a pessoa que se implica numa abordagem deste
género está inevitavelmente a desencadear um processo de autoformação. GASTON
PINEAU publicou em 1980, com o título sugestivo de

13
Página 14

Vidas das Histórias de Vida, um livro que marca o início da utilização sistemática
do método biográfico no âmbito da Educação Permanente e da Formação de Adultos.
Defendendo que o impacto social das autobiografias está intimamento ligado ao seu
paradoxo epistemológico fundamental - a união do mais pessoal com o mais universal -,
Gaston Pineau considera as histórias de vida como um método de investigação-acção que
procura estimular a autoformação, na medida em que o esforço pessoal de explicitação
de uma dada trajectória de vida obriga a uma grande implicação e contribui para uma
tomada de consciência individual e colectiva. No artigo inserido nesta Antologia, A
autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a ecoformação (pp. 63-77), GASTON
PINEAU (Universidade de Tours) resume os resultados de uma investigação que
desenvolve há alguns anos, baseada no método biográfico, sobre a autoformação:
"Depois do primeiro período paleo-cultural da heteroformação, que quis impor-se como
a totalidade da formação, parece despontar actualmente a idade neo-cultural da auto-
ecoformação, que faz do processo de formação um processo permanente, dialéctico e
multiforme".
4
A impossibilidade de separar a investigação e a formação é um dos temas
centrais do quarto universo de reflexão, no qual a utilização do método biográfico em
ciências da educação se tem revelado estimulante. Trata-se, para estes autores, de situar
a história de vida de cada indivíduo - como aliás, o próprio método biográfico enquanto
fenómeno sociológico - num determinado contexto sócio-político e cultural. Só através
desta estratégia é possível mostrar de que forma os factores sociais, políticos e culturais
marcaram a história de vida de cada um e clarificar de que modo a confrontação da
pessoa com estes factores é constitutiva de uma formação sócio-política, frequentemente
depreciada até aos dias de hoje. A contribuição de MATTHIAS FINGER (Universidade de
Genebra) a esta publicação, As implicações sócio-epistemológicas do método biográfico
(pp. 79-86), centra-se justamente num esforço de articulação entre o método biográfico,
os aspectos sócio-políticos e a formação da pessoa: "Na sociedade moderna a
epistemologia adquire uma conotação política, mas é preciso sublinhar aqui que a
formação crítica dos adultos, desde que possa realizar-se, redefine simultaneamente o
aspecto político: o que é político nesta concepção são sobretudo os problemas de que as
pessoas conseguiram apropriar-se de uma maneira crítica".
5
A formação de formadores tem sido um dos domínios privilegiados de aplicação
do método biográfico. O motivo parece óbvio: dificilmente poderemos pretender
interferir na formação dos outros, sem antes termos procurado compreender o nosso
próprio processo de formação. Neste domínio a abordagem biográfica tem, igualmente,
uma dupla utilização: por um lado, ela permite identificar as estratégias seguidas pelos
formadores (uma categoria profissional que ainda não está institucionalizada) na sua
própria dinâmica de formação e na aquisição de competências técnicas específicas à
função que desempenham; por outro lado, ela facilita a definição dos saberes e das
formações mais

14
Página 15

necessárias para o exercício da função de formador. Aliás, o método biográfico (ou das
histórias de vida) tem-se afirmado, de dia para dia, como uma estratégia particularmente
pertinente para a formação de formadores: as duas funções do método biográfico, a
investigação e a formação, surgem, de facto, como dois eixos fundamentais de qualquer
projecto de formação de formadores.
Os três textos seguintes desta Antologia relatam experiências de utilização do
método biográfico no âmbito da formação de formadores. São textos com uma forte
componente prática e metodológica que procuram ilustrar a aplicação concreta desta
abordagem.
Narrativa de formação e formação de formadores (pp. 87-97): tal é o título do
artigo que ADÈLE CHENÉ (Universidade de Montreal) teve a gentileza de redigir para esta
Antologia, no qual relata uma experiência de investigação-formação realizada no quadro
de um programa universitário de formação profissional de formadores de adultos ao nível
de mestrado: "As potencialidades da narrativa de formação para a formação do formador
parecem-me mais do que confirmadas. Teoricamente, a narrativa leva à compreensão do
percurso de formação. Na prática, permite igualmente que o formador encontre o seu
projecto de ser e se forme através da fragilidade das figuras que assume no tempo da
narração, e se reaproprie do julgamento de competência sobre si próprio".
Um outro contributo de PIERRE DOMINICÉ (Universidade de Genebra) centra-se
sobre A biografia educativa: instrumento de investigação para a educação de adultos (pp.
99-106). A partir de uma experiência de formação realizada no quadro de um seminário
da Universidade de Genebra consagrado ao trabalho biográfico, "Da adolescência à vida
adulta: história de vida e formação", Pierre Dominicé equaciona um conjunto de
problemas metodológicos ligados: à biografia educativa e à compreensão dos processos
de formação, à integração do estudo biográfico num contexto de formação contínua e à
elaboração de biografias educativas em grupo. O autor termina o seu artigo sublinhando
a necessidade de conjugar duas exigências aparentemente contraditórias para assegurar
o sucesso da abordagem biográfica: a implicação e o distanciamento do investigador.
Finalmente, num texto de ANTÓNIO NÓVOA (Universidade de Lisboa), A
formação tem de passar por aqui - As histórias de vida no projecto PROSALUS (pp. 107-
130), esboça-se um primeiro balanço da utilização do método biográfico no quadro do
PROSALUS 86. A partir do conceito de autoformação participada, o autor desenvolve uma
refexão essencialmente metodológica sobre as potencialidades e os limites do método
biográfico no âmbito da formação de formadores, insistindo em três ideias: as histórias
de vida constroem-se numa perspectiva retroactiva (do presente para o passado) e
procuram projectar-se no futuro; a formação deve ser entendida como uma tomada de
consciência reflexiva (presente) de toda uma trajectória de vida percorrida no passado; é
fundamental que a abordagem biográfica não deslize no sentido de favorecer uma atitude
"intimista" (e não participada), na medida em que tal poderia dificultar a meta teórica a
atingir, isto é, a compreensão a partir da história de vida de cada um do processo de
formação dos adultos.
O texto final desta Antologia foi escrito por PIERRE DOMINICÉ (Universidade de
Genebra). O que a vida lhes ensinou (pp. 131-153) é o balanço possível, no

15
Página 16

estado actual do conhecimento científico, da contribuição do método biográfico para as


ciências da educação, de uma forma geral, e para a formação de adultos, em particular.
Procurando identificar processos específicos no seio do processo global de formação dos
adultos, Pierre Dominicé sustenta a ideia de que existe uma dinâmica de conjunto no
interior da qual têm lugar construções particulares e propõe que a abordagem biográfica
não constitua "mais uma disciplina" mas intervenha na encruzilhada de um plano de
estudos, tanto para orientar as diversas opções académicas, como para lhes dar um
sentido global: "Quem sabe se lá chegaremos um dia? A biografia educativa seria então
decerto um instrumento de formação, depois de ter sido considerada prioritariamente de
investigação".
Por último, insere-se nesta Antologia uma Bibliografia sobre as Histórias de Vida
(pp. 155-157), da nossa responsabilidade. Trata-se de uma bibliografia bastante sucinta
que pretende apenas fornecer ao leitor português algumas obras de referência neste
domínio e facilitar-lhe o acesso aos autores principais nesta matéria. Ao longo da
Antologia poderá o leitor encontrar outras referências bibliográficas, apresentadas pelos
autores dos diversos textos.
Esperamos que esta Antologia de textos dê uma visão global sobre a aplicação
do método biográfico no domínio da formação de adultos, tanto nas reflexões teóricas
que tem suscitado como nas utilizações práticas que tem desencadeado. Num certo
sentido, pensamos que esta publicação é um retrato das investigações actuais neste
domínio: as (imensas) potencialidades do método biográfico, mas também as suas (ainda)
grandes fragilidades, "atravessam" toda a Antologia. Que ela faculte ao leitor português
o acesso a um conjunto de reflexões ainda pouco conhecidas entre nós e, sobretudo, que
ela crie nas pessoas que trabalham no domínio da formação uma apetência por esta
problemática, tais são os nossos dois objectivos, simultaneamente modestos e
audaciosos. Na certeza de que, como se escreve na brochura de lançamento do
PROSALUS 86, citando Pierre Dominicé - a quem manifestamos o nosso público
reconhecimento pelo papel primordial que desempenhou na nossa "iniciação" à
abordagem biográfica e pelo apoio que nunca nos regateou a esta caminhada colectiva
de reflexão:

"Mesmo quando uma acção educativa se revela formadora, são na realidade os próprios adultos
que se formam. A formação pertence, de facto, a quem se forma. É verdade que todo o adulto
depende de apoios exteriores: ele é ajudado e apoiado por outros, e a sua formação acompanha
o percurso da sua socialização. Mas, em última análise, tudo se decide numa lógica de apropriação
individual, cuja explicação teórica nem sempre é possível".

MATTHIAS FINGER (Universidade de Genebra)

ANTÓNIO NÓVOA (Universidade de Lisboa)

16
Página 17

II

SOBRE A AUTONOMIA

DO MÉTODO BIOGRÁFICO

FRANCO FERRAROTTI
(Universidade de Roma)

Texto publicado em Sociologie de la connaissance

(coord. de Jean DUVIGNAUD), Paris, Payot, 1979, pp.131-152.

17
18
Página 19

SOBRE A AUTONOMIA DO MÉTODO BIOGRÁFICO

Como estava interessado nas consequências humanas do desenvolvimento


económico e da modernização técnica, dei início a uma recolha sistemática de materiais
biográficos no Sul de Itália, nos anos 50. A minha intenção, ou antes, a minha esperança,
era encontrar através destas pesquisas uma solução positiva para as insuficiências das
investigações sociológicas feitas com a ajuda de questionários estruturados rigidamente.
Há muito tempo que tinha a impressão de que estas investigações, se bem que rigorosas
do ponto de vista metodológico formal, consideravam geralmente resolvidos problemas
que nem sequer tinham sido abordados.
O que me impressionava era o carácter sintético da narrativa autobiográfica. Mas
ao mesmo tempo tinha consciência do perigo literário, ou seja, de ver na biografia
específica um destino absoluto e irredutível, e por isso procurei relacionar
cuidadosamente a biografia individual com as características globais da situação histórica
"datada e vivida". Neste contexto, as biografias individuais tinham como objectivo a
ilustração do corte entre o mundo camponês e a sociedade técnica. Este corte não era só
um conceito. Estava personificado em tipos específicos, que os materiais biográficos
pormenorizavam (ver por exemplo pp. 388-391 do meu Trattato di sociologia, Turim,
Utet, 1968). Foi durante a pesquisa no terreno que a ideia de uma "sociologia como
participação" começou pouco a pouco a elaborar-se enquanto abordagem metodológica
meta-mecanicamente e alternativa (ver F.F., La sociologia come partecipazione, Taylor,
Turim, 1961). Mas foi apenas em Vite dibaraccati (Liguori, Nápoles, 1976) que desenvolvi
a minha crítica de Oscar Lewis e que finalmente propus o estudo da "biografia do grupo
primário" como resumo e "contracção aorística" de uma determinada situação histórica.
Tornaram-se então evidentes, para mim, certos princípios teóricos gerais.

I. AS RAZÕES DE UM "REVIVAL"

Há alguns anos que o debate teórico sobre o método biográfico conhece uma
divulgação surpreendente. Na nossa opinião, este interesse, crescente, pelo uso
sociológico da biografia, responde a uma dupla exigência:
a) A necessidade de um renovação metodológica, provocado pela crise generalizada dos
instrumentos heurísticos da sociologia: a metodologia clássica das ciências sociais - o
"Santo Método", como diz ironicamente Gouldner - já não

19
Página 20

tem boa reputação. Cada vez mais numerosas, as "listas de reclamações" erguem-se
contra os seus dois axiomas fundamentais: a objectividade e a intencionalidade
nomotética. "Em geral, só observamos bem quando nos colocamos de fora", escreveu A.
Comte. Mas o esforço feito para integrar a sociologia no campo das ciências da natureza,
conduziu apenas a um método escolástico. A técnicas cada vez mais sofisticadas não
corresponde nenhum crescimento real do conhecimento sociológico. Lamentamos
demasiadas vezes as metodologias ingénuas dos clássicos, que não dissolviam o social em
fragmentos heterogéneos e conservavam a plenitude concreta e a unidade sintética do
seu objecto. Por trás da ênfase metodológica, vemos esboçar-se, ou triunfar, uma nova
identidade e uma certa função ideológica do sociólogo e da sociologia: o sociólogo torna-
se o técnico de um social, cujos fundamentos e estruturas não deve pôr em questão; a
sociologia apresenta-se como um sistema de técnicas neutras de intervenção - o social
engineering.
Então, nos sectores mais críticos da sociologia, põe-se em causa o axioma da
objectividade, que funda o método. Esta nova interrogação sobre a separação sujeito-
objecto torna-se uma investigação sistemática para outras abordagens. Desenvolvem-se
esforços para reintegrar o observador no framework epistemológico da sociologia. Nega-
se a passividade coisificada que o Método atribui à "coisa" social.
Esta dúvida hiperbólica vai mais longe. Declara-se contra a hegemonia da
intencionalidade nomotética. A pesquisa das "leis" sociais tropeçou com dificuldades
crescentes, por vezes com verdadeiras aporias. Nem por isso ela deixa de constituir para
a maioria dos sociólogos a pedra de toque da cientificidade da sociologia. As suas críticas
sublinham com vigor a inutilidade heurística e o formalismo destas leis. Reivindicam o
direito ao concreto. Afirmam a historicidade imanente a todo o facto social e a sua
especificidade irredutível, da qual só uma intencionalidade ideográfica pode dar conta.
A crítica à objectividade e à nomotetia, que caracterizam a epistemologia
sociológica, teve como consequência a valorização crescente de uma metodologia mais
ou menos alternativa. o método biográfico.
b) A exigência de uma nova antropologia, que aparece no "capitalismo avançado'. Trata-
se, mais uma vez, da necessidade do concreto; as grandes explicações estruturais,
construídas a partir de categorias muito gerais, não satisfazem os seus destinatários. As
pessoas querem compreender a sua vida quotidiana, as suas dificuldades e contradições,
e as tensões e problemas que esta lhes impõe. Deste modo, exigem uma ciência das
mediações que traduza as estruturas sociais em comportamentos individuais ou
microssociais. Como é que as estruturas e as dinâmicas sociais forjam um sonho, um acto
falhado, uma psicose, um comportamento individual, a relação concreta entre dois
indivíduos? A sociologia clássica é impotente para compreender e satisfazer esta
necessidade de uma hermenêutica social do campo psicológico individual. Propõe
correlações constantes e gerais, onde seriam necessárias pontos que ligassem a
historicidade absoluta de um acto à generalidade de uma estrutura. Estabelece variações
concomitantes entre uma taxonomia dos comportamentos individuais e taxonomias
sociais, onde seria precisa uma imbricação ininterrupta de hipóteses genéticas-
condicionais, que fossem de um acto ou de um acontecimento a uma estrutura, através
de uma rede de mediações sociais. Ora, a biografia que se torna instrumento sociológico
parece poder vir a assegurar esta

20
Página 21

SOBRE A AUTONOMIA DO MÉTODO BIOGRÁFICO


mediação do acto à estrutura, de uma história individual à história social. A biografia
parece implicar a construção de um sistema de relações e a possibilidade de uma teoria
não formal, histórica e concreta, de acção social. Uma teoria que preencheria o "corte
epistemológico" que, segundo Althusser, divide inelutavelmente o domínio do psicológico
e o domínio do social. Uma teoria que, portanto, corresponde às necessidades mais
urgentes de outras ciências humanas que procuram pôr-se criticamente em questão: a
psicologia, a psiquiatria, a psicanálise.
Crise do método, exigência de uma hermenêutica social dos actos individuais
concretos: o método biográfico situa-se numa encruzilhada da investigação teórica e
metodológica das ciências do homem.
II. AS METAMORFOSES DO MÉTODO BIOGRÁFICO
Antes de esboçarmos as linhas gerais de um método biográfico crítico, devemos
interrogar-nos sobre o uso que os sociólogos fizeram das biografias.
a) O método biográfico apresenta-se logo à partida como uma aposta científica.
Esta aposta tem dois aspectos "escandalosos":
- o método biográfico pretende atribuir à subjectividade um valor de conhecimento. Uma
biografia é subjectiva a vários níveis. Lê a realidade social do ponto de vista de um
indivíduo historicamente determinado. Baseia-se em elementos e materiais na maioria
dos casos autobiográficos, e portanto expostos às inúmeras deformações de um sujeito-
objecto que se observa e se reencontra. Situa-se frequentemente no quadro de uma
interacção pessoal (entrevista); no caso de uma qualquer narrativa biográfica, esta
interacção é bastante mais densa e complexa que as relações observador-observado
admitidas pelo Método: cooptação do observador na verdade do observado, mecanismos
de manipulação recíprocos dificilmente controláveis, ausência de pontos de referência
objectivos, etc.;
- o método biográfico situa-se para além de toda a metodologia quantitativa e
experimental. Os elementos quantificáveis de uma biografia são geralmente bastante
pouco numerosos e marginais: a biografia provém quase inteiramente do domínio do
qualitativo. De resto, não vemos como é que a lógica do método experimental poderia
aplicar-se à biografia. Como é que a história de uma vida, o "Erlebnis" de um
comportamento, podem confirmar ou negar uma dada hipótese geral? Andou-se a tentar
nos Estados Unidos, mas com resultados bem pobres.
Subjectivo, qualitativo, alheio a todo o esquema hipótese-verificação, o método
biográfico projecta-se à partida fora do quadro epistemológico estabelecido das ciências
sociais. A sociologia não aceitou o desafio que lhe era lançado por esta diversidade
epistemológica, e fez tudo para reconduzir o método biográfico para o interior do quadro
tradicional. E a que preço! Por meio de um duplo desvio epistemológico e metodológico,
procurou-se utilizar o método biográfico, anulando completamente a sua especificidade
heurística.
b) Este empobrecimento epistemológico da biografia traduziu-se frequentemente na sua
redução a um conjunto de materiais biográficos justapostos. Uma vez quebrada a sua
unidade sintética, a biografia torna-se um simples "protocolo em bruto"

21
Página 22
do conhecimento sociológico. Protocolo que a elaboração sucessiva do sociólogo
traduzirá numa série de informações, frequentemente fragmentárias, sempre parciais.
Esta redução não reconhece à biografia qualquer autonomia heurística real. A biografia
não passado veículo e suporte concentrado de informações de base que não teriam
qualquer valor nem qualquer significado em si: ficha sociológica personalizada, que
oferece uma série de dados úteis se a análise volta a colocá-los no quadro de uma
interpretação muito mais geral. Segundo a expressão corrente, de uma série de biografias
"extraem-se" elementos, problemas, hipóteses e informações. Uma segunda fase de
investigação ultrapassará e reintegrará tudo isto num quadro interpretativo mais vasto,
que uma metodologia realmente científica se encarregará de verificar. Utilizam-se as
biografias "para saber", insiste-se em não as considerar como um saber organizado mas
críptico, que é preciso aprender a decifrar.
Este uso da biografia como fonte de informações é evidentemente legítimo e, por
vezes, necessário (pensamos, por exemplo, na reconstrução de antigos ofícios); não pode
confundir-se com a especificidade heurística do método biográfico; pertence, antes, à
atitude factual dos historiadores sociais que recorrem a fontes orais.
c) O empobrecimento epistemológico do método biográfico assumiu ainda uma segunda
forma, bastante mais sofisticada: a redução da biografia a uma simples "fatia de vida"
social utilizável como exemplo, caso ou ilustração, num quadro interpretativo situado a
um nível mais elevado de abstracção.
Ora, a função de "casos" ou de "exemplos", esconde toda uma epistemologia. A
utilização do concreto como exemplo implica um "framework" intrepretativo formalista.
A ruptura lógica que opõe a forma (abstracta) ao conteúdo (concreto) do facto social,
transforma todo o acontecimento ou todo o acto social específico numa verificação a
posteriori da validade ou da operacionalidade de um modelo formal ou de uma
taxonomia social. Pelo contrário, conhecemos o concreto quando o reconhecemos
através de uma tipologia formal; isto é, quando o situamos no tipo de acontecimentos de
que constitui um caso ou um exemplo. Nesta perspectiva epistemológica, uma biografia
não interessa ao sociólogo enquanto secção ou corte vertical ou horizontal de um sistema
social que sintetizaria sob a forma de actos individuais, mas sim enquanto exemplo
significativo de certos aspectos do social, que uma análise estrutural já terá estudado de
maneira exaustiva. A biografia de um jovem delinquente virá talvez confirmar uma teoria
do desvio juvenil; verificará talvez um estudo estrutural da marginalização e da anomia
urbana; mas nunca será o seu ponto de partida lógico (será por vezes o seu ponto de
partida temporal).
Em seguida, a redução do concreto a exemplos remete-nos para uma
epistemologia lógico-formal que concede valor de conhecimento apenas aos aspectos
generalizáveis de um acontecimento ou de um acto específicos. O axioma aristotélico -
"só existe ciência do geral" - orienta um modelo de abstracção que impele para o domínio
do irracional, do acaso e do inconhecível, tudo o que constitui a especificidade irrepetível
de um qualquer acontecimento. Apenas o que é comum a outros acontecimentos ou
actos do mesmo ou de outro agente social é digno de ser conhecido cientificamente. Uma
biografia diz respeito ao sociólogo pelo que tem em comum com outras biografias
sociologicamente análogas. A especificidade de uma história individual, que a opõe a
todas as outras e a torna única, passa então a ser um obstáculo epistemológico, um
"resíduo", que não pode interessar à ciência e que

22
Página 23
tem a ver com a lógica do "acaso". O recurso a uma leitura ideográfica que emerge de
toda e qualquer biografia, foi sempre posto entre parêntesis pelo método biográfico, ou
foi relegado para o domínio da psicologia. Nem sequer se tentou a extensão dos métodos
históricos ou psiquiátricos, isto é, a construção de biografias típicas que permitissem
definir homologias entre as biografias, mas também situar as suas especificidades
irredutíveis relativamente a um modelo.
d) Esta redução da biografia a uma justaposição de informações e a uma exemplificação,
faz-nos voltar ao que chamámos uma aposta epistemológica. Os dois elementos que
fazem a especificidade da biografia constituem obstáculos que temos que contornar ou
que ultrapassar. A subjectividade e a exigência anti-nomotética da biografia, definem os
limites da sua cientificidade; são as suas características imanentes, a despeito das quais o
método biográfico conserva apesar de tudo algum valor heurístico.
Mesmo entre os adeptos do método biográfico foi iludida a aposta epistemológica
que lhe é inerente. Houve esforços no sentido de se fazer voltar a biografia ao caminho
epistemológico das ciências da natureza: objectividade, pesquisa indutiva de correlações
constantes (atitude nomotética), tradução quantitativa das informações adquiridas, etc.
A subjectividade própria de toda a narrativa ou documento autobiográfico - pois, não o
esqueçamos, os materiais utilizados pelo método biográfico são, na maioria,
autobiográficos - é iludida por uma hermenêutica da biografia, que só utiliza os seus
aspectos objectivos. A leitura dos materiais biográficos torna-se a pesquisa sistemática
das informações mais gerais, dos dados, das descrições, das "fatias de vida" sociais - numa
palavra, dos "factos" - que penetram através do "carnaval da subjectividade" (Lukacs). O
qualitativo apaga-se perante o quantificável. A subjectividade activa da autobiografia
dilui-se na vida objectiva da biografia dos acontecimentos.
A história de uma vida, um dado material biográfico, pretendem ser únicos? A
historicidade absoluta que reivindicam é negada por uma hermenêutica atenta aos seus
caracteres exemplares - isto é, comuns a outras histórias, a outros materiais e às suas
correlações fixas, à classificação de uma taxonomia social. É a generalidade que o método
biográfico procura nas biografias que utiliza. O resto - o particular, o específico, o único -
provém da cor local, dá laivos de concreto ao esforço de abstracção, e não tem nada a ver
com o conhecimento científico.
Esta dupla ilusão da especificidade epistemológica da biografia, projecta-se numa
metodologia cujas premissas e resultados nunca foram seriamente postos em causa.
À negação epistemológica da subjectividade corresponde o problema
metodológico central do grau de representatividade de uma biografia, que procura
avaliar a sua utilidade através de generalizações indutivas. Quais são os critérios e as
condições desta representatividade? Quando e de que modo pode uma biografia estar na
base de conhecimentos sociológicos?
O método biográfico tradicional deu duas respostas a esta pergunta, que
correspondem a duas utilizações diferentes da biografia.
Por um lado, a biografia servirá para a verificação de um modelo interpretativo. A
escolha das biografias mais representativas exige que os seus critérios gerais de
identificação já tenham sido estabelecidos. Ora estes critérios são simplesmente

23
Página 24
as variáveis principais do modelo hermenêutico ou descritivo que as biografias devem
verificar. Uma biografia será representativa se se estruturar à volta de elementos que
correspondam à projecção das variáveis do modelo no plano de uma vida individual.
Reduzida a um instrumento de controlo, a biografia não nos ensina nada que não esteja
já no modelo formal. Confirma e verifica conhecimentos adquiridos e não é fonte de
novos conhecimentos (reduções escolásticas do conceito, a suporte de um modelo
abstracto). Pelo menos, pretende confirmar e verificar: quando não está ligado ao modelo
geral por uma ponte de mediações hipotéticas, o exemplo concreto não verifica; no
melhor dos casos, ilustra. Mais ainda: o exemplo, o caso, só verificam o modelo
interpretativo ou taxonómico se se remeter para o campo residual do "acaso" tudo o que,
nas biografias em questão, não é generalizável e permanece próprio e único de cada uma,
ou seja, tudo o que extravasa do modelo. Eis uma circunstância que se assemelha
bastante a um postulado de princípio lógico, na medida em que ela legitima a
escamoteação do concreto, quando este contradiz o modelo!
Por outro lado, as dificuldades aumentam quando não se pretende apenas verificar o
modelo ou o tipo, mas elaborá-lo a partir das biografias. Restituir-lhes um papel heurístico
activo é uma tentativa nobre, mas como é que ela pode sustentar o valor geral dos
modelos hipotéticos que engendra? Pois é evidente que a escolha das biografias mais
representativas do universo social dependerá então inteiramente da intuição sociológica
do observador, e portanto do seu sistema de valores. Não se escapa facilmente ao
labirinto da lógica formal e ao seu modelo de abstracção!
Verificação que um ocasionalismo subjacente pré-orienta para a conclusão
pretendida: papel hourístico activo da biografia, conduzindo a hipóteses cuja
representatividade geral não é, no entanto, baseada em nada. Num caso, a biografia é
relegada para a função de suporte concreto marginal do quadro analítico. No outro,
permanece um instrumento bastante impreciso, que só pode ser utilizado com
conhecimento de causa nas fases preliminares da pesquisa sociológica. Nada num caso
ou noutro parece justificar a célebre afirmação de Thomas e Znaniecki, isto é, que os
documentos biográficos seriam "o material sociológico perfeito".
e) As dificuldades postas pela "representatividade" das biografias, empurraram os
adeptos do método biográfico para uma abordagem ainda mais redutora. A
representatividade de algumas biografias cuidadosamente seleccionadas, foi sendo
substituída por uma representatividade constituída pelo número: o número das
biografias substitui o seu carácter exemplar. A metodologia biográfica estrutura-se no
modelo estatístico da amostragem. A qualidade do material biográfico - a sua riqueza -
perde importância relativamente à sua simples representatividade estatística. A biografia
é comparada à entrevista não estruturada: diferencia-se dela apenas devido a uma maior
vivacidade e a um acento mais diacrónico. E a hermenêutica da biografia imita as formas
da interpretação analítica das entrevistas: identificação e tradução quantificada dos
elementos objectivos, recurso aos elementos qualitativos como apoio ilustrativo, etc.
Com o risco de dissolver a sua especificidade e interesse, a metodologia biográfica
estabelecida esforça-se por limitar a biografia ao quadro epistemológico e metodológico
tradicional da sociologia. E naturalmente esta metodologia utiliza cada vez mais técnicas
objectivas, visando garantir a extraneação do observador na neutralização

24
Página 25
dos materiais. A entrevista biográfica é, sem dúvida, a mais comprometedora das
situações sociológicas. Verdadeira interacção por vezes bastante intensa, é preciso
purificá-la da subjectividade do sociólogo assim como da subjectividade da narrativa
autobiográfica. Daí todas as técnicas que servem para afastar a própria suspeita de um
papel activo do observador. Este não deve participar directamente, e sim limitar-se a
"estimular" o objecto. A American Sociological Association chega mesmo a aconselhar
uma "presença ausente" fundamentalmente passiva, com estímulos verbais factuais (o
Who, Whom, When, Where) e muito breves, o recurso ao gravador e a outros
instrumentos da objectividade científica, etc. Aplica-se aos materiais a mesma
exorcização técnica do subjectivo. A sua coloração linguística é tornada insípida por uma
transcrição numa basic language neutra e banal. Anula-se a maioria das notações e dos
detalhes qualitativos. A biografia transforma-se frequentemente num relatório de
acontecimentos, numa verdadeira ficha sociológica coisificadora. Vai-se ao ponto de
voltar a escrever na terceira pessoa e num tom burocrático - sine ira nec studio dizia M.
Weber -, não a história de uma existência e de uma experiência humana, mas o seu
esqueleto objectivado. A que triste resultado conduziram os paradoxos epistemológicos
inerentes ao método biográfico!
III. A ESPECIFICIDADE DO MÉTODO BIOGRÁFICO
A negação da especificidade da biografia, graças a uma metodologia nomotética e
a técnicas coisificadoras, trai o seu carácter essencial, isto é, a sua historicidade profunda,
a sua unicidade. Pelo contrário, trata-se de explicitar até ao fim as implicações desta
especificidade, e de fundar assim a especificidade epistemológica, metodológica e técnica
do método biográfico.
a) Os materiais utilizados pelo método biográfico podem ser divididos em dois grandes
grupos. De um lado, temos os materiais biográficos primários, isto é, as narrativas
autobiográficas recolhidas directamente por um investigador no quadro de uma
interacção primária (faca to face). Do outro, temos os materiais biográficos secundários,
ou seja, os documentos biográficos de toda a espécie que não foram utilizados por um
investigador no quadro de uma relação primária com as suas "personagens":
correspondência, fotografias, narrativas e testemunhos escritos, documentos oficiais,
processos verbais, recortes de jornal, etc.
O método biográfico tradicional prefere os materiais secundários (mais objectivos)
aos materiais primários, e reconduz sistematicamente os segundos aos primeiros. Apesar
desta renúncia epistemológica, conserva um valor de ruptura relativamente às
metodologias tradicionais: uma palavra nova, fragmentos de sociedade por muito tempo
recalcados numa espécie de cegueira sociológica, quebram a barreira e impõem-se ao
conhecimento. Mas o método biográfico não trai menos a maioria das suas
potencialidades heurísticas quando aceita ser uma metodologia marginal da história
social e de uma sociologia em busca de um "invólucro de concreto".
A condição fundamental para uma renovação do método biográfico passa pela
inversão desta tendência! Devemos abandonar o privilégio concedido aos materiais
biográficos secundários! Devemos voltar a trazer para o coração do método biográfico os
materiais primados e a sua subjectividade explosiva. Não é só a riqueza objectiva do
material biográfico primário que nos interessa, mas também e sobretudo a sua
pregnância subjectiva no quadro de uma comunicação interpessoal complexa e recíproca
entre o narrador e o observador.

25
Página 26

b) Aproximamo-nos do problema central. Como é que a subjectividade inerente à


autobiografia pode tornar-se conhecimento científico? Se o método biográfico optar por
não iludir nem renegar mais a subjectividade e a historicidade absoluta dos seus
materiais, de que modo fundamentará o seu valor heurístico?
Contentemo-nos em esboçar as linhas gerais - e hipotéticas - de uma resposta.
Todas as narrações autobiográficas relatam, segundo um corte horizontal ou
vertical, uma praxis humana. Ora, se "a essência do homem [...] é, na sua realidade, o
conjunto das relações sociais" (Marx, VIª Tese de Feuerbach), toda a praxis humana
individual é actividade sintética, totalização activa de todo um contexto social. Uma vida
é uma praxis que se apropria das relações sociais (as estruturas sociais), interiorizando-as
e voltando a traduzi-las em estruturas psicológicas, por meio da sua actividade
desestruturante-reestruturante. Toda a vida humana se revela, até nos seus aspectos
menos generalizáveis, como a síntese vertical de uma história social. Todo o
comportamento ou acto individual nos parece, até nas formas mais únicas, a síntese
horizontal de uma estrutura social. Quantas biografias são precisas para uma "verdade"
sociológica? Que material biográfico será mais representativo e nos proporcionará mais
verdades gerais? Muitas perguntas que não têm talvez nenhum sentido. Pois - e frisamos
lucidamente a afirmação - o nosso sistema social encontra-se integralmente em cada um
dos nossos actos, em cada um dos nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos. E a
história deste sistema está contida por inteiro na história da nossa vida individual.
No sentido estrito da palavra, "implicamos" o social por meio de uma introjecção
sintética que o desestrutura e o reestrutura, conferindo-lhe formas psicológicas. Mas,
sendo produzida por uma praxis sintética, a relação que liga um acto a uma estrutura
social não é linear, e a relação estreita entre a história social e uma vida não é um
determinismo mecânico. Temos de abandonar o modelo mecanicista que caracterizou as
tentativas de interpretação do indivíduo por meio de "frame works" sociológicos. O
indivíduo não é um epifenómeno do social. Em relação às, estruturas e à história de uma
sociedade, coloca-se como um pólo activo, impõe-se como uma praxis sintética. Mais do
que reflectir o social, apropria-se dele, mediatiza-o, filtra-o e volta a traduzi-lo,
projectando-se numa outra dimensão, que é a dimensão psicológica da sua
subjectividade.
A formulação de Sartre parece-nos aqui a única possível. O homem -
acrescentaremos: o homem inventado pela revolução burguesa - é o universal, singular.
Pela sua praxis sintética, singulariza nos seus actos a universalidade de uma estrutura
social. Pela sua actividade destotalizadora retotalizadora, individualiza a generalidade de
uma história social colectiva. Eis-nos no âmago do paradoxo epistemológico que nos
propõe o método biográfico. Já não podemos confrontar o que um acto ou a história de
uma vida têm em comum com os actos e as histórias de outros indivíduos - o geral que,
só ele, seria conhecimento científico - a tudo o que esse acto ou história conserva de
absolutamente específico - a unicidade que nunca seria ciência, e sim resíduo pré-
científico inexplicado, acaso. Uma antropologia social que considera todo o homem como
a síntese individualizada e activa de uma sociedade, elimina a distinção do geral e do
particular num indivíduo. Se nós somos, se todo o indivíduo é, a reapropriação singular
do universal social e histórico que o

26
Página 27
rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma praxis
individual.
Da subjectividade reivindicada à ciência: o que torna único um acto ou uma
história individual propõe-se como uma via de acesso - por vezes a única possível - ao
conhecimento científico de um sistema social. Via não linear, frequentemente críptica,
que exige a invenção de chaves e de métodos novos para ser percorrida.
c) A antropologia que acabámos de esboçar, legitima a nossa tentativa de ler uma
sociedade através de uma biografia. Consequentemente, legitima o valor heurístico de
uma biografia da qual se conserva toda a especificidade epistemológica. Mas a biografia
sociológica não é só uma narrativa de experiências vividas; é também uma micro-relação
social. O mais solitário dos monólogos autobiográficos não deixa de ser uma tentativa de
comunicação, e implica o fantasma de um interiocutor. Ora o sociólogo que estimula e
recolhe uma narrativa oral é um interlocutor real, que finge ser um fantasma neutro e
ausente. Desconfiemos desta escotomização o restituamos à entrevista biográfica toda a
sua densidade de interacção social. As narrativas biográficas de que nos servimos não são
monólogos ditos perante um observador reduzido à tarefa de suporte humano de um
gravador. Toda a entrevista biográfica é um interacção social completa, um sistema de
papéis, de expectativas, de injunções, de normas e de valores implícitos, e por vezes até
de sanções. Toda a entrevista biográfica esconde tensões, conflitos e hierarquias de
poder; apela para o carisma e para o poder social das instituições científicas relativamente
às classes subalternas, desencadeando as reacções espontâneas de defesa. Nós não
contamos a nossa vida e os nossos "Erlebnisse" a um gravador, mas sim a um outro
indivíduo. As formas e os conteúdos de uma narrativa biográfica variam com o
interlocutor. Dependem da interacção que serve de campo social à comunicação Situam-
se no quadro de uma reciprocidade relacional. O entrevistador nunca está ausente,
mesmo o que se finge ausente. É sempre recíproco, mesmo se aparentemente se recusa
a toda a reciprocidade.
A ilusão da objectividade nega a qualidade interaccional da narrativa biográfica.
Se por vezes a reconhece, é para exorcizar o seu papel constitutivo e relegá-la para
segundo plano, para o meio dos resíduos subjectivos que conspurcam sempre a
objectividade das ciências humanas. Trata-se de restituir a narrativa biográfica à
plenitude da sua natureza relacional e da sua intencionalidade comunicativa. Definiremos
então uma outra das suas características essenciais, talvez a menos conhecida: todo o
acto individual é uma totalização sintética de um sistema social. Toda a narrativa de um
acontecimento ou de uma vida é, por sua vez, um acto, a totalização sintética de
experiências vividas e de uma interacção social. Uma narrativa biográfica não é um
relatório de "acontecimentos", mas sim uma acção social pela qual um indivíduo
retotaliza sinteticamente a sua vida (a biografia) e a interacção social em curso (a
entrevista), por meio de uma narrativa-interacção. A narrativa biográfica conta uma vida?
Diríamos antes que narra uma interacção presente por intermédio de uma vida. Não há
mais verdade biográfica numa narrativa oral espontânea do que num Diário, numa
Autobiografia ou num livro de Memórias. E só alcançaremos esta verdade biográfica se
sublinharmos a verdade interaccional que a narrativa encerra. A leitura sociológica de
uma biografia caminha através da hermenêutica da acção social que reinventa a biografia,
narrando-a no quadro de uma interacção; uma interacção que o observador não deve
iludir e deve viver activamente até ao fim.

27
Página 28

A análise sociológica de uma narrativa biográfica conduz-nos à hermenêutica de


uma interacção. Eis-nos portanto no pólo clínico que nos parece caracterizar o
conhecimento do individual nas ciências humanas. "É a transposição da situação clínica
para as diversas disciplinas que se ocupam do homem que faz reaparecer explicitamente
o problema de um conhecimento dos conteúdos individuais" (1). "A situação clínica põe
em relação imediata o paciente e o terapeuta, o observado e o observador. É preciso
entender-se por "relação imediata" uma relação não totalmente conceptualizada,
envolvendo, primeiro de maneira confusa, reacções de um e do outro, de tal modo que a
situação que se estabelece não pode ser correctamente descrita como encontro
totalmente dissimétrico entre um sujeito activo e um objecto passivo, mas antes como
encontro de um par no qual os dois intervenientes desempenham papéis alternados. [ ...
] Espontaneamente, a situação clínica é vivida no modo mágico e mítico da comunicação.
O problema epistemológico principal é explicar como é que esta situação pode
desenvolver-se num registo de autêntico conhecimento, sem degenerar numa técnica
bruta de objectivação mecânica ou numa prática encantatória" (2).
Imbricação do observador e do observado numa interacção recíproca.
Conhecimento científico exigindo uma hermenêutica desta interacção. Narrativa
biográfica entendida como uma acção social. A entrevista biográfica parece-nos um
exemplo perfeito do pólo clínico das ciências humanas.
d) Toda a narrativa biográfica reconduz à desestruturação-reestruturação sintática de um
acto ou de uma história individual, considerados como o corte horizontal ou vertical de
um sistema social. Por consequência fornece-nos:
- uma imagem totalizada de um sistema social, a partir do espaço social onde se esboça a
sociabilidade e se elabora a acção social (a história de uma vida, a descrição de um acto);
- uma totalização em curso (a narrativa biográfica) como síntese activa da imagem
totalizada e da interacção presente onde se situa.
Na biografia, a sociedade, perpetuamente em estado de nascimento, coexiste com a
sociedade estruturada. A acção social em curso coexiste com a acção social coisificada. É
a esta ambiguidade sociológica essencial que a narrativa biográfica deve a sua
importância teórica imensa e inexplorada, a sua fecundidade heurística largamente
ignorada ou traída.
O acto como síntese activa de um sistema social, a história individual corno
história social totalizada por uma praxis: estas duas proposições implicam um percurso
heurístico visando o universal através do singular, procurando o objectivo a partir do
subjectivo, descobrindo o geral através do particular. Na nossa opinião, o método
biográfico anula a validade universal da proposição de Aristóteles: "Só há ciência do
geral": Não. Pode haver ciência do particular e do subjectivo. E, por outras vias - vias
muitas vezes aparentemente paradoxais -, esta ciência resulta num conhecimento geral.

(1) G. G. GRANGEFT, Pensée et sciencas de 1'homme, Paris, 1967, p. 189.


(2) Ibid., p. 188.

28
Página 29

Mas a crítica a Aristóteles vai mais longe, através da contestação à lógica formal-
discursiva que modela o pensamento científico ocidental. A crítica à hegemonia do geral
na axiomática das ciências esconde uma crítica à hegemonia do "conceito", ao processo
de abstracção que o constitui, às trajectórias dedutivas que o explicitam e às trajectórias
indutivas que o fundam verificam.
Vamos ainda mais longe. A noção de praxis humana totalizante (que tirámos de
Sartre, mas que reencontramos em Tarde e Simmel, para nos limitarmos a sociólogos)
recusa-se a considerar os comportamentos humanos (actos, biografias) como reflexos
passivos de um condicionamento que provém do geral, ou seja, da sociedade. Pelo
contrário, estes comportamentos exprimem uma praxis sintética que desestrutura-
reestrutura os determinismos sociais. Não são os resultantes mecânicos de influências
exteriores, mas apropriam-se destas influências por meio de uma actividade sintética que
volta a traduzi-los em actos individuais não redutíveis aos seus factores determinantes.
Não podemos demorar-nos nestas análises (o melhor é consultar-se toda a tradição
filosófica na qual se baseiam). No entanto, sublinhe-mos a sua característica principal. O
homem não é o objecto passivo que o determinismo mecanicista defende. O campo de
todo o acto ou comportamento humano vê a co-presença activa dos condicionamentos
exteriores e da praxis humana que os filtra e os interioriza, totalizando-os. Neste campo,
nada é passivo, simples reflexo ou epifenómeno. O modelo mecanicista e determinista
não pode compreender o papel duplamente dialéctico (negação e negação da negação)
que é intrínseco à praxis humana. A recusa da dicotomia sujeito activo-objecto passivo,
no domínio do comportamento humano, estende-se a essa modalidade do
comportamento que é a intencionalidade científica e do seu objecto, o comportamento
humano individualizado. Mais uma vez não temos um sujeito que conhece e um objecto
que é conhecido. O observador encontra-se ridiculamente implicado no campo do seu
objecto. Este último, longe de ser passivo, modifica continuamente o seu comportamento
em função do comportamento do observador. Este processo de "feedback" circular
ridiculariza qualquer conjuntura de conhecimento objectivo. O conhecimento não tem o
outro por objecto, mas sim a interacção inextricável e recíproca entre o observador e o
observado. Torna-se conhecimento a dois por meio da intersubjectividade de uma
interacção; conhecimento tanto mais profundo e objectivo quanto mais for integral e
intimamente mais subjectivo. Para conhecer a fundo - e, sublinhemo-lo, cientificamente
- o seu "objecto", o observador terá de pagar o preço de ser conhecido com a mesma
profundidade. O conhecimento torna-se então aquilo que a metodologia sociológica
sempre quis evitar: um risco.
A especificidade do método biográfico implica a ultrapassagem do quadro lógico-
formal e do modelo mecanicista que caracterizam a epistemologia científica dominante.
Se queremos utilizar sociologicamente o potencial heurístico da biografia, sem trair as
suas características essenciais (subjectividade, historicidade), devemos projectar-nos
para fora do quadro epistemológico clássico. Deveremos procurar os fundamentos
epistemológicos do método biográfico noutro lado, numa razão dialéctica capaz de
compreender a "praxis" sintética recíproca, que rege a interacção entre um indivíduo e
um sistema social. Deveremos procurá-los na construção de modelos heurísticos não
mecanicistas e não deterministas; modelos caracterizados

29
Página 30

por um "feedback" permanente de todos os elementos entre eles; modelos


"antropomórficos" (3) que só uma razão não analítica e não formal pode conhecer.
Razão dialéctica, e portanto razão histórica alheia a todos os "ocasionalismos", capaz de
uma abordagem da especificidade "lógica específica do objecto específico" (Marx) - capaz
de não reduzir o concreto a uma construção conceptual, capaz de "subir do abstracto ao
concreto" (Marx).
Esta razão dialéctica não tem pretensões à hegemonia. Não tem nada a ver com o
"Diamat" ou com o Engels da Dialéctica da Natureza. Reconhece de boa vontade à lógica
formal e aos modelos deterministas um papel axiomático nas ciências da natureza.
Reconhece-lhes um papel nas ciências do homem, na sua qualidade de ciências do geral.
Mas quando se trata de impedir que o individual seja empurrado para o inconhecível e
para o acaso, quando se trata de ter em conta a praxis humana, só a razão dialéctica nos
permite compreender cientificamente um acto, reconstruir os processos que fazem de
um comportamento a síntese activa de um sistema social a interpretar a objectividade de
um fragmento da história social a partir da subjectividade não iludida de uma história
individual. Só a razão dialéctica nos permite alcançar a universal e o geral (a sociedade) a
partir do individual e do singular (o homem).
A especificidade das biografias conduz à contestação da assimilação de todas as
ciências pelas ciências da natureza. Se queremos respeitar epistemologicamente a
biografia, somos forçados a admitir um corte radical entre a intencionalidade nomotética
e a intencionalidade ideográfica - uma cisão que implica o recurso a duas razões
diferentes. A biografia volta a lançar o "Methodenstreit" e torna-se assim numa
oportunidade única para a reabertura de um debate profundo sobre os fundamentos
lógicos, epistemológicos e metodológicos da sociologia. É a oportunidade para uma nova
reflexão sobre os fundamentos do social.

IV. CAMPO DAS MEDIAÇÕES E BIOGRAFIA DO GRUPO


"Um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamar-lhe um universal
singular": "totalizado" e, por isso mesmo, universalizado pela sua época, "retotaliza-a"
reproduzindo-se nela enquanto singularidade. Universal pela universalidade singular da
história humana, singular pela singularidade universalizante dos seus projectos, exige ser
estudado simultaneamente nos dois sentidos.
Temos de encontrar um método apropriado. As linhas gerais do método
progresssivo-regressivo de Sartre para uma ciência social da biografia, são bem
conhecidas: leitura horizontal e vertical da biografia e do sistema social, movimento
heurístico de vaivém da biografia ao sistema social e do sistema social à biografia. A união
deste duplo movimento significa a reconstrução exaustiva das "totalizações" recíprocas
que exprimem a relação dialéctica entre uma sociedade e um indivíduo específico. O
conhecimento integral de um torna-se assim no conhecimento integral do outro.
Colectivo social e universal singular reciprocamente. A tentativa de compreensão de uma
biografia em toda a sua unicidade, na base da VIª, Tese de Feuerbach, torna-se o esforço
de interpretação de um sistema social.

(3) R. HARRÉ-P.F. SECORD, The Explanation of Social Behaviour, Oxford, 1972, cap V.

30
Página 31

Síntese difícil de uma abordagem estrutural e de uma abordagem histórica, esta


metodologia não recusa a contribuição do conhecimento nomotético. Exige-o, mas para
o integrar num movimento heurístico em modelos hermenêuticos não lineares, que
apelam para a razão dialéctica e não para a razão formal. No método biográfico voltamos
a encontrar as mitodologias clássicas da sociologia. No entanto, são usadas como de pano
de fundo, instrumentos indispensáveis mas analíticos, portanto marginais, relativamente
a uma síntese central que se esforça por nos restituir a unidade sintética de um sistema
social, a partir da imbricação recíproca e activa de uma sociedade e de uma praxis
individual.
De resto esta metodologia não analítica põe problemas graves. Primeiro, como se
estrutura este duplo movimento entre o pólo individual e o pólo colectivo de todo o
campo social? Quais são as fases e as etapas que servem de mediação entre os dois pólos?
Por que mediações é que um indivíduo específico totaliza uma sociedade e um sistema
social e se projecta para um outro indivíduo? Segundo problema: com a sua referência
constante a uma praxis individual, a perspectiva epistemológica do método biográfico não
implica uma concepção nominalista e atomizada do social, visto estabelecer sérias de
interacções (o "social" de tarde, Simmel, Von Viese, Moreno, e até de Sartre )? Terceiro
problema: a nossa abordagem do método biográfico não anula toda e qualquer
possibilidade prática de utilização? Se o modelo do bom uso sociológico da biografia são
as cerca de 2500 páginas de L'idiot de la famille, não nos arriscamos a provocar o silêncio
dos sociólogos, ou antes o seu regresso ansioso às metodologias clássicas?
Problemas logicamente heterogéneos, mas que têm origem naquilo a que Sartre
chamou o "problema das mediações". "Valéry é um intelectual pequeno-burguês, aqui
não há dúvidas. Mas nem todos os intelectuais pequeno-burgueses são Valéry. A
insuficiência heurística do marxismo (e, acrescentamos nós, do método biográfico
tradicional) está contido nestas duas frases. Para a compreensão do processo que produz
a pessoa e o seu produto no interior de uma dada classe ou sociedade num determinado
momento histórico, falta ao marxismo (e à sociologia!) uma hierarquia das mediações"
(4). É preciso "encontrar as mediações que permitem engendrar o concreto singular, a
vida, a luta real e datada, a partir das contradições gerais das forças produtivas e das
relações de produção" (5). Cada indivíduo não totaliza directamente uma sociedade
global, mas totaliza-a pela mediação do seu contexto social imediato, pelos grupos
restritos de que faz parte, pois estes grupos são por sua vez agentes sociais activos que
totalizam o seu contexto, etc. De igual modo, a sociedade totaliza todo a indivíduo
específico por intermédio de instituições mediadoras que a focalizam cada vez mais
pontualmente para o indivíduo em questão.
Por consequência, o percurso heurístico simultâneo de uma biografia a uma
sociedade e de uma sociedade a uma biografia implica uma teoria e uma tipologia das
mediações sociais, que são os campos activos das totalizações recíprocas. Como diz
Sartre, temos de estabelecer uma hierarquia destes espaços de mediação. Temos de
definir as suas funções e as suas modalidades de intervenção nos

(4) J.-P. SARTRE, Critique de la raison dialectique. Questions de méthode, Paris, 1960, P. 44

(5) ibid., P. 45.

31
Página 32

indivíduos que deles fazer parte. Precisamos também de os ler pelo "outro lado", ou seja,
a partir da perspectiva do indivíduo que, por sua vez, os sintetiza horizontalmente (o seu
contexto social imediato, o contexto do seu contexto, etc.) e verticalmente (a sucessão
cronológica do seu impacto com os diferentes espaços de mediação: a família, os "peer
groups" infantis e escolares, etc.). É sobretudo necessário identificarmos os espaços mais
importantes, os espaços que servem de charneira entre as estruturas e os indivíduos, os
campos sociais onde se enfrentam mais directamente a praxis singularizante do homem
e o esforço universalizante de um sistema social.
Quais são estes espaços? "Ao nível das relações de produção e das estruturas
político-sociais, a pessoa singular encontra-se condicionada pelas suas relações humanas.
Ninguém duvida de que este condicionamento, na sua verdade primeira e geral, não tem
origem no'conflito das forças produtoras com as relações de produção. Mas nada disto é
vivido com tanta simplicidade. [ ... ]. A pessoa vive e conhece mais ou menos claramente
a sua condição, através dos grupos a que pertence. A maioria destes grupos é local,
definida, dada inediatamente" (6). Portanto, podemos responder: são os grupos restritos
ou primários. Famílias, "peer groups" de trabalho, de vizinhança, de classe, da caserna,
etc., todos estes grupos participam simultaneamente na dimensão psicológica dos seus
membros e na dimensão estrutural de um sistema social. Pelas desestruturações e
reestruturações do contexto que opera, a praxis do grupo mediatiza e volta a traduzir
activamente a totalidade social, nas suas micro-estruturas formais e informais, nas suas
linhas de poder e de comunicação, nas suas normas e sanções, nas suas modalidades e
redes de interacção afectivas, etc. O próprio grupo torna-se por sua vez - e
simultaneamente - o objecto da praxis sintética dos seus membros. Cada um deles lê o
grupo a partir da sua perspectiva individual. Cada um deles se constrói psicologicamente
como um "eu", a partir da sua leitura do grupo de que faz parte. O grupo primário revela-
se assim como a mediação fundamental entre o social e o individual. Define-se como o
campo social onde coexistem indissoluvelmente a totalização do seu contexto social e a
totalização que desta totalização do grupo opera individualmente cada um dos seus
membros. Propõem-se como o espaço de ligação onde se articulam reciprocamente, e se
esbatem um no outro, o público e o privado, as estruturas e o eu, o social e o psicológico,
o universal e o singular. Um local privilegiado deste universo singular, que nos parece o
protagonista do método biográfico tal como o entendemos.
No interior do sistema de mediações que marca a interconexão de uma biografia
e de uma estrutura social, o grupo primário ocupa um espaço-charneira crucial. Mas se
este é o papel, o sentido e a pregnância heurística do grupo primário, porque não o
transformamos no protagonista principal e directo do método biográfico? Porque não
substituir a biografia individual pela biografia de um grupo primário como unidade
heurística de base para um método biográfico renovado?
A ideia é menos despropositada do que parece. Responde, por exemplo, aos
outras dois problemas que assinalámos atrás. Toda a teoria dos fundamentos do

(6) J. P. SARTRE, Critique..., P. 49

32
Página 33

social ou método sociológico tendo como ponto de partida um qualquer átomo social
(indivíduo, interacção elementar) soçobra no nominalismo, numa lógica atomista e na
psicologia social. A maioria das teorias da acção social fracassou neste ponto preciso (ver,
por exemplo, as belas páginas de R. Aron sobre o nominalismo que esconde a teoria
weberiana da acção). Ora, nós acreditamos que uma abordagem que se coloque
decididamente do lado da razão dialéctica evita estes perigos, mesmo se se basear na
praxis individual. O nominalismo sociológico já não é concebível quando o conceito deixa
de ter a forma de abstracção típica da lógica formal. De resto, como é que modelos não
lineares de interpretação do social poderiam contentar-se com séries lineares do
atomismo sociológico? Resta o perigo real da redução psicologista. Mas em todo o caso,
a escolha do grupo primário como unidade heurística de base, situa-nos logo para além
de toda a possibilidade de nominalismo, de atomismo e de psicologismo. Pois se
utilizarmos um modelo interpretativo correcto, um grupo primário não pode ser reduzido
à rede das suas interacções elementares. Excede-as a todo o momento e impõe-se como
uma totalidade social, definida não pelo seu "sistema interno" de relações psicossociais,
mas pelo sistema das funções estritamente sociais que o enraizam no seu contexto.
Quanto ao problema da operatividade da abordagem biográfica que propomos
aqui, a abandono do indivíduo em favor do grupo não elimina todas as dificuldades, mas
diminui-as consideravelmente. Tomado como ponto de partida do vaivém heurístico, o
grupo permite eliminar a etapa mais complexa de todo o método biográfico: a
compreensão da totalização infinitamente rica que um indivíduo opera a partir do seu
contexto e que exprime por meio das formas crípticas de uma narrativa autobiográfica.
O recurso às biografias dos grupos primários permite evitar esta primeira
passagem. Permite que nos coloquemos à partida, não ao nível do indivíduo em situação
- nível que é dominado pela dimensão psicológica -, mas ao nível do aspecto
imediatamente social do grupo primário. Não sabemos quase nada do indivíduo como
"conjunto das relações sociais", de que nos fala Marx. A inaptidão e a indiferença pelo
social da psicologia científica não nos proporcionam qualquer modelo intra-psíquico ou
relacionar do indivíduo social. Mas sabemos muito mais sobre os grupos. É verdade que
a recusa dos modelos deterministas e a ideia do grupo como totalização activa do seu
contexto tornam inúteis e desconcertantes quase todos os nossos conhecimentos sobre
os grupos. Mas dispomos de modelos que podem ser repensados, de conhecimentos que
podem ser recuperados, de hipóteses que podem ser reintegradas no quadro de uma
lógica e de uma intencionalidade heurística diferentes. Com os grupos, estamos
imediatamente no social (um social que não inclui o indivíduo) e não trabalhamos no vazio
de um terreno que permanece por desbravar (o universal singular). Sabemos para onde
ir e como procurar.
O método biográfico dirigiu-se quase sempre ao indivíduo. Esta escolha tem a
banalidade da evidência, mas esconde um equívoco grosseiro, pois o indivíduo não é,
como se acreditou demasiadas vezes, um átomo social que seria a mais elementar das
unidades heurísticas da sociologia. Simmel tinha-o visto bem no princípio da sua
Soziologie. Longe de ser o mais simples dos elementos do social - o seu átomo irredutível
-, o indivíduo é por sua vez uma síntese complexa de elementos sociais. Não funda o
social, mas é o seu produto sofisticado. Paradoxalmente, o verdadeiro ‘.

33
Página 34

elemento do social é, na nossa opinião, o grupo primário, sistema aparentemente


complexo, que, na realidade, constitui o objecto mais simples para o olhar sociológico. A
respeito deste "Grundkörper" relativamente estável, medimos e identificamos toda a
complexidade móvel, rica, flutuante, entre totalizações múltiplas e contraditórias, que
caracteriza as interacções chamadas "elementares" e a sociedade no estado nascente. A
respeito deste "Grundkörper", medimos a síntese vertiginosa, densa e complexa que
representa um indivíduo do ponto de vista da sociologia.
Se aceitamos este indivíduo como o protocolo do conhecimento sociológico (7),
porque não haveria também de ser o grupo primário o protocolo do método biográfico?
Se as nossas hipóteses de trabalho são válidas, a renovação do método biográfico exige
uma nova teoria da acção social. Esta teoria já não se basearia no acto de um ou de vários
agentes individuais, mas no acto de uma totalidade social, o grupo restrito lido através de
modelos "antropomórficos" e não mecanicistas.
A biografia do grupo primário põe, por sua vez, novos problemas. Como obter a
biografia de um grupo? Trata-se de justapôr ou entrecruzar as perspectivas individuais
que os seus membros têm do grupo e da sua história? Não será preciso estabelecer uma
interacção contínua com o grupo na sua totalidade? Ou ainda: como identificaremos a
dialéctica, "entalada" entre a totalização que o grupo faz do seu contexto e a totalização
que cada membro do grupo faz desta totalização? Através de que mediações poderíamos
integrar na nossa perspectiva sociológica os modelos e as técnicas fundamentais de
observação elaboradas pela psicologia, pela psicanálise e pela terapia familiar e de grupo?
Espera-nos todo um trabalho de reflexão teórica, que sem dúvida nos poderá permitir um
dia a passagem do mais simples ao mais complexo, a passagem da biografia do grupo à
biografia individual.

(7) Não entendemos aqui por "protocolo sociológico" o mais elementar dos factos sociais
(seríamos conduzidos para a lógica nominalista), mas a mais simples das categorias heurísticas de
que a sociologia dispõe (o que exclui tomar-se partido sobre a estrutura ontológica do social).

34
Página 35

III

DA FORMAÇÃO DO SUJEITO AO SUJEITO DA FORMAÇÃO

CHRISTINE JOSSO (Universidade de Genebra)


Texto inédito de 1987

35
36
Página 37
As reflexões abordadas neste texto são simultaneamente fruto de uma ideia geral
que trabalhamos com Pierre DOMINICÉ e Matthias FINGER há vários anos e, mais
especificamente, de um ano de investigação-formação no seminário HISTÓRIA DE VIDA E
FORMAÇÃO (1). Este seminário permite trabalhar regularmente esta ideia geral, repondo-
a em jogo com novos estudantes, no decurso de um cenário que descrevemos
detalhadamente num texto anterior (2).

A ideia geral que procuramos clarificar através destes passos de investigação-


formação periodicamente renovada, pode ser resumida nas três questões seguintes:
Que é a formação do ponto de vista do sujeito?
Como se forma o sujeito?
Como aprende o sujeito?

A palavra "formação apresenta uma dificuldade semântica, pois designa tanto a


actividade no seu desenvolvimento temporal, como o respectivo resultado. Designando
o nosso objecto de investigação pelo conceito de processo de formação, indicávamos
mais claramente que nos interessávamos pela compreensão da actividade. Todavia,
mantém-se uma ambiguidade, na medida em que o conceito utilizado não permite
distinguir a acção de formar (do ponto de vista do formador, da pedagogia utilizada e de
quem aprende) da acção de formar-se: isto embora

(1) Este seminário tem lugar no quadro da Secção Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Trata-
se de um seminário ligado ao curso "Da adolesscência à vida adulta", dado por Pierre DOMINICÉ,
responsável pela nossa equipa de investigação GRAPA (grupo de investigação sobre os adultos e os seus
processos de aprendizagem ).

(2) 1. Christine JOSSO, "Une expérience formatrice: l'approche biographique des processus de formation,
de connaissance, d'apprentissaage", in Cahiers de la Section des Sciences de l'Éducation, n.º 44,
Universidade de Genebra,1986.

2. Christine JOSSO, "Des demandes de formation au processus de formation: les apports de l'approche
biographique à la compréhension d'une dynamique ", Education Permanente, n.º 72/73, Paris, 1984.

37
Página 38
possa ser entendido como designando o que se passa numa qualquer actividade
educativa e/ou como o conjunto das actividades do sujeito no decurso das quais se
formou - se a reflexão é retrospectiva - ou se forma - se a reflexão se efectua no presente.
Abordaremos neste texto os dois significados contidos no conceito de processo
de formação. Por um lado, apresentaremos o que o seminário nos permitiu elaborar sobre
o processo de formação tal como os nossos estudantes o definem na construção da sua
Biografia Educativa. Por outro, apresentaremos o que eles nos permitiram compreender
sobre a forma como vivem a experiência que lhes propomos.
Um dos interesses de conhecimento que preside a esta centração sobre o
processo de formação do ponto de vista do sujeito é a elaboração progressiva de uma
teoria da formação que seja própria a uma ciência da educação, com a integração
simultânea das contribuições específicas das diferentes disciplinas das ciências humanas
que participam na análise dos factos educativos. Com efeito, trata-se de nos
demarcarmos dos trabalhos da antropologia, da sociologia e da psicologia, que propõem,
cada um à sua maneira, uma explicação da formação, que tomada isoladamente nos
parece satisfatória, para tentarmos compreender o que se passa do ponto de vista do
sujeito.
Se damos alguma importância à elaboração de uma teoria da formação
específica a uma ciência da educação, é porque nos parece indispensável mostrar de que
forma as actividades educativas mobilizam uma pluralidade de dimensões co-presentes
em quem aprende. Nos nossos trabalhos sobre a "procura de formação", mostrámos a
pluri-funcionalidade da formação contínua. Esta pluri-funcionalidade exprime-se através
dos registos que foi possível atribuir às diferentes disciplinas das ciências humanas; a
saber, os registos seguintes: psicológico, psico-sociológico, sociológico, económico,
político, cultural. A estas diferentes modalidades de expressão da procura de formação
convém acrescentar uma dimensão que as atravessa a todas: a temporalidade. O conceito
de processo já o exprime claramente, mas o que não refere é a co-presença do passado,
presente e futuro, tanto na formação dos sujeitos como nas actividades educativas em
geral (3).
Verifica-se que o campo das nossas actividades é o da Educação dos Adultos. Esta
localização da nossa reflexão tem uma incidência directa sobre a abordagem dos
processos de formação do ponto de vista do sujeito. Com efeito, a educação das crianças
e dos adolescentes pode ser concebida em volta da ideia que têm de ser formados,
insistindo-se ao mesmo tempo na ideia de que os pedagogos devem ensiná-los a
aprender. Pelo contrário, parece-nos mais difícil defender ao mesmo tempo a ideia de
que os adultos são seres responsáveis e que têm de ser formados no quadro das
formações contínuas nas quais participam. Parece-me que um dos objectivos da formação
contínua deve ser o alargamento
(3) Matthias FINGER, Herméneutique et biographie, Universidade de Montreal, 1984. Ver também: (2).2.

38
Página 39
das capacidades de autonomização, e, portanto, de iniciativa e de criatividade. Neste
sentido, preferimos a ideia de que a Educação dos Adultos se caracteriza por uma
pedagogia que tem como objectivo "aprender a aprender" e que concederá um lugar de
destaque à reflexão sobre as experiências formadoras que marcam as histórias de vida.
Para abordarmos a Educação dos Adultos nos termos que acabámos de propor,
temos de ser sensíveis ao seguinte paradoxo: nos sistemas políticos ditos democráticos,
o cidadão é levado a fazer escolhas que têm a ver com o futuro da comunidade à qual
pertence, mas a sua autonomia é extremamente restrita quando se encontra em situação
educativa.
É porque não temos ilusões quanto à autonomia espontânea dos adultos, que
procuramos os meios de favorecer um processo de autonomização através do
acompanhamento dos adultos-alunos, na sua aprendizagem da reflexibilidade. Assim,
utilizando a reflexão sobre o seu processo de formação, pretendemos pôr em evidência
o que eles fizeram do que os outros quiseram que eles fossem - para retomar o discurso
de Sartre. Ou seja, trabalhamos com eles para pormos em evidência o facto de que eles
são os sujeitos mais ou menos activos ou passivos da sua formação e de que podem dar-
se a si próprios os meios de serem sujeitos cada vez mais conscientes.
A BIOGRAFIA EDUCATIVA, INSTRUMENTO DE COMPREENSÃO DOS PROCESSOS
DE FORMAÇÃO DO PONTO DE VISTA DOS EDUCANDOS
A construção de uma "Biografia Educativa" não é uma narrativa de vida, tal como
resultaria da narração de uma história de vida considerada na sua globalidade (4). É o
fruto de um processo de reflexão que só parcialmente aparece numa narrativa escrita a
meio caminho do percurso seguido. Cada etapa do processo faz parte da Biografia
Educativa, e constitui tanto o fim de uma interrogação como o ponto de partida de uma
outra. O trabalho biográfico implica fortemente o estudante que se compromete nesse
processo de reflexão orientado pelo seu interesse, levando-o a definir e a compreender o
seu processo de formação.
O processo de reflexão proposto no seminário, e que serve de quadro a esta
experiência, empenha o estudante numa aprendizagem onde o saber, que construirá, vai
depender directamente das capacidades reflexivas que porá em jogo em cada etapa e da
intuição que tem do interesse que para ele representa a etapa que lhe pedem para
ultrapassar.
A equipa GRAPA publicou diversos artigos que o leitor interessado poderá
consultar para melhor compreender as razões que nos levaram a designar a narrativa
(4) P. DOMINICÉ, M. FINGER, M. FALLET, Approches biographiques de processus de formation, Cahiers de
la Section des Sciences de I'Education, Série Recherche n.º 8, Universidade de Genebra, 1984.

P. DOMINICÉ, "La biographie éducative: un itinéraire de recherche", Education Permanente, 72/73, Paris,
1984.

39
Página 40
construída pelos nossos estudantes por Biografia Educativa, de preferência a
autobiografia ou história de vida (5). Digamos sucintamente que a Biografia Educativa
designa uma narrativa centrada na formação e nas aprendizagens do seu autor, que não
é classificada "auto" na medida em que o iniciador da narrativa é o investigador e, por
fim, que o interesse da Biografia Educativa está menos na narrativa propriamente dita do
que na reflexão que permite a sua construção.
A Biografia Educativa constrói-se no decurso de três etapas reflexivas, cada uma
das quais é indispensável para o trabalho biográfico. Só uma destas etapas está centrada
na elaboração de uma narrativa oral e depois escrita, pois as outras duas giram em torno
da compreensão do processa de formação e, para alguns, do processo de conhecimento
(6). Nem todos os estudantes conseguem entrar no trabalho exigido por estas duas
últimas etapas. A estes, diríamos que construíram uma narrativa evocativa do seu
percurso de vida, mas que não elaboraram a sua Biografia Educativa propriamente dita,
e que a sua aprendizagem da reflexibilidade sobre a sua formação está incompleta. A
observação da natureza das dificuldades que, no decorrer das actividades, bloqueiam o
processo de reflexão de alguns, não foi efectuada de maneira sistemática; no entanto, os
investigadores da equipa isolaram algumas pistas, que indicam dificuldades de ordem
psicológica (afectivas e intelectuais), articuladas com dificuldades de ordem sócio-cultural
(sociológicas e psico-sociológicas).
Vamos agora entrar no detalhe dos três momentos reflexivos que constituem a
Biografia Educativa, empenhando-nos em mostrar os ganhos e as perdas de
aprendizagem do processo de reflexão em cada um dos três momentos, assim como as
produções neles efectuadas.
A FORMAÇÃO EM QUESTÃO
No princípio do ano escolar, os animadores dedicam várias sessões à
apresentação das trajectórias intelectuais que os levaram a trabalhar nos processos de
formação e de conhecimento, assim como nas teorias a partir das quais explicitam hoje
os seus conceitos. Este período permite a introdução de uma abordagem crítica das
metodologias de investigação em ciências humanas e em ciências da educação. Permite
também o posicionamento do nosso objectivo de investigação no campo da educação e
o distanciamento das definições psicológicas, sociológicas e antropológicas da formação,
que constituem temas que os estudantes abordam noutras disciplinas do seu curso
universitário. Também pomos em questão a ideia corrente segundo a qual a formação se
efectua em locais de índole educativa e de que só é "efectiva" na medida em que é
sancionada por uma certificação. O conceito de educação não formal, desenvolvido a
partir das experiências feitas nos países industrialmente subdesenvolvidos, permite
(5) P. DOMINICÉ e M. FALLET, Exploration biographique des processus de formation, Cahiers de la Section
des Sciences de I'Education, Série Recherche n.º 1, Universidade de Genebra, 1981.

(6) Ver (2).1

40
Página 41
que introduzamos esta interrogação. Por fim, abordamos a primazia do sujeito que
aprende na elaboração de um saber sobre a sua formação e as suas aprendizagens. A
posição de exterioridade do investigador constitui aqui um limite, cujos efeitos de
"desconhecimento" podem ser atenuados pela reflexão do investigador sobre o seu
próprio processo de formação.
A imagem da "caixa negra" serve aqui para ilustrar a ideia de que os processos
cuja compreensão se pretende atingir, podem ser clarificados por um trabalho
introspectivo, por uma atenção particular, que as pedagogias das nossas instituições
educativas deixam, a maior parte das vezes, na penumbra. Esta "Atenção Interior",
consciência proprioceptiva, é a única competência de que dispunhamos para investigar a
"caixa negra". É a única fonte de luminosidade que cada um pode desenvolver para ter
consciência da actividade interior do sujeito nas suas aprendizagens. A maioria dos nossos
estudantes pratica esta Atenção Interior para se consciencializar dos movimentos das
suas emoções e sentimentos; todavia, são raros os que a utilizam no âmbito da sua
actividade mental. A questão "como me tornei no que sou" parece ultrapassável aos
nossos estudantes, mas a complexidade dos dados a reunir e a articular entre eles parece-
lhes, e justamente, uma tarefa árdua. A questão "como tenho eu as ideias que tenho",
representa de entrada um obstáculo intransponível para quase todos. No entanto, nas
duas experiências que realizámos, tivemos de cada vez uma ou duas pessoas que
conseguiram apropriar-se destas duas questões e partilhar com o grupo uma reflexão a
partir delas.
Esta primeira etapa termina com a produção individual de um texto de uma
página, no qual cada um traduz, na linguagem que lhe é própria, a problemática que foi
apresentada e discutida. Esta produção escrita tem uma grande importância no
seminário, por duas razões:
- por um lado, inaugura um procedimento que será renovado a cada etapa: pôr
o educando face às suas responsabilidades na aprendizagem em curso. Com efeito,
consideramos que quando o educando define por si mesmo o interesse ou os interesses
de conhecimento que o fizeram preferir este seminário a outro qualquer (7), se situa
como sujeito da aprendizagem em curso.
- por outro, esta produção abre caminho ao esforço de reflexibilidade exigido ao
longo do seminário. Oferece-se assim a possibilidade de pôr em acção a Atenção Interior,
que permitirá ao educando ser sujeito e objecto da sua investigação, por efeito da
distanciação que implica a escrita do que foi pensado através dos debates com o grupo e
com os animadores.
Nunca será demais dizermos que as modalidades de trabalho propostas pelos
animadores não são formadoras em si, e que não passam de oportunidades oferecidas
aos estudantes, que alguns utilizarão e outros não. É por isso que o conjunto dos passos
dados exige momentos no decurso dos quais os animadores pedem a cada um para
explicitar onde se encontra na etapa em curso, a fim de poderem situar a sua posição na
aprendizagem.
(7) A Secção das Ciências da Educação utiliza um sistema de créditos que permite aos estudantes,
respeitando certas regras, escolherem as suas disciplinas anualmente.

41
Página 42
No termo desta etapa, os participantes do seminário deveriam, no melhor dos
casos, ter passado da interrogação da formação, tal como foi desenvolvida pelos
animadores, ao questionamento da sua própria formação. Repitamos que este
questionamento é específico de cada um: alguns abordam pela primeira vez uma reflexão
sobre o seu percurso de vida, o seu questionamento é global; outros, já reflectiram no
seu percurso por sua própria iniciativa ou por altura de um estudo analítico, e formulam
questões mais precisas sobre o que foi formador na sua vida; outros ainda, continuam a
interrogar-se sobre as ideias que os animadores introduziram e falam da sua dificuldade
em imaginar o que pode ser a sua narrativa de vida, centrada na formação. Este momento
é importante para os animadores, pois permitir-lhes-á trabalhar com cada um
exactamente no ponto em que este se situa.
A DESCOBERTA DA SINGULARIDAE)E DOS PERCURSOS DE FORMAÇÃO
Nesta segunda etapa, cada participante constrói o seu percurso de formação e
escreve a sua narrativa.
O tempo de narrativa oral, que desencadeia esta etapa, é um momento
necessário à mobilização das recordações e à sua selecção e ordenação num continuum,
quase sempre cronológico. Na medida em que a narrativa é uma construção que tem
lugar num processo de reflexão, convém ordenar o tempo da maturação e o da
rememoração; é por isso que a escrita da narrativa encerra esta etapa e que se pede aos
estudantes para não se precipitarem a escrevê-la, após o termo da apresentação oral do
seu percurso de formação.
A maioria dos participantes preocupa-se tanto com a objectividade do que vai
narrar como com a exaustividade da sua narrativa. No decurso dos três meses necessários
à audição das narrativas, tomam consciência de que a rememoração é um processo
associativo que se refina e se enriquece com as outras narrativas o com as questões
suscitadas por cada narrativa, tanto da parte dos animadores como dos participantes.
Alguns tomam também consciência de que a objectividade da narrativa é uma ilusão e de
que o interesse da construção do percurso reside precisamente no seu carácter
eminentemente subjectivo; isto, visto que se trata de conhecer e compreender os
significados que cada um atribui ou atribuiu em cada período da sua existência aos
acontecimentos e situações que viveu. São precisamente estas interpretações que
alimentam as representações que fazem de si mesmos e dos contextos nos quais
evoluíram.
Dado que a narração se efectua em grupo, a faculdade de rememoração e de
atribuição de sentido funcionam num duplo movimento de identificação/distanciamento
entre as narrativas. Cada narrativa permite que constatemos em que é que nesta ou
naquela semelhança há uma diferença e em que é que no próprio núcleo de tal ou tal
diferença há uma semelhança possível. É portanto graças a este mecanismo de
funcionamento do intelecto, utilizado pelos animadores e pelos estudantes, que a
narrativa se apura, precisando-se, e que surge a singularidade da narrativa de cada une
do sujeito que a constrói.

42
Página 43

Nesta etapa, o processo de reflexão caracteriza-se pela mobilização da memória,


pelo jogo discriminativo do pensamento e pela ordenação através da linguagem, da
actividade interior do sujeito. Assim, esta subjectividade em acção, efectua nos seus
próprios movimentos um trabalho de objectivação, entendido aqui nos dois seguintes
sentidos:
- por um lado, como passagem da actividade mental interior para a sua
transmissão pela linguagem;
- por outro, como passagem de um "vivido", no qual se encontra uma aglutinação
de emoções, sentimentos, imagens e ideias, a uma ordenação destes componentes, para
que a narrativa seja inteligível para um terceiro.
Este trabalho de objectivação provoca um distancimento do sujeito face a si
mesmo na passagem à linguagem (será que as minhas palavras exprimem o meu
pensamento?) e na interrogação compreensiva - eminentemente sincrética - da parte dos
ouvintes dos significados que esta linguagem veicula (que sentido dou a tal ou tal
expressão?). Neste pontos insistamos na atitude não-interpretativa das reacções e das
questões levantadas a propósito da narrativa de um terceiro. Quando formula um juízo
crítico sobre uma outra narrativa, o participante regressa a si mesmo, na medida em que
só pode projectar na vida de um outro os seus próprios critérios. Ou seja, trabalhamos
com a preocupação constante de evitar os juízos e as interpretações selvagens que não
só bloqueariam a confiança indispensável ao desenrolar da experiência, como impediriam
o processo reflexivo, pondo fim ao processo de elaboração de sentido. As abordagens
ditas de psicologia humanista realçaram muito os efeitos perversos deste tipo de
"perspectiva fechada", através de noções como o cenário de vida, o destino familiar ou a
programação.
Assim, a ordenação do percurso de formação numa narrativa periodizada é um
trabalho simultaneamente individual e autopoiético (8) e obra colectiva. Damos muita
importância a esta articulação no nosso método de trabalho, pois pensamos que ela é a
ordenação, na nossa situação particular, do que caracteriza toda a produção de
conhecimento. Concretamente, permite a introdução da ideia de que esta produção é um
processo consensual e a desmistificação da ideia correntemente verbalizada de uma
objectividade científica in abstracto.
Depois de termos descrito o que caracteriza o processo reflexivo nesta etapa,
terminaremos apresentando os materiais com os quais se constróem as narrativas e
propondo uma classificação geral e provisória de "em que é que os componentes das
narrativas foram entendidos como formadores". Tomada na sua globalidade, a narrativa
articula períodos da existência que reúnem vários "factos" considerados formadores. A
articulação entre estes períodos

(8) H. MATURANA, "Stratégies cognitives", páginas 418 e seguintes. H. ATLAN, "Conscience et desirs dans
des systémes auto-organisateurs", páginas 449 e seguintes. em: Cunitá de 1'homme, Centre de Royaumont,
Seuil, Paris, 1979. E. MORIN, La via dano Ia vi*,, p. 104 a p. 130, Seuil, Paris, 1984.

43
Página 44
efectua-se em torno de "momentos-charneira", designados como tal porque a sujeito
escolheu - sentiu-se obrigado a - uma reorientação na sua maneira de se comportar e/ou
na sua maneira de pensar o seu meio ambiente e/ou de pensar em si através de novas
actividades. Estes momentos de reorientação articulam-se com situações de conflito e/ou
com mudanças de estatuto social, e/ou com relações humanas particularmente intensas,
e/ou com acontecimentos sócio-culturais (familiares, profissionais, políticos,
económicos).
Nestes momentos-charneira, o sujeito confronta-se consigo mesmo. A
descontinuidade que vive impõe-lhe transformações mais ou menos profundas e amplas.
Surgem-lhe perdas e ganhos e, nas nossas intersecções, interrogamos o que o sujeito fez
consigo próprio ou o que mobilizou de si mesmo para se adaptar à mudança, evitá-la ou
repetir-se na mudança.
Na totalidade das narrativas, as perdas e os ganhos de qualquer natureza e
amplitude mostram que o sujeito entra em contenda com uma dupla lógica: a da
individualidade que procura exprimir-se e a da colectividade que exige em nome de
normas e impõe em nome de regras do jogo; mas também entre o que o sujeito pensa
que se espera dele para ser reconhecido e aquilo que acredita querer ser ou tornar-se
para ser autenticamente ele próprio. Damos muita importância à compreensão destes
momentos-charneira, pois consideramo-los momentos privilegiados das narrativas, onde
a dinâmica do sujeito se explicita, o que provoca a abertura de uma via de acesso ao
processo de formação que será trabalhado na terceira etapa.
Para fazermos a síntese do "em que é que" as situações, as relações, as
actividades e os acontecimentos narrados foram formadores, utilizaremos o conceito de
integração no qual fomos introduzidos por C. GATTEGNO (9), conceito que nos parece
particularmente operatório para a compreensão dos processos de formação: formamo-
nos quando integramos na nossa consciência, e nas nossas actividades, aprendizagens,
descobertas e significados efectuados de maneira fortuita ou organizada, em qualquer
espaço social, na intimidade connosco próprios ou com a natureza.
Na sua narrativa, e por ocasião dos nossos debates, os estudantes falam de
competências diversas, adquiridas de diferentes maneiras, tanto pessoais - emotivas,
afectivas, intelectuais - como técnicas - saber desembaraçar-se com objectos e
procedimentos sociais -, ou relacionais - estilo de vida e de convivialidade. Falam também
de conhecimentos: quer se trate da descoberta de

(9) Du temps, 4 volumes, seminário dirigido por C. GATTEGNO, Une école pour Demain, Lyon, 1979.

Des energies, 3 volumes, seminário dirigido por C. GATTEGNO, Une école pour Demain, Lyon, 1982.

De l'intuition, seminário dirigido por C. GATTEGNO Une école pour Demain, Lyon, 1978.

Le cerveau, seminário dirigido por C. GATTEGNO, Bulletin de Liaison de Face à I'Education, n.º 1 a n.º 4,
Genebra, 1976.

J. E. MARCAULT e Dr. Th. BROSSE, L' éducation pour demain, Alcan, Paris, 1939.

44
Página 45
factos humanos e sociais, cuja existência lhes era desconhecida, quer se trate da tomada
de consciência de significados novos e enriquecedores para a compreensão de si próprios
ou do ambiente que os rodeia. Em todos os casos, um "gene", um "choque", uma
curiosidade, a maturação de uma questão ou ainda um exercício efectuado com
perseverança, estão na origem destas competências, descobertas e significados.
Para terminarmos esta etapa, gostaríamos de assinalar que a nossa experiência
deste ano foi ainda mais rica porque a composição do grupo era inter-cultural: tínhamos
não só diferentes nacionalidades ocidentais (suiça, francesa e americana), como também
uma chinesa de Macau e um refugiado haitiano, que partilhou connosco a sua alegria pelo
fim da ditadura de Duvalier. As confrontações culturais originadas por esta composição
enriqueceram consideravelmente a refexão de cada um sobre os valores e as visões do
mundo que estruturam as nossas individualidades.
DOS PERCURSOS DE FORMAÇÃO AOS PROCESSOS DE FORMAÇÃO
A última etapa é consagrada à reflexão sobre o percurso de formação em termos
de dinâmicas. Desta vez a narrativa é trabalhada com a preocupação da explicitação dos
fios condutores que permitem compreender os encadeamentos dos períodos entre eles.
Mais precisamente, trata-se de utilizar a entrada que nos é fornecida pelos ganhos e
perdas que se exprimem nos momentos de orientação, a fim de:
- por um lado, se compreender a dinâmica do sujeito na sua maneira de fazer
escolhas ou de se deixar ir, de reagir aos acontecimentos e de orientar a sua existência
em cada período. Neste aspecto do processo de formação tentamos igualmente que o
sujeito explicite as transformações que operou através das aprendizagens e
conhecimentos específicos dos contextos (situações, acontecimentos, interacções e
actividades) de cada período.
- por outro lado, se caracterizarem os temas com os quais o sujeito entrou em
confronto nas suas escolhas, orientações e reacções. O nosso objectivo é compreender
os "motivos" - para usarmos uma noção do domínio das artes e da literatura - através dos
quais se manifestou ou tomou forma a dinâmica do sujeito.
Nesta etapa, o processo de reflexão caracteriza-se pelo uso da capacidade de
abstracção face à descrição casuística, a fim de compreender o que foi estruturante e
mobilizador para o sujeito. A singularidade de cada percurso serve para ilustrar, através
de uma configuração particular, uma ideia geral que deve dar a cada participante uma
compreensão suplementar e enriquecer as significações anteriormente atribuídas,
assumindo-se simultaneamente como um momento do próprio processo.

45
Página 46
O tema gerador (10) que escolhemos trabalhar como referência dos diferentes
"motivos" é o das relações entre o individual e o colectivo. Este tema é considerado
gerador de um consenso, na medida em que pertence ao horizonte de reflexão dos
participantes, visto que surgem frequentemente nas suas intervenções para designarem
uma dialéctica que atravessa a sua existência. É também considerado gerador no sentido
em que uma reflexão sobre o que abarca dará origem a significados novos.
Os "motivos" integrados neste tema geral são os seguintes:
1. Autonomização / conformização;
2. responsabilização / dependência;
3. interioridade / exterioridade.
1. Autonomização / conformização.
O equilíbrio entre a busca de autonomia e de conformidade pode aparecer em
momentos muito diferentes nas narrativas. Por vezes desde a infância, como a estudante
chinesa, que a mãe superprotegia porque a considerava de saúde frágil e que teimou em
recusar a marginalização que esta superprotecção implicava, efectuando por iniciativa
própria aprendizagens que tomava a peito. Como a estudante americana que se aplica a
desenvolver o seu sentido de iniciativa e de criatividade, seguindo ao mesmo tempo
escrupulosamente os conselhos de orientação dos pais. Ou ainda como a estudante suiça
que, paralelamente à conformização com as expectativas familiares, cria o seu universo
imaginário alimentado de sonhos, de leituras e de música.
Esta dialéctica manifesta-se por vezes no momento das escolhas da escolaridade
pós-obrigatória ou de orientação profissional, entre a preocupação de se responder às
expectativas familiares e a de se seguir os próprios desejos.
Encontramo-la novamente sob a forma de uma problemática feminista, quando
se trata de definir que mulher se quer ou não ser.
Encontramo-la igualmente nos momentos em que as relações de poder
interferem explicitamente com a vontade do sujeito, a maior parte das vezes na vida
profissional.
Encontramo-la por fim nos esforços feitos pessoalmente para se conseguir um
distanciamento das ideias recebidas ou adoptadas num momento da vida, por razões
afectivas.
Uma vez surgida, esta dialéctica permanecerá uma preocupação do sujeito, que
procurará generalizá-la a todas as dimensões da sua vida. Quer se jogue

(10) Esta noção é de P. FREIRE, consultar: Pedagogia del Oprimido, Tierra Nueva, Montevideu, 1971

L' éducation: pratique de la liberté, Cerf, 1971.

46
Página 47
num plano material (autonomia financeira ou abandono da casa familiar e até
mesmo da região ou do país), num plano sócio-cultural (distanciamento do estilo de vida
familiar ou abandono do estatuto social de origem através de uma escolha profissional
ou ainda abandono da religião da infância e da adolescência) ou no plano psicológico
(controlo das emoções, partida em busca de uma nova visão do mundo ou aprender a
pensar pela própria cabeça), o jogo da autonomização desejada face a uma
conformização esperada pelo meio ambiente é o "motivo" mais representativo dos
processos de formação.
2. Responsabilização / dependência
O equilíbrio entre a aceitação de responsabilidades e uma posição de
dependência pode estar presente juntamente com o da autonomização / conformização
mas também pode surgir independentemente dele. Pode aparecer muito cedo na
infância, como no caso da estudante suiça que com ele se confrontou por meio de uma
escolaridade baseado no método Freinet ou, muito mais tarde, no percurso profissional,
através de uma promoção ou ainda na capacidade de iniciativas no seio da actividade
profissional ou enfim por meio de um empenhamento político. Afinal de contas, esta
aceitação de responsabilidade exprime uma maneira de a pessoa se posicionar na
comunidade de vida e também face à sua própria existência como um ser que assume as
suas escolhas, os seus comportamentos e as suas ideias, qualquer que seja o preço social
ou afectivo.
3. Interioridade / exterioridade
A dialéctica entre aquilo a que Jung chama o eu e a persona (11) encontra-se por
vezes presente muito cedo na existência, como no caso da estudante que, desde a
escolaridade obrigatória, estabelece uma distinção entre o seu mundo interior e o que
deve fazer para satisfazer o seu papel de criança na família e na escola.
Aparece também na adolescência, no momento em que se toma consciência da
necessidade de um jogo social para se alcançarem os objectivos próprios. Mas emerge
mais frequentemente quando o sujeito toma consciência de que a sua realização na
actividade profissional é incompleta e/ou insatisfatória. Trata-se então de encontrar
outras actividades através das quais o sujeito poderá realizar aspirações que não tiveram
o seu lugar no profissão.
Pode também tratar-se da definição de um projecto de vida no qual a actividade
profissional terá um lugar menor ou um lugar mais justo. O encontro do companheiro ou
da companheira, o nascimento do primeiro filho, são frequentemente momentos de
desinvestimento relativo da actividade profissional.
O arranque de uma nova formação - como, por exemplo, a presença na
Universidade - pode também ser a expressão de uma necessidade de reequilibro e/ou de
se ir além do que é agora conhecido e dominado.

(11) C. C. JUNG, Dialectique du moi et de L'inconscient, Gallimard, Idées, Paris, 1983.

47
Página 48
As mudanças de profissão têm igualmente a sua raiz na tomada de consciência
de que o sujeito ainda não esgotou o seu potencial ou se sente tentado pelo
desenvolvimento de novas competências.
Em todos estes casos, os sujeitos exprimem a sua consciência de que a sua
personalidade "exteriormente" expressa não é senão a parte visível de um icebergue e de
que o seu ser ultrapassa estas formas particulares.
Para terminarmos esta síntese sobre os "motivos" do processo de formação
abordaremos resumidamente (12) a questão dos fundamentos. Ao longo das interacções
sobre as narrativas, a propósito dos processos de formação, chegámos à ideia de que a
importância (positiva ou negativa) dada às noções de auto-nomização, conformização,
dependência, responsabilização, projecto de vida e desenvolvimento das potencialidades
próprias, estava ligada a valorizações que adquiriam sentido e encontravam a sua
legitimidade em concepções de vida ou visões do mundo. Assim, a reflexão sobre o
processo de formação desemboca numa interrogação directa sobre o processo de
conhecimento, através da procura de respostas à pergunta: "como é que eu tenho as
ideias que tenho". Esta interrogação sobre a epistemologia do sujeito que se questiona a
si próprio, introduz na reflexão sobre o processo de formação um círculo de retroacção
que permite compreender o carácter formador da abordagem que propomos aos nossos
estudantes. As interpretações às quais cada um chega por meio deste trabalho são por
seu lado postas em questão, não na sua legitimidade, mas na sua génese e consequências
sobre a trajectória do sujeito. Para aqueles que chegaram até esta etapa da reflexão, o
processo de conhecimento sobre o processo de formação, iniciado no nosso seminário,
gera uma abertura na sua relação com os saberes. Esta abertura implica-os directamente
como sujeitos que utilizam os referenciais que edificaram e dos quais se apropriaram no
seu percurso de vida, para construirem significados que não têm outra legitimidade senão
a de serem o resultado pensado das suas experiências. A sua relação com o saber
universitário pode ser questionada por este meio, contribuindo para uma compreensão
mais exacta, e até inovadora, sobre as razões que os levam a procurar formação.
O segundo aspecto do processo de formação que abordamos no fim do
seminário, sem poder consagrar-lhe todo o tempo necessário, é o da dinâmica do sujeito
enquanto ser psicossomático que, através da multiplicidade das suas aprendizagens, forja
em si qualidades e competências que são "atributos" que o eu se deu a si próprio no
decurso das suas aprendizagens (13).
(12) O seminário contém entre 27 e 29 sessões, conforme os anos. As sessões delicadas aos percursos de
formação o aos processos de formação de cada um, ocupam dois terços do tempo. A passagem do processo
de formação ao processo de conhecimento, intervém, logicamente, quando o trabalho sobre os processos
de formação pode acabar, o que explica a falta de tempo à disposição. É por isso que várias vezes sugerimos
conceber a nossa abordagem em dois anos académicos.

(13) Ver (9). C. GATTEGNO, La conscience de la conscience, Delachaux e Niestlé, Neuchatel/Suiça, 1987.

48
Página 49
Embora tenhamos feito - e continuemos a fazer - nós próprias um trabalho de
inventário destas qualidades e competências (14), estamos completamente conscientes
de que se trata da parte mais difícil do trabalho de reflexão sobre a própria pessoa. Deste
modo, não é para admirar que os nossos estudantes tenham sentido dificuldades em
enumerá-las no prazo que lhes era concedido. Mas eis algumas pistas que, apesar de tudo,
os estudantes nos forneceram:
- no que diz respeito às qualidades: a vontade e a perseverança, a concentração
numa tarefa, a abertura de espírito para deixarmos que nos interroguem, a curiosidade
face ao nosso meio ambiente e ao dos outros, a sociabilidade, a tolerância.
- no que diz respeito às competências: a auto-disciplina, o controlo das emoções
e dos sentimentos, a humor, a reflexão, a observação, a capacidade de se definir mais o
que se quer do que o que se não quer, a organização e a planificação do tempo, a
coerência entre o que se pensa e a acção, a coerência entre as diferentes dimensões da
vida, saber economizar as energias.
No futuro tencionamos arranjar os meios de trabalhar em pormenor esta
questão central da dinâmica própria do sujeito, enquanto ser psicossomático, não só
porque abordamos aí o problema do sujeito enquanto ser psicossomático, mas também
porque consideramos que é pelo desenvolvimento de um saber sobre as suas qualidades
e competências que o educando pode tornar-se sujeito da sua formação.
... AO SUJEITO DA FORMAÇÃO
No termo da apresentação do que entendemos pelo instrumento "Biografia
Educativa" e pela relação ao saber que este permite elaborar sobre os processos de
formação dos participantes, através de uma estratégia de investigação-formação, vamos
desembocar não só numa melhor compreensão da formação do sujeito, como também
na perspectiva de recolocar o sujeito no lugar de destaque que lhe pertence quando
desejar tornar-se um actor que se autonomiza o que assume as suas responsabilidades
nas aprendizagens e no horizonte que elas lhe abrem.
Esta perspectiva converge com a nossa ideia de que a Educação dos Adultos
pode, por meio de uma pedagogia apropriada, oferecer àqueles e àquelas que utilizam as
suas estruturas, a abertura para um exercício mais consciente da sua liberdade na inter-
dependência comunitária, tornando-os mais conscientes do que os constitui enquanto
seres psicossomáticos, sociais, políticos e culturais.
Assim, a teoria da formação, cuja elaboração visamos, começa a desenhar os
seus contornos: deverá ser uma teoria da actividade do sujeito, não só em situação de
aprendizagem, mas também da sua actividade de integração das aprendizagens

(14) Trabalho na observação das minhas qualidades e competências desde 1980, quer em supervisão, quer
por intermédio da sofrologia.

49
Página 50
no seio de conjuntos comportamentais, orientados por um projecto de sujeito activo.
Isso implica uma presença consciente do sujeito, sem a qual falaríamos mais de
"adestramento" do que de formação. É a presença consciente que nos permite falar de
um sujeito de formação. O ser em formação só se torna sujeito no momento em que a
sua intencionalidade é explicitada no acto de aprender e em que é capaz de intervir no
seu processo de aprendizagem e de formação para o favorecer e para o reorientar.
Assim, podemos "ser adultos" aos olhos de numerosos critérios sócio-culturais -
maioridade legal, exercício dos direitos cívicos, exercício de responsabilidades
profissionais, casamento, paternidade ou maternidade - e, no entanto, não sermos
sujeitos que vivem conscientemente uma idade adulta, da qual cada um deve definir o
horizonte que lhe atribui.
Para concluir, optámos por dar a palavra ao escritor e artista Henri MICHAUX
(15): "Aprende só com reservas".
Uma vida inteira não chega para desaprenderes o que, ingénuo, submisso,
deixaste que te metessem na cabeça - inocente - sem pensares nas consequências" (p.9).
"Antes de ser obra, o pensamento é trajecto" (p.22).
"Adulto, mostraste a tua primeira capa, aquela que girando frequentemente à
tua volta, te agradava ou te incomodava.
Bem. Nem toda a gente o conseguiu. Agora encontras os outros para teu governo
e para em seguida poderes rechaçá-los e arranjares lugar. Ainda tens tanto para descobrir.
No entanto, não te tornes um 'mostrador'. É sempre a TI, antes dos outros, que
deves mostrar o inaparente; para ti, é vital" (p.29).

(15) H. MICHAUX, Poteaux d'angle, Gallimard, Paris, 1981.

50
Página 51

IV

O PROCESSO DE FORMAÇAO E ALGUNS DOS SEUS COMPONENTES


RELACIONAIS PIERRE DOMINICÉ
(Universidade de Genebra)

Artigo publicado em Psychologie et Éducation (Universidade de Toulouse Le


Mirali), vol. IX, n.º 4, Dezembro de 1985, pp. 7-17.

51
52
Página 53
1. Da avaliação pedagógica à abordagem biográfica: uma mesma interrogação sobre a
formação
A prática da avaliação pedagógica confrontou-nos com dificuldades teóricas que
o arsenal tecnológico utilizado quando se trata de avaliação, nos parece iludir (1). A
medida dos efeitos no campo da educação dos adultos incitou-nos a reflectir sobretudo
no sentido atribuído ao termo formação, e a reconhecer que na ausência de uma teoria
da formação ou, de um modo mais geral, de uma teoria da mudança, os efeitos
assinalados, e frequentemente contabilizados, não tinham um verdadeiro sentido. Não
há dúvida de que, tal como é mais frequentemente proposta hoje em dia, a avaliação
facilita a planificação de uma acção educativa e contribui para assegurar a sua eficácia. O
que não é de desprezar. Mas por outro lado, ela não constitui um domínio de investigação
susceptível de enriquecer a compreensão dos mecanismos em jogo na formação dos
adultos.
Entre as numerosas questões levantadas pela avaliação, debruçámo-nos sobre a
da articulação entre uma aprendizagem, ou qualquer outro resultado imediato derivado
de uma actividade educativa, e o processo mais geral através do qual o adulto se formou
e continua a formar-se. Por outras palavras, considerámos objecto de avaliação já não o
efeito directo devido à acção educativa, mas a sua repercussão no processo de formação.
Portanto, a nossa atenção, dirigiu-se para as regulações deste processo que era legítimo
atribuírem-se a uma actividade educativa. A hipótese à volta da qual se centram as nossas
observações, ela própria resultante das nossas investigações e da nossa prática de
formador, podia ser assim formulada: o efeito formador de uma acção educativa deriva
em grande parte da vida repercussão das regulações necessárias ao desenvolvimento
desta acção sobre as que caracterizam o processo de formação. Ou seja, não há formação
sem modificação, mesmo que muito parcial, de um sistema de referências ou de um modo
de funcionamento.

(1) DOMINICÉ R (1979), La formation enjeu de 1'évaluatlon, Berna, Edições Peter Lang, 202 páginas.

53
Página 54
A preocupação com um melhor conhecimento do processo de formação,
conduziu-nos à abordagem biográfica. Então, no quadro de uma equipa de
investigação (2), desenvolvemos a ideia de que existiam três processos a ter em
conta para identificar os mecanismos em jogo na formação do adulto: o processo
de formação de que acabámos de falar, o processo de conhecimento e o processo
de aprendizagem. Parecia-nos que estes três processos eram interdependentes e
susceptíveis de se esclarecerem mutuamente, devido às suas influências
recíprocas ao longo da história da vida. Eram, no plano teórico, fortemente
inspirados pelo construtivismo da epistemologia piagetiana. De resto,
conhecíamos a aplicação que vários autores tinham feito das teorias do
desenvolvimento no domínio da vida adulta. Sabíamos das dificuldades
encontradas pela maioria deles ao procurarem determinar as características que
permitem falar de estádios de desenvolvimento ou de estrutura de vida (3).
Procurámos, portanto, progredir teoricamente com a ajuda de um material
empírico que nos permitisse precisar a formulação das nossas hipóteses,
clarificando os nossos conceitos de referência. Primeiro, procurámos definir
melhor essencialmente o processo de formação, com a ajuda de relatos
biográficos elaborados no quadro de um ensino universitário frequentado por
adultos, sobretudo por formadores e por profissionais das carreiras sociais.
Seguindo uma via que intitulámos "biografia educativa", propusemos uma
elaboração oral, e depois escrita, de um relato de vida que descrevesse a dinâmica
do percurso educativo. De certa forma, trata-se de uma auto-interpretação do
próprio trajecto de formação, realizada em grupo no contexto de um ensino
universitário (4).
2. Alguns pontos de referência para uma melhor compreensão da orientação e
do uso da narrativa biográfica
O material biográfico de que hoje dispomos é constituído por cerca de
cinquenta textos redigidos por estudantes, no decurso dos quatro anos de
seminário que consagrámos ao tema "história de vida e formação". Sem entrar na
pormenorização das diferentes estratégias de elaboração seguidas, relembremos
que estes textos são redigidos com uma grande liberdade de escrita e depois de
uma apresentação oral feita no seio de um grupo restrito e nesse grupo discutida.
Embora tenhamos variado as fórmulas (5), que iam da proposta de um

(2) Este grupo tem o nome de GRAPA. Centra-se nos processos de formação e de conhecimento
dos adultos. As pesquisas realizadas deram lugar a publicações de Christine Josso, Matthias Finger
e Marcel Fallet.
(3) Ver sobretudo entre as obras mais recentes:
LEVINSON, D. (1978), The seasons of a man's life, Nova lorque, Ballantine Books, 363
páginas.
GOULD, R.L. (1978), Transformations: growth and change in adult life, Nova lorque, Simon and
Schuster, 343 páginas.
(4) DOMINICÉ, P. e FALLET, M. (1981), Exploration biographique des processus de formation,
Genebra, Cahiers de la Section des Sciences de l'Éducation (Série Recherche N.º 1), 35 páginas.
(5) DOMINICÉ, P. (1984), "La biographie éducative: un itineraire de recherche", Paris, Éducation
Permanente, n.º 72 / 73, p. 75 a p. 86.

54
Página 55
plano a uma liberdade total de construção da narrativa, constatámos que a estruturação
das "biografias educativas", tanto orais como escritas, é indicativa do seu conteúdo. De
igual modo, depois de nos termos preocupado com um material biográfico que se
prestasse às análises requeridas pelo objecto da nossa investigação e respondesse às
normas de recolha de dados admitidas pelo organismo de financiamento, na ocorrência
o Fonds National de la Recherche Scíentifíque, reconhecemos por fim que a dimensão
formadora da nossa abordagem biográfica fazia parte integrante da nossa investigação.
Esta tomada de consciência, que só se deu em nós progressivamente, leva-nos
actualmente a desconfiarmos de toda a redução do material biográfico provocada por
uma preocupação de homogeneidade dos dados recolhidos ou de adequação destes
dados às categorias determinadas nos protocolos que estabelecemos.
Este artigo intervém numa viragem da nossa reflexão. Apoia-se em várias
tentativas de tratamento de um material largamente classificado e tenta
simultaneamente justificar a ideia de uma especificidade de cada percurso educativo.
Com efeito, os processos que procuramos identificar dão-se mais a conhecer através da
dinâmica proposta pela narrativa, do que através da reconstrução temática operada com
a ajuda de um conjunto de biografias. Os traços educativos da história de vida escrita nos
textos de que dispomos, põem em evidência Processos que são reconhecidos pelos seus
autores como aqueles através dos quais se formaram. Extrair uma parte relacional destas
narrativas, como tentámos fazer aqui, pode prestar-se a confusões. Apesar de termos
imaginado, desde o primeiro ano e a propósito de cada biografia, a possibilidade de
estabelecermos um mapa relacional, sabemos hoje que o sentido das relações evocadas
deve compreender-se no "dado biográfico" considerado na sua globalidade. Portanto,
temos de recusar o princípio de dados ou de resultados que provêm de uma contagem
de elementos extraídos dos textos biográficos. Sublinhando, nas páginas que se seguem,
a importância do contexto familiar como o lugar que marca todo o processo de
autonomização, e mostrando o papel desempenhado por um professor ou por um outro
interlocutor em momentos-encruzilhada da vida, quisemos indicar que a formação se
modela através de uma socialização inseparável das aquisições escolares ou dos efeitos
da formação contínua.
Falando de registos de compreensão e a propósito dos aspectos relacionais do
percurso educativo, procurámos justificar as diferenciações sugeridas pelo carácter
interpretativo dos textos biográficos. O estudo biográfico, porque apela à reflexão e
resulta de uma tomada de consciência, dá origem a um material de investigação que é já
o resultado de uma análise. A diversidade dos dados deve assim ser recebida como urna
pluralidade de compreensão biográfica. O objectivo teórico da investigação ou a busca de
uma teoria da formação, torna-se então indissociável de um aprofundamento da análise
que cada um pode fazer sobre a sua formação.
3. O universo das relações familiares enquanto contexto de formação.
Embora não haja qualquer obrigação de descrever as relações na narrativa
biográfica, estas ocupam um lugar importante. As pessoas citadas são frequentemente as
que exerceram influência no decurso da existência. Visto que a narrativa

55
Página 56
não é construída como um itinerário relacional, estas pessoas não dão lugar a uma
descrição detalhada. São evocadas na medida em que participam num momento
importante do percurso de vida. Pais, professores, amigos, "mentores", patrões, colegas,
companheiros, amantes, marcam a cronologia da narrativa. Por vezes, apresentam-se
com rostos diferentes, segundo as épocas da vida e os tempos de regulação
característicos do processo de formação. Sem ser redutível a um processo relacional, este
processo de formação tem semelhanças com um processo de socialização. Aquilo em que
cada um se torna é atravessado pela presença de todos aqueles de que se recorda. Na
narrativa biográfica, todos os que são citados fazem parte do processo de formação.
Evidentemente que a família é o lugar principal destas mediações. Os pais são
objecto de memórias muito vivas. Estabelece-se com cada um deles uma relação
particular. Esta vai, por vezes, mostrar-se determinante na orientação escolar ou
profissional. O nosso material biográfico está assim cheio de traços que sublinham a
capacidade formadora das confrontações da vida quotidiana, das contrariedades sofridas,
das revoltas declaradas. Deixar de estudar, contrariamente à opinião dos pais, casar
assumindo a desaprovação dos pais, realizar a formação profissional exigida pelos pais
antes de iniciar a carreira que se escolheu, constituem alguns exemplos de confronto
reveladores de um movimento de emancipação através do qual o adulto dá
progressivamente forma à sua existência.
Afirmar que a relação com os pais é decisiva para o resto da existência, não é
nada original. Todas as correntes psicanalíticas o repetiram. A nossa intenção é diferente.
O que dá especificidade à nossa investigação é querer determinar por que processos os
adultos se formaram, sendo aqui entendida a formação no sentido de uma construção
progressiva que se manifesta numa história de vida. Os factos escritos num relato
biográfica, tais como o falecimento de um dos pais, a mudança de profissão do pai ou a
intimidade do diálogo com a mãe no período da infância ou da adolescência, só adquirem,
portanto, significado à luz da interpretação fornecida sobre o conjunto da vida educativa.
É por isso que não queremos apresentar demasiados exemplos ou extractos de
"biografias educativas". Com efeito, os exemplos citados de experiências relacionais
vividas com um ou outro dos pais, encontram o seu sentido na maneira como é narrada
a história de vida de quem os evoca. Os dados biográficos resultam de uma tomada de
consciência, de uma espécie de maturação relacional que permite voltar à infância ou à
adolescência. Esforçando-se por seleccionar no seu passado educativo o que lhe parece
ter sido formador na sua vida, o sujeito do relato biográfico põe em evidência uma dupla
dinâmica: a do seu percurso de vida e a dos significados que lhe atribui; nunca se limita a
fazer um simples balanço contabilístico de acontecimentos ou de determinados
momentos.
Geralmente, a família de origem é sempre largamente evocada. Certas
dimensões relacionais repetem-se frequentemente, como a do lugar ocupado entre os
irmãos ou a comparação da orientação escolar ou profissional com os irmãos e irmãs. O
facto de se ser filho único, o mais velho ou o mais novo, único rapaz no meio de várias
raparigas ou o contrário, aparece como dado de base da existência, que exige uma
atenção constante para se continuar senhor da própria vida, sem se cair na armadilha de
opções que vão ao encontro de expectativas

56
Página 57
projectadas sobre si por outros membros da família. Para além dos pais e dos irmãos e
irmãs, a família não é muito mencionada. Os avós estão por vezes presentes, assim como
um clã familiar mais amplo, quando a evocação da família passa de um registo
interpessoal ou psicológico, para dimensões que têm mais em conta a inserção social ou
a classe social de origem.
4. Um processo de autonomização face à família
O processo específico que os nossos dados nos permitiram identificar, é aqui o
de uma autonomia progressiva face a esta família de origem. O adulto constrói-se com
base no material relacional familiar que herda. Este molda-o, mas frequentemente ela
afasta-se, por meio de rupturas sucessivas, antes de reconhecer de que maneira continua
seu tributário. Cada relato biográfico conta este mesmo processo de uma maneira
diferente. As histórias de vida nunca são as mesmas. Aliás, o que o adulto diz da sua
história não é idêntico em todos os momentos da sua vida, nem em todos os contextos
nos quais se exprime. No entanto, a autonomização face à família de origem constitui a
trama de um processo que consideramos passível de generalização Evidentemente que
as modalidades desta autonomia, o grau de dependência que ainda permanece e as
transformações relacionais no interior da rede familiar, variam de um sujeito para outro.
Não há qualquer modelo final a atingir. O essencial da formação reside no processo.
Este processo que caracterizamos como um dos componentes do processo de
formação, está em interacção com outros processos que também identificámos,
analisando de diferentes maneiras os nossos dados biográficos (5). Sem entrar em
pormenor nestes outros processos, indiquemos simplesmente que as relações familiares
influenciam de forma importante as opções tomadas no curso escolar ou a construção da
escolha da profissão. Para as mulheres, a autonomia face ao meio familiar interage
fortemente com a maneira como são resolvidos os conflitos de papéis. Como escreve uma
delas: "Creio que sou mãe e profissional. Os valores ancestrais que a minha mãe me
transmitiu, vivem em mim e governam-me; mas o desejo de participação social e a
preocupação com o desenvolvimento pessoal, apoquentam-me. E durante todos estas
anos não tenho feito senão esforçar-me pela coexistência (mais ou menos harmoniosa)
destes valores em mim".
Atribuindo um valor Importante à família, como fazem os autores das biografias
educativas de que dispomos, quisemos demonstrar que a história de vida se constrói num
campo relacional, e que a formação está em grande parte ligada às soluções adoptadas
no decurso da vida, para a resolução de conflitos ou de tensões relacionais que se
prendem com a dificuldade de conduzir a própria vida, encontrando uma distância
adequada daqueles que nos estão mais próximos.
5. A escola e a vida profissional: outro tempo relacional da história de vida
Esta importância dos aspectos relacionais dos relatos biográficos que
acabámos de comentar a propósito da família, encontra-se, com implicações
evidentemente diferentes, no campo escolar. A parte das biografias educativas que trata
da escola, acha-se "polvilhada" de narrativas divertidas, anedotas e detalhes, que

57
Pagina 58
mostram a importância da relação com os que ensinam, no modo de administrar o curso
escolar. Este breve extracto fala por si: "aos dez anos, passei seis meses com uma
professora que pouco me marcou, e depois um ano e meio com um professor de quem
gostei, apesar das numerosas sevícias a que nos submetia. Palmada com uma varinha de
nogueira na mão estendida; pontapés no traseiro; e ainda por trás, murros na cabeça;
atirava-nos com a borracha ou puxava-nos madeixas finas de cabelo quando dávamos
erros nos ditados ou fazia-mos mal outros exercícios. E se mesmo assim eu gostava dele,
é porque, apesar de tudo, ele nos dava amor. Fez renascer em mim o gosto pela escola".
Conclusão incompreensível! E contudo esta brutalidade permite a este jovem aluno
retomar o gosto pela escola. A mediação oferecida por esta relação induz uma mudança
de atitude singular, que só adquire o seu verdadeiro sentido na dinâmica do percurso de
socialização e de escolarização, tal como é apresentado por este estudante.

As relações descritas nas biografias, no tempo da escolaridade, digam elas


respeito aos que ensinam ou aos amigos e colegas, não podem comparar-se às relações
familiares. Em geral, só intervêm pontualmente, e apenas possuem um potencial
formador na medida em que modificam o decurso da escolaridade. Este, não perdoa ao
seu professor de matemática tê-lo tomado de ponta, porque o fracasso que sofreu
modificou o resto da sua vida escolar e profissional. Pelo contrário, aquele mostra-se
satisfeito por um professor ter sabido recebê-lo quando mudou de cidade, e haver
confiado nele, facilitando-lhe o sucesso. De facto, a verdadeira importância da relação no
quadro escolar prende-se com as consequências que tem para o prosseguimento do
curso. Para além disto, as relações entre colegas vividas no tempo da escolaridade,
permanecem na categoria de boas ou más recordações. Não influenciam
verdadeiramente o percurso de vida. Pertencem mais aos "depósitos" da memória do que
ao processo de formação.
Com a vida profissional, esta dimensão relacional do relato biográfico esbate-se
fortemente. Os textos não pormenorizam o contexto social da actividade profissional.
Limitam-se a dar conta da escolha, a explicar mudanças de orientação ou a justificar os
projectos do futuro. Claro que um superior hierárquico difícil ou um clima relacional
conflitual podem levar à procura de um novo emprego, mas um tal factor nunca intervém
sozinho. Para além disso, no campo do ensino ou das carreiras sociais, os profissionais
que se exprimem têm uma grande liberdade de organizar o trabalho como entenderem.
Quando se queixam de coacções organizacionais, só muito raramente atribuem a
responsabilidade directa aos patrões ou ao superior hierárquico.

6. Os registos de compreensão das dimensões relacionas do processo de formação

Os autores dos nossos relatos biográficos exprimem-se enquanto sujeitos


familiares, escolares e profissionais. Nunca mencionam a sua socialização de adolescentes
no seio de grupos de jovens e, na sua maioria, não parecem ter participado em
movimentos sociais ou grupos políticos. A sua presença tardia na Universidade explica em
grande parte este fenómeno. Vários de entre eles

58
Página 59
foram obrigados a procurar emprego bastante cedo ou a lançarem-se na
formação profissional logo a seguir ao fim do período escolar. As razões que justificam os
seus estudos universitários enquanto adultos profissionais, confirmam esta centração
familiar, escolar e profissional do seu percurso educativo. Estão na Universidade porque,
devido à sua origem social e ao orçamento ou mentalidade dos pais, o seu curso escolar
foi bloqueado. Interromperam os estudos por razões que não se prendem com o sucesso
escolar, mas mais frequentemente com o contexto social ou relacional da sua história de
vida. É portanto legítimo reconhecer que a interpretação que fornecem, na sua biografia
educativa, sobre este contexto social ou relacional, vai ser um indicador da influência que
ele exerceu na sua formação. Revelador das categorias de pensamento que definem o seu
processo de conhecimento, o relato biográfico explica tomadas de consciência que estão
frequentemente na origem de mudanças de direcção da sua história de vida.
Inspirando-nos nos registos evidenciados por Christine Josso (6) falaremos de
consciência relacional interpessoal, social ou política. Por outras palavras, os registos de
interpretação das mediações sociais, que aparecem na biografia educativa, serão
considerados factores indicadores da orientação do processo de formação.
Como já sublinhamos, a família é muitas vezes um lugar de confronto. Obriga a
oposições para nos afirmarmos e alcançarmos os nossos fins. Dela emanam modelos de
papéis sociais e a imposição de normas de conduta de que é preciso libertarmo-nos para
melhor conseguirmos tomar a vida nas nossas mãos. Por vezes, os pais impõem uma
direcção escolar ou profissional. "De qualquer maneira, mesmo com 19 anos, não tinha
poder de decisão. Foi portanto decidido entre a directora e os meus pais que a Escola
Normal correspondia às minhas capacidades". Estamos aqui perante um registo de
compreensão interpessoal de um momento de conflito, cujas consequências podem ser
decisivas para o percurso de vida e cuja solução depende certamente do significado que
lhe é dado por quem as vive. Repetimos: não é o acontecimento em si que interessa, mas
sim a importância que o sujeito lhe atribui na regulação do seu percurso de vida.

Por vezes, as situações relacionais evocadas inserem-se num contexto de


significado mais lato, de dimensão social. "Sendo o meu pai industrial, eu era filho do
patrão, aquele que ia suceder-lhe, e portanto, olhado como tal... Sentindo-me viver de
forma diferente do que me era proposto, contestei largamente os meus superiores... Esta
contestação era sobretudo a recusa de um modelo que não me interessava". 0 conflito é
de ordem interpessoal com o pai, mas esclarece outras relações e, sobretudo, está ligado
a um meio social, cuja coacção vai provocar um afastamento necessário. Pelo contrário,
este contexto social a que é frequentemente preciso resistir, pode também rejeitar. "0
tempo da escola foi

(6) JOSSO C. (1984), com FALLET, M., LAUBSCHER, A e FINGER, M., Problématique de la demande de la
formation continue: Exploration II, Genebra, Cahiers de la Section des Sciences de l'Éducation (Série
Recherche N.º 6), 98 páginas.

59
Página 60

perpassado pelas nossas diferenças sócio-culturais. Como esta lógica de aprendizagem


escolar não me dizia respeito, nunca fui solicitado por um professor. Sempre lá ao fundo,
mesmo ao fundo de uma sala... Assim, assimilei segundo o meu ritmo, transformei esse
saber que metabolizava... o ritmo dos programas escolares ultrapassava largamente o
meu". A experiência da diferença social e a tomada de consciência da origem social
modificam os ganhos e as perdas da história de vida. As regulações operadas Intervém
num contexto de significado mais vasto do que o do universo estritamente familiar.
"Decido ingressar no colégio secundário. É o início de um período difícil... Não só o novo
ritmo de trabalho e a maneira de lidar com ele constituíram um travão a toda a evolução
positiva, como o ambiente geral da turma, onde as diferenças sócio-culturais são muito
acentuadas, não era o mais propício. O filho do merceeiro vê-se rapidamente isolado no
meio de futuros médicos, advogados, notários, etc.. Apesar de todas essas dificuldades,
duplico os meus esforços".

Em ocasiões mais raras, certas experiências relacionais, sobretudo quando se


trata da profissão situam-se, para além de um contexto social, num registo mais político.
Tal orientação pode ser consequência de uma tomada de consciência e esta pode ser
provocada por uma escolha ou por uma ruptura. "Creio que tive vontade de o deixar (o
trabalho de enfermeira no hospital) quando comecei a distanciar-me da medicina de
ponta (centrada sobretudo no progresso técnico) e a tomar consciência de determinados
problemas, vividos intensamente no hospital: relações hierarquizadas a todos os níveis,
relações de desigualdade entre homem e mulher, relações de domínio médico e desprezo
pelo saber da enfermeira. Lembro-me de estar cansada de lutar, de perder a coragem, de
por vezes me mostrar rabugenta (imagem de velha enfermeira azeda, que horror!). Deixei
o hospital antes que fosse tarde demais".

À GUISA DE CONCLUSA0

As relações mencionadas nos relatos de biografias educativas são as que


ajudam o adulto a moldar a sua vida. A formação é feita da presença de outrem, daqueles
de que foi preciso distanciarmo-nos, dos que acompanham os momentos-charneira, dos
que ajudam a descobrir o que é importante aprendermos para nos tornarmos
competentes e darmos sentido ao nosso trabalho.

A formação assemelha-se a um processo de socialização, no decurso do qual


os contextos familiares, escolares e profissionais constituem lugares de regulação de
processos específicos que se enredam uns nos outros, dando uma forma original a cada
história de vida. Na família de origem, na escola, no seio dos grupos profissionais, as
relações marcantes, que ficam na memória, são dominadas por uma bipolaridade de
rejeição e de adesão. A formação passa pelas contrariedades que foi preciso ultrapassar,
pelas aberturas oferecidas. 0 professor é evocado como responsável, tanto por um
fracasso como por um sucesso. A formação aparece sempre como uma construção subtil,
uma maneira de nos introduzirmos em redes relacionais complexas, cuja dinâmica nunca
é verdadeiramente redutível às categorias usuais das ciências humanas, quer se trate, por
exemplo, da origem social, quer da identificação parental.

60
Página 61

O relato de vida visto sob o ângulo educativo ou o relato de vida elaborado


num contexto educativo, como o da formação contínua, abre pistas de reflexão e permite
avançar hipóteses. Aqui não se trata de contar, verificar ou provar. As nossas tentativas
de estabelecer protocolos, categorias representativas e dados significativos, levaram-nos
apenas a uma melhor apropriação, por impregnação, dos conteúdos biográficos. Por
outro lado, esta análise dos textos biográficos alimentou durante estes últimos anos a
nossa reflexão sobre a formação. Enriqueceu imensamente a nossa procura de uma teoria
da formação. A determinação de mini-processos que compõem o processo de formação,
esclarece-nos sobre as regulações que a acção educativa pode provocar ou influenciar.
Contrariamente ao que pensa a maior parte dos pedagogos, os programas ditos de
formação não estão na origem do que os adultos aprendem. Os conhecimentos
adquiridos pelos adultos resultam de uma rede de fontes de informação. O saber de
referência está sobretudo relacionado com a maneira como os adultos voltam a trabalhar
ou modificam o que os agentes da sua educação quiseram ensinar-lhes.

A formação depende do que cada um faz do que os outros quiseram, ou não


quiseram, fazer dele. Numa palavra, a formação corresponde a um processo global de
autonomização, no decurso do qual a forma que damos à nossa vida se assemelha - se é
preciso utilizar um conceito - ao que alguns chamam a identidade.

61
62
V

A AUTOFORMAÇÃONO DECURSO DA VIDA: ENTRE A HETERO E A


ECOFORMAÇÃO

GASTON PINEAU

(Universidade de tours)

63
64
Página 65
Entre a acção dos outros (heteroformação) e a do meio ambiente (ecoformação
parece existir, ligada a estas últimas e dependente delas, mas à sua maneira, uma terceira
força de formação, a do eu (autoformação). Uma terceira força que torna o decurso da
vida mais complexo e que cria um campo dialéctico de tensões, pelo menos
tridimensional, rebelde a toda a simplificação unidimensional. A limitação da reflexão
educativa à acção das gerações adultas sobre as gerações jovens, as concepções fixistas
e mesmo involutivas da vida, tornaram-nos em grande parte "analfabetos" em relação a
metade desta vida e incapazes de compreender, e de dominar, o seu decurso cheio de
contradições.

Uma revolução formativa escondida

Com efeito, parece que, como disse Dumazedier (1980), estamos perante um
facto social novo que no entanto temos de qualificar de forma mais exacta neste
momento. Mais que em função de uma matéria, de um meio ou de um modo particular
de aprendizagem, abordámos a autoformação numa perspectiva de autonomização
educativa, segundo uma problemática de poder, definindo-a formalmente como a
apropriação por cada um do seu próprio poder de formação (G. Pineau, Marie-Michèle,
1983). Nesta problemática, concordamos com Dumazedier quando este a vê como um
"reforço do desejo e da vontade dos sujeitos de regular, orientar e gerir cada vez mais
eles próprios o seu processo educativo (1980, p.6). "A autoformação colectiva ou
individual de uma pessoa supõe uma auto-libertação dos determinismos cegos, fonte de
estereótipos, de ideias feitas e de preconceitos, produzidos pela estrutura social" (p.16)...
"Em relação às normas sociais dominantes no exterior ou no interior de um grupo, a
autoformação implica um duplo desvio social" (p.17). No que respeita aos determinismos
estruturais e aos conformismos culturais este duplo desvio deixa entrever a autoformação
como "um aspecto de uma revolução escondida, a que chamámos a revolução cultural
dos tempos livres" (p. 19). E certo que, nos países industrializados, a inversão da relação
quantitativa, tempo de trabalho-tempos livres, é histórica (Dumazedier, 1982) e
influencia as possibilidades de formação. Foi esta mesma constatação dos valores.
educativos próprios aos tempos menos condicionados

65
Página 66
socialmente que nos conduziu a estudar a hipótese de que, no dia-a-dia e de forma muito
concreta, a noite é o tempo forte da autoformação, por ser o tempo morto da
heteroformação (G. Pineau, 1983, p. 15 a p. 33). Mas a autoformação é para demasiadas
pessoas - em especial para os indivíduos socialmente dominados - uma luta árdua de
sobrevivência em todos os instantes e lugares, que não pode ser ligada unilateralmente a
tempos livres que não são automaticamente tempos educativos. Pelo seu impulso
fundamentalmente pulsional - R. Kaes analisa-a como um fantasma radical a que chama
"mito do fénix" (R. Kaes, 1973, p. 67) - a autoformação ultrapassa os quadros sociais de
vida. Ela parece ser a expressão de um processo de antropogénese que extravasa as
estratificações sociais e educativas tradicionais. Compreender e trabalhar este processo
obriga-nos a apoiar a reflexão sobre a autoformação nos elementos das teorias das
formas e nas ciências emergentes da autonomização.
A escalada da formação como função morfogenética
A entrada da formação na reflexão educativa é tardia e fez-se pela porta de
serviço da formação profissional, forma "inferior" da educação. Mas adquire rapidamente
um lugar central, como o analisa René Barbier na sua nota de leitura: "Formar-se, uma
interrogação permanente" (R. Barbier, 1984, p. 101 a p. 106). Com efeito, para um certo
número de teóricos sensíveis às suas variações e às diferentes teorias das formas que se
desenvolveram e que ainda se desenvolvem, ela veicula todo uma renovação da reflexão
educativa. "Podemos considerar que a substituição progressiva das palavras ensino
instrução e educação por formação - já realizada no que diz respeito aos adultos - marca
uma revolução profunda no modo como pensamos a pedagogia" (P. Goguelin, 1970, p.
17). Trata-se de uma revolução tão profunda que tem dificuldade em encontrar a sua
linguagem, pois tem a ver com a concepção de uma ontogénese permanente, que é então
morfogénese: "O ser vivo não resolve os seus problemas adaptando-se, ou seja,
modificando a sua relação com o meio mas sim modificando-se a si próprio, inventando
estruturas interiores novas introduzindo-se completamente na axiomática dos problemas
vitais" (G. Simondon, 1964, p. 9). A formação torna-se então função da evolução humana
(B. Honoré, 1977, p. 57). Mas função de síntese, de regulação, de organização dos
elementos múltiplos e heterogéneos (físicos, fisiológicos, psíquicos, sociais ... ) que
constituem o ser vivo, numa unidade viva. Função sempre, em acção, pois a unidade viva
nunca é evidente. É sempre atravessada e questionada por dois tipos de pluralidades:
uma pluralidade sincrónica de trocas incessantes dos seus múltiplos componentes
internos e externos e uma pluralidade diacrónica dos diferentes momentos, das
diferentes fases da transformação do ser. "Há uma pluralidade no ser que não é a
pluralidade das partes (a pluralidade das partes estaria abaixo da unidade do ser), mas
uma pluralidade que fica acima desta unidade, porque é a das fases do ser, na relação de
uma fase de ser com outra fase de ser" (Simondon, 1964, p. 268). Portanto, mais do que
num estado estável, esta unidade deve procurar-se num processo unificador meta-
estável, que seria o exercício permanente da função formação, a procura permanente da
boa forma. "Portanto, a boa forma já não é a forma simples, a forma geométrica cheia,
mas a forma significativa, ou seja,

66
Página 67
a que estabelece uma ordem transductiva no interior de um sistema de realidades, que
contêm potencialidades.. É a estrutura de contabilidade e de viabilidade, é a
dimensionalidade inventada, segundo a qual existe compatibilidade sem degradação...
assim, a forma aparece-nos como a comunicação activa, a ressonância interna que opera
a individuação" (Simondon, 1964, p. 22).
Esta forma aparece com o indivíduo e, nesta fase, é antes de mais o produto do
encontro de elementos de dois outros indivíduos, num meio ambiente viável. É portanto
o resultado conjunto da hetero e da ecoformação. Mas, a partir deste aparecimento entra
em jogo um terceiro termo, o próprio indivíduo formado. "O ser vivo não é só o resultado,
o produto de indivíduos, mas também palco de Individuação; possui um regime mais
completo (do que o dos seres físicos): a Individuação não se faz só nos limites, mas
também no centro, por ressonância interna" (Simondon, 1964, p. 22). Por mais frágil e
dependente dos outros e do meio ambiente físico que seja este terceiro termo, ele
constitui no entanto o ponto de partida, o suporte permanente e cada vez mais activo das
fases ulteriores de desenvolvimento: nasceu uma força de autoformação.
O Ciclo vital de autoformação
O nascimento desta força de autoformação foi, e é ainda, contestada por
muitos, em função da sua própria falta de acabamento e das concepções fixistas ou
evolutivas do decurso da vida. É por isso que o estudo do seu desenvolvimento está tão
pouco avançado. Entre a negação desta força pelos defensores dos determinismos
externos e a sua afirmação consistente pelos partidários do determinismo interno,
constituído de maneira quase mágica, as investigações sobre a autonomização dentro e
através das dependências, abrem uma terceira via. Neste movimento, esta força
fortalecer-se-ia utilizando as forças das quais depende, primeiro em reacção-reflexo,
depois em reflexão-acção.
Saltaremos as primeiras fases - os primeiros estádios da infância e da
adolescência - sobre as quais se debruçaram longamente os psicanalistas e os psicólogos
do desenvolvimento e, mais recentemente, do auto-desenvolvimento (ver o número
especial de 1985 da Revue québécoise de psychologie sobre este tema), para forçar, de
imediato uma característica que nos parece essencial nas fases adultas, avançada pelo
prefixo "auto", que é um prefixo reflexo: é a dinâmica reflexiva da autoformação que
permite operar um ciclo vital. A autoformação nas suas fases últimas corresponde a uma
dupla apropriação do poder de formação; é tomar em mãos este poder - tornar-se sujeito
-, mas é também aplicá-lo a si mesmo: tornar-se objecto de formação para si mesmo. Esta
dupla operação desdobra o indivíduo num sujeito e num objecto de um tipo muito
particular, que podemos denominar de auto-referencial. Este desdobramento alarga,
clarifica e aumenta as capacidades de autonomização do interstício, do intervalo, da
interface entre a hetero e a ecoformação que é, ao princípio, o indivíduo. Cria-se um meio,
um espaço próprio, que oferece ao sujeito uma distância mínima que lhe permite tomar-
se e ver-se como objecto específico entre os outros objectos, diferenciar-se deles,
reflectir-se, emancipar-se e autonomizar-se: numa palavra, autoformar-se. Nasceu o
sistema-pessoa (G. Lerbert, 1981, 1984).

67
Página 68
Este desdobramento tem os seus riscos, especialmente de endurecimento, como
o analisa Yves Barel (1984); o duplo criado autonomiza-se por si próprio, toma-se por
outro, negando os outros e ele próprio como origem deste desdobramento (o mito do
fénix). Mas enquanto houver interacção, reflexão, correcção entre os dois elementos,
parece tratar-se de um processo inflexível de autonomização. "A autonomia consiste
antes de mais em que o indivíduo ou o grupo se torne para si mesmo o seu próprio fim, a
sua própria transcendência, o que é verdadeiramente a auto-referência e desencadeia
novas formas de desdobramento" (Y. Barel, 1984, p. 235). O desdobramento (leve) é a
colocação de uma forma simples de recursividade, definida pela alternância de uma fase
de desdobramento do eu e de uma fase de rebatimento sobre o eu do que foi desdobrado
ou desenrolado; ou ainda por um deslocamento do eu para o não-eu, com retomo
corrente sobre o eu. Ainda que faça parte da regra do jogo não o admitir, o
desdobramento (leve) reconhece-se como auto-referencial" (Y. Barel, p. 230 a p. 231).
Nas suas fases últimas, nas quais se desdobra a sua especificidade face à
explosão e à flutuação das referências externas, a autoformação pode portanto aparecer
como uma estratégia auto-referencial obrigada a autonomizar-se e influenciada pelos
riscos e paradoxos do desdobramento. Que realidade devemos atribuir a esta estratégia
e aos seus produtos "turvos"? A resposta depende em grande parte das posições
adoptadas face ao decurso da vida.
Tomar dialécticas as concepções do decurso da vida
Se o estudo e, portanto, o conhecimento da autoformação estão tão pouco
desenvolvidos, isso deve-se à centração quase exclusiva do paradigma pedagógico-
positivista sobre a heteroformação. Esta centração é frequentemente acompanhada de
uma concepção estática do decurso da vida, segundo a qual as mudanças mais
importantes têm lugar na infância e na adolescência, não fazendo a vida adulta mais do
que estabilizar estas mudanças, sem contribuir com outras igualmente decisivas. Esta
concepção alimenta, e é alimentada, sobretudo pelas teorias psicanalíticas e pelas teorias
clássicas da aprendizagem, que acentuam - quase exclusivamente - as aquisições
realizadas durante o período de crescimento biológico. Tentando caricaturar, podemos
dizer que estas teorias procuram recuar o mais longe possível nos anos iniciais, para aí
encontrarem o momento crucial que predetermina e estigmatiza de maneira irremediável
o resto do decurso da vida. Toda a impressão de mudança ulterior profunda é auto-ilusão.
E a autoformação, não passa de uma ideologia mais ou menos neurótica para ocultar e
recalcar a autoformação inicial e a auto-decomposição final. Esta concepção estática
ainda domina largamente a visão do decurso da vida, sobretudo na Europa. As raras
investigações e ensaios sobre as fases adultas, ou são ignoradas, ou são consideradas com
condescendência obras de autores ingénuos, sem consciência do peso inconsciente do
passado.
O desenvolvimento da terceira idade e dos seus problemas faz com que seja a
partir dos estudos sobre a outra extremidade do decurso da vida que se desenvolve o
primeiro modelo das teorias evolutivas, segundo Danielle Riverin-Simard. Ela denomina-
o "modelo de decrescimento" ou "médico" Baseia-se diretamente

68
Página 69
na determinação biológica da performance" (1984, p. 125). De facto, é mais um modelo
involutivo que estuda a deterioração biológica progressiva do decrescimento. O segundo
modelo - chamado de "compensação" - "postula que a intervenção do meio pode
compensar os défices programados pela maturação biológica" (D. Riverin-Simard, 1984,
p. 125). E foi também popularizado pelo desenvolvimento da gerontologia.
Segundo as teorias clássicas da psicanálise e da aprendizagem , e segundo os
modelos de decrescimento e de compensação, a meia-idade (ou idade adulta), que se
situa entre o crescimento e o decrescimento biológico, e que apesar de tudo representa
mais ou menos o meio dessa vida - cinquenta anos -, seria um planalto raso, sem
mudanças de maior, ao passo que, na linguagem corrente, é precisamente na vida activa,
na vida produtiva, que as possibilidades de realizar e de se realizar são maiores. A coroar
esta distorção, desenvolve-se uma terceira série de modelos, chamados sequenciais, para
os quais o desenvolvimento não é nem isomorfo nem ontogenético, mas sim polimorfo e
interaccional. Os desenvolvimentos são produtos das interacções entre as pessoas, o
meio ambiente e a relação entre os dois, e fazem-se por sequências, etapas ou ciclos. É
nesta série que D. Riverin-Simard situa o seu modelo de desenvolvimento profissional,
que denomina espacial devido à importância das passagens a operar segundo as suas
etapas, na sua opinião análogas às passagens de um planeta a outro e provocando os
mesmos fenómenos de oscilação, gravidade e habituação. É este modelo que vamos
expor mais longamente para mostrar que a vida adulta não é tão linear como a vêem os
especialistas do crescimento e do decrescimento biológico e que exige para ser percorrida
ao seu ritmo e nos seus tempos, uma grande forma e mesmo uma preparação
permanente.
A autoformação e o decurso da vida no trabalho, segundo a abordagem dos ciclos de
vida
O modelo de D. Riverin-Simard (1984) foi construído a partir de um estudo crítico
quase exaustivo dos modelos já existentes e apoia-se num inquérito longitudinal e
transversal realizado no Québec nos anos 80-81; por meio de entrevistas semi-
estruturadas, interrogaram-se 786 adultos empregados, escalonados segundo a idade
(entre os vinte e três e os sessenta anos), o sexo, o estatuto socio-económico (forte,
médio, fraco) e o sector de trabalho (privado, público, para-público). É portanto um
modelo construído segundo as regras, que apoia as suas hipóteses e as suas estruturas
em dados precisos. Estes dados não foram ainda todos tratados e a riqueza do tratamento
já efectuado obriga-nos a apresentar apenas uma parte: a que está ligada à formação. No
entanto, para os situar, é importante termos uma ideia da dinâmica e da estrutura do
modelo.
Uma das principais conclusões da investigação, que emana da construção e da
denominação do modelo, é que o adulto vive "estados quase permanentes de
interrogação" (p. 20) e que "globalmente, os momentos de novas interrogações têm uma
preponderância marcada nos adultos de todas as idades; são superiores em intensidade
e em duração aos momentos de reorganização. Isto leva a pensar que o adulto no
trabalho vive sempre um pouco mais num estado de

69
Página 70
desequilíbrio do que de estabilidade. Portanto os períodos de interrogação não são
momentos excepcionais da vida adulta; pelo contrário situam-se constantemente no
próprio coração do quotidiano da vida no trabalho"(p. 148). Esta constatação de uma
interrogação quase permanente faz vacilar os modelos clássicos da vida profissional que
em grande parte, são ainda estáticos, ou devido à adopção de um modelo linear da
carreira (escolha,formação ,realização, reforma), ou porque se encontram muito ligados
à curva biológica: "Estabelecimento, manutenção e declínio (Suger); autodeterminação,
balanço e repouso (Buhler); tornar-se produtivo, manter a sociedade produtiva e
contemplar a vida produtiva (Havighurst); experiência, estabilização e recuo (Miller e
Form)" (p. 130). Então, se neste "planalto raso" da vida adulta, a mudança é uma
constante e não uma perturbação num estado estável, é na verdade preciso que
tornemos dialécticos os nosso modos de compreensão. D. Riverrin-Simard dedica-se a
essa tarefa, propondo um modelo de sequências múltiplas, que articula três grandes
períodos e nove etapas, que alternam, segundo um ciclo inter-etapas de interrogação,
quer sobre as finalidades, quer sobre as modalidades da vida profissional, e segundo um
ciclo intra-etapas de interrogação e de estabilização.
Primeiro, ela relativiza muito frontalmente a idade tomada como referência
cronológica e não como variável causal. É uma variável-indício de um certo número de
elementos-acontecimentos, que marca profundamente o andamento do tempo numa
dada sociedade. É evidente que estes indícios se aproximam mais da sociedade do
Québec dos anos 80 e de outras sociedades semelhantes, do que, por exemplo, das
sociedades antigas romana ou grega, ou mesmo etíope actual, onde a esperança média
de vida se situa à roda dos trinta e cinco anos. Feita esta chamada de atenção, ela
distingue primeiro três grandes períodos na vida profissional: um período de aterragem e
de exploração, durante o qual se efectua passo a passo uma primeira volta da pista (é
preciso subir os degraus da escada), que vai dos vinte aos trinta e cinco anos. Segue-se
um segundo período (trinta e cinco - cinquenta anos) durante o qual dominam os
processos reflexivos que levam à aquisição de uma certa distância: são tiradas as lições
do primeiro período e tenta encontrar-se uma pista pessoal. Por fim, depois dos
cinquenta anos, começam as manobras de transferência para uma saída prometedora.
Em cada um destes períodos, distingue etapas de cerca de cinco anos, cada uma
caracterizada por uma interrogação específica, mas onde pode notar-se uma alternância,
entre etapas mais centradas em problemas de objectivos e de finalidade profissional e
outras que se debruçam sobre o modo de os realizar. Por exemplo, os trinta anos são
marcados pela procura de um caminho profissional promissor; os quarenta e cinco anos,
pela busca de um fio condutor da história de cada um; os cinquenta anos começam a
interrogar-se quanto a uma saída válida; e os sessenta e cinco anos dão lugar a toda uma
série de questões fundamentais, "graves", sobre o sentido da vida profissional e o sentido
a dar aos anos restantes. As respostas a estas grandes interrogações comuns que a autora
pormenoriza com muita precisão, variam forçosamente de pessoa para pessoa e de grupo
para grupo. Está em vias de se fazer o tratamento diferenciado segundo o sexo, estatuto
sócio-profissional e sector de trabalho. A obra apenas apresenta os padrões
comportamentais mais globais, válidos para o conjunto da amostra. Entre estes,
destacam-se um padrão médio e um outro respeitante ao que a autora

70
Página 71
chama os sujeitos-excepção, e que representam cerca de 15% \da população Escolhemos
a relação com a formação no decurso destas etapas de vida no trabalho destas duas
categorias de pessoas para esclarecer o nosso ensaio de abordagem da autoformação no
decurso da vida.
Fundamentalmente, o que se evidencia nos dados de D. Riverin-Simard, é que a
maior bifurcação entre as duas categorias de pessoas, no que respeita à sua relação com
a formação, intervém desde o inicio do segundo período de vida no trabalho, por volta
dos quarenta anos. Tanto para uma como para outra, nesta idade opera-se uma clara
distanciação das formas organizadas de educação: "Os diversos modos organizados de
educação dos adultos por meio das actividades institucionalizadas, associativas ou
culturais, assim como a formação realizada no meio do trabalho, parecem claramente
ausentes da realidade quotidiana do adulto de trinta e oito a quarenta e dois anos" (p 65).
Mas enquanto que para a maioria dos sujeitos esta distanciação não é compensada por
outras actividades, para os sujeitos-excepção (15%), que a autora denomina nesta etapa
os "exploradores-excepção", ela é acompanhada pela descoberta do meio-chave da
autoformação. "Para os exploradores-excepção, o meio quase único de aprender perece
ser definitivamente o da inscrição numa perspectiva de educação permanente. Este meio-
chave consiste numa autoformação, acidental ou planificada, realizada aquando da
execução das tarefas ocupacionais" (p 65).
Esta grande bifurcação foi preparada no período precedente, por um tempo de
reacção diferente na mesma situação de partida criada pela entrada no mercado de
trabalho. Esta situação de partida caracteriza-se por duas importantes descobertas
relacionadas com a formação. A primeira é a da existência de um afastamento gigantesco
entre as aprendizagens escolares e as solicitadas na prática profissional. A segunda tem a
ver com a importância, o valor e as desvantagens da formação pelo trabalho. Mas,
perante tais descobertas, a maioria das pessoas nega todo e qualquer valor à educação
formal, ao passo que os pilotos-excepção descobrem e utilizam rapidamente os cursos de
adultos para digerirem o afastamento. Esta descoberta é feita pelos outros na etapa
seguinte, quando partem à procura de um "emprego" melhor. Mas então os
pesquisadores-excepção já começam a apropriar-se do seu poder de formação, tentando
ligar ao máximo a formação recebida com as suas aspirações e sendo atraídos pelas
fórmulas de aprendizagem individualizada e autodidacta. Na etapa dos trinta anos,
quando a competição profissional se aviva, os lugares de formação organizada são
considerados por estes corredores-excepção como locais privilegiados para descobrirem
bons treinadores, mais do que como um trunfo importante ou uma bóia de salvação.
Depois da bifurcação dos quarenta anos, marcada para os sujeitos-excepção pela
descoberta e regulação da autoformação, a diferença entre as duas categorias de pessoas
no que respeita à relação com a formação, acentua-se ainda mais. Quando a maioria das
pessoas procura o fio condutor da sua história, já não estabelece qualquer vinculo entre
a formação e elas. Depois, quando surge o problema de uma modificação de trajectória
por volta dos cinquenta anos, estas pessoas duvidam da sua capacidade de aprender,
lamentam as oportunidades perdidas, desvalorizam a educação formal e sobrevalorizam
a sua formação resultante

71
Página 72

da experiência. E o terceiro grande período de vida, que tem a ver com as grandes
manobras de transferência fora do campo profissional, começa por uma angústia real
sobre as possibilidades de formação e atitudes defensivas de rejeição. Por volta dos
sessenta anos, quando a questão é saber se devemos canalizar as energias para
continuarmos o mais tempo possível presos ao "planeta-trabalho" ou, pelo contrário,
afastarmo-nos o mais rapidamente que formos capazes, parece renascer um desejo de
aprender, mas vivido sobretudo no condicional. Por fim, a "gravidade" da reforma vê-os
demitirem-se.
Graças à apropriação do seu poder de formação, os sujeitos-excepção (15% da
amostra, lembremo-lo) vivem estas etapas de maneira muito diferente. Na procura do
seu fio condutor (quarenta e dois-quarenta e sete anos), a formação contínua parece-lhes
uma garantia e uma segurança para o encontrar, para o tecer e para o continuar. Estes
navegadores-excepção ainda se sentem mais estimulados quando se voltam a pôr em
causa, aos cinquenta anos. "o facto de se verem nos confins de juventude e da sabedoria,
estimula a sua necessidade de aprender" (p. 84). Por altura da sua entrada no último
período, definem-se como autodidactas permanentes. Quanto mais se aproxima a
velhice, mais vêem a formação como antídoto, a forma preventiva. Mas também uma
forma produtiva. "Alguns dentre eles têm projectos de estudos bem definidos, com vista
a uma nova carreira... Visto que durante a sua reforma querem escrever sobre a
genealogia, é preciso ensinar-lhes a fazerem investigações" (p. 107). Por volta dos setenta
anos, definem-se como "gulosos intelectuais", que se deleitam com leituras, exposições,
visitas, viagens, conferências como "auditores livres".. A retirada da vida de trabalho não
é uma retirada da vida activa, mas pelo contrário um aprofundamento desta: a vida
profissional é situada e analisada no conjunto da vida de cada um, mas também no das
gerações precedentes e seguintes. "Este adulto está igualmente embrenhado num
movimento de reflexão: por vezes parece apressado em embalar-se para poder reflectir
ou fazer malabarices. As reflexões têm por objecta.. a vida, a morte, o sucesso, a
velhice..." (p. 118).
Quando alcançam os limites da natureza, são obrigados a confrontar-se, se não
o fizeram já, com os grandes problemas vitais que a ecologia começa a equacionar,
retirando-os do céu abstracto da metafísica. "Quer o saibam, quer não quer o queiram
explicitamente quer não as correntes ecológicas levam praticamente a cabo através do
concreto das suas reivindicações, um trabalho de reabilitação do sagrado, nas sociedades
onde o esforço de modernização... contribuiu para a diluição dos valores culturais fora
dos quais as comunidades deixam de ter alma. Mas, expliquemo-nos bem... aqui o que é
sagrado é o que nos resiste, o que escapa ao poder construtor-destrutor-reconstrutor da
inteligência prática, a do homo-faber. Assim definido, o sagrado é portento, ao mesmo
tempo que o reconhecimento e a aceitação de tais limites, o que se situa para nós a
montante e a jusante da nossa capacidade de agirmos com eficácia" (J. Ardoino, 1984, p.
7).
Vivido mais ou menos activa e dramaticamente, o processo de autoformação da
velhice tem directamente a ver com os limites naturais, "com o que se situa a montante
e a jusante da nossa capacidade de agirmos com eficácia." O torno da hetero e da
ecoformação aperta-se ainda mais, pondo a descoberto, num dado

72
Página 73
momento, a autoformação última fase meta-estável da evolução, que cada um vive à sua
maneira. Este estudo da vida no trabalho não aborda as relações entre a auto e a
ecoformação que felizmente não se reduzem a estas confrontações últimas e dramáticas.
Não é o seu objecto, assim como ainda não foi o objecto de muitas investigações
"educativas". Quanto à ecoformação ou formação através dos espaços, assinalamos como
referência mais importante o livro de Pierre Furter, já citado, "Les espaces de la
formation-Essai de microcomparaison et de microplanification (Lausanne, Presses
Polythechniques Romandes, 1983), e a obra mais antiga de Romuald Zaniewski, Les
theories des millieux et la pédagogie mésologique (Tournai, Casterman, 1952). Mas as
relações entre auto e ecoformação que são relações simultaneamente subtis e
compactas, dependentes tanto do micro como do macrocosmo, manifestam-se apenas
na fronteira da consciência educativa, "normal" (D. Aliard, 1977). Para as tornar
conscientes e as conhecer é preciso recorrer a novas abordagens do decurso da vida, que
dão aos corredores a possibilidade de se exprimirem. A abordagem das histórias de vida
é uma delas.

A autoformação e o decurso da vida em casa, segundo a abordagem das


histórias de vida

O aparecimento e o desenvolvimento das histórias de vida, entre a investigação


e a formação, foram objecto do número duplo da Éducation permanente de Março de
1984. Mais do que vê-las como uma técnica nova da heteroformação, foi sublinhada a sua
conivência com a autoformação (G. Jobert, 1984, p.8). Permitindo aos sujeitos reunirem
e ordenarem os seus diferentes momentos de vida espalhados e dispersos no decurso dos
anos, a história de vida fá-los construir um tempo próprio que lhes dá uma consistência
temporal específica. A construção e a regulação desta historicidade pessoal são talvez as
características mais importantes da autoformação, as que a fundamentam
dialecticamente, activando, e talvez mesmo criando o processo unificador da dupla
pluralidade exposta mais acima. Daí a grande importância da história de vida para a
construção e o conhecimento da autoformação.
Da longa investigação levada a cabo com Marie-Michèle (G. Pineau, Marie
Michèle, 1983), apresentaremos aqui rapidamente apenas o que diz respeito às relações
entre a auto e a ecoformação. A centralidade destas relações sobressai da forma como
Marie-Michèle estruturou a sua narrativa e da tipologia espacial que permitiu analisar
detalhadamente a construção da sua autoformação.
Espontaneamente, Marie-Michèle ordenou a escrita da sua vida segundo os
diferentes locais de habitação. Esta periodização espacial espontânea manifesta a
importância e a riqueza dos lugares de vida na trajectória de qualquer um. "A terra, mãe,
refúgio ama de leite em toda a sua feminilidade, é o que, em último recurso dá
consistência às diferentes situações individuais a sociais" (Maffesoli, 1979, p. 61). Estas
diferentes mudanças de casa, esta mobilidade residencial relativamente elevada até aos
vinte e seis anos (nunca mais de três anos em média no mesmo sítio), servem portanto
de pontos de referência principais, que permitem a Marie-Michèle situar e desenvolver
os diferentes acontecimentos

73
Página 74

da sua vida e a forma como os assume. Mas estas mudanças de casa são provocadas por
factores externos: doença da mãe, má vizinhança, acidente e novo emprego do pai, local
de trabalho do marido, morte do proprietário... Portanto, Marie-Michèle não controla
essa dimensão tão importante que é a determinação do local de vida. Nisto, herda a
situação tradicional da dependência espacial da mulher: primeiro, da filha, depois, da mãe
no lar. Esta falta de controle espacial concretiza, reforçando-a, a dependência social e
particularmente masculina que pesa na autoformação das mulheres, e ainda mais em
casa. A autoformação feminina embate de frente, e em primeiro lugar, com um poder
masculino omnipresente que, não só satura os modelos sócio-culturais e sócio-
profissionais ao ponto de se tornar invisível, como também estrutura os espaços vividos,
sem chegar forçosamente à casa... fechada. Mais do que qualquer outra, a autoformação
feminina encontra-se apertada entre estas duas forças -natural e cultural -, que
frequentemente se conjugam para a conformar, a modelar e a utilizar segundo as suas
normas e interesses. Mais do qualquer outra, portanto a autoformação feminina é luta
de emancipação para a apropriação do poder de formação e para a construção de um
mundo próprio, de espaços pessoais; não a partir do nada, mas sim do estabelecimento
de relações activas de organização dos elementos que a rodeiam. É a emergência e o
desenvolvimento polémico e progressivo destas diferentes transacções com os
elementos dos seus diferentes espaços constituintes, que tenta acentuar a análise do
processo de autoformação de Marie-Michèle.
O corte tomado como partida-fundamento do regime de autoformação de
Marie-Michèle foi o corte espacial e social operado pelo seu casamento aos vinte anos.
Optando por se unir ao outro mais atraente, e por partir com ele, rompe espacialmente
com o meio ambiente familiar de origem. Funda o seu próprio lar; um lugar dela... mas
não exclusiva nem automaticamente, pois também pertence ao seu cônjuge, e ambos
têm como herança um modelo social dos papéis do casal. Portanto, ela terá de lutar
quotidianamente para não se deixar reduzir ao papel de rainha-mãe do lar. Sobretudo
porque cinco crianças vão povoar este lar, que terá de construir o seu lugar específico
entre as famílias de origem, de adopção e da vizinhança. Este lar não é portanto um
espaço virgem que vai ocupar-se, mas um espaço potencial carregado, que tem de
actualizar-se. É a partir desta base que Marie-Michèle vai tentar dar a vida, não só sem
perder a sua, como também produzindo-a. Que quer isto dizer concretamente?
Para o saber, adoptámos, a exemplo de A. Moles (1975), J. Nuttin (1965) e G.
Lerbet (1984), uma concepção relacional e ecológica da pessoa, vendo-a como um
suporte de relações em diferentes espaços. Estes espaços, estas "conchas humanas",
encaixam-se uns nos outros, desde o mais próximo, o espaço corporal, ao mais afastado
(aparentemente), o espaço metafísico, passando pelo espaço habitat, pelo espaço dos
próximos (família, amigos), pelo espaço vizinhança, pelo espaço social e pelo espaço
físico-cósmico (G. Pineau, Marie-Michèle, 1983, p. 241). A autoformação da pessoa é
entendida como a construção de um sistema de relações pessoais com estes diferentes
espaços e cria um meio pessoal

74
Página 75
(G. Lerbet), uma cosmogonia singular (M. Finger, 1984), uma estrutura particular eu-
mundo (J. Nuttin, 1965) ou uma unidade funcional indivíduo-meio ambiente (J. Nuttin,
1980). Assim, todas as transacções de Marie-Michèle com estes diferentes espaços foram
analisadas como índices possíveis de autoformação.
As transacções são práticas carregadas de sentido, pois condensam num
momento preciso, conjuntos de elementos externos e internos, passados e futuros,
conscientes e inconscientes. São portanto, quase sempre transversais, transductivas,
unindo elementos de conjunto ou de temporalidades diferentes. Um exemplo dos mais
expressivos de uma transacção transversal, cujo sentido real é invisível para um
observador exterior, é o aperto de mão de Maríe-Michèle a um primo que a agredira
sexualmente cerca de vinte e cinco anos antes. Através deste aperto de mão, Marie-
Michèle estabelece uma relação, a sua relação com um acontecimento que marcara
profundamente as suas relações com o seu corpo e com os outros. Ela integra-o à sua
maneira. Autoforma-se, transformando uma relação heterónoma numa relação
autónoma. Um exemplo de transacção transductiva, no sentido em que implica conjuntos
diferentes a partir de uma prática precisa, cujos efeitos se propagam pouco a pouco, pode
ser o de uma petição de Marie-Michèle para ordenar a circulação no seu bairro de
subúrbio, nas suas imediações. O bairro é o espaço onde se cristalizam, misturando-se
muito concretamente, relações pessoais, relações materiais e relações sociais. O seu
ordenamento e controlo são uma mediação elementar, mas fundamental, para a
articulação entre o indivíduo e a sociedade. Ou o indivíduo o domina em parte,
dominando-se a si mesmo e às suas relações com os outros, ou não o domina,
encontrando-se portanto atomizado, isolado e muito vulnerável às relações sociais
dominantes. No caso de Marie-Michèle, ou ela dava consigo ainda mais isolada numa casa
de subúrbio, perdida no meio dos outros, ou conseguia unir a sua casa a outras casas,
para criar um espaço comunitário de solidariedade. E é neste espaço de que se apropriou
que pode habitar e arrumar o seu interior, unindo-se simultaneamente aos outros. É por
isso que a criação, sob o modo transaccional, desta relação espacial e social elementar,
parece importante para a autoformação. Na sua história de vida, Marie-Michèle
mencionou e trabalhou mais de duzentas transacções com os outros e os
elementos/acontecimentos da vida para, depois de as ter vivido, tentar compreendê-las
e aplicar assim a si própria o seu poder de formação.

Conclusão

A autoformação está ainda em grande parte no antro da vida, antro nocturno


onde se confundem - e não somente aos olhos dos pedagogos - sujeitos, objectos,
objectivos e meios de formação. Existem abordagens - as dos ciclos de vida e das histórias
de vida em particular - que se aventuram neste decurso da vida, ou antes, nestes decursos
múltiplos de vidas diferentes e complexas. Procurámos analisar alguns destes dados
através dos macro-conceitos de heteroauto e ecoformação. Esta tentativa tem de ser
ainda transformada. Mas parece-nos que para termos em conta a formação permanente
do decurso da vida

75
Página 76

devemos apoiar-nos em constituintes elementares desta vida - o eu, os outros, a


natureza. Revolução paradigmática? Porque não? Depois do primeiro período paleo-
cultural da heteroformação, que quis impor-se como o todo da formação, parece
despontar actualmente a idade neo-cultural da auto-ecoformação, que faz do processo
de formação um processo permanente, dialético e multiforme.

76
Página 77
BIBLIOGRAFIA
D. ALLARD, "Ecologie et éducation permanente. Quelques hypothèses de travail dans G.
Pineau", Education ou Aliénation permanente, Paris, Dunod, 1977.
J. ARDOINO, "Editorial", em Pratiques de formation, N.º 7, Junho de 1984, "La formation
à l'écologie et à l' environnement", pp. 7-8.
Y. BAREL, La Societé du vide, Paris, Seuil, 1984.
R. BARBIER, "Se former, une interrogation permanente", em Pratiques de formation, N.º
7, Junho de 1984, pp. 101-106.
O. CLOUZOT, A. BLOCH, Aprendre autrement, Paris, Éditions d'organisation, 1981.
J. DUMAZEDIER, "Vers une socio-pédagogie de l'autoformation", em Amis de Sèvres,
1-1980.
J. DUMAZEDIER, "Temps sociaux, temps libres", em Loisir et société, vol. V, N.º 2, 1982.
M. FINGER, Biographie et herméneutique, les aspects épistémologiques et
méthodologiques de la méthode biographique, F.E.P., Universidade de Montréal, 1984.
P. FURTER, A. BUISSON, L'Education permanente dans ses perspectives de
développement, Caracas, Unesco, 1968.
R FURTER, Les Espaces de la formation. Essais de microcomparaison et de
microplanification, Lausanne, Presses Polytechniques Romandes, 1983.
P. GOGUELIN, La Formation continue das adultes, Paris, PU.F., 1970.
B. HONORÉ, Pour une théorie de la formation. Dynamique de la formativité, Paris, Payot,
1977.
G. JOBERT, "Les histoires de vie: entre la recherche et la formation", em Education
permanente, N.º 72-73, 1984 (Histoires de vie) pp. 5-14.
R. KAËS et al., Fantasmes et: formation, Paris, Dunod, 1973
G. LERBERT, "Une nouvelle voie personnaliste: le système-personnel", Mésonance, N.º 2,
IV, 1981.
G. LERBERT, Approche systémique et production du savoir, Paris, Editions universitaires,
U.N.M.F.R.E.O., 1984.
M. MAFFESOLI, La Conquête du présent, Paris, PU.F., 1979.
A. MOLES, "Ecologie de l'action", em Les sciences de l'action, Paris, Retz, 1975.
J. NUTTIN, La Structure de la personnalité, Paris, RU.F., 1965.
J. NUTTIN, Théorie de la motivation humaine, Paris, P.U.F., 1980
G. PINEAU, Education ou aliénation permanente, Paris, Dunod, 1977.
G. PINEAU e MARIE-MICHIÈLE, Produire sa vie: autoformation et autobiographie, Paris -
Edilig, Montréa1 - Albert Saint-Martin, 1983.
D. RIVERIN-SIMARD, Etapes de vie au travail, Montreal, Edições Saint-Martin, 1984.
G. SIMONDON, L'individu et sa genèse physico-biologique, (L'individuation à la lumière
des notions de forme et d'information), Paris, RU.F., 1964.
E. TARDY, "Un adulte sur deux s'adonne à des activités de formation", em G. Pineau,
Marie-Michèle, op. cit.
N. TERROT, Histoire de L'éducation des adultes en France, Paris, Edilig, 1983.
U.N.E.S.C.O., Réunion européenne d'experts sur les modalités d'aprentissage en
autodidaxie Rapport final et recommandations, Paris, 1980.
R. ZANIEWSKI, Les Théories des milleux et la pádegogie mésologique, Tournai, Casterman,
1952.

77
78
Página 79

VI
AS IMPLICAÇÕES SÓCIO-ESPISTEMOLÓGICAS DO
MÉTODO BIOGRÁFICO

MATTHIAS FINGER
(Universidade de Genebra)

79
80
Página 81

"Drogado de saber? Gosto que o saber faça viver, cultive, gosto de fazer dele
carne e casa, que ajude a beber e a comer, a caminhar lentamente, amar, morrer, por
vezes renascer, gosto de dormir entre os seus lençóis, que ele não me seja exterior. Ora
ele perdeu este valor vital; é preciso curarmo-nos do saber.

Cortado em pedaços miúdos, aparentemente novo em cada bocado absorvido,


depressa monótono, depressa antiquado passando rápido, e mais em inflação que em
verdadeiro crescimento, o saber contido nas teses, nos artigos, nas revistas científicas,
tomou a mesma forma da informação despejada pelos jornais, escritos, falados ou visuais,
pelo conjunto dos media, ou que um maço de notas ou um maço de cigarros, dividido em
unidades, cedo classificadas no banco de dados, codificadas.

O saber sensato cura e forma o corpo, embeleza. Quanto mais presto atenção e
procuro, mais penso. Pensa, logo sou belo. O mundo é belo, logo penso. O saber não pode
dispensar a beleza. Procuro uma ciência bela.

A partir de uma certa idade da sua história, a ciência deve responder pelo seu
rosto, pela beleza que representa e produz. Renuncio ao saber na sua forma actual,
porque ele desfeia homens e coisas, porque envelhece mal e não conseguiu formar os
nossos filhos. Traz consigo fealdade e morte, a máscara retorcida da tragédia. A partir de
uma certa idade, a ciência deve ser a resposta das crianças. Sai o sábio, eis a criança:

(Michei SERRES, Los cinq sens, Paris, Grasset, 1985, pp. 110-112)

A "criança" de que gostaria de vos falar hoje é uma investigação que empreendo
há vários anos. Trata-se de uma investigação sobre os fundamentos epistemológicos e
teóricos de uma tomada de consciência sócio-política através da pessoa. O método
biográfico surge como resultado de considerações epistemológicas e teóricas e na
perspectiva de pôr em prática processos de tomada de consciência, ou seja processos que
considero formadores para os adultos.

Com esta citação de Michel Serres encontramo-nos já no centro de uma das


problemáticas sócio-epistemológicas que levanto no meu estudo e que aborda

81
Página 82
rei nesta apresentação. Trata-se do desafio que a sociedade moderna lança, ou já lançou,
à formação, por ela se achar cada vez mais marcada pela ciência. Aliás, ciência e formação
estão estreitamente ligadas: pois se ao nível técnico-económico o projecto da
modernidade é o de uma produção cada vez mais científica, e se ao nível político este
mesmo projecto é o de uma gestão cada vez mais racional, então ao nível cultural o
projecto da modernidade é o da difusão pedagógica do saber e dos conteúdos científicos.
Ora o saber científico moderno levanta um certo número de problemas, dos quais só
evocarei aqui os dois que me parecem mais importantes e com os quais nos debatemos,
particularmente quando se trata da formação de pessoas. Por um lado, é verdade que o
saber tal como é produzido pela ciência moderna se apresenta cada vez mais sob a forma
de informações. No entanto, uma informação não tem significado em si; para podermos
compreendê-la temos de lhe atribuir um significado, de a integrar num saber que é outro.
E creio que não reflectimos suficientemente em pedagogia sobre a maneira como as
pessoas integram e compreendem informações dispersas.

Por outro lado, o saber moderno construído pela ciência, apresenta-se cada vez
mais à pessoa na forma de um saber de especialista. E a característica específica de um
tal saber de especialista é precisamente o facto de ser exterior à pessoa, de não a
responsabilizar, e até de a desresponsabilizar, nas palavras de lllich. E, creio que também
aqui, não reflectimos suficientemente sobre a maneira como as pessoas se organizam
para se apropriarem de um saber, desencarnado, e sem sujeito. Pergunto-me se a
especificidade do ponto de vista do pedagogo não consiste em situarmo-nos ao nível da
pessoa, ou seja, em admitirmos que o saber só merece este nome se for encarnado e
integrado numa pessoa. É evidente que a pessoa a que aqui me refiro é diferente dos
indivíduos atomizados que acumulam informações e que repetem slogans.

Uma pedagogia que tem por objecto específico a maneira como os sujeitos se
organizam para integrarem um saber, que se tornará assim pessoal, deve portanto
interrogar-se sobre a natureza epistemológica do ou dos saberes. Deve pôr a si própria a
questão de indagar se, ao lado do saber moderno moldado pela ciência e pelos
especialistas, não pode existir um outro tipo de saber, mais pessoal e mais humano.
Mesmo se isto for uma interrogação de natureza epistemológica, as suas implicações
ultrapassam-na bastante: na minha opinião são mais de ordem política, visto que
levantam a questão da formação da pessoa em relação ao saber moderno e ao contexto
da sociedade industrializada avançada.

As implicações desta interrogação são igualmente políticas porque o próprio


projecto da pedagogia é fundamentalmente político: a primeira tarefa da pedagogia não
é esclarecer o cidadão, de modo a que este possa tomar decisões, entre outras, políticas,
com conhecimento de causa?

Mas pode ele fazê-lo com um saber que se lhe apresenta de forma atomizada e
especializada, um saber que lhe é exterior e o desresponsabiliza?

82
Página 83
O meu estudo teve o seu ponto de partida em tais interrogações, e é com base
nas reflexões que acabo de esboçar que devem entender-se as cinco seguintes questões:
1. Como pode identificar-se este outro tipo de saber e qual é a sua natureza
epistemológica?
2. A partir de que bases teóricas podem construir-se os fundamentos
epistemológicos de um tal saber?
3.Qual é de forma mais exacta a natureza deste saber, uma vez que fundamentos
epistemológicos foram traduzidos numa metodologia de investigação e postos em prática
junto de pessoas?
4. Como pode caracterizar-se este outro tipo de saber em termos pedagógicos?
5.Quais são os limites e as possibilidades de um tal saber na sociedade moderna?

Tentarei responder aqui a cada uma destas questões, pelo menos nas suas
grandes linhas, sublinhando sobretudo os conceitos mais importantes que elaborei na
minha investigação.

1. Como pode então identificar-se este outro tipo de saber a um nível


epistemológico? Para responder a esta questão, pareceu necessário fazer uma incursão
pela história, pela filosofia e pela sociologia das ciências, mais particularmente das
ciências sociais. Nas ciências sociais, por exemplo, das quais as ciências da educação
fazem de resto parte integrante, a modernização não significa o advento de um saber
positivo e positivista, um saber que desqualifica todo o outro saber, classificando-o como
subjectivo e até mesmo como ideológico? E o advento deste saber foi de tal modo
imponente que, presentemente, já não existe qualquer alternativa elaborada. Portanto,
tive de partir à procura de uma tal alternativa, que tive de reconstituir e de reelaborar a
partir de inúmeras reacções face a um saber que se afirmou gradualmente como
dominante.

Primeiro, verificou-se a reacção dos românticos alemães, face ao que


qualificavam de "razão abstracta", "saberes dispersos" e "aridez do espírito das Luzes".
Trata-se aqui de uma resposta à epistemologia de Galileu, por meio de uma epistemologia
propriamente romântica, uma epistemologia da totalidade, implicando vida, natureza,
sentido e pessoa, e que, no conhecimento, dava importância aos sentimentos e à
simpatia.

Depois, surgiu uma segunda reacção mais defensiva, na Alemanha do século XIX,
contra a invasão do campo de estudo da história e da cultura pela epistemologia e pela
metodologia das ciências da natureza. Aqui, a compreensão do social opõe-se à
explicação da natureza e o acento põe-se em termos de adequação de um modo de
conhecimento a um tipo de realidade.

Uma terceira reacção terá finalmente lugar na querela positivista da sociologia


alemã dos anos sessenta deste século, entre os Teóricos Críticos da Escola de Francforte
e o positivismo lógico à Popper. Aqui a questão é sobretudo

83
Página 84
política, pois a elaboração de um outro saber que seria crítico teria por tarefa transformar
e não solidificar o sistema social.

Estas três reacções têm em comum a sua origem filosófica alemã e sobretudo as
suas raízes na mesma tradição epistemológica, a saber, a tradição hermenêutica.

2. Foi portanto a partir desta tradição hermenêutica que comecei a construir os


fundamentos epistemológicos deste outro tipo de saber.

Prática e teoria da interpretação e da compreensão, a hermenêutica opera com


a Razão de uma pessoa que reflecte. Primeiro limitada à teologia e depois à filologia, é
com o teólogo e romántico alemão Friedrich SCHLEIERMACHER (1768-1834) que a
hermenêutica se torna uma teoria geral da interpretação, que já não se limita aos textos,
mas a todas as formas de expressão da vida. Ainda mais claramente do que no seu
sucessor Wilhelm DILTHEY (1833-1911), que também estudei, o saber hermenêutico
designa em Schleiermacher o resultado de uma reflexão pessoal, ou seja, a passagem de
uma consciência imediata que é a das sensações, das vivências e das experiências, a uma
consciência reflectida. Este tipo de saber recorre portanto a um processo de formação da
parte da pessoa e inclui uma compreensão dos factores históricos, sociais e culturais que
foram determinantes no seu percurso de vida.

Foi no entanto um autor contemporâneo, o filósofo e sociólogo alemão Jürgen


HABERMAS (nascido em 1929), quem radicalizou consideravelmente a hermenêutica,
situando-a em relação à sociedade industrializada avançada e atribuindo-lhe assim um
papel de formação política. Para ele, a hermenêutica não tem só por tarefa compreender
e interpretar, mas deve igualmente contribuir para criticar as ideologias que os indivíduos
modernos interiorizaram no decurso da sua socialização. Uma tal crítica orienta-se para
o ideal de uma sociedade mais justa, assim como para o ideal de uma pessoa autónoma
e responsável. Com Habermas, este outro tipo de saber adapta-se agora aos indivíduos
modernos, onde toma a forma de "consciências críticas".

Assim, o recurso à epistemologia hermenêutica, radicalizada por Habermas,


permitiu-me definir um tipo de saber que seria específico de pessoas que vivem em
sociedades modernas.

3. No entanto, parece-me que a originalidade do meu estudo não reside tanto


na construção teórica, mas antes na tradução destes fundamentos epistemológicos numa
metodologia e numa prática de investigação social, capaz de valorizar este outro tipo de
saber. Chamei a esta prática "método biográfico", apesar de a maioria dos autores que
utilizam este termo não estarem, como eu, à procura de um saber epistemologicamente
alternativo. Todavia, parece-me que o termo "método biográfico" se justifica pelo facto
de este método valorizar uma compreensão que se desenrola no interior da pessoa,
sobretudo em relação a vivências e a experiências que tiveram lugar no decurso da sua
história de vida. Para avaliar de maneira mais precisa a natureza deste outro tipo de saber
tive

84
Página 85
ocasião de pôr em prática o meu método biográfico, primeiro com uma pessoa e agora
em grupos de formação. Este saber apresenta-se assim não só como, crítico, reflexivo e
histórico, mas também implica uma investigação da parte da pessoa, uma pesquisa
fundamentalmente formadora. Com efeito, este saber reflexivo e crítico insere-se num
processo, e mais precisamente em processos de tomada de consciência. Estes últimos
têm um objectivo emancipador para a pessoa e para a sociedade, pois é através deles que
a pessoa atribui um sentido às suas próprias vivências e experiências, assim como às
informações que lhe vêm do exterior. Penso que na sociedade moderna estes processos
de tomada de consciência são mesmo constitutivos da pessoa. Parece-me que se trata
aqui de um saber que deveria constituir a primeira preocupação da pedagogia; pois se é
este tipo de saber que as pessoas precisam para elaborarem as suas identidades na
sociedade moderna, se é este tipo de processo de tomada de consciência que as pessoas
devem activar para se formarem, não será preciso voltar a orientar e até a repensar a
formação?

4. Foi por isso que me perguntei se não se poderiam encontrar no campo da


educação concepções da formação que se aproximam da que acabo de esboçar. É
verdade que uma certa pedagogia de origem humanista e orientada segundo o ideal das
Luzes teve sempre por objectivo a emancipação da pessoa, paralelamente ao advento da
modernidade. No entanto, creio que hoje a emancipação da pessoa já não se dá ao ritmo
do desenvolvimento económico, social, político, e cultural. Foi sobretudo na Alemanha
Federal que, nos anos setenta, se desenvolveu uma corrente pedagógica, a dita pedagogia
crítica, que considerou as restrições sócio-políticas um obstáculo à emancipação da
pessoa. Hoje em dia, esta corrente confronta o seu interesse de formação emancipatória
com um interesse de formação técnica, cujo objectivo seria a conservação e até mesmo
o desenvolvimento do sistema. A questão é aqui novamente a da função política e a
educação na sociedade moderna deve assumi-lo. Será que a educação não deve ser mais
uma formação crítica de e para a pessoa do que um instrumento para um
desenvolvimento que a pessoa não domina e que já não lhe pertence? É inútil precisar
aqui que a pedagogia crítica defende a causa de um saber emancipatório.

Criei o conceito de "formação crítica dos adultos" para designar o tipo de


formação que na minha opinião seria adequado a este saber crítico e emancipatório, e
que se elabora pela pessoa, através de processos de tomada de consciência. Mas parece-
me importante sublinhar que tais formações críticas não se desenvolvem presentemente
em seminários universitários, mas em movimentos sociais e políticos, e isto justamente
em resposta a problemas levantados pelo "paradigma do desenvolvimento industrial"
que marca a modernidade. O conteúdo da biografia que elaborei no decurso do meu
estudo é, neste aspecto, bastante significativo, pois a formação crítica faz-se no actor com
quem trabalhei primeiro num quadro de militância e, em segundo lugar em relação a
tomadas de consciência que, entre outras coisas, dizem respeito aos perigos do nuclear,
bem como à vontade política de se esconder estes perigos da população.

Disse acima que na sociedade moderna a epistemologia adquire uma conotação


política, mas é preciso sublinhar aqui que a formação crítica dos adultos,

85
Página 86
desde que possa realizar-se, redefine simultaneamente o aspecto político: o que é político
nesta concepção são sobretudo os problemas de que as pessoas conseguiram apropriar-
se de uma maneira crítica.

5. Para concluir, resta-me avaliar os limites e as possibilidades de uma tal


formação crítica dos adultos na sociedade moderna. Estes são evidentemente idênticos
aos limites e às possibilidades do indivíduo na modernidade. O método biográfico, por
exemplo, não pode ir mais longe nem mais depressa do que as reflexões críticas em que
as pessoas já se envolveram. Assim, os limites são portanto os de um indivíduo que cortou
com a natureza interior e exterior, apesar de os seus processos de tomada de consciência
permanecerem sem implicações prático-vitais e se arriscarem a girar no vazio. Podemos
mesmo dizer que as possibilidades de uma formação crítica dos adultos começam onde
se reconhecem os limites dos fundamentos epistemológicos e teóricos da minha
concepção. Estas possibilidades aparecem no momento em que se admite que as
implicações das tomadas de consciência não são exclusivamente racionais, assim como
na altura em que se considera que as implicações prático-vitais das tomadas de
consciência fazem parte integrante do processo de investigação-formação. Num tal
contexto epistemológico e teórico que tentei esboçar em sintonia com Herbert MARCUSE
(1898-1979), a formação crítica dos adultos não seria então mais do que uma etapa numa
emancipação mais total.

É portanto impossível concluir definitivamente a minha investigação; para


terminar, vou transcrever uma passagem do geógrafo francês Bernard CHARBONNEAU,
pois parece-me ilustrar perfeitamente o desafio que a sociedade moderna já lançou à
formação crítica da pessoa, assim como à epistemologia que deve fundá-la:

"Mas como hoje o tempo se acelera, a vida das sociedades torna-se mais breve do que a dos indivíduos; o
progresso que prolonga o tempo destes, abrevia a duração daquelas. Os Estados, as igrejas e os países
mudam: nascem e, por consequência, morrem; e se só a longo prazo saberemos o que nasceu, já sabemos
o que pereceu. Outrora, a vaga das gerações rebentava nas margens, ao que parece imutáveis, dos rios o
dos impérios; hoje, um homem assiste à submersão de continentes. E a torrente da história, a investida das
máquinas, deixam -no encalhado num outro planeta. Já não são as feições de um rosto que se apagam no
passado, mas sim a imagem de um deus e a curva de um rio; sabemos
que o Atlântico e o "Oberland" são mortais. Cabe-nos enfrentar um fim que já não é só o dos indivíduos,
mas o dos povos e o do cosmos, para descer aos infernos à procura dos segredos da vida. Pois arrancando
assim o homem à matriz que até agora encerrava e protegia a sua fraqueza, o nosso tempo força-o a perecer
ou a nascer. A duração, o granito, já não é catedral ou falésia, mas sim consciência individual. Esta pode de
futuro testemunhar o voltar de um milénio -pelo menos se este granito vivo suportar ver rebentar contra
ele a vaga do tempo."
(Bernard CHARBONNEAU, Tristes campagnes, Paris, Denoêi, 1973, p. 11 a p. 12).

86
Página 87

VII

A NARRATIVA DE FORMAÇÃO
E A FORMAÇÃO DE FORMADORES

ADÈLE CHENÉ
(Universidade de Montreal)

87
88
Página 89
A experiência que queremos analisar situa-se no quadro de um programa
universitário de formação profissional de formadores de adultos ao nível do mestrado.
Explorámos a utilização da narrativa como instrumento de formação no contexto mais
preciso de uma actividade pedagógica realizada no final do programa, com o objectivo de
permitir a integração das aprendizagens.

Tendo a maior preocupação em tornar esta actividade significativa para os


formadores uma vez chegados ao fim do seu programa, a nossa intenção visava, antes de
mais, a reapropriação da experiência de formação pelos formadores.

FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A formação

No campo de filosofias bastante diferentes, não hesitamos hoje em dizer que o


saber pode ser enriquecido pela sua própria compreensão. Por exemplo, Peters (1973),
culas análises conceptuais em educação foram prolongadas na educação dos adultos por
Lawson (1975,1982) e Peterson (1979), defende que a educação tem uma relação com o
saber que permite à pessoa recriar o seu saber e ultrapassá-lo. Com efeito, é próprio da
pessoa educada poder situar-se em relação ao que aprendeu. Quando desenvolve a sua
problemática da formação, Honoré (1977) vai ao ponto de dizer que a relação com o saber
se torna mais importante que o próprio saber. Assim, ao lado do modo transmissivo, onde
o formador, reserva de conhecimentos, tem uma autoridade baseada no saber, desenha-
se um modo de reconstrução ou de reapropriação no qual o formador tem o papel de
tornar o "estudante" autor da sua própria formação. Ou seja, com esta pessoa, o
formador trabalha numa obra comum de "compreensão, de significação, de
renovamento, por vezes de criação" (Honoré, 1977, p. 32). Portanto, a formação enraíza-
se na articulação do espaço pessoal com o espaço socializado; progride com o sentido que
a pessoa lhe dá, tanto no campo da sua experiência de aprendizagem com o formador,
como no quadro da totalidade da sua experiência pessoal.

89
Página 90

Perguntar-nos-emos então como havemos de fazer para que este sentido se


manifeste. Quer se trate de um contexto institucional, quer não, parece vital para a
formação que, do ponto de vista das práticas, o formador favoreça a expressão do sentido
que a pessoa em formação dá às suas aprendizagens, não só para que este seja mais claro
para a consciência, como também para que ele ou ela adquiram um poder sobre ele.

De resto, a formação é como um pequeno quadro dentro de um quadro maior,


isto é, insere-se na vida da pessoa, desenvolve-se com ela, articula-se em profundidade
com a sua problemática existencial. Para apoiarmos o nosso pensamento, citemos
Honoré:

A prática da formação oferece, com efeito, momentos privilegiados para a


expressão da "carência de viver" como a preocupação mais profunda, como interesse,
como motor de experiência formativa, mesmo quando esta é provocada por uma
preocupação de ordem técnica e profissional (1977, p. 30).

Do que antes foi dito resulta que a prática de formação é reforçada por uma
prática de comunicação. Portanto, se o formador torna possível que o autor da formação
seja também autor de um discurso sobre a sua formação, este último terá acesso, pela
sua palavra, ao sentido que dá à sua formação e, mais ainda, a si próprio.

A NARRATIVA DE FORMAÇÃO

Elaborada de forma descritiva, a narrativa de formação tem como objectivo


principal, segundo o que é pedido, falar da experiência de formação. Relativamente à
narrativa de vida, presume-se que a narrativa de formação apresente um segmento da
vida: aquele durante o qual o indivíduo esteve implicado num projecto de formação.
Assim, com a produção de uma escrita, constrói-se a experiência de formação. Parece-
nos que, através da escrita, o indivíduo dá, de certa forma, uma substância ao seu ser, no
termo da sua formação. Ora, a partir do momento em que fala da sua experiência, o
indivíduo não diz nada dela. Isto é, por um lado, na distinção entre o ser e a palavra,
perdeu a sua experiência, projectando-a, e, por outro, poderia também ter dito outra
coisa. Pareceu-nos possível que no outro pólo, o da relação com o texto, o autor tornado
intérprete retraçasse o trajecto do dito ou não dito, se confrontasse com a reconstrução
inacabada da experiência e compreendesse esta experiência, reapropriando-se assim
dela.

É portanto passando pela narrativa, que a pessoa em formação pode


reapropriar-se da sua experiência de formação. Em resumo, trata-se de utilizar a instância
do discurso através da qual o indivíduo pode introduzir a sua experiência, e depois,
através da análise, de nos colocarmos com ele no lugar de intérprete, para sublinharmos
o distanciamento do texto em relação à experiência (não pode introduzir-se toda a
experiência da formação numa narrativa), a natureza essencialmente comunicacional da
língua e, por fim, o sentido da transformação principal pressuposta em toda a experiência
de formação.

90
Página 91

A NARRATIVA DE FORMAÇÃO E A FORMAÇÃO DE FORMADORES A NARRATIVA DE


FORMAÇÃO COMO TEXTO

A nossa opção quanto à relação com o texto e à análise da narrativa, baseia-se,


entre outros, em Ricoeur (1981) e Greimas (Grupo de Entrevernes, 1979).

Em primeiro lugar, decidimos considerar as narrativas de formação como textos


autónomos, isto é, independentemente da intenção dos seus autores. Para nós, e visto
que a fala é anterior à escrita, o sentido da narrativa de formação tem o seu próprio
destino. Mesmo que o autor vise a auto-representação, o texto encontra-se distanciado
das suas vivências: engloba-o e ultrapassa-o, estrutura-o à sua maneira. De resto, o texto
oferece-se à interpretação dos leitores possíveis, e, também, à do leitor-autor. Então, na
relação interpretativa do texto, a intenção do autor pode ser revelada pela intenção do
texto. É assim que o texto pode servir de charneira entre a irracionalidade do "vivido" e a
racionalidade do sentido da experiência.

Em segundo lugar, para a análise dos textos, jogámos com os aspectos


estruturais da narrativa. Porque pensávamos que a descrição e a explicação das
estruturas nas quais se molda o discurso do adulto sobre a sua formação podem servir de
transmissor para a compreensão do percurso de formação, tentámos penetrar no mundo
do texto, compreender a ordenação das acções na ficção da narrativa, encontrar, entre
outros, o narrador e a narradora, os diferentes agentes do texto, bem como a trama das
mudanças expostas pela história de formação nos seus percursos narrativo e figurativo.

Tendo escolhido para a prática da narrativa de formação uma abordagem


hermenêutica, utilizámos também os apoios metodológicos da semiótica de Greimas.
Esta escolha aplica-se antes de mais porque, com o seu algoritmo narrativo, a análise
estrutural permite decompor e classificar as operações de transformação de maneira
sistemática e coerente. Como qualquer narrativa, a narrativa de formação apresenta-se
como uma sucessão de estados. Portanto, na análise narrativa, trata-se de referenciar os
desvios, as diferenças que aparecem como uma sucessão na narrativa, de referenciar
igualmente a transformação principal realizada na narrativa pelo sujeito operador e o
sentido que se articula na sequência manipulação-competência-desempenho-sanção.
Além de explorarmos a narratividade do texto, procuramos o sentido da narrativa do
ponto de vista da transformação dos papéis temáticos. Sendo embora autónomos, o
percurso narrativo e o percurso discursivo encaixam-se um no outro. Com efeito, Greimas
(1983) diz que o sujeito da narração se empenha simultaneamente em duas direcções: a
do programa narrativo e a da configuração discursiva, onde "uma figura, logo que
introduzida, propõe um encadeamento figurativo relativamente constrangedor" (p. 61).

91
Página 92
ADIÈLE CHENÉ

APRESENTAÇÃO DA PRÁTICA DA NARRATIVA DE FORMAÇÃO

O contexto

A prática que aqui expomos foi realizada com quatro grupos de formadores de
adultos, inscritos numa actividade de integração no final do seu programa, de estudos. A
sequência desta actividade compreendia quatro momentos: o balanço das
aprendizagens, a narrativa de formação, a análise da narrativa e os complementos de
significação. No conjunto da actividade, tentámos ligar a expressão individual e a
expressão colectiva, a escrita pessoal e o trabalho colectivo de interpretação, a
reminiscência e a construção da significação, a experiência da temporalidade e a
totalização das experiências de formação na narrativa. Para uma melhor compreensão do
desenvolvimento da actividade, apresentaremos resumidamente as suas etapas.

O balanço das aprendizagens

A primeira etapa está estruturada de modo a permitir que a memória reconstitua


o percurso do que foi aprendido. Por várias razões, utilizámos técnicas de criatividade
com a grupo de formadores. Por um lado, elas permitem o apelo livre à memória, e, por
outro, dão acesso à relação inegável entre a experiência individual e a experiência
colectiva na própria construção do balanço individual das aprendizagens a partir do
balanço colectivo. Uma outra vantagem da utilização destas técnicas é que, com o
trabalho colectivo de associação de ideias, se desenvolve a coesão do grupo, a
participação de cada um, o respeito e a confiança, condições indispensáveis a um futuro
trabalho de interpretação.

Nesta etapa, os fragmentos da experiência de formação são representados,


retirados do esquecimento pela associação ou extraídos de uma lembrança recente.
Depois das sessões em grupo, os formadores são convidados a retomar individualmente
os princípios sobre a aprendizagem formulados em grupo e a eliminar aqueles em que
não se reconhecem. Para completar este balanço prevê-se uma outra estratégia:
explicitar o significado dos princípios sobre a aprendizagem, isto é, exprimir as relações
cognitivas e afectivas que justificam que tenham sido retidos e enumerar as suas
aplicações na prática.

Esta primeira etapa tem como consequência pôr os formadores em contacto


com várias aprendizagens significativas. Ora apresentados por ordem cronológica, ora
reagrupados em volta de temas, os cursos do programa de estudos assumem a forma dos
resultados que reaparecem no presente com o significado que lhes é atribuído. Idêntico
para todos os participantes do grupo, o programa de estudos varia de pessoa para pessoa.

92
Página 93
A narrativa

Na segunda etapa, a da narrativa, a tarefa é simples: "Conte a história da sua


formação. Como se conta uma história a um amigo, a um colega, a uma criança. Decerto
que aconteceram coisas durante a sua formação, que durou um ano, dois anos, quatro
anos. Portanto, conte".

Neste ponto, preferimos a escrita à comunicação oral, tanto para assegurarmos


a eficácia no momento da análise em grupo, como porque nos parecia importante a
utilização de uma estratégia que permitisse que os outros autores modificassem a relação
com o seu próprio texto.

Estava estabelecido desde o princípio que cada narrativa seria comunicada ao


grupo e analisada colectivamente. Portanto, cada formando do grupo escreveu um texto
narrativo, de uma a três páginas, escrito na primeira pessoa na maioria dos casos,
articulando-o com uma distribuição particular dos tempos verbais, acontecimentos,
acções e projectos.

A interpretação

A narrativa de formação é a narrativa de um fragmento de vida. Além disso, na


ficção da narrativa, o sujeito encontra-se já afastado de si próprio; com efeito, por mais
que se conte a experiência, esta nunca cabe por inteiro na narrativa. Assumindo como
adquirido que a produção da narrativa se situa na dinâmica da organização do experiência
da formação, e que nenhuma narrativa pode totalizar esta experiência -recordamo-nos,
deste modo, que o texto mesmo na forma escrita da narrativa de formação, supõe um
actor que, pela sua própria estrutura, dá forma à experiência descrita-, decidimos
interpretar o sentido do texto colectivamente, a partir de um método de análise
estrutural. Enquanto que o instrumento comum faz voltar constantemente a
interpretação ao texto, o trabalho de grupo oferece leituras plurais do texto.
A análise permite assim a reconstrução das relações entre os actores do
programa de estudos, através da ligação dos factos, das actividades, das motivações e das
pessoas, durante a realização do percurso narrativo, bem como a articulação das fases de
manipulação, de competência, de desempenho e de sanção e, sempre ao nível da
gramática narrativa, a identificação da transformação principal do texto. Tal narrador, por
exemplo, "encontrar-se-á a si próprio, no seu percurso de formação.

Importa sublinhar que o trabalho colectivo de análise:

1) Situa o texto e, ao mesmo tempo, a experiência do discurso e da interpretação na


junção da subjectividade com a inter-subjectividade; com efeito, cada um encontra-se,
numa certa medida, na narrativa dos outros.

2) permite ao sujeito distanciar-se do que era seu e reapropriar-se do que lhe pertence;
com efeito, cada um encontra-se, em certa medida, na leitura dos outros.

93
Página 94
ADIÈLE CHENÉ

O regresso ao conjunto das narrativas faz sobressair o facto de a manipulação


estar praticamente ausente, mas de, pelo contrário, a sanção, execução interpretativa
que avalia os resultados do desempenho, ocupar ali um lugar importante. O percurso que
o narrador realiza é de si para consigo, e é assinalável no julgamento que faz do seu ser.
Citemos a sanção de uma narrativa:

"Constato que as minhas preferências iniciais constituem uma escolha definitiva ( ... ) o
que me parece mais importante é que já não sou a mesma ( ... )".

Os complementos de significação

Depois da interpretação individual e colectiva das narrativas de formação, os


formandos devem retomar por si próprios os discursos interpretativos que os levam a
compreender o sentido da sua experiência de formação. Neste momento parece-nos
importante favorecer a integração das leituras plurais, tornar possível o aparecimento de
outros pontos de vista, interpretar de novo o percurso de formação. Assim, os formadores
descobrem que o sentido não se situa aquém do texto, mas na relação com o texto, que
a linguagem que eles próprios utilizam na escrita coloca a sua experiência, através da
interpretação colectiva do texto, na intersecção da individualidade com a inter-
subjectividade, do que lhes parece mais pessoal e do que é compreendido pelos outros.
Tendo-se empenhado na prática de uma análise colectiva da narrativa de
formação, os formadores permitiram-se ultrapassar com os outros as interpretações que
puderam comunicar. Enquanto que se haviam distanciado na escrita da narrativa, é
confrontando-se com o seu texto que têm agora acesso à unidade do seu percurso de
formação e à compreensão de si próprios.
No termo desta etapa, e para encerrar a sequência, visto que nos situamos no
domínio da formação de formadores, abordamos de maneira crítica as vantagens e as
desvantagens da utilização da narrativa de formação, os fundamentos teóricos e as
implicações da nossa abordagem, assim como as suas condições de realização.

OBSERVAÇÕES GENÉRICAS

A narrativa de formação e a experiência

Acreditamos poder defender que, para a prática, a narrativa de formação serve


de charneira para a compreensão da experiência, pois engloba e ultrapassa o "vivido".
Encontramos nela o antes e o depois, o fora e o dentro da experiência presente, com o
distanciamento próprio da escrita. Para mais, os percursos narrativo e discursivo tecem
no texto a dinâmica da relação com o saber, da relação com os outros e também da
relação com os diferentes aspectos do eu.

Do ponto de vista da estratégia de reflexão e de reconstrução da experiência,


estabelecemos os três momentos seguintes da relação com o texto. Em primeiro

94
Página 95
A NARRATIVA DE FORMAÇÃO E A FORMAÇÃO DE FORMADORES

lugar, convidado a descrever a sua experiência de formação, o formando molda no tempo


e no espaço da escrita a sua relação com as vivências de formação; confrontado com esta
escrita, descobre em seguida o que ela diz e o que ela não diz, e encontra no percurso do
texto os momentos de verdade que têm um sentido. Depois, coloca-se como sujeito do
discurso, determinado pela própria estrutura da narrativa. O eu dirige-se a um tu e toma
a forma na intersubjectividade. Reapropria-se da sua experiência, reflectida e legitimada
pela estrutura comunicacional da língua. Em resumo, a compreensão da experiência de
formação é a compreensão do eu. A construção do eu é reencontrada na compreensão
da transformação da narrativa ao nível profundo do texto.

A narrativa de formação e o percurso de formação

No decurso de uma investigação que abrangeu vinte e quatro narrativas de


formação, isolámos alguns traços do percurso de formação. A transformação principal da
narrativa realiza-se habitualmente num sentido positivo; por exemplo, tratar-se-á de uma
transformação do isolamento doloroso na integração alegre, ou do constrangimento
aceite na esperança mitigada. A manipulação está praticamente ausente da sequência
narrativa. Além disso, notámos que nenhum sistema temporal domina as narrativas;
empregam-se tanto os tempos verbais do passado que pertencem à narrativa, como os
tempos verbais do presente, que pertencem ao discurso. Ao nível discursivo, a
especialização também já não esconde os movimentos do narrador que se reapropria do
que viveu, antes estabelece uma permanência do seu ser, uma presença de si para si.

Na sequência destas investigações, e no que diz respeito à investigação e à


prática, preferimos simplificar a grelha de análise e reagrupar as questões em volta dos
pontos essenciais a este tipo de narrativa. Primeiro, pareceu-nos que os textos podem
geralmente dividir-se em três secções, a que chamámos a decisão, a aquisição e a sanção.
A decisão é frequentemente mais importante que as outras secções e, por vezes, articula-
se numa fase pré-decisional; ao estádio da aquisição correspondem enunciados do fazer;
na sanção encontraremos frequentemente o sujeito de estado, que reconhece o seu
estado transformado, e o sujeito operador da transformação. As nossas primeiras
questões debruçam-se sobre a estrutura das narrativas, e visam tanto a localização das
secções do texto como a ordenação dos seus elementos. Assim, por exemplo, é possível
mostrar de que forma a sanção, frequentemente difusa, toma no texto o lugar do
julgamento do eu e constrói a trama da história da formação. Quanto às outras questões,
fazem sobressair os efeitos da temporalização e da espacialização, permitem, entre
outras coisas, situar o actor da narrativa na relação com o saber e delinear a apresentação
das figuras, assim como a evolução dos pontos de vista.

95
Página 96
ADIÈLE CHENÉ

DISCUSSÃO

A escolha da análise estrutural para a apreensão do sentido das narrativas de


formação é problemática, à primeira vista. As relações entre os elementos significativos
do texto produzem um efeito de sentido mas não de verdade, sendo certo que não é
autorizada qualquer referência ao sujeito enunciador da narrativa. Depois, a gramática
narrativa limita o trabalho de interpretação do sujeito. De resto, este método tem a
vantagem de separar a narrativa do seu suporte psicológico e sociológico e de o oferecer
à recontextualização da interpretação.

Poderíamos pensar que, pelos seus aspectos explicativos, a análise estrutural da


narrativa afasta o enunciador-intérprete da compreensão da sua experiência de
formação. Ora, há dois argumentos que defendem o contrário. Por um lado, a
hermenêutica incita o formando a confrontar-se com a sua própria narrativa e a fazer a
reconstrução do sentido do texto servir para mediatizar a compreensão da sua
experiência de formação. Por outro lado, aliando semiótica e hermenêutica, parece-nos
que, na intersecção da sua relação de produção e da sua relação de interpretação com o
texto, o formando pode encontrar um lugar para estruturar a sua experiência e
compreender o que é e o que não é.

CONCLUSÃO

Em conclusão, se nos interrogamos sobre a formação dos formadores de adultos


supondo que as narrativas de formação revelam alguma coisa, conservamos os grandes
traços seguintes. Primeiro, a motivação para o empenhamento num programa de
formação é frequentemente difusa e o projecto de estudos específico enraíza-se num
passado mais distante e surge da totalidade existencial. Depois, o julgamento de
reconhecimento que acompanha a transformação associada à formação abre-se
normalmente para o desejo de novas realizações. Além disso, a aquisição da formação
situa-se frequentemente na perspectiva de objectos de saber que já ali se encontram e
que são redescobertos. Por fim, o julgamento de verdade sobre a experiência de
formação engloba também um Julgamento de competência do eu.

As potencialidades da narrativa de formação para a formação do formador


parecem-nos mais do que confirmadas. Teoricamente, a narrativa leva à compreensão do
percurso da formação. Na prática, permite igualmente que o formador encontre o seu
projecto de ser e se forme através da fragilidade das figuras que toma no tempo da
narração, e se reaproprie do julgamento de competência que faz sobre si próprio.

96
97
98
VIII

A BIOGRAFIA EDUCATIVA:
INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO
PARA A EDUCAÇÃO DE ADULTOS

PIERRE DOMINICÉ
(Universidade de Genebra)

99
100
Página 101

A abordagem biográfica enquanto opção metodológica

A maioria dos autores que hoje utilizam a abordagem biográfica, sentem a


necessidade de se justificar relativamente aos modelos empírico-analíticos, que dominam
a investigação em ciências sociais. Quase todos sociólogos, manifestam frequentemente
uma vontade de ruptura face aos métodos que anteriormente seguiram e têm
consciência de estarem a abrir novas vias metodológicas (D. Bertaux, 1980). Virando as
costas a preocupações quantitativas, esforçam-se por defender a contribuição qualitativa,
e alguns retomam por sua conta a posição de Sartre do "universal singular". "Se todo o
indivíduo é a reapropriação singular do universal social e histórico que o rodeia, podemos
conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma praxis individual" (F.
Ferrarotti, 1979). Esta opção metodológica leva a um debate epistemológico sobre o
papel da subjectividade na elaboração do conhecimento. "O balanço da história de vida
faz-se ao nível de um estudo aprofundado da realidade epistemológica das vivências" (L.
Morin, 1973). De resto, a abordagem biográfica implica uma relação nova do investigador
com o seu objecto de investigação. Com efeito, ele não pode satisfazer-se com a
neutralidade e o distanciamento, se quer ter garantias de uma "Interacção profunda e
durável" (M. Catani, 1978).
Estes problemas metodológicos ultrapassam largamente o simples uso da
abordagem biográfica. No entanto, esta constitui um balanço interessante, pois dispõe
de toda uma tradição ligada aos trabalhos da Escola de Chicago, assim como à sociologia
militante que marcou a Polónia da Segunda Guerra Mundial (D. Bertaux, 1976). Além
disso, conheceu usos diferentes como instrumento de investigação Quer se trate da
antropologia com O. Lewis e o estudo dos grupos primários como a família, dos trabalhos
da psico-história ou da psicobiografia resultando, como no caso de E. Erikson, num exame
dos ciclos de vida, o interesse da abordagem biográfica reside no facto de, para além de
trabalhos sociológicos contemporâneos, ela provir de toda uma herança intelectual
pluridisciplinar, que lhe dá simultaneamente uma legitimidade e uma fonte multiforme
de inspiração. Contrariamente às aparências, a biografia não pertence apenas ao domínio
da psicologia. Não se encontra encerrada na esfera privada da vida individual. Embora a
corrente psicanalítica tenha fornecido uma contribuição decisiva ao campo

101
Página 102
biográfico é justo relembrarmos com M. de Certeau (1981) que "a novidade do freudismo
consiste no uso que fez da biografia, para destruir o individualismo postulado pela
psicologia moderna e contemporânea"
Para se introduzir a abordagem biográfica no domínio das ciências da educação
era primeiro necessário, como o fez G. Pineau (1980), um estudo aprofundado da sua
utilização nas diferentes ciências humanas. Depois deste exame crítico, teria sido sedutor
que ele fixasse o percurso biográfico mais adequado ao domínio da acção educativa. Não
o fez devido à especificidade do seu objecto de investigação, a saber, na perspectiva da
Educação Permanente, a autoformação, "entendida como processo de apropriação de
cada um do seu próprio poder -de formação". Reconhecendo, com G. Pineau, que era
importante construir uma abordagem biográfica que respeitasse o contexto próprio da
Educação dos Adultos, aventurámo-nos, em estreita colaboração com ele, numa
orientação metodológica à qual demos o nome de biografia educativa. Tendo sempre
consciência de participar numa corrente de pensamento centrada na abordagem
biográfica, procurámos pôr de pé um estudo original que, com M. Fallet (1981),
distinguimos da autobiografia, da história de vida, da história de vida social (M. Catani,
1976) e da narrativa da prática (D. Bertaux, 1976).
A biografia educativa e a compreensão dos processos de formação
Privilegiando a função de regulação da avaliação, mostrámos, em trabalhos
anteriores (P. Dominicé, 1980), que a avaliação podia tornar-se formadora tomando por
objecto o processo de formação. Esta orientação da avaliação implica uma deslocação do
seu objecto tradicional. Já não se trata de medir, com a ajuda de um arsenal tecnológico,
a produção de um estudante, a realização dos objectivos de um programa ou a qualidade
dos efeitos de uma inovação. A avaliação debruça-se sobre o sujeito em formação.
Propõe-se elucidar as repercussões dos diferentes componentes de uma situação
educativa sobre o processo de formação daqueles que nele participam. A acção educativa
intervém como um suporte de autoformação e as regulações que se arrisca a provocar,
para se tornar realmente formadora, devem resultar em auto-regulações.
Esta concepção da avaliação ultrapassando os limites de uma situação educativa
propriamente dita, obrigou-nos a interrogar-nos sobre o contexto da vida pessoal,
profissional e social dos participantes, assim como sobre a sua trajectória, intelectual. Esta
dupla dimensão, simultaneamente contextual e histórica, do sujeito em formação na
nossa problemática da avaliação, está na origem da nossa abordagem biográfica.
Poderíamos mesmo considerar a biografia educativa como um instrumento de avaliação
formadora, na medida em que permite ao adulto tomar consciência das contribuições
fornecidas por um ensino e, sobretudo, das regulações e auto-regulações que dele
resultam para o seu processo de formação.
De inspiração genética e sistémica, o nosso uso do conceito de regulação,
conduziu-nos igualmente a considerar o processo de formação como uma das
modalidades de funcionamento de uma totalidade mais vasta, que seria o sistema

102
Página 103

tema do sujeito. Estas categorias abstractas nunca são identificáveis enquanto tal, mas
fornecem um quadro de referência no interior do qual os fenómenos referenciados
adquirem um sentido. Através dos dados de observação ou de um material biográfico, a
compreensão do processo de formação não pode deixar de permanecer parcial. A
contribuição empírica limita-se a sugerir hipóteses que abrem caminho a um melhor
entendimento dos elementos que intervêm na construção e no funcionamento deste
processo de formação. Na medida em que o definimos como um conjunto global de
interacções sociais e simbólicas constitutivas da personalidade do adulto e da sua
identidade, podemos reconhecer que, enquanto processo geral, o processo de formação
está marcado por uma série, de processos mais específicos que as biografias educativas
nos permitirão enumerar. Com efeito, o nosso trabalho de exploração e de elaboração
biográfica em grupo conduziu-nos à identificação de alguns destes mini-processos, como
o da escolha profissional, ou à determinação de registos de funcionamento reveladores
de um processo específico pertencente ao processo de formação. O processo de
autonomização face à família de origem constitui um exemplo particularmente
significativo de um processo específico.
A biografia educativa, tal como é encarada por G. Pineau, inscreve-se no
objectivo de autoformação defendido pelo movimento de Educação Permanente.
Portanto, ao mesmo tempo que serve de revelador do grau de apropriação do processo
de formação, contribui para reforçar as possibilidades de apreensão deste processo.
Então, a abordagem biográfica tem a sua origem num processo educativo, não
constituindo apenas uma orientação metodológica. Tanto para G. Pineau como para nós,
a biografia é um instrumento de investigação é, ao mesmo tempo, um instrumento
pedagógico. Esta dupla função de abordagem biográfica, caracteriza a sua utilização em
ciências da educação. A situação experimental necessária à investigação coincide com a
acção educativa e deve submeter-se ao seu quadro institucional. "Defeito supremo de um
método que, segundo os critérios científicos normais, deve ser independente do seu
objecto, ou nova abordagem que rearticule acção e reflexão, segundo relações novas
entre investigadores e actores?". Esta questão posta por G. Pineau (1980) ressoa como
um desafio. Sublinha uma das apostas metodológicas da utilização da biografia no campo
da educação, particularmente da educação dos adultos. Todavia, é importante não
encerrarmos a abordagem biográfica num debate puramente metodológico.
Contrariamente ao que alguns esperam, a biografia educativa não constitui um
instrumento de investigação generalizável a uma pluralidade de situações. O seu uso
depende de um objecto de Investigação e de um contexto educativo favorável.
O percurso biográfico inscreve-se num contexto de formação contínua
O quadro universitário no qual trabalhamos pareceu-nos prestar-se
particularmente bem à elaboração de biografias educativas. Os estudantes que seguem
as nossas cadeiras na subdivisão "Educação dos Adultos" da Secção das Ciências da
Educação da Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação da Universidade de
Genebra são, na maioria, adultos com idades compreendidas entre os trinta e os quarenta
anos. Em geral, seguiram uma formação de base

103
Página 104
PIERRE DOMINICIÉ
e actuam como profissionais no campo do ensino superior, da saúde, do trabalho social
ou da formação contínua dos adultos. Vários de entre eles entraram na Universidade
aproveitando-se da regra de admissão respeitante aos não-portadores do diploma final
do ensino secundário. Isto significa que as lacunas do seu percurso escolar foram
compensadas por tempos de formação contínua ou por uma larga experiência como
formadores. Além disso, possuem uma experiência social rica, devido aos diversos
compromissos assumidos, e abordam os seus estudos em função de um projecto de
formação ou de uma orientação profissional sobre a qual reflectiram bastante.
De resto, o curso durante o qual utilizamos a abordagem biográfica, situa-se ao
nível do segundo ciclo universitário Tem como precedência uma cadeira de introdução à
Educação dos Adultos, no decurso da qual são largamente abordadas a problemática da
Educação Permanente e o objectivo de autoformação que acompanha a totalidade do
desenvolvimento da vida. Portanto, a temática dos processos não lhes é estranha. Para
mais, conhecem o professor, as suas preocupações teóricas e a sua maneira de trabalhar.
No decorrer destes últimos anos, o curso-seminário consagrado ao trabalho
biográfico intitulado "Da Adolescência à Vida Adulta: História de Vida e Formação", reuniu
entre dez e vinte participantes. Trata-se portanto de um grupo no seio do qual pode
estabelecer-se um clima de confiança e estão criadas as condições para um diálogo. O
desenrolar das sessões no conjunto do ano académico assegura uma reflexão de longa
duração, enriquecida por períodos em grupos restritos, que frequentemente ultrapassam
as duas horas oficiais. A avaliação académica, no final do ano, que poderia aparecer como
um aspecto perigoso, facilitou sobretudo a continuidade da participação.
Claro que este contexto de formação contínua não é o único no qual podem
construir-se biografias educativas. No entanto, parece-nos particularmente adequado,
pelas razões que acabámos de apontar. Propomo-nos, nos anos vindouros, retomar este
estudo noutros contextos de formação contínua, mas sabendo que estas primeiras
experiências universitárias nos facilitarão enormemente a tarefa. Teremos então de
redefinir um instrumento que tenha em conta outras condições temporais e respeite a
especificidade de novas populações.
A elaboração de biografias educativas em grupo
O local de Investigação que escolhemos impunha um trabalho de grupo. Não se
tratava de um grupo primário, mas de um grupo construído segundo a organização dos
estudos universitários, no seio da qual trabalhamos. A composição do grupo escapava à
nossa vontade. Ou seja, não se trata aqui de um grupo experimental constituído segundo
normas de amostragem, mas de um grupo reunido segundo uma escolha de participação
individual, que respondia às directivas de um plano de estudos. Por várias vezes fomos
obrigados a fraccionar o grupo de origem em pequenos grupos de três a cinco elementos,
no primeiro ano devido a dificuldades de comunicação no interior do grupo, e depois dado
o número elevado de participantes (vinte e um).

104
Página 105
A BIOGRAFIA EDUCATIVA
O método de trabalho usado era o seguinte: depois de um primeiro tempo de
reflexão teórica sobre o objecto de investigação, definição da noção de adolescência e de
idade adulta e apresentação das hipóteses de trabalho sobre os processos, o grupo
entrava numa discussão metodológica destinada a sensibilizá-lo para as questões postas
pela transformação de uma situação de ensino num contexto de investigação, Então,
depois de uma informação sobre o estado actual de exploração da abordagem biográfica
em ciências humanas e em ciências da educação, com a ajuda de textos de apoio, o grupo
ou os pequenos grupos de trabalho lançavam-se numa partilha oral da sua narrativa de
vida educativa. Esta apoiava-se num plano previamente discutido, ou em eixos de
elaboração mais ou menos estruturados segundo a compreensão que os participantes
tinham do estudo, ou segundo a sua maneira de proceder. Esta fórmula flexível pode
parecer estranha. O plano ou o eixo propostos forneciam na realidade uma base de
partida, mas em caso algum deviam limitar a construção biográfica desejada pelos
participantes. Esta primeira fase de elaboração oral era submetida à discussão e o grupo
(ou o grupo restrito) estava encarregado de reactivar a memória daquele que se exprimia,
levando-o a interrogar-se sobre sectores da sua existência ou momentos do seu percurso
educativo que não havia mencionado ou que não tinha aprofundado suficientemente. O
conjunto desta fase oral era gravado para permitir ao estudante retomar tanto a
apresentação como a discussão que ela provocara, transformando-as numa narrativa de
vida educativa, posteriormente considerada como material biográfico a analisar.
Uma vez todas as biografias redigidas pelo mesmo processo, o grupo ou os
pequenos grupos procediam à sua análise segundo uma grelha proposta pelo professor e
discutida pelos participantes em vista à sua aplicação. Por fim, uma ou duas sessões finais
eram dedicadas ao balanço formador do caminho percorrido. Mas temos de reconhecer
que as fases de elaboração reduziram o tempo disponível para a análise do material
recolhido.
Quanto ao balanço formador, é impressionante constatarmos até que ponto os
participantes foram mobilizados por esta abordagem que lhes permitiu levarem a cabo
uma reflexão crítica sobre o seu percurso de vida e a sua educação, compreenderem
melhor as razões da sua escolha de uma formação universitária enquanto adultos e
tomarem consciência do seu modo de funcionamento e de expressão intelectual,
independentemente das normas de produção exigidas pela Universidade.
Duas exigências contraditórias: A implicação e o distanciamento do investigador

As dificuldades encontradas na análise do conteúdo do material biográfico


levaram-nos a reconhecer que o grupo, mesmo empenhado na investigação, não podia
substituir totalmente o investigador. Num tal estudo, o professor esforça-se por reduzir a
distância entre o seu estatuto de investigador e o de participante. Inspirados por alguns
dos princípios da investigação-acção, sobretudo pelo da participação dos interlocutores
no desenrolar da investigação, quisemos que os membros destes grupos se tornassem
companheiros de investigação. Assim,

105
Página 106
PIERRE DOMINICÉ
submetemos à discussão o nosso quadro de referência teórica e as nossas opções
metodológicas de maneira a que cada um pudesse não só apropriar-se delas, como
intervir na formulação das hipóteses e na concepção da abordagem biográfica. Na
realidade, avançámos, em cada ano, vários degraus na compreensão do objecto e do
método de investigação. A nossa relação com a investigação era diferente e os
participantes que foram mais longe na sua própria concepção do estudo biográfico
mostraram tendência a abrir perspectivas que já não eram aquelas sobre as quais nos
debruçávamos. Portanto, tivemos de admitir o princípio de uma certa distância entre
investigador e participante, a mesma que num primeiro tempo esperávamos abolir. Claro
que cada um permaneceu o autor da sua história de vida educativa, com a liberdade de a
construir segundo a originalidade que entendesse dar-lhe. Mas o conjunto do material
relacionado com o objecto real da investigação ficava propriedade de quem era o seu
garante, neste caso, o professor.
Estas reservas quanto à partilha do estatuto de investigador na nossa abordagem
biográfica não retiram nada às exigências de implicação que ela requer. Mesmo sem ser
obrigado ao confronto que representa a dinâmica de uma relação interpessoal, o
professor-investigador é submetido, no grupo ou aquando das suas trocas com os grupos
restritos, a uma profundidade de interacção que o torna responsável pelo que ouve ou lê.
Qualquer que seja a sua relação com quem lhe confia o conteúdo da sua biografia
educativa, aceita entrar em relação, deixar-se interrogar pelo que ouve, ser interpelado
no seu estatuto pelo discurso do qual foi testemunha. Confrontada com a dos outros, a
sua própria biografia é posta em questão e interpelada a sua função de professor.
Não é, portanto, abusivo sublinhar-se o carácter decisivo da implicação do
investigador nesta abordagem. O facto de manter um certo distanciamento face aos
participantes não significa que o professor se dispense de investir pessoalmente no
objecto da sua investigação. Mobilizado afectivamente, interrogado na sua identidade,
também ele beneficia, para a sua própria formação, dos acontecimentos e dos processos
que partilha na interacção oral e com a qual vai confrontar-se na análise mais sistemática
dos textos escritos.

106
Página 107

IX
A FORMAÇÃO
TEM DE PASSAR POR AQUI:
AS HISTÓRIAS DE VIDA
NO PROJECTO PROSALUS

ANTÓNIO NÓVOA
(Universidade de Lisboa)

Texto inédito de 1988

107
108
Página 109

Este texto constitui um primeiro balanço (necessariamente provisório) da


utilização do método (auto)biográfico ou das histórias de vida no quadro do projecto
PROSALUS.
Na 1ª parte, procuramos evocar a história da educação das crianças e da
formação dos adultos, referenciando três grandes momentos: o Movimento da Educação
Nova (anos vinte), a Educação Permanente (anos setenta) e a reflexão epistemológica
contemporânea.
Na 2ª parte, descrevemos a utilização das histórias de vida no PROSALUS,
tentando explicitar as concepções em que se baseou esta experiência e o modo como ela
decorreu.
Finalmente, na última parte do texto, avançam-se alguns princípios que devem
orientar a formação profissional e a formação de adultos, princípios sistematizados com
base na experiência levada a cabo.

1.CONTRIBUTO PARA UMA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS E DA FORMAÇÃO


DOS ADULTOS

"Cria teus filhos em bons costumes e disciplina: porque a cera mole ligeiramente recebe
figura: e depois que endurece sempre lhe dura: e da tenra vergôntea farás a volta que
quiseres"
Carfilha do século XVI

De uma forma geral, pode dizer-se que nas sociedades ocidentais toda a
formação tem estado impregnada do modelo escolar, construído durante a Época
Moderna e consolidado a partir da revolução burguesa dos finais do século XVIII.
Independentemente de todas as transformações no modo como as sociedades
foram concebendo (e organizando) ao longo dos séculos as práticas da formação, um
pressuposto manteve-se inalterável: educar é preparar no presente para agir no futuro.
O tempo da formação hic et nunc surge, portanto, dissociado do tempo de acção.

109
Página 110
Esta clivagem provoca, inevitavelmente, uma outra: a separação entre os
espaços da formação e os espaços da acção. Dois tempos, dois espaços, mas também
duas lógicas distintas: de um lado, as situações de formação normalmente organizadas
segundo uma lógica dos conteúdos a transmitir e das disciplinas a ensinar; do outro lado,
as situações de trabalho organizadas segundo uma lógica dos problemas a resolver e dos
projectos a realizar. Pelo meio, a questão sempre presente da (im)possibilidade de
transfert entre as duas situações: em que medida (e de que modo) as atitudes, as
capacidades e os conhecimentos adquiridos durante a formação podem ser "mobilizados"
numa situação real de trabalho?
Apesar das importantes mudanças pedagógicas ocorridas no último século, o
modelo escolar manteve-se incólume praticamente até aos nossos dias, não sendo
abusivo afirmar que grande parte dos educadores actuais considera ainda que o seu
trabalho consiste em moldar a cera mole!
Todavia, é possível detectar nas últimas décadas três grandes movimentos de
contestação ao paradigma escolar: o primeiro, conhecido por Educação Nova, irrompe do
interior do sistema educativo e atinge o auge no decurso dos anos vinte; o segundo, é
uma tentativa de resposta à crise social dos anos sessenta, tendo-se exprimido através
das perspectivas da Educação Permanente; finalmente, o terceiro, de contornos ainda
mal definidos, manifesta-se hoje em dia através da procura de uma nova epistemologia
da formação, tendo como expressões visíveis, por exemplo, as experiências em torno das
histórias de vida e do método (auto)biográfico.
O MOVIMENTO DA EDUCAÇÃO NOVA (ANOS VINTE) E A DECADÊNCIA DO MODELO
ESCOLAR
"A Escola deve, pois, ser uma ambiência organizada adrede a criar, estimular, desenvolver essas
qualidades activas, esses motivos de acção, de trabalho da criança.
Mas toda a planta carece de ser cultivada com esmero e, antes de ser lançada em plena
natureza e entregue a si própria, precisa de tutores para que os vendavais da vida não quebrem
o seu tenro caule."
Adolfo Lima (1924)

O Movimento da Educação Nova, cuja génese remonta aos finais do século XIX -
justamente considerado o "século da escola" -, é o primeiro grande movimento a
pretender pôr em causa o modelo escolar. Tendo atingido a sua maior expressão no
período pós -1ª Grande Guerra, o Movimento da Educação Nova proclamou o fim da
"escola antiga" e a criação de uma "escola nova", "cadinho da humanidade nova [e]
redentora da espécie" (1).

(1) - Escola Nova (Coimbra), Ano 1, 25 de Julho de 1924.

110
Página 111
AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS

É verdade que a Educação Nova provocou uma autêntica revolução


pedagógica no interior do sistema educativo. A defesa da autonomia dos
educandos e dos métodos activos, o estímulo à espontaneidade e à criatividade,
a valorização da aprendizagem e do "aprender a aprender" em detrimento do
ensino, a procura de uma ligação entre a escola e a vida, a tentativa de construção
de uma "escola do trabalho" como crítica à "escola do alfabeto", o realce dado ao
"aprender fazendo", o incentivo à participação activa dos formandos no seu
próprio processo de aprendizagem, a luta por um ensino centrado nos interesses
dos educandos, o esforço em prol da educação integral, são apenas alguns dos
princípios herdados do Movimento da Educação Nova que, hoje em dia, ninguém
ousa contestar (saber até que ponto eles são efectivamente aplicados, tanto na
educação das crianças como na formação dos adultos, é uma questão
completamente diferente!).
Seria, no entanto, profundamente errado interpretar a revolução
pedagógica operada pela Educação Nova como uma contestação efectiva aos
fundamentos do modelo escolar. A este título, a citação de Adolfo Lima (um dos
mais radicais pedagogos deste período), que encima este capítulo é bem
elucidativa; aliás, este mesmo autor, num dos mais brilhantes textos da pedagogia
portuguesa, não hesita em afirmar que:

"Para que o professor, o corpo docente, cumpra com a sua missão e se lhe possa
exigir toda a responsabilidade da educação que dá aos seus alunos, é
indispensável, por ser da mais elementar justiça, que a criança lhe seja entregue
por completo, sem intermitências, só tirando-a da sua influência e acção quando
ele a der por pronta" (2).

Assumindo o paradoxo da afirmação, poderemos dizer que os homens da


Educação Nova levaram até às últimas consequências a lógica do modelo escolar:
quantas vezes foi repetida em Portugal a célebre tese de John Dewey segundo a
qual a escola devia assumir-se como uma "mini-sociedade", como um "laboratório
sociológico", como uma "estufa", reflectindo e reproduzindo em ponto pequeno
todos os aspectos da vida social?
De facto, a Educação Nova, pese embora a importante herança
pedagógica que nos legou, não pôs em causa os dois "pilares" do modelo escolar
a existência de um tempo para aprender e de um tempo para fazer; o
encerramento das práticas educativas em espaços próprios e específicos, em
instituições especializadas.
Mas, ao aprofundar as contradições do paradigma escolar, a Educação
Nova constituiu o "canto do cisne" de uma certa forma social de conceber a
educação e abriu as portas a uma nova maneira de entender a formação.
(2) - Adolfo LIMA, Educação e Ensino - Educação integral, Lisboa, Guimarães & C.ª Editores, 1914, p. 135.

111
Página 112
A EDUCAÇÃO PERMANENTE (ANOS SETENTA): RUPTURA COM O MODELO ESCOLAR,
MAS NÃO COM UMA LÓGICA ESCOLARIZADA
"Mais do que de instituições especializadas, a educação permanente resultará do facto que
os indivíduos viverão constantemente em situações educativas. A separação entre trabalhar
e aprender torna-se então impossível: continuamos a aprender para fazer o que desejamos
fazer e continuamos a trabalhar de forma inovadora devido à descoberta de um conjunto de
novas possibilidades."

André Gorz (1977)

A expansão económica e a revolução tecnológica do pós-Guerra vão provocar


mudanças decisivas ao nível da educação das crianças e da formação dos adultos. O
modelo escolar, adequado a sociedades relativamente estáveis, mostra-se totalmente
incapaz de dar resposta aos desafios educativos dos anos cinquenta e sessenta. Face às
rápidas mutações tecnológicas e à desactualização constante dos conhecimentos, de
pouco servia fornecer aos indivíduos hoje uma "sólida base de conhecimentos" cuja
utilidade seria nula amanhã.
Doravante, o sucesso educativo passa pela capacidade de formar indivíduos
capazes de se reciclarem permanentemente, aptos a adquirirem novas atitudes e
capacidades, capazes de responderem eficazmente aos apelos constantes de mudança.
Trata-se de uma exigência que não tem origem numa reflexão pedagógica ou filosófica,
mas antes numa inelutável evolução socio-económica. Assiste-se, então, a uma
verdadeira "explosão" da formação profissional (contínua) que invade todos os domínios
da vida social e económica.

Em sintonia com esta transformação, verifica-se a publicação de uma série de


trabalhos (importantes na medida em que revelam uma alteração significativa na visão
socialmente dominante de encarar o adulto) que sustentam o "inacabamento do
homem", entre os quais é justo salientar o ensaio de Georges Lapassade (1963), intitulado
"A entrada na vida":
"O homem moderno aparece cada vez mais, em todos os planos da sua existência, como
um ser inacabado. O inacabamento da formação tornou-se uma necessidade, num mundo
marcado pela transformação permanente das técnicas, o que implica uma educação
igualmente permanente" (3).
Na esteira destas reflexões, o conhecido Relatório Faure (1972), que se pode
considerar o Manifesto da Educação Permanente, sustenta que a educação, para formar
um homem completo, cujo advento se torna mais necessário à medida que coacções
sempre mais duras separam e atomizam cada ser, terá de ser global e permanente: já não
se trata de adquirir, de maneira exacta conhecimentos definitivos, mas de se preparar
para elaborar, ao longo de toda a vida, um saber em constante evolução e... de aprender
a ser.
3-Georges LAPASSADE, A entrada na vida, Lisboa, Edições 70, 1975, p. 16.

112
Página 113
AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS

E o relatório continua afirmando que, a partir de agora, a educação não se define


mais em relação a um conteúdo determinado que se trata de assimilar, mas concebe-se,
na verdade, como um processo do ser que, através da diversidade das suas experiências,
aprende a exprimir-se, a comunicar, a interrogar o mundo e a tornar-se sempre mais ele
próprio. A ideia de que o homem é um ser inacabado e não pode realizar-se senão à custa
de uma aprendizagem constante tem sólidos fundamentos, não só na economia e na
filosofia, mas também na evidência trazida pela investigação psicológica. Sendo assim a
educação tem lugar em todas as idades da vida e na multiplicidade das situações e das
circunstâncias da existência. Retoma a verdadeira natureza, que é ser global e
permanente, e ultrapassa os limites das instituições, dos programas e dos métodos que
lhe impuseram ao longo dos séculos (4).
A Educação Permanente vem, portanto, pugnar por um investimento educativo
dos diferentes espaços sociais, pondo em causa o encerramento da educação em
instituições especializadas, e defender uma visão do adulto como "um ser em mudança",
retirando à infância e à juventude o privilégio das preocupações educativas. O modelo
escolar era seriamente posto em causa... pelo menos no plano dos princípios.
Em plena crise económica de meados da década de setenta, o Manifesto de
Cuernavaca proclamava, à boa maneira lilichiana, uma "sociedade sem escola" ou, melhor
dizendo, a "descolarização da sociedade", afirmando que:

"Qualquer pessoa, independentemente da sua idade, tem o direito de decidir o que quer
aprender, como, quando e onde. Nenhuma instituição pode monopolizar o saber ou
sancionar a sua difusão. Aprender, viver e trabalhar têm que ser uma e mesma coisa.
Vivendo aprendemos. Aprender é uma função da vida; o homem aprende
constantemente ao longo da sua vida" (5).

No entanto como acusariam os homens de Cuernavaca, os seus argumentos em


favor de uma descolarização da sociedade foram utilizados para justificar uma estratégia
global da escolarização permanente: "a institucionalização, da formação contínua está em
vias de transformar a sociedade numa imensa sala de aula de dimensões planetárias" (6).
Mais recentemente, Jacky Beillerot veio "pôr a nu" a sociedade pedagógica dos nossos
dias (que se situa nos antípodas da cidade educativa sonhada por vários utopistas ... ),
contestando a generalização de um comportamento pedagógico ao conjunto das práticas
sociais: "Depois do sono, a pedagogia é a actividade mais importante dos franceses; mais
importante até do que a produção de bens e de serviços" (7).
Será que estaremos hoje em dia, após os séculos da escola (séc. XIX) e da criança
(séc. XX), no limiar do século dos pedagogos (séc. XXI)?
(4) - Edgar FAURE [coord.], Aprender a Ser, Lisboa, Livraria Bertrand, 3ª edição, 1981.

(5) -Manifesto de Cuernavaca, in H. DAUBER e E. VERNE, L'école à perpétuité, Paris, Seuil, 1977, p. 26.

(8) - Ibidem, p. 54

(7) - Jacky BEILLEROT, La société pédagogique, Paris, P.U.F., 1982, pp. 24-37.

113
Página 114

Na verdade, a grande força da Educação Permanente tem-se revelado,


simultaneamente, a sua grande fragilidade. Ao exigir "menos escola", nem por isso a
Educação Permanente deixou de provocar "mais escolarização", pois ao intervir em todas
as idades da vida e em todos os espaços sociais ela estendeu-se a zonas da sociedade até
aí imunes à acção pedagógica tradicional; e fê-lo, veiculando frequentemente uma
concepção escolarizante da formação. É verdade que as perspectivas da Educação
Permanente podem contribuir para uma autonomização progressiva das pessoas e para
o investimento educativo dos espaços de vida e de trabalho. Mas, para que tal desiderato
seja atingido de forma criativa e estimulante é necessário inverter uma certa lógica de
raciocínio.
Tomemos como exemplo as instituições da Saúde. Devemos formular as
questões que nos permitirão definir uma estratégia de formação adequada, do seguinte
modo: Que potencialidades formadoras se podem desencadear no seio de um espaço
hospitalar? Ou, como é que uma consulta se pode transformar num tempo de
aprendizagem e de formação? Ou
Trata-se, sempre, de inscrever a pedagogia numa prática profissional que não é
escolar e numa relação que não é pedagógica, no sentido estrito do termo. A medicina e
a enfermagem não são pedagogia e os profissionais da saúde não são pedagogos: é esta
consciência que lhes permitirá não "derrapar" para um discurso pedagogizante, que
tenderia a acentuar os aspectos normativos e normalizadores do modelo escolar e a
desvalorizar os saberes e as práticas das diversas pessoas e comunidades (8).
É importante que haja formação para a primeira e para a terceira idade, para os
pais e para os filhos, para se desinibir e para saber comunicar, para aprender a ouvir e a
falar, para controlar o corpo e para dominar a mente, para se preparar para noivo e para
ultrapassar o divórcio, para nascer e para morrer, etc. Mas, no dia em que alguém não se
sinta capaz de dançar por não ter seguido o Curso A ou B ou em que alguém se sinta
"mau" pai por não ter seguido a Acção de Formação X ou Y, então estaremos a assistir a
uma desqualificação dos saberes e das capacidades de cada um, obtendo um efeito
contrário ao pretendido pela Educação Permanente.
De facto, com o advento das perspectivas da Educação Permanente produziu-se
uma ruptura fundamental com o modelo escolar, mas continuou-se a agir segundo uma
lógica escolarizante, ainda que não confinada a tempos próprios e a espaços específicos.
A questão central continuou a ser formar (Como? Quando? Onde?) e não formar-se (O
que é que é formador na vida de cada um?); continuou a reflectir-se (e a trabalhar-se)
fundamentalmente em torno de uma formação institucionalizada.
Inventaram-se, então, as mais sofisticadas técnicas de formação, conceberam-se
instrumentos de formação tecnologicamente muito avançados, elaboraram-se
estratégias de formação inovadoras que procuraram integrar as teses da Educação

(8) -Cf. o número da revista Pratiques de formation (Analyses), intitulado "Imaginaire et éducation II":
Universidade de Paris VIII, n.º 9, Abril de 1985.

114
Página 115
AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS

Permanente, construíram-se locais e centros de formação modelares,


desenvolveram-se novas estratégias pedagógicas preocupadas com uma definição
rigorosa dos objectivos educacionais e com uma avaliação adequada dos resultados da
formação, etc. Tudo isto deu um contributo decisivo ao domínio da formação de adultos,
conseguindo a realização de avanços importantes no decurso da última década. Mas,
faltou uma interrogação epistemológica sobre o processo de formação. É esta
preocupação que tem estado presente nos trabalhos inovadores de vários autores que,
nos últimos anos, têm procurado construir uma nova epistemologa da formação. Dentre
estes trabalhos é justo destacar os que se têm dedicado à utilização das histórias de vida
ou do método (auto)biográfico no domínio da formação de adultos.

AS HISTÓRIAS DE VIDA E A PROCURA DE UMA NOVA EPISTEMOLOGIA DA


FORMAÇÃO

"Formar-se, não é instruir-se; é antes de mais, reflectir, pensar numa experiência


vivida [ ... ].Formar-se é aprender a construir uma distância face à sua própria experiência de
vida, é aprender a contá-la através de palavras, é ser capaz de a conceptualizar. Formar é
aprender a destrinçar, dentro de nós, o que diz respeito ao imaginário e o que diz respeito ao
real, o que é da ordem do vivido e o que é da ordem do concebido (ou a conceber), o que é do
domínio do pretendido, isto é do projecto, etc.".
Rémy Hess (1985)

A interrogação epistemológica que atravessa hoje em dia alguns círculos da


formação de adultos, tem origem numa crítica a uma "visão desenvolvimentista" da
educação e na procura de uma concepção da formação que permita ao indivíduo "pensar-
se na acção". Como diz Matthias Finger, o "modelo do desenvolvimento", no qual se
baseiam a ciência e a educação modernas, não só impede a compreensão do processo de
formação dos adultos, como oculta a questão fulcral de toda a formação, isto é a questão
do sentido (9).
A dificuldade de elaborar uma teoria da formação dos adultos reside, em grande
parte, na incapacidade de entender a formação sem o recurso aos conceitos de
"progresso" e de "desenvolvimento". Ora, é evidente que o adulto tem que construir a
sua própria formação com base num balanço de vida (perspectiva retrospectiva) e não
apenas numa óptica de desenvolvimento futuro. Deste modo, o conceito de reflexividade
crítica deve assumir um papel de primeiro plano no domínio da formação de adultos.

(9) -Matthias FINGER, V horizon bouché de Ia civilisation industrialisée avancée: repenser l'épistérnologie
de la recherche et de la formation à partir das adultes: Genève, documento policopiado, 1986.

115
Página 116
ANTÓNIO NOVOA

Simultaneamente, a adulto está implicado numa acção presente, o que obriga a


ter em conta um outro vector dominante da formação de adultos: a consciência
contextualizada.
É muito interessante a forma como Alain Bercovitz interpreta estes dois
conceitos, sem se lhes referir explicitamente:
"A nossa formação realiza-se no momento em que, agindo, imaginamos o modo
de descrever o que estamos a fazer; ela realiza-se, também, no momento em que,
comunicando aos outros o que vivemos e o que fizemos, de repente sentimo-nos capazes
de compreender o sentido (um dos sentidos possíveis, ao qual teremos de regressar),
construindo um saber. A alternância é um meio da simultaneidade”.
[ ... ] A tomada de consciência opera-se através do assumir da palavra. O saber
gera-se na partilha do discurso!
[ ... ] Numa outra forma, deparamo-nos com a necessidade de reconstruir o saber
em função de cada prática concreta (de cada processo individual de aprendizagem). As
aquisições só adquirem sentido a posteriori" (10).
As histórias de vida e o método (auto)biográfico integram-se no movimento
actual que procura repensar as questões da formação, acentuando a ideia que "ninguém
forma ninguém" e que "a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os
percursos de vida".
Com o título sugestivo de Vidas das histórias de vida publicou Gaston Pineau, em
1980, um livro que marca o início da utilização sistemática do método (auto)biográfico no
âmbito da formação de adultos. Desde essa data até hoje, a reflexão em torno das
histórias de vida tem-se enriquecido consideravelmente, dando origem a uma série de
estimulantes experiências em vários países da Europa e da América do Norte.
Percorrendo diversos autores, Gaston Pineau refere as formas literárias, as
abordagens psicológicas e as utilizações sociológicas e antropológicas das histórias de
vida concluindo que o impacto social das autobiografias está intimamente ligado ao seu
paradoxo epistemológico fundamental: a união do mais pessoal com o mais universal
(11). Situando-se numa óptica sociológica, Gaston Pineau considera as histórias de vida
como um método de investigação-acção, que procura estimular a auto-formação, na
medida em que o esforço pessoal de explicitação de uma dada trajectória de vida obriga
a uma grande implicação e contribui para uma tomada de consciência individual e
colectiva. A biografia é, simultaneamente, um meio de investigação e um instrumento
pedagógico: é esta dupla função que justifica a sua utilização no domínio das ciências da
educação e da formação,

(10) -Alain BERCOVITZ, "Le savoir est dans le discours partagé", Éducation Permanente (Paris),
N.º 49-50, 1981, pp. 97-99.
(11) -Gaston PINEAU, Vies des histoires de vie, Montreal, Universidade de Montreal, 1980, p. 50.

116
Página 117
AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS

Deste modo, a situação experimental necessária à investigação coincide com a


acção de formação, devendo sujeitar-se ao seu quadro institucional: "Vício supremo de
um método que, segundo os critérios científicos habituais, deve ser independente do seu
objecto ou abordagem inovadora que articula acção e reflexão com base em novas
relações entre os actores e os investigadores ?" (12). Esta pergunta de Gaston Pineau
encerra uma das questões centrais das histórias de vida e da sua utilização no âmbito da
formação de adultos, na medida em que concede ao formando o duplo estatuto de actor
o Investigador, criando as condições para que a formação se faça na produção do saber e
não, como até agora, no seu consumo.
A abordagem biográfica reforça o princípio segundo o qual é sempre a própria
pessoa que se forma e forma-se na medida em que elabora uma compreensão sobre o
seu percurso de vida: a implicação do sujeito no seu próprio processo de formação torna-
se assim inevitável. Deste modo, a abordagem biográfica deve ser entendida como uma
tentativa de encontrar uma estratégia que permita ao indivíduo-sujeito tornar-se actor
do seu processo de formação, através da apropriação retrospectiva do seu percurso de
vida.
Mas, a abordagem biográfica não deve ser entendida unicamente nesta
dimensão, pois ela procura desencadear uma reflexão teórica sobre o processo de
formação dos adultos, dando aos formandos o estatuto de investigadores. É por isso que
nos parece pertinente falar de uma nova epistemologia da formação, formação que não
pode deixar de ser entendida como um verdadeiro processo de produção-inovação.
Nas páginas seguintes procuraremos evocar brevemente a utilização do método
(auto)biográfico no quadro de um projecto de formação de gestores da formação para
estabelecimentos e serviços do Ministério da Saúde, denominado PROSALUS 86. Trata-se
de uma experiência limitada e pouco ambiciosa, mas nem por isso menos merecedora de
uma reflexão crítica, que vá permitindo desbravar caminhos num terreno tão fértil, mas
ainda tão pouco explorado
2.A UTILIZAÇÃO DAS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS 86

A experiência que vamos relatar desenrolou-se entre Junho e Dezembro de 1986,


no quadro do 1º Curso do projecto PROSALUS (13). O grupo era constituído por
(12) -Ibidem.

(13) -No 2º Curso do projecto PROSALUS esta abordagem foi orientada por Jeremias Carvalho numa
perspectiva um pouco diferente, centrada fundamentalmente numa elaboração do Jornal da Formação.
No 3º Curso, para os "orientadores de formação específica em Clínica Geral", a experiência foi dinamizada
por Matthias Finger e aproximou-se mais da experiência descrita neste texto, ainda que com algumas
diferenças significativas.No entanto, o presente texto procura integrar algumas das reflexões produzidas
no âmbito dos outros dois Cursos, assumindo-se como um primeiro balanço da utilização das histórias de
vida no projecto PROSALUS.

117
Página 118
19 participantes, trabalhando em instituições da Saúde nas seguintes regiões do país:

Lisboa 6
Évora 4
Faro 3
Coimbra 2
Santarém 2
Bragança 1
Viseu 1

Do ponto de vista profissional o grupo tinha a seguinte composição, ainda que


todos eles se dedicassem às questões da formação nas respectivas instituições:

Técnicos superiores 9
Médicos 5
Enfermeiras 3
Chefe de secção 1
Técnico de diagnóstico e terapêutica 1

Uma vez que este ponto do nosso artigo tem um cariz essencialmente
metodológico, parece-nos mais adequado relatar a experiência realizada com base nos
materiais utilizados pelo grupo (apesar de serem documentos de trabalho e não artigos
académicos) do que a partir de uma elaboração teórica, feita a posteriori. Através dos
textos que a seguir se transcrevem, creio ser possível reconstituir o fio condutor da
experiência levada a cabo e perceber as estratégias desenvolvidas ao longo das várias
sessões de trabalho. Apelar para esta memória escrita parece-me coerente com as ideias
que tenho vindo a defender ao longo deste artigo.

É evidente que se trata dos documentos metodológicos distribuídos aos


participantes e não dos materiais biográficos produzidos durante a experiência de
formação; vários outros documentos foram fornecidos, sobretudo de índole teórica, mas
a sua transcrição seria redundante no âmbito desta Antologia. Os três primeiros
documentos foram entregues nas sessões de trabalho dos dias 14 de Julho, 25 de Julho e
31 de Outubro de 1986; importa sublinhar que estes documentos inspiram-se largamente
em textos da autoria de Pierre Dominicé (nalguns casos trata-se de adaptações, noutros
de tradução), a quem queremos agradecer publicamente a autorização concedida para a
sua utilização e publicação. O quarto documento, datado de 15 de Janeiro de 1987, é um
breve balanço sobre a forma como decorreu esta experiência, que foi integrado no
"Relatório de avaliação do 1º Curso PROSALUS".

118
Página 119
AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS:

DESCRIÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO


Documento 1/ 14 Jul. 1986
1. Introdução metodológica

Após uma primeira sessão de trabalho dedicada a uma introdução genética à


problemática das Histórias de vida e Formação impõe-se a apresentar, de forma sucinta,
o método de trabalho que vai ser levado à prática. Este método (largamente inspirado
nos trabalhos de Pierre Dominicé) consagra a existência de quatro etapas:
1ª etapa - Reflexão teórica sobre as histórias de vida, definição de adolescência
e de idade adulta, referência aos estudos sobre os ciclos de vida e debate sobre a noção
de processo de formação.
2ª etapa - Discussão metodológica sobre a biografia educativa, sua
especificidade e problemas levantados pela sua utilização. Sensibilização à ideia que os
praticantes devem assumir-se, simultaneamente, como sujeitos e objectos de trabalho,
como investigadores e actores.
3ª etapa - Apresentação e escolha dos eixos de referência em torno dos quais se
vão organizar as narrações individuais a realizar no seio de pequenos grupos (3 a 5
participantes).Interacção no pequeno grupo com base nas diversas biografias educativas
apresentadas (primeira narração livre).
4ª etapa - Fase de elaboração, em grupo, das diferentes biografias apresentadas.
Tentativa de encontrar algumas linhas de força comuns nas biografias elaboradas por
cada um. Reflexão conjunta /sistematização. Esforço de elaboração teórica e eventual
troca de experiências entre os diferentes grupos.
2. Notas breves sobre as biografias educativas
A utilização no âmbito dum projecto de formação de formadores de uma
estratégia centrada sobre a biografia educativa não pode deixar de ser entendida duplo
sentido: por um lado, como uma forma de por em prática uma dinâmica de auto-
formação e de compreensão retroactiva (tomada de consciência) do percurso de
formação seguido por cada participante; por outro lado, como um espaço de reflexão
teórica que tem como objectivo os processos através dos quais os adultos se formam e
que, em consequência, tentará responder à questão: como é que os adultos se formam?
Esta dupla dimensão é muito importante, pois ela indica que cada participante
tem que se assumir, simultaneamente, como actor (trata-se de contar e de reflectir sobre
a sua própria história educativa) e como investigador (trata-se de compreender os
processos de formação dos adultos). O pressuposto de trabalho que não é pacífico: a
história de vida de um actor social introduz-nos, inevitavelmente, na vida social de um
grupo (e/ou colectividade).
O sucesso da metodologia proposta obriga a que cada participante se lembre
constantemente que o objecto de trabalho é a formação. De facto, o que o grupo tem em

119
Página 120
comum é estar a viver uma situação de formação; ora, tal ideia deve ser valorizada a fim
de que as narrações não caiam numa espécie de "intimismo"; que dificultaria uma
reflexão mais elaborada sobre os processos de formação. Neste sentido, é necessário que,
após uma primeira narração livre, cada participante reencontre, com o apoio do grupo,
um distanciamento face ao seu próprio percurso de vida.
Ao falarmos em processos de formação pretendemos sublinhar que os adultos
se formam através das experiências, dos contextos e dos acontecimentos que
acompanham a sua existência. Pensamos, em função da nossa própria experiência no
domínio da formação (e da auto-formação), que a acção educativa só adquire
capacidades formadoras quando consegue interagir com uma certa lógica da evolução
pessoal de cada um. A formação contínua deve ser entendida como uma contribuição
exterior que pode modificar certas trajectórias de vida através das quais os adultos se
constroem a pouco e pouco.
O termo formação é utilizado abusivamente nos círculos das Ciências da
Educação. A formação dos adultos não pode ser programada: ela não tem nada a ver com
a obtenção de certos objectivos educacionais ou com a satisfação de um conjunto de
exigências de avaliação. Mesmo quando uma acção educativa se revela formadora, são
de facto os adultos eles próprios que se formam. A formação pertence exclusivamente à
pessoa que se forma. É evidente que toda a gente depende dos apoios exteriores que
ajudam, estimulam e inspiram os percursos individuais: a formação é um espaço de
socialização e está marcada pelos contextos institucionais, profissionais, sócio-culturais e
económicos, em que cada indivíduo vive. Por outro lado, a história individual está em
interacção constante com os acontecimentos históricos que modelam o futuro de uma
dada sociedade. Mas não devemos valorizar o facto de que pertence exclusivamente ao
adulto fazer a síntese do conjunto das influências exteriores e apropriar-se do seu próprio
processo de formação.
Refira-se, por fim, que é importante reflectir sobre a diferença entre os três
processos que atravessam a formação dos adultos: o processo de formação, de
conhecimento e de aprendizagem. Hipótese de definição:
Processo de aprendizagem - aquisição de técnicas e da capacidade para
manipular.
Processo de conhecimento - integração de sistemas simbólicos (normas,
ideologias, valores).
Processo de formação - reflexão retroactiva sobre os elementos dos outros dois
processos, tendo como consequência uma "tomada de consciência".
Esta definição permite-nos ilustrar o processo de formação do seguinte modo:
Momentos importantes
pontos de ruptura
reflexão
desidentificação
formação
tomada de consciência
realização de uma acção

120
Página 121

As consequências desta definição são evidentes:


- o processo de formação é um processo individual, que necessita para se
desenvolver de um contexto propício;
- através da biografia educativa o processo de formação é estimulado, sendo
encarado como um objecto de investigação, o que cria as condições para uma tomada de
consciência individual e colectiva.
DOCUMENTO 2 / 25 JUL 1986
Após alguns debates, inevitavelmente breves e superficiais, importa começar
pensar na produção em grupo do "material biográfico". Penso que seriam necessárias
mais algumas sessões de debate teórico em torno das "histórias de vida e a formação",
mas o desenrolar do curso obriga-nos a "pressionar" um pouco o ritmo do grupo.
Insistiu-se já na que as histórias de vida se constróem numa perspectiva
retroactiva (do presente para o passado) e que procuram projectar-se no futuro. Insistiu-
se também no conceito de formação como uma tomada de consciência reflexiva (no
presente) de toda uma trajectória de vida seguida no passado. Insistiu-se finalmente nas
precauções para não cair numa atitude "intimista", salvaguardando a meta teórica que
nos propusemos alcançar, isto é, compreender, a partir da história de vida de cada um, o
processo de formação dos adultos.
Tomando como referência o conceito de "entrada na vida" e de "passagem da
adolescência para a vida adulta", parece adequado propor quatro grandes fases na
elaboração concreta do material biográfico (cf. a 3ª e a 4ª etapas do Documento 1/14 jul
1986):
1. Descrição livre, no pequeno grupo, da história de vida de cada um. Cada
participante pode servir-se para esta descrição de um suporte escrito (guião, diário
cronológico, etc).
A função do grupo é interpelar o colega que apresentou a sua história, sem
qualquer perspectiva crítica e/ou analítica, mas tendo como única preocupação ajudar à
descoberta de "zonas" da vida não suficientemente explicitadas ou à relativização de
momentos e/ou situações valorizadas em demasia. É deixado ao critério de cada
participante a possibilidade de gravar a sua história de vida, metodologia que se revela
interessante para uma análise posterior (é necessário dizer que se trata de um material
de estrita utilização pessoal).
2. Reorganização, sistematização e arrumação da história de vida, com base
nos momentos - importantes (rupturas), procurando encontrar uma coerência no
percurso de vida de cada um. É uma fase de procura individual (ainda que o pequeno
grupo possa desempenhar um papel muito estimulante), no decurso do qual o material
gravado na fase anterior pode constituir um excelente material de apoio.
Seria interessante que cada pessoa estruturasse num gráfico, com uma lógica
não exclusivamente cronológica, a sua trajectória de vida procurando identificar (e
valorizar) os momentos de ruptura.
3. Fase de análise, em pequeno grupo, do material com base numa grelha que
será fornecida na altura própria. Tentativa de encontrar algumas linhas de força comuns
ao pequeno grupo e de encontrar alguns pressupostos teóricos do processo de formação
dos adultos. Na sequência desta reflexão deve ser produzido um documento passível de
ser partilhado com os outros participantes no PROSALUS 86.

121
Página 122

4. Esforço de teorização, no grande grupo, em torno da questão: como é que os


adultos se formam? Esta reflexão terá como base os textos produzidos nos pequenos
grupos.Uma vez estabelecida a estratégia de elaboração do material biográfico é
importante que haja uma repartição das pessoas em pequenos grupos de modo a
respeitar os limites de tempo e a favorecer ao máximo as interacções. O ideal será
constituir grupos de 3 a 5 pessoas, isto é, entre 4 a 6 grupos. Pessoalmente, circularei
entre os grupos tendo como função o apoio metodológico, o enquadramento global do
trabalho e a possibilidade de assegurar interacções entre diferentes grupos.
A divisão em grupos deve-se fazer segundo determinados "eixos de
investigação", que orientarão a elaboração das biografias educativas e facilitarão,
posteriormente, a análise de conteúdo. Tal opção permite, também, assegurar que os
grupos não se constituirão apenas na base das afinidades pessoais, o que poderia levar a
uma abordagem mais intimista e menos reflexiva. Propõem-se, como "eixos de
investigação", os seguintes (admite-se a hipótese de haver outras propostas, bem como
a existência de vários grupos em torno do mesmo e "eixo de investigação"):
A. Estruturação e ciclos - Entendida como a globalidade de um percurso de vida, será que
a biografia educativa permite detectar etapas, momentos formadores, pontos de ruptura,
fases de transição, ciclos, que modificam e estruturam as relações ao saber e a atitude
face à profissão?
B. Mapa das relações - Quais são as pessoas que influenciam a trajectória de vida, que
desempenham um papel importante no itinerário intelectual ou na concepção da vida
profissional? Estas pessoas acompanham todo o percurso de vida ou intervêm apenas
num dado momento? Elas são sempre reais ou, por vezes, são também imaginárias?
C. Espaços e meios sociais - Cada pessoa constrói-se ao saber de contextos sociais, de
universos simbólicos ligados a organizações (escolares, religiosas, etc.) e a locais (rurais e
urbanos). Este meio físico e social desempenha um papel formador? Quando e como?
Estes espaços de vida forjam a representação que nós temos da realidade? De que modo?
D. Percurso escolar e educação não-formal - O percurso escolar imprime uma certa
orientação à vida de cada um: de que forma é que este processo se articula com outros
espaços educativos (família, grupo de jovens, experiências de vida, etc.)? O que é que
ficou da escola após vários anos de vida social e profissional? Onde é que se faz a
"educação" que não concede diplomas, nem certificados? Qual a relação entre a
educação formal e a educação não-formal?
E. Formação contínua e origem social - O nosso percurso escolar e profissional está ligado
à nossa origem social: de que modo encaramos as acções de formação contínua e/ou de
educação permanente? Quais são as razões que nos levam a querer ultrapassar um nível
de formação de base e a querer ir mais longe do ponto de vista cultural e académico?
Qual é a nossa cultura de base e de que modo evolui o nosso universo cultural?
Trata-se de pistas para desenvolver. O objectivo é orientar a elaboração do
material biográfico tendo presente um dado vector de preocupações, que ajude a
organizar as nossas memórias e forneça um guião para a discrição do nosso percurso de
vida. Não se pode evocar tudo. Tem que se fazer uma selecção: procuremos que ela seja
o menos arbitrário possível. A preocupação de compreender a trajectória biográfica

122
Página 123

dos diferentes itinerários intelectuais, em articulação com itinerários profissionais e


sociais, é evidentemente comum a todos os grupos.

DOCUMENTO 3 / 31 OUT 1986

Uma vez que os diferentes grupos de trabalho começaram, na última sessão de


trabalho, uma reflexão sobre os processos de formação, baseada no método biográfico e
centrado num determinado "eixo de investigação", parece útil avançar algumas ideias no
sentido de definir a estratégia a seguir.
Antes porém, é necessário esclarecer que se trata, no âmbito do PROSALUS 86,
de ilustrar vivencialmente uma abordagem metodológica (Histórias de vida e/ou
biográficas educativas), sem ter a pretensão de realizar um trabalho consistente nesta
área, o qual exige condições de tempo e de implicação pessoal que não se encontram
reunidas. Dito isto, julga-se interessante que os participantes no PROSALUS 86 tenham,
pelo menos, a possibilidade de "sentir" as potencialidades e as dificuldades desta nova
abordagem na área da formação dos adultos.
No seu percurso de trabalho os grupos devem seguir as quatro grandes etapas
delineadas no documento entregue no dia 25 de julho de 1986:
1. Descrição livre das histórias de vida individuais de vida, em relação com o "eixo
de investigação" escolhido.
2. Reorganização, sistematização e arrumação da história de vida, com base nos
momentos importantes (rupturas).
3. Fase de análise dos diversos materiais biográficos, em função do "eixo de
investigação" escolhido.
4. Esforço de teorização e de articulação das conclusões anteriores, com a
pergunta mais vasta: como é que os adultos se formam?
O trabalho no pequeno grupo deve dar origem a um texto de síntese e/ou de
problematização, através do qual seja possível comunicar ao conjunto dos participantes
no PROSALUS as reflexões julgadas mais pertinentes. Do ponto de vista formal, este texto
pode ser construído de vários modos, desde um documento dactilografado até à
elaboração de um acetato ou de outro material audiovisual: o debate em plenário sobre
as histórias de vida terá lugar na próxima sessão de trabalho.
No que diz respeito ao conteúdo, este texto poderá ser mais centrado sobre as
conclusões a que chegou o grupo sobre o "eixo de investigação" que se propôs seguir ou
poderá sublinhar fundamentalmente o sentimento do grupo face a esta metodologia e as
dificuldades / potencialidades encontradas na experimentação desta abordagem.
Como várias vezes foi referido parecer desejável que os grupos estejam atentos,
na sua reflexão, aos conceitos de formação e de saber, e procurem interrogar
criticamente os processos de formação e a relação ao saber:
A formação e a sua articulação com uma "lógica" biográfica.
Os diferentes conflitos (pessoais, institucionais, etc.) e a sua projecção nas
dinâmicas de formação.
A formação como abertura, compreensão ou defesa social.
A procura de formação e a complexidade da sua justificação.
Etc.
123
Página 124
O saber e a sua valorização social (na família, nas comunidades, etc.).
O saber escolar como "referência" obrigatória e a reactivação de
comportamentos escolares (ou anti-escolares).
O saber profissional como referência (ou critério) das aprendizagens.
O saber universitário e o seu carácter socialmente dominante.
A natureza do saber adquirido numa interacção com os outros e com os grupos.
O saber e os saberes.
Trata-se de ideias (temas, sugestões, etc.) que poderão ajudar os grupos a
elaborar uma reflexão teórica sobre os processos de formação e, sobretudo, que poderão
incentivar a transformação (desejada) dos lugares de formação em lugares de
investigação. Só assim será possível que o princípio da apropriação por cada um dos seu
próprio processo de formação comece a ter algum sentido. Só então poderá surgir um
conhecimento novo (e inovador) sobre a formação dos adultos, domínio que tem
conhecido um grande desenvolvimento nas últimas décadas, frequentemente sem os
suportes teóricos e metodológicos mais adequados.

DOCUMENTO 4 - RELATÓRIO DE AVALIÇÃO / 15 JAN 1987

Avalia a forma como decorreu a abordagem das histórias da vida focando


nomeadamente:
* A sua pertinência num projecto como o PROSALUS.
"Acho pertinente a abordagem das histórias de vida num projecto como o
PROSALUS. Só poderemos iniciar um processo de formação do outro, depois de
consciencializar o nosso" (Teresa).
A maioria dos participantes considera pertinente a integração das histórias de
vida num projecto deste tipo. No entanto, três participantes consideram esta pertinência
relativa e um quarto acha que ela não é pertinente.
Algumas pessoas concedem-lhe, contudo, um estatuto de primordial
importância:
"Considero-a de toda a pertinência e corroboro a opinião das que a consideram
a "coluna vertebral" do PROSALUS, pois só a consciência reflexiva sobre a nossa
experiência, a nossa formação, nos permite alterar as representações sobre a mesma e
abandonar o modelo da escolarização" (Tiago).
* A forma como o trabalho foi proposto e dinamizado.
Ainda que alguns participantes pensem que a orientação do trabalho foi
correcta, Há um certo consenso quanto à forma inadequada como esta abordagem foi
proposta e conduzida. A maior parte das pessoas pensa que ela foi bem introduzida do
ponto de vista teórico, mas mal dinamizada, não suscitando a necessária adesão e
dinâmica do grupo.

"A dinamização também falhou pois perdeu-se demasiado tempo nas questões
metodológicas em prejuízo da concretização prática pois, como se verificou no fianl, os
resultados teriam sido mais produtivos e profícuos" (Rita)

124
Página 125

* A sua implicação (ou não-implicação) nesta abordagem.


Com excepção de três participantes, os restantes declararam terem-se implicado
neste trabalho, ainda que a níveis diferentes. Várias pessoas afirmam que a sua
implicação inicial foi algo reduzida, mas que no final perceberam as potencialidades desta
abordagem e gostariam de ter ido mais longe.
"Senti-me bem no grupo em que estive. Motivo de força maior obrigou-me a
faltar um dia, mas lamento essa perda pois penso que foi um dos raros momentos no
PROSALUS em que me senti a trabalhar num grupo com vontade de partilhar algo"
(Pedro).
"[...] Concluo que a formação é um espaço de socialização e está marcada pelos contextos
institucionais, profissionais, sócio-culturais em que cada indivíduo vive! A formação
pertence à pessoa que se forma" (Luisa).

ALGUMAS REFLEXÕES EM TORNO DA UTILIZAÇÃO DAS HISTÓRIAS DE VIDA NO


PROSALUS 86

Nestas reflexões soltas sobre a utilização das histórias de vida no quadro do


PROSALUS 86 importa insistir em três ideias, na medida que permitem desfazer alguns
equívocos que se podem gerar em torno desta abordagem.
Primeira ideia - A narrativa biográfica não se elabora numa perspectiva
cronológica-vivencial, mas através da reconstrução retrospectiva de um dado percurso de
vida, com base na articulação entre os diversos momentos -ruptura.
Segunda ideia - A narrativa biográfica organiza-se a partir de um determinado
eixo de investigação, que impede a "derrapagem" num sentido intimista e assegura um
desenvolvimento de uma reflexão teórica e epistemológica sobre a formação.
Terceira ideia - Nunca se deve esquecer que o objectivo final da abordagem
biográfica é a construção de uma teoria da formação dos adultos, ainda que para lá chegar
seja necessário passar pela narrativa de vida, num primeiro momento, e pela tentativa de
esboçar uma teoria da sua própria formação, num segundo momento.
Estas ideias são importantes, pois permitem-nos situar claramente o nosso
objecto de investigação e a nossa estratégia de formação, "Desactivando" assim certas
reacções críticas à abordagem biográfica.
Uma das críticas inevitáveis às histórias de vida é o seu pendor psicanalítico. Ora,
na abordagem biográfica o adulto nunca é encarado como um indivíduo em permanente
renegociação de conflitos da infância e adolescência, que tem de descobrir no passado as
razões do seu presente. Bem pelo contrário, o que nos interessa é que o indivíduo
construa a sua memória de vida e compreenda as vias que o seu património vivencial lhe
pode abrir: ao fazê-lo no presente ele está a formar-se (emancipar-se) e a projectar-se no
futuro. A biografia elabora-se hoje, num tempo e num espaço concretos, sempre numa
perspectiva retrospectiva

125
Página 126
ANTÓNIO NÓVOA
(da frente para trás e nunca de trás para a frente, perdoe-se-nos a liberdade de
expressão) e com uma preocupação teórica claramente definida.
Aliás, se nos é permitida uma digressão breve pela história da educação,
é útil recordar que as práticas de formação têm sido sistematicamente criticadas
ao longo dos anos, ora pelas suas "tendências psicologizantes", ora pelas suas
"inclinações sociologizantes". A questão não é nova e a sua resolução não é fácil:
já Adolfo Lima afirmava, no princípio do século, que a Pedagogia devia basear-se,
por um lado, na Psicologia e, por outro lado, na Sociologia. E veja-se, por exemplo,
a evolução histórica do movimento institucionalista, umas vezes criticado pelo seu
pendor psicoterapêutico, outras vezes acusado de utilizar a formação para
fomentar uma intervenção social nos espaços profissionais.
O PROSALUS não podia, obviamente, estar imune a este tipo de
referências críticas, sobretudo porque anunciava logo na brochura de lançamento
que o plano de formação seria "atravessado" por duas linhas verticais: a primeira,
baseada no método (auto)biográfico ou das histórias de vida; a segunda, baseada
no modelo da investigação-acção.
Em última análise o que está em jogo neste debate é o espaço científico
de uma ciência do educação que possa servir de referência, não só às práticas
educativas, mas também ao conjunto de acções desenvolvidas no âmbito da
formação profissional o da formação de adultos. Uma ciência da educação que,
balizada pela psicologia e pela sociologia, mas também por outras ciências
(economia, história, matemática, biologia, etc.), seja capaz de conquistar uma
autonomia e uma especificidade próprias.
A inexistência actual desta ciência de educação provoca inevitáveis
sobreposições e "derrapagens", levando muitas pessoas a refugiarem-se numa
visão técnica (ou tecnicista) da formação, valorizando os meios o os instrumentos
da formação em detrimento de uma reflexão sobre o sujeito da formação e sobre
a sua circunstância.
Esta opção manifesta-se, nomeadamente, através:
1. De uma sofisticação técnica dos meios utilizados na maioria das acções
de formação;
2. De uma estratégia de formação centrada quase exclusivamente nos
conteúdos a transmitir e nas técnicas a adquirir;
3. De uma recusa dos formandos a interrogarem-se enquanto pessoas
inseridas em contextos institucionais, preferindo trabalhar em torno do que lhes
é ... exterior.
Trata-se de uma opção inaceitável, na medida em que se desvaloriza o
fundamental de qualquer projecto de formação: as pessoas e os seus contextos.
Toda a formação tem de viver numa tensão difícil, mas profundamente
estimulante, entre uma reflexão mais pessoal sobre o processo de formação
individual e uma reflexão mais social sobre a inserção profissional e o
enquadramento institucional de cada um. Só esta tensão é criadora. Só ela
permitirá abrir novas vias para a formação de adultos.

126
Página 127
AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS

Sabemos que não é um caminho fácil de trilhar, nem para os responsáveis


da formação, nem para os formandos. Mas sabemos também que ele é o único
que, a médio prazo, poderá assegurar uma transformação individual e uma
mudança institucional, razões de ser de qualquer projecto de formação.
É evidente que as teses atrás defendidas ganham ainda maior
consistência e acuidade no âmbito da formação de formadores. De facto, parece
impensável que alguém se possa dedicar à formação dos outros, seja a que título
for (monitor, responsável, coordenador ou gestor da formação, etc.), sem antes
ter reflectido seriamente sobre o seu próprio processo de formação e sem ter
procurado equacionar os problemas institucionais da formação. No domínio da
formação, a utilização da metáfora da "placa de sinalização" - que indica o
caminho sem jamais o ter percorrida - é manifestamente inadequada e até
deontologicamente criticável.
Durante muito tempo, o célebre trocadilho de Bernard Shaw fez escola:
Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina. Pretendia-se na altura, reforçar a
importância do saber (dos conteúdos) no domínio do ensino e da formação. Nos
últimos vinte anos, as tendências dominantes inclinaram-se numa outra direcção:
Quem sabe, faz; quem não sabe, mas domina os procedimentos pedagógicos,
ensina. Trata-se de uma fase de valorização das Ciências da Educação que, por
vezes, redundou num certo menosprezo pelos conteúdos académicos e científicos
de várias disciplinas: o essencial centrava-se no processo ensino-aprendizagem.
Hoje em dia, ganha cada vez mais força um novo paradigma: Quem sabe, faz;
quem compreende ensina. É esta compreensão, no seu sentido mais profundo -
compreensão dos saberes e dos processos, compreensão dos outros e de si
próprio, compreensão das vivências pessoais e dos contextos institucionais -, que
caracteriza a profissão de formador, sem dúvida, uma das profissões mais difíceis,
mas também das mais apaixonantes, das sociedades contemporâneas (14).
Insista-se, por último, no conceito que fundamentou toda a experiência
levada a cabo: a auto-formação participada ou interagida. Dito de outro modo, a
valorização da ideia que toda a formação é um processo de apropriação individual,
que se faz numa permanente interacção e confrontação com os outros (com os
grupos, com as comunidades).
A abordagem das histórias de vida ou do método (auto)biográfico no
âmbito da PROSALUS 86 permitiu-nos confirmar alguns dos princípios enunciados
aquando da concepção do projecto e da estruturação do plano de formação. A
reflexão produzida pelos participantes e a preocupação com a elaboração de
princípios teóricos orientadores da formação de adultos conduziram-nos a
avançar com novos princípios.

(14) -Ver a este propósito o artigo de Lee S. SHULMAN: "Knowledge Growth in Teaching",
Educational Researcher, Vol. 15, n.º 2, Fevereiro de 1986.

127
Página 128

É este esforço de reflexão (inacabada) que procuraremos transmitir de seguida,


através da sistematização de alguns princípios que, a nosso ver, devem servir de
referência a qualquer projecto de formação de adultos, quer seja no quadro da
formação profissional, quer seja no âmbito da formação de formadores.
1.º princípio
O adulto em situação de formação é portador de uma história de vida e de uma
experiência profissional; as suas vivências e os contextos sociais, culturais e
institucionais em que as realizou são fundamentais para perceber o seu processo
de formação. Mais importante do que pensar em formar este adulto é reflectir
sobro o modo como cio próprio se forma, isto é, o modo como ele se apropria do
seu património vivencial através de uma dinâmica de "compreensão
retrospectiva".
2.º princípio
A formação é sempre um processo de transformação individual, na tripla
dimensão do saber (conhecimentos), do saber-fazer (capacidades) e do saber-ser
(atitudes).
Este objectivo só será atingido se:
•Houver uma grande implicação do sujeito em formação, de modo a ser
estimulada uma estratégia de auto-formação a única que pode assegurar
resultados a longo prazo, pois "ninguém forma ninguém" e... "a formação
pertence, de facto, a quem se forma".
•Esta estratégia foi encarada numa perspectiva de auto-formação participado, e
não numa óptica isolacionista, pois a interacção com o grupo (formandos e
formadores) é um elemento estruturante e profundamente enriquecedor do
processo de formação individual.
•For assegurada uma participação alargada dos formandos na concepção e
implementação do projecto de formação, bem como uma interacção constante e
uma cooperação no seio da equipa de trabalho.
3.º princípio
A formação é sempre um processo de mudança institucional, devendo por isso
estar intimamente articulada com as instituições onde os formandos exercem a
sua actividade profissional.
Este objectivo só será atingido se:
•Houver uma grande implicação das instituições na concepção, implementação e
avaliação do projecto de formação.
•For celebrado uma espécie de contrato de formação entre as três partes
interessadas (equipa de formação, formandos e instituições), que defina o mais
claramente possível o contributo de cada um dos parceiros e estipule os
compromissos a assumir antes, durante e após a realização do projecto de
formação.

128
Página 129
AS HISTÓRIAS DE VIDA NO PROJECTO PROSALUS

•For desenvolvida uma estratégia de formação em alternância, que viabilize uma


ligação estrutural entre os espaços de formação e de trabalho; importa assegurar que
esta alternância seja estrutural, e não apenas justaposta ou associativa, pois só assim será
possível uma imbricação efectiva entre o "aprender" e o "fazer".
•A formação for entendida, não só como um contributo futuro para uma
mudança institucional, mas também como um elemento actuante (no presente) das
dinâmicas institucionais.
•O projecto de formação assumir sem equívocos a dimensão social, que está
presente (quer queiramos, quer não!) em toda e qualquer acção de formação de adultos.
4.º princípio
Formar não é ensinar às pessoas determinados conteúdos, mas sim trabalhar
colectivamente em torno da resolução de problemas. A formação faz-se na "produção",
e não no "consumo", do saber.
Este objectivo implica que se procurem levar à prática três conceitos centrais da
formação de adultos:
•Formação-Acção - A formação deve organizar-se numa tensão permanente
entre a reflexão e a intervenção, pois o saber não é independente dos instrumentos
utilizados na sua elaboração e das práticas sociais que se encontram na sua génese. Por
outro lado, é fundamental que se estipulem as potencialidades formadoras das diversas
actividades profissionais.
•Formação-Investigação - A formação deve basear-se no desenvolvimento de
um projecto de investigação (individual e/ou institucional); esta opção permite a junção
de duas operações intimamente ligadas pela mesma matéria-prima (o saber), mas que
tradicionalmente têm estado separadas: a formação socialmente reconhecida faz-se em
centros especializados e a investigação cientificamente reconhecida faz-se em
laboratórios próprios.
•Formação-Inovação - Se a formação implica uma transformação individual e
uma mudança institucional, então ela deve realizar-se através de um empenho dos
formandos num processo de inovação, isto é, num processo de procura de soluções
alternativas para a resolução dos problemas; a formação deve ser encarada como uma
função integradora, institucionalmente ligada à mudança.
5.º princípio
A formação deve ter um cariz essencialmente estratégico, preocupando-se em
desenvolver nos formandos as competências necessárias para mobilizarem em situações
concretas os recursos teóricos e técnicos adquiridos durante a formação.
A consecução deste objectivo obriga a:

129
Página 130

•Definir de forma rigorosa os objectivos da formação, formulando-os, por um


lado, em termos das competências que os formandos terão de mobilizar e, por
outro lado, em termos das mudanças que se desejam no plano profissional e/ou
institucional.

•Conceber um percurso de formação, estruturado e organizado em função dos


objectivos acima definidos, que, sem restringir as liberdades e os ritmos
individuais, dê consistência a uma situação colectiva de formação.

•Destrinçar claramente os diferentes níveis de avaliação (a avaliação dos


formandos em situação de formação, a avaliação dos formandos em situação de
trabalho e a avaliação do projecto de formação), construindo os instrumentos
adequados à avaliação rigorosa de cada um destes níveis.

6.º principio

E não nos esqueçamos nunca que, como dizia Sartre, o homem caracteriza-se,
sobretudo, pela capacidade de ultrapassar as situações, pelo que consegue fazer
com que os outros fizeram dele.

A formação tem de passar por aqui...

130
Página 131

X
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

PIERRE DOMINICÉ
(Universidade de Genebra)

Texto publicado em Pratiques du récit de vie et


théories de la formation (coord. De Mattias FINGER
e Christine JOSSO), Genebra, Caderno n.º 44 da
Secção das Ciências da Educação da Faculdade de
Psicologia e das Ciências da Educação da
Universidade de Genebra, Maio de 1985, pp.99-
122.’’’

131
132
Página 133

As Ciências da Educação? Espaço institucional reconhecido recentemente no


mundo académico. Conjunto de títulos e de diplomas universitários, frequentados por um
número considerável de profissionais pertencentes a um universo díspar, onde
predominam os campos escolar, social e da enfermagem. Esta expressão mal definida
esconde a sua ambiguidade por trás das disciplinas intelectuais mais consideradas que
solicita. A sociologia ou, de modo mais evidente, a psicologia, apoiam a tal ponto a
reflexão educativa, que é inevitável que nos perguntemos se existem objectos próprios
das ciências da educação ou se simplesmente a educação constitui o objecto comum de
trabalhos pertencentes a diferentes disciplinas.
Esta vasta questão, frequentemente retomada, dá lugar a pontos de vista
sempre divergentes. Abordamo-la aqui de frente, porque ela nos interpelou
constantemente ao longo dos nossos esforços recentes de investigação sobre a biografia
educativa. A compreensão dos processos de formação faz-nos voltar frequentemente à
definição do termo "formação". E quando procuramos as articulações entre contextos ou
momentos educativos e este processo de formação, tropeçamos de igual modo na
inexistência de um significado preciso dos conceitos mais usados. Por outras palavras,
constatámos que as noções-chave nas quais se baseiam as ciências da educação são,
antes de mais, definidas pelo seu uso organizacional ou disciplinar. Os sociólogos da
educação debruçam-se essencialmente sobre o campo escolar. Os economistas
trabalham sobretudo nas despesas consagradas à educação. A formação corresponde a
medidas legislativas que suscitam o apoio das ciências humanas ou sociais, para assegurar
o seu bom funcionamento. Por consequência, como caracterizar processos que tentam
identificar a educação através da complexidade de um percurso de vida? Que sentido
atribuir ao termo "formação", para que este designe uma globalidade, na qual a marcha
individual não deve dissociar-se de aventuras colectivas? A nossa contribuição, que
procura justamente clarificar o que encobre a formação de adultos empenhados em
programas de formação contínua, pertence às ciências da educação? Ou pelo contrário,
será preciso considerar que se afasta delas, na medida em que a dimensão educativa das
biografias analisadas não corresponde ao que é objecto do leque de abordagens
científicas das ciências da educação? Por exemplo, é grande a tentação de transmitir a
subtileza do processo

133
Página 134
PIERRE DOMINICÉ
de formação que sobressai de uma história de vida sob a forma de um texto literário.
Confrontámo-nos também com a ideia de uma ciência da educação quando,
procurando obter um subsídio de investigação compreendemos que a única garantia
científica de um projecto, era de ordem metodológica. É preciso que numa investigação
se disponham de dados que permitam uma contabilidade expressa em números? A
narrativa escrita de vida que desencadeamos através da nossa abordagem biográfica tem
um valor instrumental que conduz a resultados incontestáveis? O critério de validade não
tende a privilegiar as técnicas, subvalorizando a pertinência de um método fixado em
função do próprio objecto da investigação? De maneira geral, as ambições científicas
inerentes ao projecto das ciências da educação não tendem a rejeitar toda e qualquer
reflexão que não resulte de uma abordagem experimental? Além do mais, a preocupação
com a legitimidade académica resulta na desqualificação de uma diversidade de
compreensão do campo educativo. Os tacteamentos inevitáveis nas nossas fases de
exploração serão assim sinal de um método com pouca credibilidade? Poderemos
considerar que uma investigação científica se inscreve num processo, cujo benefício não
se limita ao produto final formalizado no momento do balanço organizacional?
A terceira razão que temos para nos interrogarmos sobre as ciências da educação
é de ordem pragmática. Em que é que a nossa abordagem biográfica inspira uma visão
nova da educação ou propõe uma outra concepção ou outros modelos da acção
educativa? A identificação dos processos de formação elucida-nos sobre as condições
formadoras de um programa ou sobre os momentos favoráveis de participação numa
actividade de formação contínua? Tendo as ciências da educação por objectivo a
rentabilidade ou a qualidade da acção educativa, não é inútil perguntarmo-nos quais são
as mudanças que um projecto de investigação tenta introduzir. Ora, segundo uma
perspectiva de educação permanente que, juntamente com Gaston Pineau (1983),
considerámos a razão fundamental do nosso interesse pela abordagem biográfica, a
nossa análise do material recolhida incita-nos a uma desmistificação de objectivos
educativos demasiado ambiciosos. Perceber mais explicitamente os efeitos da
escolaridade no decurso da vida ou compreender como os tempos de formação contínua
se inscrevem num percurso profissional, conduz a uma lucidez pedagógica que a
preocupação única de realização de um programa faz perder de vista. De resto, numa
óptica de educação permanente, a auto-formação constitui muito mais a finalidade da
acção educativa do que os seus próprios objectivos. Por fim, a importância atribuída à
singularidade do percurso de vida, obriga-nos a desconfiar de todo e qualquer modelo
que reduz os fins da educação a normas comuns.
Tendo retomado a nossa abordagem biográfica após um tempo de paragem,
vamos neste texto tentar exprimir o objecto da nossa investigação, sobretudo à luz das
novas contribuições que para nós constituíram o trabalho com os estudantes no decurso
do ano académico de 1984-1985, Esta nova fase de experimentação permitiu-nos
repensar certas conclusões dos anos anteriores. E abriu-nos de igual modo para outras
interrogações. Não é surpreendente que, ao trabalharmos a noção de processo,
valorizemos do mesmo modo a história de um percurso,

134
Página 135
reconhecendo que a sua complexidade se dá a conhecer ao mesmo tempo que se
desenvolve.
Estruturaremos o nosso discurso segundo três direcções principais: teórica,
metodológica e pragmática. Esforçar-nos-emos em cada momento por situar o estado da
nossa reflexão numa espécie de balanço prospectivo que dê simultaneamente conta do
caminho percorrido e das aberturas futuras. Antes de pormenorizarmos cada uma destas
três partes, queremos sublinhar que este ano universitário foi marcado por uma
colaboração estreita com Christine Josso e Matthias Finger. A nossa reflexão actual é
largamente tributária da riqueza das suas contribuições, graças ao diálogo ininterrupto
que mantivemos ao longo de um ensino tornado comum.
1. UM MESMO OBJECTO DE INVESTIGAÇÃO
Depois de vários anos, clarifica-se e confirma-se o nosso objecto de investigação
A interrogação sobre o processo de formação revela-se infinitamente mais rica e
complexa do que havíamos imaginado. Preocupados, desde o princípio por alcançar uma
teoria da formação, damo-nos conta da amplitude desta tarefa. Os nossos
balbuciamentos conceptuais, assim como os tacteamentos das nossas explorações
biográficas, devem ser lidos no desenvolvimento de uma reflexão que se constrói
progressivamente. Uma reflexão que se alarga incessantemente, sobretudo com a ajuda
das contribuições de uma equipa de trabalho e com o encorajamento de uma rede
internacional de investigação-formação. A Educação dos Adultos, tomada no sentido lato
de um campo diversificado de práticas dirigidas a populações de idade pós-escolar, foi
objecto de poucos trabalhos de investigação. As referências teóricas mais
frequentemente utilizadas dizem respeito às funções da educação dos adultos, sobretudo
à sua função económica no que se refere ao aperfeiçoamento profissional. A dinâmica da
acção educativa, as características das populações que nela participam, as suas
expectativas, a especificidade das suas aprendizagens, são pouco analisadas. Além do
mais, é atribuída uma importância considerável aos suportes técnicos; e de tal forma que
o debate pedagógico se resume frequentemente à escolha dos instrumentos de trabalhos
apropriados para as populações adultas. Por consequência, é difícil fazer progressos. São
imensas as lacunas teóricas nas quais tropeça o investigador. Para mais, quando se dedica
a um esforço de aprofundamento teórico, expõe-se à crítica ou ao desprezo dos seus
colegas ou associados para quem a implantação de novas acções educativas ou a resposta
às exigências sociais actuais do aperfeiçoamento ou da reciclagem são mais importantes
que a compreensão dos processos em jogo nestas práticas.
Não imaginávamos que deslocando o objecto da avaliação pedagógica para os
processos de aquisição, bem como para as suas repercussões formadoras, iríamos
desembocar num domínio de interrogação tão vasto. Operando uma distinção entre os
termos educação e formação, que procurámos articular um com o outro, não
adivinhávamos que por trás das definições correntes se escondia um tão grande vazio
teórico. Como avançar numa reflexão sobre o campo da educação dos adultos, se o
sentido de termos-chave como educação, adulto e formação

135
Página 136
PIERRE DOMINICÉ
permanece tão vago? Debruçando-nos sobre a noção de processo de formação, temos
além disso consciência de haver aberto um domínio de investigação que, para resultar
numa contribuição significativa, só pode progredir muito lentamente. Porém, adquirimos
a convicção de que esse trabalho teórico é central. Situa-se numa encruzilhada. Com
efeito, diz respeito tanto à psicologia do desenvolvimento como às teorias da
aprendizagem ou à análise sócio-cultural dos contextos educativos e dos modos de
transmissão ou de comunicação. Para mais, a compreensão dos processos de formação,
entendidos na sua globalidade, obriga-nos a uma descentração em relação a uma visão
da educação reduzida ao ensino. Já não se trata de avaliar um curso, de medir os efeitos
de uma sessão ou de identificar as aprendizagens devidas a um tempo de prática
profissional. São as interacções, as articulações, os equilíbrios, enquanto estabilidade
provisória de um conjunto, que vão indicar-nos pistas de reflexão e sugerir-nos hipóteses
quanto à maneira como se desenha, ao sabor de um dado percurso de vida, aquilo em
que cada um se torna.
Interrogações sempre novas
A escolha de uma instrumentação biográfica levou-nos às heranças e às
interrogações mais actuais do domínio intelectual das histórias de vida. Poderíamos ter
sido tentados a deslizar para uma corrente de pensamento disciplinar. Por vários motivos,
evitámo-lo. O nosso objecto tinha a ver com a educação. Por razões tanto de método
como epistemológicas, havíamos optado por uma investigação participativa. Partíamos
da ideia de que a abordagem biográfica constituía um instrumento não só de investigação,
mas também de formação. É no entanto inegável que aproveitámos muito com a
contribuição de trabalhos contemporâneos, tais como os de D. Bertaux,de M. Catani e
sobretudo de F. Ferrarotti (1983). A diversidade disciplinar das utilizações da história de
vida, abriu-nos um campo conceptual, sem por isso nos fornecer o quadro de reflexão de
que precisávamos. Já não se tratava, como é geralmente o caso, de ligar a psicanálise e a
educação ou a antropologia e a educação, mas de encontrar propostas teóricas
pertinentes para esclarecer o nosso material biográfico e apoiar as nossas hipóteses de
investigação. Embora os nossos esforços pudessem ter sido certamente conduzidos em
direcção a uma reflexão antropológica ou sociológica, convinha utilizar referências
conceptuais próprias destas disciplinas, mas tendo sempre em vista os nossos próprios
fins teóricos. Os conceitos de autonomia, identidade, família de origem e cursus escolar
não são estranhos a estas utilizações de outras disciplinas. E algumas das referências
centrais da psicanálise ou da psicoterapia estavam também presentes no nosso espírito,
virado para as abordagens biográficas. Mencionemos a título de exemplo as noções de
transferência, projecção, censura. Dito de outro modo, a elaboração enquanto
tratamento dos dados biográficos encontra-se inserida num universo conceptual que
influencia inegavelmente a nossa abordagem, sem por isso reduzir a complexidade dos
diversos sentidos a dor aos termos que designam o nosso campo de investigação.
Neste aspecto, a noção de processo exemplifica bem as dificuldades
encontradas. Por um lado, embora frequentemente utilizada, nunca é claramente
definida. Os dicionários limitam-se a uma definição geral. Autores como Piaget dão-lhe

136
Página 137
O QUE A VIDA LHES ENSINOU
um sentido no interior de um código representado por um vocabulário próprio. Uma
utilização exterior exige que se lhe acrescente uma série de outros termos, e até que se
adopte finalmente o modelo conceptual proposto. Ligada classicamente à teoria dos
sistemas, a noção de processo não deve, no entanto, obrigar-nos a aderira a esta corrente
de pensamento. Para definirmos o que entendemos por processo, convém situar-nos no
eixo do nosso objecto de investigação. Mas o próprio objecto vai precisar-se com uma
maior clareza dos termos utilizados. Temos portanto de aceitar trabalhar o material de
investigação e até o próprio percurso de pesquisa numa perspectiva de compreensão
progressiva, enriquecendo constantemente o que é investigado. O objecto não está
constituído à partida. As hipóteses não são as de origem. Não há para provar nada que
tenha sido estabelecido à partida. O objecto de investigação reformula-se com a ajuda de
novas interrogações. É o fruto de uma construção e inscreve-se ele próprio no movimento
da reflexão.
Quando modificamos a nossa perspectiva da avaliação, passando do produto
para o processo de formação, queríamos simplesmente indicar que a mudança do rumo
da educação, dependia de uma génese inscrita na história do adulto. Depois, à força de
trabalhar as primeiras biografias educativas, demo-nos conta de que só era possível
referenciar alguns traços desta história. O processo de formação não era identificável de
per si. Só se davam a conhecer processos mais específicos, com o sentido de linhas de
força, de componentes, de traços que dominam uma história de vida. Em seguida,
aprofundando esta ideia de processos parciais, formulamos a hipótese de uma interacção
entre estes mini-processos. O processo de formação tornou-se então numa espécie de
lugar de confluência de processas específicos, que interagem uns com os outros para se
influenciarem e se reforçarem, de tal maneira que a dinâmica designada pela noção de
processo devia ser considerada como um conjunto em movimento. A complexidade deste
conjunto tem igualmente relação com o que depois nos pareceu realçar temporalidades
diferentes. A bem dizer, um modelo teórico prévio não nos teria servido de nada. Com
efeito, teríamos procurado estudar os nossos dados, utilizando este modelo para os
tornar coerentes. Preferimos constatar que os nossos dados biográficos em si,
conduziram a uma explicitação progressiva de uma noção proposta à partida, mais a título
de exploração do que de demonstração.
No decurso desta mesma investigação, apercebemo-nos de que se o processo
era objecto da investigação, permitindo ao mesmo tempo a descrição de um percurso de
investigação, havia além disso outros processos a ter em conta. O de cada um investido
neste percurso. O do grupo que colaborou na elaboração e análise das biografias. Esta
noção de processo ajudou-nos assim a estar atentos ao que se passava na investigação e
a levar a sério os mecanismos próprios ao seu desenvolvimento, enquanto parte
integrante da clarificação do seu objecto.

A cada história de vida, o seu processo de formação


O desenrolar da investigação teve outros efeitos conceptuais. Estávamos bem
conscientes ao designar por processo de formação um conjunto ou uma globalidade
própria da vida de cada adulto. As ideias defendidas pelos estudantes por

137
Página 138
PIERRE DOMINICIÉ
ocasião da abordagem biográfica, confirmaram a nossa ideia de que o conceito de
formação era indissociável desta globalidade. Que dizem eles? Querem unir "lógico e
subjectivo?, "afectivo e intelectual". Desejam ligar o seu estatuto profissional ao facto de
serem mulheres ou homens, amantes ou pais, cidadãos e viajantes. Esta globalidade é
também feita do que foram e está ligada ao que pensam viver e por vezes ao projecto de
futuro que imaginam. O imaginário nem sempre se acha ausente da narrativa. A
recomposição da vida, mesmo vista de um ângulo parcial, dá cor a esta globalidade,
embelezando-a ou, pelo contrário, emprestando-lhe uma característica excessivamente
dramática. Esta globalidade pertence portanto ao sujeito que fala. Não é constituída por
um conjunto coerente assente numa base factual. Claro que se trata de uma
interpretação pessoal da formação, mas esta interpretação assenta em laços ou
articulações, ao contrário de muitas investigações, que se esforçam sobretudo por
controlar uma variável ou por isolar certos elementos. O facto de nos centrarmos na
formação leva-nos a uma reacção contra a dispersão educativa à qual nos habituou a
prática escolar prolongada com populações adultas. A história de formação de cada um é
uma história de vida. Não pode ser analisada através de categorias que dissociam as
partes do todo. Por isso, o material biográfico não é usual na investigação em ciências
humanas. E é também por isso que se torna tão difícil tratá-lo respeitando o seu
conteúdo, visto que os estudantes confirmam constantemente a impressão de que a
análise do texto o esvazia de uma boa parte da sua vida.
As biografias educativas acentuam as diferenças entre histórias de vida de
pessoas da mesma idade, da mesma origem social ou da mesma profissão. Onde os
especialistas das ciências sociais reconhecem tipos, grupos ou compleições, os autores
das biografias educativas sublinham a singularidade de um caminho. A formação de um
adulto não pertence a ninguém senão a ele próprio. Não se explica em referência a um
modelo. A noção de processo tem portanto a ver com a especificidade de cada uma destas
histórias. Contrariamente ao que tínhamos imaginado, e até proposto num texto anterior,
o processo de formação não pode ser apreendido através de mecanismos que se
aplicariam ao conjunto de uma dada população. Deixámos de considerar como
componentes comuns de um processo de formação mais geral, o que anteriormente
designávamos por processos específicos, entendendo-se antes como traços comuns ou
lugares de parentesco entre processos cuja especificidade diz respeito à singularidade e
ao carácter único da história de uma vida. A noção de processo é uma maneira de
acentuar as diferenças, em vez de sublinhar as analogias de funcionamento. Quaisquer
que sejam os parâmetros comuns - a família de origem, a escola, os grupos de
adolescentes, a formação profissional, o exercício do trabalho - a biografia educativa põe
em relevo processos de formação próprios de cada narrativa da história de vida. O
processo não é, portanto, uma medida comum de formações diferentes. Enquanto noção,
exprime estas diferenças.
A nossa primeira intenção consistia em reunir diferenças individuais para
distinguir perfis comuns. Devia-se a várias razões, sobretudo à função da teoria no campo
pedagógico. Sem negar a influência dos modelos científicos que regem a investigação em
ciências sociais, sabemos que a nossa reflexão sobre os processos tem origem num
problema pedagógico: como medir os efeitos de uma acção educativa para lhe assegurar
uma maior eficácia? Na avaliação da obtenção

138
Página 139
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

de objectivos educativos: como melhorar a qualidade dos meios pedagógicos de que


dispomos para os alcançar? Debruçando-nos posteriormente sobre o processo de
formação, conservávamos a intenção de compreender melhor as condições formadoras
da acção educativa. Queríamos chegar a directivas pedagógicas; e permitir aos
formadores que alimentassem menos ilusões sobre os efeitos da sua acção educativa.
Levar em conta a exigência e o funcionamento do adulto em situação de formação,
representavam dois campos de aplicação da nossa investigação. Ora, depois de vários
anos de exploração biográfica e de reflexão constante sobre as narrativas de vida,
começamos a perceber que a finalidade pedagógica prejudica o trabalho intelectual
efectuado em ciências da educação, porque tem tendência a operacionalizar questões
teóricas, mesmo antes de estas serem formuladas. Ao longo da nossa investigação
durante estes últimos anos, pensámos nas consequências a tirar com o objectivo de
elaborar uma pedagogia adequada aos públicos adultos. Esforçámo-nos por alimentar
com os resultados desta investigação o discurso produzido pelos formadores. E depois,
progressivamente, tornou-se-nos evidente que a maioria das questões pedagógicas era
organizacional antes de ser teórica: que a aplicação de modelos pedagógicos na acção
educativa se fazia frequentemente, não só desprezando os contextos de intervenção, mas
também ignorando as pessoas a quem esta acção se dirigia. A abordagem da biografia
educativa conduziu-nos assim à constatação de que não existia uma hipotética boa
pedagogia, mas sim pedagogos na vida de cada um e situações pedagógicas marcadas
pela dinâmica própria que se instala entre os que a vivem. Não existiam processos de
formação a identificar com o objectivo de estruturar uma pedagogia. Mas sim pedagogos
cuja influência é inegável no decurso da história de vida e cuja lembrança não tem a ver
com uma pedagogia, mas sim com o que representaram para o futuro de outros.
Pedagogias de pedagogos e não uma pedagogia para pedagogos.

A verdade não passa pela generalização


Os trabalhos sobre o desenvolvimento do adulto haviam-nos de igual modo
conduzido numa direcção normativa. Conservando pouco apreço por estudos que se
limitam a resumos empíricos de comportamentos e de papéis sociais com o objectivo de
situarem os traços característicos dos adultos ou proporem acções educativas adaptadas
às suas expectativas dominantes, procurávamos pontos de referência que nos
permitissem situar o adulto no seu desenvolvimento. Os esquemas propostos por E.
Erikson ou D. Levinson interessavam-nos vivamente, porque forneciam um contexto
histórico à relação estabelecida num dado momento entre um programa educativo e um
cliente adulto. Pensávamos prolongar a sua reflexão, debruçando-nos sobre os processos
de formação. Continuando a referir-nos a estes autores, compreendemos hoje que a
dinâmica dos processos é mais complexa. Quaisquer que sejam os pontos de referência
de etapas, de ciclos ou de fases propostos, a reconstrução da sua dinâmica só pode fazer-
se através do exame atento de uma vida, com a ajuda da sua narrativa ou reunindo os
traços dispersos da sua história. Não existem somente várias temporalidades; a das fases
mais cronológicas e a dos estádios mais genéticos. Há uma singularidade de cada história
de vida, de cada desenvolvimento, que impede que se considere verdadeira toda e
qualquer generalidade que vise

139
Página 140
PIERRE DOMINICIÉ

a economia desta singularidade. Num domínio semelhante, o da formação dos doentes,


os pontos de referência fornecidos por E. Kübler-Ross a propósito dos doentes no fim da
vida, podem aplicar-se, como o fizeram J. Ph. Assal e R. Gfeiler (1983) aos doentes
diabéticos e a outras categorias de pacientes, nomeadamente aos doentes crónicos. Não
é ir para além do conveniente reconstruir com cada paciente a história da sua relação
com a doença. O processo que atravessa, por exemplo da negação à revolta, é-lhe
próprio. Nunca reproduz verdadeiramente a conduta de outrém, e pode a qualquer
momento contradizer o que o médico assistente prediz ou prevê em relação ao seu
comportamento, para o ajudar a melhor o assumir.
De certa forma, a nossa investigação levou-nos para fora do campo educativo
propriamente dito. A história de vida forneceu-nos uma outra visão, a do observador
exterior que, no entanto, viveu do interior tudo o que evoca. Tomando a formação a sério,
fomos conduzidos a levar em conta tudo o que numa vida não é realçado pela pedagogia.
Aqui não se trata do vivido, no sentido que lhe dão os que procuram evitá-lo, da efusão
subjectiva que se espalha nos grupos de encontro ou de registos afectivos anulados num
raciocínio. A história de vida é outra maneira de considerar a educação. Já não se trata de
aproximar a educação da vida, como nas perspectivas da educação nova ou da pedagogia
activa, mas de considerar a vida como o espaço da educação. A história de vida passa pela
família. É marcada pela escola. Orienta-se para uma formação profissional, e em
consequência beneficia de tempos de formação contínua. A educação é assim feita de
momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida. Este recurso biográfico
não é proposto para ir contra uma suposta objectividade. Não se opõe ao silêncio do
sujeito. É antes de mais destinado a compreender o que sucede à educação nos processos
de formação dos adultos, e em consequência a acrescentar momentos educativos ao
contexto histórico mais vasto do seu significado.
Esta atenção dada à singularidade dos processos, que se prende com a
especificidade de cada história de vida, foi-nos também sugerida pela impossibilidade que
encontrámos de conseguir que uma equipa fixasse um único objecto de investigação.
Apesar da redacção de pedidos oficiais com vista a financiamentos exteriores à
Universidade, e de discussões constantes e de numerosas regulações quanto ao
andamento do projecto, nunca o objecto da investigação foi comum. Cada um pôde e
soube inscrever a sua interrogação própria em volta de questões teóricas próximas umas
das outras. Durante muito tempo acreditámos que estas diferenças se deviam à falta de
clareza do projecto, ou que este equívoco resultava da ausência de referências comuns.
Por fim, tivemos de admitir que não era crível considerar que investigadores com histórias
intelectuais diferentes, sensibilidades e projectos diferentes, trabalhassem no mesmo
objecto. Vários investigadores podem trabalhar objectos definidos por terceiros, mas na
medida em que têm acesso à formulação de um projecto, não é possível que este seja o
mesmo para todos. As questões que cada um procura resolver pertencem à sua história.
Existem semelhanças biográficas. Mas, assim como estas histórias não podem tornar-se
comuns, também as questões teóricas postas ficarão sempre marcadas pela formulação
de quem as apresenta. No seio do nosso grupo de investigação, há uma mesma
investigação sobre os processos de formação

140
Página 141
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

e uma mesma utilização da abordagem biográfica, porque, de qualquer maneira, cada um


sabe que no seio desta investigação o seu ponto de vista tem todo o direito a existir e que
o seu questionamento lhe é próprio. O material de interpretação da investigação
permanece quase sempre individual, o que no entanto não significa que não haja uma
linguagem comum assim como uma troca constante sobre a complementaridade das
posições defendidas.

II CEM VEZES NA FORJA...


Para salientamos os efeitos em e podermos atribuí-los a um determinado
programa educativo, temos de nos apoiar em dados e provar o que afirmamos. Os
resultados obtidos devem mostrar uma evolução, um contraste significativo ou uma
mudança. Compreender os processos de formação sobre os quais estas transformações
vão ter repercussões, implica um trabalho reflexivo de outra ordem ou de outra natureza.
Nenhum método de investigação tem valor por si só. Os instrumentos usados só têm
utilidade em função do objecto de investigação visado. Ora, realizar um balanço no fim
de uma acção de curta duração não constitui uma tarefa idêntica à de em referenciar
algumas das características dos processos através dos quais os adultos se formam.
Portanto, no decorrer da nossa investigação, foi-nos necessário encontrar meios de
investigação, construir um método que conviesse ao nosso objecto, descobrir
modalidades de análise de um material de investigação. Os limites universitários são
evidentes neste domínio. Isso não podemos negá-lo. Uma investigação só merece o título
de científica na medida em que o seu suporte experimental a conduz a apresentar dados
fidedignos, cuja verificação pode ser operada por uma terceira pessoa. Esta concepção da
investigação representa a norma de referência dos meios científicos que atribuem
subsídios de investigação. Tendo feito uma tese de doutoramento, apresentado pedidos
de subsídio ao Fundo nacional suíço da investigação científica e estabelecido um dossier
com vista à nomeação como professor universitário, tive, a propósito da abordagem
biográfica, bastantes dificuldades em libertar-me de uma concepção metodológica
centrada na prova.

Os dados e a sua análise

Visámos um dado número de biografias que nos permitissem constatações


representativas. Depois de várias tentativas, imaginámos uma fórmula de protocolo que
reagrupasse os dados mais significativos do nosso material biográfico escrito, segundo
temas definidos após várias leituras de um conjunto de biografias educativas. De modo a
empreendermos a análise deste material, distinguimos categorias que permitissem
comparações e sublinhassem tendências gerais. Sabendo que provavelmente não nos
seria possível apoiar-nos em fórmulas estatísticas que justificassem um tratamento
informático dos dados, imaginávamos que a acumulação das biografias educativas
obtidas todos os anos, daria às nossas hipóteses ou à nossa reflexão uma validade mais
real, bem como um aspecto mais convincente às nossas afirmações. Sem negar o facto de
que a experiência de investigação neste domínio nos foi útil e de que um número mais
elevado de biografias facilita o aparecimento de novas pistas de investigação,

141
Página 142
PIERRE DOMINICÉ
reconhecemos hoje que a amplitude do nosso material não oferece qualquer garantia. A
formulação em termos de protocolo ajudou-nos a apropriar-nos das narrativas
biográficas. As categorias que escolhemos permitiram-nos extrair dos dados biográficos
uma compreensão parcial dos processos de formação. Mas a análise das narrativas
biográficas permanece problemática. Há a que os próprios autores podem realizar, e a
dos investigadores, que inscrevem todas as narrativas novas no prolongamento das suas
análises anteriores.
Entre as questões que ainda não foram resolvidas, mencionemos a da redução
ou não da narrativa, assim como das estratégicas possíveis de comparação de material
biográfico construído de maneira diferente. Uma leitura temática que por exemplo se
interesse pelo impacto da escolaridade primária ou secundária no processo de formação,
pode justificar uma concentração em partes da narrativa, e conduzir a comparações. Os
dados biográficos prestam-se a diversos usos para o investigador que, em volta da noção
de processo, se interessa de um modo mais geral pela formação dos adultos. Todavia,
quando se trata de identificar processos, de assumir a biografia na sua globalidade escrita
e de melhor compreender como cada um se tornou no que é, então é difícil estabelecer
com exactidão os modos de análise. No entanto, no decorrer dos anos, conseguimos
libertar-nos dos modelos do método experimental, aceitando que a pertinência da análise
seja mais fornecida pelo objecto de investigação do que pelo rigor de um método de
tratamento de dados. Por outras palavras, a clarificação do que o investigador quer
compreender ou as questões que os estudantes se põem sobre a própria formação,
constituem a chave dos procedimentos de análise. Apesar de demasiadas cedências às
normas de quantificação, foi esta a razão pela qual progredimos na análise do material
biográfico. A explicitação do nosso objecto de investigação foi tornada possível pelas
nossas análises anteriores. As nossas análises deram-nos oportunidade de melhor
reformular o nosso objecto de investigação. Num primeiro tempo, a noção de processo
de formação era proposta quase intuitivamente. Depois, de etapa em etapa, num
movimento alternativo de elaboração e de tratamento biográfico, fomos levados a
clarificar algumas pistas teóricas, e em seguida a afiná-las, entrando ao mesmo tempo na
complexidade crescente do seu esclarecimento. A metodologia segue aqui também um
processo de elaboração, ao longo do desenrolar da investigação. Este problema de
método mostra-se indissociável das razões teóricas da construção de certos instrumentos
de investigação.
Embora aceitássemos desde o princípio a ideia da singularidade da história de
vida, foram-nos precisos anos para reconhecer a unicidade da narrativa biográfica
construída pelos estudantes. Procedíamos constantemente por comparação.
Beneficiando por vezes do contexto dos grupos de elaboração propusemos, no momento
da análise, trabalhar segundo um princípio de divergência e convergência dos dados
biográficos. O esboço de um plano ou de um eixo biográfico comum ao grupo parecia-nos
justificar este esforço comparativo. Ora, por fim percebemos que as narrativas biográficas
desembocavam em usos diferentes de um mesmo guião. E as capacidades de regulação
das narrativas, ou seja, de reflexão da própria vida para uma interpretação da trajectória
educativa, também não correspondiam nada a uma norma comum. Sem querer
hierarquizar as produções biográficas ou definir graus de aptidão para a prossecução de
uma

142
Página 143
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

abordagem biográfica, foi-nos necessário admitir que, inscritos num mesmo quadro
institucional, os estudantes não efectuavam a mesma abordagem. O material entregue
era revelador do processo que procurávamos conhecer melhor. Punha mais a descoberto
o seu processo de formação do que as características de um processo geral que permitisse
situar cada um na sua história de vida. Para mais, não sendo os estudantes da mesma
idade, a diversidade das experiências vividas criava outras diferenças.
De maneira geral, admitimos o princípio de confirmação interactiva quando o
sentido dado a um momento da história de vida por uma pessoa, coincide com o que é
atribuído por outros a experiências semelhantes. Alguns exemplos podem servir de
ilustração. O lugar de irmão mais velho provoca cumplicidades imediatas. Do mesmo
modo alguns podem reconhecer-se na evocação do meio social de origem, seja este rural,
operário ou burguês. As mulheres que exerceram uma actividade profissional antes do
casamento, vibram em uníssono quando falam do conflito entre maternidade e profissão.
A entrada na Universidade na idade adulta, beneficiando de uma admissão sem diploma
final do curso secundário, conduz frequentemente a experiências análogas de
desmistificação do saber universitário e de distanciamento em relação à exigência de um
trabalho teórico. E para a investigador confrontado com várias narrativas de vida, as
confirmações podem também ter um papel na sua análise. De resto, é possível, como o
fizemos, pegar num grupo de narrativas elaboradas por pessoas com a mesma profissão,
de maneira a estabelecerem-se traços comuns ou consequências descritas de maneira
semelhante, por pessoas que atravessaram o mesmo tipo de experiência. Existem sempre
elementos de comparação, mas a comparação não dá lugar a verdades biográficas.
Permite simplesmente apoiar hipóteses. O princípio de saturação utilizado por D. Bertaux
é interessante. Tem certamente um papel, apesar de só implícito, e mesmo que o material
posto à disposição não seja, de facto, comparável.
Apesar de múltiplas leituras no domínio das histórias de vida, constatámos que
a maioria dos investigadores que empregam esta abordagem, não mencionam o seu
método de trabalho quanto à análise do material no qual baseiam a sua posição. Os textos
postos à disposição são frequentemente textos de síntese, que não referem os aspectos
metodológicos, mas apresentam conclusões gerais sem referência explícita ao percurso
seguido ou aos dados explorados.

Investigação ou formação?

A perspectiva participativa segundo a qual trabalhámos, conduziu-nos, num


primeiro tempo, a considerar os estudantes como co-investigadores. Queríamos associá-
los à nossa investigação. E, deste modo, subvalorizamos as potencialidades formadoras
da nossa abordagem biográfica. Os estudantes não podiam ajudar-nos na prossecução da
nossa investigação, pois não tinham o mesmo género de interrogação apesar de lhe
compreenderem o sentido, e, de resto, estavam antes de mais mobilizados pela
compreensão do que haviam dito e escrito, ouvido e lido. O significado do material para
o qual tinham contribuído interessava-lhes mais do que os problemas do investigador. Os
seus próprios processos de formação contavam mais do que a identificação de processos
de formação. As

143
Página 144
PIERRE DOMINICIÉ

questões teóricas que se punham só existiam na medida em que as tinham formulado ou


estavam em condições de as reformular. Tivemos, portanto, de admitir que a biografia
educativa era para os estudantes um instrumento de formação e para nós um
instrumento de investigação. A abordagem seguida tinha portanto duas funções.
Desenrolava-se em dois tempos distintos. Os estudantes que beneficiavam com esta
abordagem, aceitavam contribuir para uma investigação da qual não compreendiam
exactamente o sentido nem o desenrolar. Depois, sobretudo com a ajuda das posições
defendidas por M. Finger e do grupo que trabalhou no decurso do ano escolar de 1984-
1985, percebemos de repente que, na realidade, o aspecto formador do percurso seguido
devia ser integrado na investigação. A biografia educativa tornava-se um instrumento de
investigação porque era um instrumento de formação Reciprocamente, podia ser um
instrumento de formação porque era um instrumento de investigação. A articulação entre
investigação e formação tomava um novo significado. A origem da reflexão não era um
objecto de investigação, mas um objecto do investigador, que convidava os estudantes a
darem determinados passos, no decurso dos quais a sua interrogação sobre a formação
ia constituir a grelha de elaboração e de análise do seu próprio material biográfico.
Em seguida, descobriu-se que a equipa de investigadores de GRAPA compartilhava um
mesmo horizonte de questões, motivado por uma semelhança de referência conceptual,
mas que, a bem dizer, o objecto de investigação era próprio de cada um, ou que cada
membro da equipa tinha a sua maneira de formular o mesmo objecto de investigação. As
questões que procurávamos resolver, prendiam-se igualmente com a nossa história
intelectual, com a nossa socialização e com o nosso projecto de vida. Cada objecto
tornava-se único, e o sentido da colaboração prendia-se com a possibilidade de uma
partilha teórica, e não com a inserção institucional ou com as obrigações organizacionais
de um trabalho em comum. O uso do material fornecido pelos estudantes responde a
critérios mais ou menos análogos. Na medida em que existe uma certa semelhança de
problemática, os dados biográficos fornecidos por um terceiro podem ser de facto
utilizados. Recolher material biográfico para verificar as hipóteses de cada um, não
provém da ilusão metodológica que consiste em acreditar-se que só um "grande número"
autoriza a pensar? Pode fazer-se outra coisa senão caminhar com as questões de cada
um, tornando-se a partilha uma condição para a sua resolução? Não porque vai descobrir
um modelo ou aceder à verdade, mas porque vai confirmar, como dizíamos mais acima,
enriquecer, alargar ou contradizer uma interpretação, uma posição, uma orientação. A
abordagem biográfica pode assim ser considerada como um lugar de confrontação de
verdades construídas no decurso da existência, como um espaço onde se entrechocam
reflexões sobre a formação, provenientes de diferentes percursos de vida. A investigação
torna-se então a que cada um pretende. Contribui para a formação, do mesmo modo que
a formação a torna possível. Assim como a nossa investigação contribui para a nossa
formação, também a nossa formação nos conduziu num determinado momento a esta
investigação.
A exploração pedagógica das pesquisas levadas a cabo no campo da educação,
contribuiu para a normalização das práticas educativas. A investigação pedagógica deve
desembocar frequentemente na afirmação do que convém, do que

144
Página 145
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

favorecer as aprendizagens necessárias, do que deve ser conservado como programa ou


instrumento de trabalho. Ora as biografias só põem em evidência algumas diferenças ou
mostram subtilmente que a contribuição educativa se inscreve num processo único.
Portanto, a nossa abordagem levou-nos a pôr em questão toda a pedagogia que faça a
economia da singularidade do pedagogo, ou toda a aplicação que não tenha em conta a
diversidade daqueles a quem se dirige. A singularidade de cada percurso educativo
introduziu no nosso espírito uma relatividade quanto a um discurso que tem a pretensão
de ser generalizável. Reconhecendo que um ensino podia, porque tentava ser formador,
contribuir para a investigação compreendemos tudo o que a investigação construída
tradicionalmente tentava esvaziar de sentido. E ainda mais porque no campo da educação
a investigação se apoia sempre em situações reais. É porém importante sublinhar que a
integração da formação na investigação exige uma flexibilidade face a toda a planificação
rígida. Deixar a abordagem biográfica ser construída por um grupo, obriga a respeitar-se
a dinâmica desse grupo, e a seguir-se a regulação de vários passos nos quais cada um
esteja implicado. O líder do grupo, o seu animador, tem prerrogativas de investigador que
se prendem com o seu estatuto de professor, mas é constantemente obrigado a modificar
o que previu, devido às resistências do grupo e à maneira como cada um vive esta
abordagem. Além do mais, é inegável que a repetição deste percurso biográfico, mais ou
menos conhecido após vários anos dos estudantes que se inscrevem no curso, quer estes
tenham lido os textos escritos quer os tenham discutido com amigos ou colegas
profissionais, modifica o seu desenvolvimento. Mais do que dantes os estudantes
preparam-se para esta abordagem, sabem frequentemente o que não querem e têm uma
ideia clara da direcção em que caminham. A investigação deve ceder face a estas
contingências. De qualquer modo, impressionou-nos constatar que não é possível seguir
um guião de elaboração biográfica, pois além de todas as críticas que podem ser
formuladas acerca de um tal plano, a sua aplicação choca com o que cada um pensa fazer
e vai, finalmente, realizar. Não pode impor-se um plano de pesquisa quando se quer que
o caminho a percorrer seja formador. Pelo contrário, um instrumento de investigação só
pode estandardizar-se se se anular esta dimensão de formação. Foi-nos preciso usar
vários caminhos metodológicos, e libertar-nos lentamente das conclusões às quais
pensávamos chegar, para reconhecer que em educação a formação deve ser integrada na
investigação, visto constituir um seu componente. Hoje, a título de balanço provisório,
podemos afirmar que o conhecimento dos processos de formação só é possível na medida
em que o percurso da investigação é formador. A compreensão que os estudantes têm
do seu processo de formação, contribui para o saber do investigador. Este, apoiando-se
no que cada um diz e escreve, confia numa reflexão que esclarece o que ele procura
compreender.
A estátua do investigador e o seu pedestal
É evidente que a posição que acabámos de enunciar quanto à investigação
conduz à que temos quanto ao estatuto do investigador. Os dados recolhidos são sempre
os do investigador. Quaisquer que sejam os instrumentos usados e os utensílios de
análise, foi ele quem os escolheu e quem os empregou e é ele quem vai em seguida
explorar os resultados. A neutralidade do investigador

145
Página 146
PIERRE DOMINICIÉ

é um logro. Na nossa investigação, cabe-nos dizer claramente aos estudantes qual foi o
caminho que seguimos para a construção do objecto de investigação. Juntamente com
Christine Josso e Matthias Finger, especificámos que não tínhamos exactamente o mesmo
objecto, porque os nossos respectivos itinerários intelectuais nos haviam conduzido a
privilegiar mais uma interrogação do que outra. Sabemos, e fizemos a experiência, que
independentemente deste objecto do investigador, outras considerações entram em
jogo. Quando, por exemplo, se trata de decidir quem trabalha com quem, ou seja, na
altura de se repartirem os grupos - visto que por ocasião deste último ano cada um dos
membros da equipa de investigação ficou responsável por um grupo -, atravessa-se um
momento de conflito. Há um professor e dois assistentes. Há dois homens e uma mulher.
Os estudantes também ouviram falar dos professores. Por vezes conhecem-nos, ou
tiveram ocasião de colaborar com eles no quadro da sua profissão. Portanto, a elaboração
da história de vida inscreve-se frequentemente numa relação mais ou menos real e mais
ou menos imaginária, que decerto tem um papel e orienta a narrativa biográfica. Porquê
tentar eliminar-se esta influência, considerando-se este elemento da investigação um
factor que afecta negativamente os resultados? Consideramos que na investigação se
instaura um processo relacional que constitui uma dimensão fundamental de toda e
qualquer situação educativa. O processo de formação é atravessado por múltiplos
processos relacionais. Porque haveria o percurso da investigação de distinguir-se a este
ponto de uma situação educativa, que de resto procura compreender, eliminando-se uma
das chaves de compreensão dos fenómenos formadores?
Portanto, trabalhámos sem medo de nos implicarmos. Reagimos à evolução do
grupo, não em função de directivas pré-estabelecidas, mas ao sabor de cada uma das
nossas maneiras de entrar em relação e de viver a dinâmica de um grupo. Apresentámos
nós próprios uma narrativa de vida, situando-a em relação à nossa compreensão do
processo de formação, É evidente que a nossa experiência de investigadores e o nosso
lugar no grupo influenciaram a narrativa. Segundo os nossos temperamentos,
experiências e concepções pedagógicas, fomos mais ou menos directivos relativamente a
um guião, a um tempo consagrado à narrativa ou à sua discussão, ao texto a redigir e à
preparação da sua análise. Admitimos que estas características pessoais não se
atenuassem, porque fazem parte integrante do desenvolvimento e do conteúdo da
investigação. Por vezes, acontece que estes factores relacionais sejam evocados e dêem
lugar a um debate. Aparecem mais frequentemente à margem, ou são mesmo silenciados
e até ignorados por aqueles para quem desempenham um papel. Certos colegas de
trabalho podem não ficar no mesmo grupo e outros arranjam razões para evitarem um
dos professores, ou, pelo contrário, exprimem o desejo de trabalhar com ele. Nem as
projecções nem as transferências se acham ausentes. Desde o princípio da nossa
investigação que reconhecemos que a narrativa biográfica se inscrevia num contexto
universitário, e era formulada no seio de um grupo de estudantes. Por consequência,
dirigia-se a outrem, e o que se dizia tomava-o em consideração. Paradoxalmente, esta
implicação do investigador enquanto pessoa, tem o efeito de instaurar uma regra do jogo,
segundo a qual cada um vai escolher o seu modo de expressão. A directiva do professor
ou a norma do grupo de trabalho permanecem, mas já não são as únicas a ter em conta.
Cada um deve descobrir

146
Página 147
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

a palavra, a escrita, a participação que entende privilegiar. Esta liberdade pode parecer
uma coacção. Provoca uma certa angústia mesmo quando é vivida posteriormente como
uma libertação. Voltamos a insistir nestas particularidades do percurso seguido, porque
têm a sua importância quanto ao próprio objecto da investigação. Introduzindo a questão
da formação e ligando-a ao futuro da existência, frustamos de certa maneira a lógica de
um local de ensino. Já não se trata tanto de aprender, mas de reflectir no que se aprendeu
anteriormente. O Importante já não é só conduzir-se uma reflexão universitária, mas sim
saber-se mais claramente porque se tornou necessária esta reflexão. O percurso
biográfico introduz uma distância institucional, ao mesmo tempo que uma maior
proximidade com a própria pessoa. O percurso biográfico é o lugar de um balanço ou de
uma síntese, que podem ser realizados justamente porque fazem parte do ensino.
Como tive a oportunidade de animar dois grupos no decurso deste mesmo ano,
vi claramente que as relações que se estabeleciam num grupo tinham uma influência
muito grande na elaboração e na análise da narrativa biográfica. A distância certa a
encontrar para que cada um se sinta à vontade, ao mesmo tempo próximo e com a
certeza de preservar a sua intimidade, não é fácil. Assim como não é tarefa simples gerar-
se um clima que permita que uma produção intelectual acompanhe uma interacção
existencial. Tendo em conta esta última experiência, diria que num caso a distância
facilitou o conhecimento que cada um podia ter do outro, mas foi tão vibrante que a fase
de análise se revelou mais difícil, porque mais fria e racional. Pelo contrário, no outro
grupo o clima era à partida tão amistoso e familiar que as narrativas nem sempre
convenceram, ou, por vezes, pareceram ficar aquém do que os outros esperavam. Mas a
fase de análise revelou-se mais frutuosa porque obrigava a um esforço de reflexão mais
profundo, e provocava uma distância crítica face ao aspecto mais familiar do grupo.
Tantos grupos quantas as experiências. Tantos animadores quantos os desenvolvimentos
diferentes. Não há nenhuma maneira ideal de se conduzir a abordagem biográfica em
educação. A construção de biografias educativas confronta-se com limites, tanto na sua
elaboração, como nos resultados aos quais conduz. Por ser um processo, a formação não
se dá a conhecer de uma só vez nem num lugar precisa. É falada de várias maneiras e em
diversos contextos. Mostra-se-nos numa situação educativa em que, empenhados no
jogo do ensino universitário, criamos uma ruptura de funcionamento que nos empurra
para a reflexão.

A cada um a sua narrativa, a cada um o seu saber

Dissemos que as narrativas não podem comparar-se para daí se tirarem


generalizações. Cada narrativa é o reflexo da maneira como o caminho percorrido foi
compreendido, a formação definida e o processo interpretado. Desta vez, alguns
tomaram a precaução de definir no princípio do texto o que entendiam por formação.
Outros explicaram como procediam. Em vários casos, a cronologia serviu de fio condutor,
noutros foram certos temas considerados centrais. O texto de alguns estudantes foi lido
no momento da fase oral, e depois reconstruído. Outros redigiram-no posteriormente,
apoiando-se apenas parcialmente na narrativa oral. A escrita, tal como a tonalidade da
narrativa oral, varia de um participante

147
Página 148
PIERRE DOMINICÉ

para outro. Quanto ao fundo e à forma, a unicidade do texto confirma a da vida própria
de cada um. A reflexão proposta pelo caminho a percorrer também não se situa nos
mesmos registos. Alguns são mais pessoais, ou dão lugar à descrição do contexto sócio-
económico. Enquanto vários estudantes encadeiam factos segundo a concepção que têm
da sua transformação, outros procedem a um exame mais crítico da sua formação. Uma
vez mais as diferenças relacionam-se com a experiência imediata segundo a idade, os
meios de análise à disposição e o investimento consagrado ao percurso seguido. De uma
maneira geral, esta variedade de elaboração biográfica constitui uma garantia do seu
efeito formador. Se se transformasse em teste ou prova de orientação profissional, o
instrumento biográfico deixaria de ser um instrumento de formação. De resto, esta
especificidade da narrativa de cada um deve ser sublinhada e reconhecida pelos
estudantes, para que a reflexão empreendida não fique de novo bloqueada por uma
norma educativa através da qual cada um vem injustificadamente medir a progressão do
seu processo de formação.
Os textos biográficos põem-nos na pista de processos de formação. Mesmo
reunidos, não fornecem a sua chave. Através desta multiplicidade de narrativas, o
processo de formação afirma a sua pluralidade. Da diversidade dos traços reunidos, das
hipóteses formuladas, das ideias estudadas, vai nascer um saber sobre o processo de
formação. Este enriquecerá a análise de textos vindouros, sem que isso queira dizer que
estes textos fiquem daí para a frente presos dentro de categorias de análise definitivas.
Ao longo da abordagem biográfica, vão aparecer pistas novas, susceptíveis de confirmar
ou de contradizer hipóteses anteriores. Algumas narrativas são pobres para o
investigador. Não devemos escondê-lo. Outras fervilham de ideias, e a sua análise nunca
acaba. É portanto evidente que, sem que existam boas ou más narrativas, sem que seja
útil estabelecer critérios de exploração dos textos, alguns convêm mais do que outros
para o esclarecimento dos problemas a que se dedica a nossa investigação. Além disso,
este uso diferenciado do nosso material biográfico vai variar de um ano para outro,
segundo a progressão dos nossos interesses ou os enfoques postos por um ou outro
membro da equipa em relação aos objectos gerais de investigação.
Como os próprios estudantes reconhecem, o texto só restitui um momento da
reflexão. Em comparação com a parte oral, é considerado mais frio, mais estruturado,
mais censurado. Neutralizando a emoção da parte oral, prolonga a narrativa e enriquece-
a com uma reflexão mais profunda. E de novo este caminho não é o mesmo para todos.
Os que têm a impressão de se repetir por escrito, ou que escreveram a narrativa oral, são
mais sensíveis às diferenças formais do que aqueles que vivem dois tempos de reflexão
inscritos num processo. O prazer da escrita também não é vivido da mesma maneira. O
que pode dizer-se, o que quer dizer-se, a maneira de o dizer, evolui até no decurso de um
ano universitário e por vezes, como constatámos, continua meses depois. Como dizia uma
estudante, o texto não passa de um reflexo limitado do "que fervilha na minha cabeça".
Imaginámos multas vezes trabalhar ao longo de vários anos, para respeitarmos esta
exigência de duração. É certo que deixamos pouco tempo para o trabalho de análise na
nossa planificação anual. Este não consiste apenas em debruçarmo-nos atentamente sob
alguns textos, mas exige um tempo de apropriação,

148
Página 149
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

de decantação, e de novo um tempo que instaure um distanciamento tanto com o seu


autor como com o seu leitor. Uma nova redacção do texto, sobre a forma de
prolongamentos posteriores, asseguraria decerto uma visão menos descritiva e uma
melhor centração em aspectos que se considerassem marcar o processo de formação.
Neste último ano, cada texto permaneceu propriedade do grupo. Só aqueles que
ouviram a narrativa e que se implicaram no grupo, tiveram conhecimento do texto
escrito. As gravações feitas na fase oral estavam à disposição daqueles que se haviam
exprimido. Estas precauções são evidentes para os participantes. Despojado do seu
complemento oral, fora do seu contexto de comunicação de grupo, separado de todas as
trocas que se juntam ao tempo propriamente dito das sessões de trabalho, o texto perde
o seu significado. Pode ser analisado como qualquer outro texto, suscitando curiosidade
e interesse, mas está de certa forma desenraizado, deslocado, desenquadrado. Embora
exista aqui uma questão deontológica e perfeitamente legítima, visto que os estudantes
não estão interessados em que o seu texto circule e seja objecto de interpretação da parte
de investigadores desconhecidos, a questão central, na nossa óptica de investigação, é
saber se a análise dos textos produzidos pode, de facto, ser feita por outras pessoas que
não os seus autores. As confirmações interactivas, por exemplo, tal como podem nascer
no grupo, são válidas para além desse grupo? Os textos podem circular entre os
investigadores de uma equipa como a nossa? Se não a fazemos, é por respeito para com
quem os escreveu, e que aprendemos a conhecer e a amar, ou é porque, do ponto de
vista do objecto da nossa investigação, só a análise do autor é susceptível de levar a uma
nova compreensão dos processos de formação? Pela sua própria natureza, a exploração
dos textos põe de novo a questão dos estatutos, respectivamente de investigador e de
estudantes na investigação.
No momento de arranque da fase de análise, sugerimos algumas questões
dirigidas, por um lado, aos indivíduos sobre a sua própria formação e, por outro lado, aos
grupos sobre a formação ou a teoria da formação. Tratava-se de saber mais exactamente
o que, no decurso do caminho percorrido, cada um tinha aprendido sobre a sua formação
e sobre a formação dos adultos, e como cada um via a contribuição da investigação para
uma teoria da formação. Se estas três direcções de análise vão a par umas das outras, e
se o acesso a um desenvolvimento teórico parte de uma reflexão profunda sobre a
formação de cada um, não havendo maneira de se avançar numa investigação sobre o
processo de formação sem que cada um se debruce atentamente sobre o seu próprio
processo, a não transmissão dos textos a terceiros revela-se perfeitamente legítima, não
só no plano deontológico, mas também do ponto de vista do próprio método da
investigação. O debate permanece aqui em aberto. Na experiência que conduzimos,
parece que cada grupo pode transmitir aos outros o fruto das suas reflexões, e em
consequência contribuir para o estabelecimento de um saber sobre a formação, sem que
isso queira dizer que os membros dos outros grupos tenham um acesso directo às
próprias narrativas biográficas. Já não é, portanto, legítimo reivindicar-se o direito de se
verificar um objectivo por meio do exame dos dados que serviram de fundamento à sua
elaboração. Os dados pertencem a quem pode utilizá-los. Não são do domínio da
investigação, mas dos investigadores

149
Página 150
PIERRE DOMINICÉ

em condições de lhes dar um sentido. Esta aposta é aceitável para o investigador


institucionalizado na sua função? Para quem deve ao mesmo tempo prestar contas aos
estudantes e às instâncias que financiam o seu trabalho? Talvez, se se tratar de uma
questão de método baseada numa escolha teórica.

III. O PROCESSO DE FORMAÇÃO AO SAIR DO CLARO-OBSCURO

Enquanto investigador implicado há mais de cinco anos no uso da biografia


educativa, o meu interesse principal consiste na compreensão dos processos de formação
dos adultos. A posição que acabámos de enunciar, e as questões metodológicas que
abordámos, obrigam-nos a uma certa prudência quanto ao conhecimento obtido através
do material biográfico. O saber que podemos construir baseia-se simultaneamente em
narrativas orais e escritas e na sua discussão em grupo. Resulta de uma reflexão levada a
cabo a partir de um conjunto de biografias, que são interpretações fornecidas por adultos
sobre o seu percurso educativo. Alguns limitam-se a reconstituir as fases principais deste
percurso, com a ajuda de recordações que, por associação, lhes permite encontrar um fio
condutor. Outros, de maneira mais global, ou por vezes, definindo um problema preciso,
tentam sobretudo entrar numa construção ou identificar o processo pelo qual passaram
antes de chegarem onde se encontram social, geográfica, profissional ou
intelectualmente. Com a ajuda de todo o anterior trabalho de investigação, vamos agora
dizer brevemente o que este ano académico confirma ou sugere, acrescentando algumas
considerações relativas ao campo da educação dos adultos.
Uma vez que os estudantes estavam na maioria ligados profissionalmente a
profissões de serviços, tais como o ensino, o trabalho social ou a enfermagem, é evidente
que a tónica das suas biografias educativas está relacionada com esta orientação
profissional. De resto, como alguns dentre eles sublinharam, o conteúdo dos textos
biográficos deriva em grande parte dos esforços que efectuaram para resolver as
dificuldades que se lhes apresentaram no decorrer da vida. Aquilo de que os estudantes
falam quando pensam na sua formação, resulta do trabalho que entendem ser formador,
a saber, a energia que empregaram para inflectir o decurso da sua vida ou ultrapassar os
obstáculos que nela se apresentavam. Portanto, em primeiro lugar, não admira que se
confirme a vontade de afirmação do eu, relativamente a normas culturais ou sociais que
marcam profundamente a educação familiar, escolar e social de cada um. A autonomia é
assumida como a resolução de se tomar o percurso de vida nas próprias mãos. As escolhas
que dependem da decisão de outrem, são submetidas a uma perspectiva crítica. A
autonomia, sem dúvida uma das questões centrais da educação, subtende toda a reflexão
sobre a formação. "Neste vaivém de sentimentos fortes e de perturbações em surdina,
nesta multiplicação de experiências novas ou quotidianas, profissionais, afectivas, de
encontros que são outros tantos confrontos, de fricções ou de lugares da emergência da
simpatia, vejo como que uma maturação da pessoa que não acaba de se auto-criar, graças
às interacções por que passa e que origina ou originou; vejo como que uma edificação a
uma orientação da consciência para a liberdade, embora tendo consciência

150
Página 151
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

de como permanece obscura a parte de nós que nos determina sem o sabermos", escreve
uma participante. A luta para conseguirmos um lugar que não dependa totalmente do
que os outros querem atribuir-nos, constitui um vector fundamental na narrativa
biográfica. Primeiro, trata-se da diferenciação no seio da família, dos irmãos e irmãs ou
dos pais. Para as raparigas, a relação com a mãe dá lugar a um processo do qual uma delas
fala, descrevendo as três etapas que atravessou para se tornar mais autónoma. "Esta
procura de autonomia face à minha mãe foi a linha de força de toda a minha vida até há
muito pouco tempo. Ela teve um papel muito importante na minha formação,
interrogando-me incessantemente sobre o que queria conservar ou mudar do que me era
imposto. Trata-se de um longo processo, que pode dividir-se em três fases: a fase da
revolta, a fase das discussões e a fase da escuta." Esta determinação face às coacções
familiares não é só interpessoal. Para muitos, reenvia à dificuldade de inserção social.
Como situar-nos perante um meio de origem que já não é o nosso, mas do qual
conservamos a trave-mestra? "Os valores transmitidos pelo meu meio familiar estão
inscritos nos traços da minha personalidade, e isto de uma maneira praticamente
indelével," escreve a este propósito uma estudante oriunda de uma família rural. As
reacções, as revoltas, as rupturas, são aqui numerosas. E a consciência da autonomia está
sempre ligada à escolha da dimensão adoptada. Em consequência disto, o sentimento de
independência não é o mesmo se se trata da relação com a mãe, com o meio e com o
país, ou se os modelos dos quais queremos distanciar-nos dizem respeito à educação
familiar ou escolar, ou ao estatuto profissional.
A nova dimensão que surgiu claramente neste último grupo é a de uma
afirmação do pensamento de cada um. A autonomia está ligada à capacidade de nos
exprimirmos, de darmos a nossa opinião, de defendermos uma posição. Neste aspecto, a
Universidade tem um papel fulcral. É vivida como o lugar escolar com o qual temos de
nos conformar, mas também como um espaço gerador de ideias novas que somos
autorizados a formular. A esta atracção pela expressão do eu, a este esforço para
arranjarmos um lugar para a nossa palavra, não é sem dúvida estranho o facto de a
maioria dos estudantes serem mulheres que, na altura da sua juventude, não tiveram
acesso à Universidade; e que exercem um trabalho profissional em domínios que não
adquiriram a sua independência de pensamento: o trabalho social ou a enfermagem. Para
mais, a geração representada na nossa população viveu numa época em que a educação,
tanto num meio rural como burguês, consistia mais em ensinar aos jovens modelos de
conduta e de pensamento para melhor preparar a sua inserção social, do que em
favorecer a expressão do que procuravam na vida e do que se propunham realizar. A este
respeito, as narrativas constituem documentos históricos sobre as concepções de
educação que prevaleceram em certos momentos ou em determinados meios. A vontade
de distanciamento, a preocupação com a autonomia, agem assim como reveladores de
tudo o que foi preciso pôr de lado para seguir um caminho próprio. Assim, a formação
faz-se nas costas dos modelos e das práticas da educação.
Ainda mais do que antes, a experiência escolar revela-se sócio-afectiva. O
sucesso exige condições escolares favoráveis. Está decerto ligado às facilidades
ocasionadas pelo meio familiar. Mas, na opinião dos estudantes, o aspecto

151
Página 152
PIERRE DOMINICIÉ
que se revela determinante é de ordem afectiva. Os bloqueamentos escolares acham-se
ligados a tal ou tal professor, com o qual a relação é conflituosa. A continuação da
escolaridade torna-se possível devido ao apoio encontrado no reconhecimento efectivo
de uma professora. Quando uma filha de um diplomata tem de mudar de país, quando
uma filha de um camponês tem de trocar a aldeia pelo internato ou pela cidade, quando
uma criança dotada tem de recriar um meio social, as dificuldades encontradas não se
prendem com a assimilação de conteúdos escolares, mas com um acolhimento mais ou
menos caloroso e com a atenção que nos é dispensada. Quando se lêem as narrativas dos
estudantes, parece que as notas são transacções efectivas. O aluno tenta fazer bem para
agradar ou ser amado. Pelo contrário, faz tudo para fracassar e dizer assim do seu
desprezo por quem lhe avalia o trabalho.
Acontece o mesmo com o seu devir social. A dimensão afectiva acompanha todos
os tempos fortes da existência. É reconhecida como decisiva a valorização por parte do
meio familiar. A escolha profissional aparece como a resultante das experiências afectivas
mais fortes. O sofrimento leva a curar e a falta de enquadramento familiar a um
empenhamento em fórmulas educativas reparadoras. Quando a terra natal não é um
lugar onde possamos habitar, como escolher um domicílio senão encontrando a distância
certa dos sítios que contam, uma espécie de ponto geométrico dos locais aos quais
permanecemos afectivamente ligados? A organização social marca a cronologia da
existência. Há um tempo de se entrar na escola, e um tempo para se sair dela. Um tempo
para se deixar a família, e um tempo para assumir uma responsabilidade profissional. O
desenvolvimento afectivo ilude esta lógica. Exige um ritmo próprio, que alguns
identificam claramente quando repensam a sua vida. Na altura das opções, há
frequentemente "esta outra parte de mim que não está pronta", como diz uma das
participantes. Os momentos considerados de charneira são momentos de regulação.
Reorientam a existência segundo uma decisão largamente amadurecida, que pode impor-
se bruscamente. Esta maturação coabita com a maturidade socialmente aceite. E ambas
se opõem e se equilibram conforme as idades da vida e as decisões a tomar. Neste
aspecto, as conclusões dos sociólogos devem ser muitas vezes retomadas, porque os
processos põem a descoberto funcionamentos que não se dão a conhecer segundo regras
gerais.

Uma história de vida para cada um se afirmar

A afirmação do eu, no sentido de uma autonomização construída no confronto


com a sujeição do meio ambiente, sobressai muito claramente como processo central do
curso da vida. Cada um deixa aí a sua pele ou fabrica aí a sua identidade. Este processo
pode assim ser considerado comum à nossa população, e ao mesmo tempo totalmente
singular na transformação individual. Na dinâmica deste processo de autonomização
inscrevem-se vários processos. Um processo escolar e social de expressão do eu, de
domínio de uma linguagem, para dizermos publicamente o que decidimos defender
intelectualmente. Este processo é outra vez específico de cada biografia educativa. No
entanto, comporta traços comuns a profissionais que aprenderam a calar-se face aos seus
superiores ou,

152
Página 153
O QUE A VIDA LHES ENSINOU

de maneira mais geral, a deixar falar os homens. No processo geral de busca de


autonomia, a entrada na Universidade, torna-se muitas vezes, ao longo dos anos de
estudo, o suporte com a ajuda do qual se consolida a expressão de cada um. Num universo
intelectual, onde as condições de aprendizagem só muito raramente passam pela relação
ou pela dimensão efectiva, não é inútil reconhecer-se a pluralidade dos sentidos que
reveste este tempo universitário de formação contínua. Claro que a carga simbólica da
Universidade é muito forte, e que o saber que aí se difunde é objecto de múltiplas
fantasias. As evocações da passagem pela Universidade nos textos biográficos, mostram
bem que o saber não se adquire sem um investimento muito global e sem uma
mobilização de tudo o que foi anteriormente aprendido. Esta evocação de uma verdade
central esclarece-nos sobre o desenvolvimento do adulto e, dado o objecto da nossa
investigação, sobre o processo de formação. Não existem processos que não sejam
simultaneamente intelectuais e efectivos. Toda a decisão está mergulhada na sua carga
emotiva, e, muitas vezes, é provocada por um raciocínio frequentemente retomado. Os
processos da escolha profissional, de escolarização contínua, de implantação cultural,
acham-se constantemente submersos numa dinâmica afectiva, feita tanto de dificuldades
a ultrapassar como de imaginário a conter. As regulações que balizam estes processos, ou
comprometem a pessoa no conjunto destas dimensões, ou não têm lugar. É portanto
justo procurar manter-se a ideia de processo de formação, e falta distinguir processos
mais específicos. Existe uma dinâmica de conjunto, no interior da qual têm lugar
construções particulares. Para poder ser considerado como tal, o tempo de formação
contínua necessita que a contribuição educativa se dirija ao processo de formação. Neste
sentido o percurso biográfico que propomos poderia tornar-se um local de apropriação
de contribuições educativas mais especializadas ou articuladas sobre conhecimentos
particulares. Então já não se limitaria a um único ensino, mas interviria na encruzilhada
de um plano de estudos, tanto para orientar as escolhas deste plano, como para lhes dar
um sentido global. Quem sabe se lá chegaremos um dia? A biografia educativa seria então
decerto um instrumento de formação, depois de ter sido considerada prioritariamente de
investigação.

153
154
Página 155

BIBLIOGRAFIA SOBRE AS HISTÓRIAS DE VIDA

Daniel BERTAUX
Histoires de vie ou récits de pratiques? Méthodologie de l'approche biographique en
sociologie, Paris, CORDES, n.º 23, 1974.

Daniel BERTAUX
"Comment lápproche biographique peut transformer la pratique sociologique",
Recherche économique et siciale, n.º 6, Abril de 1977, pp. 28-33

Daniel BERTAUX
Destins personnels et structures de classes, Paris, P.U.F., 1977.

Daniel BERTAUX
Biography and Society, London, Sage, 1982.

Cahiers Internationaux de Sociologie, número especial sobre "História de vida e vida


social": vol. LXIX, 1980.

Maurizio CATANI
Journal de Mohamed - Un algérien en France parmi 80 000 autres, Paris, Stock, 1973.

Maurizio CATANI
Les histoires de vies sociales, instrument des pratiques et objects en sociologie, ou
Compts rendus de recherches et bibliogrphies sur l'immigration, Paris, C.N.R.S., 1975.

Maurizio CATANI
Tante Suzanne - Une histoire de vie siciale, Paris, Klincksieck, 1982.

Y. CHEVALIER
"L'autobiographie et son usage en sociologie", Revue française de science politique, vol.
29, n.º 1, 1979, pp. 83-101.

155
Página 156

Simone CLAPIER-VALADON, Jean POIRIER et alii


L'approche biografique - Réflexions épistémologiques sur une méthode de recherche,
Nice, Centre universitaire méditerranéen, 1983.
Simone CLAPIER-VALADON, Jean POIRIER e François RAYBAUT
Les récits de vie: théorie et pratique, Paris P.U.F., 1983.

Pierre DOMINICÉ e Marcel Fallet


L'éxploration biographique des processus de formation, Universidade de Genebra,
Cahiers de la Section de Sciences de l'Éducation, Série Recherches, n.º 1, 1981.

Pierre DOMINICÉ, Marcel Fallet e Mathias FINGER


Approches biographiques de prossesus de formation, Universidade de Genebra, Cahiers
de la Section de Sciences de l'Éducation, Série Recherches, n.º 8, 1984.

C. DUFRANCATEL
"Autobiographies de femmes du peuple", Le mouvement sociale, n.º 105, Outubro -
Dezembro de 1978, pp. 147-155.

Écrit du temps, "Écriture de l'autobiographie": Paris, Minuit, n.º 3, Primavera de 1983.

Éducation Permanente, "Les histoires de vie, entre la formation et la recherche": n.º 72-
73, Março 1984.

Franco FERRAROTTI
"Les biographies comme instrument analytique et interprétatif", Cahires Internationaux
de Sociologie, vol. LXIX, 1980, pp. 227-248.

Franco FERRAROTTI
Storia e storie di vita, Roma, Laterza, 1981.

Mathias FINGER
Biographie et Herméneutique, Montreal, Faculté d'Éducation Permanente, 1984.

Mathias FINGER e Christine JOSSO (coord.)


Pratiques du récit de vie et théories de la formation, Universidade de Genebra, Cahiers
de la Section des Sciences de l'Éducation, n.º 44, 1986.

Nicole GAGNON
L'approche biographique en sociologie, Paris, Maison de Sciences de l'Homme, polycopié,
1976.

Nicole GAGNON
"Données autobiographiques et praxis culturelles", Cahires Internationaux de Sociologie,
vol. LXIX, 1980, pp. 291-304.

156
Página 157

Phillippe LEJEUNE
Le Pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975.

C. LEOMANT
"Études quelques éléments à propos de l'approche biographique en sociologie",
Connexions, n.º 32, 1981, pp. 133-144.

Oscar LEWIS
Les enfants de Sanches, Paris, Gallimard, 1963.

Louis MORIN
La méthodologie des histoires de vie, Universidade de laval, Institut Supérieur des
Sciences Humaines, 1972.

Louis MORIN
La méthodologie des histoires de vie, as spécificité, son analyse, Universidade de laval,
Institut Supérieur des Sciences Humaines, n.º 10, 1973 (primeira parte) e n.º 13, 1974
(Segunda parte).

Gaston PINEAU
Vies des histoires de vie, Universidade de Montreal, Faculté de l'Éducation Permanente,
1980.

Gaston PINEAU e MARIE-MICHÈLE


Produire as vie - Autoformation et autobiographie, Paris, Edilig, 1983.

Jean POIRIER
"Des récits de vie aux ethnobiografies", Culture, science et dévelopement, 1979, pp. 513-
537.

W. THOMAS e F. ZNANIECKI
The polish peasant in Europe and America, Nova Yorque, Knopf, 1927.

(1) Formação de Formadores, Gestores de Formação para Estabelecimentos e Serviços do Ministério da


Saúde, 1.º Curso Maio de 1986, 2.º Curso Agosto de 1986, edições do Departamento de Recursos Humanos
do Ministério da Saúde.

157

Você também pode gostar