Você está na página 1de 88

G.K.

CHESTERTON

O HOMEM QUE FOI


QUINTA-FEIRA

Biblioteca São Miguel Arcanjo


http://saomiguel.webng.com/
Biblioteca São Miguel
http://saomiguel.webng.com/
CAPITULO I

OS DOIS POETAS DE SAFFRON PARK

Para as bandas do poente de Londres refulgia, como o


vermelho esfarrapado de uma nuvem ao entardecer, o subúrbio
de Saffron Park. Totalmente edificado com ladrilho brilhante,
ostentava uma fantástica linha de telhados e uma extravagante
linha de calçadas. Fora obra de um construtor especulativo,
mirão em assuntos de arte, que identificava sua arquitetura
algumas vezes com o estilo Rainha Elizabeth e outras vezes com
o estilo Rainha Ana, sob a visível impressão de que as duas
soberanas eram uma só. Com alguma justiça, Saffron Park
passava por colônia de artistas, embora nunca houvesse pro-
duzido razoavelmente qualquer gênero de arte. Mas, se suas
pretensões a núcleo intelectual eram um tanto descabidas, suas
pretensões a recanto aprazível eram realmente incontestáveis.
O visitante, que pela primeira vez contemplasse aquelas esdrú-
xulas casas vermelhas, seria levado a cogitar desde logo na
singularidade que devia marcar o feitio mental das pessoas que
as habitavam. E quando encontrasse tais pessoas não ficaria
desapontado. O local era não só aprazível, mas perfeito, desde
que não fosse tido em conta de miragem, mas de sonho. Ainda
que os habitantes nada tivessem de "artistas", tudo ali era ar-
tístico. Aquele rapaz de cabelos compridos e vermelhos e de
feições impudentes não havia de ser necessariamente um poeta,
mas era irrefutavelmente um poema. Aquele cavalheiro idoso,
de barba branca e enxovalhada e de chapéu também branco e
enxovalhado, um pândego venerável, não havia de ser obriga-
toriamente um filósofo, mas, no mínimo, devia fornecer moti-
vos à filosofia alheia. Aquele cavalheiro científico, calvo como
um ôvo, de pescoço pelado como o. de uma ave, não fazia jus
aos ares de cientista que alardeava. Não descobrira novidades
10 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 11

em biologia; mas poderia, por acaso, ter descoberto um espé- nervos de uma população neurótica. Era uma blasfêmia ambu-
cime biológico mais raro do que sua pessoa? Por isso, e so- lante, uma fusão do anjo e do macaco.
mente por isso, o lugar merecia estudos pertinentes e demo- Aquela noite, se não merece ser lembrada por outro mo-
rados; tinha de ser examinado menos como uma oficina de tivo qualquer, permanecerá, contudo, na memória dos habitan-
artista do que como uma delicada, posto que consumada, obra tes do lugar em razão do extraordinário crepúsculo que a prece-
de arte. O estranho que chegasse a participar de sua atmosfera deu. Parecia o fim do mundo. O céu se cobrira de plumagem
social teria a sensação de estar participando da representação vivida e palpável; dir-se-ia que as penas que adejavam no ar vi-
de uma comédia. riam tocar os rostos das pessoas. No alto da abóbada as penas
Sua atraente irrealidade avultava de modo especial no acinzentavam-se, tomando os mais raros matizes de violeta e
crepúsculo, quando sobre os fantásticos telhados incidiam as malva e tons absurdos de rosa ou verde pálido. Mas, para os
últimas reverberações da luz. Nesses momentos, todo aquele lados do oeste tudo era indescritível, transparente, apaixonante.
bairro insano parecia projetar-se no espaço como uma nuvem As últimas plumas escarlates escondiam o sol como se este fosse
flutuante. Esta impressão era ainda mais fortemente verídica uma coisa boa demais para ser vista. Tudo ali se aproximava
nas muitas noites de festa local; pois, nos recessos dos pequeni- excessivamente da terra, como se quisesse contar uma assusta-
nos jardins iluminados, enormes lanternas chinesas pendiam de dora confidencia. O empíreo mesmo parecia um segredo. Ex-
árvores minúsculas como frutos monstruosos e sinistros. E a primia aquela esplêndida pequenez que é a alma do patriotismo
impressão foi excepcionalmente forte naquela noite, da qual local. O próprio céu parecia pequeno.
ainda se guardam vagas recordações e na qual o poeta dos ca- Repito, há várias pessoas que só relembrarão aquela noi-
belos de fogo foi o herói. Não se pense que aquela foi a única te em virtude do céu opressivo. Outras há, porém, que podem
noite em que êle figurou como herói. Em muitas outras, os relembrá-la por ter assinalado a aparição do segundo poeta
que passavam em frente ao seu jardim podiam ouvir-lhe a voz de Saffron Park. Por muito tempo, o revolucionário dos cabe-
sonora e didática promulgando leis para os homens e, especial- los vermelhos reinou sem rival. Mas, na noite que se seguiu
mente, para as mulheres. Nessas ocasiões, a atitude das mulhe- àquele crepúsculo assustador, sua solidão teve fim inopinada-
res constituía mesmo um dos paradoxos do lugar. Pertenciam mente. O novo poeta, que disse chamar-se Gabriel Syme, era
quase todas à categoria das vagamente chamadas mulheres eman- um sujeito calmo e cortês, de barbicha pontuda, bem cuidada e
cipadas e proclamavam ali seus protestos contra a suprema- cabelos amarelados. Mas, em pouco tempo, adivinhava-se que
cia masculina. Entretanto, estas mulheres modernas consentiam êle era menos manso do que aparentava. Particularizou sua
em regalar um homem com a inusitada cortesia jamais recebida chegada por diferir de Gregory, o poeta estabelecido, em tudo
por êle de uma mulher comum: a de escutá-lo enquanto êle quanto dizia respeito à natureza da poesia. Dizia-se um poeta
está falando. E Mr. Lucian Gregory, o poeta dos cabelos ver- da lei, um poeta da ordem; ia mais além ainda: dizia-se um
melhos, era um homem digno de ser escutado, mesmo que poeta da respeitabilidade. Por isso, alastrou-se, entre os mora-
devesse a gente rir-se dele no fim. Entoava a velha cantiga da dores de Saffron Park, a suspeita de haver êle despencado da-
anarquia da arte e da arte da anarquia com petulante frescor, quele céu inverossímil.
o que provocava momentâneo prazer. Ajudava-o, até certo Com efeito, Mr. Lucian Gregory, o poeta da anarquia, fa-
ponto, a cativante singularidade de sua aparência, da qual êle rejou um nexo entre os dois acontecimentos.
procurava tirar o maior efeito. A cabeleira vermelho-escuro, — Admito, exclamou em seu tom subitamente lírico, ad-
dividida ao meio, era literalmente igual à de uma mulher: sua- mito que só numa noite assim, de nuvens e cores cruéis, pode-
vemente encaracolada, como a de uma virgem de um quadro ria ocorrer na terra um tão grandioso portento, como o é, na
pré-rafaelista. Entretanto, do interior dessa moldura oval, qua- verdade, um poeta respeitável. Você afirma que é um poeta
se piedosa, avançava uma cara insuspeitadamente grosseira e da lei e eu afirmo que você é uma contradição em termos. Es-
brutal, e o queixo despontava com aspecto desdenhoso e zom- panta-me somente que não tenha havido cometas e terremotos
beteiro. Essa mistura ao mesmo tempo deleitava e abalava os
quando você surgiu neste jardim.
12 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 13
O homem dos brandos olhos azuis e da barbicha pálida e siste precisamente nisso: êle diz Vitória e — zás — é Vitória
pontuda suportou essas rajadas com certa solenidade submissa. mesmo. Ora, por favor! Tome todos os seus livros de poesia
O terceiro membro do grupo, Rosamond, irmã de Gregory — e de prosa. A mim deixe-me ler, com lágrimas de orgulho, uma
que tinha deste os cabelos ondulados e vermelhos, embora tabela do horário dos trens. Tome seu Byron, que comemora as
possuísse um rosto muito mais afável — riu com espanto e derrotas do Homem. Dê-me Bradshaw, que comemora as vitó-
reprovação, como habitualmente fazia diante do oráculo fami- rias. Dê-me Bradshaw, digo-lhe eu!
liar.
— Vai viajar? perguntou Gregory sarcàsticamente.
Gregory recomeçou num tom de alta bonomia oratória.
— Eu lhe digo, continuou Syme com veemência, que ca-
— Um artista é o mesmo que um anarquista, sentenciou. da vez que o trem entra numa estação sinto que êle venceu
Você pode inverter a ordem das palavras, se lhe aprouver. Um as baterias dos opressores, e que o homem ganhou uma bata-
anarquista é um artista. O homem que atira bombas é um ar- lha contra o caos. Você diz com desprezo que quando alguém
tista, porque prefere um grande momento a tudo o mais. Es- deixa Sloane Square, chega infalivelmente a Vitória. E eu digo
se homem percebe que valem muito mais o súbito clarão de que podem acontecer milhares de coisas em vez desta e que sem-
uma flama viva e o estampido de uma detonação perfeita do pre que efetivamente chego a Vitória, tenho a sensação de ter
que os simples corpos desarticulados de alguns esbirros. Um escapado por um triz. E, quando ouço o guarda gritar: "Vi-
artista afronta todos os governos, omite todas as convenções. tória", não me parece ouvir um vocábulo desprovido de senti-
O poeta só está à vontade na desordem. Não fosse assim, a do. Para mim, é o grito do arauto anunciando a conquista.
coisa mais poética do mundo seria a estrada de ferro subter- Para mim, é realmente "Vitória". Ê a vitória de Adão.
rânea.
Gregory, com sorriso lento e amargo, meneou a cabeça
— E é mesmo, confirmou Mr. Syme. vermelha e pesada.
— Absurdo! disse Gregory, que se vendia por muito ra- — Mesmo assim, disse êle, nós, os poetas, perguntamos
zoável quando outra pessoa tentava o paradoxo. Por que é incessantemente: "E o que é Vitória, agora que nós a alcan-
que todos os empregados e operários que tomam os trens pa- çamos?" Para você, Vitória é como a Nova Jerusalém. Para
recem tão tristes e cansados, tão completamente tristes e cansa- nós, entretanto, Nova Jerusalém não será melhor nem pior do
dos? Eu respondo. É porque sabem que o trem está na rota que Vitória. Sim, o poeta será um eterno inconformado, mesmo
certa. Ê porque sabem que terão de chegar ao lugar para o andando nas ruas do céu. O poeta está sempre em revolta.
qual compraram os bilhetes. Porque sabem que depois — De novo! disse Syme irritado. O que há de poético
de Sloane Square a estação seguinte deve ser Vitória,
nenhuma outra senão Vitória. Mas eu adivinho o formidável êx- nessa contínua revolta? Você podia dizer também que é poé-
tase, o brilho astral de seus olhos, o enlevo paradisíaco de suas tico padecer enjôo no mar. Ê um estado de revolta. Ambas,
almas, se a estação seguinte pudesse ser Baker Street! a doença e a revolta, podem ser coisas salutares em certas oca-
siões desesperadas. Mas, enforquem-me, se posso ver em que
— Ê você que é antipoético, replicou o poeta Syme. Se são elas poéticas! A revolta, em abstrato, é. .. revoltante. É
tudo quanto você diz dos empregados é verdadeiro só tenho a mero vômito!
lamentar que eles sejam tão prosaicos como a sua poesia. O A moça estremeceu ao ouvir o vocábulo desagradável, mas
maravilhoso, o raro está em chegar à meta. O vulgar, o insí- Syme estava demasiadamente inflamado para reparar nela.
pido, está em não atingi-la. Sentimos um frêmito épico quan- — Ê a boa marcha das coisas que é poética! Exclamou.
do o homem com sua seta selvagem atinge um pássaro distan- Nossa digestão, desde que se mantenha sagrada e silenciosa-
te. Não é também épico quando o homem com uma locomo- mente normal... eis o fundamento de toda a poesia. Sim, a
tiva selvagem atinge uma estação distante? O caos é estúpido. coisa mais poética, mais poética do que as flores, mais poética
No caos o trem podia ir a qualquer parte, a Baker Street ou a do que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar
Bagdad. Mas o homem é um mágico e toda a sua magia con- doente.
12 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 13
O homem dos brandos olhos azuis e da barbicha pálida e siste precisamente nisso: êle diz Vitória e — zás — é Vitória
pontuda suportou essas rajadas com certa solenidade submissa. mesmo. Ora, por favor! Tome todos os seus livros de poesia
O terceiro membro do grupo, Rosamond, irmã de Gregory — e de prosa. A mim deixe-me ler, com lágrimas de orgulho, uma
que tinha deste os cabelos ondulados e vermelhos, embora tabela do horário dos trens. Tome seu Byron, que comemora as
possuísse um rosto muito mais afável — riu com espanto e derrotas do Homem. Dê-me Bradshaw, que comemora as vitó-
reprovação, como habitualmente fazia diante do oráculo fami- rias. Dê-me Bradshaw, digo-lhe eu!
liar.
— Vai viajar? perguntou Gregory sarcàsticamente.
Gregory recomeçou num tom de alta bonomia oratória. — Eu lhe digo, continuou Syme com veemência, que ca-
— Um artista é o mesmo que um anarquista, sentenciou. da vez que o trem entra numa estação sinto que êle venceu
Você pode inverter a ordem das palavras, se lhe aprouver. Um as baterias dos opressores, e que o homem ganhou uma bata-
anarquista é um artista. O homem que atira bombas é um ar- lha contra o caos. Você diz com desprezo que quando alguém
tista, porque prefere um grande momento a tudo o mais. Es- deixa Sloane Square, chega infalivelmente a Vitória. E eu digo
se homem percebe que valem muito mais o súbito clarão de que podem acontecer milhares de coisas em vez desta e que sem-
uma flama viva e o estampido de uma detonação perfeita do pre que efetivamente chego a Vitória, tenho a sensação de ter
que os simples corpos desarticulados de alguns esbirros. Um escapado por um triz. E, quando ouço o guarda gritar: "Vi-
artista afronta todos os governos, omite todas as convenções. tória", não me parece ouvir um vocábulo desprovido de senti-
O poeta só está à vontade na desordem. Não fosse assim, a do. Para mim, é o grito do arauto anunciando a conquista.
coisa mais poética do mundo seria a estrada de ferro subter- Para mim, é realmente "Vitória". Ê a vitória de Adão.
rânea.
Gregory, com sorriso lento e amargo, meneou a cabeça
— E é mesmo, confirmou Mr. Syme. vermelha e pesada.
— Absurdo! disse Gregory, que se vendia por muito ra- — Mesmo assim, disse êle, nós, os poetas, perguntamos
zoável quando outra pessoa tentava o paradoxo. Por que é incessantemente: "E o que é Vitória, agora que nós a alcan-
que todos os empregados e operários que tomam os trens pa- çamos?" Para você, Vitória é como a Nova Jerusalém. Para
recem tão tristes e cansados, tão completamente tristes e cansa- nós, entretanto, Nova Jerusalém não será melhor nem pior do
dos? Eu respondo. É porque sabem que o trem está na rota que Vitória. Sim, o poeta será um eterno inconformado, mesmo
certa. Ê porque sabem que terão de chegar ao lugar para o andando nas ruas do céu. O poeta está sempre em revolta.
qual compraram os bilhetes. Porque sabem que depois — De novo! disse Syme irritado. O que há de poético
de Sloane Square a estação seguinte deve ser Vitória, nessa contínua revolta? Você podia dizer também que é poé-
nenhuma outra senão Vitória. Mas eu adivinho o formidável êx- tico padecer enjôo no mar. Ê um estado de revolta. Ambas,
tase, o brilho astral de seus olhos, o enlevo paradisíaco de suas
almas, se a estação seguinte pudesse ser Baker Street! a doença e a revolta, podem ser coisas salutares em certas oca-
siões desesperadas. Mas, enforquem-me, se posso ver em que
— Ê você que é antipoético, replicou o poeta Syme. Se são elas poéticas! A revolta, em abstrato, é . . . revoltante. É
tudo quanto você diz dos empregados é verdadeiro só tenho a mero vômito!
lamentar que eles sejam tão prosaicos como a sua poesia. O A moça estremeceu ao ouvir o vocábulo desagradável, mas
maravilhoso, o raro está em chegar à meta. O vulgar, o insí- Syme estava demasiadamente inflamado para reparar nela.
pido, está em não atingi-la. Sentimos um frêmito épico quan- — Ê a boa marcha das coisas que é poética! Exclamou.
do o homem com sua seta selvagem atinge um pássaro distan- Nossa digestão, desde que se mantenha sagrada e silenciosa-
te. Não é também épico quando o homem com uma locomo- mente normal... eis o fundamento de toda a poesia. Sim, a
tiva selvagem atinge uma estação distante? O caos é estúpido. coisa mais poética, mais' poética do que as flores, mais poética
No caos o trem podia ir a qualquer parte, a Baker Street ou a do que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar
Bagdad. Mas o homem é um mágico e toda a sua magia con- doente.
14 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 15
Realmente, disse Gregory com arrogância, os exemplos Rosamond fixou-o demoradamente. Em seu rosto grave
que você escolhe.. . e franco pairava a sombra daquela insensata responsabilidade
— Oh! Perdoe-me, respondeu Syme, inflexível. Esquecia- que habita o íntimo da mulher mais frívola, daquele desvelo
me que tínhamos abolido todas as convenções... maternal que é tão velho quanto o mundo.
Pela primeira vez um indício de rubor marcou a testa de — Então há razões para julgar Gregory um anarquista?
Gregory. — Apenas aquelas razões que dei há pouco, ou, se quiser,
— Quer dizer que você não espera, disse êle, que eu ini- aquelas sem-razões.
cie a revolução da sociedade aqui neste jardim?! Rosamond passou alguns momentos matutando, a testa
Syme cravou os olhos nos olhos do outro e sorriu com do- franzida; de repente, disse:
çura. — Em todo caso, não irá êle atirar bombas ou tomar par-
— Não, não espero. Mas creio que se você fosse um anar- te em atentados?
quista de verdade era exatamente isso o que faria. Syme rebentou numa gargalhada que parecia grande de-
Os enormes olhos taurinos de Gregory relampejaram co- mais para seu tipo frágil e levemente ajanotado.
mo os de um leão enfurecido, e quase se podia imaginar que — Não, por Deus! exclamou. Essas coisas têm de ser fei-
sua juba vermelha se encrespara. tas anonimamente.
— Então você acha, disse com grande dificuldade, que não Os lábios de Rosamond descerraram-se num sorriso. Ela
levo a sério o meu anarquismo? pensava em Gregory. Sabia-o inconseqüente, mas não precisava
— Como? Quer repetir, por favor? temer pela segurança dele.
— Que não levo a sério o meu anarquismo? rugiu Gre- Syme afastou-se com ela para um banco no canto do jar-
gory com os punhos fechados. dim e continuou a expor suas opiniões. Era um homem sin-
— Ora, meu caro! Não se aflija! respondeu Syme e afas- cero e, a despeito de suas graças e finezas superficiais, fundamen-
tou-se. talmente humilde. E é sempre o humilde que fala demais; o or-
Com surpresa, mesclada de curiosidade e prazer, desco- gulhoso mede as palavras com muita cautela. Defendia a respei-
briu que Rosamond Gregory havia acompanhado seus passos. tabilidade com ardor e exagero. Apaixonava-se no louvor à
— Mr. Syme, começou ela, pessoas como o senhor e meu cordura e à decência. Ali, sentado, aspirava a fragrancia dos
irmão, quando falam, estão sempre atentos para o que dizem? lilazes espalhados pelo jardim. Lenta e quase imperceptivel-
O senhor reparou no que disse? mente, começou a subir até êle, vinda de uma rua distante,
Syme sorriu e perguntou: a música de um realejo. Parecia-lhe que suas heróicas palavras
engolfavam-se numa delicada melodia emanada talvez de re-
— E a senhorita? Repara no que diz? giões subterrâneas ou extraterrenas.
— Que quer dizer o senhor? indagou a moça severamente. Ao passo que falava, comprazia-se em contemplar os ca-
— Cara Miss Gregory, disse Syme com brandura na voz, belos vermelhos e o rosto cândido da moça. Supondo terem
há muitas espécies de sinceridade e de insinceridade. Quando decorrido alguns minutos, advertiu que, em ocasiões como aque-
você, por exemplo, agradece ao vizinho de mesa que acaba de la, os pares não deviam isolar-se por muito tempo. Com este
lhe passar o saleiro, repara no que diz? Não. Quando diz que pensamento, pôs-se de pé, mas pasmou-se ao ver o jardim
o mundo é redondo, repara no que diz? Não. Está dizendo a completamente vazio. Há muito tinha saído o último conviva.
pura verdade, mas não se dá conta disso. Ora, às vezes acon- Embaraçado, pediu desculpas à moça e tratou de partir o mais
tece que um homem quando fala diz, realmente, aquilo que pen- depressa que pôde. Em sua cabeça — e êle não sabia como
sa. Pode dizer uma meia-verdade, um quarto ou um décimo da justificar essas sensações — boiavam uns como eflúvios de cham-
verdade, não importa. Ê o caso de seu irmão. Ao falar, êle panha. Nos extraordinários acontecimentos que viriam depois,
diz mais do que quer dizer, tal é o ímpeto com que pensa naquilo a moça não teria nenhuma participação. E êle não voltou a vê-
que está dizendo. la senão quando tudo acabou. Entretanto, por entre as temerá-
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 17
16 G. K. CHESTERTON

Caiu novamente o silêncio, e Syme, ainda que não pes-


rias aventuras que o aguardavam, a imagem dela havia de sur- casse o verdadeiro sentido das palavras do outro, instintiva-
gir, desaparecer e surgir de novo, inexplicavelmente, como o te- mente pressentiu a gravidade do momento. Gregory voltou a
ma de um movimento musical; e o esplendor de sua mara- falar com voz macia e sorriso desconcertante.
vilhosa cabeleira havia de atravessar, como um fio vermelho,
as tramas desvairadas e tenebrosas das tapeçarias da noite. — Mr. Syme, esta noite você fêz uma coisa realmente no-
Porquanto, o que se seguiu foi tão inacreditável que bem podia tável. Você fêz comigo o que nenhum homem nascido de mu-
ter sido um sonho. lher jamais conseguiu fazer antes.
— Realmente?
Quando Syme chegou à rua, achou-a deserta sob o céu es- — Aliás, se bem me recordo, disse Gregory pensativamen-
trelado. Não demorou a descobrir um misterioso silêncio que te, outra pessoa também conseguiu fazer a mesma coisa. Foi
era antes um silêncio vivo que morto. No alto do poste, situa- o comandante de um vaporzinho vagabundo, em Southend, se
do defronte da porta, uma lâmpada acesa dourava as folhas da a memória não me falha. A verdade é que você me irritou.
árvore, cujos galhos debruçavam-se sobre o muro. A um pas-
so do poste, alguém se mantinha de pé, quase tão rígido e imó- — Lamento muito, respondeu gravemente Syme.
vel como o próprio poste. Tinha a cabeça coberta por um cha- — Mas eu temo que a minha ira e o insulto que você me
péu alto e negro e o corpo envolto numa comprida sobreca- fêz ultrapassem os limites do tolerável e não possam ser apa-
saca negra; na sombra, o rosto era igualmente negro. Todavia, gados com uma simples desculpa, disse Gregory muito calmo.
a meada de cabelos avermelhados, escapos à zona das trevas, Nenhum duelo poderá apagá-lo. Se eu o matasse, o caso não
e a agressividade da postura publicavam' no vulto negro o poe- estaria encerrado. Só existe um meio de fazer desaparecer o
ta Gregory. Imitava os bravateiros embuçados que, munidos insulto e esse meio eu já o escolhi. Vou, com o possível sacri-
de espadas, espreitam a vinda do opositor. fício de minha vida e de minha honra, provar que você está en-
ganado em tudo quanto disse.
Gregory fêz um gesto semelhante a uma saudação e teve
da parte de Syme uma réplica algo mais solene. — Em tudo quanto eu disse?
— Estava esperando que você chegasse, disse Gregory. — Sim. Você disse que eu não levo a sério o meu anar-
Poderíamos conversar uns dois minutos? quismo.
— Há graus de seriedade, replicou Syme. Nunca pus em
— Pois não. De que se trata? inquiriu Syme um pouco dúvida a sua sinceridade em certas coisas. Por exemplo: você
espantado.
Gregory bateu com a bengala no poste e na árvore, ao só diz aquilo que lhe parece digno de ser dito, acredita que um
mesmo tempo em que começou a falar. paradoxo pode despertar a humanidade para uma verdade des-
prestigiada. Neste sentido, nunca duvidei de que você fosse
— Disto e disto. Da ordem e da anarquia. Aí tem você cabalmente sincero.
sua preciosa ordem nessa mesquinha lâmpada de ferro, feia e
estéril. E aqui está a anarquia, opulenta, viva, fecunda. Eis Gregory encarava-o firme mas penosamente.
a anarquia nesta árvore esplêndida nas cores do ouro e da es- — E num outro sentido, perguntou, você crê na minha
meralda. seriedade? Você me toma por um flâneur que deixa cair por
— Apesar de tudo, respondeu pacientemente Syme, neste onde passa uma ou outra verdade ocasional. Num sentido
momento você só pode ver a árvore sob a luz da lâmpada. mais profundo, mais intenso, você não crê que sou sério.
Não me consta que em tempo algum você possa ver a lâmpa- Syme bateu violentamente com a bengala na calçada e
da, sob a luz da árvore. Fêz uma curta pausa e prosseguiu: bradou:
mas posso perguntar-lhe se você ficou aqui todo esse tempo — Sério! Santo Deus! É seria esta rua? São sérias estas
no escuro, só para reabrir agora nossa discussão? malditas lanternas chinesas? É séria toda essa mixórdia? Olhe,
aparece aqui um sujeito, diz um montão de tolices e talvez tam-
— Não! explodiu Gregory numa voz que ressoou em to- bém algumas coisas sensatas. .. Está bem. Mas eu não darei
da a rua. Não fiquei aqui para recomeçar a discussão, mas um vintém por êle se no mais fundo do ser não conduzir uma
para acabar com ela de uma vez.
18 G. K. CHESTERTON

coisa mais séria do que essa tagarelice... uma coisa mais sé-
ria, que tanto pode ser a religião quanto a bebida.
— Muito bem, disse Gregory com o rosto sombrio. Você
vai conhecer uma coisa mais séria do que a bebida ou a religião.
Syme ficou aguardando delicadamente até que Gregory
retomou a palavra.
— Você acaba de falar em religião. É verdade, realmen-
te, que você tem uma? CAPITULO II
— Claro! exclamou Syme, com um sorriso radiante. So-
mos todos católicos agora.
— Então posso pedir-lhe que jure por todos os deuses O SEGREDO DE GABRIEL SYME
e santos da sua religião que não revelará a nenhum filho de
Adão e especialmente à polícia o que vou contar? Jura? Se
assume tão terrível compromisso, se consente em sobrecarre- Chegado em frente a uma cervejaria particularmente imun-
gar sua alma com um juramento que nunca pensou em fazer e da e lúgubre, o fiacre parou. Apearam-se e Gregory conduziu
com um conhecimento de coisas com que jamais sonhou, eu imediatamente o companheiro para um cubículo interior, som-
lhe prometo em troca... brio e abafado, espécie de locutório, onde se sentaram à roda de
— Você me promete em troca!?! insistiu Syme quando o uma sórdida mesa de pé de galo, toda de madeira. O quarto
outro se interrompeu. era tão pequeno e escuro que do serviçal chamado nada mais
— Eu lhe prometo uma noite muito divertida. se divisava além da vaga e negra sombra de um vulto corpulento
Syme tirou o chapéu e disse: e barbado.
— Seu oferecimento é tão insensato que não merece re- — Quer cear? perguntou Gregory polidamente. O pâté
cusa. Você diz que um poeta é sempre um anarquista. Dis- de foie gras daqui não é bom, mas posso recomendar a lebre.
cordo. Mas espero que êle seja pelo menos um cavalheiro. Per- Syme recebeu impassível a observação, imaginando tratar-
mita-me, aqui e agora, jurar como cristão e prometer como
bom camarada e companheiro de ofício, que não contarei nada, se de uma pilhéria. Disposto a seguir o filão de humor, respon-
seja o que fôr, à polícia. E agora, em nome de Colney Hatch, deu com propositada indiferença:
de que se trata? — Ora, me traga maionese de lagosta.
— Acho, disse Gregory com plácida dissimulação, que de- Para sua indescritível estupefação, o criado disse apenas
vemos chamar um fiacre. "Pois não, senhor!" e foi buscá-la.
Deu dois longos assobios, e um fiacre veio ressoando pela — Que quer beber? acrescentou Gregory, com o mesmo
rua. Entraram em silêncio. Pela portinhola, Gregory deu o en- ar descuidado mas polido. Como já jantei, vou tomar somente
dereço de uma obscura taberna situada em Chiswick, à mar- um creme de menthe. No champanha se pode confiar... Dei-
gem do rio. O fiacre foi posto de novo em movimento e, den- xe-me servir-lhe ao menos meia garrafa de Pommery.
tro dele, estes dois fantásticos sujeitos deixaram seu não menos — Muito obrigado, disse o imóvel Syme. Você é muito
fantástico subúrbio. amável.
Suas tentativas, até então frustradas, de manter a conver-
sação, foram enfim cortadas, como por um raio, com a presen-
ça da lagosta. Syme degustou-a, achou-a bastante apetitosa e
logo começou a comer com grande avidez.
— Perdoe-me se manifesto tão claramente minha satisfa-
ção, disse sorrindo a Gregory. Nem sempre tenho a sorte de ter
20 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 21

um sonho como este. É uma novidade para mim que um pesade- um baque surdo. Mas quando Gregory escancarou as duas fo-
lo conduza a uma lagosta. Comumente sucede o inverso. lhas de uma porta e surgiu uma subterrânea luz vermelha, Sy-
— Não está dormindo, garanto-lhe, disse Gregory. Ao me continuava a fumar tranqüilamente, uma perna cruzada so-
contrário; você está à beira do momento mais real e excitante bre a outra, e um único fio de seus cabelos amarelos não se ti-
de sua existência. Ah, olhe aí seu champanha! Admito que nha desarranjado.
haja uma leve desproporção, digamos, entre o arranjo interior Gregory guiou-o através de um corredor baixo, abobadado,
deste excelente hotel e seu exterior simples e despretensioso. de onde provinha a luz vermelha. Lá no fundo, presa a uma
Mas nisso reside toda a nossa modéstia. Somos os homens mais pequena e pesada porta de ferro, estava uma enorme lanterna
modestos que jamais viveram sobre a terra. escarlate, quase tão grande como uma lareira. Na porta ha-
— E quem são nós? perguntou Syme, esvaziando o copo via um tipo de escotilha ou vigia, na qual Gregory deu cinco
de champanha. pancadas. Uma voz forte, com sotaque estrangeiro, perguntou
— Muito simples, respondeu Gregory. Nós somos os anar- quem era. Gregory deu uma resposta mais ou menos inesperada:
quistas sérios, em quem você não acredita. "Mr. Joseph Chamberlain". Moveram-se os pesados gonzos.
— Oh! exclamou Syme. Vocês se arranjam bem nas be- Evidentemente, tratava-se de uma senha.
bidas! Interiormente, o corredor cintilava como se estivesse re-
— Sim, somos sérios em tudo, respondeu Gregory. vestido de uma rede de aço. Num segundo relance, Syme per-
Depois de uma pausa acrescentou: cebeu que a fulgurante parede estava realmente forrada de
— Se dentro de alguns instantes esta mesa começar a gi- várias fileiras de espingardas e pistolas, estreitamente entrelaça-
rar um pouco, não meta isso na conta das suas incursões no das ou amontoadas.
champanha. Não quero que você cometa uma injustiça. — Devo pedir-lhe perdão por todas essas formalidades,
— Bem, se não estou bêbado, estou louco, replicou Syme disse Gregory. Temos que ser muito rigorosos aqui.
com absoluta calma. Mas confio em que possa comportar-me — Não se desculpe, disse Syme. Conheço sua paixão pela
como um cavalheiro em qualquer circunstância. Posso fumar? lei e pela ordem. E entrou no corredor guarnecido pelas armas
— À vontade, disse Gregory, apresentando-lhe uma cha- de aço. Com seus compridos cabelos louros e sua ridícula so-
ruteira. Experimente um dos meus. brecasaca, era na verdade uma figura singularmente frágil e
Syme aceitou o charuto e, cortando-lhe a ponta com um fantástica a caminhar naquela rutilante avenida da morte.
corta-charutos que tirou do bolso do colete, levou-o à boca, Atravessaram vários corredores idênticos e chegaram, por
acendeu-o vagarosamente e soltou imensa baforada. Credite- fim, a um esquisito quarto de aço e de paredes curvas, quase
se a seu favor a calma com que efetuou todo este ritual, pois, esférico, mas sugerindo, com suas fileiras de bancos, o aspecto
pouco antes de iniciá-lo, a mesa tinha começado a girar, a prin- de um anfiteatro científico. Nele não havia espingardas nem pis-
cípio vagarosamente e depois cèleremente como numa sessão tolas, mas estavam suspensas nas paredes formas mais ambí-
espírita. guas e terríveis, coisas que lembravam bulbos de plantas de fer-
— Não faça caso, disse Gregory. Ê uma espécie de rosca. ro, ou ovos de pássaros de ferro. Eram bombas, e o quarto
'•— Exato! disse Syme plàcidamente. Uma espécie de rosca. mesmo assemelhava-se ao interior de uma bomba. Syme bateu
Como é simples! na parede para derrubar a cinza do charuto e entrou.
Um minuto depois, a fumaça do charuto, que até então — E agora, meu caro Mr. Syme, disse Gregory sentando-
ondulava pelo quarto em serpeantes volteios, subiu a prumo se expansivamente no banco situado debaixo da bomba maior,
como por uma chaminé de fábrica, e os dois, mais a mesa e as agora que estamos à vontade, falemos claramente. Mas nenhu-
cadeiras, desapareceram através do assoalho, como se a terra ma palavra da linguagem dos homens poderá lhe dar a menor
os tivesse tragado. Foram caindo estrepitosamente por dentro de idéia do motivo que me impeliu a trazê-lo até aqui. Foi uma
uma espécie de chaminé rugidora, tão rapidamente como um daquelas emoções puramente arbitrárias, que levam a gente a
ascensor desgovernado, e de supetão chegaram ao fundo com pular de um rochedo ou a apaixonar-se. Limito-me a dizer
22 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 23

que você foi e, para fazer-lhe justiça, ainda continua sendo um correndo sobre anarquismo diante de todas as donas desocupa-
camarada indizivelmente irritante. Eu quebraria vinte juramen- das de Saffron Park?
tos de sigilo só pelo simples prazer de espezinhá-lo. Esse seu Gregory sorriu:
modo de acender o charuto obrigaria um padre a revelar o — A resposta é simples. Já lhe disse que sou um anar-
segredo da confissão. Bem. Você dizia que estava perfeita- quista sério, mas você não acreditou. Nem ninguém acredita.
mente convicto de que eu não era um anarquista sério. Este Enquanto não os trouxer a esta sala infernal não acreditarão.
lugar não lhe parece sério?
Syme fumava pensativamente e fitava-o com interesse.
— Realmente parece encobrir uma moral debaixo de toda Gregory continuou:
sua gaiatice, assentiu Syme. Mas posso fazer-lhe duas pergun- — A história que lhe vou contar poderá diverti-lo. Logo
tas? Não precisa ter medo de me dar informações. Você deve que me fiz membro dos Novos Anarquistas experimentei todos
estar lembrado de que muito habilmente extorquiu de mim a os gêneros de disfarces respeitáveis. Vesti-me de bispo. Cuidei de
promessa de nada contar à polícia... promessa que em verda- ler tudo o que se relacionava com os bispos em nossos opús-
de cumprirei. Portanto, é por mera curiosidade que faço tais culos anarquistas. O Vampiro da Superstição e Padres de Ra-
perguntas. Em primeiro lugar, que é que tudo isso significa? O pina. Aprendi neles que os bispos são uns anciãos terríveis e
que é que vocês pretendem? Querem abolir o governo? estranhos que ocultam da humanidade um segredo cruel.
— Queremos abolir Deus! disse Gregory abrindo os olhos Estava enganado. A primeira vez que, com botas episcopais,
de fanático. Não pretendemos somente perturbar alguns despo- botei os pés num salão e trovejei — "Humilha-te, humilha-te,
tismos e regulamentos policiais. Esse tipo de anarquismo existe, presunçosa razão humana" — descobriram, não sei como, que eu
mas não passa de um ramo dos não-conformistas. Nós cavamos nada tinha de bispo e me apanharam imediatamente. Depois
mais fundo e vamos fazê-los voar mais alto. Visamos a nega- banquei o milionário, mas defendia o capital com tanta inte-
ção de todas as arbitrárias distinções, estabelecidas entre o vício ligência que qualquer imbecil podia ver logo que eu era muito
e a virtude, a honra e a traição, que ainda constituem o fun- pobre. Então, procurei passar por major. Pessoalmente, sou
damento da rebeldia dos simplórios. Os ingênuos sentimentais da um humanitário, mas creio possuir bastante largueza intelec-
Revolução Francesa pregavam os Direitos do Homem! Nós tual para compreender a posição daqueles que, como Nietzs-
odiámos Direitos e Injustiças. Já abolimos os dois. che, admiram a violência, a guerra altiva, feroz da natureza e
— E a direita e a esquerda? perguntou Syme com simplici- tudo o mais que você conhece. Transformei-me, então, num ma-
dade. Espero que vocês as eliminem também. Para mim são jor. Constantemente desembainhava e brandia a espada e, sem
muito mais enfadonhas. nenhum propósito, gritava: "Sangue!", como um homem que
pede Vinho. Repeti muitas vezes: "Pereçam os fracos. É a
— Você falou de uma segunda pergunta, interrompeu Gre- lei". Parece que não é assim que procedem os majores. Fui
gory. apanhado novamente. Afinal, desesperado, fui ter com o Pre-
— Com muito prazer, disse Syme reatando o fio da con- sidente do Conselho Central Anarquista, que é o homem mais
versa. Noto que, em todos os atos e circunstâncias presentes, notável da Europa.
vocês tentam cobrir-se de mistério. Tenho uma tia que morava
em cima de uma loja, mas esta é a primeira vez que encontro -— Como se chama? perguntou Syme.
gente que vive, de preferência, debaixo de uma taberna. Pos- — Você não pode nem imaginar, respondeu Gregory. E
suem uma pesada porta de ferro e não podem passar por ela sem nisso está a grandeza dele. César e Napoleão empenharam to-
se submeter à humilhação de chamar-se Mr. Chamberlain. Cer- do o seu gênio para se tornarem conhecidos e tiveram êxito.
cam-se de apetrechos de aço que tornam o lugar, por assim dizer, Nosso Presidente põe todo o seu gênio em conseguir que não
mais sinistro do que acolhedor. Posso agora perguntar-lhe por se fale dele, e o conseguiu. Mas você não pode ficar cinco
que, depois de vencer todos esses obstáculos para entrincheirar- minutos na mesma sala em que êle estiver sem sentir que na
se nas entranhas da terra, você alardeia os seus segredos, dis- mão dele César e Napoleão teriam sido dois meninotes.
24 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 25

Empalideceu e passou uns momentos em silêncio. De- vou contar-lhe uma coisa que não teria coragem de contar aos
pois prosseguiu: anarquistas que estarão aqui dentro de dez minutos. Natural-
— Qualquer que seja o conselho que êle dê é sempre mente iremos proceder a uma forma de eleição. Não me aca-
uma coisa tão surpreendente como um epigrama e ao mesmo nho de dizer-lhe que estou certo do resultado. E baixando mo-
tempo tão prática como o Banco da Inglaterra. Perguntei-lhe: destamente os olhos, disse: Está quase estabelecido que eu se-
"Que disfarce esconder-me-á das vistas do mundo? Que posso rei o Quinta-feira.
eu descobrir de mais respeitável que bispos e majores?" Êle — Bravo, amigo! exclamou Syme calorosamente. Congra-
me olhou com sua cara enorme e indecifrável. "Você quer um tulo-me com você. Bela carreira!
disfarce que o ponha a salvo de tudo, não é? Você quer um Gregory sorriu com modéstia e, enquanto atravessava a
traje que lhe permita passar por inofensivo; um traje de que nin- sala, falava apressadamente.
guém possa suspeitar que leva uma bomba escondida?" Assen- — A verdade é que tudo está pronto para mim nesta me-
ti com a cabeça. E êle prosseguiu, alteando a voz de leão: sa, e a cerimônia provavelmente será a mais curta possível.
"Pois, então, vista-se como um anarquista, seu idiota!", rugiu Por sua vez, Syme foi até à mesa e viu uma bengala que
com tanta força que abalou a sala. "E não haverá ninguém um exame mais apurado revelou ser uma bengala de estoque.
que o julgue um tipo perigoso". E virou-se, dando-me suas Lá estavam também um grande revólver Colt, um embrulho de
largas costas, sem me dizer outra palavra. Tomei o conselho e sanduíches e uma formidável garrafa de conhaque. Numa ca-
até aqui não me arrependi. Dia e noite preguei sangue e des- deira, ao lado da mesa, fora atirado um capote.
truição àquelas mulheres e — por Deus! — elas me deixariam — Resta-nos somente esperar que se cumpram as formali-
guiar o carrinho em que levam os filhos a passeio. dades da eleição, prosseguiu Gregory com desenvoltura. Uma
Os grandes olhos azuis de Syme fitavam o companheiro vez concluídas, agarro a capa e a bengala, meto as outras coisas
respeitosamente. no bolso e abandono esta caverna, saindo por uma porta que dá
— Você me ludibriou, disse êle. É realmente um embus- para o rio. Lá me espera uma lancha a vapor. Então.. . De-
te primoroso. pois . . . Oh! A alegria selvagem de ser o Quinta-feira! E en-
Fêz uma pausa e acrescentou: trelaçou os dedos nervosamente.
— Que nome tem esse medonho Presidente? Syme, que se sentara uma vez mais com seu habitual lan-
— Nós todos o chamamos Domingo, respondeu Gregory gor insolente, levantou-se com um desusado ar de hesitação.
com simplicidade. O Conselho Central Anarquista se compõe — Por que é, perguntou de maneira um tanto vaga, que
de sete membros que receberam os nomes dos dias da semana. O eu acho que você é um sujeito honesto? Por que é que eu sim-
Presidente é o Domingo. Alguns de seus admiradores chamam- patizo francamente com você? Parou um instante e depois ajun-
no Domingo, o Sanguinário. É curioso que você tenha tocado tou, como se o fizesse por pura curiosidade: Será porque você
neste ponto, porque nesta mesma noite em que você caiu do é um verdadeiro asno?
céu (desculpe-me a expressão) nossa seção londrina deve reu- Ficou meditando em silêncio durante alguns momentos
nir-se aqui nesta sala para eleger um representante que vai pre- e por fim exclamou:
encher a vaga no Conselho. O cavalheiro que desempenhou por — Ora, dane-se tudo! Nunca em minha vida me vi numa
algum tempo, com perícia e aplausos gerais, as árduas funções situação mais engraçada do que esta, mas vou comportar-me à
de Quinta-feira, acaba de morrer. Por isso, convocamos es- altura. Gregory, antes de entrar aqui eu lhe fiz uma promessa.
ta noite uma reunião para escolhermos o seu sucessor. E hei de cumpri-la, mesmo torturado por tenazes incandescen-
Levantou-se e começou a passear pela sala, sorrindo com tes. Você está disposto a fazer, para minha segurança, uma
certo embaraço. pequena promessa da mesma espécie?
— Syme, de certo modo, eu o sinto agora como se você — Uma promessa? perguntou Gregory espantado.
fosse minha mãe. Sinto que posso confiar-lhe qualquer coisa, — Sim, uma promessa respondeu Syme muito sério. Pe-
desde que você prometeu não contar nada a ninguém. De fato, rante Deus eu jurei que não contaria seu segredo à polícia.
26 G. K. CHESTERTON

Poderá você jurar pela humanidade, ou por qualquer outra as-


neira da sua crença, que não revelará meu segredo aos anar-
quistas?
— Seu segredo? perguntou Gregory estupefato. Você
tem um segredo?
— Tenho, disse Syme. Eu tenho um segredo. Depois de
uma pausa, insistiu: Jura?
Antes de falar, Gregory considerou gravemente o outro por
alguns instantes. CAPITULO III
— Você deve ter-me enfeitiçado, mas sinto uma furiosa
curiosidade a seu respeito. Juro. Juro que não contarei aos
anarquistas nada do que você me disser. Mas avie-se. Em dois O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA
minutos eles estarão aqui.
Syme levantou-se e enfiou as mãos brancas e compridas
nos bolsos das calças cinzentas. Quase ao mesmo tempo soa- Antes que assomasse à porta o primeiro recém-chega-
ram cinco pancadas na escotilha, anunciando a chegada dos pri- do, Gregory se tinha recuperado da surpresa e do aturdimento.
meiros conspiradores. De um salto pôs-se ao lado da mesa. Rugindo feito uma fera,
— Bem, disse Syme, e continuou a-falar com lentidão. Não apanhou o revólver e apontou-o para Syme. Este, sem vacilar,
sei como contar-lhe a verdade em poucas palavras, senão di- ergueu a mão pálida e delicada.
zendo que o seu expediente de disfarçar-se como um poeta de- — Não seja idiota, disse com a dignidade efeminada de
sorientado não é privilégio seu nem do seu Presidente. Algumas um cura. Não vê que não é necessário? Não vê que embar-
vezes também temos lançado mão do mesmo embuste na Scot- camos no mesmo bote e que ambos estamos mareados?
land Yard. Gregory não podia falar, mas também não podia disparar
Gregory tentou levantar-se de um pulo, mas por três ve- a arma; apenas podia considerar em silêncio a situação.
zes fraquejou.
— Que é que você está dizendo? perguntou aterrado. — Não vê que nos pusemos em xeque um ao outro? gri-
— Isso mesmo, disse Syme simplesmente. Sou detetive. tou Syme. Eu não posso dizer à polícia que você é anarquis-
Trabalho para a polícia. Mas. .. creio que seus amigos estão ta. Você não pode dizer aos anarquistas que eu sou da polícia.
chegando. Posso apenas vigiá-lo, ciente do que você é; você pode apenas
Do corredor vinha um murmúrio de "Mr. Joseph Cham- vigiar-me, ciente do que eu sou. Em suma, trata-se de um soli-
berlain", repetido duas vezes, três, trinta vezes, casado ao trotar tário duelo intelectual: minha cabeça contra a sua. Eu sou um
daquela multidão de Joseph Chamberlains — o que parecia a polícia privado da ajuda da polícia. E você, meu pobre amigo, é
personificação mesma da solenidade. um anarquista privado da ajuda daquela lei e daquela organi-
zação tão essenciais à anarquia. A única diferença que existe é
a seu favor. Você não está rodeado de polícias inquiridores;
eu estou rodeado de anarquistas inquiridores. Não posso atrai-
çoá-lo, mas poderia eu mesmo atraiçoar-me. Vamos, homem!
Espere para ver como me atraiçôo. Vou fazê-lo primorosa-
mente.
Gregory baixou vagarosamente o revólver, ainda com os
olhos presos em Syme, como se este fosse um monstro ma-
rinho.
28 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 29

— Não creio na imortalidade, disse por fim. Mas se, de- temer. Êle mesmo, Gregory, não podia atraiçoar Syme, em
pois de tudo isso, você quebrar sua palavra, Deus fabricará parte por questão de honra, mas em parte também porque,
um inferno só para você gemer lá dentro eternamente. se êle o atraiçoasse e por um motivo qualquer fracassasse em
— Não quebrarei minha palavra, disse Syme severamente, destruí-lo, o Syme que escapasse seria um Syme desonerado
nem você quebrará a sua. Seus amigos já estão aqui. de todos os compromissos de sigilo, um Syme que simplesmente
A massa de anarquistas entrou pesadamente na sala, a correria a denunciá-lo na Delegacia mais próxima. No fim de
passo duro e fatigado. Um homenzinho de barba negra e de contas, tratava-se de uma única reunião noturna e de um úni-
óculos — um sujeito mais ou menos do tipo de Mr. Tim Healy co detetive que a assistia. Teria o cuidado de evitar o mais pos-
— destacou-se do grupo, agitando numa das mãos um maço de sível, naquela noite, que se mencionassem os planos de ação.
papéis. Depois Syme ia embora e o caso estava encerrado.
— Camarada Gregory, disse êle, suponho que esse homem A passos largos avançou por entre os anarquistas que
é um delegado, não? começavam a distribuir-se nos bancos, e disse:
Surpreendido, Gregory baixou os olhos e gaguejou o nome — Penso que é tempo de começarmos. A lancha está
de Syme; mas Syme, quase petulante, respondeu: esperando no rio. Proponho que o camarada Buttons assuma
— Alegra-me ver que a sua porta é tão bem guardada que a presidência.
é dificílimo para alguém que não seja delegado entrar aqui. Erguendo as mãos, todos aprovaram a proposta. O ho-
Entretanto, o homenzinho da barba negra, visivelmente menzinho dos papéis enfiou-se na poltrona presidencial.
suspeitoso, contraiu a testa. — Camaradas! começou êle com voz incisiva como dispa-
— Qual dos nossos ramos você representa? perguntou ro de pistola. Nossa reunião desta noite é importante, mas
maliciosamente. convém que seja breve. Esta seção tem, desde sempre, tido
— Eu não diria que represento um ramo, disse Syme a honra de eleger Quintas-feiras para o Conselho Central Eu-
rindo. Acho melhor dizer que represento a raiz. ropeu. Elegemos muitos e valorosos Quintas-feiras. Todos
— Que quer dizer com isso? lamentamos o triste desaparecimento do heróico trabalhador
— A verdade, disse Syme serenamente, é que eu sou saba- que ocupou o posto até a semana passada. Como sabeis, êle
tista. Enviaram-me especialmente para que vocês observem prestou consideráveis serviços à nossa causa. Organizou aque-
aqui o devido acatamento ao Domingo. la grande explosão de dinamite em Brighton, que, sob circuns-
O homenzinho deixou cair um de seus papéis, e um bru- tâncias mais favoráveis, teria matado todos quantos se encon-
xuleio de medo perpassou em todas as fisionomias do grupo. travam no cais. Sabeis também que êle foi tão desprendido em
Evidentemente, o terrível Presidente, cujo nome era Domin- sua morte como o tinha sido em vida, pois morreu no culto
go, costumava enviar esses embaixadores intempestivos às as- à fé que depositava numa higiênica mistura de água e giz, em
sembléias secionais. substituição ao leite, beberagem que considerava própria de
— Bem, camarada, disse o homenzinho dos papéis, acho bárbaros pela crueldade que inflige à vaca. E a crueldade,
que agiríamos corretamente dando-lhe um lugar em nossa reu- ou qualquer coisa que lembrasse a crueldade, indignava-o. Mas
nião. não é para louvar suas virtudes que estamos reunidos, e sim pa-
— Se você me pede um conselho de amigo, disse Syme ra uma tarefa mais árdua. Difícil é glorificar o mérito de suas
com severa benevolência, acho que é isso que devem fazer. qualidades; é, porém, ainda mais difícil substituí-las. A vós,
Quando Gregory notou que o perigoso diálogo terminara, camaradas, compete, nesta noite, escolher, entre os presentes, o
com inesperada salvação para seu rival, levantou-se imedia- homem que deverá ser Quinta-feira. Espero que um de vós
tamente e começou a caminhar pela sala, mergulhado em pe- indique um nome para ser submetido à votação. Se nenhum
nosos pensamentos. Afligia-o, deveras, uma angústia diplomá- nome fôr indicado serei forçado a admitir que aquele querido
tica. Era óbvio que, com sua inspirada desfaçatez, Syme ven- dinamitador, que nos deixou para sempre, levou aos abismos in-
ceria todas as situações difíceis. Por esse lado não havia o que sondáveis o último segredo da virtude e da inocência.
30 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 31

Houve um movimento de aplauso quase inaudível, tal co- sempre ouviu dizer que somos pragas vivas nunca ouviu nossa
mo o que se ouve às vezes na igreja. Em seguida, um ancião resposta. É certo que ainda não vai ouvi-la nesta noite, em-
corpulento, com uma comprida e venerável barba branca, tal- bora a paixão me mande romper o teto com minhas palavras.
vez o único trabalhador real que ali se encontrava, levantou-se Porque é nas profundezas do coração da terra que os perse-
com dificuldade e falou: guidos têm permissão para reunir-se, como os cristãos se reu-
— Proponho para Quinta-feira o camarada Gregory. E niam nas catacumbas. Mas, se por um desses incríveis acasos,
voltou a sentar-se com a mesma dificuldade. estivesse aqui neste momento um homem que durante toda a
— Há alguém que secunde esta proposta? perguntou o sua vida alimentou imensos preconceitos a nosso respeito, far-
Presidente. lhe-ia esta pergunta: "Que espécie de reputação moral desfru-
Um tipo pequeno, barbado, vestido com um casaco de ve- tavam nas ruas de Roma os cristãos que se congregavam nas
ludo, apoiou a resposta. catacumbas? Quantas histórias de atrocidades cristãs não con-
— Antes de submeter a matéria à votação, disse o Presi- tavam os romanos cultos? Suponde (eu pediria a esse homem),
dente, convido o camarada Gregory a fazer sua profissão de fé. suponde que nós estamos apenas revivendo aquele misterioso
Gregory ergueu-se no meio de ruidosos aplausos. A pali- paradoxo da História. Suponde que nós parecemos tão escanda-
dez mortal de seu rosto acentuava, por contraste, o esquisito losos como os cristãos porque somos realmente tão inofensi-
vermelho de seus cabelos, que pareciam quase escarlates. Mas vos como eram os cristãos. Suponde que parecemos tão loucos
sorria e estava inteiramente à vontade. Tinha o espírito prepa- como os cristãos porque somos realmente tão mansos como
rado e, diante de si, via o programa que traçara, plano e reto eles".
como uma estrada branca. Estava decidido a fazer um discur- Os aplausos que tinham saudado as primeiras frases de
so ameno e ambíguo a fim de gravar na mente do detetive a Gregory foram esfriando gradualmente e ante as últimas pala-
impressão de que a fraternidade anarquista era, de resto, mui- vras sumiram-se de vez. Cortou o repentino silêncio a voz
to suave. Acreditava no próprio talento literário e na sua ca- forte e áspera do homem do casaco de veludo.
pacidade de sugerir belos matizes e usar palavras inconfundíveis. — Eu não sou manso!
Julgava que, com cautela e a despeito das pessoas que o ro- — O camarada Witherspoon, tornou Gregory, diz que
deavam, podia dar da instituição uma idéia sutil e delicadamen- não é manso. Ah, como êle conhece tão mal a si mesmo! Não
te falsa. Já uma vez Syme presumira que os anarquistas co- podeis negar que êle usa de expressões extravagantes e que
briam com suas arruaças as mais refinadas tolices. Não podia sua aparência é feroz e mesmo (para o gosto vulgar) pouco
agora, num momento de perigo, reforçar a antiga presunção sedutora. Mas somente o olho de uma estima tão profunda
de Syme? e dedicada como a minha pode perceber as camadas de sólida
— Camaradas! começou em voz baixa mas penetrante. mansidão que lhe forram o âmago do ser, camadas tão inescru-
Não é mister dar-vos conta da minha política, pois ela tam- táveis que êle mesmo é incapaz de divisá-las... Repito: So-
bém é a vossa. Nossa crença tem sido caluniada, deformada, mos os verdadeiros cristãos primitivos, só que chegamos muito
totalmente obscurecida e vilipendiada, mas persiste incorruptí- tarde. Somos simples como eles eram simples: contemplai o
vel. Os ociosos que falam da anarquia e da ameaça que ela camarada Witherspoon. Somos modestos, como eles eram
representa, catam informações ali, acolá, por toda a parte, mas modestos: contemplai-me. Somos clementes...
não nos buscam, não buscam as nascentes, as origens. Sobre os — Não! Isso não! É demais! protestou Mr. Witherspoon,
anarquistas instruem-se nas novelas baratas, instruem-se nos o do casaco de veludo.
jornais da bolsa comercial, instruem-se no Ally Sloper's Half- Gregory repetiu furioso:
Holiday e no Sporting Times. Nunca se instruem sobre os anar- — Somos clementes como os primitivos cristãos eram
quistas nas próprias fontes anarquistas. Não temos ensejo de clementes, o que não impediu que eles fossem acusados de co-
desagravar as montanhas de ultrajes que, de um extremo a ou- mer carne humana. Nós não comemos carne humana...
tro da Europa, acumulam sobre nossas cabeças. O homem que — Vergonha! bradou Witherspoon. Por que não?
32 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 33

— O camarada Witherspoon, disse Gregory com febril palavra que um cura não pudesse ouvir com prazer. (Apoiado,
jovialidade, está ansioso de saber por que motivo ninguém o apoiado) Mas eu não sou um cura (Ruidosos aplausos) e não
come. (Risos) De qualquer modo, no seio de nossa socieda- o escutei com prazer. (Renovados aplausos) O sujeito talhado
de, que o estima sinceramente, que está fundada no amor... para ser um bom cura não foi talhado para ser um enérgico,
— Não! não! disse Witherspoon, abaixo o amor! resoluto e eficiente Quinta-feira. (Apoiado, apoiado) O cama-
— . . . que está fundada no amor, repetiu Gregory ran- rada Gregory nos disse, num tom demasiadamente indulgente,
gendo os dentes, não haverá dificuldade em atingir o objetivo que nós não somos os inimigos da sociedade. Mas eu digo que
que visamos como uma corporação, ou que eu visaria se fos- nós somos os inimigos da sociedade, e tanto pior para a socie-
se eleito representante dessa corporação. A cavaleiro das ca- dade. Nós somos os inimigos da sociedade, pois a sociedade
lúnias que nos representam como assassinos e inimigos da so- é inimiga da humanidade, sua mais antiga e impiedosa inimiga.
ciedade humana, demandaremos, com coragem moral e tran- (Apoiado, apoiado) O camarada Gregory nos disse, mais uma
qüilo impulso intelectual, os perenes ideais de fraternidade e vez indulgente, que não somos assassinos. Concordo. Não so-
simplicidade. mos assassinos. Somos carrascos. (Aplausos)
Gregory volveu a seu banco e passou a mão pela testa. Desde que Syme se levantara, Gregory permanecia fitan-
Fêz-se um silêncio constrangedor, mas o Presidente ergueu-se do-o, com o rosto idiotizado de assombro. Na pausa que se
como um autômato e falou com voz incolor: fêz, seus lábios côr de barro despregaram-se e êle exclamou
— Há alguém que se oponha à eleição do camarada Gre- com automática e inanimada clareza:
gory? — Maldito hipócrita!
A assembléia dava a impressão de estar vaga e subcons- Syme cravou seu olhar azul-pálido nos olhos furiosos de
cientemente desapontada. O camarada Witherspoon mexia-se Gregory e disse com dignidade:
intranqüilo em seu banco e resmungava dentro da espessa bar- — O camarada Gregory acusa-me de hipocrisia. Êle sabe,
ba. Todavia, por mera rotina, a proposta teria sido aprova- tão bem como eu, que estou mantendo meus compromissos e
da. Mas quando o Presidente ia abrir a boca para declará-la que não faço outra coisa senão o meu dever. Falo sem rebuços.
aprovada, Syme levantou-se rapidamente e disse com voz sumida Não simulo. Digo que o camarada Gregory é incompetente
e quieta: para o cargo de Quinta-feira, apesar de todas as suas amáveis
— Sr. Presidente, eu me oponho. qualidades. Aliás, êle está incapacitado de ser Quinta-feira em
O fator decisivo na oratória é uma súbita mudança de razão de suas amáveis qualidades. Não queremos o Supremo
voz. E Mr. Gabriel Syme evidentemente entendia de oratória. Conselho da Anarquia infetado de pieguismo sentimental.
Tendo pronunciado estas primeiras palavras formais num tom (Apoiado, apoiado) Não é tempo de polidez cerimoniosa,
moderado, breve e simples, fêz com que as seguintes retumbas- e menos ainda de cerimoniosa modéstia. Oponho-me ao cama-
sem e estalassem na abóbada, como se uma das armas hou- rada Gregory como me oporia a todos os governos da Europa.
vesse disparado. O anarquista que se dedicou à anarquia esqueceu a modéstia
— Camaradas! gritou com uma voz que fêz estremecer e esqueceu também o orgulho. (Aplausos) Não sou apenas
os ouvintes. Foi para isto que viemos até aqui? Para ouvir- um homem. Sou uma causa. (Aplausos renovados) Oponho-
mos frases como essas é que vivemos soterrados como ratos? me ao camarada Gregory tão impessoalmente e tão serena-
Bobagens desta ordem podemos escutar nos banquetes das es- mente como se tivesse de escolher entre um revólver e outro
colas dominicais. Revestimos de armas estas paredes e barra- numa daquelas prateleiras. E digo mais: em lugar de ter Gre-
mos a porta com a morte para impedir que outros venham aqui gory e seus métodos açucarados no Supremo Conselho, ofe-
ouvir o camarada Gregory dizer-nos: "Sede bons e sereis fe- reço-me como candidato...
lizes", "A honestidade é o melhor princípio" e "A virtude traz Esta frase afogou-se numa ensurdecedora cachoeira de
em si mesma a recompensa"? Respondam-me por favor. Não aplausos. Aquelas caras, que iam ficando mais ferozes à me-
houve em todo o discurso do camarada Gregory uma única dida que aprovavam as palavras cada vez mais intransigentes
34 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 35

de Syme, estavam agora retorcidas em esgares de expectação — Êle é inexperiente em nosso trabalho, concluiu e sen-
ou fendidas em gritos de regozijo. No momento em que êle tou-se imediatamente.
se anunciou como candidato ao posto de Quinta-feira, rebentou Nesse ínterim, o homem comprido e magro, do cavanha-
incontrolável bramido de excitação e assentimento. Gregory, que americano, conseguira levantar-se e estava repetindo com
cuja boca espumava, ergueu-se de um salto e berrou para conter monótono sotaque americano:
a gritaria. — Peço licença para apoiar a candidatura do camarada
— Parai! Loucos, parai! gritou com uma voz aguda que Syme.
lhe rasgava a garganta. Parai... — Como é de praxe, deverá ser apreciada, em primeiro
Entretanto, acima dos brados de Gregory e acima do ala- lugar, a emenda, disse Mr. Buttons, o Presidente, com mecâ-
rido geral, ouvia-se a voz de Syme trovejando impiedosamente: nica rapidez. Resta saber se o camarada Syme...
— Não vou para o Conselho com o fim de rebater a Gregory estava novamente de pé, ofegante e arrebatado.
calúnia dos que nos chamam assassinos; ao contrário, lutarei — Camaradas! bramiu. Não sou nenhum louco.
por merecê-la. (Aplausos estrepitosos e prolongados) Ao pá- — Oh, oh! interrompeu Mr. Witherspoon.
roco que afirma que estes homens são inimigos da religião, ao — Não sou nenhum louco, reiterou Gregory com tão ines-
juiz que afirma que estes homens são inimigos da lei, ao gordo perada sinceridade que por uns instantes a sala ficou em silên-
parlamentar que afirma que estes homens são inimigos da or- cio. Dou-vos um conselho. Chamai-me louco, se quiserdes.
dem e da moralidade públicas, a todos eles responderei: "Sois Não, não. Não direi que é um conselho, pois não posso dar-
falsos reis, mas sois verdadeiros profetas. Vim para destruir- vos nenhuma razão para o seguirdes. Direi que é uma ordem.
vos e cumprir vossas profecias". Podeis chamá-la uma ordem louca, mas executai-a. Protestai,
O pesado clamor paulatinamente decrescia, mas antes que mas ouvi-me! Matai-me, mas obedecei-me! Não elejais este
cessasse Witherspoon, arrebatado, o cabelo e a barba eriçados, homem!
falou: A verdade, mesmo agrilhoada, é tão terrível, que por um
— Proponho, como emenda, que o camarada Syme seja momento a vitória louca e frágil de Syme oscilou como um
indicado para o posto. caniço ao vento. Mas nada se podia adivinhar nos olhos frios
— Parai! Pairai! gritou Gregory frenético. Tudo isso e azuis de Syme. Este se contentou com dizer:
é uma.., — O camarada Gregory ordena...
A voz do Presidente cortou-lhe a palavra com frieza... Foi o suficiente para desfazer o feitiço. Um dos anarquis-
— Há alguém que esteja de acordo com a emenda? per- tas logo interpelou Gregory:
guntou. — Quem é você? Você não é o Domingo.
Num dos últimos bancos, um homem alto, cansado, de E outro acrescentou em tom mais rude:
olhos melancólicos e de cavanhaque à americana, tentava levan- — Nem é o Quinta-feira.
tar-se. Gregory, que estivera a esganiçar-se até então, impri- Camaradas, gritou Gregory, numa voz semelhante à de
miu à voz uma nova modulação, mais espantosa do que qual- um mártir que, no êxtase da dor, supera a própria dor. Nada
quer ganido. significa para mim que vós me odieis como tirano ou que me
— Vou dar cabo de tudo isso! disse, e sua voz parecia detesteis como escravo. Se não quereis acatar minha ordem,
tão pesada como uma pedra. Este homem não pode ser eleito. aceitai minha degradação. Ajoelho-me diante de vós, atiro-me
Êle é . . . a vossos pés, imploro-vos: não elejais este homem.
— É . . . ? ! repetiu Syme completamente imóvel. Que é — Camarada Gregory, disse o Presidente ao fim de uma
que êle é? pausa de consternação. Na verdade, isso não é muito digni-
Duas vezes Gregory abriu a boca mas não pôde articular ficante.
uma só palavra. Depois, lentamente, o sangue começou a insi- Pela primeira vez, naqueles lances, houve alguns segundos
nuar-se em seu rosto inerte. de silêncio real. Gregory, um esquálido destroço de homem,
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 37
36 G. K. CHESTERTON

No momento em que ia passar para bordo, Gabriel Syme


deixou-se cair em seu banco, e o Presidente, como um relógio voltou-se para o ofegante Gregory.
que tivesse acabado de receber corda, repetiu: — Você cumpriu sua palavra, disse cortêsmente, com o
— Resta saber se o camarada Syme deve ser eleito para rosto na sombra. É um homem de bem. Muito obrigado. Cum-
o posto de Quinta-feira no Conselho Geral. priu a palavra até nos pormenores mais insignificantes. Houve
O alarido cresceu como o mar, as mãos ergueram-se como uma coisa especial que você me prometeu no começo desses
floresta, e três minutos depois, Mr. Gabriel Syme, do Serviço sucessos e que realmente me proporcionou.
Secreto da Polícia, estava eleito para o posto de Quinta-feira — De que é que você está falando? bradou o caótico
no Conselho Geral dos Anarquistas da Europa. Gregory. Que foi que eu lhe prometi?
Todos os que estavam na sala pareciam pensar na lancha — Uma noite muito divertida, disse Syme, e fêz um cum-
que esperava no rio, na bengala de estoque e no revólver que primento militar com a bengala de estoque, enquanto a lancha
esperavam em cima da mesa. No instante em que a eleição começava a deslizar.
se concluiu e foi declarada irrevogável e Syme recebeu suas
credenciais, todos se puseram de pé e os fogosos grupos movi-
mentaram-se e confundiram-se na sala. Inesperadamente, Syme
viu-se cara a cara com Gregory, que o contemplava com ódio
e espanto. Passaram muitos minutos fitando-se mutuamente em
silêncio.
— Você é um demônio, disse Gregory por fim.
— E você é um cavalheiro, redarguiu Syme gravemente.
— Foi você que me arrastou a esta cilada, começou Gre-
gory, trêmulo da cabeça aos pés. Foi você que...
— Não diga tolices, retrucou Syme. Quem, senão você,
me trouxe a este demoníaco parlamento? Você me fêz jurar
antes que eu o fizesse a você. Talvez estejamos fazendo o que
ambos julgamos ser justo. Mas, quanto ao que nos parece
justo, possuímos noções tão danadamente contrárias que entre
nós não pode haver nenhuma conciliação. Não temos nada de
comum, exceto a honra e a morte. Ao dizer isso ajustou o
enorme capote sobre os ombros e apanhou a garrafa de cima
da mesa.
— O barco está pronto, disse Mr. Buttons alvoroçando-se.
Tenha a bondade de acompanhar-me.
Com um gesto que revelava o recepcionista de loja, Mr.
Buttons desceu com Syme por um corredor estreito, reforçado
com arcos de ferro. Seguia-lhes febrilmente os passos o tor-
turado Gregory. No fim do corredor havia uma porta que foi
aberta engenhosamente por Buttons, desvendando um quadro
azul-prateado do rio ao luar, semelhante a um cenário de tea-
tro. A poucos passos achava-se uma escura e minúscula lancha
a vapor, que parecia um filhote de dragão, com um olho ver-
melho.
CAPITULO IV

A HISTÓRIA DE UM DETETIVE

Gabriel Syme não era simplesmente um detetive que pre-


tendesse ser poeta; era realmente um poeta que se transformara
em detetive. Seu ódio à anarquia não era hipócrita. Syme era
um daqueles homens a quem desde cedo a rematada loucura
da maioria dos revolucionários compele a adotar diante da vida
uma atitude demasiadamente conservadora. Não atingira esse
ponto por via de nenhuma tradição doméstica. Sua respeita-
bilidade era espontânea e imprevisível, uma rebelião contra a
rebelião. Descendia de uma família de excêntricos, em cujo
seio as pessoas mais velhas empolgavam idéias mais novas. Um
de seus tios tinha o hábito de sair à rua sem chapéu, e outro
fizera gorada tentativa de sair de chapéu e mais nada. Seu
pai cultivava as artes e o aperfeiçoamento de si mesmo. Sua
mãe dedicava-se à simplicidade e ao asseio. Por isso o me-
nino, durante os seus mais verdes anos, ignorou totalmente
qualquer bebida entre os extremos do absinto e do licor de
cacau, pelos quais revelava saudável repugnância. Quanto mais
sua mãe pregava uma abstinência mais do que puritana, mais
seu pai se expandia numa incontinência mais do que paga, e
no momento em que ela chegou a propagar o vegetarianismo,
êle já estava a pique de defender o canibalismo.
Assediado desde a infância por todos os tipos concebíveis
de revolta, Gabriel teve de revoltar-se em nome de alguma coisa.
Assim, revoltou-se em nome da única coisa que restava: o
bom senso. Mas dentro dele corria boa parcela do sangue des-
tes fanáticos, o que fazia com que seus protestos de fidelidade
ao senso comum parecessem um pouco ferozes demais para se-
rem sensatos. Sua aversão à desordem moderna foi coroada
por um acidente. Aconteceu que êle passava por uma rua quan-
40 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 41

do se deu um atentado a dinamite. Por alguns momentos ficou Syme, em plena crise de mórbido temor pela sorte da
cego e surdo e, quando a fumaça desapareceu, pôde ver as humanidade, sentiu-se espicaçado com a simples e mecânica
janelas quebradas e os rostos ensangüentados. Depois disto, cortesia do funcionário, que, ali ao crepúsculo, não passava
continuou como de costume: quieto, cortês, gentil; mas havia de uma indistinta figura azulada.
em sua mente um ponto que não estava são. Não considerava — Será mesmo uma boa noite? disse mordazmente. Vo-
os anarquistas, do mesmo modo que a maioria considera, como cês são capazes de achar boa a noite do fim do mundo. Veja
um punhado de sujeitos mórbidos que combinam ignorância este céu, veja este rio: vermelhos, sangrentos! Garanto que
com intelectualismo. Considerava-os como um perigo imenso se isso fosse rigorosamente sangue humano, espalhado e cinti-
e terrível, uma invasão chinesa. lante, você continuaria aqui perpètuamente impassível, a ins-
Inundava continuamente os jornais e as cestas de papéis pecionar pobres transeuntes inofensivos e a ordenar-lhes que
usados das redações com uma torrente de contos, versos e se dispersassem. Vocês da polícia são cruéis com os pobres,
violentos panfletos acautelando as gentes contra esse dilúvio mas eu poderia perdoar a crueldade de vocês não fosse esta
de bárbara negação. Mas parecia ter avançado muito pouco calma que vocês afetam.
na direção do inimigo, como, — e isto era muito pior, — pare- — Se temos calma, replicou o guarda, é a calma da resis-
cia ter avançado menos ainda na direção da própria subsis- tência organizada.
tência. Quando vagueava pelo aterro do Tâmisa, pitando amar- — Ah é? disse Syme admirado.
gamente um charuto barato e matutando nos progressos da — O soldado deve ter calma no aceso da batalha, conti-
anarquia, não havia anarquista, dos de bomba no bolso, tão nuou o guarda. A disciplina de um exército é a cólera de uma
selvagem ou tão solitário como êle. Inquietava-o permanente- nação.
mente o desamparo e o desespero do governo, posto entre a — Valha-me Deus! As Escolas Públicas! É essa a edu-
espada e a parede. Era quixotesco demais para ver as coisas cação não-sectária?
com naturalidade. — Não, disse o guarda com tristeza. Não gozei nunca
Certa vez, sob um crepúsculo vermelho-escuro, Syme pas- desses privilégios. Não sou do tempo das Escolas Públicas.
seava pelo aterro. O rio vermelho refletia o céu também ver- Temo que a minha educação tenha sido muito rudimentar e
melho e ambos refletiam sua cólera. O céu, de fato, estava obsoleta.
tão carregado e o rio emitia um clarão tão acobreado que a — Onde você estudou? inquiriu Syme curioso.
água parecia deitar chamas mais violentas que as do cre- — Oh, em Harrow, respondeu o guarda.
púsculo. Era literalmente um caudal de fogo correndo sinuoso
através das amplas cavernas de um mundo subterrâneo. — As simpatias de classe, por mais falsas que sejam, são,
não obstante, para muitas pessoas as coisas mais verdadeiras
Nessa época Syme tinha um aspecto andrajoso. Usava do mundo. E Syme sentiu-as explodirem dentro de si antes
uma antiquada cartola preta e envolvia-se num capote preto que pudesse refreá-las.
e roto, ainda mais antiquado. Tal combinação tornava-o se- — Mas homem, por Deus! Você não devia ser da polícia.
melhante aos antigos vilões de Dickens e Bulwer Lytton. A
barba e o cabelo amarelados também estavam mais desgrenha- O guarda suspirou e meneou a cabeça.
dos e leoninos do que quando surgiram, muito depois, aparados — Tem razão, disse solenemente. Eu sei que não sou
e penteados, nos jardins de Saffron Park. Os dentes cerrados digno.
mordiam um mata-rato preto, comprido e fino, comprado em — Mas por que você ingressou na polícia? interrogou
Soho. Toda a sua pessoa representava um perfeito exemplar Syme com rude curiosidade.
daqueles anarquistas contra quem havia declarado uma guerra — Exatamente pelo mesmo motivo que você tem de insul-
santa. É provável que tenha sido este o motivo que levou o tar a polícia. Descobri que havia no serviço uma oportuni-
guarda do aterro a caminhar em sua direção e saudá-lo: dade especial para aqueles, cujos temores pela sorte da huma-
— Boa noite! nidade dizem respeito antes às aberrações do intelecto cien-
42 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 43

tífico que aos normais e desculpáveis, ainda que excessivos, vãmente à argúcia do jovem Mr. Wilks, nosso companheiro,
distúrbios da vontade humana. Espero que tenha sido claro. que atinara com o sentido exato de umas oitavas que havia
— Se você se refere a suas opiniões, acho que as expri- lido.
miu claramente, disse Syme. Mas quanto a ter-se explicado — Quer dizer, inquiriu Syme, que há realmente tal cone-
está longe ainda. Como é que um homem como você bota xão entre o crime e a inteligência moderna?
um elmo azul e vem filosofar aqui no aterro? — Você não é suficientemente democrata, replicou o
— Evidentemente você nada sabe dos últimos desenvol- guarda, mas tinha razão há pouco quando disse que o trata-
vimentos do nosso sistema policial, retorquiu o guarda. Aliás, mento que dispensamos usualmente aos criminosos pobres é
isso não me surpreende. Nós os mantemos em segredo, a um tanto brutal. Garanto-lhe que abomino meu ofício quan-
coberto das classes cultas, porque são estas que abrigam a do, algumas vezes, sinto que êle consiste apenas numa guerra
maior parcela de nossos inimigos. Mas parece que o seu espí- aos ignorantes e desesperados. Mas este nosso novo movi-
rito já está predisposto... Penso que você podia alistar-se. mento é uma empresa muito diferente. Procuramos dar um des-
— Alistar-me em quê? perguntou Syme. mentido ao pretensioso axioma inglês que diz que os incultos
— Explicarei tudo, disse o guarda calmamente. A situação são os criminosos temíveis. Lembramo-nos dos imperadores
é esta: o chefe de um dos nossos departamentos, detetive dos romanos, dos príncipes da Renascença, grandes envenenado-
mais célebres de toda a Europa, vem desde muito tempo sus- res. Afirmamos que o criminoso temível é o criminoso culto.
peitando de uma conspiração puramente intelectual que em Afirmamos que o criminoso mais temível destes tempos é o
breve ameaçará a própria existência da civilização. Está con- filósofo moderno inteiramente bárbaro. Comparados com êle,
victo de que os mundos artísticos e científicos se unem secre- arrombadores e bígamos são homens de moralidade perfeita;
tamente numa cruzada contra a Família e o Estado. Por esta meu coração me leva para o lado deles. Aceitam o ideal es-
razão, êle ideou uma especial corporação de detetives, dete- sencial do homem; só que o procuram erroneamente. Os la-
tives que são também filósofos. A função deles é investigar as drões respeitam a propriedade; só que desejam que a proprie-
origens dessa conspirata e combatê-la, não só no sentido mera- dade se torne propriedade deles para que possam respeitá-la
mente criminal, mas no terreno da controvérsia. Eu sou demo- mais e melhor. Mas os filósofos condenam a propriedade en-
crata e creio no valor do homem comum em questões de intre- quanto propriedade, querem destruir a simples idéia da posse
pidez e virtudes comuns. Mas não seria aconselhável, obvia- pessoal. Os bígamos respeitam o matrimônio, ou então não le-
mente, o emprego do polícia mediano numa investigação que variam a cabo a formalidade altamente cerimoniosa e ritualística
é, ao mesmo tempo, uma caça à heresia. da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento como ca-
Os olhos de Syme brilhavam de curiosidade e simpatia. samento. Os assassinos respeitam a vida humana; apenas dese-
— O que é que fazem então? perguntou. jam obter para si mesmos uma abundância maior de vida hu-
— A missão do polícia-filósofo, respondeu o homem de mana, com o sacrifício daquelas que lhes parecem vidas me-
azul, é mais arriscada e mais sutil do que a do simples detetive. nores. Mas os filósofos odeiam a vida mesma, a deles e
O detetive comum vai às cervejarias capturar ladrões; nós nos a dos outros.
dirigimos ao serões artísticos para descobrir pessimistas. Atra- Syme pôs-se a bater palmas.
vés das páginas de um razão ou de um diário os detetives — Isso é verdadeiro! bradou. Tenho pensado assim desde
comuns descobrem que se cometeu um crime. Nós, através a infância, mas nunca pude estabelecer a antítese verbal. O
de um livro de sonetos, descobrimos que um crime está para criminoso vulgar é um mau sujeito, mas é, em todo caso, con-
ser cometido. Temos que seguir desde a origem a pista da- dicionalmente bom. Desde que um determinado obstáculo —
queles pensamentos terríveis que conduzem os homens ao fana- um tio rico, por exemplo — seja removido, está pronto para
tismo intelectual e, por fim, ao crime intelectual. Há pouco, aceitar o universo e louvar a Deus. É reformador, não é anar-
tivemos de correr bastante para chegarmos a tempo de impedir quista. Pretende limpar o edifício e não destruí-lo. Mas o filó-
um assassínio em Hartlepool. O nosso êxito se deveu exclusi- sofo pernicioso não tenta alterar as coisas; quer aniquilá-las.
44 G. K. CHESTERTON
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 45
Sim, o mundo moderno conservou todas aquelas facetas real-
mente opressivas e ignominiosas da função policial, como sa- — Oh! murmurou Syme.
quear os pobres e perseguir os infortunados. Abandonou a — É natural, portanto, que estas pessoas falem no ad-
obra mais digna: a punição dos poderosos traidores do Estado vento de uma era de felicidade, no paraíso do futuro, numa
e dos poderosos heresiarcas da Igreja. Os modernistas dizem humanidade liberta da servidão do vício e da servidão da vir-
que não devemos punir os heréticos. Minha única dúvida resi- tude, e de coisas semelhantes. Assim também falam os do
de em saber se temos o direito de punir alguém mais. círculo interno, os do sacerdócio sagrado. Também falam para
— Mas isto é absurdo! exclamou o guarda, esfregando as multidões aclamadoras da felicidade futura e da humanidade
as mãos numa excitação inusitada em pessoas da sua categoria que um dia será livre. Mas em suas bocas (e aqui o guarda
e dos seus hábitos. Mas é inexplicável! Não sei o que você baixou a voz), em suas bocas essas frases ditosas têm uma
fêz, mas sei que está desperdiçando sua vida. Você deve, significação aterradora. Eles não têm ilusões; são demasiada-
com urgência, alistar-se em nosso exército especial para lutar mente intelectuais para crer que neste mundo o homem possa
contra a anarquia. Os exércitos de nossos inimigos estão em libertar-se uma vez sequer do pecado original e do combate.
nossas fronteiras. Apertam o cerco. Um momento mais e você Suas palavras querem dizer morte. Quando asseveram que a
poderá ser excluído da glória de trabalhar conosco e talvez humanidade há de ser livre algum dia, têm em mente que a
da glória de morrer com os últimos heróis do mundo. humanidade há de suicidar-se. Quando falam de um paraíso
— Realmente é uma oportunidade que não se deve des- fora do bem e do mal, têm em mente o túmulo. Visam apenas
perdiçar, anuiu Syme. Mas ainda não entendi tudo. Sei, tanto dois objetivos: destruir primeiro a humanidade e depois des-
quanto qualquer outro, que o mundo moderno está cheio de truírem-se a si mesmos. É este o motivo por que lançam bom-
homenzinhos sem lei e de pequenos movimentos absurdos. Mas, bas em vez de disparar pistolas. A tropa dos inocentes fica
selvagens como eles são, têm geralmente o mérito de discor- desapontada ao ver que a bomba não matou o rei, mas o alto
darem uns dos outros. Como é que você pode dizer que che- sacerdócio regozija-se por saber que matou alguém.
fiam um exército ou organizam uma investida? Que espécie de — Como posso unir-me a vocês? perguntou Syme numa
anarquia é esta? espécie de arrebatamento.
— Não a confunda, redargüiu o guarda, com essas for- — Sei de certeza que no momento há uma vaga, disse
tuitas explosões de dinamite na Rússia e na Irlanda, que são o guarda, já que tenho a honra de merecer um pouco da con-
efetivamente as explosões de homens oprimidos, se bem que fiança do chefe, do qual lhe falei. Você deveria vir vê-lo.
desorientados. Falo de um vasto movimento filosófico, com- Aliás, não direi que você vai vê-lo, pois que ninguém nunca
posto de dois círculos: um externo e outro interno. Pode dizer- o viu; mas poderá falar com êle, se quiser.
se mesmo que o círculo externo é o dos leigos e que o interno — Pelo telefone? inquiriu Syme com interesse.
é o do sacerdócio. Prefiro dizer que o círculo externo é do
setor inocente e que o interno é o setor supremamente culpado. — Não, respondeu calmamente o guarda. Êle tem o ca-
Os do círculo externo, que formam a copiosa massa dos sec- pricho de viver sempre num quarto escuro como breu. Diz
tários, são simples anarquistas, isto é, homens que acreditam que assim seus pensamentos ficam mais claros. Venha comigo.
que as normas e as fórmulas destruíram a felicidade humana. Um pouco confuso e muito animado, Syme deixou-se levar
Crêem que todos os funestos efeitos do crime são conseqüên- até uma porta lateral na longa fila de edifícios da Scotland
cias normais do sistema que lhe deu o nome de crime. Não Yard. Antes de dar pelo que fazia, passou pelas mãos de cerca
crêem que o crime gera o castigo. Crêem que o castigo gerou de quatro oficiais intermediários e encontrou-se de um mo-
o crime. Para eles, o homem que seduziu sete mulheres deveria mento para outro num quarto cuja escuridão inesperada feriu-o
naturalmente passar impune como as flores da primavera. Para como uma centelha. Nada tinha da escuridão normal, em que
eles o punguista é naturalmente um sujeito de sentimentos deli- as formas pouco a pouco se esboçam; era antes a escuridão
cadamente generosos. Estes eu filio ao setor dos inocentes. da cegueira instantânea.
— É o novo recruta? perguntou uma voz dura.
46 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 47

E estranhamente, visto que nenhum contorno se podia de um novo planeta. Isto se devia, em grande parte, à im-
adivinhar naquela escuridão, Syme compreendeu duas coisas: pensada porém firme resolução daquela noite e, um pouco
a primeira, que a voz procedia de um homem de estatura des- também, à completa mudança havida no tempo e no céu, desde
comunal e a segunda, que o homem estava de costas para êle. que entrara na lôbrega taberna duas horas antes. Todos os
— É o novo recruta? repetiu o chefe invisível, que pare- sinais da apaixonada plumagem daquele anuviado crepúsculo
cia estar a par de tudo. Está bem. Está admitido. haviam-se desvanecido. Agora a nudez da lua pairava na nudez
Syme, assombrado, trêmulo, procurou timidamente lutar do céu. A lua estava tão redonda, tão cheia, que (por para-
doxo que deve ter sido notado inúmeras vezes) parecia um sol
contra esta sentença irrevogável. mais fraco. Dava, não a impressão de uma resplandecente
— Mas eu, na verdade, não tenho experiência... noite de lua, mas a de um mortiço dia de sol.
— Ninguém tem nenhuma experiência da batalha do Ar- Sobre toda a paisagem derramava-se um irreal e luminoso
magedon, disse o outro. palor, como naquele crepúsculo que, no dizer de Milton, pro-
— Também não sei se sou capaz... voca o sol em eclipse. Ê isso veio reafirmar em Syme a con-
— Você quer e isso basta, disse o desconhecido. vicção de que se achava num outro planeta mais vazio, que
— Mas, a verdade, ponderou Syme, é que não sei de girava em volta de uma estrela mais triste. Contudo, opunha a
nenhum ofício em que a simples boa vontade seja prova de esta ofuscante desolação na terra luarenta a sua cavalheiresca
aptidão. loucura, que chamejava na noite como uma imensa fogueira.
— Eu sei, disse o outro. O dos mártires. Eu o estou Mesmo as coisas comuns que trazia consigo — a comida, o
condenando à morte. Passe bem. conhaque e o revólver carregado — revestiam-se daquela poesia
Foi assim que ao reaparecer com sua deplorável cartola concreta e material que toca o menino que leva uma espingarda
preta e seu anárquico e deplorável capote na claridade carme- num passeio ou que vai para a cama com um pedaço de bolo.
sim do crepúsculo, Gabriel Syme vinha feito membro da nova A bengala de estoque e a garrafa de conhaque, embora fossem
corporação de detetives, fundada para dar combate à grande os utensílios de mórbidos conspiradores, tornavam-se as ex-
conspiração. Seguindo os conselhos do guarda seu amigo (que pressões de um romance mais saudável. Syme via na bengala
era profissionalmente inclinado ao asseio) aparou o cabelo e de estoque a espada do paladino e no conhaque o vinho do
a barba, comprou um chapéu novo, vestiu um irrepreensível trago de despedida. Em verdade, as mais desumanizadas fan-
terno de verão azul-cinza, enfiou uma flor amarela na lapela tasias modernas necessitam, para se firmar, de alguns símbolos
e, em suma, converteu-se naquele sujeito elegante e quase into- mais antigos e mais simples. A aventura pode ser louca, mas
lerável que Gregory veio a conhecer no jardinzinho de Saffron o aventureiro deve ser são. O dragão sem São Jorge não seria
Park. Antes que êle deixasse os quartéis da polícia, seu amigo sequer grotesco. Assim, aquela paisagem só era fantástica pela
entregou-lhe um cartãozinho azul, onde se lia um número e as presença de um ente realmente humano. Para o espírito exal-
palavras "A Ultima Cruzada", signo de sua autoridade oficial. tado de Syme, as casas e os terraços reluzentes e frios das
margens do Tâmisa pareciam tão ermos como as montanhas da
Guardou-o cuidadosamente no bolso do colete, acendeu um lua. Mas a própria lua só é poética porque há o homem da
cigarro e dali partiu para caçar e acometer o inimigo em todos lua.
os salões elegantes de Londres. Já vimos para onde sua aven-
tura o guiou finalmente. Mais ou menos à uma e meia da A lancha era manejada por dois homens, e com muito
madrugada de um dia de fevereiro, êle se encontrava subindo esforço avançava com lentidão. A lua transparente que alumiara
o silencioso Tâmisa, armado de bengala de estoque e revólver, Chiswick desaparecera no momento em que eles passavam por
solenemente eleito Quinta-feira do Conselho Central Anarquista. Battersea. Ao chegarem diante da portentosa frontaria de West-
Quando Syme tomou a lancha, experimentou a esquisita minster o dia começava a raiar. Raiava como enormes barras
sensação de estar vivendo num ambiente completamente novo; de chumbo que se racham deixando entrever barras de prata;
não só na paisagem de uma nova terra, mas na paisagem e estas esplendiam como fogo alvacento quando a lancha, mu-
48 G. K. CHESTERTON

dando de rumo, derivou para os lados de uma ampla escada


de desembarque localizada um pouco além de Charing Cross.
As grandes pedras do aterro revelavam-se aos olhos de
Syme escuras e gigantescas. Eram negras e descomunais na
infinita alvura da aurora. Contemplando-as, Syme sentia-se co-
mo se fosse desembarcar nas colossais escadarias de um palácio
egípcio. Realmente, a impressão não era despropositada. Êle,
em espírito, ia galgá-las para atacar os sólidos tronos de terríveis CAPITULO V
reis pagãos. Pulou da lancha sobre um degrau escorregadio e
ficou, um instante, imóvel, forma escura e delgada no meio
da fabulosa pedraria. Os dois tripulantes se afastaram na lan- A FESTA DO MEDO
cha, rumando contra a corrente. Não tinham pronunciado uma
única palavra.
À primeira vista, a ampla escadaria de pedra pareceu a
Syme tão deserta quanto uma pirâmide; mas, antes de atingir o
topo, descobrira que um homem, debruçado no parapeito, es-
quadrinhava o rio. Quanto à aparência, êle era totalmente con-
vencional. Usava um chapéu alto de seda e envergava um so-
bretudo do tipo de moda mais formalista, com uma flor ver-
melha na lapela. Galgando os degraus um a um, Syme ia-se
aproximando lentamente do desconhecido. E, como este nem
ao menos pestanejava, pôde acercar-se o suficiente para notar-
lhe, sob a luz desmaiada e fosca da manhã, o rosto comprido,
pálido e inteligente, rematado com um tufo triangular de barba
negra na ponta do queixo, que não condizia com o todo capri-
chosamente escanhoado. Esta moita de pêlos parecia obra de
mera negligência e destoava do rosto barbeado com esmero —
rosto aberto, contemplativo e, a seu modo, nobre. Reparando
em tudo isso, Syme abeirou-se ainda mais. Entretanto, o des-
conhecido não se mexeu.
A princípio, o instinto levou Syme a crer que tinha diante
de si o homem com quem devia encontrar-se. Depois, vendo
que não recebia nenhum sinal, cuidou que se enganara. Agora,
porém, tinha fortes razões para convencer-se de que este ho-
mem era um dos comparsas de sua doida aventura. Êle se
mantinha mais calmo do que seria de esperar de alguém sub-
metido a tão indiscreta inspeção. Estava tão imóvel como um
boneco de cera e, como tal, parecia não ter nervos. Syme
insistia em encarar o rosto pálido, grave e delicado, mas o
rosto não se desprendia da contemplação do rio. Então, tirou
do bolso o documento que Buttons lhe dera para comprovar a
eleição, e exibiu-o aos olhos daquele rosto triste e belo. O
50 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 51

homem sorriu e seu sorriso foi um choque: rasgava-se numa — O que o povo diz é muito simples, respondeu-lhe o
linha oblíqua, que repuxava a face direita para cima e a es- guia. Diz que somos um bando de senhores galhofeiros que se
querda para baixo. dão ares de anarquistas.
Racionalmente falando, nada havia nisto de assombroso. — Tenho para mim que é um plano verdadeiramente as-
Muita gente tem o hábito nervoso de entortar o sorriso e, em tucioso, disse Syme.
muitas pessoas, isso é até atraente. Mas para Syme, os episó- — Astucioso! Diabo leve esse seu descaramento! Astu-
dios vividos, a fosca madrugada, a sombria missão que lhe fora cioso! bradou o outro, numa súbita voz aguda e estridente, tão
cometida e a solidão na majestosa pedraria orvalhada acaba- perturbadora e discrepante como o sorriso torto. Quando, por
vam por tornar aquele sorriso enervante. Havia o rio silencioso uma fraçãozinha de segundo apenas, você vir o Domingo, dei-
e o homem silencioso, de feições clássicas. De repente, o sor- xará de chamá-lo astucioso.
riso do homem precipitava o toque extremo de pesadelo.
E assim foram ter ao fim de uma rua estreita e depararam
O espasmo de sorriso foi momentâneo e o rosto logo read- com Leicester Square banhada pela luz do sol matinal. Supo-
quiriu sua harmoniosa melancolia. Sem dar nem pedir expli- nho que nunca se saberá por que esta praça parece tão exótica
cações, o desconhecido pôs-se a falar como quem conversa com e, de certa maneira, tão continental. Nunca se saberá se é o
velho colega. seu aspecto estrangeiro que seduz os estrangeiros ou se são os
— Se formos diretamente a Leicester Square, disse, che- estrangeiros que lhe dão semelhante aspecto. Naquela manhã
garemos a tempo de tomar café. Domingo insiste sempre co- este exotismo aparecia singularmente nítido. O largo espaçoso,
nosco para que tomemos café bem cedinho. Você dormiu? a folhagem ensolarada, a estátua e os contornos sarracenos do
— Não, disse Syme. Alhambra formavam uma réplica de uma praça pública fran-
— Nem eu, continuou o outro familiarmente. Vou ver cesa ou espanhola. E isto vinha confirmar a sensação que, de
se consigo dormir depois do café. todos os modos, tinha invadido Syme no decurso de toda a
Fala com inopinada urbanidade, mas a voz extremamente aventura, isto é, a sensação sobrenatural de ter-se extraviado
morta contradizia o fanatismo do rosto. A bem dizer, todas as num mundo novo. O fato é que êle tinha comprado, desde os
palavras afáveis eram para êle convenções defuntas e sua vida tempos de garoto, muitos maus charutos em Leicester Square.
era o ódio mesmo. Fêz uma pausa e continuou: Contudo, quando dobrou a esquina e avistou as árvores e as
— Naturalmente o secretário de sua seção contou-lhe tudo cúpulas mouriscas, esteve a ponto de jurar que entrara numa
que sabia. Mas uma coisa que ninguém nunca pôde saber desconhecida Place disso ou daquilo de alguma cidade estran-
é qual terá sido a última idéia do Presidente. Suas idéias vice- geira.
jam como as florestas tropicais. Assim, caso você não saiba,
é bom saber desde já que êle está pondo em prática um novo A um canto da praça sobressaía o oitão de um hotel prós-
plano de esconder-se. Consiste precisamente em não nos escon- pero mas sossegado, cuja fachada dava para outra rua. Na
dermos de jeito nenhum. No começo, evidentemente, nós nos parede via-se uma larga porta-janela que era provavelmente a
reuníamos numa cela subterrânea, tal como vocês. Depois Do- entrada de um imenso restaurante. Na parte de fora dessa ja-
mingo ordenou que reservássemos um quarto num restaurante. nela, praticamente suspensa sobre a praça, erguia-se uma va-
Diz êle que se nós não parecemos estar escondidos ninguém randa apoiada num formidável contraforte, suficientemente es-
pensará em perseguir-nos. Bem, êle é um homem sem igual paçosa para conter uma mesa grande. De fato, continha uma
na terra, mas chego a pensar às vezes que seu cérebro imenso, mesa de jantar, ou, mais propriamente, uma mesa de café, em
à medida que os anos passam, vai se tornando um pouco ma- torno da qual se abancavam, em pleno sol e visíveis a toda a
luco. Pois não é que agora nos pavoneamos nas barbas do rua, homens barulhentos e palradores, todos vestidos na inso-
público? Tomamos o café da manhã numa varanda — numa lência da moda, com coletes brancos e lapelas floridas. Algu-
varanda, veja bem — que dá para Leicester Square. mas de suas pilhérias podiam. ser ouvidas no outro lado da
— E o que diz o povo? perguntou Syme. praça. Ao ver o grave Secretário exibir seu sorriso absurdo,
52 G. K. CHESTERTON
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 53
Syme compreendeu que esta turbulenta assembléia matutina era
o conclave secreto dos Dinamiteiros Europeus. de que se achava a poucos passos dos quartéis-generais do in-
Depois, como continuasse a contemplá-los, Syme viu uma ferno. E esta sensação se tornava opressiva à medida que êle
coisa que não tinha visto antes. Sem dúvida não a vira porque se aproximava do grande Presidente.
ela era excessivamente grande para ser vista. No ponto mais Ela o esmagava sob a forma de uma pueril mas odiosa
próximo da varanda, obstruindo boa parte da perspectiva, ele- fantasia. Ao atravessar uma sala interior para chegar à varan-
vava-se o dorso montanhoso de um homem descomunal. As- da, pareceu-lhe que o rosto imenso de Domingo se dilatava;
sim que o viu, o primeiro pensamento de Syme foi que o peso e Syme se deixou dominar pelo temor 3e que, quando estivesse
do homem podia ocasionar o desmoronamento da varanda de muito próximo, o rosto se tornaria desmesurado e êle, então,
pedra. Sua vastidão não consistia somente no fato de que êle não poderia conter um grito. Recordou que, quando era me-
era excepcionalmente alto e inacreditavelmente gordo. Desde nino, não ousava olhar para a máscara de Memnon no Museu
as proporções originais tal homem devera ter sido planejado Britânico, por ser ela uma cara e por ser tão grande.
como um gigante, do mesmo modo que uma estátua é delibe- Com um esforço mais heróico do que o de saltar sobre
radamente cinzelada como um colosso. Vista de trás, a cabeça um rochedo, encaminhou-se para o assento vazio a um canto
coroada de cabelos brancos parecia mais volumosa do que uma da mesa e sentou-se. Os presentes saudaram-no com uma cha-
cabeça devia ser. As orelhas que se destacavam dela eram cota jovial, como se o conhecessem desde muito tempo. Acal-
maiores do que as orelhas humanas. Todo êle fora terrivel- mou-se um pouco ao reparar em seus casacos convencionais
mente ampliado na escala; e este senso das dimensões era tão e no sólido e brilhante bule de café. Depois, pousou o olhar
desvairado que quando Syme olhava para aquele homem tinha novamente em Domingo: o rosto dele era enorme; mesmo as-
a impressão de que os outros personagens subitamente mingua- sim, era concebível num ente humano.
vam e ananicavam-se. Lá estavam eles sentados como antes, Na presença do Presidente a confraria inteira parecia mais
com suas flores e sobrecasacas, mas agora assemelhavam-se a do que insípida. À primeira vista, nada chamava a atenção,
cinco garotos entretidos durante o chá pelo homem gigantesco. exceto o fato de se acharem todos, por um capricho do Pre-
Quando Syme e o guia se aproximaram da porta lateral sidente, vestidos com festiva respeitabilidade, o que dava à
do hotel, um criado veio atendê-los com um sorriso em que refeição um aspecto de banquete nupcial. A verdade é que,
se lhe viam todos os dentes. num breve relance, só um homem se distinguia. Devia ser o
dinamiteiro típico. Trajava o uniforme da ocasião: alto cola-
— Os cavalheiros estão lá em cima, disse. Estão conver- rinho branco e gravata de cetim. Mas desse colarinho surgia
sando e rindo a valer. Dizem que vão lançar bombas no rei. uma cabeça indomável e inconfundível, com intratável mata de
E o criado afastou-se apressadamente com um guardana- cabelos e barba castanhos, que quase encobriam uns olhos de
po no braço, divertido com a singular frivolidade dos cava- Skye terrier. No entanto, os olhos varavam o emaranhado e
lheiros do andar superior. se mostravam como os olhos tristes do servo russo. Essa fisio-
Os dois homens subiram a escada em silêncio. nomia não provocava o mesmo terrível efeito que a do Pre-
Syme jamais pensara em perguntar se o homem mons- sidente, mas possuía todo o sortilégio que pode provir do gro-
truoso que quase abarrotava e desmoronava a varanda era o tesco absoluto. Se da gravata e do colarinho rijo pulasse ines-
grande Presidente de quem os outros tinham medo. Soube que peradamente a cabeça de um gato ou de um cão não causaria
era êle mesmo com inexplicável mas instantânea certeza. Syme um contraste mais absurdo.
era realmente um desses homens abertos às mais extravagantes
influências psicológicas, num grau um pouco perigoso para a O homem parece que se chamava Gogol. Era polonês e,
saúde mental. Totalmente livre do medo aos perigos físicos, neste círculo de dias da semana, recebera o nome de Terça-
era exageradamente sensível ao cheiro dos danos espirituais. feira. Possuía alma e verbo incuràvelmente trágicos, e não
Já por duas vezes naquela noite pequeninas coisas insignifi- podia forçar-se a representar o próspero e frívolo papel que
cantes haviam-lhe exacerbado o espírito, dando-lhe a sensação dele exigia o Presidente Domingo. Com efeito, no momento
em que Syme entrou, o Presidente, com aquela atrevida des-
54 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 55

consideração pela suspeita pública, que era sua política, estava sorriso torto, que, de um momento para outro, desfigurava o
caçoando da inabilidade de Gogol para adotar modos conven- belo semblante do homem que lhe servira de guia, era típico
cionais. de todos esses tipos. Cada um carregava com alguma coisa,
— Nosso amigo Terça-feira, dizia o Presidente numa voz só percebida talvez na décima ou vigésima olhadela, que não
profunda mas cheia de quietude e volume, nosso amigo Ter- era normal e que era difícil de ser humanamente concebida.
ça-feira parece não entender bem a idéia. Veste-se como um Syme dizia, para si mesmo, que todos eles tinham o aspecto
cavalheiro, mas desconfio que é uma alma grande demais para de pessoas elegantes e sociáveis, acrescido de uma distorção
comportar-se como tal. Insiste nos métodos do conspirador conseguida num espelho curvo imperfeito.
teatral. Ora, se um cavalheiro de cartola e sobrecasaca passeia Somente os exemplos individuais darão a conhecer esta
em Londres ninguém vai pensar que êle é um anarquista. Mas semi-oculta excentricidade. O cicerone de Syme recebera o título
se um cavalheiro bota cartola e sobrecasaca e depois sai a de Segunda-feira. Era Secretário do Conselho e nada, exceto
passear de quatro pés... bem, pode atrair a atenção. E é isso o riso assustador e feliz do Presidente, espalhava maior temor
o que faz o Irmão Gogol. Sai a passear de quatro pés com do que seu sorriso oblíquo. Mas agora que Syme dispunha
tão inesgotável diplomacia que agora está se vendo em grande de mais espaço e luz para observá-lo, atentava noutras peculia-
dificuldade para caminhar ereto. ridades. Seu rosto formoso era tão macilento que Syme jul-
— Meu forte não é andar esgondido, respondeu contra- gou-o consumido por alguma doença; mas, de certo modo, a
riado Gogol, com pesado sotaque estrangeiro. Não estou en- própria ansiedade dos olhos escuros desmentia esta suposição.
vergonhado da gausa. Não era enfermidade física que o afligia. Seus olhos ardiam
em tortura intelectual, como se o pensamento mesmo fosse
— Mas você está. Está sim, meu velho, e a causa tam- dor.
bém está envergonhada de você, continuou o Presidente bona-
cheirão. Você se esconde como os outros; mas, veja bem, não Êle era o paradigma da tribo, onde todos partilhavam de
sabe fazê-lo porque é um asno consumado! Você procura alguma aberração sutil e distinta. Junto dele sentava-se Ter-
combinar dois métodos incompatíveis. Quando um chefe de ça-feira, o cabeludo Gogol, um homem mais obviamente louco.
família dá com um homem debaixo da cama é provável que se Em seguida estava Quarta-feira, um certo Marquês de St. Eus-
detenha para averiguar o caso. Mas se êle descobre debaixo tache, personagem suficientemente característico. A uma rápida
da cama um homem de cartola, convenhamos, meu caro Ter- inspeção, êle nada revelava de insólito, salvo o fato de ser o
único conviva que vestia as roupas elegantes como se elas
ça-feira, que êle jamais esquecerá esse fato. Quando você foi realmente lhe pertencessem. Usava uma barba negra quadrada,
encontrado debaixo da cama do Almirante Biffin... à francesa, e uma sobrecasaca negra ainda mais quadrada, à
— Também não sou forte em trapazas, disse lügubremente inglesa. Mas Syme, sensível a essas coisas, percebeu que
Terça-feira, enrubéscendo. o homem levava consigo uma rica atmosfera — rica e
— Exato, meu caro, exato! exclamou o Presidente com sufocante — que lembrava, desarrazoadamerite, os narcotizan-
grave cordialidade. Você não é forte em coisa nenhuma. tes odores e as lâmpadas mortiças dos mais sombrios poemas
Enquanto a conversação prosseguia neste tom, Syme pas- de Byron e Poe. A isso calhava o seu modo de vestir-se, não
sou a examinar mais acuradamente os homens que o rodeavam. de cores mais suaves, mas de tecidos mais leves; seu negro
E, pouco a pouco, foi outra vez dominado por aquele senti- parecia mais opulento e mais cálido que as sombras negras que
mento de algo espiritualmente raro. o cercavam, como se fosse composto de côr mais profunda.
Pensara, antes, que todos ali tinham a estatura da média Dir-se-ia que seu casaco negro só era negro por ser púrpura
das pessoas e vestiam os trajes comuns, com a evidente exce- muito viva, e que sua barba negra só era negra por ser azul
ção do cabeludo Gogol. Contudo, ao observar os demais, co- intenso. E, na caliginosa espessura da barba, sua boca verme-
meçou a ver em cada um deles exatamente aquilo que vira lho-escuro mostrava-se insolente e sensual. O que quer que
no homem à margem do rio: um pormenor demoníaco. Aquele êle fosse não era um francês; podia ser um judeu; podia ser
56 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 57

algo ainda mais impenetrável no obscuro coração do Oriente. um enigma. Roubavam a chave do rosto. Não se podia dizer
No deslumbrante colorido dos mosaicos e quadros persas, que o que significavam seu sorriso e sua gravidade. Um pouco por
reproduzem os déspotas em caçadas, vêem-se esses olhos amen- isto e um pouco por ser êle*dono de grosseira virilidade, na
doados, essas azuladas barbas negras, esses lábios carmesins qual os outros eram deficientes, Syme presumiu que o médico
e cruéis. era o mais perverso de todos aqueles homens perversos. E che-
Depois vinha Syme e a seu lado um ancião, o Professor gou até a admitir que os olhos de Buli tinham sido encobertos
de Worms, que ocupava o posto de Sexta-feira, cuja vacância, porque eram medonhos de ver.
por falecimento do ocupante, era aguardada de uma hora para
outra. A inteligência era a única coisa que se salvava desse
estágio final de decadência senil. Seu rosto era tão cinzento
como sua comprida barba cinzenta e sua testa alteava-se até
fixar-se numa ruga de moderado desespero. Em nenhum outro
caso, nem mesmo no de Gogol, o lustre nupcial do traje
exprimia um contraste mais doloroso. A flor vermelha na lape-
la ressaltava diante de um rosto inteiramente descolorido como
chumbo. O efeito era repugnante, como se uns bêbedos almo-
fadinhas tivessem com suas roupas vestido um cadáver. Quan-
do se erguia ou se sentava, o que fazia depois de muito esforço
e risco, denunciava algo pior do que simples fraqueza, algo
indefinivelmente aliado ao horror de toda a cena. Denunciava
não apenas decrepitude, mas corrupção. Outra odiosa fantasia
cruzou a mente vibrátil de Syme, insinuando que, ao menor
movimento, uma perna ou um braço daquele homem podia sol-
tar-se do corpo.
Na extremidade da mesa achava-se o homem chamado
Sábado, justamente o mais simples e enganoso de todos. Baixo,
atarracado, cara escura, quadrada e barbeada, dizia-se médico
e Buli era seu nome. Surpreendia-se nele aquela combinação
de savoir-faire com uma espécie de solícita rudeza, o que é
mais ou menos encontradiço nos jovens médicos. Usava as
roupas festivas antes com arrogância do que com tranqüilidade
e trazia um sorriso estampado na cara. Não se lhe descobria
outra singularidade além dum par de óculos escuros, quase
opacos. Podia ter sido apenas um crescendo de fantasia ner-
vosa, mas para Syme aqueles discos negros eram terrificantes;
recordava-lhe sinistras histórias meio esquecidas, histórias de
moedas que se colocavam nos olhos dos mortos. Por isso o
olhar de Syme não se apartava dos vidros negros nem do esgar
cego. Usados pelo moribundo Professor ou mesmo pelo pálido
Secretário, não estariam mal empregados. Mas nos olhos do
homem mais moço e mais corpulento eles nada mais eram que
CAPITULO VI

A DESCOBERTA

Tais eram os seis homens que haviam jurado destruir o


mundo. Na presença deles Syme esforçava-se continuamente
para manter o senso comum. Às vezes, via que suas suposições
eram subjetivas, que se achava diante de homens normais, dos
quais um era velho, outro nervoso, outro míope. Mas logo
avassalava-o novamente o sentimento de um simbolismo sobre-
natural. Sob todos os aspectos, aqueles sujeitos pareciam colo-
car-se nos últimos limites das coisas, assim como as teorias
por eles sustentadas se colocavam nos últimos limites do pen-
samento. Compreendia que cada um deles atingira, por assim
dizer, o ponto final de alguma abstrusa via do raciocínio. Não
podia deixar de imaginar, como numa velha fábula, que se
um homem caminhasse em direção ao ocidente, até ao fim do
mundo, encontraria alguma coisa — uma árvore, digamos —
que era mais ou menos igual a uma árvore, uma árvore pos-
suída por um espírito; e que se êle caminhasse em direção ao
oriente, até o fim do mundo, encontraria alguma outra coisa
que não era rigorosamente igual a si mesma — uma torre,
talvez, cuja simples forma era adulterada. Assim, esses homens
pareciam elevar-se, violentos e enigmáticos, sobre um último
horizonte, como se fossem visões da fronteira. As extremidades
da terra se tocavam.
A conversa não foi perturbada com a entrada de Syme;
e não era o menor dos contrastes, naquela desooncertante mati-
nada, o que se verificava entre o tom fluente e despreocupado
da palestra e seu terrível conteúdo. Entregavam-se à discussão
de uma conspirata real e muito próxima. Lá em baixo o
criado dera uma informação exatíssima ao dizer que eles esta-
vam falando de bombas e de reis. Dali a apenas três dias,
60 G. K. CHESTERTON
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 61

que estava a ponto de fazer agora. Prometera não transpor de


o Czar ia encontrar-se em Paris com o Presidente da República um salto aquela varanda para ir falar com o polícia. Retirou
da França, e aqui, enquanto comiam toucinho com ovos na a mão fria do frio parapeito de pedra. Sua alma oscilou ao
varanda soalheira, esses jubilosos senhores haviam decidido sabor de uma vertigem de indecisão moral. De um lado, não
como dar cabo dos dois potentados. Até o instrumento já fora tinha mais que partir o fio de um voto imprudente, feito a
escolhido, e coubera ao barbinegro Marquês ser o portador uma súcia de velhacos, para que sua vida pudesse ser tão
da bomba. aberta e banhada de sol como a praça fronteira. De outro lado,
Usualmente, a imediação de um crime positivo e objetivo tinha somente que preservar sua antiquada honradez para ser,
como esse bastaria para despertar e curar Syme de todas as palmo a palmo, triturado pelo poderio desse soberbo inimigo
suas inquietações puramente místicas. Êle não teria pensado do gênero humano, cuja inteligência era uma câmara de tor-
em outra coisa que na necessidade de ir em socorro de dois tura. Todas as vezes que dirigia a vista para a praça, lá
corpos humanos ameaçados de despedaçamento pela ação do achava o tranqüilo polícia, um monumento do senso comum,
ferro e do gás rugiente. Mas a verdade era que agora come- da ordem comum. Todas as vezes que se voltava para a mesa
çava a dominá-lo um terceiro tipo de medo, mais ativo e pun- do café topava o Presidente estudando-o plàcidamente com seus
gente do que a repulsa moral ou a responsabilidade social. olhos enormes e intoleráveis.
Muito simplesmente não se amedrontava com o que pudesse
suceder ao Presidente francês ou ao Czar; começava a ame- Em toda a torrente de seus pensamentos, dois houve, po-
drontar-se com o que podia suceder a êle próprio. Bastante rém, que nunca lhe passaram pela cabeça. Primeiro: nunca
loquazes, aqueles homens pouca atenção lhe davam e dis- lhe ocorreu duvidar de que o Presidente e o resto do Conselho
cutiam entre si, com os rostos chegados e quase uniformemente pudessem esmagá-lo, caso êle persistisse na idéia de enfren-
graves, exceto quando por um instante o sorriso se rasgava oblí- tá-los sozinho. O lugar podia ser público, o projeto podia
quo na cara do Secretário, como o denticulado relâmpago se parecer impossível. Mas Domingo não era um homem que se
rasga oblíquo no firmamento. Mas uma coisa havia, tão per- arriscasse assim comodamente sem ter antes deixado aberto,
sistente, que principiou por perturbar Syme e terminou por ater- não se sabe como nem onde, seu alçapão de ferro. Com vene-
rá-lo. Era o Presidente, que o fitava fixamente com desmedido no anônimo ou com acidente de rua, com hipnotismo ou com
mas ambíguo interesse. O agigantado homem estava muito o fogo do inferno, Domingo podia certamente eliminá-lo. Se
quieto, porém seus olhos azuis saíam fora das órbitas e enfia- desafiasse aquele homem era provável que não sobrevivesse:
vam-se em Syme. ou morreria ali mesmo na cadeira em que estava sentado ou
algum tempo depois, como ao fim de uma doença inocente.
Syme estava na iminência de pôr-se em pé e saltar da Se chamasse prontamente a polícia e ela os prendesse, se con-
varanda. Quando tinha sobre si os olhos do Presidente, sen- tasse tudo e mobilizasse contra eles toda a força da Inglaterra,
tia-se como se fosse feito de vidro. Reconhecia, sem a menor provavelmente escaparia. De outro modo, era impossível. Mas
sombra de dúvida, que Domingo, sossegada e misteriosamente, naquela varanda, no meio de cavalheiros aparentemente ocupa-
tinha descoberto que êle era espião. Alongando o olhar do dos em contemplar uma praça cheia de sol e de gente, Syme
parapeito da varanda, viu lá em baixo um polícia a contemplar não se sentia mais seguro do que se estivesse num barco, no
distraído os luzentes gradis e as árvores cheias de sol. meio de corsários armados, contemplando um mar deserto...
Foi então que o assaltou a grande tentação que havia de O segundo pensamento que nunca lhe ocorreu foi o de
atormentá-lo por muitos dias. Diante desses homens poderosos ser espiritualmente conquistado pelo inimigo. Muitos moder-
e repulsivos, que eram os príncipes da anarquia, quase esque- nistas, calejados numa impotente adoração da inteligência e
cera a frágil e excêntrica pessoa do poeta Gregory, simples da força, podiam ter afrouxado sua lealdade, sob a tirania de
esteta do anarquismo. Chegava a pensar nele agora com velha uma personalidade vigorosa. Podiam ter chamado Domingo
simpatia, como se tivessem brincado juntos na infância. Mas super-homem. E se tal criatura é concebível, sem dúvida era
lembrou-se de que estava ainda vinculado a Gregory por um Domingo quem melhor a corporificava, com seu alheamento
solene compromisso. Prometera não fazer jamais aquela coisa
62 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 63

sísmico, de estátua ambulante. Podia merecer qualquer nome — Não me agradaria que o universo arrebentasse justa-
sobre-humano, por sua corpulência, que era demasiadamente mente agora, frisou o Marquês. Pretendo cometer uma porção
óbvia para ser descoberta, e por sua caraça, que era demasia- de barbaridades antes de morrer. Ontem na cama pensei numa.
damente franca para ser decifrada. Mas essa era uma espécie — Não importa. Já que o fim único de todas as coisas
de baixeza moderna com que Syme não podia pactuar, mesmo é o nada, atalhou Dr. Buli com seu esfíngico sorriso, não vale
em extrema depressão. Como qualquer um, êle era bastante a pena fazê-la.
covarde para temer a brutalidade; mas não era tão covarde que O velho Professor, que se distraía a olhar o teto, disse:
a admirasse. — No íntimo toda a gente sabe que não vale a pena fazer
Os homens comiam e conversavam, e até nisso eles eram coisa nenhuma.
típicos. Dr. Buli e o Marquês, despreocupadamente e com na- Houve um silêncio singular. Depois o Secretário falou:
turalidade, provavam das melhores iguarias da mesa: faisão — Mas nós nos afastamos do assunto. A questão está
frio e pastel de Estrasburgo. O Secretário, porém, era vegeta- em saber como Quarta-feira há de dar o golpe. Acho que
riano e, entre meio tomate cru e três quartos de um copo de todos estamos de acordo na idéia original da bomba. Quanto
água morna, falava fervorosamente do projetado assassínio. O aos outros preparativos, eu sugeriria que amanhã de manhã
velho Professor consumia as papas adequadas à sua asquerosa êle fosse antes de tudo a . . .
segunda infância. Ainda aqui o Presidente exercia seu curioso A frase foi cortada pelo súbito aparecimento de uma som-
e maciço predomínio. Comia por vinte homens, comia incri- bra vastíssima. O Presidente Domingo se erguera e parecia
velmente, com assombrosa voracidade, de- modo que era o mes- tapar o céu que os cobria.
mo que pôr-se a gente a contemplar o trabalho de uma fábrica — Antes de discutirmos qualquer desses pontos, disse
de salsicha. Entretanto, depois de devorar uma dúzia de bolos numa voz calma e quieta, passemos para dentro. Tenho a di-
e sorver meia canada de café, continuava com a imensa cabeça zer-lhes uma coisa muito particular.
inclinada e os olhos fixos em Syme. Syme levantou-se antes dos outros. O instante decisivo
Muitas vezes me ponho a pensar, disse o Marquês dando tinha enfim chegado; a pistola apontava para sua cabeça. Po-
uma boa mordida numa fatia de pão com geléia, se não seria dia ouvir o policial ociosamente agitar-se e bater com os pés
melhor para mim fazer uço do punhal. Muitas coisas formi- na calçada, pois a manhã, apesar de luminosa, era fria.
dáveis têm sido feitas com êle. E seria uma nova emoção enfiar Na rua um realejo iniciou de repente uma toada jovial.
um punhal num Presidente da França e depois revolvê-lo por Em pé, Syme se entesou como se estivesse ouvindo um toque
dentro. de cometa antes da batalha. Sentiu-se dono de uma coragem
sobrenatural, que êle não sabia de onde vinha. Aquela me-
— Você se engana, respondeu o Secretário franzindo as lodia vibrante parecia-lhe cheia da vivacidade, da vulgaridade e
negras sobrancelhas. O punhal era simplesmente a expressão da intrepidez dos pobres, que, em todas aquelas ruas imundas,
da velha pendência pessoal com um tirano pessoal. A dinamite se apegavam aos pudores e às esmolas da cristandade. A tra-
não é apenas nosso melhor instrumento; é o nosso melhor sím- ves sura juvenil de entrar na polícia tinha desaparecido de sua
bolo. Para nós é um símbolo tão perfeito como o incenso mente; não pensava em si mesmo como representante da cor-
para as orações dos cristãos. Expande-se; só destrói porque poração de cavalheiros que, por capricho, se fizeram milicianos,
se expande. Assim também é o pensamento: só destrói por- nem no velho excêntrico que habitava o quarto escuro. Via-se
que se expande. O cérebro do homem é uma bomba, bradou como embaixador de todo esse povo humilde e bom das ruas,
abandonando-se subitamente à sua estranha paixão e golpean- que diariamente marchava para a batalha ao som do realejo.
do o crânio com violência. Meu cérebro sente-se como uma E esta exaltada ufania de ser humano elevava-o inexplicavel-
bomba, noite e dia. Precisa explodir! Precisa explodir! O mente a uma altitude incomensurável, infinitamente acima dos
cérebro do homem deve explodir, ainda que arrebente todo sujeitos monstruosos que o cercavam. Por um instante, ao me-
o universo. nos, olhou sobrarfceiro, do píncaro estelar do lugar-comum,
64 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 65
para todas aquelas cambaleantes excentricidades. Diante deles O Presidente dava a impressão de aceitar a crítica incoe-
sentia toda a inconsciente e elementar superioridade que sente rente do estrangeiro com total benevolência.
o bravo diante de feras poderosas ou o sábio diante de erros — Você, Gogol, ainda não pode compreender, disse em
poderosos. Sabia que não tinha a força intelectual nem a força tom paternal. Ouvindo-nos dizer bobagens naquela varanda
física do Presidente Domingo, mas nesse momento isso não lhe ninguém procurará saber para onde vamos depois.. Se tivés-
interessava mais do que o fato de não possuir os músculos semos vindo primeiro para cá teríamos toda a criadagem no
do tigre ou um chifre no nariz como o rinoceronte. Tudo foi buraco da fechadura. Você parece não conhecer a humanidade.
tragado pela convicção inabalável de que o Presidente estava — Morro por ela! exclamou o polonês numa agitação
errado e o realejo estava certo. Ressoou em sua cabeça aquele estúpida. Mato zeus oprezores! Mas não gosto dessas brin-
incontestável e terrível truísmo da canção de Rolando: gadeiras de esgonder. Quero matar o tirano na praza públiga.
— Ah, sim, percebo! disse o Presidente aprovando bon-
Pcüens ont tort et Chrétiens oni droit, dosamente, enquanto se sentava à cabeceira da longa mesa.
Primeiro você morre pela humanidade, depois ressurge e mata
que, no antigo francês nasalado, traduz o tumulto e o fragor os que a oprimem. Correto! Agora quero pedir-lhe que mo-
das armas em choque. Liberto o espírito da carga de fra- dere seus inestimáveis sentimentos e que tome seu lugar à mesa
queza que o oprimia, adotou a firme decisão de enfrentar a junto aos outros. Pela primeira vez nesta manhã uma coisa
morte. Se a gente simples do realejo podia desempenhar seus aproveitável vai ser dita. .
milenários deveres, também êle poderia-desempenhar os seus. Com a inquieta diligência que vinha mostrando desde as
O próprio orgulho de cumprir a palavra consistia em ter de primeiras ordens, Syme foi o primeiro a sentar-se, Gogol sen-
cumpri-la para os ímpios. Seu último triunfo sobre aqueles tou-se por último, resmungando dentro das barbas castanhas
lunáticos resumia-se em acompanhá-los ao quarto escuro e mor- sobre gombr omissos. Com exceção de Syme, ninguém parecia
rer por alguma coisa que eles não podiam sequer entender. O ter a mínima idéia do golpe que estava prestes a ser dado.
realejo parecia tocar uma marcha com a energia e a multiplici- Quanto a êle, sentia-se como um homem que sobe a um cada-
dade de sons de uma orquestra; e sob os clarins que entoam a falso com a intenção de fazer, a qualquer preço, um bom dis-
altivez da vida Syme ouvia os profundos rufos cadenciados dos curso.
tambores que compassam a altivez da morte. — Camaradas, começou o Presidente, pondo-se em pé
Os conspiradores, em fila, começavam a passar para os com rapidez. Já fomos longe demais com esta farsa. Reuni-os
cômodos internos. Syme seguia-os, em último lugar, exterior- aqui para dizer-lhes uma coisa tão simples mas tão surpreen-
mente calmo, mas seu cérebro e seu corpo latejavam num ritmo dente, que até os criados lá de cima (acostumados a nossas
apaixonado. O Presidente levou-os por uma sinuosa escada late- inconseqüências) poderiam descobrir uma esquisita seriedade
ral (que devia ser utilizada pelos criados) e introduziu-os num em minha voz. Camaradas, estivemos discutindo planos e ci-
quarto escuro, frio e desabitado, ao qual a mesa e os bancos tando lugares. Proponho, antes de mais nada, que esses planos
imprimiam um aspecto de refeitório abandonado. Depois que e lugares não sejam aprovados nesta sessão e que fiquem intei-
estavam todos lá dentro o Presidente fechou a porta a chave. ramente sob a direção de um membro digno de confiança. Sugiro
O primeiro a falar foi Gogol, o irreconciliável. que pare- o camarada Sábado, Dr. Buli.
cia estourar de furores inarticulados. Até aí, todos contemplavam o Presidente; mas depois es-
— Zim! Zim! grunhiu com obscura excitação, tornando tremeceram em seus assentos, porque as palavras que se se-
guiram, embora não fossem proferidas em voz alta, possuíam
o pesado sotaque polonês quase impenetrável. Vozes dizem vivida e sensacional ênfase. Domingo deu um murro na mesa.
que não se esgondem. Dizem que se deixam ver. É jalzo. — Nem mais uma palavra sobre planos e lugares! Nem
Quando têm um azunto importante correm a discuti-lo numa um ínfimo pormenor sobre o que vamos fazer deve ser comen-
caixa esgura. tado nesta reunião.
66 G. K. CHESTERTON

Domingo passara a vida atordoando os sequazes, mas pa-


recia que êle nunca os tinha realmente atordoado senão agora.
Todos agitaram-se febrilmente, exceto Syme, que estava duro
no seu canto, com a mão no bolso empunhando o revólver
carregado. Quando viesse o ataque venderia muito cara a vida.
Enfim ia saber se o Presidente era mortal.
Domingo continuou polidamente:
— Sem dúvida vocês compreenderão que só um motivo CAPITULO VII
pode proibir a livre manifestação do pensamento neste festival
da liberdade. Não importa que os estranhos nos ouçam. Eles
pensam que estamos pilheriando. Mas o que tem importância
capital é que entre nós existe alguém que não é dos nossos, A INEXPLICÁVEL CONDUTA DO PROFESSOR
que está a par dos nossos graves desígnios, mas que não os DE WORMS
compartilha, que...
O Secretário interrompeu-o com um grito agudo, como
uma mulher. — Sentem-se! ordenou Domingo com uma voz só empre-
— Não pode ser! exclamou erguendo-se num pulo. Não gada em ocasiões excepcionais, uma voz que obrigava os ho-
é possível! mens a depor as espadas desembainhadas.
O Presidente bateu na mesa com a palma da mão, enorme Os três que se tinham levantado afastaram-se de Gogol, e
e gorda como a barbatana de um peixe colossal. este equívoco personagem voltou a seu lugar.
— Sim, disse vagarosamente, há um espião neste quarto. — Bem, meu prezado senhor, disse com energia o Pre-
Há um traidor nesta mesa. Não vou gastar mais palavras. Seu sidente, dirigindo-se a Gogol como alguém se dirige a um des-
nome é . . . conhecido, quer fazer-me o favor de colocar a mão no bolso
Syme começou a levantar-se, com o dedo firme no gatilho. superior do colete e mostrar-me o que traz dentro dele?
— Seu nome é Gogol, disse o Presidente. É esse cabeludo O suposto Gogol, um tanto pálido sob o emaranhado de
impostor que passa por polonês. cabelos negros, meteu, com aparente frieza, dois dedos dentro
Gogol deu um pulo do banco, segurando um revólver do bolso e de lá retirou um cartão azul. Ao ver o cartão,
em cada mão. Com a mesma presteza voaram-lhe três homens Syme despertou de novo para o mundo exterior e, embora nada
ao pescoço. Até o Professor fêz um esforço para se pôr em pudesse ler da inscrição, pois o cartão estava na outra extre-
pé. Mas Syme pouco assistiu da cena, cegado por benéfica es- midade da mesa, notou a alarmante semelhança com o cartão
curidão, e afundou trêmulo no banco, numa apatia de intenso azul que trazia no bolso e que tinha recebido quando se alistou
alívio. na milícia antianarquista.
— Patético eslavo, continuou o Presidente, trágico filho
da Polônia, está preparado para negar, diante desse cartão, que
nesta sociedade você é, vamos dizer, de trop?
— Oh, de modo algum! exclamou o ex-Gogol. Todo
mundo se sobressaltou ao ouvir uma voz clara, comercial e algo
familiar surgir daquela floresta de cabelos estrangeiros. Era
irracional, como se um chinês subitamente entrasse a falar com
sotaque escocês.
— Concluo que você não desconhece a posição em que
está, observou Domingo.
68 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 69

— Acertou, disse o polonês. E vejo que é um bocado que aplaudo irrestritamente as suas precauções na presença real
incômoda. Tudo quanto tenho a dizer é que não creio que de um traidor...
um polonês pudesse imitar meu sotaque como eu imitei o dele. — Secretário, redargüíu rudemente o Presidente, se você
— Concordo. Admito que seu sotaque é inimitável. Eu botar a cabeça para ferver com um nabo ela pode prestar para
mesmo tentei praticá-lo no banho. Vê algum inconveniente alguma coisa. Não dou certeza, mas bem que pode prestar.
em deixar aqui a barba e o cartão? O Secretário recuou, tomado de fúria eqüina.
— Nenhum, respondeu Gogol, e com um dedo arrancou — Realmente não chego a compreender... começou pro-
toda a hirsuta cabeleira, expondo uns fios vermelhos e ralos e fundamente ofendido.
um rosto pálido e petulante. Fazia muito calor, acrescentou. — É isso, é isso, disse o Presidente balançando a cabeça
— Farei a justiça de confessar, disse Domingo não sem várias vezes. É aí que você fracassa redondamente. Nunca
uma espécie de brutal admiração, que você parece ter-se con- chega a compreender nada. Ora, asnática criatura, bramiu pon-
servado inteiramente frio aí debaixo. Agora escute aqui, Eu do-se de pé, você não queria ser ouvido por um espião, não é
gosto de você. Por isso, ficaria desgostoso por uns dois mi- assim? Como sabe que não está sendo ouvido agora?
nutos e meio se viesse a saber que você morreu de suplícios. E com estas palavras abalou do quarto, dando de ombros
Preste atenção: se você algum dia contar à polícia ou a quem com indecifrável desdém.
quer que seja as nossas atividades, eu terei esses dois e meio Quatro dos homens ficaram boquiabertos, sem qualquer
minutos de desconforto. Do seu desconforto não quero falar. noção aparente dos propósitos de Domingo. Somente Syme
Passe bem. Cuidado com a escada. teve tal noção, o que bastou para gelar-lhe os ossos. Se as
O detetive de cabelos vermelhos que personificara Gogol últimas palavras do Presidente tinham alguma significação era
ergueu-se sem proferir uma palavra e saiu do quarto com um mais do que claro que êle, Syme, afinal não estava isento de
ar de total indiferença. Entretanto, o aturdido Syme pôde ve- suspeita. Elas significavam que, conquanto Domingo não pu-
rificar que essa tranqüilidade fora adquirida de chôfre. Um desse denunciá-lo como fêz com Gogol, não podia também
leve tropeço do lado de fora da porta indicou que o despedido confiar nele como confiava nos demais.
detetive não pensara na escada. Os outros levantaram-se resmungando e correram dali à
— O tempo voa, disse expansivamente o Presidente de- procura de almoço, pois já passava de meio-dia. Por último,
pois de lançar um olhar para seu relógio, que, como tudo, lenta e miseravelmente, saiu o Professor. Depois que todos se
quanto lhe pertencia, parecia maior do que devia ser. Preciso foram, Syme permaneceu muito tempo sentado, refletindo em
ir embora imediatamente. Vou ocupar a presidência de uma sua esquisita situação. Escapara do raio, mas ainda estava
reunião humanitarista. embaixo de üma nuvem. Ergueu-se por fim e abandonou o
O Secretário voltou-se para êle com semblante carrancudo. hotel, entrando em Leicester Square. O dia luminoso e frio
— Não seria melhor, alvitrou um tanto severamente, dis- tinha-se tornado muito mais frio. Quando Syme chegou na
cutir os pormenores do plano agora que o espião nos deixou? rua foi surpreendido por alguns flocos de neve. Trazia con-
— Não, acho que não, retrucou o Presidente no meio de sigo a bengala de estoque e o resto da bagagem portátil de
um bocejo que era um discreto terremoto. Deixemo-lo como Gregory, mas esquecera o capote nalguma parte, na lancha
está. Sábado que cuide de tudo. Vou andando. No próximo talvez ou na varanda. Confiado em que a nevada era passa-
domingo, aqui, à hora do café. geira, retrocedeu um pouco e abrigou-se no limiar de uma pe-
Todavia, a turbulência das últimas cenas havia lacerado quena e nauseante loja de cabeleireiros, cuja vitrina exibia uni-
os nervos quase nus do Secretário. Êle era um desses homens camente uma melancólica dama de cera vestida com traje de
que são conscienciosos até no crime. cerimônia.
— Cumpre-me protestar, Presidente, contra esta irregu- A neve, entretanto, recrudescia. Porque a visão da dama
laridade. Temos como princípio fundamental de nossa socie- de cera concorresse para deprimir seu espírito, Syme dirigiu
dade a discussão de todos os projetos em plenário. É claro o olhar para a rua branca e deserta. E não foi pequeno seu
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 71
70 G. K. CHESTERTON

assombro ao deparar com um homem imóvel defronte da loja, bebendo vinho no meio dos livres. Um pouco mais tranqüi-
de olhos fitos na vitrina. O chapéu do estranho estava empa- lizado, apanhou o chapéu e a bengala e desceu vagarosamente
pado de neve como o chapéu do Papai Noel, e os alvos flocos a escada.
cobriam-lhe as botas e os tornozelos. Contudo, parecia que nada Quando entrou no salão parou bruscamente e fincou-se no
haveria de arrancá-lo à contemplação do enfermiço manequim lugar. A uma mesinha próxima da janela e da rua coberta de
de traje cerimonioso e sórdido. Que um ser humano se pusesse, neve sentava-se o velho anarquista Professor de Worms, com
em tal ocasião, a embasbacar para uma loja como aquela era o rosto lívido e as pálpebras abaixadas, diante de um copo de
motivo de grande espanto para Syme; mas esse espanto gra- leite. Por um instante, Syme ficou tão rígido como a bengala
tuito mudou-se de imediato em comoção pessoal, ao constatar em que se apoiava. Depois, com um movimento atabalhoado,
que o estranho não era outro senão o paralítico ancião Profes- passou roçando pelo Professor, abriu precipitadamente a porta
sor de Worms. O local é que não parecia adequado a pessoa e, fechando-a com violência atrás de si, parou do lado de fora
idosa e enferma. sob o rigor da neve.
Syme estava pronto a crer que todas as perversões tinham — Será possível que esse velho cadáver esteja me seguin-
curso na degenerada confraria, mas não podia crer que o Pro- do? inquiriu-se mordendo o bigode amarelo. Devo ter demo-
fessor se enamorara justamente daquele manequim. Admitia rado demais lá em cima. Só assim esses pés de chumbo pude-
que a doença do homem (qualquer que ela fosse) se manifes- ram apanhar-me. A minha felicidade é que me basta andar
tava em acessos momentâneos de rigidez ou arrebatamento. um pouco mais depressa para deixar esse sujeito tão longe de
Não se inclinava, porém, a sentir a menor compaixão. Ao con- mim como daqui a Tombuctu. Não estarei fantasiando? Êle
trário, folgava com os espasmos e os passos tardos e coxeantes estava me seguindo mesmo? Acho que Domingo não seria tão
do Professor, os quais lhe permitiriam fugir e deixá-lo a mi- tolo que mandasse um coxo perseguir-me!
lhas de distância. Pois Syme desejava ardentemente libertar-se, Pôs-se a caminho com passos rápidos, torcendo e rodo-
ao menos por uma hora, de toda aquela envenenada atmosfera. piando a bengala e tomou a direção de Covent Garden. Ao
Só assim, poderia concatenar os pensamentos, traçar sua polí- cruzar o grande mercado a neve caía de rijo, cegando e des-
tica e decidir finalmente se devia ou não devia manter a pro- norteando, enquanto a tarde começava a escurecer. Os flocos
messa feita a Gregory. atormentavam-no como um enxame de abelhas prateadas. In-
Abriu caminho por entre o bailado da neve, enveredou vadindo-lhe os olhos e a barba, acrescentavam um incessante
por duas ou três ruas, percorreu outras duas ou três e entrou aborrecimento a seu nervos já irritados; e no momento em que
num modesto restaurante de Soho para almoçar. Serviu-se de êle, claudicante, atingia a entrada de Fleet Street, perdeu a pa-
uns quatro pratos leves, bebeu meia garrafa de vinho tinto e ciência: entrou numa casa de chá domingueira para abrigar-se.
finalizou a refeição com café e charuto, sempre imerso em Como justificativa pediu uma xícara de café forte. Mal tinha
suas meditações. Escolhera uma mesa no primeiro andar re- acabado de fazer a encomenda, o Professor de Worms entrou
pleto do tinido de talheres e do vozeio dos estrangeiros. Re- coxeando pesadamente, sentou-se com dificuldade e pediu um
cordou que, em outros tempos, tomara esses inofensivos e copo de leite.
amáveis estrangeiros por anarquistas. E teve um arrepio ao A bengala de Syme caiu no chão, produzindo forte ruído
pensar na dura realidade. Mas o arrepio veio misturado à metálico, revelador do aço oculto. Mas o Professor não se
deliciosa emoção da fuga. O vinho, o alimento habitual, o am- abalou. Syme, que era normalmente um sujeito frio, estava tão
biente conhecido, as fisionomias de homens normais e palra- boquiaberto como um matuto diante de um passe de mágica.
dores levavam-no a quase imaginar que o Conselho dos Sete Não vira nenhum fiacre segui-lo; não ouvira barulho de rodas
Dias não passara de um pesadelo. E embora o Conselho fosse na rua; segundo todas as aparências o homem tinha vindo a
a toda prova uma realidade objetiva, era, ao menos, remota. pé. Mas o ancião só podia andar feito um caracol, e Syme
Altos edifícios e ruas populosas punham-se entre êle e sua últi- tinha andado feito o vento. Levantou-se com presteza e agarrou
ma visão dos sete renegados. Estava livre na livre Londres, a bengala, meio enlouquecido com aquela contradição na mais
72 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 73

simples aritmética, e arrojou-se por entre as portas de vaivém, parou novamente para escutar, seu coração parou também, por-
deixando o café intato. Um ônibus que ia para o aterro passou que daquele trecho de pedras nuas chegavam o tinido da mu-
ruidoso numa rapidez inusitada. Syme teve que correr umas leta e os passos difíceis do coxo infernal.
cem jardas para alcançá-lo; mas conseguiu num pulo guindar- Lá em cima o céu, carregado de nuvens de neve, envolvia
se ao pára-lama e, depois de breve pausa para tomar fôlego, Londres num negror e numa opressão prematuros para aquela
subiu para o tejadilho. Fazia cerca de meio minuto que estava hora da tarde. De cada lado de Syme as paredes da viela
sentando, quando sentiu nas costas um sopro cansado e as- estendiam-se lisas e indistintas; não havia janela nem qualquer
mático. tipo de fresta. Sentiu novo impulso para fugir desse cortiço
Volvendo-se imediatamente, viu elevar-se pouco a pouco de casas e ganhar outra vez uma rua ampla e iluminada. Mas
nos degraus do ônibus um chapéu alto, encharcado de neve teve de vaguear e dar muitas voltas por longo tempo antes de
gotejante, e, à sombra da aba, a cara míope e os ombros débeis acertar com a artéria principal. E quando a encontrou, viu que
do Professor de Worms. Com o desvelo que lhe era peculiar, tinha saído muito mais longe do que imaginara. Achou-se na
o Professor meteu-se num banco e enrolou-se até o queixo na deserta vastidão de Ludgate Circus e avistou a Catedral de
manta de lã. São Paulo assentada no céu.
Todos os movimentos da figura vacilante e das mãos trê- No primeiro momento admirou-se de encontrar essas lar-
mulas do ancião, todos os gestos incertos e todas as pausas pâ- gas avenidas tão vazias como se a peste houvesse assolado a
nicas pareciam pôr fora de dúvida que êle estava irremedia- cidade. Depois admitiu que certo vazio era natural; primeiro,
velmente perdido na degenerescência final do corpo. Movia-se porque a nevasca era mesmo perigosamente violenta, e segundo,
por polegadas, sentava-se com pequenas agonias de precaução. porque era domingo. E ao pensar na palavra "domingo" mor-
Entretanto, a menos que as entidades filosóficas chamadas tem- deu o lábio; para êle tal palavra passou a ser desde então uma
po e espaço não tivessem vestígio sequer de existência real, coisa assim como um trocadilho obsceno. Debaixo do esbran-
era incontestável que êle tinha corrido para tomar o ônibus. quiçado nevoeiro suspenso no céu, toda a atmosfera da cidade
Syme pôs-se de pé no carro trepidante e, depois de lançar adquirira um fantástico matiz esverdeado como de homens sob
um olhar angustiado ao céu invernoso que, a cada instante, o mar. O soturno crepúsculo escondido por trás da cúpula de
se tornava mais negro, disparou pela escada. Havia repelido São Paulo tinha cores esfumaçadas e sinistras — verde mór-
o impulso elementar de atirar-se do alto do ônibus. bido, vermelho agonizante e bronze evanescente — bastante
Perplexo demais para poder raciocinar, precipitou-se num vivas, porém, para salientar a sólida alvura da neve. Acima
dos bequinhos laterais de Fleet Street como um coelho se pre- destas cores funestas elevava-se o vulto negro da catedral, de
cipita num buraco. Teve o vago pressentimento de que na- cujo cimo pendia enorme placa de neve, como de um pico
quele labirinto de vielas em breve haveria de despistar o velho alpino. Caíra ali por acaso, de modo a quase revestir a cúpula
e misterioso bonifrate que vinha em seu encalço. Entrava e de alto a baixo e destacar em prata pura o orbe majestoso e
saía pelos becos tortuosos, que tinham mais de furnas que de a cruz. Diante deste espetáculo Syme empertigou-se e com a
vias públicas; e no momento em que havia completado cerca bengala de estoque fêz involuntária continência.
de vinte ângulos alternados e descrito um polígono inconce- Sabia que aquela figura maligna o rastreava, ora veloz
bível, parou para escutar qualquer rumor de perseguição. Não ora lenta, como se fosse sua sombra, mas não se preocupou.
havia nenhum e na verdade não poderia haver, pois as ruelas Parecia um símbolo da fé e da intrepidez do homem que este
estavam atapetadas de neve silente. Todavia, um pouco atrás ponto eminente da terra estivesse iluminado enquanto os céus
de Red Lion Court deu com um lugar onde algum enérgico se escureciam. Os demônios podiam ter capturado o céu, mas
cidadão tinha afastado a neve pelo espaço de umas -vinte jar- não tinham ainda capturado a cruz. Teve vontade de arran-
das, deixando à mostra as úmidas e cintilantes pedras do calça- car o segredo desse perseguidor dançante, saltão e paralítico;
mento. Não deu muita atenção a isso e internou-se em mais e à entrada do pátio que leva a Ludgate Circus, voltou-se, de
outro braço do labirinto. Mas quando, cem jardas adiante, bengala em punho, para enfrentar o inimigo.
74 G. K. CHESTERTON

O Professor de Worms dobrava ronceiramente a esquina


da ruazinha irregular. Seu porte inverossímil, entrevisto sob
uma solitária lâmpada de gás, lembrava obrigatoriamente um
fabuloso tipo das canções de ninar: "o homem torto que an-
dou uma milha torta". Realmente era como se êle tivesse sido
retorcido pelas ruas tortuosas que tinha palmilhado. Vinha-se
aproximando pouco a pouco, com a luz da lâmpada a refle-
tir-se nos óculos e no rosto resignado. Syme esperava-o como CAPITULO VIII
São Jorge esperou o dragão, como um homem espera uma ex-
plicação final ou a morte. E o velho Professor veio em sua
direção, mas passou como um verdadeiro desconhecido, sem
um pestanejo de suas funéreas pálpebras. O PROFESSOR EXPLICA
Houve algo nesta silenciosa e inesperada inocência que
deixou Syme numa fúria mortal. A cara descolorida e a ati- Quando Gabriel Syme se achou definitivamente acomoda-
tude do homem pareciam assegurar que toda a perseguição do numa cadeira e teve em sua frente também definitivamente
tinha sido mera casualidade. Syme foi galvanizado por uma acomodadas as sobrancelhas erguidas e as pálpebras pesadas
energia que se situava entre o azedume e uma explosão de do Professor, voltaram-lhe todos os temores. Não havia dúvida
zombaria infantil. Com gesto estouvado, fêz que ia derrubar de que esse sujeito incompreensível o tinha seguido desde a
o chapéu do velho e, gritando algo como "Manja!", pôs-se a reunião do arrogante Conselho. Se êle possuía um caráter como
correr pelo branco e amplo Ludgate Circus. Agora era im- paralítico e outro como perseguidor, o contraste podia tor-
possível esconder-se; olhando por cima do ombro divisou a ná-lo mais sedutor mas não o tornava mais inofensivo. Syme
negra figura do provecto cavalheiro a segui-lo com grandes e percebeu que teria irrisória compensação caso não alcançasse
gigantescas pernadas, como quem ganha uma corrida de uma desmascarar o Professor e fosse por êle desmascarado. Esva-
milha. Mas a cabeça encaixada naquele corpo bambo conti- ziou um canecão de cerveja antes que o Professor tocasse no
nuava pálida, grave e profissional, como uma cabeça de pre- copo de leite.
gador num corpo de arlequim. Entretanto, uma simples conjetura dava ao seu desamparo
Esta irrisória caçada desenrolou-se através de Ludgate um toque de esperança. Era bem possível que essa correria
Circus e Ludgate Hill, em torno da Catedral de São Paulo e não significasse necessariamente que êle estava sob suspeita.
ao longo de Cheapside, enquanto Syme relembrava todos os Talvez se tratasse de uma formalidade regulamentar. Talvez
pesadelos de sua vida. Por fim Syme enveredou para os lados essa corrida desordenada não passasse de um sinal amistoso que
do rio e foi parar perto das docas. Ao ver as vidraças ama- êle devia ter subentendido. Talvez fosse um ritual. Talvez cada
relas de uma taberna iluminada, lançou-se para dentro dela e novo Quinta-feira tivesse de ser caçado ao longo de Cheapside
pediu cerveja. Era uma tasca imunda, povoada de marujos es- do mesmo modo que é de praxe ir por ali escoltado cada novo
trangeiros, onde se podia fumar ópio e puxar facas. Prefeito. Estava elaborando um ligeiro questionário quando
Segundos depois, o Professor de Worms entrou no recinto. foi interrompido pelo Professor. Antes que Syme pudesse fazer
Sentou-se cuidadosamente e pediu um copo de leite. a primeira de suas diplomáticas perguntas, o velho anarquista
já se tinha dirigido a êle à queima-roupa:
— É detetive?
Por mais prevenido que estivesse, Syme jamais podia ter-
se prevenido contra uma coisa tão real e contundente como
esta. Sua grande presença de espírito apenas lhe permitiu res-
ponder com um ar de embaraçada jovialidade.
76 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 77

— Detetive? Eu? disse rindo vagamente. O que o levou — Não faço parte da polícia britânica, retrucou Syme
a pensar que sou detetive? com calma insana.
— Nada de especial, respondeu calmamente o Professor. O Professor de Worms recostou-se em sua cadeira com
Só que achei você parecido com um polícia. E ainda continuo uma curiosa expressão de brando desespero.
achando.
— É pena, disse êle, porque eu faço.
— Terei, por engano, trazido de lá do restaurante algum
casquete policial? perguntou Syme, sorrindo frouxamente. Tra- Syme pôs-se em pé de um salto, empurrando para trás,
go por acaso um número? Terão minhas botas aquele terrível com estrondo, o banco em que estava sentado.
aspecto investigante? Por que você me toma por um polícia? — Faz parte de quê? perguntou dificultosamente. Você
Tenha paciência, deixe-me ser um carteiro. é o quê?
O velho Professor meneou a cabeça com severa gravidade, — Sou um polícia, respondeu o Professor com seu pri-
mas Syme prosseguiu na sua febricitante ironia. meiro riso franco e os olhos brilhando através dos óculos. Mas
— Talvez me tenham escapado as sutilezas de sua filo- como você acha que polícia é um termo puramente relativo,
sofia germânica. Talvez polícia seja um termo relativo. Num nada tenho a ver com você. Sou da força policial britânica;
sentido evolucionista, a transformação do macaco em polícia e desde que você afirma que não é da força policial britânica
é tão lenta que é possível não tenha eu captado as cambiantes. resta-me apenas dizer que o encontrei num clube de dinamitei-
O macaco é apenas o polícia que podia ser. Talvez uma sol- ros e que nada me cabe fazer senão prendê-lo. E com estas
teirona de Clapham Common seja somente o polícia que podia palavras deixou cair na mesa um perfeito fac-simile do cartão
ter sido. Não me importo de ser o polícia que podia ter sido. azul que Syme guardava no bolso do colete, símbolo de seu
Não me importo de ser qualquer coisa no pensamento alemão. poder policial.
— Trabalha na polícia? perguntou o ancião, ignorando Por um segundo, Syme teve a sensação de que o cosmos
todo o improvisado e desesperado motejo de Syme. É detetive? se tinha transformado, de que todas as árvores cresciam para
O coração de Syme petrificou-se, mas o rosto não se al- baixo e todas as estrelas se estendiam sob seus pés. Mas, pou-
terou. co a pouco, formou-se nele a convicção oposta. A verdade
— Sua insinuação é ridícula, começou. Porque cargas é que nas últimas vinte e quatro horas o cosmos estivera real-
d'água... mente pelo avesso e só agora é que o subvertido universo vol-
O velho quase quebrou a raquítica mesa com um violento tava ao normal. Esse demônio de quem êle tinha estado a
murro de sua mão paralítica. fugir durante todo o dia não era mais que um irmão mais velho
— Minha pergunta foi clara. Não a entendeu, espião mi- que agora, do outro lado da mesa, ria zombeteiramente. Não
serável? guinchou um tanto tresloucado. Você é ou não é procurou inteirar-se logo dos pormenores; bastava-lhe saborear
detetive? o fato simples e auspicioso de ser esta sombra, que o perse-
— Não! respondeu Syme, como alguém que está à mer- guira com a intolerável opressão do perigo, apenas a sombra
cê do carrasco. de um amigo esforçando-se por alcançá-lo. Compreendeu —
— Jura? disse o velho, espichando sua cara morta que pois que qualquer vitória sobre a morbidez vem sempre acom-
parecia asquerosamente viva. Jura? Jura? Sabe que se jurar panhada de saudável humildade — que era ao mesmo tempo
em falso será condenado? Sabe que o diabo dançará em seus um idiota e um homem livre. Em tais condições chega-se a
funerais? E que o pesadelo vai se sentar em seu túmulo? Não um ponto em que somente três coisas são possíveis: em pri-
haverá realmente nenhum equívoco? É, então, um anarquista, meiro lugar, uma perpetração de orgulho satânico; em segundo,
um dinamiteiro? Não é detetive? De modo algum? Não faz as lágrimas, e finalmente o riso. O egoísmo de Syme apegou-se
parte da polícia britânica? à primeira por alguns segundos, mas logo adotou a terceira.
Esticou o cotovelo sobre a mesa e levou a mão grande Retirando do bolso do colete seu próprio cartão azul, atirou-o
e frouxa até à orelha. na mesa e, sacudindo a cabeça para trás, até que sua barbicha
78 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 79

amarela quase apontava para o teto, rebentou numa selvagem — Como é que podia saber? replicou o homem que se
gargalhada. chamava de Worms. Pensei que o Presidente estava falando
Mesmo naquele antro abafado, continuamente cheio do comigo e logo me deu uma bruta tremedeira.
barulho de facas, pratos, latas de conserva, berros, lutas e cor- — E eu pensei que era comigo, disse Syme, continuando
rerias súbitas, o júbilo algo homerico de Syme despertou, a a rir descuidadamente. Passei todo o tempo com a mão no
atenção de muitos sujeitos semibêbedos. revólver.
— De que é que está rindo tanto, excelência? perguntou — Eu também, disse o Professor ainda assustado. E
admirado um trabalhador das docas. Gogol também, evidentemente.
— De mim mesmo, respondeu Syme, e recaiu na agonia Syme deu uma palmada na mesa e soltou uma exclamação.
de sua frenética reação. — Mas éramos três! E três é um número razoável para
— Componha-se, ordenou o Professor. Do contrário, dar combate a quatro. Ah, se soubéssemos que éramos três!
ficará histérico. Tome mais cerveja. Beberei com você. O rosto do Professor de Worms entristeceu e êle baixou
— Ainda não bebeu seu leite, disse Syme. a vista.
— Meu leite! escarneceu o outro, num tom de cru e in- — Éramos três, repetiu êle. Mas, trezentos que fôssemos
sondável desprezo. Meu leite! Você pensa que eu ligo para nada poderíamos ter feito.
essa droga infame quando estou fora do alcance dos sanguiná-
rios anarquistas? Somos todos cristãos nesta sala, e, lançando — Nem se fôssemos trezentos contra quatro? perguntou
um olhar para a turba de ébrios, acrescentou: embora não Syme, troçando um pouco arrebatadamente.
muito perfeitos. Tenho então que acabar meu leite? Com todos — Nem assim, disse com serenidade o Professor. Nem se
os diabos! Já lhe darei o fim merecido! E arremessou da mesa fôssemos trezentos contra Domingo.
o copo, que produziu ao cair um ruído de vidro quebrado e A simples menção deste nome pôs Syme frio e sério. O
uma poça de líquido prateado. riso morreu em seu coração antes de morrer em seus lábios.
Syme fitava-o com encantada curiosidade. A cara do inesquecível Presidente apareceu-lhe tão nítida como
— Agora compreendo, bradou. Naturalmente você não é uma fotografia colorida, e nesse instante Syme se deu conta
um velho. da diferença que havia entre Domingo e todos os seus saté-
— Não posso arrancar minha cara aqui mesmo, retorquiu lites. Enquanto as carantonhas destes últimos, por mais fero-
o Professor de Worms, porque ela é, sem dúvida, uma carac- zes ou sinistras que fossem, aos poucos desbotavam-se na me-
terização especial. Quanto a saber se sou um velho, não me cabe mória como outras tantas fisionomias humanas, a de Domingo
dizer. Completei trinta e oito anos em meu último aniversário. parecia tornar-se mais real com a ausência, como se o retrato
— Sim, está certo, disse Syme impacientemente, mas o de um homem se transformasse com o passar do tempo num
que quero dizer é que você não padece de nenhum incômodo. ser vivo.
— Sim, disse o outro calmamente, sou sujeito a res- Ao cabo de alguns momentos de silêncio, Syme pôs-se
friados. a falar com ímpeto igual ao da primeira espumarada de cham-
O riso de Syme teve nesse ponto uma queda de alívio. panha.
Riu à idéia de ser o paralítico Professor um jovem ator carac- — Professor, isso é intolerável! Você tem medo desse
terizado para a ribalta. Mas sentiu que teria rido do mesmo homem?
modo se o pimenteiro tivesse emborcado sobre a mesa. O Professor ergueu as pesadas pálpebras e fixou em Syme
os olhos grandes, azuis, bem abertos, de uma honestidade quase
O falso Professor bebeu a cerveja e limpou a falsa barba. etérea.
— Sabia, inquiriu, que aquele Gogol era um dos nossos? — Tenho, sim, disse mansamente. E você também tem.
— Não. Nem suspeitava, respondeu Syme surpreendido. Syme emudeceu. Depois, ergueu-se, empertigando-se como
E você, não sabia? um homem insultado, e afastou de si a cadeira.
80 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 81

— Sim, tem razão, disse com voz indescritível. Eu tenho — Diabos o levem! praguejou Syme. E não sabemos onde
medo dele. E por isso mesmo juro por Deus que procurarei êle se encontra.
até achar esse homem a quem temo e hei de matá-lo. Se o — Sim, disse o outro, com seu curioso alheamento. Eu
céu fosse seu trono e a terra seu escabêlo, juro que haveria sei onde êle está.
de liquidá-lo. — Poderá dizer-me? perguntou Syme, com os olhos
— Como? inquiriu o espantado Professor. E por quê? acesos.
— Porque tenho medo dele, disse Syme. Ninguém deve — Vou levá-lo lá, disse o Professor, e tirou o chapéu do
deixar no universo uma coisa de que tenha medo. cabide.
De Worms pestanejou estupefato. Esforçou-se para falar, Syme ficou a olhá-lo com uma espécie de estática ex-
mas Syme continuou numa voz baixa, tocada de indizível citação.
exaltação: — Que quer dizer? perguntou desabridamente. Vai comi-
— Quem haveria de contentar-se com destruir as peque- go? Correrá esse risco?
ninas coisas que não o atemorizam? Quem haveria de rebai- — Jovem, disse o Professor alegremente, divirto-me a
xar-se ao humilde papel de valentão, como qualquer lutador observar que você me toma por um covarde. Sobre isso lhe
de feira? Quem ousaria declarar-se isento de medo, como digo só uma palavra, e essa mesma em absoluta conformidade
uma árvore? Combate-se aquilo que se teme. Lembra-se da com a sua retórica filosófica. Você pensa que é possível der-
velha história do clérigo inglês que deu os últimos sacramentos rotar o Presidente. Eu sei que é impossível, mas vou tentar,
ao salteador siciliano? Lembra-se do que disse o salteador em e abrindo a porta da taberna, que foi invadida por uma rajada
seu leito de morte? "Não lhe posso dar dinheiro, mas vou lhe de ar frio, saíram juntos para as ruas escuras das docas.
dar um conselho para toda a vida: polegar na lâmina e ferir Quase toda a neve se derretera ou se convertera em lama
para cima". O mesmo lhe digo eu: ferir para cima se se quer pisada, mas aqui e ali cintilava na obscuridade um ou outro
ferir as estrelas. grumo mais cinzento que branco. As ruazinhas estavam enla-
O outro olhava para o teto, num dos sestros de seu disfarce. meadas e cheias de poças que refletiam as lâmpadas acesas,
— Domingo é uma estrela fixa, disse êle. irregularmente e ao acaso, como fragmentos de um mundo es-
— Logo verá nele uma estrela cadente, redargüiu Syme migalhado. Syme sentia-se quase completamente ofuscado ao
e pôs o chapéu na cabeça. atravessar esta progressiva confusão de luzes e sombras; mas
O gesto resoluto de Syme fêz o Professor inconsciente- seu companheiro caminhava com regular desembaraço para um
mente levantar-se. ponto no fim da rua, onde uma ou duas polegadas do rio ilu-
— Sabe por acaso para onde vai? perguntou, com uma minado davam a idéia de uma barra de fogo.
espécie de benévola desorientação. — Para onde vai? perguntou Syme.
— Sei, replicou Syme lacônico. Vou impedir que lancem — Vou até à esquina, ver se o Dr. Buli já foi para a
a bomba em Paris. cama, respondeu o Professor. É higiênico e deita-se cedo.
— Já sabe como deve agir? — Dr. Buli! exclamou Syme. Êle mora na esquina?
— Não, disse Syme sem se perturbar. — Não, respondeu o amigo. Na realidade, êle mora um
— Você se lembra, naturalmente, recomeçou o soi-disant pouco longe daqui, na outra margem do rio, mas desse ponto
de Worms, cocando a barba e olhando pela janela, de que podemos saber se êle já foi para a cama.
quando suspendemos apressadamente a sessão todos os prepa- Contornando a esquina enquanto falava e contemplando
rativos para a chacina tinham sido confiados ao Marquês e ao o rio escuro salpicado de chamas, apontou com a bengala para
Dr. Buli. A esta hora é provável que o Marquês esteja cruzan- a outra margem. No lado fronteiro, em Surrey, sobranceiro ao
do o Canal. Mas creio que nem mesmo o Presidente sabe para Tâmisa, aparecia um maciço agrupamento de enormes edifícios
onde êle irá e o que fará. O único que está a par de tudo é pontilhados de janelas iluminadas e elevados como chaminés de
o Dr. Buli. fábrica a uma altitude quase alucinada. Um desses blocos, por
80 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 81

— Sim, tem razão, disse com voz indescritível. Eu tenho — Diabos o levem! praguejou Syme. E não sabemos onde
medo dele. E por isso mesmo juro por Deus que procurarei êle se encontra.
até achar esse homem a quem temo e hei de matá-lo. Se o — Sim, disse o outro, com seu curioso alheamento. Eu
céu fosse seu trono e a terra seu escabêlo, juro que haveria sei onde êle está.
de liquidá-lo. — Poderá dizer-me? perguntou Syme, com os olhos
— Como? inquiriu o espantado Professor. E por quê? acesos.
— Porque tenho medo dele, disse Syme. Ninguém deve — Vou levá-lo lá, disse o Professor, e tirou o chapéu do
deixar no universo uma coisa de que tenha medo. cabide.
De Worms pestanejou estupefato. Esforçou-se para falar, Syme ficou a olhá-lo com uma espécie de estática ex-
mas Syme continuou numa voz baixa, tocada de indizível citação.
exaltação: — Que quer dizer? perguntou desabridamente. Vai comi-
— Quem haveria de contentar-se com destruir as peque- go? Correrá esse risco?
ninas coisas que não o atemorizam? Quem haveria de rebai- — Jovem, disse o Professor alegremente, divirto-me a
xar-se ao humilde papel de valentão, como qualquer lutador observar que você me toma por um covarde. Sobre isso lhe
de feira? Quem ousaria declarar-se isento de medo, como digo só uma palavra, e essa mesma em absoluta conformidade
uma árvore? Combate-se aquilo que se teme. Lembra-se da com a sua retórica filosófica. Você pensa que é possível der-
velha história do clérigo inglês que deu os últimos sacramentos rotar o Presidente. Eu sei que é impossível, mas vou tentar,
ao salteador siciliano? Lembra-se do que disse o salteador em e abrindo a porta da taberna, que foi invadida por uma rajada
seu leito de morte? "Não lhe posso dar dinheiro, mas vou lhe de ar frio, saíram juntos para as ruas escuras das docas.
dar um conselho para toda a vida: polegar na lâmina e ferir Quase toda a neve se derretera ou se convertera em lama
para cima". O mesmo lhe digo eu: ferir para cima se se quer pisada, mas aqui e ali cintilava na obscuridade um ou outro
ferir as estrelas. grumo mais cinzento que branco. As ruazinhas estavam enla-
O outro olhava para o teto, num dos sestros de seu disfarce. meadas e cheias de poças que refletiam as lâmpadas acesas,
— Domingo é uma estrela fixa, disse êle. irregularmente e ao acaso, como fragmentos de um mundo es-
— Logo verá nele uma estrela cadente, redargüiu Syme migalhado. Syme sentia-se quase completamente ofuscado ao
e pôs o chapéu na cabeça. atravessar esta progressiva confusão de luzes e sombras; mas
O gesto resoluto de Syme fêz o Professor inconsciente- seu companheiro caminhava com regular desembaraço para um
mente levantar-se. ponto no fim da rua, onde uma ou duas polegadas do rio ilu-
— Sabe por acaso para onde vai? perguntou, com uma minado davam a idéia de uma barra de fogo.
espécie de benévola desorientação. — Para onde vai? perguntou Syme.
— Sei, replicou Syme lacônico. Vou impedir que lancem — Vou até à esquina, ver se o Dr. Buli já foi para a
a bomba em Paris. cama, respondeu o Professor. É higiênico e deita-se cedo.
— Já sabe como deve agir? — Dr. Buli! exclamou Syme. Êle mora na esquina?
— Não, disse Syme sem se perturbar. — Não, respondeu o amigo. Na realidade, êle mora um
— Você se lembra, naturalmente, recomeçou o soi-disant pouco longe daqui, na outra margem do rio, mas desse ponto
de Worms, cocando a barba e olhando pela janela, de que podemos saber se êle já foi para a cama.
quando suspendemos apressadamente a sessão todos os prepa- Contornando a esquina enquanto falava e contemplando
rativos para a chacina tinham sido confiados ao Marquês e ao o rio escuro salpicado de chamas, apontou com a bengala para
Dr. Buli. A esta hora é provável que o Marquês esteja cruzan- a outra margem. No lado fronteiro, em Surrey, sobranceiro ao
do o Canal. Mas creio que nem mesmo o Presidente sabe para Tâmisa, aparecia um maciço agrupamento de enormes edifício»
onde êle irá e o que fará. O único que está a par de tudo é pontilhados de janelas iluminadas e elevados como chaminés ds
o Dr. Buli. fábrica a uma altitude quase alucinada. Um desses blocos, por
82 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 83

suas especiais condições, assemelhava-se a uma Torre de Babel Pela primeira vez Syme sentiu disposição para desabafar
com cem olhos. Syme, que nunca vira nenhum dos arranha- toda a sua opressiva história, iniciada no momento em que
céus da América, não pode senão pensar que estava sonhando. Gregory o levou à pequena taberna ribeirinha. E fê-lo exaus-
Enquanto se embevecia nessa contemplação, a mais alta tivamente, num monólogo exuberante, como quem conversa
luz daquela torre de luzes incontáveis repentinamente se extin- com velhos amigos. Por seu turno, o homem que personificava
guiu, como se o negro Argos tivesse piscado para êle com um o Professor de Worms não estava menos expansivo. A história
dos seus incontáveis olhos. dele era quase tão inacreditável como a de Syme.
O Professor de Worms girou sobre os calcanhares e bateu — A sua caracterização é formidável, disse Syme esva-
com a bengala numa das botas. ziando um copo de Mâncon. Muito mais perfeita que a do
— Chegamos muito tarde, disse êle. O higiênico doutor velho Gogol. Desde o momento em que o vi, êle me pareceu
já foi para a cama. excessivamente cabeludo.
— Como? Quer dizer, então, que êle mora lá em cima? — É uma questão de teoria artística, ponderou o Profes-
sor pensativamente. Gogol era um idealista. Queria represen-
— Sim, confirmou de Worms. Exatamente detrás daquela tar o anarquista segundo o ideal abstrato ou platônico. Eu sou
janela que você já não pode ver. Voltemos e vamos jantar. um realista, um retratista. Aliás, retratista é uma expressão
Amanhã bem cedinho viremos fazer uma visita a êle. inadequada. Sou um retrato.
Sem mais conversa, tomou a dianteira, seguindo por vá- — Não estou entendendo, disse Syme.
rios atalhos, até que ambos desembocaram em pleno fulgor e — Sou um retrato, repetiu o Professor. Um retrato do
bulício de East índia Dock Road. O Professor, que dava mos- célebre Professor de Worms, que vive, creio eu, em Nápoles.
tras de conhecer toda a circunvizinhança, dirigiu-se para um — Quer dizer então que você é uma cópia desse homem,
local onde a longa fileira de lojas iluminadas era abruptamente sugeriu Syme. Mas não sabe êle que você o está arremedando?
interceptada por uma quieta escuridão. Havia ali, recuado uns — Sabe demais, replicou alegremente o outro.
vinte passos da avenida, um velho e mísero albergue pintado — E êle, por que não o denuncia?
de branco. — Porque eu já o denunciei, respondeu o Professor.
— A gente sempre pode encontrar boas estalagens in- — Explique-se, por favor, pediu Syme.
glesas; elas estão em toda parte, como fósseis, explicou o Pro- — Com muito prazer, se não lhe enfada ouvir minha
fessor. Outro dia dei com uma excelente no West End. história, retrucou o eminente filósofo estrangeiro. Sou ator
— Suponho, disse Syme sorrindo, que esta é a corres- profissional e me chamo Wilks. Quando trabalhava no palco
pondente dela aqui no East End. Não é mesmo? costumava farrear com todas as categorias de boêmios e pati-
— É, sim, anuiu reverente o Professor e entrou. fes. Estava em todas as partes. Freqüentava a malandragem
No albergue jantaram e passaram a noite, dormindo pro- dos hipódromos e o rebotalho das artes, e uma vez ou outra
fundamente. O feijão com toucinho que essa gente extraor- ia ter com os exilados políticos. Foi num desses antros de so-
dinária tão bem cozinhava e a surpreendente aparição do Bor- nhadores refugiados que conheci o grande filósofo niilista ale-
gonha, saído de suas adegas, foram para Syme o coroamento mão Professor de Worms. O que me interessou nele foi a apa-
da camaradagem e do bem-estar. Em todas as provações des- rência, que era odiosíssima. Logo passei a estudá-la cuidado-
ses últimos dias apenas a solidão o horrorizara, e não há pala- samente. Depois, vim a compreender que êle havia provado
vras que exprimam o abismo entre a solidão e a companhia que Deus era o princípio destruidor do universo, por isso insis-
de um aliado. Podemos concordar com os matemáticos em tia tanto na necessidade de uma energia furiosa e incessante
que quatro é igual a duas vezes dois. Mas dois não- é igual a que despedaçasse todas as coisas. Dizia êle que a Energia era
duas vezes um; dois é igual a duas mil vezes um. Por isso é o Todo. Era coxo, míope e parcialmente paralítico. Quando
que, a despeito de uma centena de inconvenientes, o mundo o conheci estava num dos meus momentos de irreverência, e
escolherá sempre a monogamia. tanto êle me desagradou que resolvi imitá-lo. Se eu fosse dese-
84 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 85

nhista teria feito uma caricatura. Como eu era apenas um ator, po por Glumpe". É ocioso dizer que nunca existiram tais pes-
podia apenas fazer o papel de uma caricatura. E me transfor- soas como Pinckwerts e Glumpe. Mas os que nos rodeavam,
mei no que se poderia denominar um extravagante exagero da para minha surpresa, davam sinais de conhecê-los perfeitamen-
velha e enxovalhada personalidade do velho Professor. Ao en- te. Vendo o Professor que o método erudito e misterioso dei-
trar na sala onde se reuniam seus correligionários, esperava ser xava-o à mercê de um inimigo ligeiramente deficiente em es-
recebido com estrondosas gargalhadas ou, quando muito, com crúpulos, recorreu a um nível mais popular de argumentação.
estrondosos protestos contra o insulto. Não posso descrever "Noto", disse êle escarninho, "que você se distingue como o
a surpresa que senti quando minha entrada foi acolhida com falso porco de Esopo". "E você se obscurece", redargüi sor-
respeitoso silêncio, seguido, logo que comecei a falar, de mur- ridente, "como o porco-espinho de Montaigne". É preciso dizer
múrios de admiração. A maldição do artista perfeito tinha que não há porco-espinho em Montaigne? "Seus estratagemas
caído sobre minha cabeça. Eu fora sutil demais, verídico de- estão por terra", disse êle, "e o mesmo vai acontecer com sua
mais. Eles julgavam que eu era realmente o grande professor barba". Não tive resposta inteligente para essas palavras, que
niilista. Naquele tempo eu era um rapazola ingênuo e confesso eram inteiramente verdadeiras e um pouco mordazes. Mas ri
que o fato me abalou profundamente. Mas antes que pudesse com satisfação e respondi ao acaso: "Como as botas do pan-
recobrar-me, dois ou três desses admiradores, irradiando indig- teísta". E sem demora dei meia volta com todas as honras
nação, vieram correndo comunicar-me que um insulto público da vitória. O verdadeiro Professor foi levado para fora, mas
me tinha sido dirigido na sala contígua. Inquiri deles a natu- sem violência, ainda que um dos homens tenha tentado muito
reza do insulto. Parecia que um camarada impertinente se apre- pacientemente arrancar-lhe o nariz. Creio que agora êle é re-
sentara feito uma despropositada paródia de mim mesmo. Eu cebido em toda a Europa como um delicioso impostor. Como
tinha bebido mais champanha do que me era aconselhável, e você pode imaginar, todas as suas manifestações de gravidade e
num acesso de loucura decidi enfrentar a situação. Desconfio cólera fazem-no mais divertido ainda.
de que não foi senão para ver de perto os olhares furiosos da — Bem, disse Syme, posso compreender que você tenha
turba, as minhas sobrancelhas erguidas e os meus olhos gela- posto essas barbas sujas e velhas para o gracejo de uma noite,
dos que o Professor entrou na sala. Não é preciso dizer que mas não entendo porque você não se desfez delas depois disso.
houve uma colisão. Todos os pessimistas que me rodeavam — Eis o resto da história, disse o ator. Quando deixei
olhavam ansiosamente de um Professor a outro Professor para o conventículo, debaixo de reverentes aplausos, saí manque-
ver qual dos dois era efetivamente o mais débil. E eu venci. jando pela rua escura, esperando afastar-me em breve o sufi-
Não se podia esperar que um velho, pobre de saúde como ciente para poder caminhar como um ser humano. Entretanto,
o meu rival, fosse tão impressionantemente débil como um jo- assim que dobrei a esquina fui surpreendido por um toque no
vem ator em pleno vigor da mocidade. Veja você: êle era ombro e, ao voltar-me, achei-me à sombra de um enorme
na verdade um paralítico e, operando dentro desta definida guarda, que me disse que eu estava sendo procurado. Assumi
limitação, não podia ser tão jocosamente paralítico como eu. uma atitude paralítica e bradei com forte sotaque alemão: "Sim,
Por isso tentou derrotar minha prosápia intelectualmente. Li- sou procurado... pelos oprimidos do mundo inteiro. Você
vrei-me com alguma astúcia. Cada vez que êle dizia alguma está me prendendo sob a acusação de ser eu o grande anar-
coisa que ninguém senão êle mesmo era capaz de entender, eu quista Professor de Worms". O guarda impassivelmente con-
replicava com outra coisa que nem eu mesmo era capaz de sultou um papel que trazia consigo. "Não senhor", disse com
entender. "Não me parece", disse êle, "que você possa ter polidez, "não é por isso; ao menos, não é exatamente por isso.
chegado ao princípio de que a evolução é somente negação, Eu o prendo sob a acusação de não ser o célebre anarquista
desde que isso implica na introdução de lacunas que formam Professor de Worms". Tal acusação, se se pode chamar isso
constitutivos de diferenciação". Respondi com o maior des- de acusação criminal, era indubitavelmente a mais suave das
dém: "Você leu tudo isso em Pinckwerts; a noção de que a duas. E me deixei levar, desconfiado mas não grandemente cons-
involução funcionava eugênicamente foi exposta há muito tem- ternado. Atravessei certo número de salas e cheguei finalmente
86 G. K. CHESTERTON

à presença de um oficial. Este explicou-me que uma severa


campanha estava sendo iniciada contra os centros anarquistas
e que a minha bem sucedida representação podia ser de con-
siderável utilidade para a segurança pública. Ofereceu-me bom
salário e me deu este cartãozinho azul. Embora nossa con-
versa tenha sido breve, êle me deixou a impressão de ser um
homem de sensatez e humor sólidos; mas não posso dizer muita
coisa sobre a pessoa dele, porque... CAPITULO IX
Syme abandonou no prato a faca e o garfo.
— Já sei, disse. Porque você falou com êle num quarto
escuro.
O Professor fêz que sim com a cabeça e esgotou seu
O HOMEM DOS ÓCULOS
copo.
— O Borgonha é maravilhoso, disse pensativamente o
Professor, enquanto punha o copo na mesa.
— Não parece que você o aprecia tanto assim, observou
Syme. Toma-o como se fosse remédio.
— Não repare nos meus hábitos, disse o Professor melan-
còlicamente. Minha situação é um tanto curiosa. Por dentro
estou rebentando de alegria infantil, mas de tal modo me inte-
grei no papel do paralítico Professor que já não posso largá-lo.
Mesmo quando estou entre amigos e não tenho nenhuma ne-
cessidade de disfarçar-me, não posso deixar de falar baixo e
franzir a testa. .. como se fosse realmente minha testa. Posso
sentir-me inteiramente feliz, mas só de m o d o . . . paralítico,
compreende? As mais vibrantes exclamações pulsam em meu
coração, mas de minha boca elas saem irreconhecíveis. Você
deveria ouvir-me dizer: "Anima-te, rapaz!" Isso traria lágri-
mas a seus olhos.
— Não há dúvida, disse Syme, mas creio que, fora de
tudo isso, você está um bocado inquieto.
O Professor teve um leve sobressalto e encarou Syme fir-
memente.
— Sujeito muito arguto, você, disse êle. É um prazer
trabalhar com você. Sim, é verdade, tenho uma nuvem pesada
em minha cabeça. Há um grande problema a enfrentar, e en-
terrou a testa nua nas mãos.
Depois perguntou em voz baixa:
— Sabe tocar piano?
— Sei, sim, disse Syme surpreendido. Dizem que não
toco muito mal.
Como o outro não falasse, ajuntou:
88 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 89

— Espero que a pesada nuvem se tenha dissipado. — Precisamos contar com diversos sinais para palavras,
Após um demorado silêncio, o Professor falou de dentro disse Syme com seriedade, palavras que provavelmente serão
da sombria caverna de suas mãos: muito úteis, palavras carregadas de matizes. Minha palavra fa-
— Teria servido da mesma forma se você soubesse da- vorita é "coevo". Qual é a sua?
tilografia. — Pare de bancar o engraçado, queixou-se o Professor.
— Muito obrigado, disse Syme. É bondade sua. Não imagina como isto é sério.
— Escute aqui, continuou o outro. Lembre-se do homem — "Viçoso", também, continuou Syme, movendo a cabe-
que temos de ir ver amanhã. O negócio que você e eu vamos ça sagazmente. Precisamos da palavra "viçoso", que se aplica
tentar amanhã é muito mais perigoso do que roubar da Torre ao capim, como você sabe.
as Jóias da Coroa. Vamos tentar arrancar um segredo a um — Acha então, bradou furiosamente o Professor, que va-
sujeito muito sagaz, muito forte e extremamente cruel. Acre- mos falar de capim ao Dr. Buli?
dito que nenhum deles, exceto naturalmente o Presidente, seja — Há muitas maneiras de tocar no assunto e introduzir
tão medonho e pavoroso como esse fulano dos óculos e dos a palavra com naturalidade, considerou Syme. Podemos dizer-
dentes arreganhados. Talvez não tenha o pungente entusiasmo lhe: "Dr. Buli, como revolucionário você não ignora que um
pela morte, pelo martírio, que distingue o Secretário. Aliás, tirano já nos aconselhou a comer capim: e, em verdade, muitos
o próprio fatalismo do Secretário revela um patos humano e de nós, contemplando o suculento e viçoso capim primaveril..."
é quase um toque de redenção. Mas o doutorzinho, não. Des- — Não compreende que isto é uma tragédia? inquiriu o
fruta um bom senso compacto, mais repelente que a loucura do outro.
Secretário. Não notou ainda a sua virilidade, a sua vitalidade — Perfeitamente, redargüiu Syme. Nunca se esqueça de
detestável? Êle anda aos saltos como uma bola de borracha. ser cômico numa tragédia. Que diabo é que se pode fazer?
Fique certo de que Domingo não estava dormindo (eu me per- Meu desejo é que essa sua linguagem tenha um mais amplo
gunto se êle já dormiu alguma vez) quando fechou todos os objetivo. Não poderíamos, talvez, estendê-la dos dedos das
planos do atentado na cabeça redonda e negra do Dr. Buli. mãos para os dos pés? Isso, sem dúvida, nos obrigaria a
— E você pensa, disse Syme, que esse monstro sem par descalçar os sapatos e as meias, o que, entretanto, realizado
vai ficar bem mansinho quando eu tocar piano para êle? com discrição.. .
— Não me venha com asneiras, respondeu-lhe o mentor. — Syme, vá dormir! ordenou-lhe o amigo com áspera
Mencionei o piano porque êle nos proporciona dedos ágeis e simplicidade.
independentes. Syme, se temos de levar a cabo essa entrevista Syme, entretanto, sentou-se na cama e passou algum tempo
e sair dela sãos e salvos, precisamos combinar entre nós um estudando o novo código. Acordou na manhã seguinte, quando
código de sinais que não possa ser descoberto por essa alimária. o nascente estava ainda abismado na escuridão, e avistou as
Elaborei um tosco alfabeto cifrado, correspondente aos cinco barbas grisalhas de seu aliado, que, de pé à beira da cama,
dedos. É assim, veja (e começou a tamborilar os dedos sobre parecia um fantasma.
a mesa de madeira): M A U , mau, uma palavra que podere- Sentou-se pestanejando; voltou a si lentamente, atirou fora
mos utilizar com freqüência. os cobertores e pôs-se de pé. Pareceu-lhe que toda a segurança
Syme bebeu outro copo de vinho e começou a estudar o e toda a sociabilidade da noite anterior haviam-se apartado dele
método. Possuindo miolo e mãos anormalmente hábeis em que- com as roupas da cama, e que estava exposto a um perigo
bra-cabeças e prestidigitações, não demorou a enviar breves iminente. Ainda depositava inteira confiança em seu compa-
mensagens sob a forma de tapinhas descuidados na mesa ou nheiro, mas era a confiança que existe entre dois homens que
no joelho. E como o vinho e a companhia sempre tivessem o marcham para a forca.
efeito de aguçar-lhe a comicidade, dentro em pouco viu-se o — Viva! exclamou Syme, afetando alegria, enquanto ves-
Professor a braços com a desadorada energia do novo idioma, tia as calças. Sonhei com seu alfabeto. Você levou muito tem-
incandescido agora pelo cérebro ardente de Syme. po para criá-lo?
90 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 91

O Professor não deu resposta. Fitava-o absorto, com pedra, parando de vez em quando para trocar curtas mensa-
olhos da côr de um mar invernoso. Syme repetiu a pergunta. gens no corrimão da balaustrada. A cada novo lanço de esca-
— Estou lhe perguntando se levou muito tempo para da correspondia uma janela e cada janela revelava-lhes uma
inventar tudo isso. Eu que me julgava bamba nessas coisas pálida e trágica alvorada assomando morosamente sobre Lon-
passei uma boa hora estudando. Você dominou isso tudo de dres. Vistos das janelas, os incontáveis telhados de ardósia as-
uma só vez? semelhavam-se aos plúmbeos vagalhões do mar cinzento e en-
O Professor continuava silencioso, com os olhos bem aber- capelado depois da chuva. Progressivamente, Syme ia-se con-
tos e um sorriso fixo mas quase imperceptível. vencendo de que sua nova aventura tinha de certo modo um
— Quanto tempo? cunho de calculada sensatez, muito mais intolerável do que
O Professor não se moveu. as insensatas aventuras já vividas. Na noite anterior, por exem-
— Diabos o levem! Não pode responder? gritou Syme plo, os enormes edifícios apareceram-lhe como uma torre num
numa raiva súbita, que ocultava um certo temor. Se podia ou sonho. E agora que subia esta enfadonha e interminável esca-
não responder, a verdade é que o Professor não o fêz. daria estava assustado e perplexo com a série quase infinita de
Syme encarou o rosto rijo como pergaminho e os olhos degraus. Mas isto não era o quente horror de um sonho, de
azuis e vazios. Seu primeiro pensamento foi que o Professor uma fantasia ou de uma alucinação. Tal infinidade era antes
tinha enlouquecido, mas o segundo foi mais terrível. No fim o vazio infinito da aritmética, uma coisa impensável mas neces-
de contas, o que sabia desta criatura singular que inconside- sária ao pensamento. Ou era como os estonteantes cálculos da
radamente aceitara por amigo? O que -sabia deste homem, ex- astronomia sobre a distância entre as estrelas fixas. Syme su-
ceto que êle tinha partilhado do festim anarquista e que lhe tinha punha estar subindo para a morada da razão, coisa mais odiosa
contado uma história ridícula? Como era improvável existir que o próprio absurdo.
lá outro amigo além de Gogol! Seria o silêncio deste homem Quando chegaram ao patamar do Dr. Buli, a última janela
uma maneira espetacular de declarar guerra? Seria, então, este descobriu-lhes uma aurora amarga, branca, entremeada de mon-
adamantino olhar o espantável escárneo de um tríplice traidor, tículos da côr de um vermelho áspero, mais próprio do ver-
que se bandeava pela última vez? Aguçou os ouvidos no cruel melho do barro do que do vermelho de nuvem. E ao entrarem,
silêncio. Chegou a imaginar que ouvia lá fora, no corredor, o sòtãozinho pobre do Dr. Buli estava cheio de luz.
os passos abafados e solertes dos dinamiteiros vindo capturá-lo. Em consonância com esses quartos vazios e com esse aus-
Mas, depois, ao baixar a vista, rebentou numa gargalhada. tero alvorecer, Syme foi invadido por umas recordações mais
Embora o Professor se mantivesse tão calado como uma está- ou menos históricas. Logo que viu o sótão e o Dr. Buli sentado
tua, seus cinco mudos dedos dançavam vividamente sobre a a uma mesa a escrever, atinou com o sentido das suas recorda-
mesa morta. Syme acompanhou os velozes movimentos da ver- ções: a Revolução Francesa. Era de esperar que contra esse
bosa mão e leu claramente a mensagem: amanhecer alvacento e opressivamente vermelho se destacasse
— Só falarei" deste jeito. Precisamos habituar-nos. o negro perfil da guilhotina. Dr. Buli estava de camisa branca
Tamborilou a resposta com impaciente desabafo: e calções pretos; sua cabeça escura e raspada podia perfeita-
— Ótimo. Vamos sair para tomar café. mente ter saído de um chino. Êle ficaria bem como um Marat
Agarraram os chapéus e as bengalas em silêncio; mas ao ou como um Robespierre mais desleixado.
tocar na bengala de estoque Syme teve um sobressalto. Entretanto, bastava vê-lo de perto para desfazer-se a fan-
Demoraram-se alguns momentos no botequim, apenas pa- tasia francesa. Os jacobinos eram idealistas, e o que caracte-
ra beber café e comer reforçados sanduíches, e depois atra- rizava esse homem era um materialismo homicida. Sua postura
vessaram o rio, que sob o clarão cinzento do amanhecer parecia lhe conferia uma nova aparência. A intensa e branca luz da
tão desolado como o Aqueronte. Alcançaram a base do imenso manhã, entrando de través e adelgaçando as sombras, fazia-o
bloco de edifícios que tinham visto da outra margem, e em mais pálido e mais anguloso do que na reunião da varanda.
silêncio começaram a subir os nus e inumeráveis degraus de As duas negras lunetas que tapavam seus olhos podiam efeti-
92 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 93

vãmente ser tomadas como negras cavidades em seu crânio, fessor havia sempre algo puramente grotesco, como num boneco
como se êle não passasse de uma caveira. E, com efeito, se de engonço. Syme recordava os angustiosos temores do dia
alguma vez a Morte se sentou a uma mesa de madeira para anterior como quem se recorda de ter tido medo de duendes
escrever não teve outro aspecto senão esse. na meninice. Mas agora estava em pleno dia; tinha à sua frente
Quando os dois homens entraram, Dr. Buli levantou os um homem robusto, espadaúdo, trajado com simplicidade, sin-
olhos, sorriu com visível alegria e ergueu-se com a elástica gularizando-se apenas no uso de uns óculos deformadores, e
rapidez de que o Professor tinha falado. Providenciou cadeiras que, sem sobrecenhos ou arreganhos, encarava-os com um sor-
para os recém-chegados e, indo até a um cabide atrás da porta, riso fixo e mudo. Tudo ali tinha um sentido de insuportável
pôs-se a vestir um casaco e um colete de lã escuro e desbo- realidade. Sob a crescente luz do sol, as cores da tez do Dr.
tado; abotoou-se cuidadosamente e voltou a sentar-se à sua Buli e o padrão de suas roupas adquiriam excessivo realce,
mesa. como nas novelas realistas. Mas seu sorriso era levíssimo, e
A quieta jovialidade de seus modos deixou seus dois opo- cortês a inclinação de sua cabeça; a única coisa inquietante era
nentes desarmados. Foi com momentânea dificuldade que o seu silêncio.
Professor quebrou o silêncio e começou: — Como estava dizendo, tornou o Professor, como um
— Peço-lhe desculpas por vir perturbá-lo tão cedo, cama- homem fatigado de andar na areia frouxa e pesada, o incidente
rada, disse êle, readquirindo cautelosamente os gestos lentos de que nos ocorreu e nos levou a tomar informações sobre o Mar-
de Worms. Sem dúvida você executou todos os preparativos quês é daquele tipo que precisa de ser narrado; mas como
para o negócio de Paris, não é mesmo? E acrescentou com infi- sucedeu ao camarada Syme antes de mim. . .
nita vagareza: Segundo as informações que recebemos, o atraso Êle parecia escandir suas palavras como se elas fossem as
de um minuto poderá ser fatal. palavras de uma antífona; mas Syme, que estava atento, viu
Dr. Buli sorriu outra vez, mas continuou a fitá-los em que seus longos dedos tamborilavam àgilmente na borda da
silêncio. O Professor, então, recomeçou, fazendo uma pausa mesa rachada, e leu a mensagem:
antes de cada uma de suas enfadonhas palavras:
— É preciso que você continue. Este diabo esgotou as mi-
— Por favor não me julgue excessivamente precipitado;
nhas forças.
mas aconselho-o a alterar esses planos, ou, se é muito tarde
para isso, a seguir seu agente com toda a proteção que puder Syme lançou-se na brecha com aquela fanfarronada de
conseguir para êle. O camarada Syme e eu tivemos uma expe- improvisação que sempre o acometia quando estava alarmado.
riência, que, se fosse contada, levaria mais tempo do que este — É verdade, a coisa aconteceu comigo, disse apressa-
de que dispomos, embora eu seja de opinião que temos de damente. Tive a sorte de conversar com um detetive, que graças
agir de conformidade com ela. Por isso, poderei relatar o ocor- ao meu chapéu me tomou por uma pessoa respeitável. Dese-
rido em todos os pormenores, mesmo com o risco de perder jando firmar minha boa reputação, levei-o para o Savoy e lá
tempo, se realmente lhe parece ser o relato essencial para a com- embriaguei-o completamente. Foi aí que êle se tornou expan-
preensão do problema que vamos discutir. sivo e me contou, atabalhoadamente, que dentro de um ou
O Professor arrastava suas frases, tornando-as intolerà- dois dias esperam prender o Marquês na França. Por isso,
velmente longas e pausadas, na esperança de que o doutorzinho, a menos que você ou eu decida seguir a pista.. .
enlouquecido, explodisse de impaciência e pusesse as cartas na O sorriso do Dr. Buli era ainda mais afetuoso, mas seus
mesa. Entretanto, o doutorzinho não fazia senão encará-lo e olhos anteparados continuavam indevassáveis. Através de si-
sorrir, o que transformava o monólogo num trabalho espi- nais, o Professor fêz ver a Syme que iria retomar a explanação.
nhoso. Syme já começava a sentir náusea e a desesperar-se. O De fato, daí a instantes começou com a mesma deliberada
sorriso e o silêncio do Dr. Buli não eram como o olhar cata- calma:
léptico e o silêncio arrepiante que, meia hora atrás, havia — Logo que Syme chegou com esta informação resolve-
surpreendido no Professor. Nas momices e visagens do Pro- mos trazê-la ao seu conhecimento para que você tomasse a de-
94 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 95

cisão que lhe parecesse mais conveniente. Entretanto, não tenho A cara mansa e risonha do médico não se mexeu, mas
nenhuma dúvida de que é urgente.. . eles juravam que por baixo dos óculos negros seus olhos dar-
Durante todo esse tempo Syme estivera a contemplar Dr. dejaram Syme.
Buli tão fixamente como Dr. Buli contemplava o Professor, mas — Dr. Buli, disse Syme num tom peculiarmente preciso
sem o sorriso. Os nervos de ambos os irmãos de armas estavam e cortês, poderia fazer-me um pequeno favor? Quer ter a bon-
a ponto de estalar debaixo daquela tensão de imóvel amabili- dade de tirar os óculos?
dade, quando, de repente, Syme curvou-se, e seus dedos dan- O Professor agitou-se na cadeira em que estava sentado
çaram displicentemente sobre a extremidade da mesa. Enviou e olhou para Syme com uma espécie de gelada e enfurecida
a seu aliado esta mensagem: surpresa. Syme, assemelhando-se a um homem que lançou à
— Tenho uma idéia. mesa a vida e a fortuna, esperava com o rosto afogueado. O
O Professor, mal fêz pausa em seu monólogo, tamborilou: médico não fêz nenhum movimento.
— Então diga. Por alguns segundos houve um silêncio em que se podia
Syme telegrafou: escutar a queda de um alfinete e que foi cortado apenas uma
— É uma idéia espetacular. vez pelo silvo de uma lancha distante, no Tâmisa. Depois, Dr.
O outro respondeu: Buli ergueu-se vagarosamente, sem perder o sorriso, e tirou os
— Ou uma tolice espetacular? óculos.
Syme disse: Syme deu um pulo para trás, como um professor de quí-
— Sou um poeta. mica ante uma explosão bem sucedida. Os olhos do outro
O outro retorquiu: brilhavam como estrelas, e por um instante Syme ficou a apon-
— Um poeta morto. tá-los sem pronunciar uma palavra.
Syme estava vermelho até à raiz de seus cabelos amarelos, O Professor também deu um pulo, esquecido de sua su-
e seus olhos ardiam febrilmente. Na realidade, tivera um posta paralisia. Arrimou-se depois no espaldar da cadeira e
pressentimento e este se tinha elevado à categoria de delirante encarou dubitativamente o Dr. Buli, como se o médico se hou-
certeza. Voltando a suas pancadinhas simbólicas, explicou pa- vesse convertido num sapo, ali diante de seus olhos. Efeti-
ra o amigo: vamente tratava-se de uma portentosa cena de transformação.
— Você não imagina como o meu pressentimento é poé- Diante dos dois detetives sentava-se agora um moço de
tico. Tem aquela força súbita que às vezes sentimos quando aparência infantil, com olhos da côr de avelã, francos e felizes,
chega a primavera. fisionomia alegre, trajado como um simples empregado e de
Depois leu esta resposta nos dedos do amigo: natural sem dúvida bondoso e até mesmo comum. Conservava
— Vá para o inferno! seu sorriso, que bem podia ter sido o primeiro sorriso de um
O Professor prosseguiu em seu monólogo palavroso e ôco, recém-nascido.
dirigido ao Dr. Buli. — Eu sabia que era poeta! exclamou Syme como se esti-
— Ainda diria, tamborilou Syme, que êle se parece com vesse em êxtase. Eu sabia que meu pressentimento era tão infa-
aquele inopinado cheiro de mar que podemos descobrir no lível como o Papa. Os óculos é que fizeram tudo! Tudo estava
coração dos bosques viçosos. nos óculos! Com esses terríveis olhos negros, com essa robus-
Seu companheiro não se dignou responder. tez, com esses ares divertidos, era um demônio vivo no meio
— Ou ainda, rufou Syme, é real como o intenso cabelo dos demônios mortos.
vermelho de uma bela mulher. — Não há dúvida que a diferença é extraordinária, disse
O Professor desfiava sua oração, mas em meio a ela Syme hesitante o Professor. Mas quanto ao plano do Dr. Buli.. .
decidiu-se a agir. Curvando-se sobre a mesa, falou com uma — Dane-se o plano! rugiu Syme fora de si. Olhe para
voz que não podia ser desprezada: êle! Veja a cara dele, o colarinho, as abençoadas botas! Você
— Dr. Buli! não vai pensar que isso aí é um anarquista, vai?
96 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 97

— Syme! gritou o outro, agoniado de medo. — Todos os diabos de todos os infernos também se jun-
— Por Deus! bradou Syme. Correrei o risco. Dr. Buli, taram para minha fraqueza! disse Syme. Mas o pior diabo
sou um detetive. Eis aqui meu cartão, e atirou o cartão azul era você com os seus antolhos infernais.
sobre a mesa. O jovem riu lisonjeado e respondeu:
O Professor ainda temia que tudo estivesse perdido; ape- — Não é um primor? É uma idéia muito simples, mas
sar disso, era leal. Tirou seu próprio cartão oficial e colocou-o não foi minha, não saiu da minha cabeça. Vejam bem. Eu
junto ao do amigo. Foi quando o terceiro homem soltou uma queria alistar-me na polícia, especialmente no serviço de re-
gargalhada, e pela primeira vez os outros dois lhe ouviram pressão aos dinamiteiros. Mas para este fim eles só queriam
a voz. gente que pudesse passar por dinamiteiro; e todos apostaram
— Velhinhos, estou contentíssimo com a vinda de vocês, que eu jamais ficaria com cara de dinamiteiro. Afirmavam
porque, assim, poderemos partir juntos para a França, disse que até meu andar era respeitável e que, visto de costas, eu
êle com a petulância de um colegial. Também sou da polícia, me parecia com a própria Constituição britânica. Diziam que
e acenou-lhes de leve com um cartão azul, como para cumprir eu era saudável demais, otimista demais, digno demais, bené-
uma formalidade. volo demais. Puseram-me toda sorte de apelidos na Scotland
Yard. Diziam que se eu fosse um criminoso poderia ter enri-
Enfiando na cabeça um chapéu claro e repondo suas de- quecido por me parecer exageradamente com um homem ho-
moníacas lunetas, o médico caminhou para a porta com tal ra- nesto; mas como eu tinha a infelicidade de ser um homem
pidez que os outros o seguiram instintivamente. Syme ia um honesto, perdia a mais remota oportunidade de ajudá-los pas-
pouco distraído e, ao deixar o quarto, provocou um tinido ao sando por criminoso. Mas, enfim, me levaram à presença de
bater com a bengala nas pedras do corredor. um figurão que era o chefe de tudo aquilo e possuía natural-
— Deus Todo Poderoso! exclamou Syme. Se meus olhos mente uma cabeça respeitável. E lá todos eles confessaram-se
não me enganam, naquele amaldiçoado Conselho havia mais desalentados. Um perguntou se uma barba cerrada esconderia
desses amaldiçoados detetives do que dos amaldiçoados dinami- meu sorriso; outro asseverou que se enegrecessem minha cara
teiros. eu me transformaria num sombrio anarquista. Mas o tal chefão
— Podíamos ter lutado com vantagem, disse Buli. Éra- saiu-se com uma observação curiosíssima: "Um par de óculos
mos quatro contra três. esfumaçados!" disse categoricamente. "Olhem para êle agora;
O Professor descia as escadas, e sua voz veio de lá de parece um angélico moço de escritório. Ponham-lhe um par
baixo. de óculos esfumaçados e verão que por onde êle passar os
meninos gritarão aterrorizados". E assim foi, por São Jorge!
— Não, disse a voz. Não éramos quatro contra três. Não
Uma vez cobertos os olhos, todo o resto — sorrisos, ombros
tínhamos tanta sorte. Éramos quatro contra Um. largos, cabelo curto, etc. .. — fêz de mim um perfeito diabo.
Os outros desceram as escadas em silêncio. Depois de feito, foi muito simples. . . como os milagres; mas
O jovem chamado Buli, com a inocente cortesia que lhe a parte realmente miraculosa não foi essa ainda. Houve uma
era característica, insistiu em ir por último; mas, quando che- coisa estupenda nisso tudo. Ainda hoje quebro a cabeça para
garam à rua, sua robusta rapidez afirmou-se inconscientemente entendê-la.
e êle tomou a dianteira, andando velozmente em direção ao — O que foi? perguntou Syme.
gabinete de informações da estrada de ferro e conversando com
— Vou contar, respondeu o homem dos óculos. Esse
os outros por cima do ombro.
manda chuva da polícia, que tão habilmente me decifrou e
— Nada como encontrar uns bons colegas, dizia êle. Já compreendeu que os óculos negros se ajustariam com meu físi-
me sentia meio morto de medo de estar só. Por pouco não co, desde os cabelos até às botas, esse camarada, Deus meu,
dei um abraço em Gogol, o que teria sido um gesto imprudente. nem sequer me viu!
Espero que vocês não caçoem do diabo dessa minha fraqueza. Os olhos de Syme relampejaram, e êle perguntou:
98 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 99

— Como foi isso? Eu pensei que você tinha falado com simista moderno. É a mesma coisa que faltar com a palavra
êle. a uma criança.
— Que falei, falei, esclareceu Buli. Falei com êle num — É o meu caso, disse o Professor. Já pensei em falar
quarto escuro como breu, igual a uma carvoaria. Você não com a polícia mas não pude, por causa de um juramento idiota
faz idéia! que eu fiz. Enquanto fui ator, era uma espécie de pau para
— Não posso nem imaginar, confirmou Syme grave- toda obra. Só não me prestei ao perjúrio nem à traição. Se
mente. eu tivesse cometido esse crime não teria mais noção do bem e
— É um caso inédito, murmurou o Professor. do mal.
O novo aliado era um furacão no capítulo das coisas prá- — Também passei por tudo isso, confessou o Dr. Buli.
ticas. Na estação, com a rapidez do homem de negócios, in- Dei minha palavra ao Secretário. Vocês sabem quem é: o ho-
teirou-se dos trens que saíam para Dover. Em seguida, en- mem que tem o sorriso de cabeça para baixo. Meus amigos,
talou os companheiros num fiacre e, antes que eles tivessem aquele é o homem mais infeliz que o gênero humano já pro-
tomado fôlego na arrancada, alojou-os e alojou-se também num duziu. Pode ser sua digestão, ou sua consciência, ou seus ner-
vagão. Só quando viajavam no barco para Calais a conversa vos, ou sua filosofia do universo... não sei. Só sei que êle
voltou a animar-se. está condenado, que está no inferno! Não posso trair um ho-
— Já tinha resolvido ir almoçar na França, explicou Dr. mem desses e atormentá-lo. Seria o mesmo que açoitar um
Buli. Agora estou encantado por ter quem almoce comigo. leproso. Digam que estou louco, mas é o que sinto.
Vejam: fui obrigado a despachar aquela besta do Marquês, com — Não creio que você esteja louco, disse Syme. Sabia
bomba e tudo, porque o Presidente não me perdia de vista. que você assumiria essa atitude, desde aquele momento em
Deus é testemunha! Um dia eu lhes contarei toda a história, que...
e vocês verão que ela é simplesmente asfixiante. Todas as — Sim?! interrogou Dr. Buli.
vezes que eu tentava escapulir topava com o Presidente, que — Em que você tirou seus óculos.
sorria para mim da sacada de um clube ou me cumprimentava Dr. Buli sorriu e foi espairecer pela coberta, contemplando
do tejadilho de um ônibus. Podem dizer o que quiserem, mas o mar batido pelo sol. Voltou logo depois, pisando com força
tenho para mim que aquele sujeito se vendeu ao diabo. Como e descuidadamente. Um silêncio amigável estabeleceu-se entre
é que se pode estar em seis lugares ao mesmo tempo? os três homens.
— De modo que você teve de despachar o Marquês, não — Bem, disse Syme, parece que adotamos todos o mesmo
é isso? inquiriu o Professor. Faz muito tempo? Poderemos tipo de moralidade ou imoralidade. Assim, façamos o possível
alcançá-lo? para enfrentar as conseqüências.
— Sim, retrucou o novo guia. Calculei tudinho. Êle ain- — Tem razão, assentiu o Professor, tem toda razão; e
da estará em Calais quando desembarcarmos. apressemo-nos, pois estou vendo o cabo Gris-Nez apontar lá
— Mas quando o alcançarmos em Calais, o que é que na França.
vamos fazer? indagou o Professor. — A primeira conseqüência, disse Syme com seriedade, é
Esta pergunta anuviou, pela primeira vez, o semblante esta: nós três estamos sós neste planeta. Gogol foi embora,
do Dr. Buli. Êle refletiu um instante e disse: sabe Deus para onde. Talvez tenha sido esmagado como um
— Suponho que, teoricamente, deveríamos chamar a po- inseto pelo Presidente. No Conselho somos três contra três,
lícia. como os romanos que guardavam a ponte. Mas a nossa posi-
-— Suponho que não, objetou Syme. Teoricamente eu ção é mais insustentável; primeiro, porque eles podem apelar
prefiro afogar-me a chamar a polícia. Sob minha .palavra de para a organização deles e nós não podemos apelar para a
honra, prometi a um pobre sujeito, que é um autêntico pessi- nossa, e, segundo, porque...
mista moderno, nunca contar nada à polícia. Pouco entendo de — Porque um dos outros três homens não é um homem,
casuística, mas não posso faltar com minha palavra a um pes- disse o Professor.
100 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 101

Syme anuiu com um movimento da cabeça e, por um ou praia, até chegar a uns cafés escondidos na folhagem densa de um
dois segundos, guardou silêncio. Depois disse: caramanchão e fronteiros ao mar. Como ia na frente dos ou-
— Tenho uma idéia. Devemos fazer alguma coisa para tros, caminhava com alguma arrogância e floreava a bengala
conservar o Marquês em Calais até meio-dia de amanhã. Pas- como se ela fosse uma espada. Dirigia-se para o ponto extre-
saram pela minha cabeça mais de vinte esquemas. Estamos de mo da fileira de cafés, mas deteve-se repentinamente. Com
acordo em que não podemos denunciá-lo como dinamiteiro. um gesto rápido impôs silêncio e apontou com um dedo enlu-
Não podemos levá-lo à cadeia por qualquer acusação trivial, vado para uma mesa, abrigada embaixo de florida ramagem,
porque teríamos que ser vistos; êle nos conhece e ficaria com onde se sentava o Marquês de St. Eustache, com os dentes
a pulga atrás da orelha. Não podemos pensar em desviá-lo cintilando por entre a espessa barba negra, e a cara ousada e
para outros negócios anarquistas; êle podia engolir tudo, me- trigueira, sombreada por um chapéu de palhinha amarelo, des-
nos a idéia de ficar em Calais enquanto o Czar passeia livre- tacando-se contra o mar violáceo.
mente em Paris. Podíamos tentar raptá-lo e trancafiá-lo nós
mesmos, mas êle é muito conhecido aqui. Possui uma completa
guarda pessoal, feita só de amigos; é forte e bravo, e o resul-
tado é duvidoso. A única coisa viável, realmente, é tirar pro-
veito dos próprios fatores que estão do lado do Marquês. Vou
aproveitar-me do fato de ser êle um nobre altamente respeitado.
Vou aproveitar-me do fato de ter êle tantos amigos e freqüentar a
alta sociedade.
— Que diabo é que você está dizendo aí? perguntou o
Professor.
— Os Symes vêm mencionados pela primeiras vez no sé-
culo quatorze, afirmou Syme, mas, segundo certa tradição, um
deles foi a Bannockburn na comitiva de Bruce. A partir de
1350 a linhagem está bem determinada.
— Esse aí perdeu o juízo, disse o médico espantado.
— Nosso brasão de armas, continuou Syme calmamente,
está assim descrito: "em campo argentado um chaveirão goles
lavrado com três cruzes recruzadas". O moto é variável.
O Professor abecou rudemente Syme pelo colete.
— Já vamos desembarcar, disse. Você está mareado ou
quer fazer graça?
— Minha explanação é quase dolorosamente prática, res-
pondeu Syme, sem se apoquentar. A casa de St. Eustache tam-
bém é muito antiga. O Marquês não negará que é um fidalgo,
nem pode negar que eu também sou um fidalgo. E a fim de
pôr fora de dúvida a questão da minha posição social, propo-
nho-me a, na primeira oportunidade, arrancar-lhe o chapéu da
cabeça. Mas já estamos no porto.
Saltaram em terra debaixo de um solão que os deslum-
brava. Syme, que agora os conduzia como Buli os tinha con-
duzido em Londres, levou-os por uma avenida ao longo da
CAPITULO X

O DUELO

Syme sentou-se com seus companheiros a uma das mesas do


café. Seus olhos azuis resplandeciam como o mar que se esti-
rava lá embaixo. Com alegre impaciência pediu uma garrafa
de Saumur. Tinha suas razões para encontrar-se num estado de
curiosa hilaridade. Sua animação, que já estava num ponto
anormalmente alto, ia subindo à medida que o Saumur baixava
na garrafa; de modo que, meia hora depois, sua conversa era uma
torrente de incoerências. Declarou estar fazendo um rascunho do
diálogo que iria travar com o fatal Marquês, e rabiscava-o às
pressas com um lápis. Dava-lhe a forma de um catecismo, cujas
perguntas e respostas eram declamadas com extraordinária ra-
pidez.
— Aproximo-me. Antes de tirar o chapéu dele, tiro o meu.
Digo-lhe: "O Marquês de Saint Eustache, creio eu". Êle me
diz: "O célebre Mr. Syme, suponho". E acrescenta com
finura e requinte: "Como passa?" E eu lhe respondo também
com finura e requinte: "Oh! Passo e fico!"
— Ora, cale-se! disse o homem dos óculos. Aprume-se e
jogue fora esse papel. Que é que você vai fazer realmente?
— Mas é um esplêndido catecismo, redargüiu Syme paté-
tico. Deixem-me lê-lo. Tem apenas quarenta e três perguntas
e respostas, e algumas respostas do Marquês são maravilhosa-
mente engenhosas. Agrada-me ser justo com meu inimigo.
— Mas para que serve tudo isso? perguntou já exaspera-
do Dr. Buli.
— Para levar-me a meu desafio, compreende? disse Sy-
me radiante. Quando o Marquês tiver dado a trigésima nona
resposta, que diz...
104 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 105

— Por acaso ainda não se lembrou, perguntou o Professor Syme sorveu o último copo de vinho espumoso e respon-
com grave simplicidade, de que o Marquês pode deixar de dar deu apontando para o Marquês e seus colegas:
as quarenta e três respostas que você lhe atribui? Nesse caso, — Vou. Vou falar naquela reunião. Ela me desagrada.
entendo que os epigramas que você traz engatilhados contra Vou puxar o deformado nariz de mogno daquela reunião.
êle poderão parecer mais do que forçados. E saiu num passo rápido, ainda que incerto. Ao vê-lo,
Syme deu uma palmada na mesa, fascinado. o Marquês arqueou surpreso suas negras sobrancelhas assírias,
— Oh, é verdade! exclamou. Nunca pensei nisso, Senhor, mas sorriu polidamente.
tendes uma inteligência incomum. Alcançareis a fama. — O senhor é Mr. Syme, suponho, disse êle.
Syme inclinou-se.
— Você está bêbedo como um gambá, disse o médico. — E o senhor é o Marquês de Saint Eustache, disse Syme
— Cabe-me apenas, continuou Syme impassível, adotar cortêsmente. Permita-me que lhe puxe o nariz.
outro método de quebrar o gelo (se me permitis a expressão) Curvou-se para executá-lo, mas o Marquês pulou para
entre mim e o homem que desejo matar. Uma vez que a dire- trás, derrubando a cadeira, enquanto os dois homens de cartola
ção de um diálogo não pode ser preestabelecida somente por agarravam Syme pelos ombros.
uma das partes (como o haveis notado com tão recôndita agu- — Este homem me insultou! disse Syme, à guisa de ex-
deza), suponho que a única coisa que tal parte tem a fazer é plicação.
pôr-se a representar todo o diálogo até onde lhe fôr possível. — Insultou-o? gritou o cavalheiro da roseta vermelha.
E é o que vou fazer, por São Jorge! E ergueu-se incontinenti. Quando?
Seus cabelos amarelos flutuavam na brisa suave que vinha do — Agora mesmo, disse Syme com atrevimento. Insultou
mar. minha mãe!
Num café chantant escondido entre as árvores, tocava uma — Insultou sua mãe! exclamou incrédulo o cavalheiro.
banda, e uma mulher acabava de cantar. Na cabeça esbrasea- — Bom, disse Syme reconsiderando, pelo menos insultou
da de Syme o estridor das fanfarras lembrava a desafinaçãoda- minha tia.
quele realejo de Leicester Square, sob cuja melodia êle se pre- — Mas como pode o Marquês ter insultado agora mesmo
parara para morrer. Dirigiu o olhar para a mesinha onde esta- sua tia? perguntou o segundo cavalheiro com legítimo espanto.
va o Marquês. O homem tinha agora dois companheiros: dois Como, se êle esteve sentado aqui todo o tempo?
solenes franceses de sobretudo e cartola,"um dos quais osten-
tava a roseta vermelha da Legião de Honra — pessoas, eviden- — Ah, aí é que está! E o que êle disse... ? insinuou mis-
temente, de sólida posição social. Ao lado dessas vestes ne- teriosamente Syme.
gras e cilíndricas, o Marquês, com seu chapéu de palhinha e — Eu não disse nada, redargüiu o Marquês, salvo qualquer
suas leves roupas primaveris, parecia boêmio e mesmo bárba- coisa aí sobre a banda. Tudo o que eu disse é que gostava de
ro; mas se parecia com o Marquês. Em verdade, podia-se di- um Wagner bem executado.
zer que êle era o rei, com sua elegância animal, seus olhares — Foi uma alusão à minha família, disse Syme com fir-
escarninhos e sua cabeça erguida contra o purpúreo mar. Mas meza. Minha tia tocava Wagner pessimamente. Qualquer co-
não era um rei cristão, de modo algum; era, antes, um déspo- mentário era desagradável. Sempre fomos insultados por isso.
ta trigueiro, meio grego, meio asiático, que nos dias em que — Isto é absurdo! Extraordinário! bradou o cavalheiro
a escravidão era coisa natural contemplava no Mediterrâneo suas decore, olhando apreensivamente para o Marquês.
galés cheias de escravos lamuriantes. Era assim, pensou Syme — Asseguro-lhes, disse Syme com energia, que toda a
que a cara bronzeada de um tirano surgia entre os olivais ver- conversa de vocês estava simplesmente enredada de sinistras alu-
des e umbrosos e o azul candente. sões à fraqueza de minha tia.
— Vai pedir a palavra? perguntou impaciente o Professor, — Isso não tem sentido! exclamou o segundo cavalheiro.
vendo que Syme continuava de pé e não se movia. De minha parte, durante meia hora, a única coisa que eu disse
106 G. K. CHESTERTON
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 107
foi que gostava da maneira de cantar daquela moça de cabelos nominou seu pressentimento no caso dos óculos) intuições poé-
negros. ticas que, às vezes, se sublimavam em profecias.
— Lá vêm vocês de novo! disse Syme indignado. Minha
tia tinha cabelos vermelhos. Agora havia calculado corretamente a política de seu an-
— Parece-me, observou o outro, que você está simples- tagonista. Quando o Marquês foi informado por seus padri-
mente procurando um pretexto para insultar o Marquês. nhos que Syme só poderia combater na manhã seguinte, com-
— Por São Jorge! disse Syme, voltando-se e encarando-o. preendeu que se erguia inesperadamente um obstáculo para seus
Como você é inteligente! explosivos afazeres na capital. Não podendo confessar a seus
amigos os motivos de sua oposição, aceitou o plano que Syme
Os olhos do Marquês chamejaram como os de um tigre.
arquitetara. Induziu os padrinhos a escolherem uma campina
— Insultar-me? gritou. Procura briga comigo! Deus do
perto da estrada de ferro, e se encomendou à fatalidade do pri-
céu! Nunca houve ninguém que precisasse procurar tanto. Es-
meiro assalto.
tes senhores poderão ser meus padrinhos. Ainda faltam quatro
horas para o anoitecer. Batamo-nos esta tarde. Quem o visse chegar tão despreocupado ao campo de hon-
Syme fêz uma esquisita zumbaia e falou: ra não adivinharia que êle tinha pressa de viajar; trazia as
— Marquês, sua atitude é digna de sua fama e de seu san- mãos nos bolsos, o chapéu de palhinha deitado para trás e a
gue. Dê-me licença de consultar, por um momento, aqueles se- cara simpática a queimar-se ao sol. Mas atiçaria a curiosidade
nhores em cujas mãos eu me colocarei. de um estranho a particularidade de aparecerem em seu séqui-
Com três largas passadas reuniu-se a seus companheiros, to, não somente os padrinhos com a caixa das espadas, mas
e estes, que lhe tinham visto o cínico ataque e escutado as ab- ainda dois criados com uma maleta e uma cesta de comida.
surdas explicações, maravilharam-se de seu semblante. Pois, Embora fosse ainda muito cedo, o sol impregnava de ca-
quando voltou, Syme estava lúcido, um pouco pálido, e falava lor todas as coisas, e Syme ficou vagamente surpreso de ver
baixinho, com apaixonado bom senso. tantas flores primaveris esparzindo ouro e prata pelo capinzal
— Acabei, disse com voz rouca. Vou lutar com a bêsta- em que toda a comitiva estava mergulhada até aos joelhos.
fera. Mas olhem aqui e ouçam bem. Não há tempo para muita Com exceção do Marquês, todos usavam roupas sombrias
conversa. Vocês são meus padrinhos e têm que aprontar tudo. e solenes e chapéus semelhantes a negras tampas de chaminés;
Precisam insistir, e insistam com todas as forças, em que o due- especialmente o doutorzinho, com o acréscimo de suas funes-
lo se realize amanhã depois das sete. Só assim poderei impedir tas lunetas, parecia um agente funerário numa comédia. Não
que êle tome às sete e quarenta e cinco o trem de Paris. Se escapou a Syme o cômico contraste entre á fúnebre procissão e
perde a hora do trem, perde a hora do crime. Êle não pode o prado vivo e reluzente, marchetado de flores silvestres. Mas,
deixar de concordar com vocês num ponto insignificante como de fato, esse cômico contraste entre a floração amarela e ós
esse de hora e local. Mas, sem dúvida, escolherá um recanto à chapéus negros era apenas um símbolo do trágico contraste en-
beira da estrada, perto da estação. É bom espadachim e confia tre a floração amarela e o negro encargo. Viu à direita um
em que me matará a tempo de pegar o trem. Mas eu também bosquezinhò e, mais longe, à esquerda, a curva alongada da es-
entendo de esgrima e acho que posso distraí-lo até que o trem trada de ferro, que êle, por assim dizer, defendia do Marquês,
tenha passado. Talvez depois êle me mate, para consolo de para quem ela era, ao mesmo tempo, meta e fuga. À sua fren-
suas mágoas. Entenderam? Muito bem. Agora quero apre- te, acima do sinistro grupo de seus adversários, destacava-se, co-
sentá-los a uns encantadores amigos meus. mo uma nuvem colorida, contra a indefinível linha do mar, uma
E, avançando rapidamente para os padrinhos do Marquês, pequena amendoeira em flor.
apresentou-lhes seus amigos sob uns nomes aristocráticos que O membro da Legião de Honra, cujo nome parece que
eles nunca tinham ouvido antes. era Coronel Ducroix, aproximou-se com grande polidez do Pro-
Syme era sujeito a acessos de singular senso comum, o que, fessor e do Dr. Buli, e sugeriu que o duelo terminasse pelo pri-
aliás, não era de sua índole. Tais acessos eram (como êle de- meiro sangue.
108 O. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 109

Entretanto, Dr. Buli, meticulosamente industriado por Sy- eram puras fantasias, porque se achava em presença do fato
me na política a ser adotada, insistiu, com subida dignidade e irremediável do medo à morte, com seu grosseiro e impiedoso
num péssimo francês, pela continuação até o ponto em que um senso comum. Sentiu-se como um homem que passa uma noite
dos combatentes fosse inutilizado. Syme estava decidido a não inteira sonhando que vai cair num precipício e acorda na ma-
inutilizar o Marquês e impedir o Marquês de inutilizá-lo, ao me- nhã em que vai ser enforcado. Pois tão depressa vira um raio de
nos pelo espaço de vinte minutos. Em vinte minutos o trem de sol escorregar na goteira da lâmina escorçada do adversário, e
Paris teria ido embora. sentira as duas línguas de aço se tocarem e vibrarem como dois
— Para um homem como Monsieur de St. Eustache, de seres vivos, compreendeu que seu antagonista era um terrível
bravura e destreza notórias, disse solenemente o Professor, deve contendor e que provavelmente o último instante de sua vida ti-
ser indiferente o método que se abrace, e nosso afilhado tem nha chegado.
fortes razões para exigir o mais disputado encontro, razões Sentiu que tudo quanto havia sobre a terra, mesmo a gra-
cuja delicadeza me proíbe de ser explícito, mas de cuja probi- ma debaixo de seus pés, tinha um estranho e intenso valor.
dade e retidão eu posso. .. Sentiu o amor pela vida em todas as coisas. Chegou até a ima-
— Peste! bradou por trás deles o Marquês, cujo rosto ene- ginar que escutava o crescimento da erva; chegou até a pen-
grecera de repente. Paremos de falar e comecemos, e com uma sar que, enquanto êle ali se achava, novas flores estavam nascen-
cutilada decapitou uma flor. do e desabrochando — flores encarnadas e amarelas e azuis
Syme compreendeu-lhe a rude impaciência, e instintiva- que rematavam a magnificência da primavera. E toda a vez
mente olhou por cima do ombro para-saber se o trem vinha que seus olhos se desviavam, por um segundo, dos olhos frios,
chegando. Mas não havia fumaça no horizonte. fixos e hipnóticos do Marquês, davam com a amendoeira na
O Coronel Ducroix ajoelhou-se e abriu a caixa, de onde linha do horizonte. Disse consigo que, se por um milagre es-
sacou um par de espadas que, ao sol, transmudaram-se em capasse, estaria pronto a sentar-se para sempre diante daquela
duas listras de alva chama. Ofereceu uma ao Marquês, que a amendoeira, sem desejar nada mais do mundo.
agarrou sem cerimônia, e outra a Syme, que a recebeu, dobrou e Mas, enquanto uma parte de seu espírito se embevecia na
sopesou tão detidamente quanto lhe permitiu a dignidade. Em contemplação da terra, do céu e de todo o universo, que tinha
seguida, o Coronel sacou outro par e, tomando uma para si a beleza viva de uma coisa perdida, a outra parte, transparente
e dando outra ao Dr. Buli, procedeu à colocação dos homens. como vidro, parava as estocadas do inimigo com uma preci-
Ambos os combatentes haviam despido seus casacos e co- são cronométrica, da qual êle não se julgava capaz. Uma des-
letes e empunhado as espadas. Por seu turno, os padrinhos la- sas estocadas lhe arranhou o pulso, deixando um tênue filete
dearam o campo da luta e desembainharam suas espadas, mas de sangue, mas isso ou não foi notado ou foi tàcitamente igno-
conservaram seus sombrios e escuros agasalhos. Os contendo- rado. Espaço em espaço êle ripostava, e uma ou duas vezes
res cumprimentaram-se. O Coronel disse calmamente: — "Em supôs até que tocara o antagonista, mas como não havia sangue
guarda!", e as duas espadas tocaram-se e tiniram. na folha nem na camisa presumiu que se equivocara. Logo de-
Quando o repenique das lâminas entrechocadas repercutiu pois o combate foi suspenso e houve troca de posições.
em seu braço, todos os fantásticos temores que têm sido o assun- Com risco de perder tudo, o Marquês, que nem sequer pes-
to desta história abandonaram Syme como os sonhos abando- tanejava, esgueirou um olhar para a via férrea, à sua direita.
nam o homem que desperta. Rememorou-os claramente e por or- Depois, volveu para Syme um rosto endemoninhado e come-
dem, como simples traições dos nervos: o medo ao Professor çou a combater como se possuísse vinte espadas. O assalto so-
fora o medo aos caprichos tirânicos de um pesadelo, e o medo breveio tão rápido e furioso que aquela espada resplendente pa-
ao Dr. Buli fora o medo ao vazio irrespirável da ciência. Aque- receu uma chuvarada de setas flamejantes. Syme não teve
le era o medo tradicional de que um milagre acontecesse; este ocasião de olhar para a via férrea; mas isso não lhe era neces-
era o medo moderno, mais desesperançado, de que nenhum sário. A descomedida loucura batalhante do Marqujls não tinha
milagre pudesse jamais acontecer. Mas viu que esses medos outro impulso que a avizinhação do trem de Paris.
110 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 111

Mas a endiabrada energia do Marquês era ilimitada. Em sou um homem. Posso fazer uma coisa que o próprio Satã
duas paradas Syme tirou da liça a ponta de seu contendor e, não pode: posso morrer", e quando estas palavras cruzaram
na terceira, ripostou tão àgilmente que, desta feita, não teve sua mente, êle ouviu um assobio longínquo e abafado que, em
dúvida de que o tinha tocado. Em verdade, a espada se lhe breve, se transformaria no rugido do trem de Paris.
dobrou ao peso do corpo do atingido Marquês. Syme estava Entregou-se outra vez à luta com a sobrenatural ligeireza
tão certo de haver enfiado sua lâmina no inimigo como o está o de um maometano que anela o Paraíso. À medida que o trem se
jardineiro que enfia no chão sua pá. Nada obstante, o Mar- aproximava, êle julgava estar vendo o povo erigir arcos florais
quês saltou para trás sem desaprumar, e Syme, idiotizado, fi- em Paris; associava-se à vibração e à glória da grande Repúbli-
tou a ponta de sua espada, onde não descobriu a menor gota de ca, cujas portas êle estava protegendo contra o Inferno. E seus
sangue. pensamentos se engrandeciam ao elevar-se o rugido do trem,
Houve um instante de rígido silêncio, findo o qual Syme que terminou orgulhosamente por um silvo prolongado e pene-
caiu sobre o outro enfurecidamente, cheio de ardente curio- trante. O trem estacou.
sidade. O Marquês era, deveras, melhor espadachim, como o Inopinadamente, para espanto dos presentes, o Marquês,
admitira Syme desde o princípio, mas agora mostrava-se pertur- num salto para trás, escapou do poder do adversário e lançou ao
bado e perdia terreno. Desatento e um tanto lerdo, o Marquês chão a espada. O salto foi prodigioso, principalmente porque,
olhava de contínuo para a via férrea, como se tivesse mais me- segundos antes, Syme o atingira em cheio na coxa.
do do trem que do aço pontiagudo. Por seu turno, Syme se — Pára! bradou o Marquês, e sua voz exigia instantânea
batia denodada mas cautelosamente, com o cabeça em fogo, obediência. Quero dizer uma coisa.
ávido por decifrar o enigma da inexistência de sangue em sua — De que se trata? perguntou pasmado o Coronel Ducroix.
própria espada. Com este propósito visava mais a gorja e a Houve irregularidade?
cabeça do que mesmo o corpo do Marquês. Um minuto e meio — Não deixou de haver, disse um tanto pálido o Dr. Buli.
mais tarde sentiu a ponta de sua espada penetrar no pescoço do Nosso afilhado feriu o Marquês pelo menos umas quatro ve-
homem, debaixo da mandíbula. Mas a lâmina saiu limpa. Qua- zes, e êle continua ileso.
se fora de si, acertou nova estocada, que deveria produzir um — O Marquês ergueu a mão, num curioso gesto de reprimi-
talho sangrento na face do Marquês. Mas não houve talho. da impaciência.
Por um instante o céu de Syme voltou a escurecer-se com — Por favor, deixem-me falar, disse. É muito importante.
terrores sobrenaturais. Sem dúvida o homem tinha o corpo Mr. Syme, continuou, virando-se para seu oponente, se bem
fechado. Este novo temor espiritual era bem mais terrível que me lembro, estamos lutando porque o senhor exprimiu o desejo
a simples barafunda espiritual simbolizada na perseguição que (que reputei irracional) de puxar-me o nariz. Pode agora fa-
lhe movera o paralítico. O Professor não passara de um duen- zer-me o obséquio de puxar meu nariz o mais depressa possí-
de, enquanto que este homem era um demônio — talvez fosse vel? Preciso pegar o trem.
o Demônio! Em todo caso, de uma coisa estava certo: três — Protesto! Isso é inteiramente irregular! exclamou o Dr.
vezes uma espada terrena o tinha ferido e não o marcara. Com Buli indignado.
este pensamento Syme se reanimou, e tudo quanto nele havia
— De fato isso vai de encontro à praxe, anuiu o Coronel
de bom cantou no ar como o vento canta nas árvores. Recor-
dou todas as coisas terrenas de sua aventura: as lanternas chi- Ducroix, olhando severamente para o Marquês. Ao que me
nesas de Saffron Park, a moça dos cabelos vermelhos no jardim, consta, registra-se apenas um caso (Capitão Bellegarde e Barão
os honestos marujos encharcados de cerveja à beira do cais, os Zumpt) em que as armas foram trocadas no meio da justa, a pe-
leais companheiros que estavam ali a seu lado. Talvez tivesse dido de um dos combatentes. Mas não se pode dizer que um
sido eleito paladino de todas essas coisas simples e generosas nariz seja uma arma.
para terçar espadas com o inimigo de toda a criação. "No fim — O senhor quer ou não quer puxar meu nariz? perguntou
de contas", disse para si mesmo, "sou mais do que um demônio; exasperado o Marquês. Por favor, Mr. Syme! O senhor não
queria fazê-lo? Pois faça-o! O senhor nem imagina como isso
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 113
112 G. K. C H E S T E R T O N

— Você, seu porcalhão, covarde, pulha, velhaco, pelintra,


é importante para mim. Vamos, não seja tão egoísta! Supli- estúpido, excomungado, idiota, imbecil! esbravejou sem tomar
co-lhe que puxe meu nariz imediatamente, e inclinou-se de leve
para a frente com um sorriso fascinante. O trem de Paris, arfan- fôlego. Mentecapto, trapalhão, palhaço! Você...
do e silvando, rangia numa estaçãozinha situada atrás de um — Não irá nesse trem, repetiu Syme.
outeiro próximo. — Chamas infernais! bramiu o outro. Porque deveria eu
Uma vez mais Syme foi invadido por uma sensação a que ir nesse trem?
já se habituara no decurso destas aventuras: a sensação de que — Sabemos porque, respondeu desabridamente o Professor.
um sublime e tenebroso vagalhão se elevara até ao céu e aca- Você vai a Paris para lançar uma bomba!
bava de despencar-se. Movendo-se num mundo incompreensível, — E por que não a Jerico? rugiu o outro arrancando a
deu dois passos para a frente e puxou o nariz romano de seu cabeleira que se despegou facilmente. Estarão vocês todos
renomado fidalgo. Puxou-o com força, e o nariz veio em sua amofinados que não possam descobrir o que sou?- Pensavam
mão. realmente que eu queria apanhar esse trem? Por mim, podiam
Por alguns segundos ficou solenemente atarantado, segu- sair vinte trens de Paris! Danem-se os trens de Paris!
rando entre os dedos aquela venta de papelão, contemplando-a, — Então o que é que você quer? inquiriu o Professor.
enquanto o sol e as nuvens e as colinas arborizadas assistiam a — O que eu quero? O que eu não quero é apanhar esse
este ridículo espetáculo. trem; o que eu queria era que o trem não me apanhasse, mas
O Marquês rompeu chistosamente o silêncio. estou vendo que agora, Deus do céu! êle já me apanhou.
— Se alguém se interessa por minha sobrancelha esquer- — Lamento dizer-lhe, disse Syme dominando-se, que sua
da, aqui está ela. Coronel Ducroix, queira aceitar minha so- lábia não me impressiona. Talvez, se você removesse os restos
brancelha esquerda. É o tipo da coisa que poderá ser-lhe útil de sua antiga testa e os poucos vestígios de seu queixo, suas
um dia, e gravemente arrancou uma de suas castanhas sobran- intenções ficassem mais evidentes. A lucidez mental se realiza
celhas assírias, destapando assim cerca de metade de sua testa de muitas maneiras. Que vem a ser essa história do trem? Por
morena, e cortêsmente ofereceu-a ao Coronel, que, de raiva, ru- que você disse que êle o apanhou? Pode ser pura invenção lite-
borizou-se e perdeu a fala. rária de minha parte, mas pressinto que isso deve significar al-
— Se eu tivesse sabido, balbuciou o Coronel, que estava guma coisa.
assistindo um poltrão que se enchumaça para lutar. .. — Significa tudo, disse o outro, e o fim de tudo. Agora
— Sei, sei, disse o Marquês, atirando estouvadamente para nós estamos à mercê de Domingo.
um e outro lado do campo vários pedaços de si mesmo. Você — Nós? repetiu estupefato o Professor. Que quer dizer esse
está muito enganado, mas não posso dar explicações agora. O "nós"?
trem entrou na estação! — A polícia, naturalmente! exclamou o Marquês, e arran-
— Entrou, disse ameaçadoramente Dr. Buli. Entrou, mas
vai sair. E sai sem você. Sabemos muito bem que obra dia- cou o couro da cabeça e metade da cara.
bólica. .. A cabeça que surgiu era loura, de cabelos lisos e bem
O misterioso Marquês levantou os braços num gesto de penteados, cabeça típica do policial inglês, mas o rosto era in-
desespero. Ali, de pé, em pleno sol, com uma metade da cara crivelmente pálido.
descomposta e a outra metade reluzente e arreganhada, êle era — Sou o Inspetor Ratcliffe, disse com uma pressa que
um disparatado estafermo. raiava na aspereza. Meu nome é muito conhecido na polícia, e
— Querem levar-me à loucura? perguntou. O trem... vejo perfeitamente que vocês pertencem a ela. Mas por via das
— Você não irá nesse trem, disse Syme com firmeza, em- dúvidas trago comigo um cartão, e começou a tirar do bolso um
punhando a espada. cartão azul.
A estrambótica figura virou-se para Syme e pareceu reunir O Professor fêz um gesto de enfado.
suas forças antes de falar. — Oh! Não precisa mostrar-nos, disse enfastiado. Desse
seu nós já temos um naipe quase completo.
O HOMEM QUE FQL QUINTA-FEIRA 115
114 G. K. CHESTERTON

O homenzinho chamado Buli, como outros homens que — Não faça tanto barulho, recomendou-lhe o Inspetor
parecem não ir além de uma vivacidade puramente vulgar, saiu- Ratcliffe. Domingo pode ouvi-lo.
se com uns inesperados expedientes de bom gosto. Sem dúvida — Domingo! exclamou Buli, deixando cair o chapéu.
foi quem salvou a situação. No meio dessa duvidosa cena de — Domingo, sim, exclamou Ratcliffe. Êle pode estar com
transformação, êle adiantou-se com toda a gravidade e respon- os outros.
sabilidade de um padrinho e dirigiu-se aos dois padrinhos do — Que outros? perguntou Syme.
Marquês.
— Os que desceram do trem, respondeu o Inspetor.
— Senhores, nós lhes devemos uma explicação satisfatória; — O que você diz parece extremamente desconcertante,
mas asseguro-lhes que não foram vítimas, como estão imaginan- começou Syme. Porque, de fato. .. Mas, Deus meu! gritou
do, de uma brincadeira de mau gosto, nem de nada indigno de de chôfre como quem vê uma explosão distante. Por Deus! Se
um homem honrado. Não perderam o tempo; ajudaram a sal- isso é verdadeiro, toda a cambada do Conselho Anarquista es-
var o mundo. Não somos truões mas homens desesperados, em tava contra a Anarquia. Todo mundo ali era detetive, exceto o
guerra com uma vasta conspiração. Uma sociedade secreta de Presidente e seu secretário particular. Que é que isso significa?
anarquistas caça-nos como se fôssemos lebres. Não se trata
desses infelizes loucos que atiram aqui e ali uma bomba, levados ""^ Que significa? repetiu o novo policial com incrível vio-
pela miséria ou por alguma filosofia alemã, mas de uma igreja lência. Significa que estamos perdidos. Você não conhece
rica, poderosa e fanática, uma igreja de pessimismo oriental, que Domingo? Não sabe que seus gracejos são sempre tão graves
tem por dogma destruir a humanidade como um inseto. Podem e simples que ninguém os pode prever? Você pode imaginar uma
inferir a sanha com que eles nos perseguem do fato de sermos coisa mais característica de Domingo que esta sutileza de colo-
obrigados a tais disfarces, como esses de que lhes peço descul- car seus mais ferrenhos adversários no Supremo Conselho e de-
pas, e a tais travessuras, como essas que os senhores atu- pois providenciar para que esse Conselho não seja supremo?
raram. Asseguro-lhes que êle comprou todos os monopólios, capturou
todos os telégrafos, apoderou-se de todas as linhas de estrada de
O mais jovem padrinho do Marquês, um sujeitinho baixo ferro, especialmente desta linha! e apontou um dedo trêmulo pa-
de bigodes pretos, inclinou-se polidamente e disse: ra o lado da estação. Todos os movimentos caíram sob seu
— Aceito de bom grado as desculpas; mas os senhores controle, e meio mundo estava disposto a lutar por êle. Havia,
hão de permitir que eu decline de acompanhá-los mais adiante somente, cinco ípassoas que ofereceriam resistência.. . e o
em suas dificuldades e me despeça aqui mesmo. O espetáculo velho Demônio colocou-as no Supremo Conselho para que elas
proporcionado por um distinto concidadão de nossas relações, perdessem o tempo vigiando-se mutuamente. Não somos mais
que se fragmenta ao ar livre, é inusitado e, acima de tudo, sufi- que uns idiotas, e todas as nossas idiotices faziam parte de seus
ciente para um só dia. Coronel Ducroix, não desejo interferir planos. Domingo sabia que o Professor perseguiria Syme atra-
nos seus atos, mas, se o senhor está de acordo em que nossa vés de Londres e que Syme se bateria comigo na França. E en-
presente situação é um tanto anômala, convido-o a voltar comi- quanto êle estava juntando grandes somas de dinheiro e se apo-
go para a cidade. derava das grandes linhas telegráficas, nós, os cinco idiotas, per-
O Coronel Ducroix virou-se mecanicamente; mas, depois seguíamo-nos uns aos outros, às tontas, como um bando de me-
de cofiar um momento o bigode branco, revidou: ninos brincando de cabra-cega.
— Não, por São Jorge! Se esses senhores estão efetiva- — E agora? perguntou Syme um tanto impassível.
mente embrulhados com uma caterva de assassinos, como dizem — Agora, redargüiu o outro com súbita serenidade, agora
que estão, eu irei com eles até o fim. Já combati pela França; êle nos encontrou brincando de cabra-cega num campo de
seria um pusilânime se não combatesse pela civilização. grande beleza rústica e de absoluta solidão. Provavelmente cap-
Dr. Buli tirou o chapéu e agitou-o no ar, dando brados turou o mundo; só lhe resta capturar este campo e os imbecis
aclamatórios, como se estivesse num comício. que aqui estão. Já que vocês querem realmente saber qual era
116 G. K. CHESTERTON

minha cisma com a chegada desse trem, eu direi. Minha cisma


era que Domingo ou o Secretário desembarcasse agora mesmo.
Syme proferiu um brado involuntário, e todos volveram os
olhos para a estação. Era inegável que uma grande multidão
parecia dirigir-se para o sítio em que eles estavam. Mas vinha
ainda muito distante e estava mal definida.
— Era um hábito do extinto Marquês de St. Eustache,
disse o novo polícia exibindo um estôjo de couro, andar sempre CAPITULO XI
com um binóculo. Ou o Presidente ou o Secretário vem em nos-
so encalço no meio daquela turba. Fomos agarrados num re-
canto aprazível e quieto, onde não podemos cair na tentação de
quebrar nossos juramentos chamando a polícia. Dr. Buli, sus- OS CRIMINOSOS ACOSSAM A POLICIA
peito que você enxergará muito melhor através dos meus que
através desses seus óculos sumamente decorativos. . Syme afastou dos olhos o binóculo, com alívio quase som-
Entregou o binóculo a Dr. Buli, que imediatamente tirou brio.
suas lunetas e colocou o aparelho nos olhos. — De qualquer modo o Presidente não está entre eles,
— Não há de ser terrível como você diz, aventou o Pro- afirmou enquanto enxugava a testa.
fessor, um pouco abalado. Não resta d.úvida que vem muita — Mas o certo é que estão muito longe, disse pestanejando
gente, mas é possível que se trate de simples turistas. o desnorteado Coronel, ainda não refeito das apressadas embo-
— Mas simples turistas, perguntou Buli, com o binóculo ra polidas explicações de Buli. Acha que é possível reconhecer
nos olhos, usam máscaras negras? o seu Presidente no meio de todo aquele povo?
Syme arrancou violentamente o binóculo da mão do médi- — Não poderia eu reconhecer um elefante branco no meio
co e se pôs a observar. A avançadora multidão compunha-se, de todo aquele povo!?! respondeu Syme com uma ponta de irri-
em sua maioria, de homens de aparência normal. Mas era evi- tação. Na verdade é como você diz: estão muito longe. Mas
dente também que dois ou três dos que vinham à frente usa- se êle viesse caminhando com eles... Deus do céu! creio que
vam meias máscaras negras quase até à boca. Este disfarce é este chão sofreria abalos.
perfeito, especialmente à distância. Syme admitiu a impossibi- Após uma pequena pausa, o novato chamado Ratcliffe dis-
lidade de identificar os loquazes possuidores daquelas mandí- se com lúgubre propósito:
bulas escanhoadas; mas, como todos conversavam e sorriam, pô- — Com certeza o Presidente não está entre eles. E prou-
de notar o sorriso torto de um deles. vera aos Gêmeos que estivesse! É muito mais provável estar
desfilando triunfalmente em Paris, ou sentado sobre as ruínas da
Catedral de São Paulo.
— Isso é absurdo! exclamou Syme. Algo pode ter aconte-
cido em nossa ausência; mas êle não pode ter capturado o mun-
do com tamanha rapidez. £ indiscutível, acrescentou, de sobro-
lho franzido, examinando dubitativamente o prado distante nas
cercanias da estação, é inegável que uma multidão parece vir
ao nosso encontro; mas ela não é esse exército que você imagina.
— Oh, não, disse desdenhosamente o novo detetive, não
é uma força muito temível. Mas permita que eu fale com fran-
queza: ela foi calculada matematicamente, tendo em vista a nos-
sa importância, e nós, meu caro, não somos numerosos no uni-
118 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 119

verso de Domingo. Agora que êle se apoderou de todos os ca- tras aparências. Aquela trágica confiança em si mesmo,
bos submarinos e de todos os telégrafos, o extermínio do Conse- que sentira quando acreditara que o Marquês era um de-
lho Supremo lhe parece uma trivialidade, como botar um car- mônio, havia desaparecido estranhamente, agora que êle sa-
tão no correio. É tarefa para seu secretário particular, concluiu bia que o Marquês era um amigo. Depois de todas essas
o Inspetor, cuspindo na relva. perplexidades, estava quase inclinado a perguntar o que era
Em seguida, voltou-se para os outros e disse com certa aus- um amigo e o que era um inimigo. Haveria alguma coisa
teridade: que subsistisse fora das aparências? O Marquês arrancara o
— Há muito que dizer em louvor da morte; mas se al- nariz e se transformara num detetive. Não poderia do mesmo mo-
guém tem qualquer preferência pela outra alternativa, aconse- do arrancar a cabeça e transformar-se num espectro? Tudo não
lho-o fervorosamente a tomar meu exemplo. se assemelhava, de resto, a este bosque de logros, a esta dança
Com estas palavras, deu-lhes as amplas costas e, numa de treva e luz? Tudo não passava de um fugaz resplendor, o
silenciosa determinação, encaminhou-se a passos largos para o resplendor sempre imprevisto e sempre esquecido. Porque Ga-
bosque. Os outros, a uma simples olhadela, notaram que a es- briel Syme havia encontrado no coração deste bosque sarapin-
cura nuvem humana se apartara da estação e se deslocava com tado de sol o que muitos pintores modernos aí haviam encontra-
misteriosa disciplina através da planície. Já divisavam, mesmo do. Encontrara aquilo que os modernos chamam Impressionis-
a olho nu, os borrões pretos que marcavam as máscaras usadas mo, que é outro nome para o cepticismo definitivo, incapaz de
pelas caras da frente. Deram meia volta e seguiram o chefe, justificar o universo.
o qual já se internara no bosque e desaparecera entre as árvores Como aquele que, no meio de um pesadelo, se esforça por
farfalhantes. gritar e despertar, Syme lutava por desvencilhar-se desta últi-
O sol, no relvado, era seco e quente. Assim, ao se lança- ma e mais execrável de todas as suas fantasias. Com duas im-
rem no bosque, sentiram o contato refrescante da sombra, como pacientes pernadas alcançou o homem que usava o chapéu de
mergulhadores que se lançam numa piscina sombreada. No in- palhinha do Marquês, o homem a quem devia chamar de Ratclif-
terior, o bosque se povoava de réstias despedaçadas e sombras fe. Numa voz exageradamente alta e galhofeira, rompeu o inson-
inquietas, que formavam uma espécie de trêmulo véu, evocati- dável silêncio e puxou conversa.
vo da trepidação do cinematógrafo. Syme mal podia distinguir — Posso perguntar-lhe para que fim-de-mundo nos diri-
as sólidas figuras que andavam a seu lado sob os dançantes fei- gimos?
xes de luz e sombra. Num instante uma cabeça se iluminava à Tão autênticos tinham sido os temores de sua alma que êle
maneira de Rembrandt, obliterando o resto do corpo; no instan- se rejubilou ao ouvir a entonação tranqüila e humana de seu
te seguinte surgiam alvas mãos, fortes e vibráteis, acompanhadas companheiro.
de uma cabeça de negro. O ex-Marquês puxara o velho chapéu — Temos que alcançar o mar, passando pela cidade de
de palhinha para cima dos olhos, e a sombra negra da aba divi- Lancy. A meu ver é pouco provável que esta região esteja do
dia-lhe o rosto em duas metades tão perfeitas que êle parecia lado deles.
trazer uma das negras meias máscaras dos seus perseguidores. A — A que vem tudo isso? berrou Syme. Eles não podem
fantasia coloriu o opressivo pasmo de Syme. Estaria de más- ter conquistado todo o mundo dessa forma. Decerto, nem to-
cara o Marquês? Haveria mesmo alguém de máscara? Existiria dos os trabalhadores são anarquistas, e mesmo que fossem, sim-
mesmo alguém? Este bosque enfeitiçado, onde os semblantes ples multidões não poderiam vencer os modernos exércitos e
dos homens se tornavam alternadamente pretos e brancos, onde a polícia!
seus corpos, uma vez intumescidos na claridade, sumiam na noi- — Simples multidões! repetiu seu novo amigo com um bu-
te informe, este simples caos do claro-escuro (depois da lím- fo de desprezo. Você fala de multidões e classes operárias co-
pida manhã campesina) afigurou-se-lhe um símbolo perfeito mo se elas fossem o nó da questão. Está contaminado por uma
do mundo em que vivia há três dias, um mundo em que os ho- idéia eterna e idiota: se a anarquia vier, virá dos pobres.
mens largavam as barbas, os óculos e os narizes e tomavam ou- Por quê? Os pobres foram rebeldes, mas anarquistas, nunca!
120 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 121

Mais do que os outros, têm interesse em que haja um governo — Mr. Syme tem toda razão, respondeu o Coronel Du-
decente. O pobre realmente se enraíza em sua terra. O rico, croix. Quando nada, pelo simples motivo de ter êle uma boa
não; pode embarcar num iate para Nova Guiné. Algumas ve- propriedade a defender. Mas esqueci que na pátria de vocês
zes os pobres se opuseram aos maus governos; os ricos sempre camponeses não costumam ser ricos.
se opuseram a qualquer governo. Os aristocratas foram sempre — Esse parece pobre, advertiu Dr. Buli suspeitoso.
anarquistas. Basta recordar as guerras dos barões. — Isso mesmo, disse o Coronel. E por isso é que êle
— Como preleção sobre história inglesa para meninos, é rico.
está excelente, disse Syme, mas ainda não encontrei sua aplica- — Tenho um idéia, bradou Dr. Buli de chôfre. Quanto
ção. êle cobraria para arranjar-nos um lugar em sua carroça? Aque-
— Já vai encontrá-la, retorquiu o preletor. Quase todos les cães vêm a pé, e logo os deixaríamos para trás.
os braços-direitos de Domingo são milionários americanos e sul- — Ofereça-lhe o que quiser! disse pressuroso Syme. Te-
africanos. Por isso é que êle se apossou de todas as comuni- nho dinheiro à bessa.
cações, e é por isso que os quatro campeões restantes da for- — Não é assim que se faz, explicou o Coronel. Êle nun-
ça policial antianarquista estão fugindo através de um bosque ca lhe terá nenhum respeito se você não quiser justar.
como se fossem coelhos. — Mas se êle regatear? começou Buli impaciente.
— O que você diz dos milionários eu compreendo, disse — Regateia porque é um homem livre, redargüiu o ou-
Syme pensativo. São loucos quase todos. Mas subjugar uns tro. Vocês não entendem. Êle não perceberia o sentido da
poucos velhos maníacos e depravados é uma coisa; subjugar gran- generosidade. Não é de receber gorjetas.
des nações cristãs é outra. Sou capaz de apostar meu nariz (per- E mesmo quando supunham escutar atrás de si as passa-
doe a alusão) que Domingo ficaria completamente desampa- das surdas de seus desconhecidos perseguidores, tiveram que
rado ante a tarefa de converter qualquer pessoa normal por aí demorar-se, mortos de sofreguidão, enquanto o Coronel fran-
a fora. cês e o lenhador francês falavam com toda a pachorra e esper-
— Bem, isso depende da pessoa, disse o outro. teza de um dia de feira. Ao fim de quatro minutos, porém,
viram que o Coronel tinha razão, pois o lenhador acatara a
— Por exemplo, jamais chegaríamos a converter essa daí, proposta, não com o vago servilismo do biscateiro bem pago,
disse Syme apontando para a sua frente. mas com a seriedade de um procurador que recebeu os hono-
Entraram num espaço descoberto e ensolarado, que aos rários justos. Disse-lhes que a melhor coisa a fazer era toma-
olhos de Syme representava o retorno do bom senso. E no meio rem o rumo de uma pousada situada nas colinas de Lancy, onde
da clareira havia um homem que bem poderia, com absoluta pro- o hospedeiro, antigo soldado convertido em dévot na velhice,
priedade, encarnar o senso comum. Queimado de sol e sujo de decerto simpatizaria com eles e talvez assumisse o risco de
suor, e grave, imbuído daquela profunda gravidade inerente aos ajudá-los. Toda a comitiva então apinhou-se em cima das pi-
singelos trabalhos cotidianos, um rude aldeão francês cortava lhas de lenha e, ao balanço da rude carroça, dirigiu-se para
lenha com uma machadinha. Algumas jardas adiante jazia sua a outra banda mais alcantilada do bosque. Embora pesado e
carroça, quase cheia de toros; e o cavalo que comia o capim desconchavado, o veículo ganhara bastante velocidade, e pouco
era, como o dono, valoroso sem ser violento e, como o dono, depois tiveram a confortadora impressão do afastamento daque-
altaneiro ainda que quase triste. O homem era normando, mais les, quem quer que fossem, que os perseguiam. Porque, no
alto do que a média dos franceses e muito anguloso. Sua figu- fim de contas, descobrir onde os anarquistas haviam arregi-
ra morena recortava-se na quadra ensolarada como uma alego- mentado tantos sequazes era um enigma ainda indecifrado. A
ria do trabalho pintada a fresco sobre um fundo de ouro. presença de um único homem era suficiente; eles tinham aba-
— Mr. Syme está dizendo, gritou Ratcliffe para o Coro- lado à vista do sorriso deformado do Secretário. De quando
nel francês, que esse homem, pelo menos, nunca será um anar- em quando Syme olhava de esguelha para o exército que vinha
quista. em suas pegadas.
122 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 123

À medida que o bosque se rarefazia e estreitava com a meias frases de cortesia, pois suas maneiras expansivas eviden-
distância, Syme descortinava as encostas resplendentes, por on- ciavam que êle era o proprietário da tasca.
de a quadrada e negra matilha marchava feito um monstruoso Era um sujeito encanecido, com cara de maçã, olhos so-
escaravelho. Na vivíssima claridade e com seus vivíssimos nolentos e bigode pardo, corpulento, sedentário e simplório,
olhos, quase telescópicos, divisava perfeitamente esses vultos um tipo que se pode com freqüência encontrar na França, mas
longínquos. Via-os como figuras humanas individualizadas; é muito mais comum na Alemanha católica. Tudo quanto o
mas reparava, com surpresa cada vez maior, que eles se mo- cercava — seu cachimbo, seu caneco de cerveja, suas flores e
viam como um só homem. Pareciam usar roupas escuras e sua colmeia — sugeria uma paz ancestral; somente quando
chapéus comuns, como quaisquer pessoas da rua; mas não se seus hóspedes, dentro da sala de visitas, levantaram a vista de-
espalhavam, nem se chocavam, nem se distribuíam em vários pararam com a espada pendurada na parede.
sentidos, como seria natural numa multidão ordinária. Mo- O Coronel, que cumprimentou o estalajadeiro como um
viam-se com a assustadora e maligna rigidez de um pau, como velho amigo, entrou apressadamente, sentou-se e encomendou
um horripilante exército de autômatos. um refrigerante. A decisão de seu ato interessou Syme, que
Syme apontou-o a Ratcliffe. se sentou a seu lado e aproveitou o momento em que o velho
— É, sim, respondeu o detetive, isso é disciplina. É puro estalajadeiro se ausentou, para satisfazer a própria curiosidade.
Domingo. Êle está talvez a quinhentas milhas daqui, mas — Pode explicar, Coronel, perguntou em voz baixa, por
infunde-lhes tanto temor quanto o dedo de Deus. Marcham que viemos para cá?
uniformemente, e pode apostar suas botas que eles estão fa- O Coronel Ducroix sorriu por trás da cerdosa bigodeira
lando uniformemente e pensando uniformemente. Mas o que branca.
é importante para nós é que eles estão desaparecendo com a — Por duas razões, meu prezado senhor, disse êle. Darei,
mesma uniformidade. primeiro, não a mais importante mas a mais vantajosa. Vie-
Syme concordou. Era verdade que a negra mascarada que mos para cá porque este é o único lugar, num raio de vinte
os perseguia, pouco a pouco definhava, à proporção que o cam- milhas, em que podemos alugar cavalos.
ponês chicoteava o cavalo. — Cavalos! repetiu Syme, recobrando o ânimo.
— Sim, replicou o outro. Se vocês querem realmente dis-
O nível da paisagem clara, ainda que quase todo plano, tanciar-se de seus inimigos só têm uma saída: cavalos! A me-
descambava nos confins do bosque em ondas de lento declive
nos, naturalmente, que tragam nos bolsos bicicletas e auto-
que se perdiam no mar, à semelhança dos mais baixos declives
móveis.
das dunas de Sussex. A única diferença era que em Sussex
o caminho deveria ser fragmentado e tortuoso como um rega- — E você nos aconselha a seguir para onde? inquiriu
to, enquanto aqui a branca estrada francesa despencava-se Syme com alguma descrença.
diante deles como uma catarata. No fim da primeira rampa, — Fora de dúvida, redargüiu o Coronel, o melhor que
a carroça estalou ao fazer uma curva fechada, e em alguns vocês têm a fazer é correr logo para a delegacia de polícia da
minutos, com a estrada ainda mais escarpada, contemplaram a cidade. Tenho para mim que o amigo que apadrinhei em cir-
seus pés o minúsculo porto de Lancy e o magnífico arco azul cunstâncias um tanto equívocas exagera demais as possibilida-
do mar. A nuvem viageira de seus inimigos desaparecera total- des de um levante geral, mas suponho que nem mesmo êle ne-
mente do horizonte. garia que entre os gendarmes vocês estão em segurança.
Cavalo e carroça impetuosamente rodearam um grupo de Syme aprovou gravemente com a cabeça. Depois per-
olmos, e o cavalo quase deu de focinho no rosto de um velho guntou de chôfre:
que estava sentado num dos bancos da calçada do café "Le — E sua outra razão de vir para cá?
Soleil d'Or". O aldeão grunhiu uma desculpa e apeou-se. Os — Minha outra razão de vir para cá, disse seriamente
outros também desmontaram e um a um saudaram o velho com Ducroix, é que é sempre prudente ver um ou dois homens
honestos quando se está praticamente às portas da morte.
124 G. K. C H E S T E R T O N

Syme olhou para o alto da parede e descobriu um quadro


religioso, de cores cruas e patéticas.
— Tem razão, disse, e acrescentou quase em seguida:
Alguém foi providenciar os cavalos?
— Foi, sim, respondeu Ducroix. Fique certo de que dei
ordens no momento em que entrei. Aqueles inimigos de vocês
não davam a impressão de ter pressa, mas na realidade se des-
locavam com incrível rapidez, parecendo um exército bem ades- CAPITULO XII
trado. Nunca pensei que os anarquistas tivessem tanta disci-
plina. Vocês não podem perder um minuto.
Nem bem acabara de falar quando o velho estalajadeiro A TERRA EM ANARQUIA
dos olhos azuis e cabelos brancos ingressou cautelosamente
na sala e anunciou que havia seis cavalos selados lá fora.
A conselho de Ducroix, os cinco outros se muniram de Incitando os cavalos ao galope e indiferentes ao áspero de-
pequenas rações de comida e vinho e, conservando suas espa- clive da estrada, em pouco tempo os cavaleiros retomaram a
das duelares como únicas armas disponíveis, afastaram-se rui- dianteira, até que a massa dos primeiros edifícios de Lancy in-
dosamente pela estrada branca e alcantilada. Por unânime con- terceptou a visão dos seus perseguidores. Sem embargo, fora
sentimento, os dois criados, que carregaram a bagagem do Mar- um longo percurso. Quando chegaram à cidade, já o ocidente
quês quando êle era marquês, ficaram bebendo no café, o que, se inflamava das cores e da exuberância do crepúsculo. O
enfim, não contrariava os secretos desejos de ambos. Coronel sugeriu que, antes de se dirigirem de vez para a dele-
O sol, nessa hora do dia, começava a declinar para o gacia de polícia, tentassem, de passagem, atrair as simpatias de
ocidente. Através de seus raios, Syme entrevia o velho estala- mais um indivíduo que podia ser-lhes útil.
jadeiro, cuja robusta figura ia diminuindo aos poucos, embora — Quatro, dos cinco ricaços deste burgo, disse êle, são
continuasse em pé a segui-los mudamente com o olhar, en- trapaceiros vulgares. Suponho que a proporção é razoavelmente
quanto o sol lhe banhava os cabelos prateados. Syme sentia-se igual à do resto do mundo. O quinto é um amigo meu. Sujeito
presa de uma fantasia persistente e supersticiosa, depositada em excelente! E o mais importante, do nosso ponto de vista, é
seu espírito pelo dito ocasional do Coronel: a de que esse que possui um automóvel.
era talvez o último homem honesto que contemplava na terra... — Temo, disse o Professor com jovialidade, espreitando
Continuava ainda atento para aquele vulto minguante, a estrada branca por onde a negra e rastejante mascarada podia
mero borrão pardacento na vasta muralha verde da encosta, surgir de um momento parp outro, temo que não disponhamos
quando, no alto, por trás do estalajadeiro, viu surgir em marcha de tempo para visitas vespertinas.
um exército de homens vestidos de preto. Parecia pairar sobre — A casa do Dr. Renard está apenas a uns três minutos
o bom homem e sua casa como uma negra nuvem de gafa- daqui, insistiu o Coronel.
nhotos. Em boa hora foram selados os cavalos! — Nossa desgraça, objetou Dr. Buli, está a menos de dois
minutos.
— Se cavalgarmos a toda brida, disse Syme, poderemos
deixá-los para trás, porque eles vêm a pé.
— Êle tem automóvel, teimou o Coronel.
— Mas não devemos contar com isso, disse Buli.
— Êle está do lado de vocês.
— Mas pode não estar em casa.
126 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 127

— Silêncio, ordenou Syme subitamente. Que barulho é havia probabilidade imaginável de um levante geral anarquista,
esse? e concluiu, encolhendo os ombros:
Por um segundo todos ficaram tão imóveis como estátuas — Anarquia é infantilidade!
eqüestres, e por um segundo — por dois ou três ou quatro — Et ça, bradou de repente o Coronel, apontando por
segundos — o céu e a terra pareceram igualmente imóveis. cima do ombro do outro. Isso é infantilidade?
Depois, todos os seus ouvidos, agoniados de atenção, escuta- Todos volveram o olhar e avistaram um arco de negra
ram pela estrada aquela indescritível vibração que só significa cavalaria transpondo o cimo da encosta com todo o ímpeto
uma coisa: cavalos! de Átila. Observaram que apesar de cavalgar velozmente, a
O rosto do Coronel transformou-se instantaneamente, como tropa se mantinha coesa, e que as negras máscaras da primeira
se um raio o tivesse tocado, deixando-o, porém, incólume. fila avançavam com a mesma regularidade de uma linha de
— Pegaram-nos, disse com breve ironia militar. Preparar uniformes. O negro quadrado era, em essência, o mesmo de
para receber carga de cavalaria! antes, embora avançasse com rapidez cada vez maior. Havia,
— Onde é que terão conseguido os cavalos? perguntou porém, agora, uma diferença nitidamente visível na rampa da
Syme enquanto mecanicamente instigava o corcel a um meio encosta como num mapa inclinado. Na verdade, o grosso da
galope. cavalaria formava um único bloco; mas à frente da coluna
O Coronel guardou silêncio por um instante. Depois fa- voava um ginete, cujos movimentos frenéticos de mãos e cal-
lou constrangido: canhares fustigando o cavalo talvez induzissem a pensar que
— Fui estritamente exato quando disse que o "Soleil êle não era o perseguidor e sim o perseguido. A despeito da
d'Or" é o único lugar, nessas vinte milhas, onde é possível distância, ressaía em sua figura algo tão fantástico e tão incon-
conseguir cavalos. fundível que prontamente identificava o Secretário.
— Não! bradou Syme violentamente. Não creio que êle — Lamento interromper uma discussão erudita, disse o
o fizesse. Não é possível, não é, com todos aqueles cabelos Coronel, mas você pode emprestar-me seu automóvel agora
brancos! mesmo?
— Talvez tenha sido coagido, disse com brandura o Coro- — Estou desconfiado que vocês estão todos loucos, disse
nel. Eles devem ser pelo menos uma força de cem homens. Dr. Renard, sorrindo afàvelmente. Mas Deus permita que a
Essa é mais uma boa razão para procurarmos o meu amigo loucura nunca perturbe a amizade. Vamos até à garagem.
Renard, que tem automóvel.
Ao pronunciar estas palavras, galopou para a esquina e Dr. Renard era um homem bonachão e monstruosamente
enfiou pela rua com tão fulminante velocidade que os outros, rico, cuja casa era como o Museu de Cluny. Possuía três auto-
que já corriam à desfilada, tiveram dificuldade em seguir a móveis, mas, tendo os gostos simples da classe média francesa,
cauda voadora de seu cavalo. parecia usá-los muito raramente. Quando seus impacientes ami-
gos foram examiná-los, perderam uma porção de tempo para
Dr. Renard habitava uma confortável mansão no alto de
certificar-se de que um dos três poderia funcionar. Com difi-
uma ladeira. Quando, à sua porta, eles apearam dos cavalos,
culdade trouxeram-no para a rua, parando-o diante da casa do
enxergaram, varada pela estrada branca, a sólida crista verde
Dr. Renard. Fora da escura garagem espantaram-se ao ver que
da colina que se alteava acima de todos os telhados da cidade.
o crepúsculo já havia descido com a presteza da noite nos tró-
Ao constatar que a estrada ainda estava deserta respiraram
picos. Ou eles se tinham demorado mais do que imaginavam,
aliviados e tocaram a campainha.
ou algum inusitado dossel de nuvens se armara sobre a cidade.
Dr. Renard era um homem alegre, de barbas castanhas, Baixando a vista pelas ruas ladeirosas pareceu-lhes que uma
um bom representante dessa silenciosa mas ativa- classe pro- aligeirada neblina subia do mar.
fissional que a França soube preservar melhor que a Inglaterra.
Quando foi inteirado do assunto, galhofou do pânico do ex- — Agora ou nunca, disse Dr. Buli. Ouço cavalos.
Marquês. Asseverou, com o sólido ceticismo francês, que não — Não, emendou o Professor. Um cavalo.
128 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 129

E enquanto escutavam, tornou-se-lhes evidente que aquele aqui o nosso Syme lutava com o volante, subi ligeiro a esca-
ruído, avizinhando-se cèleremente nas pedras retumbantes, não daria e falei com Renard, que, como vocês se lembram, estava
era o de uma cavalgada, mas o de um ginete que disparara de pé no átrio. "Acho", disse eu, "que não há tempo para
à frente dos demais: o insano Secretário. conseguir uma lâmpada". Êle ergueu os olhos, piscando amà-
A família de Syme, como a maioria daquelas que findam velmente para a primorosa abóbada do vestíbulo. Do teto,
na pobreza, possuíra outrora um carro, e Syme sabia tudo presa por magníficas cadeias de ferro, pendia esta lanterna, uma
acerca de automóveis. Saltou imediatamente para o assento das cem preciosidades de sua preciosa casa. Sem perda de
do chofer e, com o rosto afogueado, tentou pôr em movimento tempo, arrancou a lâmpada do lugar, rachando os painéis e
o desusado maquinismo. Aplicou toda a sua força numa ala- derrubando dois vasos azuis com sua violência. Entregou-me
vanca e depois disse tranqüilamente: então a lanterna e eu coloquei-a no carro. Não tinha eu razão
— Receio que êle não ande. de dizer que o Dr. Renard merecia ser conhecido?
No mesmo instante um homem retesado, montado num — Tinha, pois não! confirmou Syme seriamente, e pen-
cavalo veloz, surgiu na esquina com a velocidade e a rigidez durou a pesada lanterna na frente do carro. Havia uma certa
de uma seta. Trazia um sorriso que alongava o queixo como alegoria da situação deles no contraste entre o moderno auto-
se este se tivesse deslocado. Passou raspando pelo carro esta- móvel e a estranha lâmpada eclesiástica.
cionado, dentro do qual a turma se amontoara, parou na frente Até aqui tinham passado pela parte mais quieta da cidade,
e colocou a mão no motor. Era o Secretário, e sua boca se encontrando no máximo um ou dois pedestres que não lhes po-
retificara na solenidade do triunfo. diam dar idéia da paz ou da hostilidade do lugar. Agora, entre-
Syme debruçava-se tenazmente sobre a roda do volante. tanto, as janelas das casas começavam uma a uma a iluminar-se,
Não havia ruído nenhum além do rumor dos outros persegui- produzindo uma sensação maior de acolhimento e humanidade.
dores que invadiam a cidade. Súbito rebentou um estridor de Dr. Buli voltou-se para o novo detetive e permitiu-se um de
ferros entrechocados, e o carro partiu. O Secretário foi arran- seus sorrisos naturais e amigáveis.
cado da sela como uma faca lançada para fora da bainha. O
carro arrastou-o violentamente umas vinte jardas e deixou-o — Essas luzes deixam a gente mais alegre.
estendido na estrada, diante do cavalo espavorido. Quando o O Inspetor Ratcliffe franziu a testa.
carro dobrou a esquina, fazendo uma esplêndida curva, viram — Somente certas luzes me deixam mais alegre, disse êle,
os outros anarquistas aglomerando-se na rua e erguendo o e são aquelas luzes da delegacia de polícia que estou vendo
chefe caído. no outro lado da cidade. Deus queira que cheguemos lá em
— Não compreendo porque está tão escuro, disse por fim dez minutos.
o Professor em voz baixa. Então todo o efervescente bom senso e otimismo de Buli
— Penso que vai haver tempestade, aventou Dr. Buli. É explodiu:
pena que não tenhamos uma lâmpada neste carro para iluminar — Mas isso é um alucinado disparate! exclamou. Se você
o caminho. supõe que essa gente simples é anarquista, então você está mais
— Temos, sim, afirmou o Coronel, e do fundo do cano louco do que um verdadeiro anarquista. Se resolvêssemos en-
suspendeu uma pesada lanterna de ferro, esculpida e fora de frentar aqueles sujeitos toda a cidade combateria do nosso lado.
uso, dentro da qual havia uma lâmpada. Obviamente era uma — Não, replicou o outro com a mesma simplicidade. To-
antigüidade e parecia que seu uso original fora, de certo modo, da a cidade combateria do lado deles. Haveremos de ver.
semi-religioso, pois num de seus lados figurava um rude ornato Enquanto conversavam* o Professor inclinou-se para a
em forma de cruz. frente com repentina inquietação.
— Onde você a arranjou? perguntou o Professor. — Que barulho é esse? perguntou.
— Arranjei-a onde arranjei o carro, respondeu o Coronel, — Os cavalos atrás de nós, creio eu, disse o Coronel.
rindo por entre os dentes. Com meu melhor amigo. Enquanto Pensei que os tínhamos vencido.
130 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 131

— Cavalos? Nunca! redargüiu o Professor. Não são ca- — O que eu quero dizer é que nunca chegaremos lá, res-
valos, nem estão atrás de nós. pondeu plàcidamente o pessimista. Eles já atravancaram a es-
Mal concluíra o Professor, quando, à frente deles, no fim trada com dois pelotões armados. Vejo-os daqui. A cidade
da rua, passaram num abrir e fechar de olhos dois objetos bri- está em pé de guerra, como eu predisse. Resta-me somente
lhantes e rumorosos. Sumiram num segundo, mas todos viram aninhar-me no conforto sutil de minha própria certeza.
que eram automóveis. O Professor ergueu-se empalidecido e E Ratcliffe, acomodando-se confortàvelmente, acendeu um
jurou que eram os outros dois automóveis da garagem do Dr. cigarro, enquanto os outros se punham excitadamente de pé e
Renard. examinavam a estrada. Syme diminuíra a marcha do carro ao
— Eram os dele, repetiu com os olhos esgazeados. Esta- sentir que seus planos se tornavam inexeqüíveis e, por fim,
vam cheios de mascarados! parou-o na esquina de uma rua que descia a pique para o mar.
— Absurdo! vociferou o Coronel. Dr. Renard nunca lhes Quase toda a cidade estava recoberta de sombras, mas o
daria seus carros. sol ainda não se tinha posto; por onde se derramava seu fulgor
— Pode ter sido coagido, sugeriu Ratcliffe calmamente. esfatiado, todas as coisas se coloriam de ouro flamante. Sobre
Toda a cidade está do lado deles. o alto dessa rua transversal o derradeiro clarão do ocaso incidia
— Você ainda acredita nisso? perguntou incrédulo o tão agudo e estreito como um raio de luz artificial no teatro.
Coronel. Batia no carro dos cinco amigos, transformando-o numa carrua-
— Logo todos vocês acreditarão, retorquiu o outro numa gem fulgurante. Mas o resto da rua, especialmente nas duas ex-
desesperada serenidade. tremidades, imergia no mais profundo crepúsculo. Por alguns
Por alguns instantes estabeleceu-se uma pausa embara- segundos nada puderam ver. Depois, Syme, cujos olhos eram
çosa, que o Coronel rompeu bruscamente: os mais penetrantes, rompeu num curto e amargo assobio, e
— Não, não posso acreditar. Isso é puro despropósito. a juntou:
O singelo povo de uma pacata cidade francesa... — É verdade. Uma multidão, ou um exército, ou seja lá
Foi interrompido por um estampido e um lampejo bem o que fôr, está reunido no fim daquela rua.
perto de seus olhos. Quando o carro partiu cèleremente, dei- — Bem, se é assim, disse Buli impaciente, deve haver um
xando atrás de si uma flutuante nuvem de alva fumaça, Syme outro motivo: um combate simulado, o aniversário do prefeito,
ouviu sibilar uma bala. ou coisa semelhante. Não posso e não quero crer que a gente
— Deus meu! bradou o Coronel. Alguém nos alvejou. simples e alegre de um lugar como este ande com os bolsos
cheios de dinamite. Avancemos um pouquinho, Syme, e olhe-
— Não é necessário interromper a conversa, disse o som- mos isso de perto.
brio Ratcliffe. Por favor, Coronel, retome as suas considera-
ções. Se não estou enganado, você falava do singelo povo de O carro havia percorrido lentamente umas cem jardas
uma pacata cidade francesa. quando todos se surpreenderam com uma gargalhada do Dr.
Buli.
O estupefato Coronel não estava mais para motejos. Cir- — Vejam, seus bestalhões! berrou. O que foi que eu
cunvagava os olhos, perscrutando a rua. disse? Essa multidão é tão obediente à lei como uma vaca. E
— É extraordinário, disse, superextraordinário! se não é, está do nosso lado.
— Uma pessoa rabugenta, disse Syme, poderia achar de- — Como é que você sabe? perguntou espantado o Pro-
sagradável. Mas me parece que aquelas luzes acolá, no fim
desta rua, são da delegacia. Em pouco tempo chegaremos lá. fessor.
— Você é cego como um morcego, berrou Buli outra vez.
— Não, disse o Inspetor Ratcliffe. Nunca chegaremos lá. Não vê quem os comanda?
Tinha-se levantado para devassar a distância. Voltou a Espreitaram de novo, e então o Coronel, com um tremor
sentar-se e alisou a estirada cabeleira com um gesto de fadiga. na voz, gritou:
— O que é que você quer dizer? inquiriu Buli incisivo. — Ora, é Renard!
132 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 133

De fato, não se podiam distinguir claramente os vultos que toca a Renard. Suspeitei dele desde que o vi. Ê racio-
pardacentos que se agitavam na estrada; entretanto, mais adian- nalista e, o que é pior, rico. Se o dever e a religião têm que
te, num ponto iluminado, via-se, passeando acima e abaixo, o ser destruídos, hão de ser destruídos pelos ricos.
inconfundível Dr. Renard, de chapéu branco. Sua mão direita — E agora já estão realmente destruídos, disse o homem
afagava as compridas barbas e a esquerda segurava um revólver. do cigarro, erguendo-se com as mãos nos bolsos. Os diabos
— Que louco eu fui! exclamou o Coronel. Naturalmente se aproximam.
o meu velho amigo veio ajudar-nos. Os ocupantes do automóvel seguiram ansiosamente a dire-
Dr. Buli, borbulhando gargalhadas, brandia levianamente ção do olhar cismarento de Ratcliffe e viram que todo o regi-
a espada, como se ela fosse uma bengala. Saltou do carro e mento investia sobre eles desde a ponta da rua. Dr. Renard,
saiu a correr, gritando: furioso, marchava na frente, a barba voando na brisa.
— Dr. Renard! Dr. Renard! O Coronel pulou para fora do carro, soltando uma excla-
Um segundo depois, Syme julgou que seus próprios olhos mação de impaciência.
enlouqueciam dentro de sua cabeça. Pois o filantrópico Dr. Re- — Senhores, vozeou, isso é incrível! Deve ser brincadeira.
nard acintosamente apontara o revólver contra Buli e fizera Se conhecessem Renard como eu conheço... É como chamar
dois disparos que atroaram a estrada. a Rainha Vitória de dinamiteira. Se vocês guardassem na men-
Quase no mesmo instante em que a espiral de branco te o caráter desse homem...
fumo se desprendeu dessa lastimável detonação, uma longa es-
piral de branco fumo também se desprendeu do cigarro do — Dr. Buli, atalhou Syme sardônico, guarda-o pelo me-
cínico Ratcliffe. Este empalidecera como os outros, mas sor- nos no chapéu.
ria. Dr. Buli, a quem as balas tinham sido dirigidas e que por — Digo-lhes que isso não é possível! berrou o Coronel,
üm triz não foi escalpado, parou tranqüilamente no meio da pateando que nem um louco. Renard explicará tudo. Êle vai
estrada, sem dar sinal de medo. Depois virou-se lentamente, explicar-me, sim. E a passos largos foi para diante.
caminhou para o carro e subiu, trazendo dois buracos no chapéu. — Não tenha tanta pressa, disse preguiçosamente o fu-
— Bem, disse sossegadamente o fumante, que é que você mante. Em breve êle nos explicará tudo.
pensa agora? Mas o sôfrego Coronel já não o ouvia e caminhava para
— Penso, respondeu Dr. Buli sem titubear, que estou o inimigo avançador. O exaltado Dr. Renard outra vez apon-
dormindo em Peabody Buildings 217 e que daqui a pouco tou a arma, mas, reconhecendo o adversário, hesitou. O Coro-
acordo e dou um pulo da cama; ou então, penso que estou sen- nel avizinhou-se dele, fazendo uns gestos frenéticos de ad-
tado num cubículo almofadado de Hanwell e que o médico na- moestação.
da mais pode fazer no meu caso. Mas se você quer saber o — É inútil, disse Syme. Nada conseguirá daquele velho
que eu não penso, vou lhe dizer. Não penso o mesmo que idolatra. Proponho que a gente meta o carro no meio deles,
você pensa. Não penso e não pensarei nunca que a massa de de surpresa, como as balas que vararam o chapéu de Buli. É
homens comuns seja um amontoado de ignóbeis pensadores
possível que nos matem, mas nós também mataremos um bom
modernos. Não, meu caro, sou um democrata e ainda não creio
número deles.
que Domingo possa converter um escavador ou um caixeiro.
Não! Posso estar louco, mas a humanidade não está. — Não topo isso, não, disse Dr. Buli, tornando-se mais
Syme dirigiu para Buli seus claros olhos azuis, com uma vulgar na sinceridade da sua virtude. Esses pobres camaradas
seriedade que comumente não manifestava: podem estar enganados. Demos uma oportunidade ao Coronel.
— Você é um sujeito excelente. Acredita que a sensatez — Devemos voltar, então? perguntou o Professor.
não é um privilégio exclusivamente seu. E tem toda (razão no — Não, respondeu friamente Ratcliffe. A outra ponta
que toca à humanidade, aos camponeses e a pessoas como da rua também está guarnecida. Parece-me até que vejo lá
aquele velho e simpático estalajadeiro. Mas não tem razão no outro amigo seu, Syme.
134 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 135

Syme habilmente fêz a volta e deu uma olhada para o Os outros pularam depois dele, em solidário acatamento
caminho percorrido. Avistou, galopando ao seu encontro na à decisão, deixando para trás os escombros e a turba reunida.
escuridão, um troço irregular de cavalaria. Viu, sobre a sela — Temos mais uma oportunidade, disse Syme tirando a
da frente, o brilho prateado de uma espada e, pouco depois, espada da boca. Seja qual fôr o sentido de todo este pande-
o brilho prateado dos cabelos de um ancião. Num instante, mônio, acho que a delegacia de polícia nos ajudará. Não po-
com tremenda violência, fêz outra volta e, como um homem demos alcançá-la porque eles guardam o caminho. Mas ali,
que só desejasse morrer, lançou precipitadamente o carro na naquele quebra-mar, poderemos resistir tanto quanto Horácio
ladeira que ia dar no mar. na sua ponte. Temos de resistir até que venha a polícia. Si-
— Que diabo é isso? bradou o Professor, agarrando-lhe gam-me.
o braço. Os outros seguiram-lhe os passos na rangente areia e, após
— Caiu a estrela da manhã, respondeu Syme, enquanto um ou dois segundos, suas botas pisavam, não os seixos da
o carro se despencava pela escuridão como uma estrela cadente. maré, mas lajes grandes e chatas. Tomaram por um extenso
Os outros não lhe entenderam as palavras, mas quando e raso molhe que se lançava num braço do mar negro e enca-
relancearam os olhos para o alto viram a cavalaria inimiga pelado, e quando chegaram ao fim do paredão sentiram que
dobrando a esquina e descendo a ladeira; na vanguarda caval- haviam chegado ao fim de suas aventuras. Voltaram-se e con-
gava o honesto estalajadeiro, corado pela ardente inocência do templaram a cidade.
rubor crepuscular. A cidade se transfigurara; era só alvoroço. Em toda a
— O mundo está doido! exclamou .o Professor e enterrou extensão da avenida atropelava-se uma turva e estrepitosa cor-
o rosto nas mãos. rente de seres humanos, com os braços agitados e os rostos
— Não, disse Dr. Buli com adamantina humildade, doido ferozes, a encará-los ameaçadoramente. A comprida e escura
estou eu. fileira estava ponteada de archotes e lanternas; mas mesmo on-
— Que vamos fazer? perguntou o Professor. de nenhuma chama alumiava uma cara enfurecida, eles pres-
— Neste momento, disse Syme com científico desprendi- sentiam, no perfil mais longínquo e no gesto mais indefinido, um
mento, vamos despedaçar-nos de encontro a um poste de luz. ódio organizado. Evidentemente eram malditos entre todos os
Um segundo depois o automóvel esbarrou, com catas- homens, mas não sabiam por quê.
trófico rangido, num objeto de ferro. No instante seguinte Como eles já haviam feito, dois ou três sujeitos, que pa-
quatro homens abriam caminho por entre os destroços metá- reciam pequenos e negros como macacos, pularam da calçada
licos, e um poste comprido e fino, que antes se erguia desem- e caíram na praia. Gritando horrivelmente e sulcando a areia
penado à margem da avenida litorânea, quedava-se agora cur- frouxa, tentaram estabanadamente ganhar o mar. O exemplo
vado e retorcido como o galho de uma árvore abatida. foi seguido, e toda a massa negra começou a escorrer e pingar
— Bem, alguma coisa destruímos, comentou o Professor, da calçada como negro melaço.
sorrindo pàlidamente. O que não deixa de ser um consolo. Entre os primeiros tipos da praia Syme reconheceu o al-
— Você está se tornando anarquista, disse Syme, enquan- deão que os transportara na carroça. Chafurdava na ressaca,
to, impelido por seu instinto de elegância, sacudia o pó da montado num possante cavalo de tiro, e ameaçava-os, bran-
roupa. dindo um machado.
— Todo mundo já o é, disse Ratcliffe.
— O camponês! berrou Syme. Eles não se levantam desde
Enquanto conversavam, o cavaleiro encanecido e seus se- a Idade Média.
quazes avizinhavam-se tonitruantes, e quase simultaneamente
uma escura multidão corria gritando ao longo da avenida. Syme — Ainda que a polícia chegue agora, disse melancòlica-
apanhou uma espada e agarrou-a nos dentes, prendeu duas mente o Professor, nada pode fazer com essa multidão.
outras debaixo dos sovacos, segurou uma quarta na mão es- — Tolice! exclamou Buli desesperado. Na cidade deve
querda e com a lanterna na mão direita pulou para a praia. ter ficado muita gente que é humana.
136 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 137

— Não, disse o desencantado Inspetor. O ser humano em — Não. Ê muito estranho, mas eu não estou completa-
breve se extinguira. Somos os últimos espécimes da huma- mente desesperado. Resta ainda uma vaga e louca esperança
nidade. que não me sai da cabeça. Todos os, podêres deste planeta
— Pode ser, disse o Professor distraidamente. Depois estão contra nós, e me espanta que sobreviva esta tola es-
acrescentou com sua voz sonhadora: O que é que está escrito perança.
no fim da Inepcíada de Pope? — Em que ou em quem se baseia sua esperança? pergun-
tou Syme curioso.
Nenhuma chama, pública ou privada, — Num homem que nunca vi, respondeu o outro, fitando
Nenhuma luz, divina ou maculada, o plúmbeo mar.
Fulge em teu Reino, oh Caos devorador! — Compreendo, disse Syme em voz baixa. O homem do
Morre a Luz sob teu verbo assolador. quarto escuro. Mas a esta hora já deve ter sido assassinado
Que baixes a cortina, grande Anarca, por Domingo.
Surja a treva total, que o mundo abarca! — Talvez, disse o outro com firmeza. Mas, nesse caso,
foi o único homem que Domingo achou duro de morrer.
— Ouvi o que você disse, falou o Professor, de costas.
— Silêncio! gritou Buli de repente. Os gendarmes vêm aí. Também estou agarrado a uma coisa que nunca vi.
De fato, na delegacia de polícia cruzavam-se vultos dili- De repente, Syme, que estava como que enlevado em
gentes, riscando e ofuscando as janelas iluminadas, e do centro visões introspectivas, volveu-se para os outros e gritou como
da escuridão vinha o ruído seco e metálico de uma disciplinada se despertasse:
cavalaria. — Onde está o Coronel? Pensei que estava conosco!
— Estão carregando sobre a multidão! gritou Buli entre — O Coronel! repetiu Buli. É verdade, que é feito do
extasiado e alarmado. Coronel?
— Não, disse Syme, estão formados na avenida. — Tinha ido falar com Renard, disse o Professor.
— Apontaram as carabinas, bradou Buli, dançando de — Não podemos abandoná-lo no meio dessas feras, bra-
alegria. dou Syme. Morramos como cavalheiros s e . . .
— Não tenha pena do Coronel, disse Ratcliffe com um
— Sim, disse Ratcliffe, e vão dispará-las contra nós. pálido sorriso de desdém. Êle está bem acomodado. Está...
Em meio a suas palavras soou um demorado crepitar de — Não, não, não! bradou Syme impaciente. O Coronel
fuzilaria e, diante deles, as balas saltitaram nas pedras como também? não! Não acredito!
saraivas. — Acredita em seus próprios olhos? perguntou o outro
— Os gendarmes uniram-se a eles! exclamou o Professor e apontou para a praia.
e deu uma palmada na testa. Muitos dos perseguidores, sacudindo os punhos, haviam
— Estou mesmo no cubículo, disse Buli convictamente. entrado na água, mas o mar bravio impedia-os de chegar ao
Houve um longo silêncio. Então, Ratcliffe, olhando para molhe. Contudo, dois ou três alcançaram o início da passagem
o encrespado mar purpúreo-acinzentado, falou: de pedra e pareciam adiantar-se cautelosamente. O clarão de
uma lanterna iluminou casualmente os rostos dos dois primei-
— Que importa saber quem está louco ou quem está ros. Um desses rostos trazia uma meia máscara preta, sob a
lúcido? Daqui a pouco estaremos todos mortos. qual a boca se contorcia com tal demência nervosa que a moita
Syme voltou-se para êle e perguntou: preta da barba se enrodilhava continuamente, como se fosse um
— Você está completamente desesperado, não é mesmo? ser vivo e inquieto. O outro era o rosto vermelho e o bigode
Mr. Ratcliffe guardou um mutismo pétreo; ao fim de al- branco do Coronel Ducroix. Ambos se consultavam grave-
guns instantes, porém, respondeu calmamente: mente.
138 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 139

— Sim, êle também, disse o Professor e sentou-se numa discurso de Syme jazia como desacordado, apoiando na mão
pedra. Tudo doido. E eu, doido! Não posso confiar no ma- a cabeça ferida, arrancou subitamente sua máscara preta.
quinismo de meu corpo. Sinto que minha mão pode erguer-se O pálido rosto, assim desnudado e exposto à claridade das
e bater-me. lâmpadas, revelava menos raiva que estupefação. O Secretário
— Quando minha mão se erguer, disse Syme, será para levantou a mão com impaciente autoridade.
bater em outro. E segurando numa das mãos a espada e na — Deve haver algum engano, disse êle. Mr. Syme, pare-
outra a lanterna, saiu pelo molhe ao encontro do Coronel. ce-me que você não se compenetra de sua situação. Está preso
Como se quisesse dissipar a derradeira esperança ou a em nome da lei.
derradeira dúvida, o Coronel, ao divisá-lo, apontou e disparou — Da lei? disse Syme deixando cair o cacete.
o revólver. O tiro não atingiu Syme, e sim a espada, par-
tindo-a rente à guarda. Syme arremessou-se e deu com a lan- — Da lei, sim, disse o Secretário. Sou detetive da Sco-
terna de ferro na cabeça do Coronel. tland Yard, e tirou do bolso um cartãozinho azul.
— Judas perante Herodes! gritou e derrubou o Coronel — E o que é que você pensa que nós somos? inquiriu
nas pedras. Em seguida virou-se para o Secretário cuja boca o Professor lançando os braços para o alto.
medonha estava quase espumando, e suspendeu a lanterna com — Vocês, disse firmemente o Secretário, vocês são, como
um gesto tão rígido e tão arrasador que o outro gelou por é do meu conhecimento, membros do Supremo Conselho Anar-
um momento e foi forçado a escutar. quista. Disfarçado como um de vocês, e u . . .
— Está vendo esta lanterna? bramiu Syme numa voz ter- Dr. Buli atirou sua espada ao mar.
rível. Está vendo a cruz gravada fora e a lâmpada queimando — Nunca houve nenhum Supremo Conselho Anarquis-
por dentro? Não foi gravada por você. Não foi acesa por você. ta, bradou. Éramos todos um magote de policiais idiotas vi-
Homens melhores do que você, homens que podiam crer e obe- giando-nos uns aos outros. E todo esse povo excelente que
decer, modelaram as entranhas do ferro e preservaram a legenda tem estado a azucrinar-nos com seus tiros pensava que éramos
do fogo. Não há uma rua por onde você anda, não há um os dinamite iros. Eu sabia que não podia estar enganado com
fio das roupas que você veste, que não tenha sido feito como as multidões, acrescentou Buli, dirigindo um olhar radiante para
esta lanterna, para negar sua filosofia de estéreo e ratazanas. a enorme turba que se espalhava ao longo da praia. As pessoas
Você não sabe fazer nada. Você só sabe destruir. Destruirá a comuns nunca são loucas. Sei disso, eu que sou uma pessoa
humanidade, destruirá o mundo, mas contente-se com isso. comum. Bem, agora vou para a terra. Pago um trago para
Porque esta velha lanterna cristã você não destruirá. Ela irá todos.
para onde o seu império de macacos jamais saberá encontrá-la.
E bateu uma vez com a lanterna no Secretário, fazendo-o
cambalear; depois, rodopiando-a duas vezes em volta da cabe-
ça, sacudiu-a no mar, onde ela fulgurou como um foguete e
afundou.
— Espadas! bradou Syme, voltando o rosto inflamado
para seus amigos. Carreguemos sobre esses cães. É chegada
nossa hora de morrer.
Os três companheiros seguiram-no de espada em punho.
A espada de Syme estava partida, mas êle, lançando por terra
um pescador, arrancou-lhe um cacete das mãos. Num mo-
mento eles se teriam arrojado para a multidão e perecido, mas
foram sustados por uma alteração. O Secretário, que desde o
CAPITULO XIII

A PERSEGUIÇÃO DO PRESIDENTE

Ao amanhecer, cinco sujeitos desconcertados mas risonhos


tomaram o barco para Dover. O pobre Coronel podia ter al-
guma razão para queixar-se, primeiro por ter sido levado a
combater por duas facções que não existiam e depois por ter
sido derreado por uma lanterna, mas era um cavalheiro mag-
nânimo e, confortado pela evidência de que as duas partes nada
tinham a ver com dinamite, despediu-se deles no molhe com
muita afabilidade.
Os cinco reconciliados detetives tinham uma centena de
ponnenores a esclarecer entre si. O Secretário contou a Syme
que foram obrigados a usar máscaras a fim de se aproximarem
do pretenso inimigo como companheiros de conspiração. Syme
expôs o motivo que os instigou a fugir tão desabaladamente atra-
vés de um país civilizado. Mas acima de todas essas questões, de
minúcias facilmente explicáveis, elevava-se a montanha central
da questão que eles não sabiam explicar. Que significava tudo
isso? Se eles eram inofensivos detetives, o que era Domingo?
E se Domingo não capturara o mundo, que diabo era que êle
tinha feito? Sobre isso o Inspetor Ratcliffe se conservava pes-
simista.
— Estou na mesma situação de vocês, diss» êle. Para
mim, esse joguinho de Domingo não tem pé nem cabeça. Mas
há uma coisa: Domingo pode ser o que quiser, menos um
cidadão inocente. Diabos o levem! Vocês se lembram da cara
dele?
— Confesso, que nunca pude esquecê-la, respondeu Syme.
— Está bem, disse o Secretário. Acho que muito breve
desvendaremos tudo, pois amanhã é dia de nossa reunião.
142 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 143

Desculpem-me, acrescentou com um sorriso pavoroso, de estar — Todos somos espiões! gritou Dr. Buli. Venha tomai
tão compenetrado dos meus deveres de Secretário. um trago.
— Creio que você tem razão, refletiu o Professor. Supo- De manhã, o batalhão dos seis aliados rumou impassível
nho que êle mesmo desvendará tudo para nós, mas confesso para o hotel de Leicester Square.
que recearia perguntar a Domingo quem êle é. — Isso é muito divertido, comentou Dr. Buli. Seis ho-
— Por quê? inquiriu o Secretário. Tem medo de bombas? mens vão perguntar a um homem o que êle é.
— Não, retrucou o Professor. Tenho medo de que êle — Parece-me que é mais esquisito que divertido, disse
me diga quem é. Syme. Parece-me que seis homens vão perguntar a um homem
— Vamos tomar um trago, convidou Dr. Buli, ao fim o que eles são.
de uma pausa. Em silêncio eles entraram na praça e, embora o hotel
Durante toda a viagem, de barco e de trem, eles se mos- estivesse localizado no canto oposto, viram num relance a mi-
traram imensamente sociáveis, mas instintivamente tratavam de núscula varanda e um vulto que parecia grande demais para
permanecer juntos. Dr. Buli, que fora sempre o otimista do ela. Estava só, sentado, com a cabeça inclinada, os olhos pre-
grupo, fêz o possível para persuadir os outros a tomarem em gados num jornal. Mas todos os seus conselheiros, que vinham
Vitória o mesmo fiacre; mas eles rejeitaram a proposta e par- com o propósito de destituí-lo, cruzaram a praça como se do
tiram num côche, em cuja boléia Dr. Buli logo se aboletou e céu centenas de olhos os observassem.
pôs-se a cantar. Acabaram a jornada num hotel de Piccadilly Haviam disputado demoradamente sobre a política que
Circus, de maneira a estarem perto de Leicester Square quando iriam seguir: deviam deixar de fora o desmascarado Gogol
amanhecesse. Entretanto, as aventuras do dia ainda não esta- e começar diplomaticamente, ou deviam levá-lo a deflagrar a
vam encerradas. Dr. Buli, descontente com a determinação ge- pólvora de uma vez? Por influência de Syme e Buli prevaleceu
ral de ir para a cama, saíra do hotel por volta das onze horas o último alvitre. Sem embargo, o Secretário quis saber porque
a fim de ver e admirar algumas das belezas de Londres. Con- os dois pretendiam atacar Domingo tão temeràriamente.
tudo, vinte minutos depois estava de volta, atroando o vestíbulo
com seus berros. Syme, que a princípio tentara silenciá-lo, viu- — Meus motivos são muito simples, explicou Syme. Pre-
se por fim obrigado a escutá-lo com renovada atenção. tendo atacá-lo temeràriamente porque tenho medo dele.
— Eu o vi! Garanto-lhe que o vi! exclamou Dr. Buli Seguindo os passos de Syme, subiram silenciosos a escada
com pesada ênfase. escura até que se acharam ao mesmo tempo sob a ampla cla-
— Quem? perguntou Syme de pronto. Não foi o Pre- ridade do sol da manhã e sob a ampla claridade do sorriso de
sidente!?! Domingo.
— Não, homem, não. Não ando tão azarado, disse Dr. — Encantado! disse este. Tenho muito prazer em vê-los.
Buli com uma risadinha desnecessária, não ando tão azarado Que dia maravilhoso! E o Czar? Morto?
assim. Eu o trouxe para cá. O Secretário, que se adiantara, empertigou-se para expro-
— Trouxe para cá? Mas quem? tornou Syme impaciente. brá-lo com dignidade.
— Oj>cabeludo, respondeu o outro lücidamente. O su- — Não, senhor, respondeu severamente. Não houve car-
jeito que bancava o homem cabeludo. Gogol! Ei-lo aqui. E nificina. Não lhe trago notícias de espetáculos tão desagra-
puxou por um relutante cotovelo o mesmo jovem que cinco dáveis.
dias antes saíra do Conselho com seus ralos cabelos vermelhos
e um rosto pálido, o primeiro de todos os falsos anarquistas a — Espetáculos desagradáveis? repetiu o Presidente, com
ser descoberto. um sorriso radiante e inquiridor. Que são espetáculos desa-
— Por que vocês me importunam? bradou o recém-che- gradáveis? Os óculos de Dr. Buli?
gado. Expulsaram-me como espião. O Secretário ficou um momento embaraçado e o Presi-
— Todos somos espiões! sussurrou Syme. dente prosseguiu num tom de leve censura:
144 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 145

— Naturalmente todos temos direito a nossas opiniões Antes que qualquer dos presentes pudesse mexer-se, o ho-
e até a nossos olhos, mas na realidade considerá-los desagra- mem colossal, como um imenso orangotango, se dependurara na
dáveis diante daquela pessoa que... balaustrada da varanda. Antes de cair, porém, suspendeu-se
Dr. Buli atirou os óculos na mesa, quebrando-os. como se praticasse numa barra horizontal e, fincando o queixo
— Meus óculos são indecentes, disse êle, mas eu não volumoso na balaustrada, disse solenemente:
sou. Olhe para minha cara. — Há, porém, uma coisa que vou dizer-lhes acerca de
— A meu ver é o tipo da cara que pode florescer numa minha identidade. Sou o homem do quarto escuro, o homem
pessoa, disse o Presidente. De fato, floresce em você. E quem que os fêz detetives.
sou eu para altercar com os frutos silvestres sobre a Árvore
da Vida? Pode ser que um dia ela floresça em mim. Quem Dito isto, jogou-se da varanda em baixo, dando pulos
sabe? elásticos no calçamento como uma desmesurada bola de bor-
— Não temos tempo para frioleiras, esbravejou selvage- racha e aos saltos ganhou o oitão do Alhambra, fêz um sinal
mente o Secretário. Viemos saber o que significa tudo isso. para um fiacre e pinotou para dentro. Os seis detetives que-
Quem é você? O que é você? Por que nos ajuntou aqui? Sabe daram fulminados e lívidos ao lampejo de sua última afirmação.
quem somos e o que somos? É você um excêntrico que se faz Mas quando o Presidente desapareceu no fiacre, o senso prático
de conspirador, ou um esperto que se faz de tolo? Respon- de Syme espertou. Imediatamente Syme transpôs a balaustrada,
da-me. saltando tão desastradamente que quase quebrava as pernas, e
— Dos candidatos, murmurou Domingo, exige-se apenas chamou outro fiacre.
que respondam oito dos dezessete quesitos do questionário. Êle e Buli tomaram o mesmo fiacre, o Professor e o Ins-
Tanto quanto pude entender, vocês querem que eu lhes diga petor entraram noutro, enquanto o Secretário e o ex-Gogol tre-
o que sou e o que são vocês, o que é esta mesa, o que é este param num terceiro, justamente a tempo de encalçarem o voan-
Conselho e o que é este mundo, enfim. Pois bem, atrever- te Syme, que, por seu turno, encalçava o voante Presidente.
me-ei a rasgar o véu de um destes mistérios. Se desejam saber Domingo levava-os, nessa caçada selvagem, para os lados do
o que são, direi que são um bando de asnos moços e sumamente noroeste, e seu cocheiro, evidentemente sob o influxo de indu-
bem intencionados. zimentos excepcionais, incitava o cavalo a uma velocidade pe-
— E você? perguntou Syme, avançando. Você o que é? rigosa. Mas Syme, que não estava para contemporizações, pôs-
— Eu? Que sou eu? rugiu o Presidente, e pouco a pouco se de pé, gritando "Pega ladrão!", até que as multidões acor-
elevou-se a uma altura inacreditável, como um enorme vagalhão reram e os guardas começaram a deter as pessoas e a interro-
a pique de arquear-se e rebentar sobre eles. Querem saber gá-las. Tudo isso teve influência sobre o cocheiro do Presi-
o que eu sou? Querem? Buli, você, que é um homem de ciência, dente, que logo ficou apreensivo e meteu o cavalo de trote.
cave em torno das raízes dessas árvores e descubra a verdade Abriu a portinhola para falar ponderadamente com seu passa-
que elas escondem. Syme, você que é um poeta, contemple geiro e largou o comprido chicote na boléia. Domingo incli-
e interrogue essas nuvens matutinas. Pois eu lhes digo que nou-se para a frente, segurou o chicote e arrancou-o brutal-
é mais fácil descobrir a verdade oculta na última árvore e na mente da mão do homem. Em seguida, pondo-se êle mesmo de
nuvem mais altaneira do que descobrir o que eu sou. Enten-
derão o mar, e eu permanecerei um enigma; saberão o que pé na boléia, deu de açoitar o cavalo e bramir com todas as
são as estrelas, mas não saberão o que eu sou. Desde o começo forças, de modo que passavam pelas ruas como um furacão.
do mundo todos os homens têm-me caçado como se caça um Através de ruas e praças rodava esse disparatado veículo, no
lobo: reis e sábios, poetas, legisladores, todas as igrejas e todos qual o passageiro fustigava o cavalo e o cocheiro tentava furio-
os filósofos. Nunca me agarraram, e os céus se despenharão samente sofreá-lo. Os três outros fiacres perseguiam-no (se a
no dia em que me vir em apuros. De todos tenho escapado e comparação é válida para fiacres) como galgos arquejantes. Lo-
a todos tenho confundido. E agora farei a mesma coisa. jas e ruas sucediam-se como setas zunidoras.
146 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 147
No auge da corrida, Domingo voltou-se no guarda-lama Os três cocheiros, que se tinham aturdido por um ins-
em que se encontrava e mostrando a cara imensa, com os tante, chicotearam seus cavalos e em breve diminuíram o espaço
dentes arreganhados, os cabelos brancos esvoaçando no vento, que os separava de sua caça fugitiva. O Presidente deu por
dirigiu a seus perseguidores uma tremenda careta, como um essa proximidade e, vindo para a traseira do carro, inclinou-se
ouriço-cacheiro colossal. Então, erguendo àgilmente a mão inúmeras vezes, beijou as mãos e, ao fim dessas mesuras, atirou
direita, atirou uma bola de papel no rosto de Syme e reco- um bilhete, elegantemente dobrado, no peito do Inspetor Rat-
lheu-se ao fiacre. Conquanto instintivamente desconfiado, Syme cliffe. Quando este cavalheiro o desenrolou, não sem impa-
apanhou-a e descobriu que ela consistia em dois papeluchos ciência, leu estas palavras:
amarrotados. Um trazia seu nome e o outro o de Dr. Buli.
Ao seu nome juntava-se uma extensa e de certo modo irônica Foge imediatamente. Já se sabe da verdade sobre teus
enfiada de letras. O sobrescrito de Dr. Buli era, no fim de suspensórios. — Um amigo.
contas, consideravelmente maior do que a mensagem, pois que
esta se reduzia às palavras:
O carro de bombeiros seguia para o norte, rumo a uma
região que eles não identificavam. E quando passava ao longo
Que é feito de Martin Tupper agora? de uma fileira de altos paredões sombreados pelas árvores,
os seis amigos viram com surpresa, mas também com satisfa-
— Que quer dizer esse velho maníaco? perguntou Buli, ção, que o Presidente saltava do veículo. Mas não sabiam se
encarando o papel. Que diz o seu, Syme? deviam atribuir tal ato ao capricho presidencial ou aos reite-
A mensagem de Syme era, sem dúvida, muito mais prolixa rados protestos dos seus hospedeiros. Contudo, antes que os
e rezava o seguinte: três fiacres o alcançassem, êle, como um imenso gato pardo
já havia galgado o paredão e se esvaecera na treva da fo-
Ninguém mais do que eu lamentaria qualquer inter- lhagem.
ferência do Arquidiácono. Espero que as coisas não che- Syme, enfurecido, mandou parar seu fiacre, desmontou e
guem a este ponto. Mas, pela última vez, onde estão suas lançou-se também à escalada. Quando tinha uma perna sobre
galochas? A coisa está preta, especialmente depois do que o muro, volveu para seus amigos um rosto que na sombra
disse o tio. pareceu extremamente pálido.
— Que lugar será este? perguntou-lhes. Será a casa desse
O cocheiro do Presidente parecia estar readquirindo certo velho diabo? Ouvi dizer que êle tem uma casa no norte de
domínio sobre seu cavalo, e os perseguidores estavam mais pró- Londres.
ximos quando enveredaram por Edgware Road. E aqui ocorreu — Tanto melhor, disse sombriamente o Secretário, colo-
uma interrupção que os aliados julgaram providencial. Todo cando um pé no estribo. Nós o encontraremos em casa.
o tráfego derivava para a direita ou para a esquerda, ou esta- — Não, não é isso, tornou Syme, franzindo as sobran-
cionava, porque do extremo da rua vinha o ruído inconfundível celhas. Ouço os ruídos mais horríveis, como diabos rindo, es-
do carro de bombeiros, que em poucos segundos passou em pirrando e assoando os diabólicos narizes!
disparada como um raio de bronze. Apesar de toda a veloci- — Naturalmente são seus cães que estão ladrando, alvi-
dade, Domingo saltou do fiacre, pulou para o carro, subiu, trou o Secretário.
aprumou-se e foi visto, ao desaparecer na estrepitosa distância, — Por que não diz que são escaravelhos negros que estão
falando ao atônito bombeiro com gestos explicativos. ladrando?! respondeu Syme furiosamente. Ou caracóis ladran-
— Depressa! A êle! uivou Syme. Não pode sumir-se ago- do?! Gerânios ladrando?! Você já ouviu um cão ladrar desse
ra. Um carro de bombeiros não engana ninguém. jeito?
148 G. K. CHESTERTON
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 149
Levantou a mão e imediatamente subiu da mata um de- Não havia dúvida. Cerca de duzentas jardas adiante, pelo
morado grunhido que parecia meter-se debaixo da pele e gelar relvado, uma multidão ululante debalde acossava um enorme
a carne — um grunhido abafado e horripilante que provocava elefante pardo, que corria com passadas terrivelmente largas,
uma palpitação no ar. de tromba empinada e rija como um gurupés, trombeteando co-
— Os cães de Domingo não devem ser cães comuns, disse mo a trombeta da condenação. No dorso desse animal osci-
Gogol e estremeceu. lante e bramador, repoltreava-se o Presidente Domingo com to-
Syme já estava do outro lado, mas ainda escutava com da a placidez de um sultão; mas, com algum objeto afiado, agui-
impaciência. lhoava a fera, instigando-a a uma carreira desenfreada.
— Escutem, disse êle. Isso pode ser um cão? Quem é — Façam-no parar! gritava a turba. Êle vai sair pelo
que tem um cão dessa espécie? portão.
Rebentara um rouco alarido, imitante às súplicas e cla- — Como se pode parar um desmoronamento? disse o
mores de seres condenados. Depois, ouviram, longínquo como guarda. Êle já saiu pelo portão!
um eco, um som igual ao de um clarim roufenho.
— A casa dele deve ser o inferno! exclamou o Secretário. E, no momento mesmo em que falava, um derradeiro es-
E se é o inferno, eu vou entrar! e quase de um pulo atravessou trondo e um urro de terror anunciaram que o enorme elefante
o paredão. pardo havia derrubado o portão do Jardim Zoológico e desem-
Os outros seguiram-no. Caíram num emaranhado de plan- bestava por Albany Street como novo e rápido tipo de ônibus.
tas e arbustos e foram sair numa vereda. Nada lhes chamou — Deus Onipotente! bradou Buli. Nunca vi um ele-
a atenção, mas subitamente Dr. Buli bradou: fante tão veloz. Voltemos aos fiacres, se não queremos perder
— Ora, seus burros! Isso aqui é o Jardim Zoológico! de vista o Presidente.
Enquanto eles ansiosamente procuravam qualquer indício Quando corriam para o portão por onde o elefante tinha
de sua caça fugidia, um guarda uniformizado surgiu correndo desaparecido, Syme sentiu-se deslumbrado com o panorama dos
estranhos animais entrevistos nas jaulas, de passagem. Mais
no caminho, acompanhado de outro homem à paisana. tarde, achou esquisito que os tivesse visto tão claramente. Re-
— Êle passou por aqui? perguntou o guarda ofegante. cordou-se especialmente dos pelicanos, de papos absurdos, pen-
— Quem? inquiriu Syme. dentes. Perguntou a si mesmo porque o pelicano era o símbolo
— O elefante! gritou o guarda. Um elefante que enlou- da caridade, quando era necessária muita caridade para admi-
queceu e fugiu! rar um pelicano. Lembrou-se também do bucero, que era sim-
— Fugiu carregando um senhor idoso, explicou o outro plesmente um vastíssimo bico amarelo carregando atrás de si
estranho, arfando. Um pobre velho dos cabelos brancos. um minúsculo pássaro. Tudo isso lhe proporcionou a sensa-
ção, cujo vigor não sabia explicar, de que a Natureza entre-
— Qual era o tipo desse velho? interrogou Syme com gava-se de contínuo a divertimentos misteriosos. Domingo lhes
incontida curiosidade. dissera que eles o entenderiam quando tivessem entendido as
— Um velho bem alto e bem gordo, de terno cinza claro, estrelas. Syme perguntava a si mesmo se os próprios arcanjos
informou sôfregamente o guarda. poderiam entender o bucero.
— Bem, começou Syme, se esse velho é mesmo desse Os seis inditosos detetives meteram-se nos fiacres e foram
tipo, se você está absolutamente certo de que se trata de um no encalço do elefante, compartilhando do terror que êle es-
velho bem gordo e bem alto, de terno cinza, pode ter a certeza palhava pelas ruas. Nesse momento, Domingo não se voltava
de que o elefante não fugiu com êle. Foi êle que fugiu com para fitá-los, mas oferecia-lhes a sólida extensão de suas costas
o elefante. O elefante que pudesse levá-lo sem que êle con- cegas, que os enlouqueciam mais do que suas anteriores cha-
sentisse em fugir ainda não foi feito por Deus. Raios o partam, cotas. Todavia, pouco antes de alcançarem Baker Street, viram-
lá está êle! no atirar qualquer coisa para o alto, como o menino que
150 G. K. CHESTERTON O MOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 151

lança uma bola ao ar e se prepara para recebê-la de volta. um cavalheiro engraçado. Pediu que eu lhe segurasse o cavalo,
Mas na velocidade em que iam, ela veio cair muito atrás, bem e me entregou isso.
perto do fiacre em que viajava Gogol; e este, movido ou pela E estendeu, com repugnância, um pedaço de papel dobra-
débil esperança de encontrar uma pista ou por algum impulso do, dirigido Ao Secretário do Conselho Central Anarquista.
incompreensível, mandou parar o fiacre para ir apanhá-la. Era
uma volumosa bola de papel, a êle dirigida. Ao examiná-la, O Secretário, enraivecido, abriu-o e leu o que estava es-
porém, notou que todo o seu volume consistia em trinta e crito:
três pedaços de papel velho enrolados uns sobre os outros.
Depois de rasgada a última capa, tudo se reduziu a uma tirinha Quando o arenque vai na corrente,
de papel, na qual estava escrito: O Secretário ri contente;
Quando o arenque voa e pinota,
Parece que a palavra deve ser: rosa. O Secretário bate a bota.
Provérbio Rústico.
O homem que antes se chamava Gogol não disse nada,
mas os movimentos de suas mãos e de seus pés foram os de — Ora bolas! começou o Secretário. Por que você deixou
quem esporeia um cavalo. que êle entrasse? É comum visitarem sua exposição pessoas
Ruas e mais ruas, bairros e mais bairros, eram percorridos montadas em elefantes malucos? É?
pelo prodigioso elefante voador, que atraía multidões às ja-
— Vejam! gritou Syme. Olhem aquilo ali!
nelas e separava o tráfego para a direita e para a esquerda.
E atrás dele, colaborando nesta insana publicidade, corriam — Olhar o quê? volveu o Secretário afobadíssimo.
desapoderadamente os três fiacres. Não tardou que fossem to- — O baião cativo! disse Syme, apontando frenèticamente.
mados por participantes de um desfile ou mesmo de um anúncio — Por que eu devo olhar para um balão cativo? bradou
de circo. Na pressa em que iam, encurtavam incrivelmente as o Secretário. O que é que há de extraordinário num balão
distâncias, e Syme viu o Albert Hall em Kensington quando cativo?
se julgava ainda em Paddington. O elefante avançou mais ágil
— Nada, disse Syme, só que esse não é cativo.
e livremente através das ruas vazias e aristocráticas de South
Kensington e por fim endireitou para aquela parte do hori- Todos ergueram os olhos. Sobre a Exposição, o balão
zonte onde a enorme roda de Earl's Court se elevava no Ar- pairava enfunado, amarrado a um cordel, como um balão de
mamento. A roda pouco a pouco foi-se tornado maior, até que brinquedo. Um segundo depois, o cordel se partiu, justamente
encheu todo o céu como a roda das estrelas. debaixo da cesta, e o balão, solto, pôs-se a flutuar, erradio como
uma bôlhã de sabão.
A fera derrotou os fiacres. Eles perderam-na de vista, de-
sorientados pelas inúmeras esquinas. Quando se acharam em — Com seiscentos mil diabos! guinchou o Secretário. Êle
frente a um dos portões da Exposição de EarPs Court viram- se meteu ali dentro! e fechou os punhos contra o céu.
se bloqueados por uma grande multidão, reunida em torno de O balão, carregado talvez por alguma brisa passageira,
um enorme elefante que resfolegava e se sacudia, como cos- veio colocar-se precisamente em cima deles, e foi-lhes fácil en-
tumam fazer essas criaturas disformes. Mas o Presidente havia xergar a enorme cabeça branca do Presidente, que os espreitava
desaparecido. com um olhar benévolo.
— E o homem, para onde foi? inquiriu Syme, escorre- — Deus me proteja! disse o Professor com a inflexão
gando para o chão. senil que nunca pôde desligar de sua barba esbranquiçada e de
— Embarafustou pela Exposição a dentro! respondeu o seu rosto apergaminhado. Deus me proteja! Parece que senti
guarda, embaraçado. E acrescentou com um ar ofendido: É alguma coisa cair na copa do meu chapéu.
152 G. K. CHESTERTON

Levantou uma trêmula mão e da aba do chapéu tirou


um papelzinho amarfanhado. Abriu-o negligentemente, apenas
para deparar com o desenho de um nó cego e as palavras:

Tua beleza não me deixou indiferente. — Narciso.

Houve um curto silêncio, e depois Syme falou, mordendo


o beiço: CAPITULO XIV
— Ainda não estou vencido. Esse maldito balão tem que
cair em alguma parte. Sigamo-lo!
OS SEIS FILÓSOFOS

Cruzando campinas verdejantes e transpondo sebes vivas,


os seis poeirentos detetives afastaram-se cerca de cinco milhas
de Londres. No começo da caminhada, o otimista do grupo
sugerira que seguissem o balão, por todo o sul da Inglaterra,
nos fiaores. Mas logo convenceu-se da persistente recusa do
balão a seguir as estradas e da muito mais persistente recusa
dos cocheiros a seguir o balão. Conseqüentemente, os incan-
sáveis posto que exasperados viajantes atravessaram bosques es-
curos e palmilharam terrenos cultivados, até que cada um se
transmudou numa figura tão desalinhada que podia ser con-
fundida com a de um vagabundo. As verdes colinas de Surrey
testemunharam o trágico desfecho do admirável terno cinza-
claro com que Syme havia saído de Saffron Park. O chapéu
de seda, amassado por um ramo travesso, descera ao nariz, a
sobrecasaca, graças a espinhos agressivos, rasgara-se nos om-
bros, e o barro inglês enlameara seu colarinho; mas êle fazia
avançar a barbicha amarela com taciturna e furiosa obstinação,
sem tirar os olhos daquela flutuante bola de gás, que na ver-
melhidão do ocaso parecia enfeitada como uma nuvem cre-
puscular.
— A despeito de tudo, comentou Syme, não deixa de
ser muito bonito!
— Muito! De uma beleza estranha e singular! disse o
Professor. Eu quero é ver explodir essa estúpida bola de gás,
— Não, atalhou Dr. Buli. Eu não quero não. Isso podia
arrebentar o velhote.
— Que arrebente! redargüiu o vingativo Professor. Que
arrebente! Não ficaria tão arrebentado como no dia em que
eu pudesse abecá-lo. Narciso!
154 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 155

— Apesar de tudo, não quero vê-lo arrebentado, disse assim, altas colinas?" Sim, as colinas saltam mesmo... bom,
Dr. Buli. ao menos tentam... Porque admiro Domingo?... Como po-
— O quê? bradou amargamente o Secretário. Você acre- derei dizer-lhes?... Porque êle é tal qual um Saltimbanco.
dita mesmo naquela história de êle ser também o homem do Houve uma longa pausa, e depois o Secretário tomou a
quarto escuro? Domingo seria capaz de inventar que era qual- palavra e falou com um tom de voz estranhamente, torturado:
quer coisa. — Você não sabe quem é Domingo. Talvez seja por
— Não sei se acredito ou não acredito, disse Dr. Buli. que você é melhor do que eu e não conhece o inferno. Desde
Mas não é a isso que me refiro. Não quero que se dê uma pequeno eu sou elemento deletério e meio doentio. O homem
explosão no balão do velho Domingo porque... que vive na escuridão e que nos escolheu a todos, escolheu-me
— Por quê? indagou Syme impaciente. porque eu tenho o ar desvairado de um conspirador, porque
— Bem, porque êle mesmo é tão engraçado como um meu sorriso é torto, porque meus olhos têm um brilho turvo,
balão, continuou Dr. Buli, atrapalhado. Não entendo patavina mesmo quando estou alegre. Mas também deve haver em mim
desse negócio de ser êle o mesmo homem que nos deu os algo que corresponda ao sistema nervoso de todos esses anar-
cartões azuis. Parece-me que isso torna tudo absurdo. Mas quistas. Quando vi Domingo pela primeira vez, não tive dele
confesso que sempre tive minhas simpatias pelo velho Domingo, essa impressão de aérea vitalidade, mas de algo grosseiro e
malvado como é. É como se êle fosse um garoto gorducho triste, inerente à natureza das coisas. Encontrei-o fumando
e levado da breca. Como posso explicar esta minha esquisita num cômodo lôbrego, com as janelas cerradas, um lugar infini-
simpatia? O certo é que ela não me impediria de combatê-lo tamente mais aviltante do que a divertida escuridão em que
até no inferno! Será que me torno mais claro dizendo que vive nosso chefe. Estava sentado num banco, um monte de
gostava dele porque êle era tão gordo? carne, escuro e amorfo. Ouviu minhas palavras sem falar nem
se mover. Lancei os apelos mais veementes e fiz as mais elo-
— Não, isso não esclarece coisa nenhuma, disse o Se- qüentes perguntas. Então, após longo silêncio, a Coisa come-
cretário. çou a mover-se, e eu julguei-a movida por uma enfermidade
— Ah, já sei porque era! exclamou Buli. É porque êle secreta. Movia-se como uma gelatina asquerosa, mas viva.
era tão gordo e tão leve. Exatamente como um balão. A gente No instante lembrei-me de tudo que tinha lido a respeito desses
acha sempre que as pessoas gordas são pesadas, mas êle eu corpúsculos repugnantes que constituem a origem da vida: se-
acho que poderia dançar ao lado de uma sílfide. Agora sei o res marinhos e protoplasmas. Parecia tomar a forma final de
que quero dizer. A força moderada se manifesta pela violência, toda matéria, a mais extravagante, a mais vergonhosa. Diante
enquanto a força suprema está na leveza. Isso faz lembrar as de seus estremecimentos, disse de mim para mim que era já
velhas especulações: que aconteceria se um elefante pudesse alguma coisa que tal monstro pudesse sentir-se miserável. Foi
adejar no espaço como um gafanhoto? quando me dei conta de que aquela montanha bestial estava se
— Nosso elefante, disse Syme levantando os olhos, adeja sacudindo de riso solitário, e era de mim que ela ria. E você
no espaço como um gafanhoto. ainda vem pedir-me para perdoá-lo!?! Não é pouco sermos
— E por isso, concluiu Buli, é que não posso deixar de ridicularizados por alguma coisa que é ao mesmo tempo infe-
admirar o velho Domingo. Não, não é uma admiração pela rior e mais forte do que nós.
força, ou qualquer tolice dessa ordem. Há nisso uma espécie — Por certo vocês estão exagerando demais, interrompeu
de alegria, como se êle trouxesse algumas boas novas. Nunca a voz clara do Inspetor Ratcliffe. O Presidente Domingo é um
sentiram isso num dia de primavera? É verdade que a natureza troço terrível para a inteligência, mas fisicamente não é essa
gosta de fazer das suas, mas, seja como fôr, um dia de prima- curiosidade Barnum que vocês apregoam. Êle me recebeu num
vera prova que suas brincadeiras são de muito bom gosto. Eu gabinete comum, vestido com um casaco de xadrez cinzento,
mesmo nunca li a Bíblia, mas aquela passagem, de que os em pleno dia. Falou-me de maneira simples. Mas vou dizer-lhe
outros tanto se riem, é uma verdade integral: "Por que saltais o que é que chama um pouco a atenção em Domingo. Seu
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 157
156 G. K. CHESTERTON

— Mas vamos assim mesmo. Uma noite em que eu


quarto é asseado, suas roupas são asseadas, tudo parece em caminhava por uma estrada, divisei uma lâmpada, uma janela
ordem; mas ele é distraído. Às vezes seus grandes olhos fu- iluminada e uma nuvem, que juntas formavam um rosto in-
gurantes ficam completamente cegos. Durante horas êle es- teiro e inconfundível. Se alguém no céu tiver um rosto como
quece que você está presente. Reparem que a distração é peri- esse eu o reconhecerei. Entretanto, quando dei mais alguns
gosa num sujeito mau. Para nós o malvado é um homem que passos, verifiquei que não havia rosto, que a janela estava a
está sempre atento ao que se passa à sua roda. Não podemos dez jardas de distância, que a lâmpada estava a dez centenas
imaginar um malvado que seja honesta e sinceramente um de- de jardas e que a nuvem estava muito além do mundo. Da
vaneador, porque não podemos imaginar um malvado sozinho mesma maneira me escapou o rosto de Domingo; correu para
consigo mesmo. Um homem distraído é um homem afável. a direita e para a esquerda, como fazem essas miragens for-
É um homem que, ao dar pela nossa presença, nos pede des- tuitas. E assim, o rosto dele forçou-me, de certo modo, a du-
culpas. Mas como imaginar um homem distraído que, ao dar vidar da existência de qualquer rosto. Não sei se o seu rosto,
pela nossa presença, nos mata? É isso que irrita os nervos, Buli, é um rosto ou uma combinação de perspectivas. Talvez
essa combinação de alheamento e crueldade. Algumas vezes, um disco negro daqueles seus óculos brutais estivesse bem per-
atravessando florestas virgens, os homens experimentaram essa tinho e o outro cinqüenta milhas além. Ah, as dúvidas do ma-
sensação, pois sabiam-se cercados de animais inocentes e im- terialista não passam de tolices! Domingo me ensinou as piores
piedosos, que tanto podiam ignorá-los como matá-los. Quem dúvidas, as mais dolorosas, as dúvidas de um espiritualista.
seria capaz de passar dez horas mortais numa sala em compa- Sou um budista, suponho; e o budismo não é um credo, é
nhia de um tigre distraído? uma dúvida. Meu pobre Buli, não creio que você possua real-
— E você, Gogol, que pensa de Domingo? perguntou mente um rosto. Não tenho bastante fé para crer na matéria.
Syme.
— Em princípio, disse Gogol singelamente, não penso em Os olhos de Syme continuavam fixos no orbe errante, que,
Domingo, do mesmo modo que não encaro o sol ao meio-dia. avermelhado pelos reflexos do pôr do sol, parecia um mundo
— Está bem, isso é um ponto de vista, disse Syme pen- mais róseo e mais inocente.
sativo. E você, que diz, Professor? — Vocês observaram uma particularidade interessante em
O Professor caminhava de cabeça baixa, arrastando a ben- todos os seus depoimentos? perguntou Syme. Cada um de vo-
gala, e não deu resposta. cês vê Domingo de uma maneira bem diferente; entretanto cada
um só achou uma coisa com que compará-lo: o próprio uni
— Acorde, Professor! disse Syme alegremente. Diga-nos verso. Para Buli êle é como a terra na primavera, para Gogol
o que pensa de Domingo.
é o sol ao meio-dia. O Secretário recordou o protoplasma in-
O Professor pôs-se, enfim, a falar com muita lentidão. forme, e o Inspetor a solidão das florestas virgens. O Professor
— O que eu penso não sei exprimir claramente. Ou me- diz que Domingo é como uma paisagem mutável, É estranho,
lhor, nem posso pensá-lo claramente. Mas é mais ou menos o mas é ainda mais estranho que eu também faça do Presidente
seguinte. Como vocês sabem, em minha juventude levei uma Uma idéia original, e que também compare Domingo com o
vida muito ampla e muito desarrumada. Pois bem, quando vi universo.
a cara de Domingo, acheia-a, como todo o mundo acha, muito — Ande um pouco mais depressa, Syme, disse Buli. Não
ampla mas também bastante desarrumada. A cara era tão se importe com o balão.
grande que ninguém poderia enfocá-la ou vê-la como uma cara. — Quando vi Domingo pela primeira vez, continuou Sy-
O olho estava tão afastado do nariz, que já não era olho. A
me lentamente, só via as costas. E vendo-as, pressentia que
boca era tão individualizada que se poderia tomá-la por uma
êle era o sujeito pior do mundo. Seu pescoço e seus ombros
coisa à parte. Tudo isso é muito difícil de explicar.
eram brutais, como os de um deus simiesco. Sua cabeça tinha
Parou um pouco, arrastando sempre a bengala, e pros- um toitiço difícil de imaginar num homem. Parecia mais o
seguiu:
158 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 159

toitiço de um boi. De fato, logo me passou pela cabeça a re- — Horrível não é o termo, disse Syme. Foi exatamente
voltante fantasia de que ele não era um homem, mas uma fera o pior instante da minha vida. E dez minutos depois, quan-
vestida com as roupas dos homens. do botou a cabeça fora do fiacre e fêz uma careta parecida com
— Vamos! disse Dr. Buli. uma gárgula, percebi que êle se portava como um pai brincan-
do de esconder com seus filhos.
— Foi então que aconteceu o inesperado. Eu vira suas — Essa brincadeira está indo longe demais, observou o
costas, da rua, quando êle estava sentado na varanda. Depois Secretário, e franziu a testa ao contemplar suas botas estragadas.
entrei no hotel e, ficando diante dele, vi seu rosto em plena — Mas escutem! gritou Syme com extraordinária ênfase.
claridade. Seu rosto me assustou, como assustou todo o mundo, Vou dizer-lhes qual é o segredo do mundo. É que do mundo
mas não porque fosse brutal, não porque fosse mau. Ao con- só conhecemos as costas. Tudo é visto por trás, e por isso pa-
trário, assustou-me porque era belo, porque era bom. rece brutal. Isso não é uma árvore, mas as costas de uma ár-
— Syme! exclamou o Secretário. Você está se sentindo vore. Aquilo não é uma nuvem, mas as costas de uma nuvem.
bem? Não vêem que tudo está voltado de costas e esconde o rosto?
— Era como o rosto de um antigo arcanjo, distribuindo Se pudéssemos dar a volta e ficar de frente...
justiça depois de guerras heróicas. Havia riso nos seus olhos, — Vejam! berrou Buli esganiçadamente. O balão vem
e em sua boca honra e tristeza. Lá estavam os mesmos cabelos caindo!
brancos, os mesmos ombros enormes, vestidos de cinzento, que Não havia necessidade de gritar por Syme, porque êle não
eu contemplara da rua. Mas, ao vê-lo da rua, convenci-me de tinha tirado os olhos do balão. Viu o grande globo luminoso
que êle era um animal, e quando me vi diante dele compreendi vacilar no céu, endireitar-se e depois mergulhar vagarosamente
que êle era um deus. atrás das árvores, como um sol que se põe.
— Pan, observou sonhadoramente o Professor, era um deus O homem chamado Gogol, que quase não falara durante
e um animal. essas estafantes jornadas, atirou de repente as mãos para o alto,
— Desde então, continuou Syme como se falasse consigo feito uma alma penada.
mesmo, esse tem sido para mim o mistério de Domingo, e é — Êle morreu! exclamou. E agora eu sei que êle era
também o mistério do mundo. Quando olho para suas costas meu amigo, e vivia no quarto escuro!
horrorosas tenho a impressão de que seu rosto nobre é apenas — Morreu!? roncou o Secretário. Vocês não o verão
uma máscara. Mas se lhe vejo o rosto, mesmo de relance, fico morto assim tão facilmente. Se foi jogado para fora da cesta,
a pensar que as costas são uma simples zombaria. O mal é tão nós o encontraremos espojando-se no chão como um potro e
mau que só podemos julgar o bem um acidente; o bem é tão escoiceando o vento, para se divertir.
bom que somos levados a crer que o mal poderia ser explica-
do. Mas tudo isso atingiu o auge ontem, quando persegui Do- — E castanholando os cascos, disse o Professor. Os pro-
mingo no fiacre e me coloquei atrás dele todo o percurso. tros fazem assim, e Pan também fazia.
— E você ainda teve flmpo para pensar? perguntou Rat- — Pan outra vez? disse irrittio Dr. Buli. Você parece
cliffe. pensar que Pan é tudo.
— Tempo suficiente, replicou Syme, para um pensamento — E é mesmo, disse o Professor. Em grego, Pan quer
sinistro. De repente apoderou-se de mim a idéia de que aquele dizer: tudo.
toitiço cego, liso, era realmente seu rosto, um rosto terrível, sem — Não se esqueça, sentenciou o Secretário baixando a
olhos, que me fitava. E admiti que aquela figura que corria à vista, de que êle também significa Pânico.
minha frente era realmente uma figura que corria de costas, Syme, que estivera absorto, sem ouvir nenhuma dessas fra-
dançando enquanto corria. ses, falou com naturalidade:
— Horrível! exclamou Dr. Buli sobressaltado. — Caiu ali adiante! Vamos para lá!
160 G. K. C H E S T E R T O N O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 161

E acrescentou, com um gesto de desconsolo: longa fileira de carruagens, semelhantes àquelas que se vêem
— Agora se ele nos enganou e morreu, hem? Seria mais nas proximidades das casas de Park Lane. Ao lado das carrua-
uma de suas pilhérias. gens perfilavam-se magníficos lacaios. Todos trajavam unifor-
Com renovada energia encaminhou-se para as árvores dis- me azul-cinza e todos revelavam uma certa categoria de altivez
tantes. Seus trapos e retalhos esvoaçavam ao vento. Os outros e liberdade que habitualmente não se distingue nos lacaios de
seguiram-no a passo mais vagaroso e num ar de dúvida. Quase um fidalgo e sim nos oficiais e embaixadores dum grande mo-
simultaneamente os seis descobriram que não estavam sós na- narca. Nada menos de seis carruagens estavam à espera, uma
quele sítio. para cada componente do bando andrajoso e miserável. Todos
Pelo relvado caminhava, em direção a eles, um homem alto, os servos (como acontece nas cortes) traziam espadas à cinta
curvado sobre um báculo comprido e estranho como um cetro. e as desembainhavam para saudar, com um breve resplendor de
Vestia-se com apuro, mas usava bragas, à moda antiga. A côr aço, cada um que entrasse na carruagem.
do traje era aquele matiz tirante a azul, violeta e cinza, que se — Que significa tudo isso? perguntou Buli a Syme quan-
vê em certos recantos da mata. À primeira vista e levando-se do se separavam. É outra das brincadeiras de Domingo?
em conta suas bragas, tinha-se a impressão de que seu cabelo — Sei lá? respondeu Syme enquanto afundava extenuado
grisalho fora empoado. Marchava tranqüilamente; se não fosse nas almofadas de sua carruagem. Mas se fôr, é uma daquelas
a neve prateada de sua cabeça, êle poderia ser tido com uma brincadeiras de que você fala. É uma brincadeira de bom gosto.
das sombras do bosque.
Os seis aventureiros tinham passado por muitas aventuras,
— Cavalheiros, disse êle, uma carruagem de meu patrão mas nenhuma os impressionara tão fortemente como esta últi-
os espera aqui perto, na estrada. ma aventura do conforto. Todos eles estavam afeitos a aspe-
— Quem é seu patrão? perguntou Syme, quedando-se rezas; esta repentina suavidade os perturbava. Não podiam
imóvel. sequer imaginar o que eram as carruagens; era-lhes suficiente
— Informaram-me que os senhores sabiam o nome dele, saber que eram carruagens, e carruagens com almofadas. Tam-
respondeu o homem respeitosamente. bém não podiam supor quem era o ancião que os havia condu-
Depois de uma pausa, falou o Secretário: zido; mas bastava-lhes a certeza de que fora êle quem os con-
— Onde está essa carruagem? duzira para as carruagens.
— Ela os aguarda desde alguns momentos, disse o estra- Syme deixava-se levar, em total abandono, através da mo-
nho. Meu patrão acaba de entrar em casa. vediça escuridão do arvoredo. Era próprio dele que enquanto ti
Syme esquadrinhou o recesso do bosque virente em que vesse de abrir caminho com sua barbicha êle o fizesse com fú-
se encontrava. As sebes eram sebes comuns, as árvores pare- ria e determinação, e logo que o encargo lhe fosse tirado das
ciam árvores comuns; entretanto, êle se sentia como alguém que mãos êle se derreasse nas almofadas, vencido por um verdadeiro
tivesse caido prisioneiro no país das fadas. colapso.
Examinou o misterioso embaixador dos pés à cabeça, mas Muito lenta e vagamente deu tento das estradas suntuosas
apenas descobriu que o casaco do homem era da mesma côr das por onde a carruagem o transportava. Viu que atravessavam os
sombras purpúreas e que o rosto era da mesma côr do céu ru- portões de pedra do que podia ser um parque, e gradualmente
bro, escuro e dourado. subiam uma colina que, embora arborizada de ambos os lados,
— Mostre-nos o lugar, disse Syme lacônicamente. E sem era um pouco mais ordenada que uma floresta. Então começou
uma palavra o homem do casaco violeta deu as costas e se di- a tomar conta dele, como de um homem que lentamente desper-
rigiu para uma abertura da sebe, que de súbito revelou a bran- ta de um sono reparador, uma sensação de prazer integral. Sen-
ca luminosidade de uma estrada. tiu que as sebes eram o que as sebes devem ser: muros vivos;
Quando os seis extraviados chegaram a essa passagem, que uma sebe é como um exército humano, disciplinado mas
viram a branca estrada obstruída pelo que lhes pareceu ser uma vivo. Viu os altivos olmos que se elevavam atrás das sebes e
162 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 163

vagamente pensou nos meninos felizes que trepavam neles. De- — Faisão frio é uma coisa boa, disse Syme pensativo, e
pois a carruagem tomou por um atalho, e êle avistou, de súbi Borgonha é uma coisa supinamente boa. Mas o fato é que
to, mas sossegadamente, algo que se assemelhava a uma exten- eles não me apetecem tanto quanto me apetece saber que diabo
sa e baixa nuvem crepuscular e que era uma casa extensa e significa tudo isso e que traje é esse que você preparou para
baixa, suavizada pelos macios reflexos do crepúsculo. Mais tar- mim. Onde é que êle está?
de os seis amigos cotejariam suas impressões e disputariam en- O criado ergueu de cima de uma espécie de otomana uma
tre si; mas conviriam misteriosamente em que este lugar lhes longa túnica azul-pavão, do mesmo feitio de um dominó, esmal-
lembrava a infância. Ou era a copa deste olmo ou aquela vere- tado na frente por um vasto sol de ouro e salpicado aqui e ali
da tortuosa, ou era um trecho deste pomar ou o feitio de uma de crescentes e estrelas cintilantes.
janela; o certo é qúe cada um afirmaria que podia recordar este -— O senhor vai vestir-se de Quinta-feira, explicou o ca-
lugar antes de poder recordar-se de sua mãe. mareiro afàvelmente.
Quando as carruagens rodaram para um portão largo, bai- — Vestir-me de Quinta-feira! repetiu Syme meditativo.
xo e cavernoso, um outro homem, envergando o mesmo unifor- Não me parece uma roupa quente.
me, mas usando uma estrela de prata no peitilho cinzento do ca- — Mas é quente, sim, disse o outro solícito. A roupa do
saco, saiu a recebê-los. Este impressionante personagem diri- Quinta-feira é extremamente quente. Vai até ao queixo.
giu-se ao boquiaberto Syme: — Bem, não entendo coisa nenhuma, disse Syme suspiran-
— Refrigerantes o esperam em seu quarto, senhor. do. Estou tão acostumado a aventuras desconfortáveis que as
Syme, ainda sob a influência daquele sono mesmeriano de aventuras confortáveis me abatem. Mas permita-me que eu per-
estupefação, subiu as vastas escadarias de carvalho, atrás do gunte por que é que estarei vestido especialmente de Quinta-fei-
respeitoso criado, e entrou numa série de cômodos que pare- ra se envergar uma vestimenta esverdeada, toda pintalgada de
ciam estar reservados especialmente para êle. Com o instinto sóis e de luas? Esses astros, se não estou enganado, brilham
habitual de sua classe, abeirou-se de um espelho grande para também nos outros dias. Lembro-me bem de ter visto a lua nu-
endireitar a gravata ou alisar os cabelos; foi então que deu pela ma terça-feira.
figura sinistra em que se transformara: o sangue escorria-lhe — O senhor me permite? disse o camareiro. Temos aqui
da face, onde o ramo o ferira; os cabelos eriçavam-se como ta- uma Bíblia à sua disposição, e com um dedo rígido e respeitoso
los amarelos de erva espessa; as roupas estavam desfeitas em apontou uma passagem do primeiro capítulo do Gênesis. Syme
compridos e ondulantes farrapos. Imediatamente viu-se diante de leu-a maravilhado. Era aquela que associa o quarto dia da
um enigma, que nascia sob a forma de uma simples pergunta: semana à criação do sol e da lua. Aqui, entretanto, contavam-
como êle conseguira chegar ali e como conseguiria safar-se? se os dias da semana a partir de um domingo cristão.
Nesse mesmo instante, um homem de azul, que fora designado —- Isso está indo de mal a pior, disse Syme, enquanto se
para seu camareiro, disse com toda a solenidade: sentava numa cadeira. Quem é essa gente que providencia fai-
são frio e Borgonha, roupas verdes e Bíblias? Providencia tudo?
— Sua roupa está pronta, senhor.
— Tudo, senhor, respondeu o criado gravemente. Devo
— Roupa! exclamou Syme sardônico. De roupa só te- ajudá-lo a vestir-se?
nho esta do corpo, e, segurando duas longas tiras da sobreca- — Oh, venha de lá esse timão! disse Syme impaciente.
saca de fascinantes festões, fêz que ia imitar o rodopio de uma Embora afetasse desprezo pela fantasia, sentiu uma liber-
bailarina. dade e uma naturalidade raras em seus movimentos quando o
— Meu patrão me incumbiu de avisar ao senhor, disse o traje azul e ouro o cingiu; e ao descobrir que tinha de levar uma
camareiro, que haverá um baile a fantasia esta noite. É desejo espada reviveu um sonho infantil. Ao sair do quarto atirou o
dele que o senhor vista o traje que eu preparei. Como faltam manto por cima dos ombros. A espada destacava-se, formando
ainda algumas horas para a ceia, êle espera que o senhor não um ângulo. Êle tinha toda a galhardia de um trovador, pois
recuse uma garrafa de Borgonha e um pouco de faisão frio. esses disfarces antes revelavam que disfarçavam.
CAPITULO XV

O ACUSADOR

Quando Syme, a passos largos, atravessava o corredor, viu


o Secretário de pé no alto de um majestoso lanço de escada-
ria. O homem jamais parecera tão nobre. Envolvia-o um manto
comprido de intenso negror, em cujo centro incidia uma faixa ou
listão de puríssima alvura, como um único raio de luz. O con-
junto lembrava uma vestimenta eclesiástica muito severa. Não
havia necessidade de Syme explorar a memória ou a Bíblia pa-
rar recordar que o primeiro dia da criação assinalava o apare-
cimento da luz no seio da treva. A própria veste sozinha teria
sugerido o símbolo; e Syme sentiu também quão fielmente este
modelo de alvura e negror puríssimos exprimia a alma do pálido
e austero Secretário, patenteando toda aquela inumana veraci-
dade e todo aquele álgido furor que tão facilmente o levavam
a guerrear os anarquistas e tão facilmente lhe permitiam mistu-
rar-se com eles. Syme quase não se surpreendeu ao notar que,
no meio de toda a comodidade e hospitalidade do novo ambien-
te, os olhos deste homem continuavam encarniçados. Nem o
cheiro da cerceja nem a fragrância dos pomares podia impedir
o Secretário de formular uma pergunta racional.
Se Syme pudesse ver a si mesmo teria compreendido que
êle também, pela primeira vez, parecia ser êle mesmo e nin-
guém mais. Pois se o Secretário representava o filósofo que
ama a Luz primeira e informe, Syme era o tipo do poeta que
aspira sempre a modelar a luz em contornos específicos, a fra-
cioná-la em sol e estrela. O filósofo pode às vezes amar o infini-
to; o poeta ama sempre o finito. Para êle o grande momento
não é a criação da luz, mas a criação do sol e da lua.
166 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 167

Quando desciam juntos a larga escadaria deram com Rat- vagantes pássaros tropicais, mistura de imaginação ilimitada e
cliffe, que se vestia de verde primaveril. O desenho de seu tra- de dúvida. Dr. Buli, o último dia da criação, usava um casaco
je figurava um exuberante emaranhamento de árvores. Êle cor- coberto de animais heráldicos, em vermelho e ouro, e um capa-
porificava aquele terceiro dia em que foram criadas a terra e as cete onde se via um homem rampante. Rescostava-se na ca-
coisas verdejantes. A isso se acomodava admiràvelmente o ros- deira com um largo sorriso — o quadro de um otimista em seu
to quadrado e sensível, com seu amistoso cinismo. elemento.
Através de outra passagem ampla e baixa foram conduzi- Um por um os viandantes galgaram o barranco e foram
dos para dentro de um antigo e espaçoso jardim inglês, repleto colocar-se em suas estranhas cadeiras. Quando cada um se sen-
de archotes e fogueiras tremeluzentes, onde uma vasta multidão, tava, vinha da mascarada uma aclamação entusiástica, tal como
exibindo as roupagens mais variadas, bailava como num car- aquela com que as multidões recebem os reis. Retiniam as taças,
agitavam-se os archotes e chapéus emplumados eram lançados
naval. Syme julgou ver em cada uma daquelas alucinadas fanta-
para o ar. Os homens para quem esses tronos foram reservados
sias uma imitação das formas da natureza. Havia um homem
eram homens coroados com extraordinários lauréis. Mas a ca-
vestido de moinho de vento com velas enormes, um outro vesti-
deira do centro estava desocupada.
do de elefante, outro vestido de balão; os dois últimos pareciam
conservar o fio de suas grotescas aventuras. Syme viu ainda, Syme sentava-se à esquerda dela e o Secretário à direita.
com estranha emoção, um dançarino vestido como um imenso O Secretário, olhando para Syme por cima do trono vazio, disse,
bucero, cujo bico era duas vezes tão grande como êle mesmo — comprimindo os lábios:
o esquisito pássaro que se fixara em seu espírito como uma in- — Não sabemos ainda se êle terá morrido no campo.
terrogação viva, desde o momento em que êle corria desenfrea- No instante mesmo em que Syme ouviu estas palavras no-
do pelo caminho do Jardim Zoológico. Havia, entretanto, mil tou no oceano de fisionomias humanas que se exaltavam dian-
outras fantasias do mesmo quilate. Havia um poste dançante, te dele um murmúrio de espanto e admiração, como se o céu se
uma macieira dançante, um barco dançante. Dir-se-ia que a in- tivesse rompido em cima de sua cabeça. Era Domingo. Passou
dômita melodia de algum músico louco pusera todas as coisas silenciosamente como uma sombra e veio sentar-se na cadeira
comuns, dos campos e das ruas, a dançar uma eterna jiga. E do centro. Vestia-se simplesmente, de branco imaculado e terrí-
muito tempo depois, no repouso da maturidade, Syme não podia vel, e seus cabelos eram como uma chama prateada em sua
contemplar um desses objetos — um poste de luz, uma maciei- fronte.
ra, ou um moinho de vento — sem pensar que era um folião Durante muito tempo — parece que durante horas — a
desgarrado dessa folia de mascarados. imensa mascarada saracoteou e sapateou ao ritmo de uma mar-
Num canto do relvado, animado pelos dançarinos, havia cha alegre e arrebatadora. Cada par era um romance isolado;
uma espécie de barranco verde, semelhante aos terraços dos jar- podia ser uma fada bailando com um marco postal, ou uma
dins de outrora. camponesa Rançando com a lua; mas cada caso era, de certo
Ao longo desse terraço, dispostas em forma de crescente, modo, tão absurdo como Alice no País das Maravilhas e tão
viam-se sete poltronas: os tronos dos sete dias. Gogol e Dr. grave e delicado como uma história de amor. Por fim, a tur-
Buli já tinham ocupado seus lugares e o Professor ia ocupar o ba espessa foi rareando. Pares enveredavam pelos passeios
dele. A simplicidade de Gogol ou Terça-feira, estava bem sim- do jardim, ou se transportavam para aquele recanto do edifício
bolizada por uma veste que reproduzia a divisão das águas, uma onde fumegavam, em possantes caldeirões, cálidas e aromáticas
veste que se abria em sua fronte e caia aos seus pés, cinzenta misturas de cerveja velha ou vinho. Acima desses vasos, sobre
e prateada, como um lençol de água. O Professor, cujo dia era uma armação negra do telhado, rugia numa cesta de ferro uma
aquele em que os pássaros e os peixes — as formas mais rudi- gigantesca fogueira que iluminava muitas milhas em derredor. O
mentares de vida — foram criados, vestia uma roupagem violá- clarão desse lume doméstico alcançava a face de vastas flores-
cea, na qual se estendiam peixes de olhos esbugalhados e extra- tas pardas ou escuras e parecia mesmo encher de calor o vazio
168 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 169

da abóbada noturna. Todavia, em pouco tempo, a fogueira tam- — Sou o Sabat, disse o outro imóvel. Sou a paz de Deus.
bém arrefeceu; os grupos negros agregavam-se cada vez mais O Secretário ergueu-se de um pulo e com as mãos come-
em volta dos grandes caldeirões, ou entravam rindo em algazarra çou a amarrotar o suntuoso manto.
nos corredores daquela mansão centenária. Em breve, havia — Sei o que você é, bradou, e é isso precisamente que não
somente dez ociosos no jardim; pouco depois, apenas quatro. lhe posso perdoar. Sei que você é contentamento, otimismo,
Finalmente, o último desgarrado folião entrou em casa gritan- reconciliação final, ou que outro nome se dê a isso. Pois bem,
do pelos companheiros. A fogueira apagou, e lentas e fortes as não estou reconciliado. Se você era o homem do quarto es-
estrelas brilharam no céu. Os sete estranhos personagens ficaram curo, porque era também Domingo, uma ofensa para a luz do
sós, como sete estátuas de pedra assentadas em cadeiras de pedra. sol? Se desde o começo você era nosso pai e nosso amigo, por-
Nenhum deles pronunciara uma palavra. que era também nosso maior inimigo? Nós nos lamentávamos
Parecia que eles não tinham pressa de falar. Apenas ouviam e fugíamos aterrorizados; o ferro penetrou em nossas almas...
em silêncio o zumbido dos insetos e o canto longínquo de um e você é a paz de Deus! Oh, eu posso perdoar a Deus Sua ira,
pássaro. Então Domingo pôs-se a falar, mas tão suavemente embora ela destrua as nações; mas não posso perdoar a Deus
que se podia pensar que eles antes continuavam que iniciavam Sua paz.
uma conversação. Domingo ficou calado; apenas voltou para Syme seu ros-
— Comeremos e beberemos mais tarde, disse. Fiquemos to pétreo, como se o interrogasse.
um momento aqui, juntos, nós que nos temos amado uns aos — Não, disse Syme, não estou tão enfurecido. Manifes-
outros tão amargamente e nos temos combatido tanto tempo. to-lhe minha gratidão, não só pelo vinho e pela hospitalidade,
Suponho recordar os séculos da guerra heróica em que vocês mas também pelas belas correrias e pelos combates leais. Con-
foram sempre heróis: epopéia sobre epopéia, ilíada sobre ilíada, tudo, eu gostaria de conhecer. Minha alma e meu coração sen-
e vocês sempre como irmãos d'armas. Não sei se foi recentemen- tem-se tão felizes e quietos aqui como este velho jardim, mas
te (porque o tempo nada é), ou no princípio do mundo, que minha razão ainda clama. Eu gostaria de conhecer.
os enviei para a guerra. Eu estava sentado na treva, onde não Domingo olhou Ratcliffe, cuja voz clara se ouviu:
existe coisa criada, e fui para vocês apenas uma voz que exigia — Parece-me tão estúpido que você tenha estado dos dois
coragem e virtude sobrenatural. Ouviram minha voz no escu- lado e tenha combatido a si mesmo!
ro, e não a ouviram de novo. O sol, no céu, negava-a, a terra e Buli disse apenas:
o céu negavam-na, toda a sabedoria humana negava-a. E quan- — Não entendo nada, mas sou feliz. Na verdade, vou
do os encontrei em plena luz do dia, eu mesmo neguei-a. dormir.
Syme agitava-se vivamente em sua cadeira, mas tudo o — Não sou feliz, disse o Professor com a cabeça entre as
mais continuava em silêncio, e o impenetrável prosseguiu: mãos, porque não compreendo. Você permitiu que eu me per-
— Mas vocês foram homens. Não esqueceram intimamen- desse a poucos passos do inferno.
te a noção de honra, embora todo o cosmos, transformado em Gogol falou, então, com toda a simplicidade de um menino:
máquina de tortura, tentasse extirpá-la de seus corações. Sei — Gostaria de saber porque fui tão maltratado.
que vocês estiveram às portas do inferno. Sei que você, Quin- Domingo continuava mudo e imóvel. Fincava o queixo
ta-feira, cruzou espadas com o Rei Satã, e que você, Quarta- poderoso numa das mãos e fitava a distância. Por fim rompeu
feira, invocou meu nome na hora do desespero. o silêncio:
Houve completo silêncio no jardim iluminado pelas es- — Ouvi suas queixas uma a uma. Penso que vem aí ou-
trelas, e então o Secretário de negras sobrancelhas,-implacável, tro para lamentar-se, e devemos ouvi-lo também.
volveu-se em sua cadeira para contemplar Domingo, e pergun- O fogo moribundo na grande trempe emitiu um derradei-
tou com áspera inflexão: ro e alongado clarão, feito uma barra de ouro ardente, que se
— Quem e o que é você? espalhou por todo o escuro relvado. Sobre esta meia-lua infla-
170 G. K. CHESTERTON O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA 171

mada projetavam-se totalmente negras as pernas avançadoras no é governar. O pecado imperdoável do poder supremo é ser
de um vulto de preto. Parecia usar um belo traje com bragas, do supremo. Não os amaldiçôo por serem vocês cruéis. Não os
mesmo modo que os criados da mansão. Só que seu traje não amaldiçôo (embora eu pudesse) por serem bondosos. O que
era azul, mas autêntico sable. Como os criados, trazia uma es- amaldiçôo é a sua segurança. Vocês se sentaram em suas ca-
pada à cinta. Foi somente quando êle chegou muito perto dos deiras de pedra e nunca desceram delas. Vocês são os sete
sete homens colocados no crescente e ergueu o rosto para con- anjos do céu, e nunca provaram das vicissitudes. Oh, eu lhes
templá-los, que Syme viu, com fulminante nitidez, que o rosto poderia perdoar tudo, a vocês que governam toda a humanida-
era o rosto largo, quase simiesco de seu velho amigo Gregory, de, se uma vez, pelo menos, eu pudesse sentir que vocês sofreram
com os mesmos exuberantes cabelos vermelhos e o mesmo sor- uma hora de agonia real, tal como a que eu. . .
riso insultuoso.
Syme levantou-se com um salto, tremendo da cabeça aos
— Gregory! arquejou Syme quase de pé. Ah, eis o ver- pés.
dadeiro anarquista! — Compreendo tudo, bradou, tudo quanto existe. Por
— Sim, disse Gregory, com um grande e ameaçador cons- que todas as coisas desta terra vivem em guerra umas com as
trangimento, sou o verdadeiro anarquista. outras? Por que cada ínfimo ser deste mundo tem de lutar
— "E vindo um dia em que os filhos de Deus vieram apre- contra o próprio mundo? Por que deve a mosca combater todo
sentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles", o universo? Por que deve um dente-de-leão combater todo o uni-
murmurou Buli, que parecia realmente ter caído no sono. verso? Pela mesma razão que eu tinha para estar só no terrível
— Tem razão, disse Gregory, olhando em volta. Sou um Conselho dos Dias. Assim, cada coisa que obedece à lei pode
destruidor. Destruiria o mundo se pudesse. partilhar da glória e do isolamento do anarquista. Assim, cada
um que combate pela ordem pode ser tão bravo e bom como o
Um sentimento de compaixão, vindo das profundezas da dinamiteiro. Assim, a mentira de Satã pode ser lançada à face
terra, excitou Syme e levou-o a falar aos borbotões e sem se- deste blasfemo e assim, pelas lágrimas e pela tortura, podemos
qüência. conquistar o direito de dizer a este homem: "Mentes!" Todas
— Oh homem infelicíssimo! exclamou. Tente ser feliz. as agonias não dão para comprar o direito de dizer a este acusa-
Você tem os cabelos vermelhos de sua irmã. dor: "Nós também temos sofrido!" Não é verdade que nós
— Meus cabelos vermelhos, como as chamas vermelhas, nunca fomos derrotados. Fomos, sim, fomos esmagados. Não
incendiarão o mundo, respondeu Gregory. Pensei que odiava tu- é verdade que nunca descemos destes tronos. Descemos até aos
do mais do que os homens geralmente odeiam qualquer coisa, infernos. Estávamos a lamentar nossas inesquecíveis misérias
mas estou vendo que não odeio tudo tanto quanto o odeio. no momento mesmo em que este homem entrou insolentemente
— Eu nunca o odiei, disse Syme melancòlicamente. para acusar-nos de felicidade. Repilo a calúnia; não temos sido
felizes. Posso responder por cada um dos grandes defensores
Em seguida, os últimos trovões dessa criatura ininteligível da Lei que êle acusou. Pelo menos. . .
ribombaram.
— Você! gritou êle. Você nunca odiou porque nunca vi- E volveu os olhos a fim de observar o enorme rosto de
veu. Sei o que são todos vocês, do primeiro ao último. Vocês Domingo, que se abria num estranho sorriso.
são os poderosos! Vocês são a polícia, os homens gordos, sorri- — E você, bradou Syme com voz terrível, você terá sofrido
dentes, dos uniformes azuis cheios de botões! Vocês são a Lei, alguma vez?
e nunca foram derrotados. Mas haverá uma alma viva e livre Enquanto observava, o enorme rosto adquiria uma espan-
que não deseje derrotá-los, ao menos porque vocês nunca fo- tosa proporção, tornando-se maior do que a máscara colossal
ram derrotados? Nós, os revoltados, sem dúvida dizemos toda de Memnon que o fizera gritar de medo quando menino. O
a espécie de disparates acerca deste ou daquele crime do rosto, cada vez maior, ia enchendo todo o Armamento. Depois,
Governo. Tudo isso é loucura! O único crime do Govêr- tudo enegreceu. E antes que a escuridão anulasse completa-
172 G. K. C H E S T E R T O N

mente seu cérebro, Syme julgou ouvir uma voz distante recitar
um lugar-comum ouvido antes nalguma parte: "Podes beber
na mesma taça em que eu bebo?"

* * *

Quando, nos livros, os homens despertam de uma visão,


encontram-se geralmente em algum lugar em que podiam ter
adormecido; bocejam, se estão numa cadeira, ou se levantam
com os membros doídos, se estão deitados no campo. A ex-
periência de Syme foi, psicologicamente, muito mais estranha,
visto que houve realmente, no sentido físico, algo de irreal nas
coisas que lhe tinham acontecido. Pois, conquanto mais tarde
lhe fosse sempre possível recordar que desfalecera ante o rosto
de Domingo, não podia lembrar-se do instante em que voltara a
si. Só podia lembrar-se de que pouco a pouco e com toda a natu-
ralidade tivera consciência de estar passeando por uma azinhaga
ao lado de um companheiro agradável e palrador. Esse compa-
nheiro fora parte de seu drama recente; era Gregory, o poeta
dos cabelos vermelhos. Caminhavam juntos como velhos ami-
gos e estavam entretidos com alguma banalidade. Mas Syme
sentia no corpo uma vivacidade sobrenatural e no espírito uma
simplicidade cristalina que pareciam superiores a tudo que di-
zia ou fazia. Sentia que estava na posse de uma inefável boa
nova e que ela fazia de tudo uma trivialidade, mas uma adorá
vel trivialidade.
Rompia a aurora, revestindo tudo de cores claras e tímidas,
como se a natureza fizesse uma primeira tentativa em amarelo
e uma primeira tentativa em rosa. Soprava uma brisa tão límpida
e suave que se podia até imaginar que ela não provinha do céu,
mas filtrava-se através de uma frincha rasgada no céu. Syme Biblioteca São Miguel Arcanjo
maravilhou-se um pouco de ver em ambos os lados do caminho http://saomiguel.webng.com/
os vermelhos e irregulares edifícios de Saffron Park. Não sabia
que andava tão perto de Londres. Instintivamente tomou por
uma estrada branca, onde os pássaros madrugadores gorjeavam
saltitantes, e achou-se defronte do gradil de um jardim. Ali viu
a irmã de Gregory, a moça dos cabelos vermelhos e dourados,
colhendo lilases antes do café, com a gravidade inconsciente e
magnífica das moças.

Você também pode gostar