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O medievo foi um período marcado pelas disputas territoriais e pela guerra

santa entre critãos e mulçumanos, influenciada pela Igreja que tinha grande
influência sobre o Ocidente. Essa guerra influenciou a formação de alianças entre
nobres para obtenção de poder e construção de relações sociais. Um nobre se
comprometia a prestar serviço militar a seu suserano, sendo esse chamado de
vassalo, o outro nobre deveria garantir a proteção de seu vassalo e ceder parte sua
terra para o mesmo, sendo esse chamado de suserano. À época, a maior parte das
obras produzidas por meio escrito era de cunho religioso e sua aquisição era
limitada a alguns nobres e ao próprio clero, visto que esses grupos eram os poucos
detentores da habilidade de escrita e leitura.
Nesse contexto surge o Trovadorismo, que foi um movimento artístico iniciado
por volta do séc. XI, apresentando um hibridismo entre a linguagem poética e a
música. Não foi escrito em português, visto que o idioma só começou a se consolidar
no séc. XIV com D. Dinis, mas no dialeto provençal. Os trovadores eram
principalmente viajantes que se apresentavam de corte em corte, frequentemente
acompanhados de instrumentos musicais.
O movimento pode ser dividido em dois grandes gêneros: o lírico e o satírico.
O gênero lírico, que é o assunto principal deste escrito, é subdividido em dois
grupos, um que compreende as cantigas de amor e outro que compreende as
cantigas de amigo – que em galego-português significa namorado –, podendo esse
ser subdividido em outras categorias. O gênero satírico, por sua vez, é subdividido
em cantigas de escárnio e de maldizer, tendo o humor como potência literária capaz
de ridicularizar ou criticar, a cunho social ou apenas deboche.
Quando se fala das características do gênero lírico, as cantigas de amor tem
seus traços formais mais livres quando comparadas às cantigas de amigo. A
primeira tem uma voz masculina, a segunda, feminina; a primeira é muito conhecida
pela sua temática principal ser a coita d’amor (o sofrimento amoroso). Do ponto de
vista da composição, as cantigas de amigo são muito mais ricas, devido seus traços
formais. Nessas encontramos o leixa-pren, o paralelismo e a presença de um refrão.
Por muito tempo as cantigas de amor receberam críticas que afirmavam uma
pobreza do ponto de vista formal. Pela falta de uma engenhosidade na sua
composição, as canções foram reduzidas por conter “apenas” o traço da voz
masculina e ser monotemática, sendo seu único tema o sofrimento exacerbado, a
coita. Entretanto, esses traços são na verdade sua maior riqueza, uma vez que o
trovador era capaz de tratar de um mesmo sentimento de formas tão diferentes.
Cantada na 1ª pessoa, o trovador declara seu sofrimento amoroso por uma dama,
referindo-se a ela como mia senhor – i.e., “minha senhora” –, referente às relações
medievais entre o senhorio e o vassalo. Vale observar que essa manifestação da
coita é observada ainda nas músicas da atualidade.
Por outro lado, as cantigas de amigo são muito mais plurais que as de amor e
enriquecidas de técnicas, como citado anteriormente. Esses traços dão a essas
cantigas um prestígio acadêmico. Suas temáticas têm uma feição popular, por fugir
do amor idealizado e inalcançável – embora ainda haja aqui um sofrimento da
mulher (ou melhor, o entendimento de um homem do imaginário feminino) em
relação ao seu amado, ele acontece de forma mais crível – das cantigas de amor, a
musicalidade também ajudou a fixá-las no imaginário coletivo.
É interessante destacar que essas divisões são feitas em virtude de um
didatismo e que às vezes uma cantiga pode carregar características de mais de uma
dessas subdivisões, fugindo de um ideal prototípico. Essa simbiose mostra o quanto
os trovadores eram exímios manipuladores da língua, como diz Lênia Mongelli.
Exemplo disso é a cantiga de Rodrigo Anes de Vasconcelos, que ao primeiro olhar
não é fácil classificar.
A princípio, identificar a voz seria determinante para a classificação da
cantiga, mas aqui não fica claro se quem fala é uma voz masculina ou feminina. A
temática da coita leva a crer que se trata de uma cantiga de amor, apesar de que ao
se dirigir a um amigo (verso 2) é possível que se trate de uma voz feminina, o que
caracteriza uma cantiga de amigo. Entretanto, o uso de “senhor” no refrão, retorna a
ideia da cantiga de amor, uma vez que é mais comum a um vassalo se dirigir assim
a uma dama inalcançável. E esse bate e volta parece se perpetuar.
O que se aparenta é que não há uma única voz presente nessa cantiga, mas
um diálogo onde ela, a voz feminina, se pronuncia nos três primeiros versos e ele, a
voz masculina, responde-a no refrão. Porém, se a prioridade é a voz inicial – nesse
caso, feminina – então o que se tem é uma canção de amigo, canção essa que foge
dos padrões da Arte de Trovar, visto que não apresenta recursos estilísticos como o
leixa-pren ou paralelismo, também não está estruturada em estrofes pares.
Há ainda algo interessante que vale o destaque nessa cantiga: fala-se de
coita d'amor, mas não parece haver tal sofrimento como se apresenta numa cantiga
de amor (sentimento/sofrimento unilateral). Levando em consideração a existência
de um diálogo, o que se aparenta é que ambos possuem sentimentos um pelo outro,
e a "coita" existiria porque eles não podem ficar juntos. Isso poderia vir a se tornar
uma denúncia baseada no fin'amor, praticado pelos cavaleiros com a dama do seu
senhor. Esse "jogo de amor" dentro da corte por ordem do próprio senhor era algo
comum, tinha o propósito de fortalecer as relações de suserania e vassalagem, mas
não chegava a atingir o ato carnal. A nobre senhora estar apaixonada por um
vassalo se tornaria um grande escândalo naquela sociedade e, assim, essa cantiga
sairia do lírico e entraria no satírico, apresentando característica de uma cantiga de
escárnio.

REFERÊNCIAS1:
FERNANDES, C. Amor cortês medieval. [S. l.], 2020. Disponível em:
https://www.historiadomundo.com.br/idade-media/amor-cortes-medieval.htm. Acesso
em: 25 jun. 2021.

1 Todo texto foi baseado no meu material produzido durante as aulas. Trago as referências que
embasaram essas aulas e uma outra que usei para investigar mais sobre a coita d’amor.
MOISÉS, M. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1999.
MONGELLI, L. M. Fremosos cantares. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

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