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Análise sobre a sistemática do conflito de competência tributária entre o ISS e

o ICMS envolvendo as novas tecnologias e a Revolução Digital

Segundo alguns dos maiores estudiosos da modernidade, já estamos vivendo a era


da 4ª Revolução Industrial. Para o respeitado sociólogo polonês Zygmunt Bauman, os tempos
modernos se caracterizariam pela fluidez, para isso ele cunhou o famoso termo “modernidade
líquida”.
Ela teria se iniciado com a popularização dos computadores pessoais a partir da
década de 1980, se intensificado sobremaneira com a revolução gerada pela internet nos anos
90 e, posteriormente, a explosão no uso dos smartphones na primeira década dos anos 2000.
Atualmente, esta Revolução Digital se caracteriza tanto pela transformação digital de
negócios tradicionais (e.g. comércio eletrônico, publicidade) como pelo surgimento de novos
modelos de negócios totalmente digitais como serviços de “streaming” de música ou filmes,
armazenamento de dados em nuvem e as criptomoedas.
Estamos no início da implementação de tecnologias ainda mais inovadoras cujas
mudanças serão potencialmente mais radicais em nossa sociedade, nas relações de trabalho
e nas formas de fazer negócios tais como big data, internet das coisas (IoT), nanotecnologia,
Inteligência artificial (IA), impressoras 3D e robótica.
As mudanças trazidas por essas novas tecnologias representam também um novo e
enorme desafio para os Estados e seus sistemas tributários na forma como se equacionam e
instrumentalizam a tributação.
Segundo a OCDE, ao menos quatro características definem o que se convencionou
chamar de “economia digital”: (1) a acentuada dependência de intangíveis; (2) o uso maciço
de dados, especialmente os de caráter pessoal dos usuários e consumidores; (3) a frequente
adoção de modelos de negócios multilaterais; e (4) a dificuldade de determinar a jurisdição
na qual a criação de valor ocorre, notadamente em razão da marcante mobilidade dos ativos
e “estabelecimentos” (OECD, 2015, p. 16).1
Para se ter um vislumbre da dimensão e da importância da economia digital,
atualmente, as cinco marcas mais valiosas do mundo pertencem a empresas de tecnologia: as
gigantes Apple, Google, Microsoft, Facebook e Amazon (Forbes, 2018).2 Todas, companhias
com poucos anos ou apenas algumas décadas de existência.

1
OECD. Organisation for Economic Co-operation and Development.Addressing the Tax Challenges of the Digital
Economy, Action 1 – 2015 Final Report, OECD/ /G20.Base Erosion and Profit Shifting Project. Paris: OECD
Publishing, 2015 apud CORREIA NETO, C. B.; AFONSO, J. R. R.; FUCK, L. F. Desafios Tributários na Era Digital. In:
AFONSO, J. R.; SANTANA, H. L. (Coord.) Tributação 4.0. Almedina, 2020.
2
FORBES. FORBES divulga as marcas mais valiosas do mundo em 2018. Kurt Badenhausen.23 de maio de 2018.
Disponível em: https://forbes.uol.com.br/listas/2018/05/forbes-divulga-as-marcas-mais-valiosas-do-mundo-
em-2018/ apud CORREIA NETO, C. B.; AFONSO, J. R. R.; FUCK, L. F. Desafios Tributários na Era Digital. In:
AFONSO, J. R.; SANTANA, H. L. (Coord.) Tributação 4.0. Almedina, 2020.
Dentre essas empresas de tecnologia, o Uber, uma startup que revolucionou o
transporte urbano de passageiros e por tabela as relações trabalhistas com seus motoristas
colaboradores fundada apenas em 2009. A pouco tempo, quando a companhia digital estava
para fazer seu IPO (oferta inicial de ações) e entrar na Nasdaq, o índice da bolsa americana
das empresas de tecnologia, ela já era cotada em 120 bilhões de dólares. Esse montante daria
para comprar em valor de mercado, à época, a Ford, a General Motors e a Chrysler juntas,
empresas americanas centenárias do ramo automobilístico.
Entretanto, apesar de seu modelo de negócios ser baseado no não reconhecimento
de vínculo empregatício com os motoristas, recentemente a empresa sofreu um importante
revés na justiça britânica numa decisão que reconheceu direitos laborais para seus
colaboradores pela primeira vez no Reino Unido.
Como se vê, a inovação tecnológica tem afetado profundamente as indústrias e
negócios tradicionais, mas, da mesma forma, tanto as políticas tributárias como as
administrações da fazenda pública mundo afora. As mudanças ocorrendo nas relações
socioeconômicas demandam exações mais modernas e maneiras inventivas para serem
cobradas, tanto no âmbito interno como no internacional. Os sistemas tributários atuais não
demonstram plena capacidade de corresponder aos desafios impostos pela nova economia
digital.
Na realidade, os ordenamentos internacionais em vigor, já há algum tempo não são
mais eficazes em conseguir manter a base tributável das corporações, principalmente diante
da facilidade da mobilidade de capitais nas economias modernas e suas regulações
permissivas. Não obstante, tributar o comércio eletrônico transfronteiriço continua sendo
uma tarefa altamente complexa e desafiadora.
Além disso, os tratados internacionais, imaginados principalmente para evitar a dupla
tributação internacional, tem, na verdade, servido para reduzir, por meio de planejamentos
tributários legais, porém até imorais, a carga fiscal dos conglomerados transnacionais.
Um exemplo deveras ilustrativo da complexidade em se tributar justamente essas
mega corporações é a Apple. A empresa americana de tecnologia da maça, cuja sede e
diretoria fica sabidamente em Cupertino, na California, e cujas as linhas de produção ficam
em empresas terceirizadas na China como a Foxxcom e outros países, tem atuação
virtualmente no mundo inteiro com seus produtos.
Contudo, em termos fiscais, sua sede é, incrivelmente, a Irlanda. Esse país se tornou
um paraíso fiscal, particularmente para empresas de tecnologia, com tributação baixíssima. O
mais impressionante, é que a legislação tanto interna dos países envolvidos como
internacional ainda permite esse tipo de planejamento tributário claramente elusivo.
Nesse sentido, “o debate relativo à tributação do lucro das corporações
multinacionais está no cerne do Projeto BEPS (Base Erosionand Profit Shifting), conduzido pela
OCDE com o apoio do G20. A iniciativa tem como escopo principal examinar impactos da
globalização no sistema tributário dos diferentes países, a fim de combater a erosão da base
tributária e a transferência de lucros, por meio de planejamentos tributários “agressivos”,
utilizando tratados internacionais de bitributação (OECD, 2013, p. 36-7)”.3
Para essa discussão, o esclarecimento e atualização do conceito de “estabelecimento
permanente” em matéria de tributação internacional da renda é primordial. Mesmo
comportando exceções, o conceito sempre foi utilizado, “como regra básica de
vinculação/limite para determinar se um país tem ou não direito de tributar os lucros de uma
empresa contribuinte não residente” (OCDE, 2013, p. 36-7).4
Com suporte no entendimento dessa premissa – pelo qual as corporações devem ser
tributadas apenas onde têm estabelecimento permanente – o que existe, em realidade, é um
incentivo brutal para que as empresas de tecnologia transmigrem seus ativos e
estabelecimentos para os países onde possam maximizar seus lucros aproveitando de pouca
ou nenhuma tributação.
Diante de tantos desafios, nota-se que o termo “estabelecimento permanente”
claramente não parece o mais adequado para tratar os modelos empresariais digitais, cujas
particularidades se mostram tão dispares dos negócios tradicionais. Como um de seus
substitutos mais promissores, existe atualmente o debate sobre o conceito de “presença
digital” de uma empresa (significant digital presence – SDP) em determinada jurisdição onde
tenha usuários ou clientes, independentemente da existência de estabelecimento físico
permanente. A “presença digital” serviria de elemento de conexão para reconhecimento de
vínculo tributário que permita imputação de receitas e o reconhecimento de competência
tributária em relação a empresas de tecnologia digital multinacionais (Palma, 2018, p. 53).5
A Revolução Digital representa também um enorme desafio em relação a tributação
de bens e serviços. Atualmente bens intangíveis veem substituindo cada vez mais produtos e
mercadorias físicas. Enquanto o conceito de serviço é amplamente alargado para fins fiscais e
se torna sobremaneira inexato.
Dessa forma, são patentes os indícios de obsolência da matriz tributária tradicional e
os conflitos entre tributos sobre serviços, o ISS, cuja base é cada vez mais alargada e o velho
imposto sobre circulação de mercadorias, o ICMS, são inevitáveis. Principalmente, posto que
são exações cujas competências são diferentes segundo o nosso regramento constitucional.
Nesse diapasão, torna-se fundamental distinguir o comércio eletrônico “direto” ou
“on-line”, referente à venda de bens digitais, leia-se intangíveis, na forma de bens ou serviços
disponibilizados apenas digitalmente como músicas, filmes ou jogos. Enquanto que o

3
OCDE. Combate à Erosão da Base Tributária e à Transferência de Lucros. Paris: OECD Publishing, 2013 apud
CORREIA NETO, C. B.; AFONSO, J. R. R.; FUCK, L. F. Desafios Tributários na Era Digital. In: AFONSO, J. R.;
SANTANA, H. L. (Coord.) Tributação 4.0. Almedina, 2020
4
OCDE. Combate à Erosão da Base Tributária e à Transferência de Lucros. Paris: OECD Publishing, 2013 apud
CORREIA NETO, C. B.; AFONSO, J. R. R.; FUCK, L. F. Desafios Tributários na Era Digital. In: AFONSO, J. R.;
SANTANA, H. L. (Coord.) Tributação 4.0. Almedina, 2020
5
Palma, Clotilde C. A Tributação da Economia Digital e a Evolução Recente da União Europeia. In: Piscitelli,
Tathiane (Coord.). Tributação da Economia Digi-tal. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018 apud CORREIA
NETO, C. B.; AFONSO, J. R. R.; FUCK, L. F. Desafios Tributários na Era Digital. In: AFONSO, J. R.; SANTANA, H. L.
(Coord.) Tributação 4.0. Almedina, 2020
comércio eletrônico “indireto” ou “off-line”, engloba a comercialização de produtos físicos ou
serviços a serem entregues no mundo real, normalmente a residência do comprador.
Nessa quadra, os produtos intangíveis são os que representam maior desafio aos
entes tributantes, posto que muitas vezes não são facilmente categorizáveis entre
mercadorias e serviços. Além disso, como muitas das empresas são estrangeiras e não
possuem representação física em determinados mercados, envolvem a discussão e
conceituação precisa entre “estabelecimento permanente” e “presença digital significante”
para se determinar o ente tributante competente.
Isso, para não mencionar o desafio representado pelas novas impressoras 3D, cujos
direitos de impressão de determinado modelo de produto não poderão ser, a rigor,
caracterizados nem como mercadoria nem como serviço.
Ou seja, os desafios são enormes, e, se não forem corretamente diagnosticados e
debatidos, corremos o sério risco de que a tão aguardada reforma tributária, quando
finalmente for aprovada, já sair defasada em relação a tributação dos modelos de negócios
disruptivos da 4ª Revolução Industrial, e, particularmente, quanto aos possíveis e prováveis
conflitos de competência que a envolvem.

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