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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS – CEG


PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

FLAVIO SAMPAIO BARTOLY

Shopping Center: Entre o Lugar e o Não-Lugar

NITERÓI

2007
FLAVIO SAMPAIO BARTOLY

Shopping Center: Entre o Lugar e o Não-Lugar

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal


Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Ordenamento territorial.

ORIENTADOR: PROF. DR. MARCIO PIÑON DE OLIVEIRA

Niterói
2007

2
B292 Bartoly, Flavio Sampaio
Shopping Center: entre o Lugar e o Não-Lugar / Flavio Sampaio Bartoly. –
Niterói : [s.n.], 2007.
205 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal
Fluminense, 2007.

1.Espaço. 2.Não-lugar. 3.Shopping Center. I.Título.

CDD 381.1

3
FLAVIO SAMPAIO BARTOLY

Shopping Center: Entre o Lugar e o Não-Lugar

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-


Graduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do Grau de Mestre.

Aprovada em julho de 2007.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Doutor Márcio Piñon de Oliveira – Orientador


UFF- GEOGRAFIA

Prof. Doutor Sérgio Martins


UFMG- GEOGRAFIA

Prof. Doutor Werther Holzer


UFF- ARQUITETURA E URBANISMO

Prof. Doutor Ruy Moreira


UFF- GEOGRAFIA

Niterói
2007

4
Agradecimentos

Neste momento de conclusão da dissertação, agradeço a todos que, mesmo sem

perceber ou do modo mais singelo, me ajudaram a chegar até aqui. Em especial, gostaria de

agradecer:

• À Universidade Federal Fluminense, em especial ao Programa de Pós-


Graduação em Geografia – PPGE, professores, colegas e funcionários,
pelo suporte fornecido durante todo o curso de Mestrado.
• Ao Prof. Dr. Márcio Piñon de Oliveira, meu orientador, por ter me
mostrado (e demonstrado) o valor da orientação acadêmica, por sua
amizade e pela generosidade de suas contribuições, fundamentais em todos
os momentos deste trabalho.
• Ao Prof. Dr. Ruy Moreira, especialmente pelo apoio concedido nos
momentos difíceis do início desta caminhada.
• Ao colega Sávio Reader pela paciência e longa convivência.
• Aos amigos Arthur, Kling, Glauco, Vinícus, Daniel, Rejane e Márcio
Camillo pela troca de idéias tão importante em todos os momentos.
• À minha família, Mãe, Pai, Claudia Luiza, Emanuella, Carlos Eugênio,
Olga, Maeve, Eurides, Lia e Cláudio.
Fernando Carlos Ribeiro Sampaio e Alfredo Bartoly, eterna saudade.

Ao meu eterno amor, Danielle.

5
Dedico este trabalho à querida tia e Professora
Fanny Sampaio Cocco, que sempre esteve
presente nos momentos mais importantes da
minha vida, e que em muito breve estará
restabelecida para acompanhar os que virão.

6
Resumo

Na década de 1940 nos EUA e nos anos 60 no Brasil, provavelmente, a afirmativa


de que os shoppings eram pouco representativos para o cotidiano e que a relação que o
público mantinha com esses espaços era muito distante, não seria alvo de qualquer
contestação. Havia muito pouco para se fazer em um centro de compras, até porque as
administrações ainda não compreendiam o potencial do shopping em ser mais do que um
centro de compras e com isso atrair mais (as) pessoas. A ida ao shopping era esporádica,
rápida e motivada pela compra.
Esta primeira inserção do shopping na cidade, caracterizando-se como um local de
passagem para compras, homogêneo, objetivo e pouco comunicativo, credenciou este
equipamento urbano como um possível exemplo daquilo que alguns autores chamariam de
“não-lugar”; uma paisagem estandardizada, projetada sem levar em conta contextos ou
fatores particulares que pudessem promover uma identificação com as pessoas que ali se
encontram. Um espaço desprovido de peculiaridades, uma paisagem amorfa, interesseira,
“sem alma”, que reduz a comunicação a placas ou ao mínimo necessário exigido pela
objetividade. Assim se estabelece um local que por sua própria inautenticidade não pode ser
caracterizado como um lugar.
Ainda que conservem a forma “homogeneizada” e o objetivo primordial do
comércio, diversos fatores concorreram para que, há vários anos, a inserção dos shoppings
na cidade tenha se modificado expressivamente. O shopping tornou-se, também, um espaço
de sociabilidade, em que as pessoas cotidianamente se encontram, se divertem e passeiam.
Apesar de podermos qualificar a sociabilidade nos shoppings de “instrumental”, pelo fato
de em grande medida constituir-se em uma estratégia da administração para ampliar o
tempo de permanência e o consumo, para os freqüentadores a sociabilidade é dotada de um
fim em si mesma.
Nos lançamos assim, ao desafio de estabelecer uma discussão sobre a validade de
rotularmos, a priori, os shoppings de hoje como não-lugares, especialmente diante do
aprofundamento da relação do shopping com os freqüentadores e com a própria cidade.
Através de sua organização espacial, a busca por uma dimensão “lugarizada” do shopping,
pode lançar contribuições importantes para a compreensão de aspectos da realidade urbana
contemporânea.
Para isso, realizamos um levantamento bibliográfico que nos forneceu os
instrumentos para estabelecer discussões à cerca dos conceitos de lugar, não-lugar e
sociabilidade, bem como a possibilidade de uma melhor compreensão da inserção dos
shoppings no espaço urbano. Fizemos, também, um levantamento de dados e recorremos à
observação participativa no Barra Shopping e no Iguatemi Rio, além de termos realizado
entrevistas com as administrações e os freqüentadores desses dois shoppings.

7
Abstract

In the decade of 1940 in USA and in the years 60 in Brazil, probably, the
affirmative that the shopping centers were less representatives for the everyday life and that
the relation the public had with this spaces were very distant would not be contested. There
were very little to do in a shopping center, because the administrations didn’t get the
potential of the shoppings in being more than a center where people would just buy things
and with this, attract more people. Going to the mall was then unusual, quick and only for
shopping.
This first insertion of the shopping in the city, characterized as a place just for
shopping, homogeneous, objective and little communicative, made this urban equipment as
a possible example of what some authors would call “non-place”; a standardized landscape,
projected without take in consideration contexts or particular factors which could promote
an identification with the people who are there. A space without peculiarities, a landscape
without form, without soul, materialist (valuing spiritual and intellectual things too little)
which reduces the communication to the minimum necessarily required by objectivity. This
way one establishes a place, which by its own lack of authenticity, can’t be reputed as a
place.
In a number of years, many factors contributed for the considerable modification of
the shopping’s insertion inside the city, even if the homogenized form and the main goal of
the commerce are kept. The shopping became also a space of sociability, where people
meet everyday, have fun and go for a walk. Despite we can qualify the shopping’s
sociability as “instrumental” (because it is an strategy of the administration in order to
amplify the time people stay and buy), the sociability is an objective itself to the users.
So we took the challenge of establish a discussion about the valuation of calling the
shoppings of today as non–places, especially when facing the everyday more deep
relationship between the shopping and the users and with the city itself. Through its special
organization, the search for a “placed” dimension of the shopping can give important
contributions towards the comprehension of the aspects of the contemporary urban reality.
With this objective, we made a bibliographic search, which provided us with the
instruments to establish discussions about the conceptions of place, non-place and
sociability, well as the possibility of a better comprehension of the insertion of the shopping
in urban space. We collected also a number of data and used the participant observation in
BarraShopping and Iguatemi Rio, well as made interviews with the administrations and
users of these shoppings.

8
Sumário

Apresentação........................................................................................................................... 11

Objetivos e Metodologia.

1. Do shopping na cidade à cidade no shopping: A importância da sociabilidade na


renovação da representatividade dos shoppings no espaço urbano .................................. 29

1.1 A sociabilidade como via de entendimento do espaço do shopping.


1.2 A (quase) ausência da sociabilidade nos primeiros shoppings.
1.3 - A relevância da contribuição da geografia no processo de evolução da organização de
espaços de consumo.
1.4 A organização do espaço do shopping.
1.5 Sociabilidade e espaços de consumo.
1.6 O Brasil como exemplo da renovação da representatividade do shopping na cidade.

2. O rótulo do não-lugar: Uma breve revisão conceitual como um convite à ampliação


da reflexão sobre o shopping renovado pela sociabilidade................................................. 85

2.1 As dimensões do Lugar


2.2 Considerações a respeito do conceito de lugar na perspectiva da Geografia Humanista
2.2.1 O lugar como conceito-chave da geografia.
2.2.2 Fenomenologia e Existencialismo: A fundação do lugar humanista.
2.2.3 Até onde vai o lugar?
2.2.4 A produção do lugar humanista.
2.2.5 Identidade e lugar.
2.2.6 O Sentido do lugar.
2.3 Outras abordagens do lugar na geografia

2.3.1 A crítica do lugar.


2.3.2 Em busca de uma visão “integrada” do lugar.

9
2.4 O não-lugar
2.4.1. As raízes do conceito na abordagem de Edward Relph
2.4.2 Augé e o não-lugar da supermodernidade
2.4.3 Lugar, espaço e não-lugar

3. O lugar e o não-lugar também se encontram no shopping? – conceitos marginais e


desconfortáveis também se encontram no espaço (demonizado) do consumo? ............. 141

3.1 O espaço “demonizado” do consumo e as possibilidades de uma análise geográfica da


sociabilidade no shopping.
3.2 A produção do espaço (no/do) shopping.
3.2.1 A Praça de Alimentação.
3.2.2 Os desfiles.
3.2.3 Exposições Culturais.
3.2.4 Recreação/ Esportes.
3.2.5 Casas de Shows e Teatros.
3.2.6 Os Cinemas.
3.2.7 A territorialização dos espaços do shopping por grupos de jovens.
3.2.8 As Manifestações.
3.3 O lugar e o não-lugar também se encontram no shopping?

Considerações Finais . .......................................................................................................... 172

Bibliografia Citada .............................................................................................................. 177

Anexos .................................................................................................................................. 185

10
Apresentação

Na organização da cidade capitalista contemporânea, a funcionalidade e a rapidez

são itens por demais apreciados, tanto por aqueles que vendem, quanto por aqueles que

compram. O sistema de transportes e a segurança pública são fatores que desempenham um

papel fundamental diante da possibilidade de êxito naquilo que diz respeito ao consumo do

lugar. Assim, ainda que a princípio sejam funções do Estado, quando falamos de setores

como segurança e transportes, de algum modo também estamos falando da maior ou menor

capacidade de realização de lucros por empresas privadas. Grandes, médias e pequenas

empresas particulares dependem em maior ou menor grau desses serviços “estatais”.

Obviamente, as grandes empresas dominam o cenário urbano, arrumando e desarrumando

os espaços à sua maneira, estando normalmente em uma posição muito confortável diante

do poder público. Quando nos referimos a estas empresas, de maneira geral, estamos

tratando de grupos empresariais cujos negócios transcendem o espaço nacional, ou seja, vão

buscar lucros e, conseqüentemente, no mínimo, interferir na organização do espaço urbano

também no exterior.

A tentativa de padronizar determinados setores da vida em sociedade nas mais

diferentes áreas do planeta advém da necessidade de otimizar a circulação dos fluxos

(especialmente financeiros) de investimentos, os quais são facilitados quando temos uma

“rede conectada” e “formatada” dentro de determinados parâmetros gerais. Assim, a

cultura, os gostos, os modos de se relacionar com os outros e a representatividade de estar

em determinados espaços são moldados a partir de uma mesma lógica, a qual deve ser

“injetada” da forma mais eficiente possível em diversos países. Mais especificamente, a

11
própria arrumação do espaço passa a ser modificada dramaticamente a fim de atender às

necessidades e imposições “globais”. Verifica-se assim, que a organização do capitalismo

em uma rede global, tem a cidade (“subjugada”) como um de seus principais nós que

amplia e ordena a relação entre a produção e o consumo.

No século XIX, e sobretudo no século XX, toma forma a racionalidade


organizadora, operacional nos diversos degraus da realidade social (...)
uma razão analítica levada às últimas conseqüências(...) ciência da cidade,
conhecimento que tende para a planificação do crescimento e para o
domínio do desenvolvimento (LEFÉBVRE, 2006, pgs 22 e 111).

Um bom exemplo dessa atuação de planificação da cidade em prol de eficiência

para a rotação do capital, pode ser coletado no chamado setor terciário da economia, mais

pontualmente no varejo, no comércio que movimenta a cidade. Neste ramo de negócios, no

qual se encaixam diversas maneiras de se apresentar e vender mercadorias, pode-se afirmar

que sua maior expressão em termos de adequação à planificação anteriormente citada é o

shopping center. Este equipamento urbano tornou-se uma solução para vários “problemas”,

sendo aclamado pela grande maioria dos personagens envolvidos no varejo, inclusive e,

principalmente pelos consumidores. Esses “problemas” variam de acordo com o tempo e

com o lugar ao qual nos referimos1. Seja para atender aos moradores motorizados e

abastados dos novos subúrbios americanos, em sua origem em fins da década de 1940, ou

para satisfazer aos anseios da elite paulistana na segunda metade da década de 1960, ou até

para servir de refúgio à violência urbana do Rio ou ao frio congelante de Edmonton ou

Toronto, o shopping reúne diversos tipos de mercadorias que estavam dispersos pela

1
Não se pode esquecer que o Brasil, os EUA e o Canadá são ótimos exemplos da aceitação do “modelo
shopping center”, o que não é necessariamente válido para a Europa, por exemplo.

12
cidade, com o “conforto e a comodidade” do descolamento, ainda que parcial com a

distância do centro (“original”), com os efeitos do clima, ou com a própria realidade social.

Os shoppings são construídos por grandes grupos empresariais que muitas vezes

conseguem estabelecer parcerias com o Estado para viabilizar a execução do projeto. A

escolha do local de instalação é apenas um dos inúmeros itens que constam da pauta de

uma série de especialistas engajados em determinar estratégias para que o sucesso do

investimento seja quase garantido. No capítulo seguinte voltaremos a tratar dessas

estratégias com um pouco mais de detalhes. No momento, o que nos parece fundamental é

observar que atualmente há disponibilidade de assessorias especialmente preparadas para

atender aos empreendedores, o que evidentemente promove uma homogeneização dos

parâmetros que devem ser seguidos para que se tenha um futuro promissor no negócio.

Com mais de trinta anos de existência, pode-se dizer que a ABRASCE (Associação

Brasileira de Shopping Centers) coordena com competência essa padronização que vai

muito além das estratégias montadas para a implantação do shopping. A ABRASCE foi

criada nos moldes da ICSC (International Council of Shopping Centers), como parte da

importação do “modelo shopping center” dos EUA. A instituição foi fundamental na

organização do setor, que contava com aproximadamente oito unidades no ano de sua

criação, 1976, e na própria adequação do modelo americano no Brasil. Hoje, há mais de

300 shoppings no país, sendo que pouco mais da metade é filiado a ABRASCE.

Com isso, pode-se observar que quando nos referimos aos shoppings estamos nos

reportando a uma verdadeira indústria, muito bem organizada e especializada não só em

vender, mas em prover conforto aos consumidores. O “primeiro” “modelo shopping center”

preconizava o estacionamento, a iluminação, a segurança e a adequação do mix de lojas, ou

seja, a composição de grifes que variam, principalmente de acordo com o tipo (a classe) de

13
consumidor que se quer atingir. Assim, em certa medida, pode-se observar que nos

primeiros anos de implantação do shopping, seja na década de 40 nos EUA, ou na década

de 60 no Brasil, o tempo de permanência no shopping era bem reduzido em comparação ao

atual. A ausência de atrativos que transcendessem a compra ou um pequeno lanche,

acrescidos da própria característica da novidade, que impõe um certo tempo para que se

possa definir um espaço como parte do cotidiano. Visto por esse ângulo, e até este

momento da evolução do “modelo shopping center”, poderíamos afirmar que de modo

geral falamos de um espaço de passagem, um corredor padronizado composto por inúmeras

vitrines em suas extremidades, entre as quais o caminho livre nos indica não mais do que a

possibilidade de uma nova compra. O objetivo da ida ao shopping se restringia tão somente

a compra de um ou mais objetos. Esse “primeiro modelo shopping center” vigorou nos

EUA até por volta do final da década de 1970, no Brasil até a segunda metade da década de

1990.

Este modelo de shopping tornou-se gerador de uma impessoalidade, que se tornou

uma marca desses empreendimentos durante um longo período de tempo. A impressão que

se tem é que o comprador não se dava conta nem de qual shopping estava entrando, já que

em qualquer shopping, a mesma estrutura (rígida) apresentava pequeníssimas variações de

um empreendimento para outro. Da mesma forma, a própria comunicação entre as pessoas

foi diminuída ao máximo, já que através das placas indicativas acha-se a loja ou as lojas

que satisfazem suas necessidades e/ou desejos, o banheiro e a saída, nada mais. O shopping

cumpria o seu propósito inicial a risca, ampliou as vendas da maioria das lojas que lá se

instalaram, pela força do conjunto de opções em um mesmo local, sem oferecer

praticamente nada além. Havia muito pouco para se fazer em um centro de compras. A

14
relação que o público mantinha com esses espaços era muito distante, até porque não havia

qualquer motivação das administrações de ampliar essa relação.

A ida ao shopping era esporádica, rápida e motivada pela compra. No caso dos

subúrbios americanos, por exemplo, talvez as visitas fossem mais freqüentes desde o início,

pela própria falta de outras alternativas próximas, mas o tempo de permanência e a relação

com o público permaneciam em um nível bem diminuto. No caso brasileiro, ir ao shopping

tornou-se um grande programa para as elites, já que os primeiros shoppings se localizavam

em bairros nobres2, esbanjando o glamour de uma idéia “importada”, e que, portanto,

possui aqui um caráter de riqueza, especificamente projetado para pessoas de “alto nível”.

Principalmente nos países subdesenvolvidos3, o shopping acabaria se tornando um

componente importante da auto-segregação, uma nova opção para a efetivação do

“escapismo”4 das elites urbanas.

Esta primeira inserção do shopping na cidade, caracterizando-se como um local de

passagem para compras, extremamente homogêneo, objetivo e pouco comunicativo,

2
Podemos comprovar a idéia de que os primeiros shoppings foram instalados em áreas nobres de cidades
brasileiras com quatro “antigos” shoppings do país. O primeiro shopping, reconhecido como tal, surge no
Brasil em 1966. O Iguatemi São Paulo está localizado em uma das áreas mais nobres da maior metrópole
brasileira, na Av.Brigadeiro Faria Lima 2232, Jardim Paulistano. Ainda na cidade de São Paulo, o Shopping
Ibirapuera, localizado na Zona Sul da cidade atende a uma clientela de bom poder aquisitivo. Em 1971 o
Shopping Conjunto Nacional foi inaugurado em Brasília-DF, no Setor de Diversões Norte, em frente ao
Teatro Nacional. O primeiro shopping de Belo Horizonte, o BH Shopping, inaugurado em 1979, localiza-se
no luxuoso bairro Belvedere.
3
Durante suas pesquisas sobre os centros comerciais de Buenos Aires, CAPRON (1998) entrevistando uma
senhora do luxuoso bairro Palermo ilustra a idéia do escapismo das elites urbanas, especialmente em países
subdesenvolvidos: “Les propos d’une dame du quartier chic de Palermo sont significatifs: ‘Si tu vas sur une
place publique et tu veux rester sur la pelouse, on te vole ton sac, ou il y a a quelqu’um qui te dérange (...)
Dans um centre commercial, c’est moins dangereux et tu regardes plus tranquillement” (CAPRON 1998,
pg.62).

4
“O escapismo das elites não se restringe aos condomínios exclusivos: os shopping centers, que, sobretudo a
partir da década de 80 se incorporam à paisagem das metrópoles e de outras grandes cidades brasileiras,
compõem, juntamente com os condomínios exclusivos, o quadro típico desse escapismo. É bem verdade que
os shoppings não são tão fechados quanto os condomínios...” (SOUZA, 1999, pg. 201).

15
credenciou este equipamento urbano como um possível exemplo daquilo que alguns autores

chamariam de “não-lugar”; uma paisagem estandardizada, planejada para obter resultados

objetivos, projetada sem levar em conta contextos ou fatores particulares que pudessem

promover uma identificação com as pessoas que ali se encontram, vivem ou trabalham. Um

espaço desprovido de peculiaridades, uma paisagem amorfa, interesseira, “sem alma”, que

reduz a comunicação a placas ou ao mínimo necessário exigido pela objetividade. Assim

caracteriza-se um local que por sua própria inautenticidade não pode ser caracterizado

como um lugar. Há outros exemplos, além do shopping, de equipamentos urbanos

utilizados por autores como Augé e Relph, para ilustrarem o conceito de não-lugar.

Dos inúmeros rótulos atribuídos ao shopping, entre os quais, “templo do

consumo” e “catedral das mercadorias” figuram como os mais conhecidos, o do não-lugar

foi que mais nos chamou a atenção. Os dois outros, já ultrapassaram o nível da repetição e

da falta de criatividade, ainda que de certo modo pareçam trazer uma idéia explicativa de

um componente fundamental (mas muito simples e óbvio) deste tipo de espaço. O caso da

aplicação da idéia de não-lugar, entretanto, chama a atenção primeiramente pela ausência

de uma bibliografia que discuta o shopping como tal. O rótulo é atribuído como se

estivéssemos diante da mesma obviedade que se configura quando aplicamos o termo

“templo do consumo”. Em geral, não se procede nem mesmo a uma discussão sobre o

conceito, além de não haver um esforço de reflexão sobre a aplicabilidade deste rótulo nas

diferentes épocas e contextos da existência dos shoppings. Talvez, antes mesmo de

qualquer outra razão, o fato de o lugar ser um conceito muito importante (pelo menos em

tese) para nós geógrafos, não pode deixar de ser mencionado como uma grande motivação

para este recorte.

16
A discussão que envolve o não-lugar se insere no contexto que brevemente

ressaltamos páginas atrás, da tentativa de uma certa organização homogeneizante das

diferentes realidades sociais, especialmente por parte das empresas chamadas de

transnacionais, como parte do avanço do sistema capitalista pelo planeta. A revolução da

mobilidade e das comunicações trouxe consigo algumas inquietações que se relacionam à

formação de uma aldeia global, a qual promoveria, por exemplo, o fim das distâncias, o fim

do Estado, o fim das especificidades locais. No bojo dessas discussões, a possibilidade de

eliminação das especificidades locais, culminando com o fim dos lugares, ou com a

proliferação de lugares desprovidos de identidade, está o conceito de não lugar. Talvez,

possamos afirmar que no centro desta discussão encontra-se a própria geografia, ciência na

qual o lugar possui o status de conceito-chave, e para a qual esses “novos tempos” trazem o

desafio do encontro com a fluidez e a efemeridade levadas ao extremo pelo processo de

globalização. Experimentamos e observamos novos arranjos espaciais, os quais são ao

mesmo tempo causa e conseqüência das novas relações sociais que se estabelecem.

A progressiva velocidade das informações, que por sua vez nos chegam em

número cada vez maior é denominada por Marc Augé de superabundância factual, através

da qual a multiplicação de acontecimentos cada vez menos prevista pelos cientistas sociais

é comum. Neste sentido a chamada “sociedade da informação” pode assim ser “...definida e

rotulada, por seus métodos de acessar, processar e distribuir informação” (KUMAR, pg 15).

Marc Augé exprime claramente sua preocupação com a questão da identidade diante desta

realidade incerta e efêmera que hoje impera no que ele próprio chama de

supermodernidade. Este período, que segundo o autor é definido pela “aceleração da

história” e pelo “encolhimento do planeta”, seria produtor de espaços e de situações

padronizadas, homogêneas, nas quais “...nem a identidade, nem a relação, nem a história

17
fazem realmente sentido...” (AUGÉ, 2003, pg.81). Com isso, Augé parece apontar para o

progressivo fim das identidades, ou no mínimo, para uma importante escassez em sua

produção. Também empenhado em formular novas possibilidades de se entender como

ficam as identidades em nossa época “líquido-moderna”, Bauman distancia-se da

perspectiva de Augé na medida em que vê surgir novas maneiras de se produzir

identidades. “As identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem

ou mulher, capturá-las em pleno vôo, usando os seus próprios recursos e ferramentas”

(BAUMAN, 2004, pg. 35).

Bauman não acredita no fim das identidades, mas percebe que não conseguiremos

abrir caminho para um melhor entendimento da sociedade atual, se não aceitarmos que a

forma de constituição, o caráter e a “durabilidade” das identidades sofreram uma grande

mudança nos últimos tempos. Neste sentido o autor se afasta dos discursos que ainda

formulam a cerca da existência de identidades estáticas, seguras e duradouras diante do

momento atual, caracterizado pelas mudanças em “tempo real”.

Todavia, parece claro que o turbilhão de informações trazido pelo atual estágio da

globalização não atinge a todas as partes do planeta com a mesma intensidade, há um

verdadeiro “hiato de informação” (KUMAR, 1997 pg. 44), provocado em grande medida,

por um acesso por demais desigual a recursos e ferramentas, que nos leva, portanto, a

concluir que a própria possibilidade de “capturar” identidades, como se refere Bauman,

torna-se uma tarefa difícil para muitos. Esta conhecida falta de acesso por grandes massas

de indivíduos espalhados pelo mundo às principais ferramentas daquilo que chama de

“meio-técnico científico e informacional”, é uma das principais razões para que Milton

Santos considere a chamada “aldeia global” uma das principais “fábulas” da globalização.

18
Não se pode esquecer de que se constrói uma verdadeira geometria do poder5, em relação

não só às possibilidades de inclusão, como o de controle destes fluxos. Neste sentido, é

urgente lembrarmos que “a compressão de tempo-espaço precisa de diferenciação social”

(MASSEY, 2002, pg.179).

Diante dessas mudanças renova-se a própria noção de tempo e espaço. A partir da

formação de complexas redes de atuação global, parece fundamental que nos coloquemos

diante da tarefa de repensar o modo como tratamos, principalmente, as relações entre o

local e o global.

A vida política, econômica e cultural é agora muito influenciada por fatos


que ocorrem no nível global. Este fenômeno teve como um de seus
efeitos, inesperadamente, a renovada importância do local e uma
tendência para estimular culturas subnacionais e regionais (KUMAR,
1997, pg.132).

Da mesma forma, repensar a cidade à luz das novas reflexões sobre a relação entre

o local e o global se apresenta como um desafio essencial. É como uma tentativa de uma

pequena contribuição para o cumprimento desta tarefa que nos propomos, a tarefa de

repensar a representatividade que tem o shopping na cidade contemporânea, tendo como

suporte e mecanismo de leitura desses espaços, a discussão do não lugar.

Identificamos, portanto, um esgotamento do que chamamos anteriormente de

“primeiro modelo de shopping center”. A renovação que ocorreria evidentemente partiu do

berço dos shoppings, a América Anglo-Saxônica, se irradiando posteriormente para outras

áreas do planeta.

O que se seguiu, primeiramente nos EUA e no Canadá, e que se alastrou para

diversos países em diferentes épocas, foi uma “completa” expansão dos shoppings. A

palavra “completa” tenta sublinhar que a expansão da qual falamos foi muito além de uma

5
(MASSEY, 2002).

19
simples ampliação do número de shoppings, tratando principalmente de uma mudança

sensível no tipo de inserção que o shopping passaria a ter na cidade. Não se pode deixar de

lembrar que diferentes razões compõem o leque de explicações para esta mudança,

variando nos diferentes contextos urbanos em que os shoppings se inserem. Todavia, os

bons resultados apresentados nos EUA, faziam do shopping center uma fórmula promissora

para se conseguir dar uma resposta satisfatória à expansão da produção industrial e ao

aumento do ritmo das inovações, o que seria fundamental para todas as cidades em que os

shoppings ampliaram o seu leque de atuação.

Reforçamos que a mudança a qual nos referimos não faz parte do conjunto de

modificações que são recorrentes na vida de um shopping. O espaço do shopping apresenta

diversas mudanças, seja através da saída e/ou entrada de lojas, ou mesmo da inclusão de um

novo serviço. “Normalmente há vagas, já que a rotatividade das lojas em um shopping no

Brasil é de 5% a 10% de seu número de unidades ao ano” 6

Estamos tratando aqui de uma transformação da própria essência desses

empreendimentos, que deixaram de apresentar-se apenas como centro de compras, mas

como um espaço de sociabilidade, lazer, serviços e consumo. Evidentemente, diante desta

transformação podem-se apontar algumas de suas causas, destacar as modificações no

espaço do shopping, as alterações no entorno do shopping, as mudanças no perfil dos

freqüentadores e o próprio modo como as pessoas se relacionam com esses espaços.

Tocaremos em algum momento do trabalho nestes fatores, que são importantes para a

compreensão do momento que estamos propondo como recorte para o trabalho. Além disso,

estas discussões nos fornecem os instrumentos necessários para desenvolvermos a pergunta

principal do trabalho, a qual gira entorno desta mudança a qual nos referimos

6
Pequenas Empresas Grandes Negócios – Janeiro de 2007 – Pg.99.

20
anteriormente. Este questionamento trata da validade de mantermos o rótulo de não-lugar

atribuído ao shopping por pensadores de algumas áreas das ciências sociais, como

antropólogos e geógrafos. Na verdade, não partimos do pressuposto de que antes da

renovação que apontamos como foco da análise, a aplicação deste rótulo seria válida, mas

procedemos a este recorte como um momento propício a uma possível reavaliação de como

pensamos o shopping.

O “novo” modelo de shopping center não se contentava com um espaço de

passagem, de entrada e saída de compradores, a proposta visava criar um ambiente de

“parada continuada”, ou seja, fazer com que o comprador passasse mais tempo no

shopping, não só ampliando o número de lojas, como também inaugurando outros tipos de

atrativos7. Havia uma necessidade premente de multiplicar o tempo de permanência no

shopping, transformar o comprador em freqüentador, operação que por sua vez é fruto de

uma equação que foi a chave para o sucesso incontestável dos shoppings: comprador +

atrativos (lazer, eventos, serviços, segurança, conforto) = Freqüentador. O que não se pode

perder de vista, é que desavisadamente poderia se pensar que o shopping estaria se

desviando de seu objetivo principal, a venda. Na verdade o que ocorreu foi exatamente o

oposto, houve uma enorme ampliação das vendas através de uma verdadeira publicização

do shopping na cidade. Ir ao shopping tornaria-se algo normal, parte do dia-a-dia, um

programa em que a compra é um dos afazeres do freqüentador, mas não é a única que

consome seu dinheiro e seu tempo nos centros de consumo. Através do marketing, os

7
O shopping agregou inclusive outras áreas do setor terciário, que passaram a perceber que também poderiam
ampliar seus negócios, participando da vida nos shoppings. Bancos, agências de viagens e instituições de
ensino são só alguns dos vários exemplos que podem ser citados. Apresenta-se, portanto, a possibilidade de
refletirmos sobre o shopping enquanto um gerador de centralidades. Transformado pelos diversos usos, os
shoppings passaram a ser, na maioria das vezes, uma referência para o bairro e até para a cidade, modificando
o trânsito, o volume de circulação de pessoas no entorno, o valor dos imóveis próximos, o comércio
“tradicional” de rua e a própria imagem da área urbana em que se instala.

21
shoppings passaram a fazer do comércio uma verdadeira festa e a embutir ainda mais nas

mercadorias outros significados, que elevam-nas a um patamar muito superior do que o de

simples objetos. “...o aglomerado dos objetos nas lojas, vitrines, mostras, torna-se razão e

pretexto para a reunião das pessoas; elas vêem, olham, falam, falam-se. E é o lugar de

encontro, a partir do aglomerado das coisas” (LEFÉBVRE, 2006, pg.131).

Chamamos a atenção para a citação acima, em que Lefébvre identifica

precisamente esta mudança de modelo de shopping a qual estamos nos referindo.

Atualmente, a compra não é mais somente uma razão, ela se tornou também um pretexto,

para um fim que às vezes torna-se mais decisivo para uma expressiva quantidade de

freqüentadores de shoppings, ou seja, o encontro. Este encontro pode ser com pessoas

conhecidas, ou mesmo com o movimento de ver e ser visto por desconhecidos, ou com

opções de lazer. Se quisermos ir além, pode-se dizer até que em alguns casos a compra não

faz parte do roteiro no shopping, caso muito comum entre os adolescentes. Este grupo, que

em grande medida tem o shopping, já há algum tempo, como uma espécie de “centro de

sociabilidade e diversão” , é um dos principais protagonistas daquilo que veio a se chamar

“consumo simbólico”, ou seja, pequeníssimos e esporádicos gastos nas visitas ao

shopping.8 Neste mesmo sentido, ainda que “o aglomerado das coisas” mantenha sua

importância e seu aspecto fundador na própria concepção do shopping center, deixou de se

configurar em apenas um fim, para se tornar também um meio de atração para outras

atividades que se realizam no shopping. As administrações dos shoppings perceberam que a

incorporação de outras atividades e a criação (e/ou expansão) de determinadas áreas

8
Não se deve perder de vista que estamos nos referindo principalmente às visitas em que os adolescentes
encontram-se desacompanhados, já que os shoppings registram grandes vendas para esta faixa etária, às quais
obviamente são executadas mais comumente por seus responsáveis.

22
próprias para essas outras funções seria fundamental para a manutenção e/ou ampliação dos

lucros do negócio.

Os shoppings passaram a concentrar não somente lojas de diversos ramos, mas

uma grande diversidade de possibilidades de atividades, seja através dos serviços que

oferece, do lazer que proporciona, ou simplesmente pelos espaços de sociabilidade que

inaugura. Neste sentido, agregam-se aos shoppings partes importantes do cotidiano de

milhões de assíduos freqüentadores, o que evidentemente traz implicações práticas e

simbólicas para a vida no espaço urbano.

Na cidade atual, os shoppings desempenham uma centralidade muito expressiva,

modificando não só a concepção de fazer compras e de se socializar, mas alterando

drasticamente o cotidiano da área em que se localiza. O mercado de imóveis, o trânsito, a

circulação de pessoas, as opções de lazer, e a própria imagem do bairro em que se instala

um shopping center, são algumas variáveis que são modificadas ou se modificam para se

adequar ao novo e ilustre vizinho.

Podemos mais uma vez tomar a cidade do Rio de Janeiro como exemplo. No

segundo semestre de 2006 foi inaugurado um shopping center em um dos bairros de maior

poder aquisitivo da cidade, o Leblon. A inauguração do Shopping Leblon tornou-se um

grande evento para a cidade, com uma enorme repercussão na mídia carioca, atraindo

personalidades, e modificando a rotina do bairro. Passada a abertura do shopping, o que

podemos presenciar é um período de acomodação do empreendimento no bairro, e deste

com aquele. O caos que se instalou na Avenida Afrânio de Mello Franco no dia da

inauguração (5 de Dezembro de 2006) e nas semanas que se seguiram já não era tão

freqüente nas primeiras semanas de 2007, mesmo nos fins de semana. No entanto, não se

23
pode negar que o Shopping Leblon promoveu um aumento significativo do movimento de

pessoas no bairro, o que provavelmente não agradou a todos.

Há casos em que as mudanças no entorno começam a se efetivar bem antes de o

empreendimento ser finalizado. É o caso do Barra Shopping Sul, o próximo shopping a ser

inaugurado em Porto Alegre, com abertura marcada para 2008.

No ritmo do trabalho dos operários, o futuro Barra Shopping Sul começa a


gerar mudanças no perfil, na infra-estrutura e na economia da zona sul da
Capital. Com inauguração prevista para novembro de 2008, a obra da
Multiplan Empreendimentos Imobiliários deve resultar em melhorias
como a duplicação de avenidas e o reassentamento de moradores de vilas
irregulares(...)As mudanças devem alcançar o bairro Cristal, além da Vila
Assunção, Tristeza e Cavalhada. No mercado imobiliário já se prevê a
valorização de imóveis em um raio de até 10 quilômetros de onde será
erguido o Barra Shopping Sul, nova denominação do Cristal Shopping(...)
De acordo com estimativa do vice-presidente de Comercialização do
Sindicato das Imobiliárias e dos Condomínios (Secovi/Agademi), Gilberto
Cabeda, casas e apartamentos devem ser valorizados em no mínimo 20%”
(Jornal Zero Hora, 15 de Janeiro de 2007, Dionara Melo).

Objetivos e Metodologia

Neste sentido, o objetivo principal deste trabalho é contribuir para o entendimento

do fenômeno shopping center na cidade contemporânea. Especificamente, objetivamos

chegar este propósito fundamental através dos conceitos de lugar e não-lugar. Os shoppings

foram e ainda são tratados por diversos autores como exemplo eloqüente daquilo que

definem como não-lugar, fato este que já foi pontuado brevemente em linhas acima;

Todavia, nos parece que se observarmos a evolução desses equipamentos urbanos com

maior atenção, talvez possamos concluir que, no mínimo, pode-se perceber a produção de

uma certa “lugaridade”. Por isso, insisto em sublinhar esta renovação da imagem do

24
shopping perante a cidade, que já há algum tempo deixou de ser um ilustre novato, para se

tornar um velho (e sempre novo) conhecido.

Desta forma, esta dissertação está organizada da seguinte maneira: seguindo a esta

apresentação, o próximo capítulo será composto de uma série de reflexões concernentes à

ampliação das funções e da representatividade dos shoppings na vida urbana. Como via de

compreensão desta “evolução” dos shoppings a qual já havíamos nos referido

anteriormente, daremos especial atenção à discussão que envolve o conceito de

sociabilidade. Tentaremos demonstrar que a ampliação em larga medida da sociabilidade

nos shoppings foi um dos fatores primordiais para a renovação da dinâmica desses espaços.

Com esta renovação acontecendo, nos questionamos sobre a validade da constante

“rotulação” do shopping como sendo um não-lugar. Ou seja, nossa pergunta gira em torno

da idéia de que, pelo menos, a partir da maior complexidade social que esses

empreendimentos passaram a ter, nos parece que a análise deve seguir o mesmo caminho.

Utilizo a idéia de “rótulo”, pois em diversos trabalhos, como em PADILHA

(2006), o shopping é classificado como não-lugar, sem que haja qualquer reflexão sobre as

implicações desta afirmação e, muito menos uma preocupação com a precisão sobre o que

se define em termos teóricos como não-lugar. A partir disso, propomos no capítulo 3 uma

discussão teórica sobre os limites e as possibilidades de tomarmos o shopping como um

exemplo do que seria o não-lugar. No capítulo que precede as considerações finais,

pretendemos apresentar uma leitura do shopping como espaço de sociabilidade a partir da

discussão dos conceitos de lugar e não-lugar.

Na tentativa de alcançar os objetivos propostos, foi realizado um levantamento

bibliográfico sobre os shopping centers e sobre os conceitos de lugar e de não-lugar. Além

disso, foram coletados diversos dados e alguns mapas que nos ajudaram a compreender

25
melhor a evolução da indústria de shopping centers no Brasil e no mundo. Os números e os

mapas nos esclareceram diversas estratégias utilizadas na montagem geral de um shopping.

Ressaltamos que as considerações feitas em relação ao shopping center ao longo deste

trabalho não se prendem a determinada cidade ou mesmo se restringem ao Brasil. Tratamos

aqui do shopping como um equipamento urbano disseminado em várias áreas do planeta,

não nos furtando de destacar exemplos e situações verificadas em outros países, fazendo

evidentemente as devidas ressalvas e considerações. Todavia, é inegável a propensão de

privilegiarmos na análise do shopping, o contexto brasileiro e até carioca, diante de nossa

proximidade com esta realidade.

Assim, como campo mais próximo de estudo, escolhemos dois shoppings da

cidade do Rio de Janeiro, que pudessem ilustrar nossa tentativa de responder, através de

dados e entrevistas, alguns questionamentos sobre os shoppings. Já que tomamos a

sociabilidade nos shoppings como o “fio condutor” de nosso trabalho, uma das grandes

preocupações foi eleger dois shoppings que fossem de épocas diferentes, para que

pudéssemos observar a inserção da sociabilidade nesses empreendimentos em diferentes

momentos. O fato do Barra Shopping ter sido aberto ao público bem no início da década de

80, nos deu a oportunidade de observar como a inserção da sociabilidade no

empreendimento se deu de modo lento nos primeiros 15 anos. Por outro lado, o Iguatemi

construído exatamente 15 anos depois do Barra Shopping, já nasceu com a idéia de que a

sociabilidade seria um componente fundamental para o sucesso do shopping.

Com isso, escolhemos o Barra Shopping inaugurado em 1981, localizado na Barra

da Tijuca, um bairro considerado de alto poder aquisitivo, e o Shopping Iguatemi,

inaugurado em 1996, localizado em Vila Isabel, um bairro bem mais modesto do que a

26
Barra. Realizamos observações participativas9, entrevistas10 com freqüentadores e

entrevistas com as administrações dos dois shoppings. Esses procedimentos foram de

grande valia como ilustração das idéias a que nos propusemos discutir, bem como geraram

novos questionamentos e lançaram luz sobre como os shoppings são vividos e analisados

sob diversos pontos de vista. No entanto, não utilizamos qualquer tipo de amostra, nem

formulamos dados estatísticos com as entrevistas que colhemos, sendo o produto do esforço

de utilizar este instrumento, uma forma de nos aproximarmos um pouco mais do dia-a-dia

dos shoppings, e não de colher dados estatísticos, os quais foram obtidos através de outras

fontes. Vale destacar também, que as administrações dos shoppings pesquisados procuram

dificultar ao máximo a pesquisa, seja através da abordagem dos seguranças que querem

saber se somos funcionários de um shopping concorrente, seja através da resistência em

responder aos contatos solicitados por nós. Assim, mesmo diante desses obstáculos, os

quais eram esperados, conseguimos dados nas administrações e respostas de freqüentadores

que ilustraram e nos levaram, nós e os freqüentadores, a refletir sobre questões que não

havíamos pensado anteriormente.

Desse modo, o estudo de um empreendimento urbano que está progressivamente

ampliando, de diversas formas, seu papel social, pode ser de grande interesse para a

geografia. Além disso, acreditamos que a relevância do tema para a geografia também

esteja presente na medida em que será exatamente a partir da lógica do espaço do shopping,

que partiremos para a compreensão desse empreendimento. “...esta ordem espacial das

9
Segundo (Costa, 1986), a observação participante proporciona os melhores resultados na obtenção de
informações sobre comportamentos, discursos e acontecimentos observáveis, mas que passam desapercebidos
à consciência explícita dos atores sociais. Essas observações foram sistemáticas, realizadas entre Novembro
de 2006 e Abril de 2007.
10
Os questionamentos direcionados aos freqüentadores e às administrações estão em anexo. Tratam-se de
questionários “abertos”, sem itens objetivos.

27
coisas quer dizer que sua distribuição tem uma lógica, uma coerência. É esta lógica do

arranjo espacial a questão geográfica por excelência” (GOMES, 1997, p.35).

Neste sentido, não estará envolvida neste trabalho somente a organização espacial

do entorno do shopping, mas principalmente o espaço interno deste centro comercial. É aí

que priorizaremos a sociabilidade como dimensão de análise e procederemos a uma leitura

do espaço do shopping a partir da discussão lugar/não lugar. Finalmente, nos parece de

fundamental importância o surgimento de contribuições que contemplem as bases

conceituais da geografia, especialmente quando nos referimos ao conceito de lugar, que

apesar de ser considerado um dos conceitos-chave para a geografia, é provavelmente,

dentre esses, o menos discutido.

28
Capítulo 1

Do shopping na cidade à cidade no shopping: A importância da sociabilidade na

renovação da representatividade dos shoppings no espaço urbano.

A ampliação do sucesso da indústria de shopping centers possui uma estreita

relação com o papel que a sociabilidade passou a exercer nesses espaços. Neste sentido, a

própria existência dos shoppings pode ser dividida, a partir da expressiva participação da

sociabilidade, em dois “modelos” distintos. O primeiro relaciona-se a uma época em que os

administradores estavam muito concentrados em métodos extremamente objetivos de levar

o cliente à compra. Os shoppings, em geral, se resumiam às lojas, ao estacionamento, aos

banheiros e a algumas lanchonetes. O marketing desses empreendimentos se esgotava em

sublinhar as vantagens de se estar em um shopping, a partir de fatores como o grande

número e a variedade das lojas concentradas em uma mesma área climatizada (protegida

das intempéries), elegante, segura e com amplo estacionamento. O próprio arranjo do

29
espaço, fazia do shopping, tão somente uma área de passagem, em que comprar era a única

atividade que fazia sentido naquele ambiente pouco flexível a outras atividades.

Mesmo com as mudanças de lojas, as ampliações, os shoppings começaram a

observar um certo esgotamento deste “primeiro modelo”. As vendas já não se mostravam

tão vantajosas e os atrativos dos shoppings não se ampliavam. Um ponto que ficou claro

para os administradores foi, a necessidade urgente de ampliar de forma drástica o tempo de

permanência no shopping. Como isso poderia ser feito? No Brasil, por exemplo, este

“esgotamento” se verificou no início dos anos 90, uma época em que os casos de violência

urbana saltavam a novos patamares, e o “medo da rua“ se insinuava como uma possível

regra do espaço “público” das grandes cidades brasileiras. Este fator também foi tomado

pelos administradores dos shoppings como uma oportunidade de renovação do próprio

papel que esses empreendimentos desempenhavam na cidade até então. Mais uma vez, a

reflexão voltava para a mesma pergunta: Como atrair este público ansioso por comprar,

mas medroso de sair à rua?

De modo geral, pode-se afirmar que a resposta estaria na flexibilização, e mesmo,

na ampliação dos conteúdos do shopping. Deixar de ser um espaço de compras, para ser um

empreendimento voltado para compras, lazer e entretenimento foi o ponto-chave para o

“segundo sucesso” dos shoppings. Essa verdadeira renovação também implicaria em

mudanças na forma e na estrutura do empreendimento, as quais promoveriam um rearranjo

do espaço do shopping, que se tornaria, então, afeito também à sociabilidade. A passagem

de um modelo para outro, pode ser vista como um verdadeiro marco de uma mudança mais

geral, que salta aos olhos quando refletimos, entre outros fatores, sobre o próprio papel que

o shopping desempenha no contexto urbano. Esta mudança não ocorre de modo simultâneo

nas diferentes áreas do mundo que possuem shoppings.

30
Neste trabalho, estamos procurando seguir este momento de mudança na

concepção dos shoppings, que ao nosso ver teve na introdução da sociabilidade como um

item pertencente ao leque de atrativos do shopping, um fator fundamental para o grande

sucesso (renovado) que esses empreendimentos vêm experimentando. Da mesma forma, em

paralelo, propomos ao longo deste caminho uma observação cuidadosa quanto à pertinência

da conceituação do shopping como um exemplo de um não-lugar, diante dessas mudanças a

que nos referimos anteriormente. Com isso, este capítulo pretende desenvolver uma

reflexão sobre a inserção da sociabilidade no shopping. Na atualidade, presenciamos um

momento em que agenciar o espaço de um shopping passa (quase que) necessariamente

pela existência de espaços de sociabilidade nestes empreendimentos.

1.1 A sociabilidade como via de entendimento do espaço do shopping

É muito comum vermos o conceito de sociabilidade apresentado como sinônimo

de relações sociais. Na verdade, mais do que a confusão entre conceitos diferentes, a

sociabilidade é quase sempre tratada de forma simplista, como um termo que indica co-

presença, ou faz referência a qualquer comunicação entre duas ou mais pessoas.

A vida em sociedade abrange, mas não se restringe aos seus momentos de

sociabilidade. Simmel nos lembra que a sociabilidade pode ser entendida como uma forma

(lúdica) de socialização, uma forma que, na verdade, resulta do processo de socialização,

que ganha vida própria quando “se poupa dos atritos com a realidade, por meio de uma

relação meramente formal com esta” (SIMMEL, 1983, pg 169). Aquilo que Simmel chama

de “impulso da sociabilidade”, extrai dos fenômenos da vida social sua mera forma, a qual

será adaptada dentro de estruturas específicas. Isto não quer dizer que sociabilidade seja

31
uma forma vazia, já que o conteúdo que lhe deu o primeiro sentido, que foi extraído da

realidade, se metamorfoseou e se dissolveu no jogo da forma. Neste sentido, ao ganhar vida

própria, a sociabilidade passa a depender inteiramente dos “jogadores” envolvidos.

A idéia do jogo, como uma forma de sociabilidade, é muito cara a Norbert Elias,

quando este autor trata dos fenômenos de interdependência que estruturam a socialização.

Assim, através de elementos formadores da própria natureza do jogo, como a disputa por

territórios, a medição de forças, as tensões, os conflitos, Elias procura estruturar os laços

que compõem a natureza da sociedade em movimento. É neste sentido que podemos

entender a sociedade como formada por jogadores interdependentes, e a sociabilidade como

via de acesso à compreensão do todo social de que faz parte. Desta forma, não é demais

lembrarmos que a sociabilidade nem sempre é sinônimo de boas relações, de amenidades,

mas pode representar momentos de conflitos e disputas, inclusive por territórios. No caso

de (ELIAS apud WAIZBORT, 1999), é através do conceito de figuração que nos tornamos

aptos a compreender como se articulam os elementos que constroem e destroem

continuamente a sociedade. Assim, a idéia de figuração trata de afirmar que a sociedade...

...não é nem uma abstração das peculiaridades dos indivíduos que existem
como que sem sociedade, nem um “sistema” ou uma “totalidade” que está
para além dos indivíduos, mas sim que, justamente, a sociedade é o
próprio entrelaçamento das interdependências formadas pelos indivíduos
(WAIZBORT, 1999, pg 102).

Neste sentido, tanto para Elias como para Simmel, a socialização constitui-se em

um todo relacional, formado pelas interações entre seus elementos. Essas relações estão em

processo, construindo-se e destruindo-se continuamente, não havendo, portanto, uma

sociedade acabada. Para Simmel, é o conceito de interação que expressa de modo mais

claro esse encadeamento constante e simultâneo “entre os átomos da sociedade”. Ou seja,

através de relações mútuas, as interações, abre-se caminho para desvendarmos a teia social.

32
“A partir de cada interação singular é possível adentrar na teia do todo” (WAIZBORT,

1999, pg 97). Com isso, a sociabilidade parece ser um dos elementos que estão

promovendo a constante interação ou a constante figuração, que nos levam a compreender a

vida social como um todo.

A sociabilidade, o encontro, o ver e ser visto têm participado ativamente da

organização do espaço dos shoppings, um espaço de co-presença em que os freqüentadores,

ao mesmo tempo em que avaliam, são avaliados, interpretam símbolos e são também

propagadores de outros símbolos, são simultaneamente sujeito e objeto. Ocorre aí uma

visibilidade mútua, em que as pessoas são simultaneamente atores e observadores. Georg

Simmel define que “o olhar pelo qual procuramos perceber o outro é em si mesmo

expressivo. Pelo olhar que desvenda o outro, desvendamos a nós mesmos” (JOSEPH, 2000,

p.19).

Com isso, a partir do momento em que observamos, fazemos parte de um jogo de

interações, no qual a regra principal consiste em aceitarmos que o outro também nos

observe. George Mead lembra que “o eu é o organismo que pode tomar a si próprio como

objeto, ele pode se ouvir falar. Como tal é uma estrutura social que se desenvolve

inteiramente numa experiência de comunicação” (JOSEPH, 2000, p.21). Remetemos-nos aí

a Bruno Latour, em sua afirmação de que “os seres em presença se defrontam ao mesmo

tempo enquanto sujeitos e objetos” (LATOUR, 1994, pg.55).

Isaac Joseph deixa claro que a dimensão espacial tem importância fundamental no

estudo das interações quando afirma que:

o encaixe dos territórios e das regiões de significação combina o material


e o imaterial, o visível e o virtual, os índices e as interpretações. Essa
grande mistura, essa grande hibridização são precisamente os traços da
ordem simbólica atuante numa situação” (JOSEPH, 2000, p.39).

33
1.2 A (quase) ausência da sociabilidade nos primeiros shoppings

O “primeiro modelo de shopping center” nasceu na América Anglo-Saxônica,

mais precisamente através da ocupação dos subúrbios de diversas cidades dos EUA,

movimento este que ganhou mais expressão a partir do término da Segunda Guerra

Mundial. Até aquele momento, as galerias e as lojas de departamento dominavam

amplamente o comércio varejista. Os shoppings nasceram primeiramente como uma

necessidade da nova população que se instalava nos subúrbios, sendo que posteriormente,

se afirmaram como um projeto de redefinição do conceito de comércio a varejo na cidade.

Suburbanization was already taking place in the second half of the


nineteenth-century; however, its nationwide acceleration began only early
in the twentieth-century(…)the population moving to suburbs have higher
per capita income (COHEN, 1972, pg.25).

A proliferação de áreas suburbanas11 nos EUA no início do século XX como um

movimento de populações com no mínimo, um bom poder aquisitivo, para áreas mais

afastadas do centro, possui uma estreita relação com a difusão do automóvel. As

possibilidades de deslocamento proporcionaram um rearranjo da organização do espaço

urbano, o que aconteceria de modo efetivo novos subúrbios. Assim, o nascimento dos

shoppings fazia parte da composição de elementos que passaram a nortear a vida de um

ambiente urbano que se pautava em uma dinâmica diferente das áreas centrais tradicionais.

De modo geral, os subúrbios americanos se estabeleceram como áreas planejadas, em que o

zoneamento estabelecia a fragmentação dos espaços através de critérios funcionais, ficando

a articulação desses espaços a cargo das vias expressas. Muitos shoppings foram erguidos

11
Assim, vencendo as dificuldades da cidade supercongestionada e demasiado extensa, o subúrbio se revelou
a um tempo uma solução (…) o resultado foi uma ampla dispersão de subúrbios de classe superior…
(MUMFORD, 1965, pg. 530&535).

34
ao longo dessas vias, em que a acessibilidade era total, e a área disponível para a construção

era a maior possível. A concepção de um espaço que concentrasse diversos ramos de

comercialização de bens e serviços, os quais estariam submetidos a uma administração

centralizada, tornou-se necessária a partir da “...progressiva mudança nas formas de

organização, métodos e técnicas de produzir...” e da “...incorporação encadeada de

inovações nos modos de troca, principalmente a partir do século XIX” (BIENENSTEIN,

2002, pg. 72). O shopping surge em um contexto de mudanças importantes não só na

estrutura capitalista, como também no espaço urbano dos EUA.

Enquanto a estação ferroviária e as distâncias a pé controlaram o


crescimento suburbano, o subúrbio teve uma forma. A própria
concentração de lojas e facilidades de estacionamento ao redor da estação
ferroviária, nos melhores subúrbios, chegou a promover um novo tipo de
área de mercado, mais concentrada que o mercado linear ao longo de uma
avenida. Surgiu assim um protótipo espontâneo de shopping center
suburbano, cujas facilidades acessíveis de estacionamento lhe
emprestavam vantagens sobre os estabelecimentos urbanos mais centrais,
depois que o automóvel particular tornou-se o principal modo de
transporte (…) O advento do automóvel foi acompanhado pelo deliberado
desmantelamento do sistema de transportes eletrificados (…) Com a
destruição das distâncias que se podiam cobrir a pé, verificou-se a
destruição do caminhar como um meio normal de circulação humana: o
automóvel tornou-o inseguro e a extensão do subúrbio tornou-o
impossível. (…) Assim, cada nova fábrica ou escritório, cada nova loja de
departamentos ou shopping center, implantado no meio do campo aberto,
exige estacionamentos tão amplos… (MUMFORD, 1965, pg. 546&547).

Os anos 50 representaram uma época de ampliação dos subúrbios de classe média

nos EUA, além do aumento do número de carros. Para o arquiteto Victor Gruen, este era

um momento propício para resolver alguns problemas comuns nos centros urbanos

tradicionais. Gruen acreditava que o clima, a dificuldade de circulação e estacionamento

dos veículos, a falta de espaços com acessibilidade adequada para atividades culturais e

recreativas, eram alguns dos principais desafios a serem superados. Não se pode esquecer

que este projeto estava inserido no contexto do consumo, ou seja, não se pensava em

35
projetar um equipamento para “simplesmente” resolver problemas urbanos, mas sim para

principalmente ampliar os ganhos dos empreendedores e de seus sócios. Entretanto,

baseando-se no formato utilizado na construção dos parques da Disney, os empreendedores

perceberam que o controle e a vigilância seriam essenciais para o “espetáculo do consumo”.

Desse modo, a solução seria obtida através de espaços projetados, que promovessem um

ambiente de organização, “felicidade” e limpeza. O mais antigo shopping construído e

organizado nos moldes conhecidos hoje, o Southdale Center, em Minesota, EUA, foi

projetado por Victor Gruen.

Em 1956 o Southdale Center em Minesota, EUA, foi o primeiro a adotar o


modelo arquitetônico todo fechado, por ser uma região de invernos
rigorosos, adotado na maioria dos shopping centers posteriores,
independente do clima (RAIUNEC, 1988, p.68).

Uma das novidades do Southdale, que foi inaugurado com 150 mil metros

quadrados, foi oferecer em suas áreas de circulação, que eram internas, aquecimento no

inverno e ar condicionado no verão (RYBCZYNSKI, 1995).

Assim surge o mall, uma alameda coberta, com lojas em ambos os lados,

assumindo vários formatos, ainda que as linhas retas e curvas tenham sido os principais

modelos adotados, como podemos verificar nas ilustrações abaixo.

Straight Arcade Curved Arcade

36
Source: Tutt, P. & Adler, D. 1981, 'The New Source: Tutt, P. & Adler, D. 1981, 'The New
AJ Metric Handbook', Architechtural Press, AJ Metric Handbook', Architechtural Press,
London. London

De forma geral, o shopping poderia ser descrito como um empreendimento

composto por uma alameda coberta com lojas de diferentes ramos em ambos os lados, as

quais estariam subordinadas a uma administração centralizada pelos empreendedores.

Antes mesmo da escolha do local da construção, os incorporadores promovem análises

minuciosas sobre as condições locacionais, populacionais e econômicas da área, buscando

garantias mínimas de sucesso para o empreendimento. Aspectos como a acessibilidade e o

padrão econômico dos possíveis freqüentadores, são determinantes para a escolha do

conjunto de lojas e de atividades que farão parte do shopping. Outros requisitos

fundamentais seriam um estacionamento, compatível não só com o tamanho do shopping,

mas também com sua área de influência, além de possuir uniformidade arquitetônica.

...as expressões individualistas das diferentes lojas seriam contidas por


controles arquitetônicos e, como os primeiros esforços de planejamento
dos capitalistas, os shoppings uniram, idealmente, comércio e
modernismo (GHIRARDO, 2002, pg 73).

Neste sentido, o shopping surge como uma novidade dos anos de 1950, pela

criação de um novo modelo de organizar o espaço varejista, constituído por requisitos e

arranjos que, de modo geral, não incentivavam a sociabilidade. Neste modelo de shopping,

quando existiam, o lazer, os serviços e os espaços de sociabilidade eram fatores

secundários.

Os primeiros (shoppings)12, geralmente com supermercado, tinham como


maior atração, a concentração de lojas comerciais em um só lugar. Com
isso, os consumidores podiam estacionar o carro e andar de loja em loja,
em vez de dirigir para cima e para baixo (RYBCZYNSKI, pg.185, 1995).

12
O adendo é nosso.

37
Este modelo de shopping perdurou nos EUA, desde sua criação após a Segunda

Guerra Mundial até aproximadamente o final da década de 1970. Foi exatamente nesta

“fase” que a idéia de não-lugar ganhou força como um conceito possível para a definição

da dinâmica espacial do shopping, e para a caracterização de sua própria natureza enquanto

parte do espaço urbano.

...satisfying consumers has become increasingly important since 1980,


when malls approached the saturation point. The system demonstrated a
surprising adaptability: in spite of its history of rigidly programmed
uniformity, new economic and locational opportunities prompted new
prototypes. Specialty malls were built without department stores, allowing
a more flexible use of space. To fit urban sites, malls adopted more
compact and vertical forms with stacked floors of indoor parking , as at
the Eaton Center in Toronto and the Beverly Center in Los Angeles
(CRAWFORD, 2000, pg.10).

Assim, desde a década de 1980, especialmente nos EUA e no Canadá os

shoppings não só se adaptaram às novas possibilidades de localização nas áreas mais

centrais das cidades, promovendo modificações em seu protótipo de construção, como

também em sua organização interna. A “indústria dos shoppings” passou a não atuar

somente nos subúrbios, ampliando grandemente seu mercado potencial nos centros

urbanos. Além disso, a inclusão de áreas de lazer, prestação de serviços e espaços afeitos à

sociabilidade, direcionaram as mudanças no espaço interno. algo que não estava previsto

originalmente. “To differentiate themselves from the competition, some developers have

opted for the inclusion of major recreational attractions in their mega-projects…

(BORCHERT, 1990 in: JONES, 1991, pg. 248).

Considerado o maior shopping do mundo até 2005, quando foi superado pelo

South China Mall13, o West Edmonton, em Alberta, no Canadá, possui 500mil m2 de área,

localizando-se a 20km do centro de Edmonton, é um bom exemplo de como as mudanças

13
O South China Mall foi inaugurado em 2005 e conta com cerca de 600mil m2 de área.

38
no espaço interno, e a verdadeira renovação nas atividades e na própria imagem do

shopping, garantiram o sucesso de um empreendimento gigantesco e milionário. O West

Edmonton, inaugurado em 1981, já nasceu pautando-se na idéia de que além da compra, o

shopping também é um espaço a ser apropriado pelo lazer, pelos serviços e pela

sociabilidade. Assim, nesse mais de 25 anos de existência ocorreram diversas ampliações e

inovações que fazem do West Edmonton não só um pólo de atrações e de encontro na

cidade, mas também um local turístico. “...leasable, retail and service space. It (West

Edmonton Mall) contains more than 600 shops, plus a hotel and leisure and recreational

facilities that are unmatched in any previous shopping center” (JACKSON & JOHNSON,

1991, pg. 226).

O West Edmonton recebe em média cerca de 22 milhões de visitantes por ano,

possuindo, por exemplo, o maior parque aquático coberto da América do Norte, com 20mil

m2 de área. As áreas destinadas a shows e alimentação são o centro de sociabilidade do

shopping, locais em que os freqüentadores se entretêm, se comunicam e se encontram.

Além disso, essas atividades ampliam sobremaneira a atração de pessoas para fazer

compras.

Nonetheless, it is the recreation component that contributes to West


Edmonton’s Mall’s uniqueness, and the largest of these components may
well be unconventional, but significant, anchors to draw potential
shoppers to the mall (JOHNSON, 1991, pgs.252&253).

1.3 - A relevância da contribuição da geografia no processo de evolução da

organização de espaços de consumo.

À construção de um shopping center, é realizada previamente uma complexa

gama de pesquisas sobre a melhor localização para se instalar o empreendimento, sobre a

39
acessibilidade e principalmente, sobre o perfil econômico do público da área que se

pretende “atingir”. Essas técnicas de avaliação de mercado, que desempenham, portanto,

um papel reconhecidamente decisivo no sucesso deste tipo de empreendimento comercial,

estão muito atentas para a geografia da área em que o shopping se assentará. A correta

leitura da organização dos espaços adjacentes, ou seja, o modo como as ruas, os prédios, as

calçadas, os transportes e as pessoas estão dispostas no espaço, torna-se a lógica principal

de um jogo determinante para os lucros futuros. Assim, ainda que de modo geral, pode-se

perceber que há uma verdadeira equipe de estrategistas trabalhando em função de encontrar

aquele ponto exato do espaço, aquele nó fundamental que trará ao shopping a visibilidade e

a inserção necessária para o sucesso na rede do consumo urbano. Por sua vez, os fatores a

serem levados em consideração são tantos e, especialmente, de naturezas tão diversas, que

este grupo de “estrategistas” deve ser composto de profissionais de várias áreas, já que há

uma real necessidade de trocas de dados, informações e conceitos diversos.

A complexidade que envolve a “concepção” dos shoppings vem crescendo

progressivamente na medida em que o número de empreendimentos vem se multiplicando

em um número cada vez maior de países, com diferentes questões a serem observadas. “Os

shopping centers participam ativamente de um complexo processo de encadeamento de

espaços urbanos...”(PADILHA, 2006, pg.33). Neste sentido, se nos dias de hoje

observamos um enorme aprimoramento nesta “arte” de desvendamento da organização do

espaço como base para um processo de acumulação nos espaços de consumo, por outro

lado nos parece oportuno lembrar que a importância da lógica que dá sentido a esse

“encadeamento” urbano fez parte da “concepção” de espaços de consumo em diferentes

momentos pretéritos. Da mesma forma, a distribuição das lojas, as diferentes funções

delegadas às diferentes áreas, aquilo que talvez possamos chamar de produção do espaço do

40
shopping, ainda que possua claras e importantes inovações, traz consigo de algum modo,

“concepções geográficas” já utilizadas em outras épocas.

Nos parece um exercício interessante, não somente sob o ponto de vista

metodológico, mas também como uma possibilidade de encaminhamento de reflexões que

ampliem o escopo da discussão aqui proposta, uma tentativa de demonstrar que

determinados agenciamentos do espaço e as práticas sociais a eles relacionados em

diferentes momentos históricos, podem ser observados como contínuos sob o ponto de vista

geográfico, ainda que haja um abismo temporal entre eles. Evidentemente, não se está aqui

com a intenção de minimizar as particularidades e os condicionantes de práticas sociais e

espaciais de cada momento histórico, mas de realçar possíveis semelhanças quanto à

organização de determinados espaços, ainda que pertençam a temporalidades diferentes.

Um exemplo ilustrativo para esta abordagem é a descrição do Crystal Palace de

Ebenezer Howard, em Garden Cities of To-morrow. Escrevendo esta obra nos últimos anos

do século XIX, Howard traça uma cidade imaginária que pudesse reunir o que de melhor o

campo e a cidade podem oferecer. “Howard had seen the miseries of crowded Victorian

cities and the backwardness of the rural areas” (CRESSWELL, 2004, pg.97). Nesta cidade,

haveria, então, um “Palácio de Cristal”, que seria uma galeria envidraçada virada para um

parque. Seria um dos locais mais freqüentados em dias chuvosos, devido à sua cobertura

luminosa. O espaço fechado do “Palácio Cristal” seria grande o suficiente para que

inúmeros artigos fossem expostos para venda, e para que as pessoas pudessem comprar e

passear. Haveria também um jardim de inverno. O conjunto, forma um círculo, o que faz

com que esteja próximo de todos os habitantes da cidade. Assim, a acessibilidade do

“Palácio Cristal” é total, já que todos os caminhos da cidade levam ao palácio. Observa-se,

portanto, uma preocupação especial com a acessibilidade, além de uma cobertura, que

41
permite o acesso em dias chuvosos, sem falar na disposição de mercadorias em um espaço

amplo, em que as pessoas escolhem, compram e passeiam. Ressaltamos ainda, que se trata

de uma galeria envidraçada que expõe mercadorias, voltada para um parque, ou seja,

através desse modo de arrumar o espaço, denota-se uma preocupação em aliar a compra, ao

passeio. Howard parece ter tirado o nome “Palácio de Cristal” da construção que

efetivamente foi levantada em Londres, em 1851, pelo arquiteto inglês Joseph Paxton. O

“Palácio” feito de ferro e vidro foi construído para abrigar uma grande exposição de artigos

comerciais vindos de várias partes do mundo, atraindo milhares de visitantes. Precisamente

nesta mesma época, na metade do século XIX, as grandes galerias comerciais surgiam na

Europa. As galerias proporcionaram uma monumentalidade “física” ao comércio, como que

demonstrando a que patamares o capitalismo europeu chegava um século após a Revolução

Industrial. Na verdade, já na primeira metade do século XIX a Burlington Árcade surgia em

Londres (1818). Outros nomes importantes seriam a Bon Marché, em Paris (1852), e a

Victor Emmanuel em Milão (1867). Fora do contexto europeu, podemos citar a Stewart e

Co. , a em Nova York (1859). As galerias e lojas de departamento concentravam-se

significativamente nos centros das cidades, formando ruas e pátios internos, que permitiam

o acesso às lojas. O Cristal Way em Londres (1855) era uma edificação com inúmeros

andares de lojas que possuía um subsolo interligado com linhas do metrô.

A origem mais remota das galerias, que evoluíram para os Shoppings,


estaria nos arqui-antigos bazares orientais, como os de Damasco,
Isphahan, Boukhara, Istambul, Fez. Bazar significa mercado, mas com
ruas cobertas, ladeadas de comércios. Segundo os analistas, o que
distingue o bazar oriental das galerias ou passagens é o emprego do vidro
na cobertura, e onde também, o cliente pode mexer nas mercadorias,
devido à ausência de vitrines. A crescente visualização da mercadoria na
Europa Ocidental leva o passante a parar, a fim de apreciar, com fascínio,
tantas novidades proporcionadas pela indústria e pelos modismos...era
preciso um espaço mais acolhedor do que o eram as ruas de Paris,
fedorentas (valetas centrais drenavam as águas usadas), enlameadas e
perigosas devido às carruagens (YÁZIGI, 2000, p. 154).

42
Tanto na descrição acima quanto nas idéias de Ebenezer Howard sobre a “Cidade

Jardim”, é interessante percebermos o destaque dado aos problemas urbanos de Londres e

Paris no século XIX. Como parte fundamental do mesmo processo de mudanças que se

alastrava rapidamente na economia e no comércio da época, o espaço urbano também

passava por um momento de reestruturação, do qual as galerias e as lojas de departamento

tinham um papel importante.

A produção em massa gerada especialmente com a Revolução Industrial do século

XVIII começava também, a introduzir uma nova forma de consumo, novos gostos,

modismos, que seriam passados ao público, nas galerias. Pensava-se em apresentar o

consumo, não mais como um meio de satisfazer necessidades físicas, mas como uma

atividade de recreação, social, em que a saciar gostos e caprichos, admitir a compra como

uma forma de alçar status, é fundamental. A propósito, esse tipo de idéia permanece até

hoje, sendo cada vez mais difundida, pelo marketing dos shoppings.

Lewis Mumford comenta esse período de mudanças no modo de produção

europeu em Cidade na História:

Entre o século XVI e o século XVIII, tomou forma na Europa um novo


complexo de traços culturais. Tanto a forma quanto o conteúdo da vida
urbana, em conseqüência, foram radicalmente alterados. O novo padrão
de existência brotava de uma nova economia, a do capitalismo
mercantilista; (MUMFORD, 1965, p.444).

43
Nas ilustrações, a galeria Victor Emmanuel com o teto envidraçado e suas grandes

dimensões, as quais eram as grandes novidades que atraíam numerosos contingentes de

pessoas em Milão. Na loja de departamentos Printemps, em Paris, observa-se a

monumentalidade que o comércio ganhava com as novas lojas, no século XIX. A

concepção de um espaço de comércio que representasse uma idéia de festa e sociabilidade

torna-se um ponto fundamental para o sucesso das galerias e das lojas de departamento e,

de certa forma, do próprio capitalismo.

Segundo Max Weber, foi na Idade Média, com o renascimento do comércio e das

cidades, que o homem político da Antigüidade tornou-se um cidadão econômico. Citando

Weber, Richard Sennett nos lembra que:

No mundo antigo, o comércio e o trabalho manual pareciam um pouco


mais do que atividades grosseiras e miseráveis. A cidade medieval
sofisticou-as. Segundo Max Weber, “o cidadão medieval estava prestes a
converter-se em um econômico”, já bastante distanciado do cidadão
antigo, que era um homem político (SENNETT, 1999, p.136).

Sennett descreve ainda, uma mudança na forma de comercializar:

Na Alta Idade Média, a exposição dos artigos tornara-se uma verdadeira


festa. As grandes feiras não se organizavam mais a céu aberto, mas em
“salões especialmente destinados ao comércio de diversos ramos ou
especialidades, pátios cobertos e aléias arcadas”, informa Robert Lopez,
historiador da economia. Flâmulas e outros ornamentos pendiam dos
quiosques; em compridas mesas espalhadas pelos corredores, comia-se,
bebia-se e negociava-se, tudo ao mesmo tempo...Rompendo com as
tradições religiosas e desconsiderando os dias santificados, a usura
florescia (SENNETT, 1999, p.141).

A concepção dos shoppings atuais agrega alguns elementos que, como vimos, já

existiam em momentos anteriores. Podemos comprovar esta afirmativa, na medida em que

observamos que a idéia de um espaço fechado que aliasse o comércio com a sociabilidade,

44
muito comum nas galerias do século XIX, e até em épocas mais distantes, é ampliada em

grande medida nos shoppings dos séculos XX e XXI. Neste sentido, o processo de

construção daquilo que no século de XIX se efetiva como uma “cultura do consumo”

parece fazer nascer não só uma nova perspectiva econômica, como também um novo

homem. O comércio toma, portanto, um caráter festivo e, o exemplo de homem bem

sucedido não é mais aquele que detém o dom da oratória, da palavra, como fora na

Antigüidade, mas aquele que é bem sucedido financeiramente, que desfruta da

possibilidade de satisfazer suas vontades (econômicas) em novos ambientes, ou seja, nas

galerias e nas lojas de departamento. A economia tomava as rédeas da sociedade. Como

vimos, esse processo que segundo Max Weber se inicia na Idade Média, toma um novo

impulso com a Revolução Industrial e as galerias e lojas de departamento.

Sobre esta mudança de valores e de comportamento, podemos nos remeter a Jean

Jacques Rousseau:

O homem outrora livre e independente, agora está subordinado a uma


infinidade de novas necessidades, ou seja, a toda a natureza e
principalmente a seus semelhantes, dos quais fica escravo em um sentido,
mesmo que vire seu senhor: rico, precisa dos serviços deles, pobre, da
ajuda, e a mediocridade não o põe em uma situação de dispensá-los...a
ambição devoradora, o ardor para aumentar a fortuna relativa, menos por
uma real necessidade do que para se colocar acima dos outros
(ROUSSEAU, 2002, p.23).

Como nos referimos anteriormente, alguns agenciamentos engendrados hoje

pelos administradores dos shopping centers, não podem ser considerados exatamente como

novidades, em termos de concepção. Sem desconsiderar o momento específico de

surgimento do shopping, como conseqüência da reestruturação que levou o capitalismo à

sua época “monopolista”, mas privilegiando a observação da organização dos espaços de

45
comércio através da história, e dos sentidos que lhes foram atribuídos, de fato, encontramos

relevantes contribuições aos requisitos básicos que compõem os shoppings de hoje.

1.4 A organização do espaço do shopping14

O shopping deveria ser confuso, para que o consumidor se perdesse,


possibilitando maior circulação e compra por impulso. Não poderiam
existir bancos para sentar, relógios, nem contato visual com o exterior
para que se perdesse a noção do tempo, proporcionando maior
permanência e vendas. Não deveriam haver bebedouros, pois o ideal seria
que o cliente comprasse a bebida. O piso do shopping devia ser
escorregadio para o consumidor passar devagar e poder melhor observar
as vitrines (Shopping Center 1996 – Rio Sul – UK design).

É a partir da disposição das lojas que se começa a montar um shopping center.

Escolher o que se convencionou chamar de “Tennant Mix”, que nada mais é do que a

mistura de lojas de diversos ramos é um passo fundamental para o sucesso do shopping.

Através do recolhimento de dados de alguns shoppings, juntamente com os respectivos

mapas conseguimos observar como funciona a estratégia de montagem dos espaços

internos. Os números são de grandes shoppings cariocas, entre os quais não poderiam faltar

aqueles que mantivemos uma maior proximidade durante nossa pesquisa, ou seja, o

Iguatemi Rio e o Barra Shopping, das mais variadas partes da cidade e do mais tradicional

shopping do país. O Barra Shopping e o Norte Shopping são respectivamente o maior e o

segundo maior shoppings da cidade do Rio de Janeiro. O Rio Sul foi o primeiro shopping

inaugurado no Rio de Janeiro* e permanece como o principal shopping da Zona Sul da

cidade. O Iguatemi Rio atende a uma área importante da Zona Norte, especialmente os

bairros de Vila Isabel e Tijuca. O Iguatemi São Paulo além de ter sido o primeiro shopping

14
Neste momento, tomaremos como referência básica desta organização do espaço, os shopping centers
localizados preferencialmente na cidade do Rio de Janeiro.

46
implantado no país, encontra-se em uma das áreas mais nobres da cidade mais rica do

Brasil.

O “Tennant Mix” é formado basicamente por dois tipos de lojas. As lojas-âncora

correspondem às grandes lojas, que têm clientes cativos, que por si só atraem público. O

Barra Shopping é ancorado pelas lojas C&A, Fast Shop, Fnac, Lojas Americanas, Renner,

Ponto Frio mega store e Zara. O Norte Shopping possui 9 Lojas Âncora, que são: Lojas

Americanas, Casas Bahia, C&A, C&C, Carrefour, Casa & Vídeo, Leader Magazine, Ponto

Frio e Renner. No Rio Sul, por exemplo, correspondem às lojas Zara, Casas Bahia, Renner

e Lojas Americanas. O Iguatemi Rio tem como âncoras a C&A, Casa e Vídeo, Casas

Bahia, Renner, Ponto Frio, Marisa e Lojas Americanas. O Iguatemi São Paulo possui 4

lojas Âncora: C & A, Lojas Americanas, Pão De Açucar e Zara. Por outro lado, há as lojas-

satélite, que são lojas de sucesso em menor escala. Há 450 lojas deste tipo no Rio Sul, 220

no Iguatemi Rio, 322 no Iguatemi São Paulo, 281 no Norte Shopping e 574 no Barra

Shopping. As lojas-satélite, em geral, precisam mais do shopping, do que o contrário. As

próprias lojas-satélite se beneficiam com as lojas-âncora, as quais são geradoras de enormes

fluxos de pessoas.

Portanto, a disposição das lojas-âncora é estratégica, como podemos visualizar

nos mapas em anexo15. Fica claro que a lógica da arrumação do espaço interno do shopping

é concebida a partir do posicionamento dessas lojas. Nos mapas do Iguatemi Rio e do Norte

Shopping, por exemplo, podemos perceber com clareza, o grande espaço que as lojas-

âncora têm no shopping, ocupando até, mais de um andar, como a Loja Americana do

Iguatemi Rio e a C&A e o supermercado Carrefour no Norte Shopping. Outro ponto

interessante, é que nos mapas do Iguatemi, além das lojas-âncora, recebem destaque os

15
Ver mapas em Anexo: Barra Shopping, Norte Shopping, Iguatemi São Paulo, Rio Sul e Iguatemi Rio.

47
cinemas, as “praças de eventos” e o restaurante Petisco da Vila. Os cinemas e as “praças de

eventos”16 geram enorme fluxo de pessoas para o shopping, transformam-se portanto, em

uma forma de ancoragem muito eficiente.

Antes mesmo da construção de um shopping, faz-se a definição do tipo de público

que se quer atingir preferencialmente. Evidentemente, as lojas que fazem parte do

shopping, também devem estar “de acordo” com esse “público-alvo”. Durante nossas

pesquisas, pudemos perceber que a delimitação do público-alvo é um fator primordial para

o sucesso do empreendimento. Em geral, as administrações trabalham com a idéia de que

“se quisermos atingir todos, não atingiremos ninguém”, frase que resume o pensamento dos

administradores sobre a necessidade de estabelecer um público preferencial. O público-alvo

é, em geral, formado pelos residentes em áreas próximas ao shopping, e/ou com

determinada faixa de renda. Isso não quer dizer, que não haja uma freqüência expressiva

em inúmeros shoppings, de pessoas que estariam fora do público-alvo, ou por não morarem

nas imediações, ou por terem nível de renda maior ou menor do que o público-alvo.

Na década de 1980 foram construídos os primeiros grandes shoppings do Rio de

Janeiro. Todos os shoppings cariocas da década de 1980 foram construídos em grandes

espaços ou em áreas extensas marginais a grandes avenidas, havendo apenas duas exceções.

Nos dois casos, o acesso ao shopping se dava, em esmagadora maioria, por carro ou por

ônibus. O Barra Shopping (1981) e o Casa Shopping (1984) foram construídos em grandes

áreas abertas da Barra da Tijuca, bairro que começava a ampliar sua importância na cidade.

O São Conrado Fashion Mall (1982) e o Norte Shopping (1986) foram construídos em

áreas de grande fluxo automotivo, como a Auto-Estrada Lagoa Barra e a Avenida

Suburbana, respectivamente.As exceções citadas acima se referem ao Madureira Shopping

16
As atividades e shows das “praças de eventos” são gratuitos.

48
inaugurado bem no final da década (abril de 1989), e ao Rio Sul, o primeiro shopping da

cidade, construído em 1980. No entanto, o Rio Sul nasceu em prédio empresarial, que não

havia originalmente sido projetado para abrigar um shopping center.

Os maiores shoppings ainda são o Barra Shopping17 e o Norte Shopping, até

porque os novos foram projetados para serem, em geral, menores, já que algumas áreas

escolhidas para as construções são “apertadas” como Tijuca, Vila Isabel e Leblon, além do

fato de que o número de shoppings aumentou exponencialmente. A ameaça de

sobreposição de áreas de influência é um fato indesejável para os administradores, e

principalmente para os lojistas. Todavia, este caso já se constitui em realidade na cidade de

São Paulo, que concentra mais de 40 shoppings.

Oferecer marcas exclusivas, entretanto, ainda é o melhor caminho para se


diferenciar. Não basta montar um cardápio de lojas atraente e coerente
com o perfil de cada público. É fundamental garantir que as melhores
fiquem longe dos vizinhos. Daí surgiu a chamada cláusula de raio18, que
determina em contrato a distância mínima para que a mesma grife se
instale em outro lugar. O Iguatemi é um exemplo. Entre suas 330 lojas
figuram marcas internacionais que, sozinhas, já lhe dão prestígio. É o caso
da Louis Vuitton e da Tiffany & Co. A cláusula de raio do Iguatemi é de
2,5 quilômetros. Com 100 lojistas que considera estratégicos, a
administração do shopping mantém ainda uma cláusula de exclusividade
total (independentemente da distância) no documento de locação19.

No Rio de Janeiro, pode-se perceber uma situação parecida examinando-se o

caso da recente inauguração do Shopping Leblon, que rapidamente causou danos ao São

Conrado Fashion Mall. Os dois shoppings têm como alvo principal um cliente requintado, e

nessa briga pelo topo da elite econômica carioca, o irmão mais novo está desbancando

subitamente o tradicional “shopping dos ricos”, em São Conrado.

17
Atualmente o maior shopping do Rio de Janeiro é o Barra Shopping, com 90mil m2 de ABL17. Ao final das
obras de expansão no Norte Shopping, o empreendimento deve chegar aos 95mil m2 de ABL, tornando-se
assim, pela primeira vez, o maior shopping da cidade.
18
O grifo é nosso.
19
Revista Veja – São Paulo – 23 de Agosto de 2006 - Reportagem de Sandra Soares.

49
Daniel Brett, diretor comercial da grife italiana Ermenegildo Zegna no
Brasil, conta que a decisão de migrar do São Conrado para o Leblon foi
motivada pela clientela: 80% dos clientes da loja do Fashion Mall moram
na região. A expectativa é de que a mudança aumente em 30% o
faturamento da nova loja...20

Em relação ao poder aquisitivo dos freqüentadores, os shoppings parecem estar

voltados para as chamadas classes A e B. Ainda que em inúmeros shoppings, inclusive por

suas localizações, possamos concluir que atendam a outras classes como C e D.

No Brasil, temos observado, sobretudo a partir do último decênio do


século passado, a expansão do fenômeno em direção aos subúrbios21 e
periferias e, mais que isto, sua crescente apropriação pelos segmentos
menos privilegiados (MAIA, 2002, pg.7).

A cidade do Rio de Janeiro pode ser tomada como um bom exemplo de um

importante movimento de construção de shoppings22 em áreas que possuem indicadores

sociais e de renda considerados baixos. Na cidade do Rio de Janeiro, temos como exemplo

mais tradicional, o Norte Shopping, que fica no bairro do Caxambi, Zona Norte, inaugurado

em 1986, além do Madureira Shopping, inaugurado em 1989. Além deste, podemos citar O

West Shopping, em Campo Grande, Zona Oeste, inaugurado em setembro de 1997, o Nova

América23 em Del Castilho, Zona Norte, inaugurado em 1995, o qual inclusive possui uma

integração direta com a estação do metrô do bairro. O Carioca Shopping na Vila da Penha,

Zona Norte, inaugurado em 2001, e no qual foi instalado um campus da Universidade

UNIGRANRIO. Destacamos a inauguração prevista para 2007 do Shopping Bangu na Zona

Oeste da cidade. Na Baixada Fluminense, destacam-se o Top Shopping em Nova Iguaçu,

20
Valor Econômico – 04 de Dezembro de 2006.
21
Vemos como relevante uma menção ao fato de que o significado do “subúrbio” neste momento difere
completamente do contexto dos EUA, citado anteriormente.
22
Filiados a ABRASCE.
23
Tanto o Nova América quanto o Carioca Shopping foram o resultado da adaptaçào de antigas plantas fabris,
cujas fábricas já haviam sido desativadas. No local em que funcionara a “América Fabril” de fiação e
tecelagem, está atualmente o Nova América. Já a “Standard Eletric” de telefones e equipamentos elétricos
encontrava-se onde hoje está o Carioca Shopping.

50
inaugurado em 1996, o Shopping Grande Rio em São João de Meriti, inaugurado em 1995

e o Caxias Shopping, em Duque de Caxias, inaugurado em 2003.

O raio de ação do Rio Sul estende-se preferencialmente aos bairros de Botafogo,

Copacabana, Ipanema e Leblon. Abrange classe média e alta (A e B). Segundo a

administração, em outras épocas houve mais classe C, mas a saída de lojas como a C&A e

as Lojas Brasileiras, demonstravam que essa faixa de renda não estava mais sendo

significativa para o shopping. No Iguatemi Rio o público-alvo localiza-se em Vila Isabel,

Tijuca, Grajaú e Méier; abrangendo as classes A, B e uma expressiva classe C. No Iguatemi

São Paulo, mais da metade dos freqüentadores mora nos bairros Pinheiros, Itaim Bibi e

Morumbi, havendo assim um perfil que abrange em grande medida a classe A. Já no Barra

Shopping, cerca de 80% do público-alvo pertence às classes A e B, sendo que o raio de

ação do shopping é muito amplo. Este pode ser demonstrado a partir do fato de que o site

do shopping (www.barrashopping.com.br) é o único que disponibiliza a descrição de todas

as vias de acesso ao shopping a partir de inúmeros pontos da cidade, inclusive com

destaque para as linhas de ônibus que fazem os trajetos. A área de influência do Norte

Shopping atende a 10 dos 32 subdistritos do município do Rio de Janeiro, reunindo ao todo,

52 bairros vizinhos. Como já foi dito, pela própria localização, o Norte Shopping atende a

um público diversificado, em que também se verifica presença importante das classes C e

D.

Abordando essa relação entre o mix de lojas e o público alvo, Don Mitchel

afirma que: “When the malls opens, the owner-developers need to carefully manage the

mix of tenants to ‘ensure complementarity of retail and service functions’ so as to attract

the desired mix of consumers” (MITCHEL, 2000, pg.134).

51
Com o grande número de pessoas que passam pelos shopping centers24, estes

passaram a internalizar inúmeros serviços. No Rio Sul há quatro cabeleireiros, duas

agências de bancos, postos do Detran, da Polícia Federal e da Secretaria Municipal de

Fazenda. Há lavagem de carro, curso de inglês, posto telefônico, engraxate, entre outros.

No Iguatemi Rio, podemos citar o fraldário, duas agências de bancos, agência dos Correios,

lotérica, dois cabeleireiros, lavagem de carro, além de empréstimo de carrinhos para bebê.

No Norte Shopping há um colégio, um projeto para a construção de uma universidade,

postos do Detran, do Ministério do Trabalho, três agências de bancos, quatro cabeleireiros,

fraldário e lava-jato. Além disso, há um complexo de 35 salas que reúne consultórios

médicos, dentistas, ortodontistas, laboratórios de análises clínicas, clínicas de estética, salão

de beleza, fisioterapia e clínicas de diagnósticos, chamado Vida Center Saúde & Estética. O

Barra Shopping conta com uma academia de ginástica, três agências bancárias, seis

cabeleireiros, uma agência dos Correios, uma casa lotérica, uma corretora de imóveis, uma

escola de idiomas, um colégio, um Centro Médico com trinta especialidades e um Centro

Empresarial com onze edifícios comerciais. No Iguatemi São Paulo há duas agências

bancárias, uma casa lotérica, um posto de gasolina e um supermercado.

Um grande diferencial dos shoppings é o estacionamento. Pierre George quando

se refere ao estabelecimento dos primeiros shoppings nos EUA, comenta a importância dos

estacionamentos. “Eles se estabeleceram na junção de vários conjuntos residenciais, onde

havia um espaço bastante vasto para instalar o mercado, 10 a 12 há para um mercado capaz

de abastecer 10.000 famílias, e assegurar o estacionamento de veículos ao redor”

(GEORGE,1983,pg. 197).

24
Mensalmente, o Iguatemi Rio recebe cerca de 1 milhão de pessoas, o Rio Sul, cerca de 2 milhões de
freqüentadores, o Iguatemi São Paulo cerca de 1,5 milhão de pessoas, o Norte Shopping cerca de 2,4 milhões
de pessoas e o Barra Shopping cerca de 1,4 milhão de pessoas. Fontes: Sítios dos referidos shoppings – 2006.

52
Os estacionamentos devem ser compatíveis com o tamanho do shopping e com o

tamanho de seu público. Essa importância do estacionamento deve-se antes de tudo, à

disseminação do carro como meio de transporte. Os shoppings representam

estabelecimentos que já nasceram pensando no freqüentador motorizado. Até a metade da

década de 1990, os estacionamentos eram gratuitos. Hoje, paga-se 3 reais e cinqüenta

centavos para ficar no máximo quatro horas em uma das 3 mil vagas do Rio Sul. O

estacionamento do Iguatemi Rio possui capacidade para 1500 carros, e desde a inauguração

do shopping, em 1996, paga-se para estacionar. Na verdade, houve a terceirização da

operação dos estacionamentos, o que levou à cobrança de taxa. No Barra Shopping há 4500

vagas, no Iguatemi São Paulo há 1824 vagas e no Norte Shopping, há 4500 vagas.

Em cada shopping, há um “exército” de funcionários (terceirizados) que têm por

função manter a limpeza do ambiente. Os banheiros, os corredores, as escadas, elevadores,

estacionamentos, são revisados constantemente. A limpeza é um item fundamental na

estratégia de atração de público.

Um outro fator que não pode ser negligenciado em relação ao espaço do shopping,

é a segurança. Longe disso, a segurança é um item cuidadosamente planejado pelas

administrações25. Os shoppings funcionam de portas abertas, muitos deles em locais de

grande movimento de pessoas no entorno. Apesar da extensiva vigilância, não se pode

afirmar que o shopping é o “lugar mais seguro do mundo”. Entretanto, a idéia de que o

shopping é um local absolutamente seguro, ermético à violência urbana, é muito difundida.

Muito mais do que a segurança efetiva (sem dúvida mais eficiente que a da “rua”),

representada não só pelos seguranças (terceirizados), como também pelas inúmeras

25
“O shopping é um local muito procurado pelo público por oferecer segurança e conforto” (Administração
do Iguatemi).

53
câmeras, a “sensação de segurança” é o mais importante. As pessoas parecem sentir que

está tudo sob controle naquele espaço vigiado, filmado e com boa iluminação. Da mesma

forma, o fato de ser um local, em princípio, de livre acesso e de uso comum, faz com que os

agentes de segurança dos shoppings atuem de modo “sutil” para desencorajar a presença de

“indesejáveis”. “...sei lá, no shopping é como se você tivesse a atenção que você não tem na

rua. Você não tem ninguém para pedir informações, você tem até medo de chegar perto de

um policial” (Freqüentadora do Barra Shopping)26.

Aí, coloca-se em questão a própria classificação do espaço do shopping, que

parece, de certo modo, pairar entre as dimensões do público e do privado. Ampliaremos

estas discussões mais à frente.

Portanto, bem distante das estratégias de pisos escorregadios ou ausência de

contato visual com o exterior, como era feito nos EUA em 1940/50, as administrações

desenvolveram novas e complexas maneiras de atrair e manter o público dentro do

shopping.

1.5 Sociabilidade e espaços de consumo

Na verdade, o próprio caráter do espaço, público ou privado, traz importantes e

diferentes mediações, que são decisivas para que o modo como a sociabilidade se desenrola

nesses espaços também seja distinto. Tradicionalmente, a sociabilidade ganha uma

expressão importante e diferenciada quando se assenta no espaço público. No caso dos

espaços de consumo, a discussão em torno da classificação em público ou privado leva

consigo também uma nova perspectiva para a questão da sociabilidade nesses espaços.

26
Entrevista realizada pelo autor.

54
A rua é o espaço público por excelência, regido por normas de civilidade, sob às

quais somos chamados a estar de fronte ao que nos é estranho, diferente. O geógrafo

francês Jacques Lévy ensina que o percurso no espaço público exige uma suspensão do

íntimo, que se manifesta de modo que se garanta ao indivíduo que não haverá sobre ele,

uma projeção da intimidade de outrem. O espaço público constitui o lugar do encontro dos

diferentes, trata-se do espaço da lei, o qual é produzido a partir de um contrato social

estabelecido democraticamente, em que o acesso é irrestrito àqueles que estão de acordo

com essas regras. Assim, o espaço público possui uma dimensão abstrata, sendo regido por

princípios e normas, e uma dimensão concreta, demonstrada pela co-presença, por seus

usos. O fato de que o comportamento que se espera de um cidadão varia no tempo e no

espaço, e de que o espaço do cidadão, ou seja, o espaço público é o local por excelência da

própria produção e reprodução da sociedade civil, fazem com que a sociabilidade ganhe

novos contornos neste âmbito.

No caso do espaço público a sociabilidade se transforma em civilidade,


em comportamento que extrapola a simples maneira convencional que
uma sociedade atribui ao homem educado de se apresentar e se conduzir,
a etiqueta (GOMES, 2002, pg 163).

Apesar de sabermos que a sociabilidade não se reduz à “etiqueta”, nos parece

importante, a lembrança de que ela ganha uma nova dimensão no espaço público, o que fica

claro especialmente em (MOREL, 2005). Analisando a vida pública carioca entre 1820 e

1840, o autor atribui aos espaços públicos um papel fundamental no cenário de mudanças

políticas e sociais. A difusão das novas idéias através das “vozes públicas” e da linguagem

visual (cartazes, caricaturas) foi possível em grande medida pela acessibilidade e pela

visibilidade dos espaços públicos. “Os gritos e vozes nas ruas constituem uma forma de

55
ocupação dos espaços públicos, ainda que simbólica e efêmera, mas muitas vezes eficaz e

impressionante” (MOREL, 2005, pg231).

Da mesma forma, as transformações ocorridas em inúmeras capitais européias na

segunda metade do século XVIII também incluíram mudanças nas regulamentações do

espaço público. Em geral, estas modificações associavam-se entre outras razões, além de

novas necessidades de circulação, a um expressivo aumento populacional pelo incremento

da imigração. Lousada (2004) observa as melhorias dos espaços públicos através de nova

iluminação, calçamento e policiamento. Ora, essas medidas foram tomadas a partir de uma

necessidade de maior normatização dos usos que se fazia da rua, de novos limites para os

comportamentos que seriam aceitáveis em público. Pois bem, com a concretização dessas

medidas, em especial pela atuação enérgica da polícia, os usos dos espaços públicos foram

modificados. Aí, podemos notar que o espaço deixa de ser somente um reflexo, objeto da

consolidação e da demonstração das novas regras, para assumir também, a função de

sujeito influenciador de novos comportamentos e atitudes. O espaço urbano lisboeta

reorganizado e remodelado desfez a imagem de que o “português passeia pouco”, atraiu

inclusive as mulheres, que ficavam afastadas especialmente por causa da sujeira que

reinava na rua e apresentou novos lugares de passeio. “...as formas são tanto um resultado

quanto uma condição para os processos. A estrutura espacial não é passiva mas ativa ,

embora sua autonomia seja relativa, como acontece às demais estruturas sociais”

(SANTOS, 2002b, pg185).

Não nos parece uma simples coincidência, o fato de que as transformações das

práticas de sociabilidade tenham experimentado um período de profusão pouco antes do

momento em que novas regulamentações seriam estabelecidas nos espaço públicos das

principais capitais européias. Dessa forma, a própria autora toma inúmeros exemplos de

56
sociabilidades vividas no cotidiano lisboeta para demonstrar como os espaços públicos

foram rearrumados a partir de uma renovação do pacto que o fundara. Na verdade, as novas

utilizações sociais, inclusive uma “apropriação política” da rua, demandavam novas regras

e novos arranjos espaciais.

Todavia, as classes populares não eram as únicas que através de seus arraiais, de

suas festas religiosas, ou mesmo em simples encontros, que faziam com que a rua fosse um

espaço privilegiado para a sociabilidade. Especialmente após as melhorias concretizadas no

passeio público, como o calçamento das ruas e a inauguração da iluminação pública em

1780, além da criação da rede de vigilância policial, indivíduos de diversos grupos sociais

passaram a praticar o passeio urbano. Comprovando as alterações das regras de uso da rua,

bem como a questão já mencionada de que o espaço público muitas vezes não é tão livre

quanto parece, Lousada nos descreve uma medida tomada em 1787, que visava facilitar e

ampliar as práticas de sociabilidade urbana. Foi dada uma “ordem para que as prostitutas

não estejam na beira mar, passeio público, praça da Alegria, e outros sítios por onde há

maior concurso de gentes sérias que costumam ir àqueles lugares a recrearem-se”

(LOUSADA, 2004, pg 103).

Percebe-se assim, que com a mudança na organização dos espaços públicos de

Lisboa, os indesejáveis, no caso as prostitutas, eram impedidos pela polícia de atuar em

determinadas áreas que estivessem, agora, voltadas para outros tipos de atividades. Com a

mudança dos padrões de comportamento público, alguns antigos usos de determinados

espaços (públicos) não eram mais permitidos em Lisboa.

Evidentemente, as “melhorias” promovidas nas ruas de Lisboa durante o século

XVIII representavam uma valorização do espaço público. Nos dias atuais, Richard Sennett

aponta que o processo inverso está prevalecendo nas relações sociais urbanas. Através de

57
uma constante extrapolação das intimidades, a vivência dos espaços públicos está se

perdendo de tal forma, que presenciamos hoje, segundo Sennett, um verdadeiro “declínio

do homem público”. Dessa forma, expressões como “emuralhamento da vida social” ou

“recuo da cidadania” são recorrentes quando se pensa o espaço público nos dias de hoje. O

próprio sentido da palavra público parece ter sofrido uma séria distorção. Em vez de ser

vivenciado como o espaço da política, da lei, a qualificação de público parece atribuir ao

espaço uma idéia de que tudo é permitido, de que não existe um “dono”, e que, portanto,

podemos despejar nosso lixo na praia, colocar nossa barraca no meio da praça, ou mesmo

erguer as grades do condomínio bem avançadas sobre a calçada, sem que ninguém possa se

opor, já que a rua é “pública”.

Além disso, a falta de conservação, o espetáculo da miséria e o descontrole da

violência são ingredientes fundamentais para o esvaziamento da rua. Dessa forma, a

proliferação de espaços fechados de sociabilidade parece guardar uma relação próxima com

esse declínio do espaço público. Os setores sociais mais privilegiados buscam refúgio

através da criação de espaços privados que sejam afeitos ao lazer e à sociabilidade, ainda

que muito restrita, entre os quais o melhor exemplo é o do condomínio fechado. Neste

contexto, não se pode ignorar a difusão e a ampliação da importância dos shoppings para a

vida de muitos que vivem nas grandes cidades. “...novos arranjos físicos resultam em novas

formas de se construir a vida coletiva, novas imagens físicas e sociais da cidade” (GOMES,

2002, pg 174).

Os shoppings nos levam de volta ao debate que relaciona os usos do espaço ao

caráter de sua propriedade. Ainda que seja propriedade de grandes empresas, portanto um

equipamento urbano privado, o espaço do shopping pode nos apresentar sua dimensão

pública quando pensamos em seus usos. Assim, ainda que tenha horários para a circulação,

58
vigilância e restrições de diferentes tipos ao acesso, esses fatores não nos impedem de

continuar em busca da dimensão pública do shopping. Vimos que muitos desses fatores, ou

talvez sua totalidade possam ser verificados também na rua, a qual não se apresenta tão

livre quanto se imaginaria. Sendo que esta idéia de que na rua pode-se fazer qualquer coisa,

ou ter acesso a tudo, nos parece resultar da mudança radical do sentido daquilo que é

público, como nos referimos anteriormente.

For example, at the end of the last century, the boulevards and the streets
in Latin-American city centres were strictly controlled by the authorities.
The habits and clothing of the public were severely policed, and in certain
fashionable Buenos Aires streets, it was compulsory to wear a hat and a
suit! (CAPRON, 2003, p.218).

Embora permaneçam voltados para a sua função primordial, alguns espaços de

consumo são tomados por seus freqüentadores como espaços de sociabilidade. A

visibilidade que o espaço do shopping vem alcançando nos dias de hoje pode ser

demonstrada através das diversas manifestações que passaram a ocorrer nesses espaços,

como a dos estudantes das universidades públicas, de um grupo de “sem teto”, ambas no

Rio Sul, ou o protesto do movimento gay de São Paulo no shopping Frei Caneca em 2003,

que atraiu 3 mil pessoas e ficou conhecido no país e no exterior. Da mesma forma, verificar

a presença expressiva de grupos de jovens, e até de gangues em shopping centers não é

tarefa difícil. Esses grupos promovem uma verdadeira disputa territorial, produzindo uma

convivência nem sempre amigável. Além disso, as inovações da iluminação, as vitrines, as

atrações musicais da praça de alimentação, configuram um clima de celebração, em que

não se está apenas comprando, mas se divertindo. Passear no shopping transforma-se assim,

em um exercício de sociabilidade, através do movimento de ver e ser visto. Aquilo que no

século XIX era conhecido como “fazer o chiado” se aproxima bastante deste tipo de

sociabilidade que verificamos nos shoppings atualmente.

59
...admiravam-se as fachadas, as luzes e o movimento dos cafés e teatros,
as montras das lojas com as suas mercadorias(...) estabelecimentos onde
se vêm expostas as alfaias e jóias mais preciosas, obras de ouro e prata de
toda espécie, em armários envidraçados, suspensos dos dois lados da
porta. Em frente desses estabelecimentos há sempre muita gente
pasmada”, especialmente senhoras que tinham como uma de suas
principais distrações, “passear de carro parando às portas das lojas para
ver tecidos e jóias (...) Este tipo de passeio dará origem, na segunda
metade do século XIX, à expressão “fazer o Chiado”, em que ver e ser
visto em público se torna um dos ritos de sociabilidade (LOUSADA,
2004, pg(s).104 e 105).

Segundo (Lousada 2004) os cafés e as tabernas seriam, dois exemplos de espaços

semi-públicos, já que a acessibilidade desses locais pode ser tão livre quanto a da rua, ainda

que o dono possa promover restrições a este acesso. Todavia, nada impede que na rua

também ocorram restrições ao acesso de determinados espaços, que já vimos sob a forma

de novas regulamentações do espaço urbano de Lisboa, como no caso das prostitutas que

foram proibidas de se concentrarem nos sítios em que passeavam “gente séria”.

Próximos aos principais mercados da cidade ou em áreas circundantes dos

maiores cais de Lisboa, a posição estratégica garantia o grande afluxo de pessoas a esses

estabelecimentos. Entre a casa (espaço privado por excelência) e a rua (espaço público por

excelência) havia no meio do caminho o café ou a taberna (espaços público-privados ou

semi-públicos), dependendo da posição social. O café e a taberna, no caminho de casa ao

trabalho, tornaram-se locais de sociabilidade masculina, espaços de debates políticos e de

divertimento. As tabernas atraíam um contingente maior, eram mais populares e

conservavam os velhos hábitos de bebida. Tinham inclusive um papel fundamental na

alimentação das classes populares. Os cafés eram espaços mais requintados, oferecendo

produtos mais caros, para uma clientela mais refinada.

O jogo era uma das principais atividades praticadas nos cafés e tabernas, ainda

que o regimento dos taberneiros lisboetas de 1797 estabelecesse que era proibido este tipo

60
de divertimento nas casas de bebida. Entretanto, mesmo assim o jogo continuou tendo

papel fundamental na sociabilidade desses espaços, desde os cafés mais aristocráticos, até

as tabernas mais populares. Os jogos eram diferenciados através dos grupos sociais, o que

se apresentava claramente nos locais em que eram praticados. Nos cafés das áreas mais

requintadas da cidade praticavam-se os jogos de rico, os quais não se verificavam nas

tabernas da periferia. A sociabilidade nos cafés se tornou tão importante para a aristocracia,

que os manuais de civilidade passaram a incluir situações de conduta para esses espaços

públicos comerciais.

Tanto as tabernas como os cafés, além de espaços de sociabilidade, tornaram-se

também centros de discussão política, de conspiração, que mereceram até atos de vigilância

e espionagem, pois constituíam-se também como espaços influenciadores da opinião

pública. Assim, podemos concluir que os cafés e as tabernas fizeram parte ativa não só das

novas concepções de público e privado, do rearranjo do espaço urbano de Lisboa, mas

também de uma cultura política que se desenrolava através das discussões travadas nesses

espaços.

A proliferação dos cafés, e sua tomada como locus de sociabilidade também fez

parte da vida brasileira, notadamente no Rio de Janeiro do século XIX.

Nos pontos principais da cidade existiam o Café Americano e o Café do


Globo, na rua Primeiro de Março; o Café Central na rua da Quitanda, o
Café Comercial na rua do Hospício, o Café Flor da América na rua Sete
de Setembro; o Café Espanha no largo do Rossio, o Café Amorim na rua
do Rosário, esquina do beco das Cancelas, o Café Império na rua
Gonçalves Dias e o Café Vitória no largo da Carioca; além de mais 362
botequins onde se vendia café, bebidas e se explorava o jogo de bilhar,
estabelecidos em várias ruas da cidade desde a Ponta do Caju ao Jardim
Botânico (SENNA, 2006, pg.196).

Interessante observar que a mesma diferenciação social feita por Lousada, em

Lisboa, entre os Cafés e as tabernas, aparece no Rio de Janeiro entre os Cafés, reservados à

61
“elite”, e os botequins, evidentemente mais populares. Referindo-se ao Café do Rio,

Ernesto de Senna descreve um pouco da importância que a sociabilidade trazia aos cafés

cariocas.

Tornou-se ele27 o centro da nossa melhor sociedade, o ponto predileto das


classes armadas e acadêmicas, o local escolhido para os encontros de
negócios comerciais e, porque não dizê-lo, o canto da esquina, onde
numerosos adoradores do Deus vendado, se desvendavam à passagem das
suas garridas Dulcinéias (...) O Café progredia cada vez mais e o Brito28 já
planejava novas disposições internas, para acomodar maior número de
mesas (...) sempre teve a original mania de fazer modificações na
disposição do mobiliário e quando o interpelavam respondia “é para ficar
mais moderno... (SENNA, 2006, pg. 198).

Assim, a percepção “original” da necessidade de constantes modificações na

organização do espaço interno do estabelecimento, parece explicar em parte o sucesso do

estabelecimento, advindo do próprio fato de ampliar a atratividade, especialmente das

“pessoas de bem”. Destacando o século XVIII, Richard Sennett também observa a

importância da sociabilidade nos bares e cafés, reforçando o momento de chegada destas

formas de relações sociais em espaços de consumo às camadas mais pobres.

À medida que as cidades cresciam e desnvolviam suas redes de


sociabilidade independentes do controle real direto, aumentaram os locais
onde estranhos podiam regularmente se encontrar. Foi a época da
contruções de enormes parques urbanos, das primeiras tentativas de se
abrir ruas adequadas à finalidade precípua de passeio de pedestres, como
uma forma de lazer. Foi a época em que cafés e mais tarde bares e
estalagens para parada de diligências tornaram-se centros sociais; época
em que o teatro e a ópera se abriram para um grande público graças à
venda aberta de entradas, no lugar do antigo costume pelo qual
patrocinadores aristocráticos distribuíam lugares. A difusão das
comodidades urbanas ultrapassou o pequeno círculo da elite e alcançou
um espectro muito mais abrangente da sociedade, de modo que até mesmo
as classes laboriosas começaram a adotar alguns hábitos de sociabilidade,
como passeios em parques, antes terreno exlusivo da elite, caminhando
por seus jardins privativos ou “promovendo” uma noite no teatro
(SENNETT,1993, pg.32)

27
O Café do Rio
28
O autor refere-se ao português João Inácio de Brito, proprietário do estabelecimento em questão.

62
Desses exemplos tão distante temporalmente, podemos ilustrar a complexidade

das relações sociais, mais especialmente da sociabilidade, que se desenrolam de modo

diferenciado em diferentes ambientes, imprimindo lógicas e sentidos na organização de

cada um desses espaços. Se por um lado há que se considerar que o shopping não tem

exatamente qualquer importância na produção de uma cultura política, ou de debates

públicos relevantes, como os cafés e as tabernas citados, por outro lado podemos concluir

que sua presença cada vez mais comum e funcional na vida urbana nos impõe a

necessidade de lançarmos um olhar mais atento, ao modo como este equipamento

influencia reformulações na arrumação do espaço urbano e no próprio desenrolar da

sociabilidade e das representações da sociedade. Don Mitchell traz uma grande

contribuição a este debate, na medida em que identifica duas perspectivas predominantes de

enxergarmos o espaço público nas cidades contemporâneas:

In the first of these visions, public space is taken and remade by political
actors; it is politicized at its very core; and it tolerates the risks of disorder
(including recidivist political moviments) as central to its functioning. In
the second vision, public space is planned, orderly, and safe. Users of this
space must be made to feel comfortable, and they should not be driven
away by unsightly homeless people or unsolicited political activity
(MITCHELL, 1995, pg.115).

Ainda que os shoppings não possam mais ser tomados como exemplos de espaços

herméticos, perfeitamente seguros e “livres” das mazelas do caos urbano, a segunda

perspectiva observada por Don Mitchell constitui-se, de modo geral, em um aspecto

importante da realidade dos shoppings. Refletindo exatamente sobre a ambigüidade da

classificação do espaço do shopping, Marcelo Lopes de Souza ilumina o caminho da

discussão afirmando que: “Um passo adiante na direção do espaço “público” e tem–se algo

que poder-se-ia denominar de espaço “público”- privado: é, justamente, o caso do shopping

centers” (SOUZA, 2000, pg.204).

63
Nem tão intimistas quanto os condomínios residenciais fechados nem tão

democráticos quanto a rua, os shoppings nos impõem a necessidade de aprofundarmos os

olhares para os “novos” movimentos que vêm tornando a análise do urbano cada vez mais

complexa. Além disso, o sucesso e a conseqüente importância que estes equipamentos

alcançam progressivamente nas cidades contemporâneas, nos confirmam a validade e a

relevância de tomarmos o shopping como objeto de estudo.

A construção do West Edmonton Mall no Canadá, em 1981, pode ser interpretada

como a consagração do modelo do shopping center. Não somente pelo tamanho29, como

também pela importância que o shopping passou a ter para a economia da cidade e para a

vida dos seus habitantes. O West Edmonton superou de longe os centros comerciais

tradicionais, não só pela diversidade de lojas, ou pela amplitude de seus corredores, de suas

alamedas e praças, como também pelos serviços e atrações que oferece. Com suas ruas

temáticas, parque de diversões e um hotel imponente, este shopping canadense diversificou

sua prestação de serviços de um modo até então nunca visto. Um outro fator importante

para o sucesso do West Edmonton são as diversas opções de lazer e entretenimento.

Competições de skate, apresentações acrobáticas de motociclistas, além de exposições

artísticas e shows musicais atraem especialmente o público jovem.

Muitos jovens, alguns até de outras cidades próximas a Edmonton, viajam grandes

distâncias para se socializar e passear. Neste sentido, o West Edmonton tornou-se, também,

especialmente para os jovens, um local para se divertir, encontrar amigos, conhecer outros

jovens, ou seja, o shopping transformou-se em um importante espaço de sociabilidade.

“…tend to have more leisure time and less money than most other segments of society,

29
O West Edmonton atravessou duas décadas com o título de maior shopping do mundo.

64
their presence in shopping malls is probably oriented more toward social activities than

toward purely economic ones” (SIJPKES et al. 1983, pg 17 in: HOPKINS 1991, pg 274).

Estes eventos trazidos e incentivados pelas administrações dos shoppings

demonstram que no passado, a sociabilidade que se realizava timidamente por iniciativa

dos freqüentadores, poderia transformar-se em atividades interessantes, que teriam

inclusive potencial para ampliar, ainda que indiretamente, os lucros das lojas e do shopping

como um todo.

Os shoppings são, em última análise, literalmente, teatros do consumo,


montados a partir de um cuidadoso planejamento, concebido para
promover o drama do varejo. No entanto, a introdução formal de
atividades sociais (lazer, entretenimento) no shopping, é mais uma
confirmação do papel social dos centros de consumo (HOPKINS, 1991,
p.270).

Neste sentido, passear no shopping deixa de ser apenas o movimento de compras

em lojas dispostas lado a lado, para ter também uma função em si mesmo, a de participar de

um espaço propício ao encontro, em que ver e ser visto torna-se um ritual de sociabilidade.

Com isso, ampliam-se tremendamente as possibilidades de abordagem do shopping, diante

de sua complexificação em termos sociais. Tornando-se mais do que um espaço de

consumo e passando a fazer parte do cotidiano da cidade, os shoppings ganharam cores de

representações, de identidades, de apropriações simbólicas e de sociabilidade. Sua

expansão nos grandes centros urbanos, inclusive para áreas tradicionalmente menos

favorecidas, é um fato que hoje assistimos nos subúrbios e nas Regiões Metropolitanas de

Rio e São Paulo, por exemplo. Em bairros como Campo Grande e Del Castilho, ou em

municípios como Duque de Caxias, os shoppings assumem uma função que a princípio não

se imaginaria, viabilizando uma das parcas possibilidades de lazer nessas áreas. Da mesma

65
forma, acabam revitalizando determinadas áreas e promovendo a valorização de algumas

regiões que antes estavam degradadas.

A expansão do shopping funciona como uma espécie de imã para o


desenvolvimento de seu entorno. A construtora Klabin Segall vai lançar
um condomínio com oito prédios de apartamentos de dois e três quartos e
estrutura semelhante a dos grandes condomínios da Barra... 30

No bairro de Cachambi, mais precisamente na antiga Avenida Suburbana, atual

Avenida Dom Helder Câmara, encontra-se o segundo maior shopping da cidade, o Norte

Shopping. Tendo completado 20 anos em 2006, o shopping passa pela maior reforma desde

sua construção. A valorização do bairro de Cachambi foi tanta, que prédios residenciais

com ampla infra-estrutura estão sendo construídos próximos ao shopping. Até o nome da

avenida foi trocado, já que “suburbano” no Brasil possui um caráter reconhecidamente

pejorativo, e, além disso, as comparações entre as novidades implantadas no shopping e na

região com aquelas já presentes em áreas mais abastadas como a Barra da Tijuca e a Zona

Sul são recorrentes. Uma das novas áreas do Norte Shopping será ocupada por uma

academia de ginástica. “Estamos investindo 20 milhões de reais nessa academia, mais do

que investimos na da Barra (16 milhões de reais). Termos esteiras com TV de plasma e

tudo o mais que há nas academias da Zona Sul”, diz um dos empresários da rede.31

Assim, além da grande ampliação dos usos dos shoppings outro fator marcante é a

inclusão de camadas sociais menos privilegiadas financeiramente na festa do shopping.

Com a disseminação destes equipamentos pelos centros urbanos, originada pela renovação

da própria representatividade do shopping na cidade, ocorreu paralelamente a renovação da

imagem de alguns bairros habitualmente desvalorizados. Neste sentido, é inegável a

importância que os shoppings adquiriram no que diz respeito à produção do espaço urbano.

30
Veja Rio – 6 de Dezembro de 2006.
31
Veja Rio – 6 de Dezembro de 2006.

66
O shopping é hoje um grande representante da histórica união entre sociabilidade

e consumo, aliás, foi assumindo essa união publicamente, que os shoppings chegaram a ter

a importância que têm hoje nas mais diferentes cidades do mundo. Cada vez mais, o espaço

de passagem, impessoal, pasteurizado e homogêneo socialmente, vai ganhando contornos

mais humanizados no momento em que o consumidor é, muitas vezes, na verdade, um

freqüentador. Este personagem, que também consome, tem o espaço do shopping como um

ponto de referência para o seu cotidiano, para seus afazeres, para o lazer e para a

sociabilidade. Reafirmamos que a partir desta ampliação do papel que os shoppings

exercem na cidade, seu espaço, suas representações se modificaram. Nos parece que as

reflexões que lhe dizem respeito devem seguir o mesmo caminho.

1.6 O Brasil como exemplo da renovação da representatividade do shopping

na cidade

Desde a implantação do primeiro shopping, reconhecido pela ABRASCE32, em

1966, o Iguatemi, em São Paulo, o número de empreendimentos deste tipo cresceu

significativamente no Brasil. Por razões de viabilidade dos dados, trabalharemos com os

shoppings que são reconhecidos pela ABRASCE. Além de preencher os requisitos mínimos

que a ABRASCE estabelece, o shopping associado paga uma taxa de admissão, uma

contribuição mensal regular e possíveis contribuições extraordinárias. Criada em 1976,

desde então a ABRASCE regula os empreendimentos que podem obter o título oficial de

32
ABRASCE – Associação Brasileira de Shopping Center.

67
Shopping Center. Os requisitos para receber o título são determinados pelo Selo

ABRASCE:

O Selo Abrasce é conferido aos empreendimentos admitidos como


membros na categoria de Associados Empreendedores. Para tanto, o
shopping deve satisfazer os seguintes requisitos:
- Ser constituído por um conjunto planejado de lojas, operando de forma
integrada, sob administração única e centralizada;
- Ser composto por lojas destinadas à exploração de ramos diversificados
ou especializados de comércio e prestação de serviços;
- Ter locatários lojistas sujeitos a normas contratuais padronizadas, sendo
estabelecido em contrato de locação da maioria das lojas cláusula
prevendo aluguel variável de acordo com o faturamento mensal do lojista;
- Possuir lojas-âncora ou características estruturais e mercadológicas que
possam atrair um fluxo de consumidores essencial ao bom desempenho do
empreendimento;
- Oferecer estacionamento compatível com a área de lojas e à afluência de
veículos;
- Estar sob controle acionário e administrativo de pessoas ou grupo de
comprovada idoneidade e reconhecida capacidade empresarial
(www.abrasce.com.br).

Nos primeiros dez anos, entre 1966 e 1976, foram construídos 8 shoppings. Em

apenas cinco anos, entre 1976 e 1981, foram construídos mais 8 shoppings, aferindo-se

portanto, um aumento no ritmo de implantação de shoppings.

No entanto, foi a partir da década de 1980 que os números começam a

impressionar. Em 1981 eram 16 shoppings reconhecidos pela ABRASCE. (Somente em

1980, o Rio de Janeiro terá a inauguração de um shopping reconhecido pela ABRASCE, o

Rio Sul.) Dez anos depois, em 1991, havia 90 empreendimentos. Nos cinco anos seguintes,

o aumento foi de 57. Entre 1996 e 2001, houve o maior crescimento da história da indústria

de shoppings no país; foram construídos 93 shoppings. Podemos visualizar esses dados no

gráfico abaixo:

68
Núm ero de Shoppings no Brasil

2006 263

2002 252

2001 240

1996 147

1991 90

1986 34

1981 16

1976 8

1971 2

1966 1

Fonte: ABRASCE 2006.

Há 168 shoppings reconhecidos pela ABRASCE, e cerca de outros 400

espalhados pelo país, e que se intitulam shopping centers. Na Região Sudeste, localizam-se

mais de 60% dos shoppings brasileiros, enquanto que na Região Norte, estão apenas 2%

dos shoppings. Somente o estado de São Paulo, possui 61 shoppings. Exatamente o mesmo

número que as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul somadas. Desta forma, deve-se

atentar para o fato de que se na Região Sudeste o shopping center é um equipamento

urbano por demais utilizado e conhecido, esta situação não se repete com a mesma

intensidade no restante do país. Na verdade, a distribuição dos shoppings pelo país, segue

assim, a concentração de importância econômica, que historicamente privilegia a Região

Sudeste33. A partir dos números que foram apresentados, temos então, uma visão mais clara

do estágio em que a indústria de shopping centers se encontra no país. Apesar de

33
Ver Mapa em anexo sobre a distribuição de shoppings pelo país.

69
acreditarmos na grande importância dos shoppings para as cidades brasileiras, reiteramos

que essa importância pode ser considerada relativa, já que apesar de estarem concentrados

nos estados mais populosos e relevantes, há 6 estados (MT, TO, RO ,AC, AP e RR) que

não possuem nem sequer um shopping reconhecido pela ABRASCE.

Além disso, podemos concluir (através dos mapas em anexo) que mesmo no Rio

de Janeiro, que aparece com um dos maiores números de shoppings (reconhecidos pela

ABRASCE), tanto no estado como na cidade do Rio, ainda existem inúmeros “vazios de

shoppings”. Todavia, lembramos que há centenas de “shoppings” espalhados pela cidade e

pelo estado do Rio de Janeiro (assim como por quase todos os outros estados), que se

intitulam como tal, mas que não são reconhecidos pela ABRASCE.

Porcentagem de Shoppings reconhecidos pela ABRASCE por Região

Norte
Centro-Oeste
2%
7%
Nordeste
9%

Norte
Centro-Oeste
Nordeste
Sul
18% Sul
Sudeste
Sudeste
64%

Fonte: ABRASCE 2006

70
Para além das quantificações que nos permitem verificar a dimensão dos

shoppings no Brasil, pretende-se destacar o fato de que esses espaços obtiveram não só uma

considerável ampliação de suas funções, como também ganharam novos sentidos, novos

arranjos, os quais parecem apontar para a necessidade de uma ampliação das possibilidades

de análise desses espaços de consumo, no Brasil e no exterior.

A chegada do shopping center ao Brasil na década de 1960 só foi possível a partir

do momento em que “uma dinâmica de acumulação verdadeiramente capitalista teve

condições de estabelecer-se no país” (BIENENSTEIN, 2002, pg. 75). Não se pode esquecer

que neste período o país experimentava um processo intenso de urbanização, concentrado

no sudeste brasileiro, além da constituição efetiva daquilo que Milton Santos chamou de

“Meio técnico-científico e informacional”.34 A partir daí, o desenvolvimentismo

característico deste momento da história brasileira, levou o país a uma maior inserção no

projeto de internacionalização econômica comandado pelas empresas multinacionais, o

qual impunha um novo modelo de consumo.

...com o atual capitalismo da organização comandado pela presença das


firmas multinacionais, o processo de acumulação do capital não poderia
mais fazer-se sem que tais grandes firmas pudessem ir buscar, seja onde
for, as condições para a obtenção de um lucro maior (...) Isso não poderia
ser obtido se não houvessem ocorrido, paralelamente, diversos processos
de internacionalização: do capital, da tecnologia, do mercado dos bens e
do mercado de trabalho, da educação e das preferências e gostos, inclusive
na alimentação (SANTOS, 2002b, pg. 208;209).

34
“O meio técnico científico e informacional é marcado pela técnica, ciência nos processos de modelação do
território, essenciais às produções hegemônicas, que necessitam desse novo meio geográfico para sua
realização. A informação em todas as suas formas, é o motor fundamental do processo social e o território é,
também, equipado para facilitar sua circulação” (SANTOS, 1993, p.56).

71
Pode-se entender a inauguração do Shopping Iguatemi, em 196635, na cidade de

São Paulo, como representativa não apenas de um novo modo de fazer compras, ou de uma

modificação importante no cenário urbano paulistano. Na verdade, podemos interpretar que

naquele momento, a maior cidade do país assistia o nascimento de um importante

representante do processo de “modernização” que invadia o país em diversos setores. Trinta

anos depois, o shopping center já seria considerado “a forma predominante de aglomeração

da atividade comercial com vistas à sua reprodução ampliada” no país (PINTAUDI in

BIENENSTEIN, 2002, pg. 77).

1.6.1 A(s) cidade(s) (brasileiras) no shopping – a publicização dos

empreendimentos pelo país, através da introdução do lazer, dos serviços e da

sociabilidade.

Nas décadas de 1960 e 1970, os shoppings não possuíam expressão significativa

no Brasil. Eram apenas alguns poucos centros de compras, elegantes, convenientes para os

automóveis e para os indivíduos mais abastados. A discrição dos shoppings àquela época

pode ser exemplificada não só pelo parco número de unidades, bem como por sua ausência

na segunda cidade mais importante do país. Somente em 1980, o Rio de Janeiro entrou na

rota da indústria dos shopping centers. Estava em curso o processo de maturação da idéia
35
O Shopping do Méier, inaugurado em 1963 na rua Dias da Cruz, principal área commercial do Méier,
bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, se intitula como “o primeiro shopping do Brasil”. Na época
de sua implantação o “Shopping” do Méier apresentava as características típicas de uma galeria, não tendo,
por exemplo uma administração única. Até hoje, este centro commercial não é reconhecido como um
shopping center. Alguns dos motivos a serem considerados podem ser o pequeníssimo estacionamento para
apenas 250 carros, e as diversas lojas que possuem uma de suas portas voltada diretamente para a rua. Além
disso, só há duas lojas âncora (Lojas Americanas e C&A), o que é consideredo como bem abaixo do padrão.
O Shopping Center Lapa, localizado na cidade de São Paulo, apesar de ter sido inaugurado em 1968, só foi
reconhecido pela ABRASCE como tal em 1994, não aparecendo nos registros, portanto, como um dos
primeiros shoppings da cidade (e do Brasil). O Shopping Gilberto Salomão se intitula “o primeiro de
Brasília”, título que oficialmente pretence ao Shopping Conjunto Nacional de Brasília, por motivos
semelhantes aos que justificam o caso do Shopping do Méier.

72
no país. Nos anos 80, houve o primeiro momento de grande expansão dos shoppings pelo

Brasil. Avaliamos que esta expansão possuía muito mais um caráter quantitativo e de

ampliação das áreas cobertas pelos shoppings. Queremos dizer, que a composição do

empreendimento e mesmo sua capacidade de atrair freqüentadores, não foram

dramaticamente modificados. A essência do shopping permaneceu a mesma, falamos,

ainda, de apenas um centro de compras. “Foi, entretanto, somente a partir dos anos 90, que

o modelo shopping center ganhou tamanha visibilidade, sem falar que, nesta mesma

década, verificamos uma mudança significativa no “perfil” destes empreendimentos”

(MAIA, 2002, pg.126).

É evidente que a ampliação da indústria de shoppings no Brasil, ocorrida como

vimos, com maior vigor, a partir de 1996, segue a lógica administrativa de um

planejamento que leve à reprodução ampliada do capital, principalmente através do

monopólio do espaço. É importante lembrar também, que novas necessidades de consumo,

novos gostos e hábitos passaram a ser apresentados e saciados nos shoppings. Todavia, não

se pode esquecer que a degradação dos espaços públicos é um fator fundamental para a

compreensão dessa proliferação de shoppings no país.

1.6.1.1 – A degradação da rua: Em fuga do (no) espaço público.

Retomando esta discussão, que lançamos aqui no item 2.5, a degradação dos

espaços públicos passa, em diversos países, entre eles o Brasil, de modo inevitável, pelo

definhamento da civilidade e com esta do “declínio do espaço público”. Grande parte dos

73
cidadãos de metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo se vêem amedrontados pelo

descontrole da violência urbana, que também expõe a incompetência e outras mazelas que

mancham as “autoridades”. Coloco entre aspas, pois no Rio de Janeiro, por exemplo,

muitas vezes (e cada vez mais) as autorizações ou proibições parecem não ter origem nos

estabelecimentos em que se encontram as pessoas que elegemos democraticamente, e que,

portanto, em tese, são as autoridades legais. Ao andar pelas ruas das metrópoles nacionais

sabe-se da possibilidade real de encontrar uma bala “perdida”, um assalto, e da certeza de

presenciar cenas deploráveis como crianças pedindo esmolas e famílias desabrigadas,

obrigadas a fazer no espaço público tudo aquilo que talvez gostassem de fazer

privadamente. Mais do que uma degradação dos espaços públicos, ou do que uma cena

constrangedora, espetáculos como estes traduzem a falência de uma sociedade, e

conseqüentemente de seus espaços mais importantes, mais cidadãos. Estes, aliás, os

cidadãos, estão diminuindo em progressão geométrica, seja porque se tornaram criminosos,

ou porque foram demitidos da vida social (e realizam atividades privadas no “espaço

público”, já que para estes até espaço privado foi negado) ou porque foram assassinados

pelo crime que se tornou um item cativo nas ruas. A descaracterização das bases

fundadoras do espaço público e a escassez cada vez maior de cidadãos fazem com que

conceitos como urbanidade e cidadania sejam simplificados, desvirtuados e até esquecidos.

Por outro lado, a idéia de violência urbana aparece como uma ferramenta importante na

tentativa de se tentar compreender este emaranhado de problemas. Marcelo Lopes de Souza

define violência urbana como:

...as diversas manifestações da violência interpessoal explícita que, além


de terem lugar no ambiente urbano, apresentem uma conexão bastante
forte com a espacialidade urbana e/ou com problemas e estratégias de
sobrevivência que revelam ao observador particularidades ao se
concretizarem no meio citadino, ainda que não sejam exclusivamente

74
“urbanos” (a pobreza e a criminalidade são, evidentemente, fenômenos
tanto rurais quanto urbanos) e sejam alimentados por fatores que emergem
e operam em diversas escalas, da local à internacional. Vista a partir desse
ângulo, podem ser tomados como típicos exemplares da violência
propriamente urbana a violência no trânsito, os “quebra-quebras”, os
assassinatos debitáveis na conta de grupos de extermínio e os atos
violentos perpetrados por quadrilhas de traficantes de drogas ou gangues
de rua (SOUZA, 1999, pg.52).

A extensão dos exemplos da definição somada à continuidade ampliada desta

realidade violenta e urbana nos fornece, no mínimo, boa parte da explicação dos motivos

que levam até as camadas menos endinheiradas da população das maiores cidades do

Brasil, a tentarem fugir dos espaços públicos. Faço este destaque porque é mais comum, e

numericamente mais expressivo, pela própria situação econômica, que as classes mais

privilegiadas economicamente promovam a chamada “auto-segregação”. No entanto, a

constatação da impunidade, e da conseqüente gravidade da situação, fazem com que os

condomínios, as grades e as câmeras de segurança também façam parte da paisagem

suburbana. “...são36 como eram as ruas antes que a indiferença da polícia e os

supercautelosos defensores dos direitos individuais permitissem que qualquer

comportamento, mesmo que anti-social, seja permitido” (RYBCZYNSKI, pg.191, 1995).

O trabalho de Rosemere Maia, intitulado “Shopping Center: O afrouxamento da

promessa de assepsia e o lugar da pobreza nos templos de consumo das cidades

contemporâneas”, nos fornece uma visão diferenciada da realidade dos shoppings nas

grandes cidades de um país como o Brasil. Imaginar que os shoppings estão absolutamente

livres do contato com as mazelas de cidades em que se verifica uma séria “Fragmentação

do tecido sóciopolítico-espacial”37 é ignorar o próprio cotidiano atual de muitos shoppings

brasileiros, por exemplo. Os grupos de pedintes utilizam a estratégia de se separarem,

36
O autor está se referindo aos shoppings.
37
Expressão introduzida pelo Professor Marcelo Lopes de Souza, a qual incorpora a dimensão espacial na
análise e engloba “...um corolário de problemas...” (SOUZA, 1999, pg.180).

75
portanto não andando em grupos, para não chamar a atenção dos seguranças do shopping, e

disfarçam seus objetivos. Sentam na Praça de Alimentação, observam o movimento e

realizam uma abordagem “sutil”, como se fosse uma pessoa fazendo uma pergunta a outra,

ou mesmo sentando para conversar. Os assaltos em shoppings vêm aumentando, até por

conta do grande aumento no número desses empreendimentos, e também por causa do

aumento progressivo da criminalidade nas cidades.

“Uma colega minha disse outro dia que estava na fila do Mcdonald’s e
havia garotos pedindo dinheiro para comprar sanduíches. Ela se sentiu
incomodada e não concordou em dar dinheiro para os garotos, que
começaram a ameaçá-la. Uma outra moça que estava na fila, vendo a
situação, resolveu chamar um segurança que estava próximo, e questioná-
lo sobre sua omissão em afastar os garotos. O segurança explicou que não
estão mais fazendo nada, pois senão ficam “jurados” de morte pelos
bandidos que comandam uma favela por aqui” (Freqüentadora do
Iguatemi)38.

Assim, ainda que acreditemos que os fatores que levaram o shopping a se tornar

mais do que um centro de compras, se estendam muito além das questões relativas à

violência urbana e, de modo geral, à degradação dos espaços públicos, não deixamos de

considerar que estes, são aspectos que mantém uma estreita relação com o sucesso dos

shoppings, o que é ampliado em cidades “mais do que violentas”, como o Rio de Janeiro e

São Paulo. Os congestionamentos, as altas temperaturas e os altíssimos índices de poluição

complementam o quadro do “caos” urbano das grandes metrópoles, e que também mantém

uma ligação importante com a proliferação e o aprofundamento das funções dos shoppings.

“O GLOBO teve acesso a escutas telefônicas feitas pela polícia com autorização judicial,

mostrando a ação de uma dessas quadrilhas. Em uma das ligações, o bandido vai entregar a

cocaína num shopping na Barra” (www.oglobo.com.br - 26 de Outubro de 2003).

38
Entrevista realizada pelo autor.

76
1.6.1.2 – O abrigo e a festa no shopping

Como vimos anteriormente, entre 1991 e 2001 foram construídos cerca de 200

shoppings no país, sem contarmos aqueles que não são reconhecidos pela ABRASCE. Os

50 shoppings que existiam no país em 1991, já eram 147 em 1996 e chegaram a 240 em

2001. Além do aumento no número de empreendimentos, pode-se verificar que desde a

metade da década de 1990, vem ocorrendo uma enorme ampliação das opções de lazer e

serviços nos shoppings brasileiros. Esta geração de “novos” shoppings já nasceu sob a

égide do modelo de concentração de sociabilidade, lazer e serviços nos shoppings.

Uma das características mais marcantes, na nova safra de shoppings, é a


concepção do perfil da loja - âncora. Atualmente, as âncoras apresentadas
oferecem grandes ofertas de áreas para lazer (casas de espetáculos,
cinemas e parques infantis), e de áreas de abastecimento e prestação de
serviços (academia de ginástica, mercado de frutas, praças de
alimentação)(...)Entende-se lazer, como alimentação, cinemas/teatros,
enfim, diversão, voltado para todas as faixas etárias (CARVALHO, 2005,
pgs176 & 198).

As lojas-âncora correspondem às grandes lojas, que têm clientes cativos, que por

si só atraem público. No entanto, hoje, a importância do lazer, dos serviços e da

sociabilidade para os shoppings é tão grande, que estes componentes já são considerados

“âncoras” dos shoppings. Por outro lado, os shoppings criados nas décadas anteriores,

sofreram modernizações para se adequar à nova concepção de shopping. No caso do Rio de

Janeiro, o Barra Shopping introduziu opções de lazer como rinque de patinação e três

cinemas logo no início de suas atividades em 1981. Todavia, a sociabilidade e os serviços

não ocupavam uma posição expressiva no espaço do shopping. Nada comparável ao Barra

Shopping de hoje, que além de ser o maior shopping da cidade, possui diversos espaços

afeitos à sociabilidade, como suas 4 praças de alimentação, além de uma programação

77
permanente de eventos. Outro ponto a ser destacado em relação ao Barra Shopping, refere-

se à sua recente “união” com o New York City Center, um verdadeiro complexo de lazer

com restaurantes da moda, 18 salas de cinema e um grande espaço em que se observam

grupos de adolescentes, jovens e namorados que se encontram no “New York”.

Destacamos que, o Barra Shopping “evoluiu”, para se tornar um


complexo multiuso, agregando operações que atraem público em
diferentes horários, ao longo dos sete dias da semana. Os espaços de lazer
e entretenimento são o grande atrativo no horário noturno. Durante o dia,
além do comércio, o espaço apresenta inúmeras opções de prestação de
serviços, tais como: bancos, feiras e clínicas (CARVALHO, 2005,
pg.159).

Durante nossas idas ao Barra Shopping, pudemos testemunhar uma ocasião que

nos parece ser bastante ilustrativa no que se refere à presença marcante da sociabilidade no

shopping. Mais precisamente no New York City Center, que se uniu (foi acoplado) ao

Barra Shopping, presenciamos uma grande festa de carnaval.

78
Evidentemente, como estávamos em plena segunda-feira de carnaval, as lojas

estavam fechadas, exceções feitas às lanchonetes e aos restaurantes, que ao contrário,

aproveitaram para faturar alto. Havia uma multidão de pessoas dançando, cantando e

brincando, especialmente próximo ao palco montado para o show de uma banda que tocava

marchinhas de carnaval e música baiana, e que no dia 20 de Fevereiro iria abrigar a

apresentação de uma escola de samba.

Nas fotos acima, exemplos de lojas fechadas enquanto a festa de carnaval ocorria

no shopping. A realização de uma única festa de carnaval em um shopping de uma cidade

como o Rio de Janeiro, seria no mínimo um evento com possibilidades duvidosas de lograr

êxito. O New York e o Barra Shopping registraram 4 dias grandes públicos para as festas

infantis de carnaval.

79
O caráter infantil da festa, ainda que jovens e adolescentes também tenham

participado, foi bem destacado no cartaz, ficando claro que os excessos comuns dos bailes

tradicionais de carnaval não seriam permitidos, e que o ambiente “familiar” do shopping

não seria alterado por conta da festa. Assim, registramos também a presença de seguranças

do shopping observando todo o movimento.

80
Com essas fotos, pudemos registrar um evento que exemplifica a diversidade de

usos e a própria modificação da dinâmica do espaço no shopping center. No caso da festa

de carnaval, até os corredores do shopping (espaços de circulação) foram tomados pelo

público que compareceu única e exclusivamente por conta deste evento, já que, como

vimos, as lojas estavam fechadas. A foto 5 é muito ilustrativa no que se refere à realização

de uma festa que é, a grosso modo, tipicamente brasileira39, e que possui referências mais

do que especiais com o Rio de Janeiro, em um ambiente que, a princípio, é fisicamente

padronizado em âmbito mundial. É imprescindível que lembremos que eventos festivos e

espaços de sociabilidade não são observados somente em épocas como o carnaval. E é

exatamente o fato dos shoppings se apresentarem cada vez mais como espaços de compras

afeitos à sociabilidade que trazem modificações expressivas nas principais razões que

levam as pessoas ao shopping, e fazem com que o perfil dos freqüentadores esteja se

tornando mais complexo.

39
É verdade que o “carnaval de shopping” não possui a menor representatividade como festa típica,
folclórica. Entretanto, guardando as devidas proporções, também não se pode esquecer que os desfiles na
Marquês de Sapucaí, cada vez mais industrializados e ricos e por demais afastados da cultura popular e do
folclore, já se acoplaram ao mesmo mercado global no qual o shopping exerce uma outra função.

81
Em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento de Mercado

– IPDM 40, pode-se verificar esta ampliação da representatividade do shopping no cotidiano

das grandes cidades brasileiras. Em comparação com uma pesquisa semelhante realizada

em 1998, percebe-se que os freqüentadores visitam menos lojas e são mais objetivos

quando a intenção da visita é a compra. A taxa de conversão em venda, ou seja, a intenção

de ir ao shopping comprar e, a efetivação da compra, aumentou. Entretanto, o número de

lojas visitadas vem caindo, exatamente porque a intenção de ir ao shopping para comprar

vem perdendo pontos para outras motivações, como lazer, passeio e alimentação.

Freqüentar os cinemas dos shoppings faz parte da rotina de 69% dos entrevistados, um

aumento de 11% em relação à pesquisa de 1998. A expressiva diferença verificada no

tempo de permanência em relação à motivação de ida ao shopping nos fornece a noção da

importância das outras atividades que os shoppings vêm oferecendo.

Como demonstra o gráfico abaixo, quando o motivo da visita é a compra, o tempo

médio de permanência é de 79 minutos.

Todavia, este tempo mais do que dobra (2 horas e 45 minutos) quando nos referimos

àqueles que declararam ir ao shopping para aproveitar as opções de lazer.

40
A pesquisa acima referida foi encomendada pela ABRASCE ao Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento de
Mercado – IPDM. Foram realizadas 1100 entrevistas com freqüentadores de 31 shoppings do Rio de Janeiro e
de São Paulo. Revista ABRASCE, setembro de 2003.

82
Principal Motivo de Visita a um Shopping Center -1998/2003- Fonte IPDM - 2003

16
Outros
23

11
Alimentação
10

2003
1998

31
Passeio Serviços Lazer
21

42
Compras
46

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50

No gráfico acima, sobre a motivação principal para a ida ao shopping, observa-se

que o item “compras” supera o item “lazer, passeio e serviços” por uma diferença de apenas

11%. Na tabela abaixo, observa-se que diferentemente do que se poderia pensar, os cariocas

estão na frente dos paulistas no que se refere à freqüência semanal ao shopping. Além

disso, 64% dos cariocas são favoráveis a que os shoppings fiquem abertos todos os

domingos. Outra idéia, a princípio consolidada, e que cada vez mais perde força, é a de que

o shopping é um “espaço de jovens”. A pesquisa revela que na faixa etária a partir de 45

anos, o índice de freqüência semanal é igual ao dos grupos de até 19 anos e de 20 a 29 anos.

83
A comuníssima máxima de que os shoppings são “locais de ricos” também sofre

sérios abalos diante da pesquisa do IPDM. As classes B e C respondem por 82 % da

freqüência dos shoppings no Rio de Janeiro e em São Paulo. Se preferirmos, podemos

realçar o fato de que as classes C, D e E, que a princípio poderíamos pensar que estariam

quase que excluídas da dinâmica dos shoppings, respondem por quase 40% da freqüência

nos shoppings do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Assim, reafirmamos nossa pergunta fundamental, que se relaciona ao rótulo do

não-lugar comumente atribuído ao shopping. Elegemos como “catalisador” de nossas

discussões o conceito de sociabilidade, o qual pode ser muito útil na análise desses

empreendimentos, visto que já há algum tempo, os shoppings tornaram-se parte do

cotidiano de milhões de pessoas em diversas cidades de vários países.

No capítulo seguinte, faremos uma discussão conceitual à cerca dos conceitos de

lugar e de não-lugar, com o objetivo de preparar o caminho para uma análise deste

“shopping de hoje” através desses dois conceitos.

84
Capítulo 2

O rótulo do não-lugar: Uma breve revisão conceitual como um convite à ampliação da

reflexão sobre o shopping renovado pela sociabilidade

A rotulação dos shoppings como um exemplo do que seria um não-lugar tornou-se

quase um consenso nos trabalhos sobre esses centros de consumo nas ciências sociais. A

observação de que assim como aeroportos e auto-estradas, os shoppings parecem ser

idênticos em qualquer parte do mundo, muitas vezes serve como a única justificativa para a

adequação do rótulo. O perigo desta rápida associação se assenta ao nosso ver, em dois

85
aspectos principais: Primeiramente, o fato parecerem idênticos, não quer dizer que esses

espaços sejam exatamente idênticos. Aliás, nos parece quase impossível afirmarmos que

determinado espaço se apresenta exatamente igual a outro. Tomamos aqui o conceito de

espaço como “ ...um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de

objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e

os anima, ou seja, a sociedade em movimento” (SANTOS, 1992, p.21).

Ou seja, é extremamente improvável que a forma e o conteúdo que compõem de

modo indissociável o espaço geográfico, se repita completamente. Partindo desta idéia,

podemos lançar um olhar prospectivo para a discussão do não-lugar, que nos leva a

entender que mesmo aqueles ambiente regidos pela ordem de um modelo comum, com fins

à funcionalização, não podem ser tomados como a mesma “coisa”. A semelhança da forma

em prol de um reconhecimento visual e objetivo, que por sua vez condiciona determinados

usos e comportamentos, não é suficiente para subestimarmos a capacidade de diferenciação

das relações sociais enquanto produtoras de um conteúdo particular que se reveste em

forma, através também, de um modo particular. Subestimar esta capacidade é o segundo

aspecto do perigo de associarmos determinados espaços, os quais muitas vezes nem nos

ocupamos em estudar, como o não-lugar, conceito que muitas vezes é aplicado sem

qualquer aprofundamento em sua análise. Promove-se, então, a obstrução do caminho que

poderia nos conduzir a reflexões que possam clarear a discussão ultrapassando essas

associações, até certo ponto, simplistas.

Acreditamos que o shopping é um bom exemplo do que expressamos nas linhas

acima. Especialmente sobre este “novo shopping”, que foi abordado no capítulo anterior

deste trabalho, que agrega a sociabilidade como fator preponderante de sua “vida”,

acreditamos na necessidade de um olhar mais atento para as representações e significados

86
engendrados nestes espaços. Como já dissemos, a aparente clareza da pasteurização da

forma em função da praticidade, que leva muitas vezes a comportamentos e situações

repetidos, não deve encobrir a possibilidade de enxergarmos as diferenciações que nosso

olhar deixa para trás.

Especialmente com a ampliação das funções do shopping, que deixou de ser

apenas um centro de compras, para também se tornar um centro de lazer, sociabilidade e

serviços, estes espaços tornaram-se mais complexos. Assim, este capítulo pretende

desenvolver uma base conceitual para a discussão sobre a validade de se apresentar o

shopping como um não-lugar. Para isso, faremos uma breve revisão deste conceito, a qual

será antecedida por uma discussão do conceito de lugar.

2.1 As dimensões do Lugar

O status de “conceito-chave”, não reflete a atenção ou a importância dispensada

ao lugar no âmbito da geografia. Na verdade, se comprado aos conceitos de espaço,

território, região e paisagem, o lugar foi e de certa forma continua sendo por demais

esquecido no trabalho dos geógrafos. É interessante lembrar que local e lugar são tratados

muitas vezes como sinônimos. Na linguagem do senso comum isto talvez possa aparecer

como livre de causar qualquer tipo de confusão no entendimento do que se quer apontar.

Todavia, no campo das ciências sociais é importante que lembremos as diferenças

fundamentais que se podem estabelecer entre o lugar e o local.41 A idéia do local relaciona-

se a uma noção cartográfica, ao sentido exato de apontar onde está alguém ou algo. O lugar

possui uma localização no espaço, contém o local, mas vai muito além dele. Para Susanne

41
“Para apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo
encontra-se em toda parte” (SANTOS, 2002, pg.314).

87
Langer, o lugar é culturalmente definido, já o local é uma qualidade incidental do lugar,

definida pela cartografia (in RELPH, 1976). LUKERMANN acredita que um lugar não é só

o onde de alguma coisa, mas é o local mais tudo que está implícito como o aspecto

essencial da base fenomenológica da geografia (in RELPH, 1976). É exatamente esta

dimensão do lugar que vai muito além do local, que se pretende explorar não somente como

base teórica, mas também como fomentadora de discussões próprias para este trabalho.

Apesar disso, o conceito de lugar não vem recebendo reflexões mais atentas no

campo das ciências sociais. Nos parece que ou há uma dificuldade prévia em trabalhar com

o conceito, por parte dos cientistas sociais, ou há um quase consenso de que o lugar não

traz questionamentos e esclarecimentos importantes para nos ajudar a compreender melhor

a lógica do espaço geográfico. Alain Bourdin parece acreditar na “...dificuldade que têm os

historiadores e os geógrafos, como também os sociólogos e antropólogos, em construir um

“paradigma do local” (BOURDIN, 2001, pg 25). Relph é mais enfático e específico quando

demonstra espanto não só com o desinteresse dos arquitetos, mas principalmente com o

fracasso dos geógrafos em explorar o conceito de lugar. Este fracasso, estaria relacionado

com o fato de que os geógrafos muitas vezes acreditam que sendo o lugar um conceito

considerado importante para a geografia, necessariamente deva possuir uma história de

discussões bem estabelecidas e elucidadas (RELPH, 1976).

Para efeito de análise, dividimos a discussão do conceito de lugar em três partes,

que correspondem a três diferentes abordagens deste conceito na geografia. Começamos

com a corrente de pensamento conhecida como Geografia Humanista, a qual promoveu

ampliação sem precedentes nas reflexões sobre o lugar.

88
2.2 Considerações a respeito do conceito de lugar na perspectiva da

Geografia Humanista

A quantificação em geografia originou-se especialmente da ciência cartográfica,

tendo como base o positivismo lógico. As técnicas e os métodos quantitativos se

impuseram como detentores da condição de legitimação dos conhecimentos geográficos

através de explicações eficientes para os problemas colocados. O espaço é o conceito-chave

da disciplina na geografia teorética. Paisagem, lugar e território não são conceitos

significativos, enquanto que a região é tratada como resultado de um processo de

classificação de unidades espaciais através de técnicas estatísticas (CORRÊA, 1995). Os

estudos geográficos voltados para a “explicação em um quadro probabilístico” (SANTOS,

2002b, pg. 67) impunham aos pesquisadores, que se perguntassem sobre qual deveria ser o

encaminhamento do trabalho; seria “medir para refletir ou refletir para medir?” (SANTOS,

2002b, pg. 69). Assim, uma das principais críticas à corrente quantitativa, advém do fato de

que em muitos casos, pode-se descrever padrões espaciais muito complexos, sem ao menos

compreender os processos que lhes deram origem, ou que são fundamentais para a

compreensão do espaço. Com isso, parece ter ocorrido um esquecimento em relação ao fato

de que a quantificação pode aparecer como um instrumento para auxiliar a reflexão em

geografia, mas o que permanece como fundamental é a teoria. Nesta época, dominada pela

quantificação, a ausência de reflexões mais profundas sobre o lugar também era sentida em

outras áreas das ciências sociais. “Indeed the phenomenon of place has been the subject of

almost no detailed discussion, although philosophers, historians, architects, and

geographers have made brief comments about it” (RELPH, 1976, pg.1).

89
O sucesso da chamada Geografia Teorético-Quantitativa foi o grande estímulo

para que uma geração de geógrafos procurasse privilegiar a reflexão de questões que

envolvessem a subjetividade e relações mais particulares com o espaço.

Muitos geógrafos ligados à corrente cultural e histórica nos EUA se

encaminharam pra questões relacionadas à percepção ambiental, o que fez com que fossem

vistos como parte da geografia do comportamento e da percepção, identificando-se,

portanto, com a geografia analítica, a qual já vinha desenvolvendo os referidos temas

(HOLZER, 1992). Este momento representou um certo declínio da geografia cultural, um

“...período de relativa perda de prestígio, entre 1940 e 1970...” (CLAVAL, 1995. in:

CORRÊA, 1999, pg.51). Assim, a década de 1970 representou uma grande renovação para

a geografia cultural européia e norte-americana, “...uma renovação temática e, mais do que

isto, uma renovação também na abordagem” (CORRÊA, 1999, pg.51). Nesta renovação, a

geografia cultural foi influenciada pela geografia cultural tradicional, pelo materialismo

histórico e dialético e pelo surgimento da geografia humanista (CORRÊA, 1999).

O surgimento da geografia humanista também foi resultado da busca dos

geógrafos culturais por uma base filosófica que os afastasse claramente de qualquer

semelhança com os geógrafos teoréticos-quantitativos. Edward Relph parece ter achado o

que esse grupo de geógrafos procurava.“... RELPH (1970) foi o primeiro a colocar em um

artigo as possibilidades da fenomenologia ser o suporte filosófico capaz de unir todos os

geógrafos ocupados com aspectos subjetivos da espacialidade...” (HOLZER, 1996, pg. 11).

Neste sentido, a fenomenologia seria não só a base filosófica para a geografia

humanista, como também uma fonte para que os geógrafos que trabalhassem com a

subjetividade e suas relações com os espaços pudessem se distinguir claramente não só dos

geógrafos quantitativos, como também da própria geografia cultural tradicional.

90
Todavia, os primeiros trabalhos produzidos com a intenção de destacar os

geógrafos humanistas da geografia cultural e histórica tradicional, demonstravam que ainda

não havia uma separação clara entre as duas perspectivas. Esses trabalhos, por sinal, não

formavam um conjunto homogêneo42, ainda que tivessem como importante semelhança, a

utilização do conceito de paisagem como chave principal para suas reflexões. “...qualquer

paisagem é composta não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas também

por aquilo que se esconde dentro de nossas cabeças” (MEINIG, 1979 A, 33, in: HOLZER,

1992, pg.208).

Posteriormente, o trabalho de Tuan na década de 70 foi dedicado a encontrar “um

conceito espacial que fosse mais adequado do que o de paisagem às características

subjetivas e antropocêntricas da investigação...” (HOLZER, 1992, pg.213). Assim, o lugar

ganhará uma importância fundamental para as formulações humanistas na geografia, como

o conceito que melhor traduz o modo como a experiência individual, a intersubjetividade43

e os valores, são vivenciados e atribuídos ao meio.

Outras bases filosóficas, como o idealismo, o surrealismo e o existencialismo,

foram propostas como possíveis suportes à abordagem humanista na geografia na década de

1970. Todavia, apesar de provocarem discussões, os dois primeiros não obtiveram grande

repercussão para as bases teóricas da corrente humanista. Por outro lado, o existencialismo

passou a ganhar importância, especialmente através de Anne Buttimer, que acreditava que o

estudo da subjetividade na geografia seria mais completo, se tomasse como base filosófica

uma fusão da fenomenologia, com o existencialismo.

42
Para maiores esclarecimentos sobre as distinções e até divergências de concepções entre os primeiros
trabalhos que buscavam consolidar a corrente humanista na geografia, ver HOLZER (1992).
43
A idéia fenomenológica de intersubjetividade se refere à experiência que um determinado grupo tem com o
meio.

91
A fenomenologia e o existencialismo não separam os valores dos fatos, ou
os valores da ação dos agentes dessas ações. No entanto, a fenomenologia
enfatiza os problemas do conhecimento e do significado, enquanto que o
existencialismo enfatiza a conduta de vida (BUTTIMER, 1974, pg.37, in:
HOLZER, 1992, pgs.191,192).

Buttimer promove inclusive, uma crítica sobre a importância dada pela

fenomenologia às questões dos valores e da subjetividade, deixando de lado as reflexões

importantes sobre o papel da dimensão física na construção do espaço. A autora acreditava

que o ambiente estava sendo tratado como mero receptáculo e cenário de eventos. Com

isso, Buttimer propõe a incorporação do tradicional conceito vidaliano de Gênero de Vida,

para que ficasse mais clara a importância do meio em que as atividades se desenrolam.

Perseguia-se a idéia de que “o homem faz parte desta cadeia (que une as coisas e os seres)

e, em suas relações com o que o cerca, ele é ao mesmo tempo ativo e passivo, sem que seja

fácil determinar na maioria dos casos até que ponto ele é um ou outro” (VIDAL DE LA

BLACHE, 1921, pg. 104. In: GOMES, 1995, pg 200).

No entanto, diferentemente das propostas relacionadas a uma aproximação entre a

fenomenologia e o existencialismo, as idéias de Buttimer sobre uma possível aproximação

com o “gênero de vida” não foram encampadas. Na verdade esta construção teórica de

Buttimer, significaria não só uma aproximação com o conceito de gênero de vida, como

também com a geografia francesa. No entanto, somente na década de 80 ocorreria uma

aproximação entre a geografia humanista anglo-saxônica e o humanismo francês

(HOLZER, 1992).

Assim, geógrafos como Edward Relph, Anne Buttimer e Yi-fu Tuan, entre outros,

foram buscar principalmente na fenomenologia e no existencialismo, a base teórica para

formular uma concepção de espaço que se distanciasse consideravelmente das proporções

92
matemáticas e sistemas de análises propostos pelos geógrafos quantitativos44.

Protagonizaram, portanto, um momento fundamental de renovação da própria geografia, no

qual ocorria a consolidação da geografia humanista e o surgimento de novas possibilidades

de pesquisa para a geografia cultural. Com isso, essa renovação também pode ser tomada

com uma reação às abordagens que privilegiavam as explicações matemáticas em

detrimento das particularidades e sutilezas do cotidiano. Ao contrário, as perspectivas

quantitativas em geografia aprisionavam a complexidade da vida social em modelos

analíticos e objetivos, que produziam uma visão de mundo restrita e simplificada. Esses

modelos serviram (e ainda servem) como base teórica para a construção de espaços “mais

eficientes”, e para a modificação de espaços já existentes em prol de uma “racionalização”

dos usos no espaço. Este discurso foi, em geral, muito bem aceito, por seu tom de

objetividade e sua capacidade de fornecer explicações precisas sobre a vida social.

2.2.1 O lugar como conceito-chave da geografia

Por oposição, a corrente humanista preocupava-se com o mundo vivido, com as

situações do dia-a-dia, sempre com o objetivo de explorar o caráter único da experiência do

indivíduo no espaço geográfico. Dessa forma, o lugar passou a ser pensado como o

conceito-chave da geografia, como uma maneira alternativa de se pensar a organização do

espaço. Todavia, não foi somente o contexto acadêmico da geografia que propiciou o

aparecimento e o sucesso da chamada corrente humanista na geografia. Não se deve

esquecer do clima de mudança que se anunciava ao final dos anos 60, da busca por uma

maior valorização da subjetividade humana através do...

44
“No entanto, RELPH (1970) foi o primeiro a colocar em um artigo as possibilidades da fenomenologia ser
o suporte filosófico capaz de unir todos os geógrafos ocupados com aspectos subjetivos da espacialidade...”
(HOLZER, 1996, pg. 11).

93
movimento hippie, da revolta estudantil, e do questionamento feroz dos
padrões culturais e políticos instituídos(...)Uma geografia que fosse ao
encontro desses novos valores deveria basear-se em uma “aproximação
humanística... (HOLZER, 1996, pgs.10 e 11).

Os autores queriam demonstrar que existem profundas ligações sentimentais e

psicológicas entre as pessoas e os lugares em que vivem, e que os lugares podem ser

vividos de diversos modos, especialmente como “...centres of special importance and

meaning which are distinguished by their quality of insideness. These are places” (RELPH,

1976, pg.21). A principal tarefa seria desvendar a alma dos lugares, suas identidades, seus

sentidos e significados.

Apesar desse movimento ter obtido maior consistência e visibilidade ao final da

década de 1960, parece que o humanismo já havia aparecido na geografia em tempos

anteriores.

O sentimento de simpatia estabelecido entre o geógrafo e a região que ele


estuda, é um dos elementos centrais da concepção monográfica
compartilhada pelos defensores do espaço vivido. A região, que define ao
mesmo tempo, um espaço de pertencimento e de inclusão a uma
comunidade dada, inscreve também a inteligibilidade do sentimento
regional vivido pelos signos identitários (GOMES, 1996, p.319).

Hartshorne nos lembra que o sentimento de pertencimento, de identificação com

determinada porção do espaço, já fazia parte das relações sociais antes mesmos dos

geógrafos tratarem do tema.

Esse interesse pelo caráter individual das áreas, grandes ou pequenas,


encontra sua expressão mais clara no fato universal de que, muito antes do
advento dos geógrafos profissionais, os lugares conhecidos pelo homem
receberam denominações próprias, para fins de reconhecimento de sua
individualidade... (HARTSHORNE, 1978, p.123).

Desse modo, Hartshorne remete-se a Vidal de La Blache que em 1913 propõe que

“A geografia é o estudo dos lugares”. Assim, estaria colocado o propósito basilar da

geografia, que seria justamente satisfazer esse interesse pelo caráter individual das áreas.

94
Pierre Birot, em seu estudo de geografia regional sobre Portugal, afirma que “...a geografia

regional é uma arte que se emprega em evocar verdadeiras individualidades” (GOMES,

1996, p.318). Para La Blache, a França seria formada por um mosaico de identidades

regionais, que em conjunto formariam o Estado francês. A propósito, esta individualidade

regional inspirada em Ritter e aplicada a uma abordagem do Estado francês, afasta a

perspectiva vidaliana da corologia.

Hartshorne considera a região como o conceito primordial de sua geografia de

diferenciação de áreas retomada de Hettner. Diferentemente de La Blache, que isola a

região, Hettner parte do singular para o geral, para em seguida voltar ao singular. Neste

sentido, cada porção do espaço é fruto de uma combinação única e a conexão dinâmica

entre essas áreas constitui-se na articulação do mundo. Ainda, Hartshorne afirma que o

conceito de lugar estaria também relacionado à síntese singular das localizações.

Assim, se por um lado foi a geografia humanista levou a questão das identidades

às últimas conseqüências, trazendo o conceito de lugar para o centro do debate na

geografia, por outro lado, as raízes desta questão e da própria influência do humanismo,

podem ser observadas em momentos precedentes na geografia.

2.2.2 Fenomenologia e Existencialismo: A fundação do lugar humanista

O aporte filosófico da geografia humanista foi constituído também, a partir da

apropriação de alguns conceitos oriundos especialmente da fenomenologia e do

existencialismo. “Mundo vivido” e “ser-no-mundo”, são identificados na geografia com o

conceito de lugar (HOLZER, 1996).

95
Para a fenomenologia, o objeto é um ato da consciência, a qual é uma

particularidade, sempre intencional no sentido de se apropriar do mundo e dar-lhe um

sentido. Não há um sujeito separado do objeto, nem vice-versa, pois não há uma

consciência separada do real. Desse modo, a consciência não é abstrata, é intencional e

relaciona-se à questão da liberdade / necessidade, sendo corpórea. A fenomenologia tem

seus atributos relacionados a Husserl, ainda que possamos nos remeter às influências de

Kant e Hegel como suas raízes mais remotas (CHRISTOFOLETTI, 1985).

Kant elaborou a concepção de que a consciência é dada, originária do momento

do entendimento, enquanto razão organizadora. Neste sentido, através da consciência, a

experiência humana submetida ao pensamento é organizada, ganha unidade. No entanto,

este processo não nos leva ao conhecimento da “coisa em si” (do real), mas ao

conhecimento do real (objeto) em relação com o sujeito do conhecimento, ou seja, o

fenômeno. Só chegamos a apreender o a priori das coisas, o predicado já contido nelas,

visto que se conhecêssemos as coisas em si, já estariam em nós, afetadas por nossa

subjetividade.

Posteriormente, Hegel critica a perspectiva kantiana da consciência como dada,

como originária. Para Hegel a consciência das coisas é o próprio processo dialético que

leva à essência dos fenômenos, ao absoluto, ao verdadeiro. Em Hegel, “a fenomenologia

pretende assim ser um conhecimento do absoluto, (...) a ciência da experiência da

consciência” (MARCONDES, 1997, pg. 219) o qual não é, portanto, inacessível. Todavia,

a verdade só é atingida quando a essência (o ser em si) coincide com a sua manifestação (o

ser para nós).

A fenomenologia é inaugurada como movimento filosófico por Edmund Husserl.

A intencionalidade torna o sujeito e o objeto inseparáveis, sendo, além disso, a base da

96
consciência. Esta, por sua vez, é a única via possível de apreensão do a priori das coisas, do

fenômeno em si. Com esses pressupostos, Husserl confronta as idéias basilares da

Psicologia Clássica, que falavam de uma consciência passiva, como um simples depositário

das representações da realidade e dos objetos sob a forma de imagens. Em oposição, através

da noção de intencionalidade, Husserl apresenta uma consciência capaz de arrumar as

imagens e os fenômenos da realidade de modo a dar-lhes um sentido. Assim, ter

consciência é ter consciência de algo, é estar intencionalmente voltado para um objeto, este,

um fenômeno, por exemplo, só pode ser conhecido a partir do momento em que é

“codificado” pela consciência. A essência do fenômeno é revelada pela consciência. Havia,

portanto, uma busca em chegar à consciência “pura”, o que não seria possível através dos

métodos científicos “tradicionais”. Neste sentido, seria o método fenomenológico que se

encarregaria de nos fazer compreender esta consciência “pura”, “universalmente

verdadeira” (STRATHERN, 2002). Assim, a filosofia de Husserl procura trabalhar a

subjetividade e o sentido da experiência humana, através da análise da consciência em sua

relação com o real. Desse modo, é possível chegar ao fenômeno em si mesmo, através de

um retorno a sua essência, denominada de “redução eidética”. A essência relaciona-se a

unidades ideais (eternas)45 de significação, que constituem o sentido de nossa experiência.

Neste sentido, a fenomenologia descreve essências (objetos ideais, não-empíricos) das

experiências de uma consciência. Contestando a razão homogeneizadora e o materialismo

universalizante, a fenomenologia acredita que o mesmo objeto pode ser percebido de

diferentes formas por cada um dos sujeitos.

45
“Os objetos ideais se distinguem dos reais por um aspecto essencial. O ser ideal é intemporal, e o ser real
está submetido ao tempo...” (MARÍAS, 2004, pg.452).

97
Quando Husserl foi lecionar em Freiburg, por volta da metade da década de 1910,

passou a ter como assistente um profundo conhecedor de sua obra, chamado Martin

Heidegger. Posteriormente, a partir da base fenomenológica de Husserl, Heidegger dedicou

sua filosofia às questões que envolviam a própria existência humana; “ser” não era tão

simples quanto a sociedade moderna pensava. “Toda ontologia – diz Heidegger - é cega se

não explicar primeiro suficientemente o sentido do ser e compreender esta explicação como

seu tema fundamental” (MARÍAS, 2004, pg.475).

Para chamar a atenção para a importância das questões relativas à vida cotidiana e

aos próprios significados que envolvem a experiência de existir, que estão tão próximos de

nós, e que por isso mesmo muitas vezes passam desapercebidos, Heidegger desenvolveu o

conceito de Dasein. Este conceito pode ser tomado como a idéia de “ser-no-mundo”, “...a

entidade que cada um de nós encontra na asserção fundamental: eu sou” (STRATHERN,

2002, pg.36). A partir daí, pode-se perceber uma distinção importante entre esta formulação

de Heidegger e a base fenomenológica tributária de Husserl, já que “a intuição

fenomenológica conduz à contemplação das essências, e estas são algo absolutamente dado,

mas como ser essencial (Wesenssein), nunca como existência (Dasein)” (MARÍAS, 2004,

pg.459).

Neste sentido, a fenomenologia de Husserl, o “desvelamento” das essências de

objetos não empíricos, através de uma consciência “pura” (não empírica), não tem,

portanto, compromisso com a existência propriamente dita. Todavia, não se pode perder de

vista que Heidegger introduz o tema do existir (no mundo) através do método

fenomenológico. “O método da pergunta fundamental sobre o sentido do “ser” é

fenomenológico” (MARÍAS, 2004, pg.477).

98
A idéia do “ser-no-mundo” desenvolvida por Heidegger é completada na

ontologia do autor por suas preocupações com a temporalidade. A existência no mundo só

faz sentido se levarmos em conta a influência do tempo. Não por isso, a principal obra de

Heidegger foi intitulada “Ser e Tempo”. A propósito, as formulações heideggerianas sobre

o (Dasein) “ser-no-mundo” foram de fundamental importância para a corrente humanista da

geografia. Na verdade, os geógrafos encontraram no conceito de lugar o campo mais

promissor para o desenvolvimento da temática do “ser-no-mundo”.

A teoria de Heidegger também foi uma inspiração importante para o

desenvolvimento de uma corrente filosófica complexa, que ganhou notoriedade a partir do

final da Segunda Guerra Mundial. O existencialismo nasceu não só como corrente

filosófica, mas também trazia consigo um certo desprezo e confronto à moral vigente. Os

existencialistas eram acusados de diversas infrações à “moral e aos bons costumes”, o que

gerou uma caricatura de “aparência descuidada, cabelos abundantes e desgrenhados; brusco

nas maneiras; mal asseado...” (PENHA, 1982, pg.8). Para além desse tipo de impacto

gerado à época de seu surgimento, pode-se dizer que alguns dos mais importantes preceitos

do existencialismo tem como base a obra do pensador dinamarquês Sören Kierkegaard.

Este pensador se opunha duramente às idéias defendidas por Hegel, no que diz respeito à

formulação de um sistema que pudesse explicar de modo total a realidade. Kierkegaard

argumentava que a realidade concreta só poderia ser compreendida se partíssemos de uma

análise centrada no indivíduo, deve-se partir da subjetividade através da qual se revela a

realidade de cada ser, a partir da qual pode-se chegar às abstrações que regem a totalidade.

Kierkegaard foi um severo defensor da singularidade e não acreditava que algum sistema

poderia dar conta de explicar a existência humana.

99
O indivíduo, por isso mesmo, jamais pode ser dissolvido no anonimato,
no impessoal. Todo conhecimento deve ligar-se inapelavelmente à
existência, à subjetividade, nunca ao abstrato, ao racional, pois se assim
proceder fracassará no intento de penetrar no sentido profundo das coisas,
logo, de atingir a verdade (PENHA, 1982, pg.17).

Não se pode, portanto, pensar o espaço somente através de uma perspectiva de

objetividade, sob pena de deixar escapar as diversas formas pelas quais o espaço é

apropriado pelos grupos sociais que lhe conferem símbolos, estéticas, valores, imagens, ou

seja, que lhe transformam em lugar. A fenomenologia e o existencialismo passaram então, a

servir de suporte para que a geografia ampliasse sua capacidade de compreender, através da

intencionalidade, as experiências vividas pelos diferentes indivíduos em diversos lugares.

Assim, a execução do método fenomenológico na geografia apresentaria a necessidade de

descrições minuciosas, que permitissem uma nova maneira de compreender as relações do

homem com a natureza. Neste sentido, a fenomenologia desviaria o foco das preocupações

fundamentais da geografia para a subjetividade humana e sua importância na produção do

espaço. Desse modo, a grande valorização da subjetividade humana na geografia,

manifestada no espaço através da percepção, dos símbolos e das ações, não permitiria uma

separação entre sujeito e objeto. Com isso, mais uma vez os geógrafos humanistas

obtinham sucesso em se afastar das perspectivas analíticas, já que propunham uma reflexão

que mantivesse o sujeito indissociavelmente conectado ao objeto, o que se coloca como

totalmente contrário à clara separação entre sujeito e objeto promovida tradicionalmente

pela geografia quantitativa.

A própria formulação do espaço vivido46 é executada pelos atores sociais, os

sujeitos, que vivem este lugar. Assim, a compreensão do espaço vivido não se pauta na

46
GOMES (1996) faz uso da explicação de A.Frémont, segundo a qual “o espaço vivido visa a substituir a
noção de um espaço alienador, definido ao mesmo tempo por uma atitude de nostalgia do passado e por uma
febre futurista de planificação. Desta maneira, o espaço vivido torna-se uma categoria que acentua a

100
procura de eventos regulares, ou de uma pretensa homogeneidade de práticas ou paisagens,

mas na busca por fatores singulares que dêem sentidos a cada realidade vivida, que

interpretem o lugar.

A chave fundamental desta interpretação é o comportamento e a


linguagem, que juntos estruturam o código de expressão deste universo
simbólico. (...) O método de interpretação, à imagem daquele da
psicanálise, consiste em resgatar o sentido a partir daquilo que circula
entre a esfera da ação e a da representação, projetado sobre o espaço
(GOMES, 1996, p. 322 e 323).

Neste sentido, uma correta leitura dos códigos, dos símbolos, dos significados, das

representações, é fundamental para a compreensão do lugar, que é único, constituído por

fatores identitários singulares. Desse modo, para a geografia humanista, o lugar, que evoca

apenas uma parte do espaço, em que se relaciona um número restrito de pessoas, promove

as relações basilares da dinâmica espacial. Com isso, fica cada vez mais distante a

formulação da idéia de lugar somente enquanto um ponto de localização dos fenômenos.

Assim, através da consciência, advinda de uma ligação sentimental duradoura

com uma determinada porção do espaço, as pessoas tomam as identidades de seus lugares

como suas, ou seja, particularidades impregnadas em um local que passam a fazer parte dos

indivíduos. “…people are their place and a place its people, and however readily these may

be separated in conceptual terms, in experience they are not easily differentiated” (RELPH,

1976, pg.34).

O autor ilustra sua concepção através da história de uma agricultora vietnamita

que vivia no meio do que se tinha tornado um campo de batalha; perguntada sobre o motivo

de sua permanência em tal área de insegurança respondeu que aquela era a terra de seus

ancestrais, e que, portanto, ela não poderia sair (RELPH, 1976). A identidade do lugar não

constituição atual dos lugares, dedicando uma atenção especial às redes de valores e de significações
materiais e afetivas” (GOMES 1996, p.317).

101
seria simplesmente uma abstração, mas interpretações intencionais que levam a

determinadas atitudes que demonstram o grau de pertencimento e de ligação histórica e

sentimental com um lugar. Na verdade, cada pessoa tem suas próprias lembranças e

histórias, é essa individualidade que faz com que a experiência no lugar seja única. Além

disso, uma pessoa pode atribuir mais de uma identidade a um mesmo lugar. Portanto, a

identidade de um lugar é o resultado da combinação de fatores como a aparência (a

dimensão física), as atividades observáveis e os significados e os símbolos atribuídos pelos

indivíduos.

2.2.3 Limites e extensão do lugar.

A partir do momento em que o lugar passa a ser objeto de reflexão conceitual,

parece haver um consenso de que estamos falando necessariamente de uma pequena porção

do espaço. Assim, podemos admitir que há uma tentação em definir, ou a iniciar uma

construção conceitual do lugar através de suas dimensões. Partimos então da idéia de um

espaço necessariamente “menor”, restrito a alguns indivíduos, composto por algumas

poucas paisagens. Todavia, independente da amplitude da área a que se faz referência,

“quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar” (TUAN, 1983, pg.83).

...those aspects of the lived-world that we distinguish as places are


differentiated because they involve a concentration of our intentions, our
attitudes, purposes and experience. Because of this focusing they are set
apart from the surrounding space while remaining a part of it (RELPH,
1976, pg.43).

Deste modo, para os humanistas o tamanho do lugar é subjetivo. Cada indivíduo

tem a capacidade de estruturar uma determinada porção do espaço, com seus referenciais,

102
sua vivência, e torná-lo parte integrante de sua experiência. O desconhecido é um desafio,

mover-se em um espaço em que não reconhecemos as formas, em que podemos até

compreender o sentido de sua arrumação, mas no qual não conseguimos imprimir as

referências que nos permitam identifica-lo, causa em geral uma sensação de desconforto.

Quando se constrói conhecimento sobre grandes áreas, estas podem deixar de ser

um espaço indiferenciado, para ser um lugar. Através da experiência47 no espaço, do

reconhecimento de referenciais de localização, e da própria vivência com outras pessoas,

constrói-se um espaço familiar quanto à locomoção, e também em termos de lembranças e

significados, independente da amplidão da área. Um bom exemplo deste descolamento

entre o lugar e o seu tamanho (pequeno) são os relatos de ilhéus do Pacífico, que exploram

e vivenciam ambientes distantes de seus locais de origem.

As visitas a ilhas distantes ampliam a base do suprimento de comida, mas


também permitem às pessoas estreitar velhas relações., estabelecer novas
e trocar idéias. Uma pequena comunidade do tamanho de Puluwat não
poderia ter alcançado seu atual nível de cultura se não se apoiasse em um
mundo muito maior (TUAN, 1983 pg.91).

No entanto, a ampliação de nossa mobilidade não precisa depender da experiência

pessoal. Através da técnica podemos nos localizar em um espaço desconhecido, utilizando

aparelhos que nos permitirão cruzar grandes distâncias sem maiores problemas. Todavia, o

fato de estarmos referenciados em termos locacionais, não nos permite dizer que

construímos os caminhos que nos levam ao lugar. O espaço nos é familiar do modo mais

distante possível, pois através da máquina procuramos evitar ao máximo a vivência do

espaço, a qual constitui um elemento fundamental para produção de referências simbólicas

na construção do lugar. É evidente que os aparelhos podem ajudar na localização e nos

47
“Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele(...) A experiência é constituída de
sentimento e pensamento” (TUAN, 1983, pgs.10 e 11).

103
privar mais rapidamente do desconforto e da ansiedade que a sensação de “estar perdido”

pode nos trazer. Mas, a partir do momento em que os instrumentos de localização passam a

substituir, ou mesmo a achatar a importância e os significados construídos através da

experiência pessoal, eles nos afastam do lugar à medida que nos aproximam do local.

Aliás, a questão da mobilidade do mundo atual, típica de um espaço produzido por

efeitos da “globalização”, da “modernidade” ou mesmo da “pós-modernidade”, é um ponto

importante e trágico para a geografia humanista. A proliferação de espaços pasteurizados,

assentados sobre “valores artificiais”, como o consumo, e a própria constância e rapidez

com que as pessoas se deslocam, promoveriam uma drástica diminuição na intensidade de

uma relação “autêntica” com o lugar. Neste sentido, a contemporaneidade nos apresentaria

um planeta no qual o enraizamento é cada vez menor, e que, por conseguinte ameaça a

produção do lugar humanista. Por ironia, quando estamos viajando, por exemplo, a

agradável sensação de familiaridade pode inesperadamente aparecer quando nos deparamos

com um desses espaços pasteurizados, que são adjetivados desta forma justamente por se

apresentarem de modo semelhante em uma série de pontos diferentes do “mundo

globalizado”. No entanto, para geógrafos humanistas como Relph, esta familiaridade é

“inautêntica”, artificial, não serve como base para a construção do lugar, pois foi

estimulada por valores e identidades “superficiais”. Na verdade, esta “inautenticidade”

promoveria a construção de não lugares, monumentos artificiais cada vez mais comuns.

Assim, o lugar é um centro de significados e valores (“autênticos”) atribuídos a

uma dada porção do espaço, um conceito que não tem como parte de sua construção uma

métrica que nos ajude a desvenda-lo. Sobre uma possível determinação de uma escala para

o lugar, Relph lembra que os lugares:

104
They can be at almost any scale, depending on the manner in which our
intentions are directed and focused, as a nationalist my place is the nation,
but in other situations my place is the province or region in which i live,
or the city or the street or the house that is my home (RELPH, 1976,
pg.43).

É evidente a importância da localização, das atividades que os indivíduos

desempenham no local, da relação dialética entre a forma e o conteúdo do espaço, mas a

essência do lugar está mais diretamente ligada a uma associação profunda da consciência

do indivíduo com o local em que nasceu, ou com o local em que vive, em que possui uma

história. Esta associação é fruto das experiências vividas pelo indivíduo em um

determinado espaço, que lhe permite atribuir valores e significados a este local,

transformando-o assim, em lugar. Segundo Relph, este processo faz parte da base de nossa

vivência e orientação no mundo em que vivemos. “This association seems to constitute a

vital source of both individual and cultural identitiy and security, a point of departure form

which we orient ourselves in the world” (RELPH, 1976, pg.43).

2.2.4 A produção do lugar humanista

A idéia da essência do lugar a que nos referimos anteriormente como sendo

produto de uma profunda associação entre o indivíduo, ou até mesmo, entre um grupo de

indivíduos e uma determinada porção do espaço, constitui um ponto fundamental no

entendimento da perspectiva humanista quanto ao conceito de lugar. Neste sentido,

acreditamos que o assunto mereça uma análise um pouco mais detalhada.

Entre os geógrafos humanistas, notadamente Edward Relph, a idéia de identidade

parece ter sido aquela que melhor conseguiu expressar a noção de essência do lugar. Sob

esta idéia o autor se refere à profunda associação que mencionamos anteriormente, à qual

105
carrega consigo um grau acentuado de identificação do indivíduo com determinado local, a

ponto de como já dissemos, o indivíduo ser confundido com o “seu” lugar e vice-versa.

Com isso, podemos dizer que é através da sua identidade, e da identidade que os indivíduos

lhe atribuem, que o lugar é definido na perspectiva da geografia humanista.

2.2.5 Identidade e lugar

Individualmente pode-se estabelecer uma identidade própria com um lugar. É a

combinação das diversas identidades pessoais atribuídas a uma determinada porção do

espaço, que gera a identidade desse lugar, ou a identidade que a coletividade estabelece

com este lugar. A confecção desta identidade do lugar, ou com o lugar, seja de modo

coletivo ou individual pode ser um processo consciente, em que determinadas intenções e

preferências apontam para um ou outro formato da identidade, ou pode ser um processo

mais espontâneo, inconsciente, em que não há uma reflexão prévia, ou intenções

claramente estabelecidas quanto ao formato da identidade que se está formulando.

A questão da identidade possui uma importância fundamental no que diz respeito

à produção do lugar. Isto pode ser observado à medida que nos damos conta de como se

configura o processo de diferenciação do lugar, o qual é parte importante da construção da

identidade do lugar. A própria idéia de que para identificarmos determinada porção do

espaço, tivemos que previamente distinguir características que estão presentes em um lugar

e que não se encontram em outros, estabelece uma fronteira entre aquilo que está fora e

aquilo que está no interior do lugar. Ou seja, a identificação de uma combinação própria de

fatores estabelece uma das fronteiras do lugar.

106
Há diferentes graus de identificação com o lugar, os quais são definidos por

fronteiras, sejam elas físicas ou culturais. Há também, estágios de afastamento afetivo com

o lugar. Edward Relph promoveu uma classificação desses graus de envolvimento ou

afastamento, que nos permite compreender essas diferentes formas de se relacionar com os

lugares, as quais são elementos fundamentais para o próprio entendimento da produção dos

lugares e dos não-lugares. Para efeito de organização deste trabalho, abordaremos neste

tópico os diferentes graus de envolvimento com o lugar, deixando os de afastamento para

a etapa em que estaremos discutindo o não-lugar.

O que Relph chamou de “Vicarious insideness”, fala de locais que apesar de não

termos estado presentes de fato, mantemos algum tipo de envolvimento (muitas vezes

profundo). Esse tipo de relação com determinado lugar ocorre de modo ilustrativo quando

nos envolvemos com determinada narrativa que parece ter o poder de não só nos

“transportar” para o local descrito, como nos conduz a um considerável grau de percepção

das identidades e dos sentidos desse lugar. Todavia não se pode deixar de lembrar que o

fato de não haver a presença física carrega em si uma série de implicações que talvez nos

permitam questionar até que ponto essa relação é comprometida por uma idealização do

lugar, ou por relatos “filtrados”. Não nos propomos neste trabalho a avançar nesta questão,

mas acreditamos que estas perguntas podem ser objetos de análise no que concerne ao

entendimento desta classificação estabelecida por Relph, no sentido de que estamos falando

de uma construção do lugar, como o próprio Relph definiu, de “segunda mão”.

Já o caso do “Behavioural insideness” trata de um envolvimento com o lugar em

que há uma atenção especial com a morfologia da paisagem, com o ambiente, o qual torna-

se parte fundamental da identidade do lugar. O ambiente não é somente um pano de fundo,

mas um protagonista da experiência e da construção do lugar. A principal contribuição

107
deste tipo de relação é exatamente chamar a atenção para a importância dos aspectos

visuais na definição da identidade do lugar. O próprio Relph admite que é uma tarefa árdua

diferenciar o Behavioural insideness do que seria o Empathetic insideness. Basicamente,

neste último, há uma menor preocupação com os aspectos visuais, em direção a uma

atenção especial com o envolvimento emocional com o lugar. Deve-se estar preparado para

compreender e apreciar os símbolos e significados do lugar.

O grau mais avançado de pertencimento ao lugar se assenta naquilo que Relph

chamou de Existential insideness. Há um profundo envolvimento com o lugar, mediado por

valores e significados que nos fazem sentir totalmente pertencentes à nossa casa, ou à nossa

cidade ou à nossa região. Neste caso, a identificação do indivíduo com o local é total,

havendo laços de diversos tipos, históricos, familiares, culturais, religiosos, que

transformam uma determinada área em lugar.

De forma geral, pode-se entender a formação da identidade do lugar como o

resultado do saldo entre expectativas prévias e experiências vividas no lugar. Todavia, em

direção a uma maior precisão na análise, os “fatores” aos quais já fizemos referência

anteriormente, e que combinados promovem a identidade do lugar, podem ser identificados,

segundo Relph (1976), através de pelo menos três dimensões: A dimensão física, as

atividades que ocorrem no lugar e por fim os significados e símbolos produzidos pela

história dos acontecimentos e das antigas ligações afetivas dos indivíduos com determinado

local (e também por acontecimentos do presente).

Thus identity is founded both in the individual person or object and in the
culture to which they belong. It is not static and unchangeable, but varies
as circumstances and attitudes change; and it is not uniform and
undifferentiated, but has several components and forms (RELPH, 1976,
pg.45).

108
Além desses fatores que atuam dialeticamente na produção da identidade do lugar,

há um outro componente fundamental neste processo. Aquilo que os humanistas se referem

como o sentido do lugar, ou o “espírito do lugar”, também desempenha um papel vital na

composição da identidade do lugar. Diante da especificidade desta categoria, o sentido do

lugar será contemplado no item seguinte. “Different places on the face of the earth have

different vital influence, different vibration, different chemical exhalation, different polarity

with different stars: call it what you like. But the spirit of place is a great reality” (D.H.

LAWRENCE, 1964, pg.6, in RELPH, 1976, pg 49).

2.2.6 O Sentido do lugar

Um outro fator fundamental para a composição da identidade do lugar é o que se

poderia chamar de sentido do lugar. Talvez seja a categoria mais difícil para ser explicada

em termos formais, mas constitui-se em um fator fundamental da experiência do indivíduo

no lugar. O sentido do lugar envolve os outros três componentes da identidade do lugar,

mas trata mais detidamente do “espírito” do lugar, de suas características mais psicológicas

e abstratas, que apesar do tempo, das modificações no modo de arrumar os objetos e as

pessoas no espaço, podem permanecer inalteradas. Assim, pode-se entender o sentido do

lugar como sua personalidade, como o fator que é a base da individualidade e do caráter

único da experiência no lugar. “Este sentido do lugar se dá pela apreciação visual ou

estética, e também pela audição, olfato, paladar e tato, que exigem um contato próximo e

uma longa associação com o ambiente” (HOLZER, 1992, pg.225).

Para Edward Relph, pode-se definir o sentido do lugar, ainda que de modo bem

geral e superficial, como referente à “...habilidade de reconhecer diferentes lugares e

109
diferentes identidades de um lugar”48 (RELPH 1976, pg.63). Trata-se, portanto, de uma

idéia que varia de acordo com determinadas características dos lugares. Evidentemente,

além da influência que a dimensão física exerce, a atuação do indivíduo, especialmente no

que se refere à sua capacidade e disposição em perceber e sentir o “espírito” do lugar é

fundamental para a produção do sentido do lugar. Este, “atribui personalidade ao espaço,

conseqüentemente transformando o espaço em lugar” (TUAN, 1983, pg.103).

Entretanto, a produção de um sentido do lugar não ocorre da mesma maneira, e

nem produz o mesmo resultado. De acordo com a teoria formulada por Relph em Place and

Placeslessness, o sentido do lugar pode ser considerado autêntico ou inautêntico. Assim,

conseqüentemente, teremos a produção de lugares autênticos e inautênticos. Mais uma vez,

Relph49 se baseou na fenomenologia para trazer para a geografia as noções de

“autenticidade” e “inautenticidade”, ainda que se utilize também, de um suporte

existencialista para explicar essas noções. A base dessas noções, que serão aplicadas por

Relph na diferenciação dos lugares, aparece claramente nas idéias de Martin Heidegger, nas

quais também já se pode perceber um certo temor em relação à deturpação do homem

através dos novos caminhos que a evolução tecnológica e a vida moderna proporcionavam.

A grande argumentação de Heidegger sobre a necessidade de se proceder ao que

chamou de “analítica existencial”, girava em torno do fato de que a questão do ser, que fora

estudada a fundo pelos pré-socráticos, teria sido deixada para trás e levado “a humanidade a

perder sua experiência primitiva de si mesma” (STRATHERN, 2002, pg. 27). A partir daí,

surge um mundo dominado pela ciência, em que a discussão fundamental sobre o ser é

esvaziada em função da lógica preponderante da tecnologia. Este mundo afastado do ser é

48
“...ability to recognize different places and different identities of a place”.
49
“Relph foi um pioneiro em propor a incorporação da fenomenologia pela geografia como alternativa aos
métodos quantitativos...” (HOLZER, 2005, pg.6).

110
artificial, o homem se confunde com a máquina, bestializado através da repetição imposta

pelo “avanço” da técnica. A relação entre o homem transformado em operário com o

homem transformado em chefe perde completamente seu sentido humano, e se torna

moldada por um conjunto de critérios e situações objetivas e racionais, que de forma

alguma levam em consideração a condição do ser. Esta seria uma das duas dimensões

possíveis para aquilo que Heidegger reconhece como um homem inautêntico, ou seja, o

indivíduo que perde não só o domínio de sua consciência, como também as raízes de sua

condição de existência. Para Heidegger “o homem autêntico é aquele que reconhece a

radical dualidade entre o humano e o não-humano. Desconhece-la é mergulhar na

inautenticidade, é sofrer uma queda” (PENHA, 1982, pg.32).

A segunda dimensão da inautenticidade estaria relacionada ao momento em que

os atos, que produzem a existência do ser, tornam-se influenciados e até dominados por

modismos, estereótipos e convenções. Assim, o indivíduo se perde numa avalanche de

imposições não questionadas, e mergulha na impessoalidade e na passividade. Estas, por

sua vez, levam o “sujeito” a não mais articular, ou mesmo enxergar seus princípios, sua

consciência, manipulada pelas superficialidades do mundo científico-tecnológico. Se

admitirmos que a intencionalidade é o componente básico da consciência, e que a

consciência atribui significado ao mundo, pode-se dizer que a inautenticidade é um estado

de perda da consciência, já que a intencionalidade se perde como condição do indivíduo a

partir do momento em que é manipulada por outrem.

Essa preocupação de Heidegger com a questão da autenticidade pode ser

observada em exemplos simplórios, mas alusivos, como o fato de que o filósofo ministrava

suas aulas vestido com um traje típico alemão, um modo de demonstrar enfaticamente sua

obsessão pelas autênticas raízes germânicas. As férias, geralmente desfrutadas em uma

111
propriedade no interior da Floresta Negra, marcavam uma época em que Heidegger podia

se recolher à reflexão em um lugar dotado de um espírito autêntico, representante de uma

porção do planeta ainda (ou supostamente) inalcançada pelos estereótipos da vida moderna.

“Sua (do homem) individualidade estava sendo perdida – a tal ponto que estava se

tornando, num sentido muito real, um não-ser, um ninguém” (STRATHERN, 2002, pg. 48).

Da mesma forma, a autenticidade é tomada por Relph como uma experiência

moral, como um modo de ser, fatores a partir dos quais constrói-se o sentido autêntico do

lugar. Quando isto ocorre, temos então concluída uma profunda associação com o lugar, um

forte sentimento de pertencimento, que faz com que o indivíduo não consiga se dissociar do

lugar. Um sentido autêntico de lugar advém de uma experiência que proporcione um

contato direto com valores e significados que expressem efetivamente uma história de

convivência, de momentos vividos que ficam marcados com sendo características inerentes

a uma sala, a uma casa, a um bairro, a uma cidade, e que passam a construir a personalidade

desses lugares. Quando visitamos, por exemplo, um antigo campo de concentração da

Segunda Guerra Mundial, ou um monumento que nos remeta a algum passado

perfeitamente conhecido, concluímos que não precisamos exatamente ter tido experiências

pretéritas em determinado lugar, para que consigamos enxergar e sentir claramente seu

espírito. Neste caso, o sentido de lugar foi construído de forma tão autêntica ao longo dos

anos, ou em alguns casos, de forma tão genuinamente trágica, que mesmo para o indivíduo

que de algum modo não fez parte dessa “construção”, apenas o conhecimento basta para

poder reconhecer o espírito do lugar. “Não é interessante como este castelo muda tão logo a

gente imagina que Hamlet viveu aqui?(...) ...um canto escuro nos lembra a escuridão da

alma humana, e escutamos Hamlet: “Ser ou não ser” (TUAN, 1983. pg.4).

112
Apesar de ter grande capacidade de resistir ao tempo e a modificações de variadas

espécies, o sentido do lugar pode sofrer uma brusca alteração para determinado indivíduo,

ou grupo social. Em muitos casos, estabelecer uma profunda ligação sentimental com

determinado lugar, relaciona-se de modo vital à presença de determinados fatores, que

quando não estão mais presentes, podem alterar dramaticamente a personalidade do lugar

na perspectiva do indivíduo. “Na ausência da pessoa certa, as coisas e os lugares

rapidamente perdem significado, de maneira que sua permanência é uma irritação mais do

que um conforto” (TUAN, 1983, pg.155).

Na verdade, nos parece que neste caso o lugar perde o significado que possuía

anteriormente, já que um fator fundamental da formação de seu sentido já não se faz mais

presente. No entanto, o lugar ganha novo significado, há uma reformulação quanto a seu

sentido, mesmo que isto aponte para uma relação de repulsa entre o indivíduo e o “novo”

lugar. A partir deste exemplo, percebe-se como a partir da perspectiva humanista, o lugar

torna-se totalmente indissociável de sua “personalidade”, de seu sentido.

A experiência do lar nos permite, como poucas, compreender de forma clara a

questão da autenticidade na vivência do lugar. Evidentemente, há uma forte ligação entre o

indivíduo e o espaço em que define sua morada, e até, mais especificamente, com

determinados locais dentro de sua casa. As singularidades e características principais dos

moradores aparecem, em geral, estampadas nos objetos, na aparência da casa, no cheiro e

na arrumação do espaço. Assim, a profunda ligação afetiva dos moradores com a casa, um

reflexo óbvio, mas fundamental, da história de vida que este lugar guarda, constroem o

“espírito” da casa, que se torna um espaço único, diferenciado pelos valores que lhe são

atribuídos.

113
O lar é um lugar íntimo(...)não tanto pela totalidade do prédio, que
somente pode ser visto, como pelos seus elementos e mobiliário, que
podem ser tocados e também cheirados: o sótão e a adega, a lareira e a
janela do terraço, os cantos escondidos, uma banqueta, um espelho
domado, uma concha lascada (TUAN, 1983, pg.160).

Assim, pode-se dizer que para Relph (1976), o sentido do lugar deve ser pensado

a partir da oposição entre um sentido autêntico ou inautêntico, os quais promoveriam

lugares autênticos ou inautênticos, respectivamente.

2.3 Outras abordagens do lugar na geografia

Apesar da grande expressividade que a corrente humanista obteve, com amplas

discussões sobre o lugar, este conceito também foi discutido (e vem sendo discutido

atualmente) sob outros aspectos dentro da geografia. David Harvey50, por exemplo,

apresentou severa crítica ao modo como a corrente humanista teorizou o lugar, traçando

reflexões que nos fazem enxergar um lugar menos psicológico e mais relacionado com os

acontecimentos globais. Avançando neste sentido, Doreen Massey indica o caminho de

uma perspectiva mais integradora do lugar, reconhecendo seus sentidos e significados, mas

direcionando essas particularidades do lugar a um sentido global. Nicholas Entrikin, Tim

Cresswell, Andrew Merriefield e Tim Oakes, podem ser citados como geógrafos que

desenvolveram uma abordagem do lugar que fosse mais objetiva do que a proposta

humanista, mas sem esquecer a importância da subjetividade na construção do lugar. John

50
Harvey questiona, por exemplo, a validade para a compreensão do mundo atual, das noções de
enraizamento, ou mesmo de uma relação autêntica com determinados lugares (HARVEY 1996 in FERREIRA
2000).

114
Agnew ratifica a importância de que os diferentes aspectos do lugar sejam tratados de modo

complementar nas reflexões, e não como incompatíveis.

...by involving the notion of an ‘in between’ it seeks to understand how


two polar opposites can be brought together rather than to comprehend
how the locus of place is a unity containing within itself different aspects.
The dialectical standpoint opposes the reification (MERRIFIELD, 1993,
pg. 519).

2.3.1 A crítica do lugar

Apesar da dificuldade e do perigo em enquadrar e rotular determinadas

perspectivas como parte de uma linha teórica, nos lançamos aqui ao esforço de sistematizar

algumas abordagens da geografia que tratam o lugar a partir de uma perspectiva marxista.

Na década de 1970, a mesma em que como vimos, a corrente humanista

manifestou-se com grande vigor na renovação do pensamento geográfico, ganham enorme

projeção, idéias que postulavam um maior comprometimento político do espaço. Ou seja, é

inaugurada uma corrente geográfica que privilegiaria a análise do “papel do capitalismo

como a força fundamental da organização do espaço” (GOMES, 1996, pg.286). A chamada

geografia radical nasce como um projeto de total renovação da geografia, primeiramente

através de críticas severas dirigidas não só à geografia quantitativa, como também aos

geógrafos tradicionais, e posteriormente através da incorporação51 dos conceitos advindos

do marxismo. “O espaço aparece efetivamente na análise marxista a partir da obra de Henri

Lefébvre” (CORRÊA, 1995, pg.25).

Em relação à chamada geografia teorético-quantitativa, baseada no positivismo-

lógico, a crítica girava em torno da idéia de que o total comprometimento com modelos

51
Sobre a questão da diferenciação no modo de incorporação do arcabouço teórico marxista na geografia
francesa e na geografia anglo-saxônica, ver GOMES, 1996, páginas 284 e 285.

115
matemáticos e estatísticos afastava a análise do espaço de questões fundamentais,

relacionadas à política, às desigualdades sociais, etc. Assim, para os críticos, os trabalhos

da geografia quantitativa eram omissos em expor os problemas existentes na ocupação do

espaço pela sociedade, o que, portanto, caracterizaria uma geografia que estava servindo a

interesses da burguesia hegemônica. As restrições feitas aos geógrafos tradicionais

seguiam, em um certo sentido, uma linha parecida com as que foram dirigidas aos

quantitativos. A geografia tradicional também era acusada de desviar o foco das reflexões

para longe de uma abordagem política do espaço. Diferentemente, no entanto, procedia

assim através de suas monografias regionais, que atribuíam à geografia a condição de

“ciência de síntese”, que seria capaz de desvendar diversos aspectos da relação do homem

com a natureza. No entanto, para os “críticos”, os geógrafos tradicionais aplicavam critérios

vagos, que não ultrapassavam um empirismo, que reduzia os estudos em geografia a uma

coletânea de dados sobre a natureza de uma dada região.

Com isso, muitas críticas caminharam no sentido de considerar...

...a ciência em sua forma dominante como um instrumento de alienação


social, e os métodos positivistas como procedimentos eficazes para
reproduzir os modelos de desigualdade social e espacial. Esta crítica é
uma das mais difundidas nos textos dos geógrafos radicais... (GOMES,
1996, pg.278).

Assim, os geógrafos radicais acreditavam que poderiam inaugurar uma nova

abordagem da organização espacial, à qual seria imprescindível um método objetivo,

baseado no materialismo-histórico e dialético, que pudesse explicar de modo “científico” as

contradições existentes e inerentes à produção do espaço social. Ao mesmo tempo em que

estabeleciam uma perspectiva de análise que se pretendia mais precisa do que aquelas dos

corologistas, a explicação e a objetividade da geografia radical não se reduziam a modelos

116
matemáticos ou sistemas explicativos, os quais ganharam enorme importância na corrente

quantitativa.

...a objetividade possui uma natureza diferente daquela estabelecida pela


ciência positivista, e só através dela se poderá, por assim dizer, revelar a
estrutura da realidade última(...)... tal corrente acredita estar fundada sobre
o conhecimento da essência dos fatos, e não das suas aparências
(GOMES, 1996, pg.279 & 280).

Mais detidamente no que concerne ao conceito de lugar, os geógrafos marxistas

teceram críticas ferozes às abordagens da corrente humanista, baseadas na fenomenologia e

no existencialismo. A visão do lugar como um centro de relações afetivas, repleto de

significados e valores psicológicos, com um forte comprometimento com o passado, será

apontada pelos “radicais” como mais uma forma de descolar a análise da dinâmica espacial,

de questões “mais importantes”, relacionadas aos conflitos sociais e à importância do

capitalismo na produção do espaço. David Harvey foi um dos mais severos críticos das

proposições trazidas pelos humanistas quanto ao lugar. Harvey contestava totalmente a

aplicação de noções como enraizamento e autenticidade como critérios válidos para a

compreensão do lugar na geografia. “David Harvey argued that the idea of significance to

man was “empty of any meaning…” (ENTRIKIN, 1991, pg.89). Na verdade, Harvey

acredita que a idéia de um lugar pretensamente homogêneo, em que os indivíduos

reconhecem um “sentido do lugar”, em que o lugar tem um espírito e uma personalidade, os

quais devem ser preservados das possíveis influências exteriores, é oportuna para a

manutenção de privilégios de uma classe social sobre determinada área. Assim, Harvey

entende os discursos que “defendem” este lugar “fechado”, como legitimadores da

formação de “guetos” de luxo. De outra forma, o lugar é visto por Harvey como em

contínua modificação, sendo constantemente reformulado nos diferentes momentos em que

os fluxos de capital se infiltram e renovam o lugar.

117
Há momentos, cada vez mais freqüentes, em que a lógica através da qual o lugar é

organizado já não satisfaz os interesses do capital. A partir daí, faz-se necessária à

aplicação de um novo conjunto de diretrizes para a arrumação das pessoas e dos objetos no

lugar. Alguns locais desaparecem, enquanto outros são criados, os que permanecem têm

seu conteúdo e/ou sua forma modificados, tudo para que a relação dos fluxos (econômicos,

de pessoas, etc.) com o lugar se estabeleça de modo cada vez mais coordenado. É evidente

que as técnicas desempenham um importante papel nesta renovação dos lugares, ou seja, os

mais recentes aparatos da telecomunicação e dos transportes são dispostos de modo

estratégico no lugar. Uma das principais conseqüências dessa progressiva “tecnificação” do

lugar é o fato de presenciarmos hoje, uma verdadeira guerra entre os mais diversos lugares,

que investem cada vez mais alto para se apresentarem como adequados às “novas”

exigências das grandes empresas, o que significa lutar por uma participação cada vez maior

no desenvolvimento econômico mundial. Neste sentido, Harvey, por exemplo, acredita que

essa competição entre os lugares pelo recebimento de fluxos econômicos, é um dos motivos

que fazem com que em vez de perderem sua importância no mundo contemporâneo, os

lugares tenham ampliado sua visibilidade e participação no contexto de avanço da

globalização. “...the qualitative aspects of place – the quality of life – have increased in

importance when a multinational company (for instance) chooses a location”

(CRESSWELL, 2004, pg.59).

Milton Santos lembra que o lugar não nos dá somente a oportunidade de conhecer

o mundo como ele é, através das reminiscências ou das “rugosidades”, como prefere o

autor, que nos falam do passado, mas, principalmente, o lugar nos possibilita vislumbrar o

futuro. Dessa maneira, através da imprevisibilidade do evento, abre-se a chance...

118
...de construir uma história das ações que seja diferente do projeto dos
atores hegemônicos. É esse o grande papel do lugar na produção da
história, e aponta-lo é a grande tarefa dos geógrafos neste fim de século
(SANTOS, 2002a, pg.163).

Ainda sim, talvez a maior expressão da contundência dos apontamentos da

chamada geografia radical tenha sido Yves Lacoste. Este autor pretendia alçar a geografia a

uma posição epistemológica que pudesse superar as limitações das teorias e métodos

desenvolvidos pelos geógrafos tradicionais (“a geografia dos professores”). Criticava

também a utilização da geografia como fonte teórica para os empreendimentos da burguesia

e do Estado. Em uma de suas principais argumentações, Lacoste utiliza a idéia de lugar

para analisar a submissão popular ao Estado e às “forças hegemônicas”, diante do poder de

organizar o espaço. O autor nos lembra que o Estado e as grandes empresas possuem “uma

visão integrada e articulada do espaço”52, já que possui informações sobre os diversos

lugares, o que não ocorre com a população, que vive uma idéia de um espaço restrito sob à

vista de um bairro, uma cidade, “pois só concebe os lugares abarcados por sua vivência

cotidiana”53. Assim, Lacoste defende que este conhecimento sobre a lógica que rege a

organização do espaço deve ser compartilhado com a massa da população, o que poderia

tornar-se um valioso instrumento de combate aos chamados agentes hegemônicos. Nos

parece, que para Lacoste o lugar relaciona-se com uma localização que possui dinâmicas

(sociais e econômicas) próprias, e que está indissociavelmente e mutuamente dialogando

com a totalidade.

Para a geografia crítica, a especificidade do lugar advém do papel que este

representa na dinâmica capitalista. Na definição do conceito, não é necessário que o lugar

desfrute de uma longevidade para que seja relevante, mas que desempenhe uma função

52
(LACOSTE, In: MORAES, 2005, pg.122).
53
Id.

119
importante que o diferencie dos demais. Com isso, um lugar se destaca, e, por conseguinte,

torna-se singular, a partir de sua maior ou menor capacidade técnica e de comunicação, por

exemplo. À medida que o lugar apresenta uma estrutura funcional adequada, tem-se a

impressão de que o mundo necessariamente passa pelo lugar, de que os fluxos globais não

só atravessam-no, como estabelecem uma relação dialética com o lugar. Neste sentido, é

exatamente essa relação dos fluxos globais com as condições locais, que produzem o lugar

na geografia crítica. Assim, o lugar é definido a partir das relações que mantém com a

totalidade, a qual seria manobrada pelo movimento histórico do capitalismo. Desse modo, a

especificidade do lugar mantém, então, uma ligação indissociável com o tempo histórico,

na medida em que o significado do lugar se modifica à medida que o capitalismo se

transforma.

O lugar, aliás, define-se como funcionalização do mundo e é por ele (lugar) que o
mundo é percebido empiricamente (...) Assim, cada lugar se define tanto por sua
existência corpórea, quanto por sua existência relacional (SANTOS, 2002a,
pg.158 & 159).

Assim, Milton Santos54 acredita que o lugar é o espaço banal, espaço da

concretude, em que as relações sociais se materializam. O lugar é, principalmente, “o

depositário final, obrigatório, do evento” (SANTOS, 2002, p.144). O evento é trabalhado

pelo autor como uma categoria de análise, portador de uma ação do presente, possuindo

conteúdo e significação. O evento pode ser o vetor das possibilidades existentes num lugar,

o qual é constituído por uma combinação quantitativa e qualitativa específica de vetores

(SANTOS, 2002).

54
“O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas
de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da
ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade” (SANTOS, 2002,
pg.322).

120
Vemos aí, que o lugar é tomado como a área de ocorrência dessa ação do

presente55, em que os sujeitos produzem transformações, modificando dramaticamente os

conteúdos e os significados pré-existentes. Há uma superposição de tempos e escalas, uma

simultaneidade de acontecimentos em que as relações de espaço e tempo se fundem.

É através do evento que podemos rever a constituição atual de cada lugar


e a evolução conjunta dos diversos lugares, um resultado da mudança
paralela da sociedade e do espaço (...) Por isso a cidade grande é um
enorme espaço banal, o mais significativo dos lugares (SANTOS, 2002,
pg.155 e pg.322).

Ana Fani Carlos identifica essa mudança sócio-espacial indicada por Milton

Santos como o processo de globalização, que avança em ritmo mais acelerado nas últimas

décadas, e nos impõe a necessidade de redefinir o lugar. A autora acrescenta ao debate, que

cada lugar tem uma história particular, que se realiza em função de cultura, hábitos, que lhe

são próprios, somados ao que vem se impondo de fora, “como conseqüência do processo de

constituição do mundial” (CARLOS, 1996, p.20).

Desse modo, o lugar deve ser compreendido principalmente como uma

configuração de processos heterogêneos específicos, contidos no processo global. Assim,

seria impensável discutir o conceito de lugar e suas implicações na dinâmica espacial de um

equipamento urbano, se perdêssemos a noção do todo, já que “o lugar representa e fixa

relações e práticas sociais produzindo uma identidade complexa que diz respeito ao mesmo

tempo ao local e ao global” (CARLOS, 1996, p.68). A constituição do lugar, então, ocorre

a partir de usos que os sujeitos fazem daquela porção do espaço, que por sua vez expressam

um conjunto de formas de apropriação deste espaço.

55
O fato de não haver um evento sem um sujeito faz com que Milton Santos afirme que, de fato toda teoria da
ação é também uma teoria do evento.

121
Avançando na reflexão sobre o lugar, Doreen Massey56 faz uma crítica clara à

concepção da geografia humanista à cerca do lugar, a qual seria extremamente idealizadora.

A crítica é feita com base na contraposição à idéia de que houve um tempo em que

comunidades ou indivíduos coerentes mantinham uma relação de afetividade total com o

lugar, produzindo uma identidade genuína, possível de ser totalmente distinguida de

qualquer outra. Assim, Massey acredita que nunca houve uma relação em tal grau de

estabilidade, entre comunidades supostamente homogêneas e seus lugares genuínos e

“puros”. Ademais, percebe-se uma incompatibilidade entre esta concepção de um lugar

“fechado”, voltado para um passado de histórias, símbolos e evocações de acontecimentos

particulares, e a realidade atual, caracterizada por fragmentações e rupturas. Na verdade,

esta concepção reaparece como uma possibilidade de refúgio das incertezas, da insegurança

e das constantes modificações que se apresentam no mundo globalizado. O lugar aparece,

então, como uma válvula de escape, como uma chance de parada e de reencontro com uma

identidade mais estável que nos promoveria (ou simplesmente nos passaria a idéia de)

maior segurança. Com isso, a concepção de um lugar fechado em seu próprio sentido

particular e em suas fronteiras nada porosas, como uma instância separada do restante da

realidade, nos passa a sensação de imobilidade em relação a uma porção do espaço que

permanece parada no tempo, imune às constantes modificações que o homem promove na

organização espacial.

Neste sentido, se estabelece a necessidade de repensarmos o lugar e adequarmos

as reflexões à cerca do conceito ao momento em que estamos vivendo. É assim que

podemos chegar à formulação de um lugar que não tenha um sentido pretensamente

56
Em MASSEY (2002) a autora não atribui em nenhum momento, diretamente, ou nominalmente, as
referidas críticas à corrente conhecida como geografia humanista.

122
compartilhado por todos, mas que se reconheça que cada indivíduo possui suas impressões,

histórias e experiências concernentes a um lugar. Da mesma forma, se tentarmos ampliar

nossa escala de análise quanto ao lugar, podemos perceber que esses sentidos e significados

não são unicamente produtos de uma história “fechada”, construída no interior do lugar,

mas que são conseqüência também, de diversas influências que brotam, cada vez mais, das

mais variadas áreas do planeta, e que são determinantes para se compreender o lugar.

Então, longe de haver uma identidade coesa, estável e que tenha suas origens circunscritas a

fronteiras pré-estabelecidas, o lugar pode ser entendido a partir de um sentido global, que

não despreza as especificidades, mas que “mistura” a história do lugar às relações que este

mantém com o resto do planeta (MASSEY, 2002). É justamente o modo particular como

essa “mistura” ocorre, que promove a singularidade do lugar.

2.3.2 Em busca de uma visão “integrada” do lugar

As novas tecnologias das comunicações e dos transportes alteraram

definitivamente o nosso sentido de lugar. Associado a isso, está a polaridade fundamental

da consciência humana, entre os pontos de vista da subjetividade e da objetividade

(ENTRIKIN, 1991). A partir da objetividade, o lugar é tratado como parte de um todo,

estando inserido em determinado período histórico. Portanto, a partir desta perspectiva,

pode-se esperar que o lugar sofra freqüentes mutações, já que seu sentido está

indissociavelmente relacionado com a sucessão do tempo histórico. Por outro lado, a

subjetividade reflete sobre um lugar que está além do tempo histórico, e que se encontra

descolado do restante entorno. Neste sentido, Entrikin lembra que refletir sobre o lugar

através de apenas uma dessas visões, não nos levará a uma compreensão mais clara do

123
conceito de lugar, e nem de sua importância para o entendimento do mundo atual. Desta

forma, o autor sugere uma apreensão do lugar que combine as duas perspectivas, como um

caminho mais promissor para um entendimento menos subjetivo ou objetivo do lugar. “To

understand place requires that we have access to both, an objective and a subjective

reality(…)Place is best viewed from points in between” (ENTRIKIN, 1991, pg.5).

Assim, Entrikin busca uma abordagem que seja capaz de teorizar sobre um lugar

que carregue consigo duas dimensões indissociáveis. É justamente da tensão entre a

subjetividade e a objetividade, que nasce o lugar composto pela dimensão material, aquela

que nos fala da localização dos objetos, de sua distribuição objetiva no espaço e da relação

do lugar com a totalidade; e pela dimensão abstrata, aquela que trata dos símbolos e dos

significados que são atribuídos pelos indivíduos ao lugar, e que dão sentido à própria

arrumação dos objetos e das pessoas nesta porção do espaço geográfico. Privilegiar apenas

uma dessas dimensões nos conduzirá, ou a uma perspectiva em que a importância do lugar

como componente fundamental da identidade do indivíduo seja por demais diminuída, ou,

por outro lado, a tratarmos o lugar como um fenômeno apenas abstrato, desprovido de

materialidade.

We live our lives in place and have a sense of being part of place, but we
also view place as something separate, something external. Our
neighborhood is both an area centered57 on ourselves and our home, as
well as an area containing houses, streets and people that we may view
from a decentered58 or an outsider’s perspective. Thus place is both a
center of meaning and the external context of our actions (ENTRIKIN,
1991, pg.7).

Na verdade, Entrikin trabalha uma idéia de lugar que é tributária de uma mediação

entre as perspectivas dos neomarxistas, que estão muito atentas às relações mantidas entre a

circulação do capital, a influência das técnicas e das estruturas sócio-espaciais e o lugar, e a


57
O grifo é nosso.
58
Id.

124
perspectiva dos humanistas, com seus significados e valores atribuídos ao espaço, que então

se torna lugar. As análises que trabalham somente com os aspectos subjetivos do lugar são

classificadas pelo autor como uma perspectiva “centrada”, em oposição a uma abordagem

“descentrada”, relacionada às análises que enfocam o lugar a partir de uma perspectiva

mais objetiva.

A corologia de inspiração neo-kantiana confiava mais na intuição do pesquisador,

do que nos estudos teóricos. Com isso, a carência de uma visão que também levasse em

consideração uma dimensão mais objetiva da realidade, foi vista como um problema, tanto

pelos corologistas como por seus críticos. Posteriormente, os geógrafos humanistas

tomaram essa via de afastamento de qualquer tipo de objetividade na análise, vendo-a não

como um problema, mas como um aspecto positivo de uma verdadeira ciência humana

(ENTRIKIN, 1991). Os geógrafos humanistas restringiram ao máximo a importância da

dimensão física na construção da idéia de lugar. Assim, negando-se a qualquer tipo de

aproximação com uma perspectiva “descentrada”, criaram um lugar “fechado”, ou seja,

voltado obrigatoriamente para um passado estável, que muitas vezes pode ser reconhecido

como significativo não só pelo indivíduo, como também por uma “comunidade”. Com isso,

para que um grupo de pessoas compartilhe sentimentos e valores tão profundos, é

necessário um prévio envolvimento conjunto (de longa duração), que permita a todos,

reconhecer o “espírito” do lugar. Impõe-se, portanto, a existência de uma comunidade

“homogênea”, na medida em que devem partilhar os mesmos significados historicamente

construídos, os quais não podem ser afetados pelo mundo exterior. O lugar torna-se assim

uma redoma, que deve permanecer imunizada das “contaminações” externas, já que estas

poriam em risco a pureza e a estabilidade do envolvimento psicológico da comunidade, o

qual é capaz de promover aquilo que a perspectiva existencialista chama de

125
“intersubjetividade”. O “lugar humanista” acaba trazendo certas dificuldades para uma

análise dos movimentos do dias atuais, que em geral estão cada vez mais distantes do que

Oakes chama de “place/community-based, as in "traditional societies"” (OAKES, 1997, pg.

510).

The rekindling of interest among social scientists in the study of place has
been connected to an effort to divorce place from ideas of traditional
community (…) discourages the romanticism that has prevented a proper
understanding of the role of place in modern life (ENTRIKIN, pg.60).

Entretanto, as críticas dos geógrafos que pretendem abordar o lugar de forma mais

integradora atingem também a perspectiva crítica do lugar. Nicholas Entrikin e Nigel Thrift

fazem duras críticas à visão de David Harvey, a qual partilha da idéia de que a

especificidade dos lugares advém do fato de que o desenvolvimento não ocorre da mesma

forma e ao mesmo tempo nas diferentes áreas do planeta. Entrikin define esta abordagem

de Harvey como uma “ortodoxia marxista”, e Thrift, como uma estratégia reducionista, que

seria desafiada pelos chamados “contextualistas”, os quais vão procurar manter uma

conexão com a teoria marxista, mas atribuindo uma atenção especial e necessária à

consciência humana (ENTRIKIN, 1991). Fazendo parte dos “contextualistas”, Thrift

lembra que “there is more to subjectification than the logic of the economy – a lot more”

(THRIFT, 1987, pg.406 in ENTRIKIN, 1991, pg.50).

2.4 O não lugar

126
Apesar de receber numerosos comentários e apontamentos em trabalhos de

diversas áreas das ciências sociais, notadamente na sociologia, na antropologia e na

geografia, são poucos os trabalhos que se detém a uma análise um pouco mais

pormenorizada sobre a idéia do não lugar. Esta constatação pode dar a impressão de ser

paradoxal, já que diante de um mundo em pleno e avançado processo de globalização, a

idéia daquilo que se vem apontando como não lugar parece resolver muitos problemas e

inquietações. Da mesma forma, por ser o lugar considerado um conceito basilar na

geografia, o que se poderia esperar dos geógrafos seria um movimento rápido e

contundente no sentido de esclarecer a idéia do não lugar, estabelecendo um debate amplo

sobre seus alcances e limites. Inclusive, talvez fosse este, o momento para que a geografia

promovesse novas reflexões sobre o próprio lugar, que pudessem avançar para além das

idéias da chamada corrente humanista, que ainda domina este conceito na geografia. De

certa forma, isto parece ter acontecido, e como dissemos anteriormente, autores como

Entrikin, Cresswell, Merriefield e Oakes, representam uma tentativa de renovação da

perspectiva do lugar na geografia. Apesar disso, estas tentativas de promover uma

renovação na abordagem do lugar parecem ainda não ter sensibilizado efetivamente a

geografia brasileira. No entanto, os debates que incluem o não lugar como um desafio

conceitual e metodológico para as ciências sociais, e neste conjunto, mais especialmente

para a geografia, ainda são escassos. O único autor da geografia que promoveu uma

reflexão mais atenta sobre o não lugar, foi Edward Relph59, há exatamente trinta anos

(1976). Passados vinte anos, recentemente, em 1996, o antropólogo Marc Augé60

apresentou um trabalho voltado especificamente para o tema em questão. Ou essas duas

59
“Place and Placelessness”
60
“Não Lugares: Uma Antropologia da supermodernidade”

127
obras encerraram completamente a questão, ou constata-se um certo descompasso entre o

uso corrente (indiscriminado) da idéia do não-lugar, e a pequena discussão teórica

produzida a respeito, já que essas três obras formam a base das formulações sobre o não

lugar nas ciências sociais. Assim, distante da pretensão de querer desfazer esta impressão

de ausência quanto à discussão do não-lugar descrita na seqüência acima, objetivamos

resgatar certas idéias, e quem sabe contribuir para esclarecer algumas noções que fazem

parte deste conceito pouco discutido e ao mesmo tempo tão utilizado.

O não-lugar é caracterizado por locais que apresentam arquitetura estandardizada,

nos quais os modismos, o consumismo e o pragmatismo, valores cada vez mais difundidos

e aceitos na contemporaneidade, desvirtuam valores “genuínos” como afetividade,

memórias, vivência. Neste sentido, pode-se considerar o não-lugar como uma experiência,

que segundo alguns autores, torna-se cada vez mais comum nos dias atuais. Aquilo que

Henri Lefébvre chama de “Espaço Abstrato”, parece guardar uma grande proximidade com

a conceituação do não-lugar:

...the homogenizing efforts of the state, of political power, of the world


market, and of the commodity world – tendencies which find their
practical expression through and in abstract space (…) Abstract space
works in a highly complex way (LEFÉBVRE, 1991, pgs.64 & 56).

Pode-se considerar a idéia do não lugar como tributária das concepções que tratam

o lugar como um ponto de refúgio, de segurança, diante da avalanche de incertezas e

efemeridades características do mundo atual. O fenômeno do não lugar é a erradicação

casual de lugares significativos e a produção estandardizada de paisagens que resultam de

uma insensibilidade em relação à significância do lugar. Resulta de um enfraquecimento da

identidade dos lugares ao ponto em que fica sensível, o fato de que oferecem o mesmo

conjunto de possibilidades para a experiência (RELPH, 1980). Relph vê o espaço

128
existencial de uma cultura de aborígines, por exemplo, como um espaço sagrado, permeado

por aspectos simbólicos. Já os espaços experimentados pelas culturas mais tecnológicas e

industriais seriam funcionais, práticos, objetivos. Os “novos” espaços, produtos do

desenvolvimento urbano contemporâneo, são, portanto, apontados como uniformes e

cuidadosamente planejados. Este planejamento dos espaços, que lhes dá um aspecto de

uniformidade, é visto como um atentado aos possíveis significados e afetividades que se

pode manter com uma porção do espaço. Além disso, o próprio sentido do lugar é

desvirtuado, tornado inautêntico, permeado por modismos e valores que afastam o homem

de sua condição de organizador de um espaço que seja uma representação genuína de seus

significados e identidades, e o aprisionam na vivência cotidiana de um espaço

estereotipado, produzido em série, em que o indivíduo toma a condição de um verdadeiro

receptáculo de valores e idéias superficiais, mas muito eficientes para a manutenção e

ampliação do sistema econômico global da contemporaneidade. “And today, as the

uniqueness of places becomes more and more threatened by the homogenizing veneer of

commercialism and standardized-component architecture...” (BUTTIMER, 1980, pg.166).

A atribuição destes adjetivos aos espaços mais “modernos” traduz uma idéia de

crítica e desilusão por parte dos autores da geografia humanista. Este discurso nos traz

novamente a impressão de que o lugar como “...espaço dotado de valor” (TUAN, 1983, pg.

6) é um espaço aprisionado ao passado, impossível de ser verificado e produzido no mundo

atual, em meio às perversidades da tecnologia e da objetividade, que fazem dissipar os

lugares. As experiências singularidades e a construção de um sentido autêntico do lugar se

tornam impraticáveis em meio à parafernália tecnológica do mundo “moderno”.

129
Relph não menciona exemplos de não lugares em sua definição, ainda que em sua

obra Place and Placelessness, redija uma lista daqueles espaços que devem, segundo ele,

ser enquadrados naquele conceito. Por outro lado, Marc Augé acredita que:

os não lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada


de pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto
os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou
ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os
refugiados do planeta (AUGÉ, 1994, p.36).

2.4.1. As raízes do conceito na abordagem de Edward Relph

Na geografia, a idéia do não lugar surgiu exatamente no momento em que o lugar

tomava uma posição importante nos debates a cerca da organização do espaço do homem.

No livro Place and Placelessness de Edward Relph, demonstrava uma clara inquietação

não só com a objetividade e a sistematização dos geógrafos quantitativos, o que foi regra

entre a corrente humanista da qual faz parte, como também em relação a importantes

modificações que apareciam expressivamente no cenário urbano da época, e que na verdade

faziam parte de um processo importante61 de profundas modificações nas relações sócio-

espaciais.

A percepção do autor girava em torno do fato de que a produção do espaço não

estava mais sendo feita de modo a representar os valores históricos de determinada

comunidade ou a expressar suas raízes através da constituição do bairro, da cidade, ou

mesmo do país. Este processo torna-se cada vez mais claro, na medida em que até a própria

61
Podemos identificar este processo mais geral de modificações nas relações sócio-espacial, como um
momento de avanço daquilo que se entende por globalização.

130
casa passa a ser um produto feito em série, com o propósito objetivo de servir à moradia e

nada mais. Abandonara-se o tempo em que a construção do lar seria concebida a partir das

necessidades específicas de determinada família, sendo, portanto a representação material

do estilo e dos valores dos proprietários. “...the home, the central reference point of human

existence” (RELPH, 1976, pg.20).

Assim, o que fica claro no discurso de Relph, é a necessidade de se observar que

essas mudanças visíveis na paisagem urbana, que chegam a ponto de afetar de algum modo

o significado do espaço do lar, não são resultado de motivações geradas pela própria

população envolvida. Não foram as demandas, as novas formas de se organizar o espaço ou

os novos valores, produzidos pelas comunidades locais, que alteraram a paisagem e os

lugares. Essas modificações foram impostas por planejadores, arquitetos, que não trazem

em seus projetos os significados e as características que promovem um forte sentimento de

pertencimento por parte de determinado grupo social a uma determinada porção do espaço.

Com isso, pela falta de envolvimento com as especificidades de cada área, as construções

planejadas, em geral, também não têm representatividade alguma quanto às aspirações

futuras de cada comunidade.

Essas alterações “impostas” pela necessidade de prover maior eficiência e

funcionalidade a determinados espaços, que por sua vez tornam-se então atrativos a

investimentos maiores, promovem uma progressiva diminuição da identificação e do

sentimento de pertencimento do indivíduo a um lugar que praticamente já não existe mais.

Dessa forma, quanto à disposição dos objetos no espaço, impera a lógica de satisfação de

interesses econômicos de escalas cada vez maiores, em detrimento dos valores produzidos

pela experiência humana no espaço, seja através de movimentos coletivos, ou de práticas

individuais, os quais têm uma representatividade cada vez menor na paisagem. “The space

131
of city planning, however, is not based on experiences of space, but is concerned primarily

with function in two-dimensional map space” (RELPH, 1976, pg.22)

A descaracterização da paisagem e a produção de um sentido de lugar artificial,

característicos dos espaços planejados fazem com que a diversidade de experiências, e a

possibilidade de que cada experiência seja única, em uma vizinhança do subúrbio dos EUA,

ou em um shopping center, por exemplo, seja mínima.

2.4.2 Augé e o não-lugar da supermodernidade

O antropólogo francês Marc Augé procede à análise do lugar e do não-lugar como

parte de uma reflexão sobre a contemporaneidade. Aquilo que o autor chama de

“supermodernidade”, resume os processos de “aceleração” da dinâmica do planeta, através

dos meios de transporte e de comunicação de última geração. Augé lembra a necessidade

de estarmos vigilantes para não cairmos em análises obsoletas frente à realidade mutante.

Acrescente-se a isso, portanto, o fato de que se os trabalhos das ciências sociais pretendem

acompanhar (ou pelo menos tentar) as rápidas mudanças da realidade, é fundamental que

estejam prontos a teorizar sobre novos objetos, situações, espaços e relações. “O próprio

mundo contemporâneo que, por causa de suas transformações aceleradas, chama o olhar

antropológico, isto é, uma reflexão renovada e metódica sobre a categoria da alteridade”

(AUGÉ, 1994, p.27).

Augé nos fala de um período de excessos, de tempo, de espaço, em que os

historiadores, economistas, antropólogos, geógrafos, ficam muitas vezes perdidos com

tantas variáveis e tantas mudanças acontecendo (rapidamente) de tal modo, que somos

levados a repensar nossas referências de tempo e espaço. Essa é uma imposição drástica da

132
supermodernidade, ela nos impele a revermos nossas bases mais primárias, ela mexe com o

íntimo de nossa reflexão e com o modo pelo qual encaramos a individualidade e a vida em

sociedade.

A incrível intensidade dos fluxos de pessoas, mercadorias, informações e da

própria vida de um modo geral, promove, segundo Augé, um acúmulo factual, um

verdadeiro entupimento dos canais de compreensão da vida, da história e dos sentidos que

atribuímos a essas referências básicas. Assim, concordando com Bauman, o autor francês

entende que a progressiva sensação de ausência de sentido para a vida, para a história e o

mal estar decorrente dessas percepções, nos trazem uma necessidade constante de

reafirmação e/ou busca por significados e valores que diminuam nosso incômodo. Tornam-

se recorrentes os momentos em que lançamos mão de idéias e conceitos que nos ajudem

nessa tarefa; comunidade, identidade, enraizamento, autenticidade são palavras, conceitos e

idéias que parecem confortar, que nos dão a impressão de que procedemos a uma pausa, ao

reconhecimento de singelas manifestações daquilo que nos é familiar, em meio ao

desconhecido que teima em prevalecer. Essa preponderância (da “velocidade” que é motor

fundamental na produção) do desconhecido pode ser concebida a partir da idéia de que

quando caminhamos em direção ao fenômeno, com o objetivo de reconhecê-lo,

compreende-lo e quem sabe, dotar-lhe de significados, este já se metamorfoseou e/ou, foi

metamorfoseado pelo intenso ritmo da supermodernidade. A idéia de que podemos ter

“acesso instantâneo ao mundo inteiro” (através dos meios de comunicação) e de que nossos

atos podem ganhar uma escala jamais imaginada, traz aos ombros um peso proporcional,

que faz com que o indivíduo tente, pelo menos em alguns momentos, se afastar desse

mundo que se constitui com base no desconhecido. A busca por aquilo que nos é familiar (à

qual nos referimos anteriormente) torna-se materializada em rotas de fuga inscritas no

133
espaço físico. Muitos entendem que o lugar é o conceito mais adequado para nos fazer

compreender essa fuga em direção a uma porção do espaço mais aconchegante.

Todavia, esse espaço enraizado na memória, essa “terra natal”, não é o espaço que

prevalece na supermodernidade. Neste sentido, há um outro tipo de experiência produzindo,

por conseguinte, um outro espaço. Para Augé, estamos falando, nesse caso, do não-lugar,

dos espaços de circulação rápida, pasteurizados em prol da aceleração da velocidade com

vistas à ampliação da realização do lucro. Aí, mais uma vez, pode-se fazer menção a uma

necessidade de revermos alguns aspectos de nossa compreensão do processo social, ou seja,

estamos diante de um determinado momento que nos impõe, inclusive, “novos” arranjos

espaciais.“...vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar. Temos que reaprender

a pensar o espaço” (AUGÉ, 1994, p.37). Nesse “novo” espaço de que fala Augé, não há

tempo para enraizamentos, memórias e construções que sejam a expressão de uma cultura,

ou de uma identidade “genuína”. Neste sentido, a homogeneização toma conta também da

produção do espaço, a partir do nascimento do não-lugar.

De certo modo, essa busca por aquilo que nos é familiar, pode também promover,

por outro lado, o desenvolvimento de um olhar fantasioso sobre o passado. A idéia de uma

sociedade tão transparente, da produção de lugares legitimados pela cultura e pelos rituais

tradicionais, de uma estabilidade que permeia um mundo fechado, intocado, produto

inteiramente genuíno das origens e dos valores do grupo social, “prolonga a fantasia e

aumenta a ilusão” (AUGÉ, 1994, pg.45). Ou seja, em direção a uma minoração do

desconforto trazido pela impessoalidade característica da supermodernidade, pintamos os

saudosos momentos e lugares pretéritos com cores que parecem realçar nossa insatisfação

com o presente, mas que nem por isso retratam a realidade desses tempos passados. Neste

134
sentido, ao mesmo tempo em que se afasta das “fantasias”, Marc Augé relembra que o

lugar é, sim, revestido de valores, significados e identidades históricas.

Para Augé, o lugar é composto por três requisitos básicos; um componente

identitário, um histórico e um relacional. O lugar pode ser definido como sendo

fundamentado por uma dimensão concreta e por uma dimensão simbólica, sendo

“simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de

inteligibilidade para quem o observa” (AUGÉ, 1994, pg.51). O lugar mantém uma relação

dialética com a identidade (individual e/ou de um grupo social). Assim, se por um lado o

indivíduo pode, por exemplo, receber um nome que faça referência ao local em que nasceu,

o que poderíamos tomar como a inscrição (“influência”) do lugar no indivíduo, por outro

lado, o indivíduo imbuído da idéia de pertencimento àquela porção do espaço, irá

progressivamente atribuir ao lugar uma série de valores e memórias particulares. Augé nos

lembra que o habitante do lugar “não faz história, vive na história” (AUGÉ, 1994, pg.53).

Por sua vez, esses valores e memórias que passam a dar sentido ao lugar, que vão

construindo o seu “espírito”, são compartilhados entre aqueles que mantém relações

afetivas e históricas com determinada porção do espaço.

Como ressaltamos no parágrafo anterior, há uma relação importante entre os

lugares e os nomes que lhes são atribuídos. Estamos falando daquilo que poderia ser

chamado de Toponímia, ou seja, a possibilidade que os nomes dos lugares têm de externar

particularidades e memórias impregnadas em determinada porção do espaço. Todavia,

Augé, com base em Michel de Certeau, lembra que uma prática muito comum na

supermodernidade é transformar a complexidade de sentidos e significados que envolvem o

lugar, em imagens previamente desenhadas, simplistas, que transformem o lugar em um

produto fácil de ser “vendido”. “Muitos prospectos turísticos sugerem um tal desvio, um

135
tal giro do olhar...” (AUGÉ, 1994, pg.81). Desse modo, o prospecto de turismo parece ter a

função de nos informar quais as experiências que serão vividas em determinado lugar, além

da maneira como devem ser experimentadas. Assim, é como se o próprio nome do lugar,

agora, nos revelasse de imediato, como por associação, aquilo que iremos viver se

concordarmos em participar da viagem. Ou seja, paga-se para simplesmente preencher os

contornos do caminho que já está programado. O “giro do olhar” ao qual Augé se refere,

trata-se exatamente dessa associação do nome dos lugares com noções e idéias direcionadas

pelo “criador de itinerários”, que selecionam aquilo que julgam como “importante” para ser

visto, e empobrecem a experiência do lugar.

O espaço do viajante seria, assim, o arquétipo do não-lugar(...)onde nem a


identidade, nem a relação, nem a história fazem realmente
sentido(...)diante da paisagem que é obrigado a contemplar (AUGÉ,
1994, pg.81).

2.4.3 Lugar, espaço e não-lugar

Todavia, se entendemos o não lugar como uma experiência, que tem como seu

produto final a distorção dos significados mais “humanos” e “autênticos” do lugar, nos

parece que não podemos classificar como não lugar, aqueles locais que estão distantes do

nosso cotidiano, já que um país, uma cidade, ou uma localidade qualquer muito distante de

nós, pode ser apenas mais um ponto no mapa, uma informação abstrata com a qual não

temos nenhum vínculo afetivo, psicológico ou físico. Neste caso, estamos diante do espaço

indiferenciado, cuja identidade podemos ter uma vaga idéia e com o qual não mantemos

nenhum conhecimento sobre seu “espírito” e personalidade. Portanto, este é um caso em

que simplesmente não há qualquer tipo de experiência em relação àqueles locais que não

136
fazem parte de nosso cotidiano, e com o qual, além disso, não mantemos envolvimento de

qualquer espécie. Desse modo, enxergamos uma certa dificuldade de enquadrarmos esta

questão aos contornos da discussão lugar / não lugar, já que não há nenhuma uma relação,

autêntica ou não, com esta determinada porção do espaço. Esta impossibilidade não está

diretamente relacionada ao fato de que o local em questão não faz parte de nosso cotidiano,

mas como dissemos anteriormente, é indissociável do fato de que se trata de uma porção do

espaço com a qual não temos nenhum tipo de vínculo. Se não estabelcemos nenhum

vínculo, estamos falando do espaço, e não do lugar ou mesmo do não lugar. A estes dois

últimos são atribuídos valores, significados, sentidos, diferenciados pela autenticidade e

pela inautenticidade com que são produzidos. Assim, nos parece que dentro da perspectiva

humanista, mais detidamente nas idéias de Edward Relph, o primeiro a teorizar sobre o

não-lugar na geografia, aquele local com o qual não mantemos vínculo de nenhuma

espécie, mesmo que cheguemos a estar nele em algum momento, seria conceituado como

espaço, e não como não-lugar. “Além das fronteiras afetivas / “físicas” e/ou intelectuais

encontra-se o espaço(...), qualquer porção da superfície terrestre(...), distante – “física” ou

mentalmente – estranho e ignorado” (MELLO, 1990, pg.102).

Por outro lado, se mantemos algum tipo de relação com um local muito distante

de nós, se ele tem algum significado para nós, se ele “nos diz alguma coisa”, mesmo que

não faça parte de nosso cotidiano, pode ser considerado um lugar, ou até mesmo um não-

lugar, pois há uma relação mediada por símbolos e pelo conhecimento da visão de mundo

que o local projeta, bem como da experiência que proporciona. Desse modo, “uma pessoa

pode conhecer um lugar tanto de modo íntimo como conceitual” (TUAN, 1983, pg.7), já

que “pontos distantes podem ser lugares(...)amados e reverenciados como emocionalmente

próximos” (MELLO, 1990, pg.106). Lembramos, apoiados em Relph, que a produção do

137
não lugar (também) é uma experiência, “uma atitude e uma expressão dessa atitude”

(RELPH, 1976, pg.80), a qual não está relacionada ao fato de fazer ou não, parte do

cotidiano, mas ao tipo de relação através da qual nos envolvemos com o lugar.

Neste sentido, o não lugar não pode ser tratado como a simples antítese do que é o

lugar. Ou seja, aquilo que não se configura como lugar para a geografia humanista, não

pode ser “rebatido” diretamente e definido, portanto, como não lugar. Apesar do prefixo de

negação, não nos parece que a idéia se encerre com este tipo de simplificação.

“Poderíamos, então, ser tentados a opor o espaço simbólico do lugar ao espaço não-

simbólico do não lugar. Mas isso seria ater-nos a uma definição negativa dos não-

lugares...” (AUGÉ, 1994, pg.77).

Assim, nem sempre aquilo que não identificamos como lugar, poderá ser

classificado como não lugar. Reafirmamos com isso, que os locais com os quais não

mantemos nenhum tipo de vínculo, os quais não necessariamente devem fazer parte de

nosso cotidiano, como discutimos anteriormente, parecem se inscrever mais

adequadamente no conceito de espaço, daquilo que não conhecemos, que é mais abstrato,

que nos traz a idéia de insegurança, de mobilidade, de “amplidão, da liberdade e da

ameaça...” (TUAN, 1983, pg.6).

Apesar de trabalharem com abordagens até certo ponto semelhantes, Relph e

Augé divergem, entre outras questões, sobre a origem temporal dos não lugares. Segundo

Relph, a produção de espaços estandardizados não é uma novidade do mundo

contemporâneo. A novidade desta produção na atualidade seria a escala do fenômeno, ou

seja, vivemos uma época de proliferação dos não-lugares. A cada vez maior rapidez dos

fluxos, que por sinal parece estar sendo o grande diferencial deste estágio avançado da

globalização, além do planejamento dos espaços em prol dessa “eficiência” têm sido dois

138
elementos fundamentais para a homogeneização dos espaços. “In all societies of all times

there has been some placelessness and insofar as lack of care for places provides a context

and comparison it is essential for a sense of place” (RELPH, 1976, pg.80).

Por outro lado, Marc Augé acredita que os não lugares são um fenômeno típico

do mundo contemporâneo, resultado do que ele chama de “supermodernidade”. Como já foi

abordado, este fenômeno estaria relacionado especialmente ao “encolhimento do planeta”, à

rapidez das trocas e ao ego do indivíduo que pretende interpretar por e para si mesmo as

informações. Na verdade, discordamos de Augé, com base em SANTOS (2000), que como

vimos reprova a noção de tempo e espaço contraídos.

É como se o mundo se houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão.


Um mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de
homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são
aprofundadas (SANTOS, 2000, p.19).

Com isso, parece que em vez de se extinguirem, os lugares parecem ter ganho

uma grande importância no que diz respeito à compreensão do mundo atual. Neste sentido,

(AGNEW & DUNCAN, 1989) acreditam que a emergência de uma comunicação de massa,

não leva necessariamente a uma cultura de massa. A argumentação baseia-se na questão da

interpretação das mensagens recebidas. Dessa forma, se a recepção de mensagens é passível

de interpretação, e esta, por sua vez, depende diretamente da natureza da situação

sociológica na qual diferentes espaços de referência operam, o mesmo estímulo não leva à

mesma resposta.

Assim, parece-nos cada vez mais distante a validade de classificações gerais e,

que a priori, procedem a simples apontamentos daqueles espaços que são ou que não são

lugares. As realidades dos lugares são cada vez mais complexas, e neste sentido, são

percebidas e vividas de diferentes formas, por diferentes indivíduos. Neste sentido,

139
acreditamos que a tendência é de proliferação dos lugares, pois a possibilidade de diferentes

interpretações, das inúmeras novas situações do mundo globalizado, com diferentes

formatos e intensidades nas diversas localidades, nos conduz ao entendimento, de que em

vez de desaparecerem, os lugares estão mudando de sentido. Milton Santos acredita que o

incremento da estrutura de circulação representada pela globalização nos conduz ao desafio

de repensar o lugar, já que a uma maior globalidade, corresponde uma maior

individualidade (SANTOS, 2002). “Onde existe desterritorialzação há também

reterritorialização (...) Assim, a desterritorialização não pode significar o fim da localidade,

mas sua transformação em um espaço cultural mais complexo” (TOMLINSON in:

HAESBAERT, 2004, pg.232).

Neste sentido, fazendo uso, como exemplo, do movimento do território descrito

acima, nos parece que no shopping permeado pela sociabilidade, se há uma dimensão da

“deslugarização”, há também uma “relugarização”, uma apropriação também afetiva e

psicológica do espaço do shopping por seus freqüentadores. A partir daí, abre-se, portanto,

a possibilidade de reflexão a cerca de uma dimensão “lugarizada” do shopping. É o que

pretendemos tratar no capítulo 3. Para isto, privilegiaremos a visão de Nicholas Entrikin

sobre o lugar, uma abordagem, que como vimos, acima, procura integrar a dimensão física,

a materialidade e os aspectos objetivos, sem deixar de lado a subjetividade, que marca a

história de cada um dos “insiders” , que vêem naquela materialidade muito mais do que um

espaço, mas um “lugar” de significados.

...vista de dentro, seria uma outra cidade; Irene é o nome de uma cidade
distante que muda à medida que se se aproxima dela. A cidade de quem
passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais
dali (CALVINO, 1990, pg.115).

140
Capítulo 3

O lugar e o não lugar também se encontram no shopping? – conceitos marginais e

desconfortáveis também se encontram no espaço (demonizado) do consumo?

Neste capítulo, objetivamos encontrar algumas indicações de possíveis respostas,

na medida em que questionamos a rotulação do shopping de hoje, regido em grande parte

pela sociabilidade, como um não-lugar.

Dentre as abordagens do lugar que focalizamos no capítulo 2, estaremos

privilegiando a abordagem de Nicholas Entrikin. Este autor, que enquadramos naqueles que

buscam uma visão “integrada” do lugar, é sem dúvida, o que dentre esses, mais aprofundou

as discussões sob esta perspectiva. Entrikin resgata as noções erigidas por Edward Relph,

quanto ao envolvimento e afastamento do indivíduo com uma dada porção do espaço.

Através da diferenciação entre o que ele chama de uma perspectiva centrada (subjetiva) e

descentrada (objetiva) do lugar, Entrikin procura uma abordagem na qual o lugar seja fruto

da tensão entre os aspectos objetivos (privilegiados pela chamada “geografia crítica”) e

subjetivos da experiência (enfatizados pela chamada “geografia humanista”).

Baseada, como afirma Doreen Massey, na concepção de um lugar “fechado”, a

geografia humanista trata de interações estáveis entre comunidades e indivíduos coerentes,

sem dispensar muita importância à dimensão física como fator fundamental da produção do

lugar.

141
Podemos admitir que existam ainda espaços geográficos cujas
características são o resultado de uma interação íntima entre grupo
humano e base geográfica. Mas estes casos são cada vez menos
numerosos; eles parecem ser o resultado de uma falta de dinamismo social
freqüentemente denominado na linguagem corrente, dinamismo
geográfico. Estes não são mais que o resultado da ausência de resposta às
condições do mundo moderno ou de uma inadaptação local às influências
dos progressos econômicos, sociais. Os progressos realizados no domínio
dos transportes e das comunicações, a expansão de uma economia
internacional que se tornou “mundializada” etc. (...) Se ainda quisermos
conservar a denominação, somos obrigados a dar uma nova definição à
palavra (SANTOS, 2002b, pg.40).

Por outro lado os autores da perspectiva marxista distanciaram-se

consideravelmente da dimensão simbólica do lugar, que torna-se, então, somente produto

do entroncamento de redes capitalistas que se expandem ao redor do mundo, tendo que “lhe

dar” com as “especificidades locais”.

Em sua abordagem, Entrikin deixa muito clara a importância que dispensa aos

aspectos mais psicológicos e afetivos do lugar. As bases humanistas transparecem em sua

análise, ainda que a dimensão material, física, objetiva do lugar, essencial para a análise

geográfica, ganhe a mesma importância. A conceituação do lugar nasce exatamente das

relações entre esses componentes dialéticos e indissociáveis: a materialidade e a vida social

que se desenrola. As interações simbólicas são relativizadas e se afastam das acusações de

idealização, tão comuns nos ataques à perspectiva humanista.

A concepção de um lugar que deve ser “defendido”, “protegido” das

superficialidades e padronizações do mundo moderno, em prol da manutenção de sua

autenticidade, é substituída por um lugar “dinâmico”, que não deixa de possuir sentido

próprio, mas que está “aberto” o suficiente para enxergarmos os significados que são

constantemente construídos e desconstruídos.

Entrikin acredita que o grande desafio dos cientistas sociais que demonstram um

renovado interesse pelo estudo do lugar é conseguir separar o lugar das idéias de uma

142
sociedade tradicional, coerente e homogênea. Na verdade, este romantismo mantém o

pesquisador distante do entendimento do papel do lugar na vida moderna.

Com isso a geografia e as ciências sociais, em geral, “ganham” um conceito não

só capaz de exprimir adequadamente as interações mais abstratas e “sentimentais” que um

indivíduo ou grupo social pode estabelecer com uma porção do espaço, mas que também

pode ser um dos instrumentos mais valiosos para a compreensão de diversos aspectos da

realidade do mundo moderno.

3.1 O espaço “demonizado” do consumo e as possibilidades de uma análise

geográfica da sociabilidade no shopping

Tomado como um espaço arquitetônico pasteurizado, símbolo da sociedade de

consumo e da monumentalidade artificial, o shopping é para muitos autores um típico não-

lugar. Sua própria lógica se assenta em valores, conceitos e apelos superficiais, que

transformam tudo em mercadoria, até o ser humano. Este se torna alienado de si mesmo,

um zumbi que vagueia acompanhando o fluxo da multidão, hipnotizado pela grandeza de

um espaço concebido pela pequenez do lucro. Desse modo, as relações interpessoais e o

próprio indivíduo acabam vivendo uma experiência artificial, que não inclui as mazelas da

realidade urbana e nem mesmo o clima, o qual também não escapa dessa racionalização

extremada que direciona a produção desses espaços. “O shopping center acaba se

transformando62 num significativo instrumento de manutenção do

capitalismo...”(PADILHA, 2006).

62
O grifo é nosso.

143
Por outro lado não se pode perder de vista que, quando nos referimos ao shopping

center, estamos trabalhando com um espaço projetado, pensado e concebido a partir da

lógica do consumo, da venda, do lucro. O próprio sentido do nascimento do shopping foi a

busca por uma reprodução ampliada do capital, que seria possível a partir de uma

racionalização da disposição das lojas em um espaço integrado, advindo da concepção de

que diferentes gêneros comerciais poderiam ser encontrados em um único local, com

acesso facilitado e dotado de confortáveis estacionamentos. O empreendimento deveria

contar com uma gerência única, capaz de uniformizar determinadas posturas e

apresentações das lojas e dos funcionários, para que o dia-a-dia do “negócio” pudesse

apresentar uma coerência com os objetivos traçados.

Dessa forma, observamos que o shopping center (como o próprio nome denuncia),

nasceu na cidade capitalista, e com objetivos de melhorar a realização dos lucros de

comerciantes e grandes empresas. Por outro lado, o fato de o shopping ter expandido seu

grau de atuação e diversificado os serviços que oferece, não pode nos desviar da idéia de

que os objetivos desses empreendimentos permanecem os mesmos, ou o mesmo, realizar

cada vez mais lucros. A progressiva ampliação da complexidade da vida urbana, suas

mazelas e modificações de diferentes tipos e intensidades nos mais variados contextos

sociais nos impõem novas situações, novas representações, novos valores e novos

equipamentos urbanos. Seguindo esta mesma lógica, atualmente o shopping center não

pode ser considerado, de modo geral, como somente um centro de compras, justamente pela

significativa ampliação de sua participação na vida contemporânea de grandes cidades em

diversos países. Atividades de lazer de diversos tipos e a prestação de serviços podem ser

apontados como os grandes agentes dessa modificação do papel do shopping no cenário

urbano. Todavia, se não esquecemos do sentido primeiro de criação do shopping, o qual

144
permanece vivo em seu próprio nome, concluímos que evidentemente, essas “novas”

atividades e comodidades não têm um fim em si mesmas, mas são estratégias para ampliar

ainda mais os lucros e o sucesso do negócio.

Assim, quando nos propusemos a uma análise do shopping através da dimensão

da sociabilidade, pretendemos chamar a atenção para esse “novo” espectro de relações que

proliferam nos shoppings, o que não nos faz esquecer de que essas atividades são

incentivadas pelas administrações através do interesse comercial. Na Europa, especialmente

nos séculos XVIII e XIX, com seus cafés, bares, galeria e lojas de departamentos, a

sociabilidade em espaços de comércio nasceu como um movimento espontâneo dos

freqüentadores. Observando a potencialidade econômica que essa nova dimensão social

teria para contribuir com o objetivo comercial desses espaços, os proprietários passaram a

incentivar essas atividades. Este incentivo veio especialmente com a efetivação de sensíveis

modificações na arrumação desses espaços que pudessem favorecer a sociabilidade. Além

disso, diversos tipos de jogos passaram a ocorrer, com espaços próprios e contando com

uma grande divulgação por parte dos proprietários. Este movimento verificava-se também,

por exemplo, no Rio de Janeiro do final do século XIX. O processo que faz hoje do

shopping um espaço de sociabilidade tem características bem parecidas, especialmente no

que se refere ao fato de que tomá-lo como um espaço de sociabilidade constituiu-se como

um movimento espontâneo dos freqüentadores, idéia ampliada pelos administradores com

vistas ao aumento de seus lucros.

Não podíamos mesmo esperar de um equipamento urbano que atende pelo nome

de shopping center um amplo projeto social, desligado em grande medida da lógica do

capitalismo ou com algum compromisso em contribuir com a amenização das

desigualdades sociais tão visíveis na “rua”.

145
Como um espaço privado que se traveste de público para dar a ilusão aos
consumidores que se trata de uma “nova cidade”, mais bonita, mais
limpa e mais segura que a cidade real, que pertence ao mundo de
fora...(PADILHA, 2006, pg. 23).

O shopping surgiu na cidade capitalista, um espaço conceitualmente fragmentado

em termos sociais. Sabemos que a desigualdade social inscreve-se no âmago do

capitalismo, por conseguinte a cidade que advém da colocação em prática desse sistema é,

portanto, desigual. Assim, o shopping é excludente sim, pois é um produto da cidade

capitalista, a qual é extremamente desigual. Com isso, esses equipamentos têm sua parcela

de contribuição à segregação social, à exclusão daqueles que não se identificam com o

perfil esperado pelos administradores e lojistas. O que estamos querendo colocar em pauta

é que não faz sentido proceder a uma verdadeira demonização do shopping, provocada por

uma mistura de revolta e repugnância para com esta postura excludente que esses

empreendimentos apresentam. Este tipo de postura, tão comum na vida das cidades

capitalistas, pode até certo ponto ser considerada como previsível para um empreendimento

que na lógica urbana tem o papel de ampliar cada vez mais os seus ganhos e de seus

associados.

Parece-nos que, se há algum espaço em declínio, desvirtuado e travestido no

cenário urbano, este é o espaço público, a “rua” propriamente dita. O espaço da lei, da

cultura pública, fundamento da cidadania e isonômico por definição, se apresenta cada vez

mais travestido de público. Tomado por usos privados territorializados, guetos e

classificações excludentes de toda ordem, o espaço que se pretende político torna-se

vulgarizado, dominado e decadente. Quanto ao shopping, que nunca se pretendeu político,

isonômico ou público, parece que descarregamos nossas frustrações com o espaço público

(a rua) em um espaço fundamentado conceitualmente e, por princípio, na lógica do negócio

146
capitalista. Ainda, nesta verdadeira crucificação do shopping, ele é também descrito como

responsável por esse contínuo declínio do espaço público. É como se o shopping fosse o

grande vilão da cidade, aquele “espaço do mal”, em que aquilo que os pobres não podem

comprar é oferecido com ares de glamour e celebração, em que o lucro é motor para tudo, e

no qual o cidadão vira um mero usuário, consumidor. A cidade capitalista não se oferece,

ou não é alcançada pelos pobres, e mesmo assim o espaço urbano ostenta o luxo e a

realização do lucro de várias formas e em vários espaços diferentes (além do shopping). Se

a vigilância no shopping é discriminatória, pois afasta as “possíveis ameaças”, com base

naqueles que destoam pela pobreza, será que podemos dizer que isso é uma novidade ou

uma particularidade do shopping? Será que a cidade, a “rua” é tão isonômica, justa,

acolhedora, recheada de indivíduos com notável espírito público e que o shopping é o

câncer social que desvirtua o “bom cidadão”?

Assim, distante de tomar partido de qualquer tipo de situação de acusação ou

defesa, o que estamos apresentando aqui é a dúvida de que talvez estejamos atribuindo ao

shopping um conjunto de observações lógicas que, na verdade, constituem o motor da vida

urbana capitalista, especialmente se pensarmos em países como o Brasil. Com isso, não

estamos discordando das inúmeras observações feitas, repetidas vezes, que nos chamam a

atenção para o fato de que o shopping procura espantar as mazelas do cotidiano, tornando-

se um espaço que não é acessível a todos e no qual a representação do cidadão é engolfada

pela figura do consumidor, e que isto não contribui para uma vivência ampliada da

cidadania e dos valores sociais em geral. Não se pretende aqui, também, justificar ou

mesmo passar uma idéia de acomodação e concordância quanto à exclusão social que se

realiza no espaço urbano. Por outro lado, não acreditamos que este seja o único prisma

possível para uma análise do shopping ou mesmo da cidade. Até certo ponto, ainda que a

147
atribuição de rótulos ao shopping, como “templo do consumo”, “catedral das mercadorias”

sejam “frases de efeito” que nos trazem uma idéia correta do que os shoppings realmente

são, a constante, repetitiva e inevitável “demonização” que se segue, parece que mais do

que nos trazer uma boa compreensão de como esses empreendimentos realizam seus lucros,

acabam de uma certa forma reduzindo as possibilidades de enxergarmos este mesmo objeto

através de outras perspectivas.

3.2 A produção do espaço (no/do) shopping

Selecionamos alguns espaços, eventos e situações que nos chamaram a atenção ao

longo da pesquisa e que, esperamos, possam demonstrar a variedade cada vez maior de

relações sociais que se verificam nos shoppings, bem como prover-nos com elementos de

discussão de questões relativas aos conceitos de lugar e de não-lugar no que se refere ao

shopping center. Estamos propondo um “passeio” pelo shopping, em que munidos das

discussões do lugar e do não-lugar, pretendemos analisar algumas situações e espaços

proporcionados pela sociabilidade que vem se desenvolvendo nesses empreendimentos.

3.2.1 A Praça de Alimentação

A sociabilidade tomou inúmeras formas nos shoppings e seu local principal é a

chamada Praça de Alimentação. Inclusive, alguns shoppings mudaram o nome da Praça de

Alimentação para Praça de Eventos. Em si mesma, a praça de alimentação de um shopping

center guarda uma vocação à sociabilidade, especialmente pelo arranjo espacial que possui.

148
De forma geral, é um local em que variados restaurantes, lanchonetes, bares se concentram,

os quais, em sua maioria, utilizam os espaços frontais aos seus estabelecimentos para a

disposição de suas mesas e cadeiras. Forma-se então, um território que não se condiciona à

idéia de circulação permanente de pessoas, como no restante do shopping, mas é

demarcado por mesas, cadeiras e, principalmente, por grande quantidade de pessoas. Se o

shopping por si só pode ser pensado como um local do encontro, a praça de alimentação

pode ser analisada como o “território do encontro” por excelência nesse empreendimento,

uma porção do shopping totalmente afeita à sociabilidade.

Esse “potencial social” da praça de alimentação se ampliou com a promoção de

eventos nesse “território”. Esses eventos são mais comumente shows de música, nos quais

apresentam-se artistas, “desconhecidos” e “famosos”, além de bandas que fazem sucesso

em determinado bairro ou área da cidade. Os shows na praça de alimentação são, em geral,

gratuitos e sua importância cresceu de tal forma, que as administrações disponibilizam

previamente as agendas com a programação semanal ou mensal dos shows realizados no

“Palco Iguatemi”, no “Sabor e Som” do Norte Shopping ou no “Happy Hour” do Rio Sul,

entre outros. Ao longo de nosso trabalho, pudemos perceber que a existência de uma

programação fixa de eventos é mais comum em shoppings localizados fora da Zona Sul e

da Barra da Tijuca. No caso do Barra Shopping, por exemplo, a proximidade com a maior

casa de shows da cidade, o Citibank Hall, no Via Parque, possivelmente é um forte motivo

para que não haja uma grade fixa de shows e eventos. Os casos63 do Iguatemi e do Norte

Shopping, que possuem, já há algum tempo, uma programação fixa de eventos de diversos

tipos, são ilustrativos de outro papel que esses shoppings desempenham na Zona Norte:

cobrir, de algum modo, a carência de espetáculos e opções de divertimento nessas áreas.

63
Ver anexos – Panfletos das programações do Iguatemi e do Norte Shopping.

149
“And as spaces of sociability such landscapes allow for the staging of all kinds of activities,

many of which find expression in a way that has nothing to do with the dictates of the

commodity or of consumption” (MITCHELL, 2000, pg.136).

Os shows da praça de alimentação teriam sido pensados a priori, como forma de

tornar o “ambiente mais agradável”, atraindo assim, de forma indireta, mais consumidores

para os restaurantes e para o shopping como um todo, já que o tempo de permanência se

amplia.

No entanto, determinados artistas, em geral os “famosos”, quando fazem seus

shows nos shoppings, transformam essa dinâmica; De início, há parcela considerável de

pessoas que vão estritamente ver e ouvir o cantor ou a banda. Além disso, o comportamento

das pessoas que estão na praça de alimentação se modifica: o enorme barulho das conversas

tendo a música como “pano de fundo”, desaparece; as atenções voltam-se então, quase que

totalmente para o artista. Essa nova dinâmica faz com que, por algumas horas, a praça de

alimentação pareça estar dissociada do restante do shopping.

No sítio da ABRASCE, a matéria intitulada “Show ou música de fundo?” nos

fornece um exemplo dessa dinâmica de shows de artistas famosos nos shoppings.

Tem bamba na praça de alimentação. Quem disse foi o jornal O Globo,


em matéria publicada em 24 de março, sobre shows de artistas renomados
em shopping centers. Os artistas diziam que "os shoppings são uma
excelente e movimentada vitrine" e não falaram de um público "frio e
disperso" - ao contrário, Cláudia Telles disse já ter chorado depois de
shows realizados em malls. Paulinho Tapajós, Miúcha, Danilo Caymmi e
Carlinhos Vergueiro foram outros que comentaram sobre a grande
interação com o público no ambiente do shopping
(WWW.ABRASCE.COM.BR).

Ainda na mesma matéria, a ABRASCE disponibiliza opiniões de profissionais da

área sobre os shows na praça de alimentação;

150
"Manter uma programação de shows de artistas consagrados
pode ser boa estratégia, mas requer espaço adequado. O público acaba se
tornando consumidor do shopping. É importante, no entanto, manter
regularidade nas apresentações". Luis Antônio Lopes, superintendente do
Bay Market64 (WWW.ABRASCE.COM.BR).

Em alguns casos, na Praça de Alimentação (“Praça de Eventos”), a experiência se

descola do sentido “original” da experiência do shopping, constituindo-se em uma relação

moldada por um evento musical ou teatral, que acaba por dissuadir, por pelo menos

algumas horas, o indivíduo de seu papel de comprador. Dessa forma, a produção de eventos

culturais que tomam especialmente a praça de alimentação do shopping como palco,

transformam não só o caráter da experiência no shopping, como também o próprio sentido

da praça de alimentação, na qual se abre a possibilidade de se guardar futuras lembranças

de situações próprias de um local de sociabilidade, e que, portanto, apresenta uma inegável

dimensão afetiva. Assim, a Praça de Alimentação torna-se efetivamente um lugar, tanto

para o público, como para os artistas. A impressão que obtivemos ao longo de nossas

observações no Barra Shopping e no Iguatemi, nos faz concluir que este tipo de situação se

concretiza com maior clareza nos casos em que artistas famosos atraem espectadores, que

muitas vezes talvez nem fossem ao shopping se não houvesse a motivação do show. Por

outro lado, é muito comum a situação de “música de fundo”, o que na verdade

simplesmente se constitui como mais um elemento na composição “artificial” do shopping,

não modificando de forma decisiva o caráter da experiência. Neste caso, diante da

perspectiva que define o lugar como um centro de lembranças e valores autênticos, o

shopping permaneceria por sua inautenticidade e pela promoção de uma experiência

estandardizada, como não-lugar.

64
Shopping localizado na cidade de Niterói - RJ

151
Todavia, se lembrarmos que a cotidianidade está cada vez mais se desenrolando

no shopping, podemos pensar até que ponto, mesmo sem os shows dos artistas famosos na

Praça de Alimentação, por exemplo, a experiência daqueles que freqüentam o shopping

quase que diariamente, pode ser definida (ou rotulada) como estandardizada. Ou seja,

estamos questionando o fato de que se há quem tenha passado a viver partes consideráveis

de suas semanas no shopping, será que mesmo estando em um ambiente que repete sua

“fórmula de paisagem” nas mais diversas localizações ao redor do mundo, o que temos no

final das contas é uma indiferença em relação ao ambiente? Parece-nos que a resposta para

este questionamento ganha contornos mais claros quando utilizamos a perspectiva de

análise do lugar proposta por Nicholas Entrikin.

The term “placelessness”, which has been used in reference to the creation
of standardized landscapes that diminish the differences among places,
signifies one aspect of the loss of meaning in the modern world. But
“loss” may be too strong a term. Meaning is both “lost” and “gained” in
such landscapes (ENTRIKIN, 1991, pg.57).

Assim, se por um lado há uma perda considerável para a experiência por conta da

paisagem estandardizada, há que se lembrar que o shopping tornou-se parte daquilo que

Milton Santos chama de “espaço banal”, um espaço do dia-a-dia, em que aqueles que

tomam o shopping indiferenciado como parte fundamental de sua cotidianidade, recriam a

própria gênese do ambiente, que para eles, deixa de ser indiferenciado. O que parece ficar

claro é que diante da expressiva modificação no próprio papel que o shopping exerce na

cidade, à qual dedicamos o capítulo 2, a discussão do lugar e do não-lugar não pode ficar

restrita a rótulos rascunhados como conclusão de uma análise literalmente superficial, uma

análise de aparências, que até se encaixa no movimento das pessoas no shopping, em que

ver e ser visto torna-se um roteiro para estar na moda, mas que não serve para entendermos

como as pessoas “vivem” no shopping.

152
Ainda a partir desta perspectiva do lugar, o mesmo raciocínio é válido para as

exposições culturais, para a recreação e esportes, para os cinemas, para as casas de shows e

para os teatros em shoppings. Ou seja, esses espaços e eventos promovem uma alteração

significativa do que a princípio se imaginaria para a experiência em espaços do shopping, o

que nos impõe mais ainda a necessidade de repensar a discussão do lugar no (do) shopping.

3.2.2 Os desfiles.

A ligação do shopping com a moda possui múltiplas formas. As lojas relacionadas

ao vestuário são maioria em grande parte dos shoppings. A intenção do próprio sistema

econômico e de mídia de promover tendências, criar novas necessidades em termos de

consumo em geral, estabelece para muitos uma necessidade contínua de estar sempre “na

moda” para se sentir vivo. De uma outra forma, ir ao shopping está cada vez mais na moda,

ainda que este tipo de empreendimento esteja completando apenas sua quarta década no

Brasil. Prova disso foi a disseminação dos shoppings pelo país, especialmente na segunda

metade da década de 1990, inclusive em áreas mais periféricas de metrópoles, como no

caso do Rio de Janeiro.

Em uma dimensão metafórica, pode-se dizer que “passear”, circular no shopping

assemelha-se a um desfile de moda. Os corredores transformam-se em passarela e cada

pessoa ganha ao mesmo tempo o papel de modelo e espectador, vê e é visto.

A partir dessas semelhanças, que possivelmente não são as únicas, a moda chegou

efetivamente ao shopping em um passado recente. Em fins da década de 90, shoppings

153
como o Shopping Tijuca, o Norte Shopping65, o Rio Sul, o Barra Shopping e o Morumbi

Shopping, entre outros, passaram a servir, literalmente, de passarela para os lançamentos de

novas coleções de grifes nacionais e internacionais, trazendo modelos famosos e atraindo

grande número de pessoas.

Dois grandes eventos da moda internacional, o São Paulo Fashion Week e o

Fashion Rio, surgiram em shoppings, em 1996:

MorumbiShopping, em São Paulo, e BarraShopping, no Rio de Janeiro,


foram os laboratórios de onde nasceram a São Paulo Fashion Week e o
Fashion Rio, hoje os dois maiores eventos de moda do país, com
repercussão internacional (WWW.ABRASCE.COM.BR)

Os desfiles são, como dissemos anteriormente, uma metáfora interessante para

refletirmos sobre o que cerca um passeio no shopping. Neste sentido, não há evento que

possa retratar melhor os aspectos mais superficiais da experiência no espaço do shopping.

No desfile um determinado protótipo é lançado sobre uma passarela com o objetivo de

direcionar a moda e o consumo, dois dos pressupostos mais importantes em um shopping.

Assim, a inautenticidade ganha largas dimensões nos desfiles, que na verdade ampliam a

condição do shopping como exemplo ilustrativo da experiência do não-lugar. Entretanto, se

virarmos o foco da análise para as meninas que fazem seus primeiros desfiles nos

shoppings, para os pais que assistem, ou mesmo para os fãs de moda que fotografam os

ídolos e guardam a lembrança da ocasião, provavelmente seria no mínimo precipitado

atribuir a condição de indiferenciado ao espaço que foi palco dessa memória. Visitas

posteriores provavelmente trarão à lembrança, os momentos e as histórias do evento.

Fazendo eco com as reflexões de Nicholas Entrikin, o significado pode se perder, como

65
Ver anexo 12.

154
pode reaparecer, se considerarmos outros aspectos, ou outros atores que vivenciam esses

lugares a partir de diferentes graus de envolvimento.

3.2.3 Exposições Culturais

O número de shoppings que promove eventos relacionados à cultura, como

exposições de pintura, literatura, história é limitado. Pode-se destacar o Fashion Mall e o

Shopping Via Parque, no qual as exposições, cada vez mais freqüentes, possuem um espaço

determinado para ocorrer. Em outros shoppings, podem ocasionalmente ocorrer exposições

culturais, como à época dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Inúmeros shoppings não

deixaram esse período “passar em branco” e promoveram diversas exposições sobre o tema

que atraíram número considerável de pessoas.

No entanto, salvo datas como essa, em que o descobrimento estava “na moda”, as

exposições têm em geral, ainda, uma importância diminuta para os shoppings, com pouca

divulgação. Uma grande exceção foi a exposição intitulada “W.C”, lançada no Norte

Shopping, de 04 a 26 de abril de 2002:

Quem quiser ver personalidades do meio artístico, esportivo e cultural,


fotografados em banheiros, fazendo poses pouco convencionais, terá a
oportunidade na exposição "WC", com 100 imagens feitas pelo fotógrafo
Rogério Faissal, ao longo de 4 anos. Tem Chico Buarque, todo ensaboado
embaixo do chuveiro; Juarez Machado, pintando um quadro dentro do
boxe; Marcos Palmeira, sentado em um vaso sanitário no banheiro do
Maracanã; Luiza Brunet, tomando banho com os filhos
(WWW.ABRASCE.COM.BR).

O sucesso da exposição foi tão grande, que ela seguiu para outros três shoppings;

no TopShopping, em Nova Iguaçu, no Center Shopping, em Jacarepaguá, e no West

Shopping, em Campo Grande.

155
Durante nossas observações no Iguatemi, a exposição sobre a banda inglesa “The

Beatles” atraiu grande público para o shopping. A chamada para o evento pode ser

observada no cartaz abaixo, no qual também podemos notar que os bordões de “compre

aqui” ou o “melhor lugar para suas compras” caíram, de certo modo, em desuso, abrindo

espaço para frases que captem a amplidão de opções e de usos do shopping.

Fonte: Shopping Iguatemi

3.2.4 Recreação/ Esportes

Freqüentado por um público infanto-juvenil, o setor de recreação dos Shoppings

fica muito movimentado nos finais de semana, oferecendo variadas opções de diversão.

Muitas vezes, os pais também permanecem nesses locais, “tomando conta” do filho,

ocasionalmente se socializando com outros pais na mesma situação.

Diferentemente da década de 1980, os jogos eletrônicos têm a predominância e a

preferência absoluta nesses espaços, atraindo não só o público infantil. Em relação ao

público juvenil, o setor de recreação torna-se também um ponto de encontro. No Barra

156
Shopping localiza-se o maior centro de jogos eletrônicos em shoppings do Rio de Janeiro: o

“Hot Zone” agrega mais de 150 equipamentos com os mais variados estilos de jogos.

Uma atração que é difícil de ser encontrada nos shoppings, mas que,

diferentemente das exposições, é muito procurada são os esportes. No Rio de Janeiro, o

Barra Shopping foi o primeiro a lançar um espaço destinado ao boliche, o “Barra Bowling”.

No início foi um grande sucesso, todavia o alto preço da diversão começou a ser sentido na

significativa queda no número de freqüentadores. Através de inúmeras promoções, a

administração do Barra Shopping conseguiu trazer o público de volta ao boliche, que

atualmente está passando por reformas. No Norte Shopping, o preço popular e a condição

de atração inusitada fazem com que a pista de kart fique lotada nos finais de semana. Da

mesma forma, o boliche atrai um grande número de pessoas às dependências do Shopping.

No Shopping Tijuca há, durante todo o ano, um campeonato de Futebol de Mesa,

distribuindo prêmios e atraindo inúmeros e atentos espectadores, transformando-os, em

muitos casos, em verdadeiros torcedores.

3.2.5 Casas de Shows e Teatros

Um outro exemplo desse grande alcance do shopping são seus teatros, boates e

casas de shows. Inaugurado em 1994, o Metropolitan, atual Citibank Hall, surgiu como a

maior casa de espetáculos da América Latina, com capacidade para 10 mil pessoas,

possuindo todos os requisitos necessários para grandes shows e eventos, nacionais e

internacionais. Localizado no Via Parque Shopping, na Barra da Tijuca, o “ATL Hall”

(como era chamado) passou em 2002 por inúmeras reformas:

157
Depois de dois meses fechado para o público, o ATL Hall, maior casa de
espetáculos carioca, reabre suas portas reservando uma boa surpresa para
a cidade: uma reforma de R$ 9 milhões transformou o local, que passa a
ser um dos mais modernos palcos para shows do país, similar às grandes
casas de espetáculos das principais capitais do mundo. A nova era, sob o
signo da modernidade e do conforto, tem início no próximo dia 23 de
abril...66

No Norte Shopping localiza-se um teatro de grande apelo no Rio de Janeiro, o

teatro Miguel Falabella. Além de peças nos fins de semanas e em alguns dias da semana, há

a “Companhia de Teatro Atores de Laura” que promove cursos de teatro, de balé e de

modelo. No Recreio Shopping e no Madureira Shopping, por exemplo, também há oficinas

de teatro. No Shopping da Gávea são nada menos do que 4 teatros, o Teatro Vanucci, o

Teatro Clara Nunes, o Teatro dos Quatro e o Teatro das Artes são destinos consagrados das

peças no circuito carioca. “Fiquei um ano e meio em cartaz com o espetáculo “Cócegas”.

Nem me considero freqüentadora assídua de shoppings, mas o da Gávea é quase a minha

casa67” (O GLOBO, 04/12/2005) 68.

O depoimento da atriz nos confirma que, dependendo do modo como estamos

vivenciando determinada situação em um local, esta relação pode ganhar proporções que

extrapolem aquilo que a princípio poderíamos imaginar ao subestimarmos um “teatro de

shopping”, ou o próprio shopping. A idéia da casa nos perpassa a noção de identificação

imediata com o local, tanto a partir do fato de que sabemos por onde andar, ou seja,

enxergamos a dimensão física, a materialidade, como algo conhecido, como a partir das

(memórias) situações pretéritas que foram vividas no local. A paisagem e a própria

dinâmica social que dá vida ao local, se enquadram naquilo que o indivíduo deseja ver e

66
(http://www.mediamania.com.br/secundarias/atl/pag.htm).
67
O grifo é nosso.
68
Depoimento da atriz Ingrid Guimarães ao jornal O GLOBO, 4 de Dezembro de 2005 – “Tribos de
Shopping” pg.30.

158
conviver, o que, por conseguinte, promove ao longo do tempo uma ligação afetiva, que

transforma o espaço em lugar. “The desestabilization of meaning in modern life has meant

that the individual must create a “place” for himself or herself in the world. No “natural”

place exists” (ENTRIKIN, pg.64).

3.2.6 Os Cinemas

Uma forma de lazer cada vez menos encontrada nas ruas do Rio de Janeiro e que

passou a estar diretamente associada ao shopping é o cinema. Os inúmeros e tradicionais

cinemas de rua deram lugar, em sua maioria, a templos religiosos. Essa escolha das antigas

salas de cinema pelas religiões não nos parece ocorrer ao acaso. Na verdade, o arranjo

espacial dos cinemas é perfeito para o propósito desses grupos que, da mesma forma,

querem uma grande platéia para suas encenações, seus shows e pregações.

Seria impensável que os shoppings, que passam a ser cada vez mais não só um

centro de compras, mas uma referência em termos de lazer e serviços, não dispusessem de

uma diversão como o cinema. Tanto que muito antes da saída dos cinemas das ruas, o Barra

Shopping, o Rio Sul, o Fashion Mall, entre outros, já possuíam seus próprios cinemas. A

partir da metade da década de 1990, os cinemas passaram a se concentrar majoritariamente

nos shoppings. Foi nesse período que ocorreu uma nova e significativa expansão no

número de shoppings, aliada ao medo crescente da violência que, progressivamente,

afastava as pessoas dos chamados “cinemas de rua”. Um exemplo da importância dos

cinemas para os shoppings pode ser constatado no New York City Center, agregado ao

Barra Shopping, em que há 18 salas. Como pudemos observar ao longo de nossas pesquisas

no Barra Shopping, o espaço próximo ao cinema é um local de grande aglomeração de

159
pessoas, tanto que duas praças de alimentação ficam bem próximas dos cinemas. Nos finais

de semana os cinemas registram inúmeras sessões com lotação esgotada. Há serviço de

compra de ingresso antecipada, inclusive pela Internet. O fato dos cinemas atraírem um

grande contingente de pessoas e ampliarem (e muito) os ganhos dos shoppings, faz com

que sejam considerados verdadeiros âncoras desses empreendimentos. No Iguatemi a cena

se repete: a “praça de eventos” fica em frente às sete salas de cinema do shopping69.

Esta repetição observada em aspectos da organização do espaço nos shoppings,

em que, no caso, o posicionamento dos cinemas respeita uma determinada lógica comum,

de algum modo nos abre a possibilidade de ilustrarmos aí a dimensão do não-lugar. A

paisagem é fabricada de modo tão semelhante, que para muitos, até identificar com clareza

em qual shopping estamos, pode se tornar uma difícil tarefa. “Perception naturally depends

on the “subject”: a peasant does not perceive “his” landscape in the same way as a town-

dweller strolling through it” (LEFÈBVRE, 1991, pg.114).

3.2.7 A territorialização dos espaços do shopping por grupos de jovens

A atração pela compra, mas principalmente pelos cinemas e pela sociabilidade faz

com que a presença de inúmeros grupos de jovens seja, em geral, marcante nos shoppings.

As administrações dos shoppings estão quase sempre muito atentas a este tipo de

aglomeração, identificando facilmente onde se localizam e em que horários e dias são mais

expressivos. Esses grupos de jovens são tratados com cautela pela administração dos

shoppings, tidos como potenciais problemas para a ordem.

69
Ver Mapas do Iguatemi em anexo.

160
Em geral, esses jovens concentram-se próximos aos cinemas, nos locais

destinados aos jogos eletrônicos e na praça de alimentação. Há inúmeras “tribos”: os

mauricinhos, as patricinhas, os surfistas, os punks, os metaleiros, os grunges, todos

aparecem nos shoppings. A preocupação das administrações dos shoppings quanto aos

grupos de jovens justifica-se na medida em que já houve problemas e incidentes de variadas

intensidades com esses jovens. Heitor Frúgoli Jr descreve um pouco dessa convivência nos

shoppings:

...especialmente nos fins de semana, os shopping centers transformam-se


em cenários, onde ocorrem encontros, paqueras, “derivas”, ócio, exibição,
tédio, passeio, consumo simbólico. Tornam-se uma espécie de “praça
interbairros” que organiza a convivência, nem sempre amena, de grupos e
redes sociais, sobretudo jovens, de diversos locais da cidade (FRÚGOLI
JR., 1992, p.77).

Há, portanto, um conjunto de identificações sociais (modo de vestir, de falar,

horários, atitudes, pensamentos, músicas, ídolos, times de futebol, entre outros) que forma

um sentimento de pertencimento a determinado grupo. No entanto, essas identificações

sociais se manifestam a partir de um território, ou seja, de uma determinada “identidade

territorial”. É o que acontece nos shoppings. Os grupos de jovens procuram medir forças

uns com os outros, na busca de demonstrar ou muitas vezes impor, seus valores e

identidades aos demais, gerando assim, ocasionais conflitos. A forma de concretizar essas

demonstrações de força ocorre pela “invasão” do território de outro grupo, o qual procura

defender o espaço sobre o qual vigoram suas identidades, valores e regras. Com isso,

identificamos a existência de um processo de territorialização de determinados espaços do

shopping pelos grupos de jovens. Entendemos territorialização como “...o movimento de

um agente titular no ato de presidir a lógica da distribuição de objetos sobre uma dada

161
superfície e de, simultaneamente, controlar as dinâmicas que afetam as práticas sociais que

aí terão lugar” (GOMES, 2002, p.12).

No caso da observação de grupos de jovens nos shoppings, a idéia fundamental é

mesmo a de territorialização, como já foi pontuado. Ao se verificarem demarcações de

determinadas identidades e disputas por determinados espaços, pode-se inferir a existência

dos espaços territorializados, já que se tornam espaços “controlados” por simbologias

específicas e rivais.

Para os funkeiros, os shopping centers assumem um papel fundamental no


que se refere à afirmação de seu estilo e, mesmo, na construção de sua
identidade, pela confrontação com outros grupos e segmentos e pelo
enfrentamento de atitudes segregacionistas (MAIA, 2002, pg.191).

3.2.8 As Manifestações

“O que era para ser um protesto contra a discriminação dos homossexuais


virou atração dominical para os paulistanos. Milhares de pessoas lotaram
ontem a praça de alimentação do shopping Frei Caneca para assistir ao
“beijaço” coletivo organizado por grupos gays em protesto contra o
preconceito sofrido por um casal gay na semana passada.”70

Se em algum momento poderíamos até contestar a autenticidade dos símbolos e

identidades das tribos de jovens, o que de certa forma colocaria em cheque o caminho que

traçamos no parágrafo acima, por outro lado não se pode negar a autenticidade revelada nas

raras manifestações ocorridas em shoppings.

As manifestações em shoppings não ocorrem somente em São Paulo, como no

caso da citação anterior. No Rio de Janeiro, os “sem teto” fizeram manifestações no Rio Sul

e no Barra Shopping, em 2001, enquanto que uma enorme manifestação de estudantes

ocorreu no Rio Sul, no mesmo ano.

70
O Globo – 4 de Agosto de 2003 – “Protesto Gay atrai 3 mil pessoas em São Paulo”

162
Na verdade, como em qualquer local onde ocorra uma manifestação, há uma certa

apreensão por parte daqueles que não estão participando, ocorrendo, portanto, alterações na

dinâmica do local. Para a administração, essas manifestações provocaram uma alteração

indesejada na rotina do shopping.

A escolha de shoppings como palco de manifestações não se dá por acaso. Além

de ser um ambiente de compra, pretensamente “um símbolo do capitalismo”, esses

movimentos parecem ter percebido que a cena da vida pública ocorre também nos

shoppings, por sua grande visibilidade e ao grande número de freqüentadores.

A própria legitimidade e o caráter sócio-político das manifestações de grupos

gays, de estudantes e dos sem-teto, por exemplo, revelam que durante as manifestações o

próprio sentido do espaço do shopping foi subvertido, o que evidentemente não agradou

nem aos lojistas, nem aos administradores. O caráter evidentemente apolítico do espaço do

shopping, em que normalmente não se instauram debates públicos, foi, nessas ocasiões,

transformado em um espaço71 no qual se desenrolava a própria cena pública, em que a

visibilidade, os símbolos e as representações elevaram à expressão pública aquilo que se

estava tentando comunicar. Neste sentido, a própria visibilidade que o espaço do shopping

vem ganhando nesses últimos anos no Brasil, especialmente por conta da ampliação das

áreas de lazer e sociabilidade nesses empreendimentos, foi um fator decisivo para que os

manifestantes escolhessem-no como palco. Ademais, especialmente os protestos dos sem

teto e dos estudantes apresentaram um caráter simbólico interessante pelo fato de ocorrer

em um espaço “símbolo do capitalismo”, do consumo, etc.

71
“o espaço público é simultaneamente o lugar onde os problemas se apresentam, tomam forma, ganham uma
dimensão pública...” (GOMES, 2002, pg.160).

163
Desta forma, pode-se dizer que as manifestações imprimiram ainda que

momentaneamente um caráter “autêntico” ao espaço do shopping, que não estava mais

regido pela lógica da superficialidade e do consumo, mas por um sentido político e

contestador da ordem cotidianamente ali estabelecida. Com isso, estes protestos obtiveram

grande publicidade, com destaque em inúmeros meios de comunicação, instaurando

diversos debates.

3.3 O lugar e o não lugar também se encontram no shopping?

Os espaços dos diferentes shoppings apresentam em geral os mesmos

componentes, com formatos muitas vezes parecidos, como as vitrines, o estacionamento, o

piso, a iluminação. Além disso, muitas redes de lojas dispõem suas filiais nos mais diversos

shoppings, fazendo com que reconheçamos em diferentes shoppings, muitas vezes de

diferentes cidades, estados e até países, as mesmas lojas. Da mesma forma, a disposição

central da praça de alimentação, a existência de cinemas, a prestação de serviços são itens

quase que obrigatórios nos shoppings do mundo inteiro. Olhado por este prisma, os

shoppings se adequam perfeitamente à categoria do não-lugar, já que a pasteurização do

espaço em prol da maior possibilidade de lucros para o shopping denuncia a artificialidade

de sua montagem, que não se relaciona a princípio com os valores, significados e

peculiaridades de determinado grupo social, cidade ou país. “Space is understood to be

empty and undifferentiated and objectively manipulable according to the constraints of

functional efficiency, economics, and the whims of planners and developers” (RELPH.

1976, pg.23).

164
No entanto, o fato de ser perfeitamente possível encontrarmos as mesmas lojas em

diferentes cidades e até países, nos leva também a entendermos que o shopping se inscreve

como um dos espaços utilizados por capitais que mantêm uma vasta gama de possibilidades

de realização de seus lucros em âmbito global. Neste sentido, expressões do mundo

globalizado como a francesa Fnac, a espanhola Zara e a americana Mc Donald’s, entre

muitos outros exemplos, encontram-se nos shoppings pelo mundo afora. Todavia, esta

reflexão nos traz à lembrança o fato de que, apesar de encontrarem-se dispersas pelo

planeta, essas lojas se inscrevem em diferentes contextos, convivendo com lojas “locais”,

gostos e culturas particulares e até com a própria diferenciação do poder de compra. Assim,

o que à primeira vista poderia parecer completamente indiferenciado torna-se

extremamente flexível, para se inserir satisfatoriamente no contexto local. Resgata-se aí a

idéia de que, neste caso, o lugar é produzido exatamente a partir da particularidade da

adequação daquilo que é global aquilo que é local.

Do mesmo modo, se por um lado a aparência e até alguns aspectos da organização

do espaço possam se apresentar da mesma forma, “pasteurizada”, podemos estender este

raciocínio até o ponto em que percebemos a necessidade de considerarmos que esses

elementos e espaços pasteurizados se engendram de modos diferentes, até mesmo quando

nos referimos a shoppings que ficam na mesma cidade. Acrescentamos que essa

“montagem do teatro” varia em grande medida de um empreendimento para outro. Os

empreendedores procuram dar uma identidade ao shopping, baseados na premissa de que

“quem pretende atender a todos, não atenderá a ninguém”. Nesse sentido, a identidade é

constituída a partir de um estudo sobre o público-alvo. Essa categoria corresponde àqueles

que residem no “raio de ação” do shopping, ou seja, em suas adjacências. A partir daí, são

internalizadas nos shoppings inúmeras identidades e símbolos da área da cidade em que se

165
localiza. Com isso, percebemos que o shopping não só influencia, como também é

influenciado pelas dinâmicas e identidades desse bairro. Podemos comprovar a importância

dessa identificação, através das campanhas publicitárias dos shoppings. O Rio Sul, por

exemplo, que se intitula “o shopping carioca”, aparece sempre relacionado à praia,

justamente o principal fator de identificação da área da cidade em que está situado. Por

outro lado, no Iguatemi, reconhecemos a boemia e o samba de Vila Isabel, no restaurante

Petisco da Vila. “Assim, podemos entender, que os shoppings usam uma mistura peculiar

de público e privado para criar um tipo diferente de palco, um palco não só para a produção

de identidade, mas para o consumo também” (MITCHELL, 2000, p.129).

A propaganda do Iguatemi Rio em um outdoor localizado na Praça Saens Peña, na

Tijuca, “Shopping Iguatemi, um lugar com tudo o que você gosta” resume bem essa idéia.

É interessante percebermos que a chamada para que a pessoa vá ao shopping não parte da

propaganda das lojas que figuram em seu interior, mas de um apelo à própria montagem do

espaço do shopping. O Iguatemi, por exemplo, abre mais cedo que a maioria dos shoppings,

às 8hs, para atender aos seus freqüentadores da terceira idade.

Uma turma de bons vivants que passaram dos 60 já marcou sua festa de
confraternização. Na praça. De alimentação. De um shopping onde eles
religiosamente se encontram todas as tardes. O hábito dos amigos de seu
Antonio Salma é marca de uma das muitas tribos, de diferentes gerações,
categorias profissionais e classes sociais que modificam os templos do
consumo e por eles são modificados 72.

No Barra Shopping, por exemplo, pelo fato de ser um shopping com 26 anos de

existência, a administração73 teve, e continua tendo, a preocupação de “modernizar” o

shopping, introduzindo novos serviços, eventos, novidades na arquitetura, sem destruir o

perfil do shopping, sem perder a identificação com o público mais antigo. Portanto, o Barra
72
O GLOBO, 4 de Dezembro de 2005 – “Tribos de Shopping” pg.28.
73
“O Barra Shopping esteve presente na própria evolução da Barra” (Entrevista feita pelo autor com a
Administração do Barra Shopping).

166
Shopping vem ao longo dos anos procurando um meio termo entre as modernizações,

inevitáveis para continuar competindo com outros shoppings74 e atrair o público jovem, e a

preservação de suas características originais. A paisagem do Barra Shopping é, então, tanto

identificada pelo o público mais jovem, que freqüenta o shopping há cinco anos, por

exemplo, quanto pelos adolescentes da década de 80, que hoje continuam freqüentando o

Barra Shopping, sem que as mais de duas décadas tenham consumido totalmente suas

lembranças, revividas pelas “rugosidades” do shopping.

As mensagens propagadas pela comunicação institucional e pelo


marketing reafirmam a imagem desse shopping como sendo um espaço-
comunicação, permitindo um contato social diverso em uma circunstância
carregada de elementos do repertório simbólico local (GOTTSCHALL,
2001 pg.175).

Com isso, poderíamos proceder à afirmação de que pelo fato de produzir

identidades, especialmente através da reprodução de elementos simbólicos e por começar a

desenvolver uma certa história com seus freqüentadores mais antigos, o shopping seria,

neste caso, considerado como um lugar pela perspectiva da geografia humanista. “Os

artefatos “pasteurizados”, uniformes e seqüenciais são deslugares para os “outsiders”...mas

lugares para aqueles que freqüentam / experienciam...” (MELLO, 2003, pg.69).

Por outro lado, se apontarmos para o sentido do lugar, e para as dimensões de

autenticidade e inautenticidade trazidas para a geografia por Relph, através da influência de

Heidegger, as conclusões podem-se alterar. O fato de que essas identidades geradas no

shopping e internalizadas por parte de seus freqüentadores se estabelecerem através do

contato com modismos e estereótipos impregnados nas mercadorias, ou por tratarem-se,

muitas vezes, de cópias adaptadas de determinados significados e situações, não “absolve”

74
(SIMMEL,1983) afirma que “A tensão antagônica com seu concorrente afia a sensibilidade do comerciante
para as tendências do público até o ponto da clarividência, em relação a futuras mudanças no gosto, no estilo,
nos interesses do público...” (SIMMEL, Georg apud MORAES FILHO, 1983).

167
o shopping de estar assentado sobre a inautenticidade, o que inviabilizaria a atribuição do

conceito de lugar a este tipo de espaço, mesmo a partir da perspectiva de um freqüentador

mais antigo. Ao contrário, por ainda permanecer como um espaço produzido basicamente

sob os auspícios da inautenticidade, o shopping permaneceria, pela perspectiva humanista,

como um não-lugar.

Todavia, de acordo com a perspectiva de análise que adotamos, advinda da

proposta de conceituação do lugar de Nicholas Entrikin, os significados vão se perdendo e

se refazendo, e com isso podem tornar-se bem diferentes daqueles mais “tradicionais”.

Assim, uma vivência de mais de 20 anos, ainda que em um “espaço globalizado”, faz com

que se estabeleçam ligações afetivas importantes com um determinado ponto da rede

mundial, o que através da combinação daquilo que Entrikin chama de “visão centrada” e

“visão descentrada”, nos autorizaria a chamar o shopping de lugar.

Neste sentido, o depoimento colhido por MAIA (2002) é ilustrativo desta

dimensão “lugarizada” do shopping.

Eu já trabalhei, durante bastante tempo, em shopping center. Minha vida,


nesse período, se restringia àquele espaço. Era lá que eu trabalhava, me
alimentava, me divertia. Lá também estavam meus amigos, aquelas
pessoas que eram importantes para mim. Depois que fui demitida, fiquei
um tempo perdida, tinha um sentimento ruim...Era como se minha vida
tivesse ficado para trás. Hoje, vou pouco ao Barra Shopping, onde
trabalhei, porque a distância é muito grande, mas venho sempre aqui no
West Shopping. Fico, às vezes, horas sentada aqui, perto da praça de
alimentação, sozinha, vendo o movimento. Sinto saudade daquele tempo...
(Entrevistado por Rosemery Maia no West Shopping, in: MAIA, 2002,
pg.300).

Neste caso, para além da padronização ou da artificialidade que podem levar o

shopping a ser tomado como um exemplo de não-lugar, fala-se de um espaço recheado de

significados, lembranças, que foi parte fundamental da vida de uma pessoa e que ficou para

trás. Mais importante ainda é o fato de que essas lembranças, esses significados e a

168
identidade que se constituiu entre o shopping e o indivíduo não foram mediadas pelo

contato com os símbolos artificiais agregados pelas mercadorias, mas através de relações

pessoais afetivas e de atividades cotidianas, que apesar de se realizarem no shopping, não

nasceram tomadas pelo espírito mercadológico-pasteurizado. Aí, o Barra Shopping assume

o papel de um local que fez (e ainda faz) parte de um profundo envolvimento, no qual a

vivência do cotidiano impregnou este espaço de uma história que o transformou em lugar.

Assim, como lembra Relph, aquilo que para um observador de fora, um outsider, é um

espaço indiferenciado, pode ser para outros um espaço dotado de valor, um lugar que tenha

em suas paredes a inscrição autêntica de parte importante do desenrolar da vida do

indivíduo.

Dessa forma, conclui-se que a atribuição dos conceitos de lugar e/ou de não-lugar

aos “novos” espaços do capitalismo, como por exemplo, o shopping center, nos abre uma

série de possibilidades para a compreensão de situações, eventos e épocas que podem nos

desviar da atribuição conceitual feita a priori. Em nosso trabalho, privilegiamos a dimensão

da sociabilidade como uma das organizadoras fundamentais do espaço do shopping e as

implicações desta importância da sociabilidade nestes empreendimentos na (tão comum)

atribuição do conceito de não-lugar ao shopping. No mínimo, esperamos ter contribuído

para deixar claro os perigos que uma rotulação simplista como esta traz às possibilidades de

novas visões sobre o assunto. Na verdade, a falta de compromisso com a discussão

conceitual do lugar e a tentação de seguir a maré que nos leva a “demonizar” espaços como

os shoppings, nos faz apontar a priori, através daquilo que há de mais superficial,

simplesmente o que é ou o que não é lugar. Este tipo de “rotulação”, que vem diminuindo,

ou até mesmo, pode-se dizer, fechando novas perspectivas de análise de espaços como o

shopping, torna-se um grande desafio e nos estimula em um certo sentido, a “remar contra a

169
maré”. E caminhar no “sentido contrário” não significa simplesmente contestar o que já foi

“concluído” sobre o assunto, mas ao menos proceder à tentativa de desenvolver um

trabalho que chame a atenção para a necessidade de termos um olhar mais cuidadoso e uma

perspectiva de análise menos pré-definida. Deste modo, provavelmente estaremos nos

distanciando da criação de rótulos, aparentemente sustentados por conceitos fundamentais

das ciências sociais, os quais acabam servindo para traduzir nossas preferências pessoais;

aquilo que gostamos deve existir, deve ter lugar; aquilo de que não gostamos ou que “não

fica bem” dizermos que gostamos deve ser extinto, não deve ter lugar...

Distante deste tipo de apropriação de conceitos com vistas a externar preferências

pessoais, privilegiamos a conceituação do lugar trazida por Nicholas Entrikin e concluímos

que, de acordo com o modo como as diferentes experiências vividas influenciam e são

influenciadas pela dimensão física do espaço em questão, podemos conceituar o mesmo

espaço (o mesmo shopping) como lugar e como não-lugar. Queremos dizer,

resumidamente, que a dimensão da pasteurização, da indiferença e da “inautenticidade”

pode ser aquilo que mais sobressaia para uma pessoa que pouco freqüente o shopping e se

encontre ali simplesmente para fazer uma rápida compra. Esta rápida compra poderia ser

feita no Rio, em São Paulo, em Madri ou em Nova York, sem que houvesse grandes

diferenciações nas experiências, pois as lojas, o ambiente e as pessoas em volta “são as

mesmas”75. Por outro lado, nem todas as pessoas mantêm este tipo de relação “anônima”

com o shopping center. Aliás, procuramos demonstrar neste trabalho que cada vez mais o

75
Neste capítulo 4, assim como na maior parte deste trabalho, demos maior atenção às possibilidades de
“lugarização” do shopping, pois queríamos exatamente desconstruir a “sentença definitiva” e largamente
difundida do não-lugar como modo de definir os shoppings. Assim, a sociabilidade foi um condutor
fundamental para que conseguíssemos chegar até aqui. Todavia, como no exemplo da “rápida compra”
formulado linhas acima, não negamos que mesmo fazendo parte do cotidiano de milhões de indivíduos
mundo afora, os shoppings apresentem, também, situações que se encaixem nas teorias do não-lugar.

170
shopping faz parte dos espaços do cotidiano das pessoas, seja como centro de compras,

lazer e sociabilidade, seja como local de trabalho. Por ter se impregnado à vida urbana, este

tipo de equipamento, a princípio indiferenciado, vem ganhando contornos que permitem

aos seus freqüentadores traçar diferenciações fundamentais e estabelecer, nestes lugares,

experiências distintas.

171
Considerações Finais

O conceito de não-lugar e as diversas discussões e contendas derivadas de sua

aplicação ainda carecem de maiores reflexões. Neste trabalho, tentamos proporcionar uma

contribuição para o aprofundamento dessa discussão teórica, que por sua vez possui uma

estreita ligação com o conceito lugar, um dos conceitos-chave da geografia, e que também

está longe (ainda que em proporção muito menor) de ocupar, na prática, uma posição de

destaque nas reflexões dos geógrafos. Neste sentido, concluímos que há correntemente uma

precipitação na utilização da idéia do não-lugar. Simplesmente estipular quais os ambientes

que são e quais os que não se enquadram como não-lugar, e promover assim uma rotulação

de certos espaços, deixa escapar a complexidade que envolve produção desses ambientes.

Quando nos referimos à “produção desses ambientes”, nos remetemos ao conceito

de espaço, e aos fatores que compõem a produção do ambiente social, tais como as noções

de forma e de conteúdo, idéias tão valiosas explicadas magistralmente por autores como

Henri Lefébvre e Milton Santos. Assim, os espaços planejados, “eficientes” e objetivos,

com suas formas homogêneas, podem nos chamar a atenção, em princípio, para a

possibilidade de um enfraquecimento do sentido de lugar e da própria experiência que este

ambiente proporciona. A diversidade de formas é minimizada em prol da eficiência dos

negócios daqueles que manejam o capital na cidade, um processo de âmbito global,

verificado de modo mais claro nas metrópoles.

Todavia, ainda que a forma componha uma dimensão fundamental do espaço, e

tenha, portanto, influência direta no comportamento das pessoas, e na vivência do ambiente

de modo geral, ou seja, no conteúdo, não se pode esquecer da importância, não só, das

experiências que se desenrolam no cotidiano desses espaços, mas também de como as

172
pessoas que vivem, ou simplesmente passam, “vêem” esses espaços. Ou seja, a objetividade

da forma, e mesmo as mudanças que a princípio ela promove nos conteúdos, influenciam,

mas não determinam o modo como um ambiente é vivido e pensado pelos indivíduos.

Neste caso, as noções de “insider” e “outsider” que vimos em outro momento deste

trabalho, o grau de envolvimento que se tem com o ambiente é fundamental para a

ampliação da discussão. Nos leva a refletir sobre a gama de possibilidades de relações

afetivas e históricas que mesmo os “ambientes pasteurizados” podem gerar. Quem vai dizer

a um funcionário de um aeroporto com mais de trinta anos de “casa”, que este espaço é

igual no mundo inteiro e que essa impossibilidade de diferenciação nos leva a afirmar que

estamos diante de um local sem memória, com o qual não conseguimos estabelecer nenhum

grau de afetividade ou identificação. Para a experiência do viajante, o aeroporto talvez não

consiga, realmente, despertar sua atenção, ou sua afetividade, tanto pela própria

característica da experiência que é apenas de passagem, como pelo fato de ser um espaço

montado a partir de planos muito parecidos, e difundidos globalmente. No entanto, fica

clara a diferença que não podemos deixar de considerar, quando nos remetemos à

experiência do funcionário.

Com isso, entendemos que mais do que determinar a condição de

“inautenticidade” de um local apenas por sua forma, o não-lugar pode nos ajudar a

compreender aspectos importantes de determinados espaços, que por apresentarem uma

clara padronização de sua forma, acabam por si só limitando ao mínimo a diversidade de

experiências. Todavia, o não-lugar não abrange todas as perspectivas que esses espaços

pretensamente padronizados apresentam para a experiência. É imprescindível lembrar que

dependendo do “papel” que exercemos nesses espaços, podemos reconhecer diferenças

naquilo que a princípio seria indiferenciado, e manter afetividade com um aeroporto ou

173
com um shopping específico. Assim, há que se ter cuidado na aplicação do conceito de não-

lugar, para que possamos ampliar a análise de ambientes planejados (que proliferam em

ritmo acelerado), e não aprisionar a reflexão em um rótulo que transforma a análise em uma

identificação simplista e superficial daquilo que se encaixa ou não no rótulo.

Foi justamente esta necessidade de atribuir o mesmo peso na análise às idéias de

forma e conteúdo, e de objetividade e subjetividade, que nos fez optar pela utilização, de

modo mais amplo, da abordagem do conceito de lugar trazida por Nicholas Entrikin. Com

esta perspectiva do lugar pudemos enxergar de modo mais claro as ambigüidades dos

processos que têm se verificado nos shoppings, e que, portanto, nos impelem a necessidade

de rever o modo como classificamos e entendemos este empreendimento. Nesta caminhada,

registramos aqui a importância para este trabalho de nossa pesquisa sobre o conceito de

lugar. Especialmente no que se refere à abordagem da corrente humanista à cerca do lugar,

que através de suas bases filosóficas abriu caminho para discussões como a do não-lugar e

para que estudiosos como Nicholas Entrikin pudessem avançar em termos teóricos.

É precisamente esta publicização progressiva dos shoppings, sobre a qual tanto

discutimos, catalisada de modo assustador através da sociabilidade, que nos faz entender o

shopping como mais do que um centro comercial, ou um espaço hermético-exclusivo dos

setores mais abastados da sociedade, ou mesmo, como um espaço indiferenciado. Da

mesma forma, nossa proposta não foi estudar o shopping como um exemplo interessante

(que é) das “novas” tendências e contradições do espaço urbano, mas sim estudar o próprio

espaço do shopping de hoje, e questionar a validade de algumas atribuições conceituais que

parecem estar em desacordo com a vida urbana e os shoppings de hoje. Foi neste sentido,

que o não-lugar se apresentou como uma via interessante para tentarmos demonstrar a

necessidade de um cuidado maior na análise de ambientes que vêm se tornando mais

174
complexos em diversos sentidos, principalmente enquanto espaços sociais. Por outro lado,

não deixamos de lembrar que apesar de sua crescente publicização e até popularização, os

shoppings não primam pela “igualdade” na apropriação de seus espaços, e que a segregação

e os diversos instrumentos de intimidação e coerção permanecem sendo aperfeiçoados e

utilizados sobre os “indesejáveis”. Também, entendemos que a perspectiva da

“pasteurização” do espaço compõe uma parte significativa da própria constituição dos

shoppings76, o que, no entanto, não nos autoriza a conclusões automáticas sobre as

experiências e situações vividas nesses espaços, nem muito menos nos fornece o

instrumental necessário para classificarmos o shopping como lugar ou não lugar, por

exemplo.

…among the kinds of place we occupy most in the modern world are
those of consumption; and these pose a fundamental geographical
problem, because consumption creates places that have the appearance of
being unconnected by anything else in space. This spatial dissociation or
disorientation allows us to think we are both in place and in no place
(SACK, 1992, pg.84).

Neste sentido, o shopping de hoje, no qual a sociabilidade77 desempenha um papel

importantíssimo na própria arrumação do espaço, visando, é claro, a ampliação do

consumo, compõe uma parte cada vez mais importante do cotidiano de milhões de pessoas,

possibilitando uma diversidade considerável de experiências para muitos de seus

freqüentadores. Mesmo com a instabilidade e a superficialidade do comércio, das imagens

idealizadas, das construções pasteurizadas, que fazem do shopping, especialmente para

aqueles que não são freqüentadores, um não-lugar, identidades e afetividades são

76
Basta observarmos as semelhanças na lógica de sua montagem nos mapas em anexo, que apresentam
espaços de diversos shoppings.

77
Ainda que possamos qualificar a sociabilidade nos shoppings de “instrumental”, pelo fato de em grande
medida constituir-se em uma estratégia da administração para ampliar o tempo de permanência e o consumo,
para os freqüentadores a sociabilidade é dotada de um fim em si mesma.

175
produzidas e estabelecidas nos shoppings. Com certeza, para uma parcela importante dos

milhões de assíduos freqüentadores de shopping centers existem distinções muito claras

entre os empreendimentos, o que por conseguinte gera determinadas preferências e

experiências diferenciadas. Assim, nem todos conseguem “...entender por que sentar num

banco no shopping possa ser mais artificial do que sentar num banco no parque”

(RYBCZYNSKI, 1995, pg.197).

Concluímos, então, que a possibilidade de se pensar o shopping como um lugar

traduz em grande medida processos e vivências cada vez mais comum em diversas

sociedades urbanas mundo afora. O shopping apresenta uma ampla possibilidade de

análises e reflexões, que podem trazer contribuições importantes para a compreensão da

sociedade mundial atual e sua relação cada vez mais estreita com (a “espetacularização”

do) o consumo. Como foi possível observar em alguns momentos deste trabalho, o

shopping se apresenta no limiar da sociabilidade e do consumo, do público e do privado, do

lugar e do não-lugar e, portanto, nos convida a refletir sobre diversas inquietudes muito

comuns no período em que vivemos hoje, ou seja, o momento avançado da globalização.

Evidentemente, longe de esgotar as possibilidades de análise, e diante do caminho

árduo que escolhemos, seja quando falamos do shopping, da sociabilidade ou do não-lugar,

consideramos que este trabalho atingiu seus objetivos na medida em que a quase ausência

de discussões que tratem destes temas na geografia, paralelamente à importância que eles

podem ter no caminho de diversos questionamentos quanto à cidade, o homem e o espaço,

foram os motivos que instigaram o autor a tentar promover um trabalho que conseguisse

reunir esses temas de modo a produzir uma reflexão geográfica.

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199
200
Anexo 17 - Mapa da distribuição dos shoppings na cidade do Rio de Janeiro

Anexo 17 - Mapa da

201
Anexo 18 – Mapa da distribuição dos shoppings no estado do Rio de Janeiro

202
Anexo 19 - Entrevista com Freqüentadores

• Para você, o que leva as pessoas a freqüentarem shopping centers?


• Quais os shoppings que você costuma freqüentar? Por que?
• Você vê alguma relação entre este shopping e o bairro em que ele se encontra?
• Quais os principais motivos (em ordem de importância) de suas visitas ao
shopping?
• Com que freqüência você vai ao shopping?
• Quanto tempo você costuma ficar no shopping?
• O que os shoppings trazem de positivo e de negativo para a cidade?
• Há algo no shopping que te incomode?

203
Anexo 20 - Questionário para a Administração do Barra Shopping

• Qual o perfil do freqüentador?


• O que mais os atrai?
• Que tipos de serviços são prestados no shopping?
• O shopping possui uma programação fixa de eventos? Quais são esses eventos?
• Além das lojas mais importantes, há outros tipos de ancoragem no shopping?
• A partir de quando o lazer e os serviços tornaram-se fatores fundamentais no
mix do shopping?
• Passear, marcar um encontro, namorar no shopping, tornou-se parte da vida dos
freqüentadores. Como vocês recebem o fato de que essas atividades são cada
vez mais freqüentes no interior do shopping?
• Há um perfil que defina, de modo geral, o(s) indivíduo(s) que costuma(m)
causar problemas à segurança do shopping?
• Quais são as principais estratégias utilizadas pela segurança?
• Os agentes de segurança são terceirizados?
• Como o shopping se situa no contexto de violência da cidade?
• Como a administração agiu diante das manifestações dos “sem teto” em 2001?
• Ainda existem semelhanças entre o Barra Shopping de hoje e o Barra Shopping
de 1981 (inauguração)?
• Qual a relação do shopping com o bairro em que se situa?
• O shopping é um espaço público, ou é um espaço privado?

204
Anexo 21 - Questionário para a Administração do Shopping Iguatemi

• Qual o perfil do freqüentador?


• O que mais os atrai?
• Que tipos de serviços são prestados no shopping?
• O shopping possui uma programação fixa de eventos? Quais são esses eventos?
• Além das lojas mais importantes, há outros tipos de ancoragem no shopping?
• A partir de quando o lazer e os serviços tornaram-se fatores fundamentais no
mix do shopping?
• Passear, marcar um encontro, namorar, tornaram-se parte da vida dos shoppings.
Como vocês recebem o fato de que essas atividades são cada vez mais
freqüentes no interior do shopping?
• Há um perfil que defina, de modo geral, o indivíduo que costuma causar
problemas à segurança do shopping?
• Quais são as principais estratégias utilizadas pela segurança?
• Os agentes de segurança são terceirizados?
• Como o shopping se situa no contexto de violência da cidade?
• Qual a relação do shopping com o bairro em que se situa?
• O shopping é um espaço público, ou é um espaço privado?

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