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Bertolli Claudio Elementos Fundamentais Jornalismo Cientifico
Bertolli Claudio Elementos Fundamentais Jornalismo Cientifico
científico
Claudio Bertolli Filho∗
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Elementos para a prática do jornalismo científico 3
com isso favorecer que parcelas de saberes contato com as fontes, a obtenção e checa-
restritos tornem-se acessíveis e inteligíveis gem das informações e a formatação do texto
para um público não especializado (Destá- noticioso, com o emprego de um vocabulário
cio, 2002:94). Outro grupo de pesquisadores de fácil compreensão são algumas das tarefas
prefere centrar as discussões não na questão requeridas do jornalista, qualquer que seja a
da linguagem, mas sim na análise dos fins especialidade.
almejados pela tarefa divulgadora: Tais elementos delimitam o que aqui se
entende por jornalismo científico: um pro-
“A divulgação científica radicou-se como duto elaborado pela mídia a partir de certas
propósito de levar ao grande público, regras rotineiras do jornalismo em geral, que
além de notícias e interpretações do pro- trata de temas complexos de ciência e tec-
gresso que a pesquisa vai realizando, as nologia e que se apresenta, no plano lingüís-
observações que procuram familiarizar tico, por uma operação que torna fluída a lei-
esse público com a natureza do trabalho tura e o entendimento do texto noticioso por
da ciência e a vida dos cientistas. Assim parte de um público não especializado. As-
conceituada, ela ganhou grande expan- sim sendo, pensa-se como o autor anônimo
são em muitos países, não só na imprensa do texto Jornalismo científico (2004) que,
mas sob forma de livros e, mais refinada- por exemplo, em uma matéria sobre, Men-
mente, em outros meios de comunicação deleiev e a concepção da tabela periódica de
de massa” (Gonçalves, 1998:78). elementos assinada por um químico e profes-
sor universitário e publicada em um jornal ou
Estabelecidas as possíveis conceituações revista de penetração popular, não é um pro-
da divulgação científica, torna-se fundamen- duto típico do jornalismo científico, apesar
tal então buscar-se o clareamento sobre a de enquadrar-se como item de divulgação ci-
especificidade do jornalismo cientifico no entífica. Isto porque o texto assinado pelo ci-
rol das iniciativas divulgadoras em ciência. entista pode não ter obedecido os protocolos
Parte-se do princípio que o jornalismo cien- próprios da escrita jornalística.
tífico é um gênero jornalístico, constatação Ainda é o autor do artigo acima mencio-
que parece óbvia, mas cujos desdobramentos nado que observa:
nem sempre são suficientemente discutidos
pelos pesquisadores acadêmicos e nem pe- “O Jornalismo Científico, que deve ser
los próprios profissionais da comunicação1 . em primeiro lugar Jornalismo, depende
A condição de gênero implica que o jorna- estritamente de alguns parâmetros que ti-
lismo científico atua, em princípio, em con- pificam o jornalismo, como a periodici-
formidade com os procedimentos rotineiros dade, a atualidade e a difusão coletiva.
de qualquer outra expressão jornalística. O O Jornalismo, enquanto atividade profis-
sional, modalidade de discurso e forma
1
- No campo da comunicação, existem autores de produção tem características próprias,
que preferem distinguir a prática do jornalismo cien-
gêneros próprios e assim por diante”.
tífico daquela que divulga notícias sobre tecnologia.
Sobre esta discussão, veja-se o instigante artigo de Vi- Buscando oferecer uma versão conclusiva
nicius Romanini (2005).
sobre este debate, Bueno (1984:11) oferece
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uma possível definição sintética de jorna- Para a lingüísta Lílian Zamboni tal afirma-
lismo científico: ção se mostra errônea, advogando que o dis-
curso de divulgação científica não se apre-
“Um caso particular de divulgação ci- senta como “um discurso da ciência degra-
entífica e [que] refere-se a processos, dado”, mas sim que se constitui em ou outro
estratégias, técnicas e mecanismos para e autônomo gênero textual, essencialmente
veiculação de fatos que se situam no diferenciado do discurso originário, isto é,
campo da ciência e da tecnologia. De- do texto que lhe deu origem.
sempenha funções econômicas, político- Acrescenta a mesma autora:
ideológicas e sócio-culturais importantes
e viabiliza-se, na prática, através de um “O que defendo, portanto, é a idéia de
conjunto diversificado de gêneros jorna- que o discurso de divulgação científica
lísticos”. constitui um gênero de discurso cientí-
fico, resultado de um efetivo trabalho de
formulação discursiva, no qual se revela
2 A linguagem do jornalismo
uma ação comunicativa que parte de um
científico ‘outro’ discurso e se dirige para ‘outro’
Antes da abordagem das estratégias mobi- destinatário (Zamboni, 2001, p. xviii-
lizadas para a produção da notícia, torna-se xix).
necessário discutir as relações entre o jorna-
lista científico e a linguagem, sendo freqüen- Com esta afirmação, a autora invocada
tes as análises que focam o jornalista como mostra-se tributária dos posicionamentos as-
um profissional que desempenha a função sumidos por Maingueneau (1989) e Authier-
de mediador entre o discurso produzido pela Revuz (1998) ao reiterar que o discurso di-
ciência e o público leigo. Neste sentido, vulgador da ciência não é uma adaptação do
são constantes as referências bibliográficas discurso-fonte, mas sim algo novo e origi-
que apontam os comunicadores sociais como nal. Por outro lado, Zamboni também se re-
agentes de um trabalho com as palavras co- fere aos receptores do discurso, ressaltando
mumente denominado de “tradução inter- a diferença de alvo entre as duas falas: o
lingüística” (Pereira, 2002). cientista dirige-se aos seus pares, enquanto
O empenho em produzir textos endereça- que o jornalista busca comunicar-se com o
dos ao “leitor comum” remete os questio- “público leigo” que, para o também lingüista
namentos para uma das mais discutíveis e José Horta Nunes (2003, p. 44-45), corres-
corriqueiras observações sobre a prática do ponde à imagem idealizada de “um homem
jornalismo científico: é o profissional atu- aberto, curioso pelas ciências, inteligente e
ante nesta área apenas um “tradutor” (esse consciente de sua distância em relação aos
é o termo comumente utilizado pela maior especialistas”.
parte das análises) do discurso científico para Cabe ressaltar ainda que, para melhor co-
um vocabulário inteligível pelo homem do municar os fatos da ciência, os jornalistas
povo? (Praticco, 2003). recorrem a múltiplas estratégias permitidas
pela linguagem, inclusive uma profusão de
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metáforas e analogias. O emprego de tais tido, é comum deparar-se com matérias que,
recursos são, via de regra, execrados pe- pelo uso de jargões próprios de uma espe-
los cientistas que, com freqüência, afirmam cialidade científica ou ainda pela recorrên-
que “não declararam” aquilo que aparece na cia a termos por demais genéricos, resultam
imprensa como sendo fruto de seu depoi- em notícias de teor duvidoso, se não total-
mento e, mais ainda, que o uso de metáfo- mente equivocado. Fácil de serem localiza-
ras e analogias pode levar a erros e simpli- das na mídia e ao mesmo tempo difíceis de
ficações interpretativas de suas idéias e, em serem superadas pelos divulgadores científi-
resultado, deporem contra o próprio entre- cos, essas ocorrências mostram-se prolíficas,
vistado e a equipe de pesquisadores da qual mesmo quando o texto é escrito por um es-
faz parte. Na verdade, como expus em ou- pecialista altamente treinado no setor jorna-
tro texto (Bertolli Filho, 2000), tal como as lístico e num determinado campo científico.
ideologias, recursos de linguagem como os Marcelo Gleiser, físico brasileiro radicado
mencionados se tornam realmente eficientes nos Estados Unidos, onde tem obtido algum
quando o enunciador não mais guarda cons- destaque como docente de física teórica, as-
ciência de seu uso. Tomando-se como exem- sina uma coluna registrada como de jorna-
plo o discurso da imunologia, há mais de lismo científico em um dos principais jornais
um século os especialistas vêm utilizando brasileiros. Em seus textos, Gleiser tem op-
um vasto arsenal de metáforas e isto se tor- tado por focar temas que privilegiam o apelo
nou tão corriqueiro naquela área do saber popular, elaborando matérias que se caracte-
que, sem qualquer constrangimento, muitos rizam por tal simplificação do campo concei-
pesquisadores não mais percebem o seu em- tual da ciência, que frequentemente incorre
prego, notando a presença de tal dispositivo em imprecisões inadmissíveis para um lei-
provisório da linguagem apenas nos textos tor com conhecimentos medianos. Como vá-
e falas de outros locutores (Löwy, 1996). rios outros profissionais que escrevem arti-
Frente a isto, acredita-se serem frágeis as gos para jornais e revistas, Gleiser emprega
argumentações que buscam desqualificar a como sinônimos conceitos distintos e caros
importância do jornalismo científico devido à Física, mencionando-se como exemplo os
as estratégias discursivas que comumente os conceitos de matéria e de massa (Martins,
comunicadores lançam mão. 1998; Perez, 2003).
Outro ponto que está articulado com a
questão da linguagem do jornalismo cientí-
3 A produção da notícia
fico localiza-se no afã do divulgador em esta-
belecer sintonia com um público que o emis- científica
sor nutre uma imagem demasiadamente im- Estabelecidas as possíveis definições e os di-
precisa, quer o considerando com a mesma lemas de linguagem próprios do jornalismo
capacidade que o locutor para a intelecção de científico, o passo seguinte refere-se aos cri-
assuntos geralmente complexos, quer como térios adotados pelas empresas de comuni-
alguém destituído de potencialidade para en- cação e por seus funcionários para seleciona-
tender o vocabulário básico da ciência ou rem, dentre o grande número de informações
mesmo da língua do seu país. Neste sen-
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geradas pelas atividades científicas, aquelas de comunicação concede aos seus funcioná-
que integrarão a pauta e que serão transfor- rios. Hiller Krieghbaum (1970), Warren Bur-
madas em notícias a serem veiculadas. kett (1990) e Alton Blakeslee (1996), jorna-
Muitos são os elementos interferentes listas e acadêmicos que assinaram obras fun-
neste processo, desde as cobranças sociais damentais sobre o jornalismo científico, es-
em relação à mídia e a sensibilidade e co- tipularam uma extensa lista de critérios que
nhecimentos do editor responsável pelo se- devem ser observados no processo de sele-
tor até a linha política assumida pelo órgão ção das informações, produção e publicação
de comunicação e o poder das instituições de uma notícia científica.
científicas em agendarem os temas explora- Os principais critérios indicados por esses
dos pelos meios de comunicação de massa. autores são os seguintes:
Em continuidade, os jornalistas parecem nu-
trir um certo preconceito em relação a alguns 1. Senso de oportunidade: quando assun-
setores da ciência, imitando o que faziam os tos já “vencidos”, isto é, que ocorreram
pais do positivismo mecanicista, ao não con- num passado próximo ou distante, vol-
siderarem as Humanidades como expressões tam a despertar o interesse porque um
científicas típicas, por estas não serem con- cientista apresentou no âmbito de um
sideradas produtoras de verdades universais congresso um relatório que invoca um
e nem passíveis de comprovações incontes- acontecimento ou uma descoberta an-
tes (Joelston et, al, 1991:2). Tornou-se ponto tiga ou quando um material, apesar de
comum na mídia aceitar que as matérias inte- antigo, só agora deixou de ser sigiloso.
grantes das revistas, cadernos e seções de ci- 2. “Timing”: ocorre quando um evento
ência devem se reportar quase que exclusiva- externo aos novos acontecimentos ci-
mente às chamadas ciências básicas (Física, entíficos chama a atenção pública.
Química e Biologia) e às ciências aplicadas Exemplifica-se com o acidente que des-
(Engenharia, Medicina, Agronomia, dentre truiu o foguete lançador de satélite bra-
outras), eliminando ou minimizando as pos- sileiro, ocorrido em meados de 2003;
síveis matérias voltadas para as ciências hu- nos dias seguintes ao evento, diver-
manas (Melo, 1985:140). A estas últimas sos jornalistas científicos empenharam-
são reservados outros espaços da mídia, tais se em levar ao público um histórico
como os programas de variedade na televisão do programa aeroespacial brasileiro,
e no rádio e os cadernos culturais dos jornais comparando-o com o mesmo setor em
e das revistas. outros países, notadamente os Estados
Apesar disso, a abundância de informa- Unidos.
ções que podem ser colhidas na própria so-
ciedade na qual o profissional está inserido e 3. Impacto: quando se percebe que um de-
o caudaloso material que chega a ele através terminado tema, mesmo que não apre-
dos contratos com agências noticiosas inter- sente novidades, pode atrair a atenção
nacionais impõem a existência de outros cri- de um grande número de pessoas, o
térios que podem se tornar rígidos, depen- que acontece especialmente quando o
dendo do grau de autonomia que a empresa assunto focado é o de medicina e saúde.
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é certo que, na semana em que se re- núcia o campo conceitual utilizado por
aliza o encontro anual da Sociedade cada um dos pesquisadores em litígio.
Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), alguns assuntos que tocam di- 11. Necessidade de sobrevivência: maté-
retamente o cotidiano nacional, como rias que abordam temas que criam a
as conseqüências climáticas do desma- sensação que a informação é útil para
tamento da Amazônia, os efeitos da po- a saúde e o bem-estar físico e mental
luição nas áreas metropolitanas e os ris- dos leitores são rotineiramente incorpo-
cos de o país ser palco da gripe do radas à pauta do jornalismo científico.
frango resultam em matérias oferecidas Os debates em torno dos riscos de con-
pela mídia que contam com uma subs- sumo de produtos transgênicos ou o ta-
tancial recepção popular. bagismo são exemplos atuais que garan-
tem a atenção pública.
9. Variedade e equilíbrio: cada programa,
sessão, suplemento ou encarte científico 12. Necessidades culturais: é comum os
deve contar com matérias variadas ou leitores se interessarem pela consulta
com a multiplicação de enfoques sobre a matérias que falam sobre o “es-
um mesmo tema para não alimentar a tilo de vida”, seus benefícios e ris-
impressão de monotonia e gerar tédio cos para, a partir disto, defrontarem-
entre os leitores/espectadores que, se se com novas opções comportamen-
assim se sentirem, irão abandonar o as- tais ou ampliar seus recursos de “auto-
sunto. Neste encaminhamento, os espa- reconhecimento”. Neste setor, as emo-
ços impressos destinados à ciência ten- ções e a sexualidade ganham destaque
dem a estampar lado a lado notícias de no jornalismo científico, que busca es-
diferentes setores do saber, por exem- clarecer, por exemplo, se a paixão ou
plo, genética e astronomia. a homossexualidade são motivadas por
elementos de dimensões biológica, psi-
10. Conflito: situações de confronto tam- cológica, pela combinação de ambas ou
bém chamam a atenção do leitor, prin- ainda por outros fatores.
cipalmente no campo científico que, du-
rante um longo período, adotou a ima- 13. Necessidade de conhecimento: admite-
gem idealizada de uma atividade na se que a maior parte do público cultiva a
qual seus profissionais alimentam idéias seu modo uma “paixão pelo saber”, isto
harmônicas e convergentes. Na mí- é, um impulso em se inteirar das “coisas
dia, tal recurso ganha destaque princi- da ciência”, para se sentir atualizado e
palmente quando ocorre um confronto sintonizado com o mundo em que vive.
ético entre cientistas; há algum tempo Neste sentido, os indivíduos encontram-
matérias sobre acusação de plágio en- se motivados, em princípio, a consultar
tre biólogos que estudavam assuntos se- qualquer matéria científica.
melhantes levou os meios de comunica-
Claro está que a maior parte dos tópi-
ção de massa a discutirem com certa mi-
cos aqui discriminados constitui-se em es-
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tratégias comuns a toda a prática jornalís- tas norte-americanas que divulgam matérias
tica, de cunho científico ou não. Além disto, sobre a ciência; a partir dela, constatou-se
muito outros fatores poderiam se relaciona- que 2/3 dos entrevistados acreditavam que os
dos, apesar de considerar-se os mencionados homens e os dinossauros viveram no mesmo
como sendo os mais destacados. período e também que há um lado oculto da
lua que nunca recebe os raios solares. Tais
erros, por óbvio, influenciam a elaboração
4 Os percalços do jornalismo
das pautas e os conteúdos veiculados pela
científico mídia em que atuam esses profissionais.
A consulta a uma copiosa produção intelec- No Brasil, acompanhando a tendência in-
tual tematizada pelo jornalismo e pelo jorna- ternacional, a precariedade da capacitação
lista científico chama a atenção para a cir- acadêmica dos jornalistas que atuam no
cunstância da constância de observações re- campo científico é uma realidade. Como já
ferentes às dificuldades do exercício desta foi ressaltado, raras são as escolas de co-
especialidade da comunicação. Nenhum ou- municação que, no nível de graduação, ofe-
tro gênero ou confluência de gêneros jorna- recem a disciplina de jornalismo científico,
lísticos ganhou ápodos tão negativos ou críti- mesmo em caráter optativo. Foi somente na
cos quanto a expressão focada neste estudo. década passada que surgiram os cursos de
Assim sendo, o objetivo deste item é colocar especialização que, mesmo assim, ainda são
em tela as principais dificuldades indicadas escassos frente à demanda dos meios de co-
pela literatura sobre a prática do jornalismo municação e o interesse do público.
científico. Ainda com poucas exceções, as empresas
Eis as questões centrais destacadas sobre de comunicação, comumente contratam jor-
o assunto: nalistas (às vezes nem isso!) novatos e com
pouca ou nenhuma experiência no setor para
1. o analfabetismo científico: são comuns produzir matérias centradas no jornalismo
os registros que versam sobre o escasso em- científico. Carlos Fausto, que atualmente
penho das universidades em prepararem os é professor no Programa de Pós-Graduação
estudantes para a militância na área da divul- em Antropologia Social do Museu Nacio-
gação científica. O jornalista não foge a esta nal da Universidade Federal do Rio de Ja-
regra e, se é comum invocar-se o despreparo neiro, conta sua iniciação no jornalismo ci-
do público para entender os fatos e os concei- entífico como autor de um suplemento sobre
tos empregados pelos cientistas, é necessário Einstein e a Teoria da Relatividade. Seu de-
se ressaltar que os próprios profissionais da poimento documenta exemplarmente o que
comunicação tendem a demonstrar o mesmo ainda acontece na maior parte da imprensa
ou até superior (des)conhecimento. brasileira:
A multiplicação de erros e “barrigas”
destaca-se entre editores, redatores e jor- “Há quase 20 anos, quando eu era es-
nalistas. Jon Franklin (2003) desenvolveu tudante de Ciências Sociais na Universi-
uma pesquisa realizada nos jornais e revis- dade de São Paulo, surgiu-me uma opor-
tunidade de trabalho, com free-lance.
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torna-se obrigatória a referência à “barriga” cro das companhias que lançam no mercado
que ficou popularmente conhecida como uma grande variedade de produtos tecnológi-
“caso boimate”, que serve exemplarmente cos. A maior parte destas instituições conta
para ilustrar o desconhecimento de boa com profissionais da área de Relações Públi-
parte dos jornalistas científicos e a omis- cas e Assessoria de Imprensa, além de seus
são das empresas de comunicação. Em próprios cientistas submetidos a cursos rápi-
1987, celebrando o dia primeiro de abril, dos de comunicação para melhor se relaci-
mundialmente conhecido como “o dia da onar com os políticos e com a mídia. As-
mentira”, uma revista européia inventou sim, tanto as universidades quanto as empre-
a notícia de que, na Alemanha, os biólo- sas envolvidas com a produção de terapêuti-
gos Harry McDonald e William Wimpey cas e outros itens vitais para a saúde e o bem-
(atentem para os sobrenomes dos cientistas, estar da população assumem assim o mesmo
criados pela fantasia de um editor) haviam comportamento de qualquer outra empresa
conseguido combinar os genes de boi com privada, “vendendo” uma imagem altamente
os do tomate, criando o “boimate”, um idealizada e tributária da lógica de mercado
vegetal que tinha o gosto de churrasco. A (Rego, 1986: 159-160).
falsa notícia, acompanhada de um diagrama Claro está que a maior parte das organi-
ilustrativo de como o tomate transgênico zações científicas e tecnológicas atuam no
foi produzido em laboratório, foi publicada contexto do e para o capitalismo, encon-
como fato verdadeiro pela revista Veja, o trando nos jornalistas pouco preparados os
semanário de maior circulação no Brasil. sujeitos ideais para encantar com mensa-
No texto, o periódico informou com alarde gens que fogem à realidade, transformando-
aos seus leitores que “a experiência dos os em porta-vozes não oficiais das necessi-
pesquisadores alemães (...) permite sonhar dades institucionais e das ambições empre-
com um tomate do qual já se colha algo sariais junto à estrutura política e à socie-
parecido com um filé ao molho de tomate”. dade abrangente (Nelkin, 1987). Origina-se
Constatada a gafe cometida pela pressa de desta operação a veiculação de “informações
veicular a sensacional notícia sem antes desqualificadas” que apresentam enfermida-
checar as fontes, outros órgãos da mídia e des inexistentes e produtos miraculosos, re-
mesmo alguns leitores da revista criaram comendando serviços e mercadorias de alto
piadas irônicas sobre a matéria, sendo que, custo e baixa ou nenhuma eficiência (Bueno,
por algumas semanas, a Veja mostrou-se 2001; Leite, 2006).
reticente em admitir o próprio erro (Bueno, Os jornalistas mais experientes e que, por
2003a). isso, tornam-se mais difíceis de sedução,
são alvos de requintadas artimanhas de ade-
2. os interesses das empresas e dos insti- são aos interesses empresariais, inclusive su-
tutos de pesquisa: na lógica do capitalismo borno. O contato com alguns jornalistas per-
atual, o marketing constitui-se em elemento mitiu saber que algumas empresas produto-
fundamental de legitimação das atividades ras ou comercializadoras de tecnologia ten-
desenvolvidas pela ciência (sobretudo as fi- tam aliciar os profissionais da comunicação
nanciadas com o dinheiro público) e do lu- com praticamente tudo, de viagens, hospe-
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dagens em caros hotéis a coleções de livros, lado, é freqüente ouvir da boca dos pesquisa-
brindes valiosos e até mesmo com o ofere- dores denúncias sobre a falta de conhecimen-
cimento de companhia sexual. Um caso ex- tos básicos dos jornalistas, que tais profis-
tremo de tentativa de declarada corrupção foi sionais fazem perguntas despropositais, que
denunciado, na década de 1960, por Hillier os comunicadores tomam muito tempo dos
Krieghbaum: o representante de uma em- pesquisadores com suas perorações e, sobre-
presa de medicamentos que havia desenvol- tudo, que a mídia produz matérias que dis-
vido uma nova droga que já contava com vá- torcem o que foi declarado pelos cientistas.
rios similares no mercado, entrou em con- Para evitar mal-entendidos, é comum os
tato com um reputado jornalista científico pesquisadores solicitarem aos repórteres que
para que este, mediante pagamento, redi- lhes enviem o texto produzido sobre o as-
gisse uma matéria e a fizesse ser publicada sunto que discutiram antes que ele seja pu-
no jornal em que trabalhava, informando no blicado mas, o curto prazo de tempo imposto
corpo da matéria os benefícios para a saúde pelas redações dificulta que isto ocorra, ge-
e o nome comercial do novo quimioterá- rando situações que são interpretadas pe-
pico. Além disso, caso o artigo fosse re- los entrevistados como descaso ou prepotên-
publicado ou mesmo mencionado em outros cia dos profissionais da mídia. Além disto,
meios de comunicação, o jornalista ganharia tornou-se comum também a crítica que os
ainda mais dinheiro. meios de comunicação não cumprem seus
Assim teve prosseguimento o diálogo en- compromissos para com a ciência, ao não
tre o jornalista e o representante da empresa atuarem como elo de ligação entre as des-
farmacêutica: cobertas científicas e as empresas que pode-
riam utilizar as propostas criadas nos labo-
“No total isso [a proposta de corrupção]
ratórios (Leite, 2003). Há casos mesmo de
chegaria a 17.000 dólares – como mental-
instituições que proíbem seus pesquisadores
mente calculei – mas aparentemente ha-
de concederem entrevistas, indicando que to-
via alguma coisa mais, porque quando
das as informações solicitadas pelos órgãos
ele [o corruptor] terminou sua explica-
de comunicação devem ser solicitadas junto
ção, perguntou: ‘Por que está me olhando
a um funcionário do departamento de Rela-
com tanto desprezo?’ Ao tentar explicar-
ções Públicas.
lhe o mais gentil e cuidadosamente que
Em outra via, é comum também ouvir-se
pude porque eu não queria tomar parte
queixas dos jornalistas em relação aos ci-
nesse embuste, disse-lhe apenas que eu
entistas. As mais freqüentes delas referem-
gostaria de poder dormir à noite. Ele
se às dificuldades de agendamento de en-
respondeu-me de modo curioso. Disse:
trevistas com os pesquisadores mais desta-
‘Eu bem que gostaria”’ (Krieghbaum,
cados e que, quando estas ocorrem, o en-
1970: 128-130).
trevistado monopoliza a palavra, pouco le-
3. cientistas x jornalistas: um dos fatos vando em consideração as perguntas que lhe
mais corriqueiros na atividade do jornalismo são dirigidas, que não abrem mão de expli-
científico é o confronto entre aquele que pro- cações complexas e do uso de terminologias
duz e aquele que divulga ciência. Por um científicas que não são elucidadas no mo-
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mento oportuno e até mesmo de machismo cientistas sobre a infalibilidade de uma idéia
ou paternalismo. Tais circunstâncias fomen- ou teoria que se mostra hegemônica em um
tam a ocorrência de situações patéticas; re- determinado momento histórico.
centemente em um canal a cabo, um reno- Em contraste, cada vez mais os textos e
mado físico foi praticamente tirado do ar no imagens midiáticas são avaliados como re-
meio de suas explanações sobre a produção sultados de uma cultura e de um tempo, isto
e distribuição de energia elétrica porque o é, como resultado do trabalho de autoria de
entrevistado não respeitou o tempo que lhe um sujeito social que, não obstante a busca
foi concedido. Em outra situação, confiden- pela objetividade e imparcialidade, mesmo
ciada por uma comunicadora, a profissional assim deixa indeléveis marcas de quem es-
foi chamada de “burra” por um entrevistado creve, filma, fotografa, ilustra. Nesse sen-
pelo simples fato de ter declarado que não es- tido, o profissional da comunicação porta
tava conseguindo acompanhar a linha de ra- uma ideologia – aqui invocada sob as luzes
ciocínio adotada pelo pesquisador. do marxismo – que questiona a realidade so-
A repetição de situações como as menci- bre a qual trabalha e, com isto, explicita-
onadas tem alimentado um número relativa- mente ou não, oferece ao público uma inter-
mente grande de análises acadêmicas que, de pretação do que colheu junto aos entrevista-
regra, pouco tem contribuído para a reforma dos (Sousa, 2002: 30). O que ocorre com
dos conflitos entre os jornalistas e os cien- freqüência não é a deturpação do que entre-
tistas. Por um lado, os estudiosos da co- vistado expôs, mas sim diferenças interpreta-
municação acusam os pesquisadores cientí- tivas entre o cientista e o jornalista e os pro-
ficos de se considerarem “seres superiores” tocolos de representação do acontecimento
que se isolam em “torres de marfim” (Ta- instrumentalizados por cada um deles.
mara, 2003). Em caminho oposto, os cien- Nesta rota, torna-se praticamente impos-
tistas insistem que os jornalistas só lhe tra- sível não concordar com Franklin (2003)
zem problemas e constrangimentos (Capo- quando o experiente jornalista pontifica que:
zolli, 2004; Rothman, 2003).
Acredita-se que, neste campo de disputas, “Scientists are forever complaining that
algumas observações devam ser feitas além they are misunderstood and misrepresen-
de apontar eventuais responsáveis pelas di- ted, and I agree. But imagine what it’s
ficuldades de relacionamento entre jornalis- like to be the guy in the middle, to be
tas e cientistas. A primeira delas refere-se à caught up in the distortion process, to
própria especificidade de atuação de ambos find yourself bargaining passionately for
os personagens; ainda é comum os pesquisa- a tad more accuracy in a story, say about
dores científicos reivindicarem para eles pró- UFOs or cold fusion (. . . ) But the dis-
prios a produção de um saber neutro, racio- tortion began as soon as the copy left our
nal, pragmático, verdadeiro e, portanto, in- hands.
questionável, dimensões estas que se inte- No, let me brutally honest. Distortion be-
gram à “ideologia científica”. Este termo, gan the very moment we conceived the
como foi proposto por Canguilhem (1977), story, as we angled our perspective to ple-
refere-se à postura de defesa assumida pelos ase our editors. As soon as we picked
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up the phone we started censoring our- e b) também abordar o empenho dos agen-
selves, second-guessing the story, trying tes da mídia em explorar as possibilidades da
somehow make something useful out of língua e da linguagem para superar os obstá-
whatever we had. A lot of my colleagues culos da comunicação, inclusive através do
will deny this, but I think the result spe- abuso do emprego de neologismos.
aks for itself” Apesar de todos esses problemas, nos úl-
timos anos algumas soluções têm sido testa-
Dando prosseguimento às suas observa- das para, se não eliminar, pelo menos amai-
ções, o mesmo autor refere-se também à nar os conflitos nas relações entre os jorna-
contingência de serem as redações das em- listas e os especialistas científicos. Parte dos
presas de comunicação ambientes altamente meios de comunicação tem se empenhado
politizados, o que implica, no cenário pós- em melhor preparar seus profissionais, pa-
moderno e na reflexividade proposta pelo es- trocinando cursos de especialização no am-
tágio sócio-cultural no qual todos estamos biente das próprias empresas da mídia ou fi-
inseridos, numa indisfarçável resistência às nanciando a participação de jornalistas pro-
apologias dos cientistas e, especialmente, missores em cursos no exterior. Com isto,
aos novos produtos tecnológicos (Giddens, os principais jornais brasileiros – e da Amé-
2002). Pode-se assim afirmar que existe um rica Latina em geral – repetem o que vem
conflito político-cultural básico entre os ci- acontecendo na Europa e nos Estados Uni-
entistas e os jornalistas; enquanto os produ- dos, objetivando, além de conferir maior au-
tores do saber científico e de suas implica- tonomia à fala jornalística em relação ao que
ções tecnológicas são regidos por uma “pai- é dito pelos cientistas, evitar erros primários
xão” pela descoberta e pela elaboração de na produção das notícias científicas, e avali-
produtos de alta complexidade, os comuni- ações imprecisas que acabam disseminando
cadores tendem a postar-se de forma reti- fatos pseudocientíficos (Bueno, 2001).
cente, buscando avaliar as conseqüências po- Por sua vez, as próprias entidades produ-
líticas, econômicas, sociais e culturais dos toras de ciência e tecnologia estão cada vez
“avanços” da ciência e da tecnologia. mais conscientes de seus compromissos so-
O embate entre ambos os personagens ciais, preparando seus agentes para que es-
conta ainda com vários outros motivos, tes mantenham uma relação mais cordial e
mesmo que não tão fortes quanto os já expos- produtiva com a mídia. Afinal, é um dever
tos. Baseado em Snow (1995), é possível fa- dos cientistas explicarem-se para a sociedade
lar também que existem “dois vocabulários”, e, nesta situação, os profissionais de comu-
duas formas de expressar-se sobre e para o nicação podem desempenhar um papel es-
mundo, uma própria do cientista e outra ao tratégico. A Universidade Estadual Paulista
jornalista. É nesta passagem ou “tradução” (UNESP), dentre outras instituições de pes-
que se dá os mal-entendidos que contribuem quisa, elaborou um minucioso manual que
ainda mais para acirrar a animosidade en- visa orientar seus docentes/funcionário sobre
tre os dois grupos, fenômeno exaustivamente como devem se relacionar com os jornalistas
estudado por Fabiane Gonçalves Cavalcanti (Silva, 2003).
(2003). Coube à mesma estudiosa (2004 a A compreensão e o mútuo respeito entre
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16 Claudio Bertolli Filho
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o mesmo sistema acaba interferindo no com- lise, o jornal. Leitor primário é aquele
promisso dos meios de comunicação de in- que o compra. Leitor secundário é aquele
formarem prontamente “tudo o que sabem” que tem acesso ao jornal, embora não te-
ao público, reiterando a subordinação da pro- nha o hábito de comprá-lo” (p. 45).
dução e divulgação da notícia aos interesses
econômicos. Fala-se, pois, no agendamento A partir desta declaração, arquiteta-se as
da pauta do jornalismo científico pelos ins- características necessárias de serem incorpo-
titutos de pesquisa e pelas revistas especiali- radas na produção das matérias. Como com-
zadas de prestígio mundial. prador de uma mercadoria, o leitor deve ser
poupado o máximo possível de qualquer di-
ficuldade, cabendo ao jornalista servir-se de
5 As imagens construídas sobre uma linguagem apropriada e também de grá-
os leitores ficos, quadros sinópticos, mapas e imagens,
Até o momento, este texto privilegiou ex- dentre outros recursos para, mais do que tor-
clusivamente dois dos personagens humanos nar inteligível a matéria, cumprir o que a
envolvidos na trama jornalística: o pesqui- Folha de S. Paulo assumiu declaradamente
sador científico e o profissional da mídia. como sendo sua “filosofia editorial”: poupar
O terceiro personagem, até agora, ausente trabalho ao leitor.
é o leitor. Neste item, a proposta é avaliar
“Quanto mais trabalho tiver o jornalista
as imagens produzidas especialmente pelos
para elaborar as reportagens, menos tra-
jornalistas acerca dos consumidores de suas
balho terá o leitor para entender o que o
mensagens, havendo sobre o receptor, uma
jornalista pretende comunicar. (...) O jor-
pluralidade de posturas adotas pela mídia.
nal deve relatar todas as hipóteses sobre
Uma discussão sobre o leitor torna-se funda-
um fato, em vez de esperar que o leitor as
mental, pois é a partir das concepções nutri-
imagine. (...) Deve explicar cada aspecto
das sobre ele (o que implica também no co-
da notícia, em vez de julgar que o leitor já
nhecimento de suas necessidades) é que se
esteja familiarizado com eles. Deve orga-
articula o texto jornalístico.
nizar os temas de modo que o leitor não
O melhor ponto de partida para conhe-
tenha dificuldade de encontrá-los ou lê-
cer quem é o receptor das mensagens cien-
los” (Manual da Redação, 2001:45).
tíficas consiste em questionar sobre o lei-
tor/espectador/ouvinte em geral, tomando
Estas recomendações, que se apresentam
como referência a versão do Manual de Re-
hegemônicas na mídia, ganham curso mais
dação publicado em 2001 por um dos mais
nítido no território do jornalismo científico.
destacados jornais do Brasil, a Folha de S.
Isto porque, tanto na América Latina quanto
Paulo. A primeira observação que este ma-
em outras regiões do planeta, observa-se
nual registra no item “Leitor” já deixa claro
uma forte tendência de os leitores das maté-
o liame básico estabelecido entre o emissor
rias sobre ciência serem representados como
e o receptor: os interesses empresariais:
“analfabetos científicos”, mesmo que, como
“Leitor é quem sustenta, em última aná-
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18 Claudio Bertolli Filho
já foi observado, boa parte dos profissio- fiscar da população o direito ao lazer progra-
nais da área da comunicação tenha um ní- mado e impor-lhe a descrição da dramática
vel de conhecimentos científicos não muito situação que estava ocorrendo no espaço.
diferente daquele ostentado pelo público em Concluindo sobre o perfil dos consumido-
geral. res dos produtos midiáticos voltados para a
Neste compasso, contrastam as imagens ciência, Krieghbaum ponderou:
nutridas pelos acadêmicos e pelos jornalis-
tas sobre o leitor interessado em temas ci- “Algumas pesquisas sobre as reações ao
entíficos. Para os pesquisadores Authier- noticiário científico mostram que há sem-
Revuz (1998) e Nunes (2003), o público lei- pre algumas pessoas que não se interes-
tor corresponde à imagem de um persona- sam, assim como há outras que não lêem,
gem afoito por novidades, curioso pelas ci- não assistem, nem ouvem as notícias so-
ências, inteligente e que tem consciência que ciais, esportivas, sobre política ou ques-
seu conhecimento é bem menos rico do que tões internacionais. (...) As reações às
os dos especialistas. Opondo-se a esta idea- notícias e informações sobre ciência (...)
lização, que inclusive não conta com estudos formam uma série que vai desde os que
que comprovem o que tem sido dito, o jor- estão cegos em relação à ciência até os
nalista Hiller Krieghbaum (1970) prefere ser que absorvem o noticiário científico e, até
mais rígido em suas pontificações; para ele, certo ponto, os que procedem de acordo
uma parcela considerável dos indivíduos que com ele” (p. 161).
entra em contato com a mídia, simplesmente
vira a página de ciência ou troca de canal, A partir destas considerações, as possibi-
sem mesmo demonstrar curiosidade em sa- lidades de sucesso dos jornalistas científicos
ber os temas em destaque. dependem da habilidade de manter a aten-
No caso da televisão, o mesmo estudioso ção do público já sensibilizado em relação
reportou-se mais equilibradamente a uma si- às matérias de ciência e também de desper-
tuação emblemática: nas primeiras horas da tar o interesse de uma parcela daqueles lei-
noite de 17 de março de 1966, quando os tores que até então não se interessavam pelo
técnicos responsáveis pela cápsula espacial assunto. Burkett (1990:38) referiu-se à ne-
Gemini 8 detectaram um problema técnico cessidade de explorar temas apelativos, prin-
que colocava em risco a vida dos astronau- cipalmente referentes à saúde e à sexuali-
tas, as principais redes de televisão dos Es- dade, enquanto que Highfield (2003) apon-
tados Unidos interromperam suas programa- tou como recurso para conquistar os leitores
ções corriqueiras – a CBS estava apresen- a produção de matérias taxadas de “interes-
tando um episódio de Lost in space (que santes e inovadoras”.
ironia!), a ABC um capítulo de Batman e As dificuldades da mídia em estabelecer
a NBC um episódio de The virginian. Os o perfil do público consumidor do noticiário
telespectadores reagiram ferozmente a esta científico e como ampliar o número de indi-
medida, sendo que as três redes receberam víduos interessados em ciência têm coagido
ainda na mesma noite mais de três mil tele- seus profissionais a recorrerem às fórmulas
fonemas e telegramas, criticando-as por con- consagradas pelos meios de comunicação de
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prática jornalística que deve se manter inde- 2. ganho financeiro pessoal: geralmente
pendente dos interesses particulares e econô- é proibido que um jornalista noticie
micos e posicionar-se politicamente, assu- fatos de uma companhia com a qual
mindo o profissional que não é a ciência que ele mantenha vínculos mais próximos,
pode salvar ou destruir o planeta, mas sim como por exemplo, sendo acionista. Da
os possíveis usos que se faz dela (Oliveira, mesma forma, quando um profissio-
2002:58). nal trabalha em mais de uma empresa
Nestes termos, se é fundamental para de comunicação, é normalmente vetado
a atividade jornalística o compromisso de que as informações obtidas em nome de
informar sobre os fatos científicos através uma delas sejam compartilhadas com as
da produção de uma matéria clara e didá- demais, antes que a notícias seja publi-
tica, mais importante ainda é desenvolver cada no primeiro órgão.
uma operação interpretativa dos fatos. Por
interpretação dos acontecimentos entende- 3. ética das publicações: os canais de co-
se sua contextualização, isto é, o enqua- municação de massa não devem anun-
dramento do acontecimento nas dimensões ciar, junto às notícias científicas, produ-
sócio-culturais, políticas, econômicas, mo- tos diretamente envolvidos com as ma-
rais e intelectuais, expondo ao leitor as possí- térias e nem mesmo aqueles que ofere-
veis conseqüências imediatas e para o tempo cem facilidades para a obtenção do sa-
futuro de uma determinada ação (Amaral, ber científico. Em uma área na qual o
1987:106). erro jornalístico aflora com maior inten-
Para Burkett (1990), a dimensão ética do sidade que em outros setores, também é
jornalismo científico pode ser corporificada importante que o mais rápido possível
pelas seguintes problemáticas: se comunique as imprecisões e as cor-
rija pra que o leitor não se sinta logrado.
1. conflito de interesses: aceitar qualquer
4. contar o que se sabe: cabe ao jornalista
tipo de privilégio ou presente para re-
relatar ao público tudo que sabe e acre-
alizar uma matéria. É cada vez mais
dita que seja de importância, quer con-
freqüente editores não impedirem que
flitos existentes no interior da própria
um jornalista tenha sua viagem custe-
comunidade científica, quer assunto que
ada por uma empresa cujas atividades
um pesquisador já comprovou a veraci-
comporão o tema de uma matéria, sob
dade, mas que é mal visto pelos seus
a compromisso de que esta condição
pares. As dúvidas confidenciadas pe-
seja informada aos leitores. Em situa-
los próprios cientistas ou as reticências
ção peculiar encontram-se os jornalis-
do jornalista quanto à eficiência de uma
tas que atuam como free-lancers, já que
nova descoberta também devem ser co-
não contam com a supervisão de um su-
municadas aos leitores. Da mesma
perior, devendo eles próprios decidirem
forma, quando o que se sabe compro-
se é lícito ou não o recebimento de favo-
meter a segurança ou a aceitação social
res das instituições sobre as quais pro-
de um indivíduo que não está colocando
duzem notícias.
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6. Alertamos que embora a Internet e a de 2002 na cidade paulista de São José dos
Rede Mundial melhorarem a comuni- Campos, reunindo um número menor de pro-
cação; a informação desta forma pro- fissionais e de países participantes do que
duzida – como qualquer outra fonte – a reunião anterior. Nela, além da criação
precisa ser constantemente monitorada da Federação Mundial de Jornalistas Cien-
para que haja qualidade, precisão, obje- tíficos (WFSJ), reiterou-se os mesmo prin-
tividade e integridade. cípios daqueles apresentados em Budapeste,
enfatizando-se na ocasião a importância es-
7. Convocamos a Unesco e outras organi- tratégica do jornalismo científico para as na-
zações para apoiar: a formação de uma ções periféricas. Mais do que isto, ressaltou-
federação mundial de jornalismo cientí- se também a complexidade das questões ci-
fico e associações nacionais e internaci- entíficas abordadas pela mídia, assumindo-
onais de jornalismo científico; a convo- se que “ciência, política, economia e jorna-
cação através desta organização de reu- lismo são entidades não separadas, e sim in-
niões internacionais bienais; e criação terligadas, nas culturas das sociedades mo-
por esta federação mundial de comuni- dernas” (Declaração da Terceira Conferên-
dades de jornalismo científico através cia, 2003).
de uma rede mundial bem preparada, Em 2004, já sob o comando da WFSJ, foi
de fácil acesso, editada com controle de organizada a Quarta Conferência, sendo que
qualidade. novamente as questões éticas ganharam des-
8. Convocamos a Unesco e outras orga- taque. Na ocasião frisou-se a necessidade
nizações para fazerem tudo o que es- de posicionamentos críticos em relação à ci-
tiver ao alcance para apoiar a criação ência como uma das dimensões necessárias
de espaço para treinamento de jornalis- para uma prática saudável, produtiva e ética
tas científicos, que estivesse ao alcance do jornalismo científico (Dickson, 2004).
de todas as regiões e nações; que pu-
desse refletir inteiramente o novo e am- 7 Considerações finais: para que
plo papel do jornalismo científico como serve o jornalismo científico?
foi evidenciado durante a Conferência
Mundial de Ciência4 ; e que deveria ser Após a exposição do que se julga serem os
posto a disposição de países que não elementos fundamentais para a prática do
têm condições para oferecerem treina- jornalismo científico, resta uma última ques-
mento adequado” (Declaração da Se- tão: o papel social atribuído ou, pelo menos
gunda Conferência, 1999). requerido, desta especialidade jornalística.
As respostas a este dilema variam em
A Terceira Conferência Mundial de Jor- sentido, dependendo de seus enunciadores.
nalismo Científico realizou-se em novembro Agentes governamentais, pesquisadores, jor-
4
- A Primeira Conferência Mundial de Ciência foi nalistas e a sociedade abrangente, apesar de
realizada ao mesmo tempo e no mesmo local que a Se- todas as ressalvas endereçadas à divulgação
gunda Conferência Mundial de Jornalismo Científico científica e especialmente ao jornalismo ci-
(nota do autor).
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texto de um “mundo atormentado por hosti- entre suas funções, a preocupação de “des-
lidades” (p. 15). pertar vocações” entre os jovens, especial-
A postura norte-americana impregna pe- mente no referente às ciências básicas, men-
sadamente as observações dos jornalistas cionando neste campo a Química, a Física, a
latino-americanos e, dentre eles, os brasilei- Biologia e a Matemática.
ros em particular, inclusive no que tange à Apesar da posição hegemônica da pro-
continuidade entre o ensino formal básico e posta sintetizada pelos norte-americanos, é
médio e o que é divulgado pela mídia no importante se ressaltar a existência de outros
campo da ciência. Em entrevista, Marcelo posicionamentos sobre o papel a ser desem-
Leite (2004), que inclusive freqüentou cur- penhado pelo jornalismo científico. Den-
sos de especialização científica na América tre eles, ganha destaque os ensinamentos do
do Norte, assim definiu a missão do jorna- espanhol Manuel Calvo Hernando (2003a
lismo científico: e b). Reverenciado como um dos princi-
pais jornalistas científicos em atividade (Bu-
“Me parece que ao menos a pesquisa faz eno, 2003c), Calvo Hernando desempenhou
parte integral da educação. A divulgação e continua desempenhando a tarefa vital de
científica é mais um apoio e um comple- politização da prática do jornalismo especia-
mento, sobretudo de atualização, porque lizado, vendo nisto um pacto feito pelos co-
a produção científica é hoje mais copi- municadores em defesa da cidadania.
osa e rápida. Os livros didáticos e mesmo Para esse intelectual, o jornalismo cientí-
muitos professores não têm condições de fico é ao mesmo tempo resultado e incenti-
acompanhar esses desenvolvimentos que vador da sociedade democrática:
se sucedem, então os jornais e revistas
acabam sendo uma forma de se man- “Today is recognised, both in political
ter atualizado (por isso nos preocupamos science and communication, that there
muito com fornecer as fontes das pesqui- exists a mutual dependency between sci-
sas publicadas, em particular na Internet, ence and democracy. ‘Technological de-
para que as pessoas interessadas em se mocracy’ is spoken of and ‘the democra-
aprofundar possam obter mais material”. tization of knowledge’ and awareness is
being created of the fact that in order to
Em caminho próximo ao de Marcelo participate in politics and, therefore, in
Leite, vários outros estudiosos ressaltam o history, you have to be informed. A de-
caráter didático e complementar ao que foi mocracy will always be incomplete if its
aprendido nas escolas por parte do jorna- citizens continue to lack the knowledge
lismo científico, destacando-se nesta pers- and information that modern societies re-
pectiva o falecido médico José Reis, em quire in order to participate in a conscien-
texto que foi publicado pelo núcleo de es- tious and thoughtful way in the way soci-
tudos que recebe o seu nome (Reis & Gon- ety is run” (Calvo Hernando, 2003b).
çalves, 2000). Caminho paralelo foi adotado
por Wilson da Costa Bueno (2003b), quando A constatação desta realidade confere,
enfatizou que o jornalismo científico conta, para o autor em tela, novos compromis-
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