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BREVE HISTÓRICO DA DOENÇA


Frederico Navas Demetrio

Os termos transtorno bipolar do humor ou transtorno afetivo bipolar, que tanto


usamos hoje, podem parecer algo “novo” ou “moderno”, que só recentemente
começou a ser diagnosticado e reconhecido como doença, mas são apenas ou-
tros nomes para um problema de saúde reconhecido e diagnosticado há muito
tempo. O primeiro médico a relatar a mania como conhecemos hoje (episódio
maníaco dentro do transtorno bipolar tipo I) foi o grego Areteus da Capadócia
(Alexandria, final do século I a.C.), que a descreveu como um estado de falta de
controle em que a pessoa cometia todo tipo de excesso, com furor, excitação e
euforia. Nas formas graves da doença, o indivíduo poderia até mesmo matar e
humilhar seus servos, e, nas menos graves, se sentiria grandioso: “sem nunca ter
estudado, ele diz ser filósofo. [...] e o incompetente diz ser artesão habilidoso,
[...] outros ainda se tornavam desconfiados e se sentiam perseguidos, razões
pelas quais se tornavam raivosos”. Areteus foi também o primeiro a associar
a mania com a depressão (melancolia), descrevendo indivíduos que passavam
por períodos alternados ao longo da vida. De acordo com ele, a forma clássica
de mania era a bipolar: o quadro do paciente, anteriormente alegre, eufórico
e hiperativo, de maneira repentina se invertia para a melancolia; e, no final do
“ataque”, ele se tornava lânguido, triste e taciturno, queixando-se de preocupa-
ções com seu futuro e sentindo-se envergonhado. Quando a fase depressiva
acabava, tais pacientes voltavam a ser alegres, contavam piadas, riam, cantavam
e se exibiam em público como se estivessem retornando de um jogo vitorioso.
Algumas vezes, riam e dançavam durante o dia e a noite toda.
Vale a pena ressaltar que o termo grego mania, na sua ideia original, signifi-
ca “loucura enfurecida” (algo bem próximo do que ocorre nos episódios mais
graves do que conhecemos hoje como episódio maníaco). Infelizmente, o termo
também foi – e continua sendo – usado para descrever outros estados que não
se parecem com seu conceito original, como no caso de mania de limpeza, que
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remete ao transtorno obsessivo-compulsivo, ou maníaco do parque, que remete


à psicopatia.
Galeno de Pérgamo (131-201 d.C.), por sua vez, definiu a melancolia como
uma doença crônica e recorrente. Em seus poucos comentários sobre a mania,
Galeno disse que ela poderia ser tanto uma patologia primária do cérebro quan-
to secundária a outras condições. Assim como Areteus e Aristóteles, acreditava
que mania e melancolia tinham uma origem comum na bile negra (melancholia),
e, em concordância com a teoria grega dos humores, os líquidos que circulam no
organismo – sangue, linfa, bile negra e bile amarela – determinariam os estados
de ânimo da pessoa. Assim, quando afetava o cérebro, a melancolia aumentaria
e se transformaria em mania.
O coração era considerado mais importante que o cérebro na teoria dos
humores, mas ao menos a doença já se localizava no corpo, sendo possível o
tratamento médico. Da Grécia clássica até o início da Idade Média, as doenças
mentais e físicas eram tratadas primariamente por médicos, e, à medida que
essa função foi delegada ao monastério e a religiosos, as ideias iniciais desapare-
ceram. O período que se seguiu foi de “trevas”, quando a doença mental foi
atribuída à magia, ao pecado e à possessão demoníaca, alvo da caça às bruxas
e da inquisição.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, já sem influência religiosa, havia milhares
de observações clínicas sobre a natureza de fenômenos maníacos ou melancóli-
cos, mas ninguém conseguiu reestabelecer a ligação entre elas. Muitas classifi-
cações de doenças e especulações sobre as suas origens, que antecipavam a
nossa visão atual, também foram registradas.
As ideias explícitas do transtorno bipolar (TB) como uma única doença datam
da metade do século XIX. Dois psiquiatras franceses, Jules Falret (1794-1870) e
J.F. Baillarger (1809-1890), formularam a ideia de que mania e depressão repre-
sentariam diferentes episódios de uma mesma patologia. Ambos foram estudan-
tes de Esquirol, compartilhavam as ideias de Pinel e não aprovavam as noções
de que cada sintoma representava uma nova doença nem de “psicose única”. Ou
seja, em vez de inúmeras doenças, existiria apenas uma única condição mental
com diferentes manifestações de sintomas. Por longos períodos, Falret estudou
os episódios depressivos acompanhados de tendências suicidas e notou que al-
guns casos apresentavam períodos de excitação e retornavam para a depressão.
Baillarger, por sua vez, mais do que notar a duplicidade de manifestações da
doença, observou também que alguns melancólicos chegavam até mesmo a fi-
car em estado de estupor.
Em 1851 e 1853, Falret e Baillarger descreveram basicamente a mesma
doença, chamada pelo primeiro de loucura circular (la folie circulaire) e pelo se-
gundo de loucura de dupla forma (la folie à double forme). Para Falret, a suces-
são de mania e melancolia manifesta-se em si, em continuidade e de maneira
quase sempre regular. Baillarger registrou essencialmente uma doença de curso
similar, enfatizando que o episódio maníaco e o depressivo não eram dois ata-
ques diferentes, mas dois estágios distintos da mesma condição.
16 MORENO, MORENO, BIO e DAVID (orgs.)

Esses dois conceitos franceses quase correspondiam ao conceito moderno


de TB, ganhando muitos adeptos dentro e fora da França. Kahlbaum (1828-
1899), por exemplo, comentou com entusiasmo, em 1863, sobre uma nova “lou-
cura circular típica”. Na França, a noção de Ritti (1883) reforçou a ideia de uma
doença única, apaziguando os calorosos debates sobre a validade dessa nova
entidade. Na monografia que ganhou o prêmio da Academia de Medicina, Ritti
caracterizou claramente a “loucura de dupla forma” pela sucessão de crises de
mania ou de melancolia no mesmo indivíduo. As ideias de Falret e Ritti seriam
aproveitadas mais tarde nas concepções do alemão Emil Kraepelin, considerado
o pai da psicose maníaco-depressiva.
Finalmente, em 1899, Emil Kraepelin descreveu a psicose maníaco-depressiva
(PMD) na sexta edição de seu livro-texto, analisando os estados de transição e
das concomitâncias das crises maníacas e melancólicas, bem como avaliando os
estados mistos, em que existem sintomas de mania e de depressão ao mesmo
tempo. Todas as psicoses descritas anteriormente como intermitentes, circula-
res, periódicas, de dupla forma ou alternadas foram agrupadas em uma entidade
fundamental: a PMD, que Kraepelin considerava uma doença essencialmente
endógena. Ele também separou a PMD da esquizofrenia (na época chamada de
dementia praecox, ou demência precoce, pois seus portadores desenvolviam
muito cedo sintomas de prejuízo na emoção e no raciocínio.
Com rapidez, as ideias de Kraepelin ganharam vários adeptos, unificando
muitas concepções europeias controversas. Ele foi o primeiro a desenvolver
completamente o modelo de doença em psiquiatria, por meio de observações
extensas e descrições organizadas com cuidado. Sem desprezar os fatores psico-
lógicos e o estresse social, Kraepelin observou também que um indivíduo sob
efeito de sobrecarga tornava-se propenso a precipitar um novo episódio. Além
da síntese dicotômica, deve ser atribuída a Kraepelin a distinção das duas gran-
des síndromes clínicas em psiquiatria, traçando de modo correto o quadro clínico
e a história natural das doenças. Fundamentalmente, esse autor construiu uma
base sólida, ancorada na observação dos pacientes, para futuros desenvolvi-
mentos.
A principal mudança ocorrida no conceito original da PMD até os dias atuais
foi a separação de suas formas de doença puramente depressiva. O conceito
de Kraepelin abraçava todas as condições com a sintomatologia tanto de mania
como de melancolia, não importando se o indivíduo tivesse uma ou várias fases;
se elas foram breves ou prolongadas, leves ou graves; se apresentou depressão
recorrente, só mania ou ambas. Esse paciente seria classificado como afetado
por uma mesma doença, a PMD. Essa separação é relativamente recente, datan-
do de 1966, quando Jules Angst (na Suíça) e Carlo Perris (na Suécia) publicaram
trabalhos independentes, os quais indicavam que pacientes que sofriam apenas
de depressão, hoje conhecidos como “unipolares” ou portadores de depressão
unipolar, apresentavam histórico familiar predominantemente de depressão, en-
quanto aqueles que apresentavam episódios de mania, com ou sem episódios de
depressão, apresentavam histórico familiar tanto de mania como de depressão.
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Além disso, a doença de pacientes que apresentavam episódios de mania (que


atualmente chamamos de TB) começava em média 15 anos mais cedo que a da-
queles que tinham apenas depressão e maior frequência de crises. Os episódios
individuais eram mais curtos, e o risco de doença mental na família era alto en-
tre os familiares de primeiro grau; haveria também diferenças de personalidade
entre os dois grupos: os pacientes com episódios de mania tenderiam a ser mais
calorosos, enérgicos e extrovertidos, enquanto os que apresentavam somente
depressão eram mais isolados, tensos e ansiosos.
Além da separação dos unipolares e bipolares, o conceito original de PMD
sofreu outras subdivisões, pois Kraepelin incluiu nele todas as manifestações de
humor, desde as mais leves e consideradas próprias da personalidade do indiví-
duo até as mais graves, como a mania e a depressão. Hoje, chamamos de ciclotí-
micas as pessoas que têm flutuações do humor para cima e para baixo, mas que
nunca preenchem os critérios para um episódio de mania ou de depressão. Hi-
pertímico é o indivíduo que está sempre um pouco para cima, além do que seria
considerado normal para a maioria das pessoas, enquanto distímico é aquele
que está sempre um pouco mais para baixo. O próprio TB foi dividido em “TB
tipo I”, que se refere àqueles pacientes que apresentam episódios de mania ou
estados mistos, e “TB tipo II”, para os que exibem episódios de depressão e de
hipomania – uma mania mais leve, mas de intensidade que chama atenção, indi-
cando uma clara mudança de comportamento. Para o diagnóstico do TB tipo II é
necessário que o paciente nunca tenha tido um episódio pleno de mania.
O Quadro 1.1 resume a evolução do conceito original de Kraepelin até os
dias de hoje.
Apesar dessa subdivisão, todos os transtornos do humor parecem estar in-
ter-relacionados, como previsto por Kraepelin. Não é raro nos depararmos com
um paciente que inicialmente é diagnosticado como hipertímico e apresenta,
por exemplo, uma depressão, sendo por muitos anos considerado unipolar e,
depois, desenvolve hipomania. Assim, muitos ainda preferem enxergar os trans-
tornos do humor em um espectro, ou continuum, em que até podem existir
separações entre uma categoria ou outra. Contudo, elas não são tão nítidas a

QUADRO 1.1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE KRAEPELIN

KRAEPELIN HOJE

Psicose maníaco- Unipolar Depressão maior


-depressiva original Distimia
Bipolar TB tipo I
TB tipo II
Transtorno ciclotímico
Hipertimia
18 MORENO, MORENO, BIO e DAVID (orgs.)

PONTOS IMPORTANTES
• O conceito original de mania é o que utilizamos hoje para designar o episódio
maníaco do TB. Os termos “mania de limpeza” ou “maníaco do parque” não
têm a ver com doença bipolar.
• O conceito dos transtornos do humor agrupados como proposto por Kraepelin
continua válido, embora subdivididos em diversas categorias.
• Os transtornos do humor possuem uma origem biológica, mas fatores precipi-
tantes psicológicos e sociais também participam de seu desencadeamento.

ponto de serem definitivas em uma primeira observação, devendo o desenrolar


da doença ser levado em conta na hora de se formular um diagnóstico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia de uma doença como o transtorno bipolar existe há milênios, mas desa-
pareceu na Idade Média, quando todas as doenças mentais eram abordadas de
forma mística ou religiosa. Até o século XIX, muitas observações foram feitas,
mas a relação entre mania e depressão não foi relatada. Dois franceses (Falret
e Baillarger) e um alemão (Kraepelin) finalmente correlacionaram os dois polos,
constituintes de uma mesma doença, na qual o humor ou afeto está prejudicado.
Essa ideia permanece praticamente a mesma até hoje.

LEITURAS SUGERIDAS
Goodwin FK, Jamison KR. Doença maníaco-depressiva: transtorno bipolar e depressão recorrente. 2. ed.
Porto Alegre: Artmed; 2010.

Moreno RA, Moreno DH, organizadores. Da psicose maníaco-depressiva ao espectro bipolar. 2. ed. São
Paulo: Segmento Farma; 2008.

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