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Universidade de São Paulo

Evandro Carlos Nicolau

Desenhar:
pensamento, expressão e linguagem

São Paulo
- 2010 -
Universidade de São Paulo

Desenhar:
pensamento, expressão e linguagem

Evandro Carlos Nicolau

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de mestre.
Área de concentração: Estética e História da Arte

Orientadora: Profa. Dra. Carmen S. G. Aranha

São Paulo
- 2010 -
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação da Publicação
Serviço de Biblioteca
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

Nicolau, Evandro Carlos.


Desenhar : pensamento, expressão e linguagem / Evandro Carlos Nicolau ; orientadora

Carmen S. G. Aranha. - - São Paulo, 2010.

111 f.: il.

Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e

História da Arte) - Universidade de São Paulo, 2010.

1. Desenho. 2. Artes Visuais. 3. Linguagem . I. Aranha, Carmen S.G. II. Título.

CDD 741
Epígrafe

Vida é o que acontece a você


enquanto você está ocupado fazendo outros planos

John Lennon, extraído da música Beautiful Boy.


RESUMO

NICOLAU, Evandro C. Desenhar: pensamento, expressão e linguagem. 2010. 129 f. Dissertação


(Mestrado – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2010.

Desenho é o tema ao qual esse trabalho se dedica a dissertar. Dividido em três partes que são o
pensamento, a expressão e a linguagem, trata do tema a partir de referências teóricas, bem como de seus meios
e materiais expressivos, utilizados no seu fazer, culminando em uma reflexão sobre seu ensino. O estudo
que ora se apresenta é resultado de pesquisas acerca de diversos pensamentos e reflexões sobre o
desenho aliado a uma seleção de imagens que complementam iconograficamente o texto. Uma das
contribuições do trabalho está em investigar a relevância do desenho para a arte e para a educação
artística atual. Sua abordagem procura ampliar os conceitos e compreensões do que seja desenho e sua
expressão material, refletindo como as novas tecnologias digitais convivem com os suportes e
ferramentas materiais. Considerando que os suportes, meios e ferramentas são elementos usados no seu
fazer, argumenta que conhecer a linguagem, no que ela tem de elementos fundamentais para a
comunicação, é necessidade básica para desenvolver o desenho. As pesquisas realizadas foram aplicadas
em um laboratório prático, que se constituiu em um curso de desenho oferecido para estudantes de
ensino médio em idade pré-vestibular. Finalmente o trabalho apresenta uma experiência síntese de
desenho em arte contemporânea.

Palavras-chave: Desenho. Arte-educação


ABSTRACT

NICOLAU, Evandro C. Desenhar: pensamento, expressão e linguagem. 2010. 129 f. Dissertação


(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2010.

Drawing is the subject of this following dissertation. It is divided into three parts, namely, thought, speech
and language, and deals with the subject according to theoretical references, and their expressive
environments and materials used in the making of drawing art, culminating in a reflection on its teaching.
The study now presented is the result of researches about several thoughts and reflections on the
drawing, combined with selected images that iconographically complement the text. A contribution of
this work is the research of the relevance of drawing to the contemporary art and art education. The
approach seeks the raising of concepts and knowledge of what drawing and its material expression mean,
reflecting how the new digital technologies coexist with media and material tools. Whereas the media,
environment and tools are elements used in their production, the dissertation argues that knowledge of
the language (in its essential elements for communication) is a primordial requirement to develop the
basic drawing. The researches have been applied in a practical laboratory, which was formed on a drawing
course offered for pre-university aged high school students. Lastly, this dissertation presents a synthesis
experience of drawing in contemporary art.

Keywords: Drawing. Art Education


Lista de ilustrações.

Relação de Imagens Introdução: desenhar


Imagem 1: Fotografia de pintura pré-histórica: detalhe do Sítio Arqueológico da Pedra Furada, localizado no
Parque Nacional da Serra da Capivara, no estado do Piauí. (Disponível em: <www.ditomorales.com>) .....................16
Imagem 2: Lúcio Costa. Traçado do eixo fundamental de Brasília......................................................................................20
Imagem 3: Patente da Lâmina de Barbear da Gillette, 1904. ................................................................................................20
Imagem 4: Botticelli. Pallas, 1490 (pena e bistre s/ giz s/ papel). ........................................................................................20
Imagem 5: Hans Hartung. Óleo sobre tela, 1962. ..................................................................................................................20

Relação de Imagens parte I: pensamento


Imagem 6: Lavoura de trigo, Seng, Arizona, EUA. (Google Earth) ....................................................................................21
Imagem 7: Lavoura de cana-de-açucar, Região de Araraquara, São Paulo, SP. (Google Earth) ......................................21
Imagem 8: Leonardo Da Vinci, Estudo de movimento das águas................................................................................................26
Imagem 9: Leonardo Da Vinci, Estudo para máquina voadora..................................................................................................26
Imagem 10: Joseph Nicéphore Niépce, View from the Window at Le Gras (1826), atribuída como a primeira fotografia.
Disponível em: <http://mdst1070.wordpress.com/2009/09/>.........................................................................................26
Imagem 11: Pablo Picasso, Estudo para a pintura Lês Demoiselles d´Avignon ................................................................27
Imagem 12 e 13: Marcel Duchamp, Estudos preparatórios para O Grande Vidro.....................................................................27
Imagem 14: Hélio Oiticica, Metaesquema II, 1958 ....................................................................................................................28
Imagem 15: Amílcar de Castro, Diagramação do Jornal do Brasil, Décadas de 1950 e 1960. fonte: A Notícia e o
Diagrama, Entrevista com Amilcar de Castro, sala.clacso.org.ar/gsdl/cgi-bin/library?e=d-0.........................................29
Imagem 16 e 17: Joseph Beuys, Duas Pedras Caindo e se Juntando e Plano Energético..............................................................29
Imagem 18: Jean Baptiste Debret, Aquarela de Índia Brasileira, séc. XIX..............................................................................32
Imagem 19: Pintura Corporal Indígena, Xavante ...................................................................................................................32
Imagem 20: Fotografia da Aldeia Indígena no Xingu ............................................................................................................32
Imagem 21: Mulher indígena Kadiwéu, 1892 (Coleção Boggiani). Disponível em:
<http://www.iande.art.br/boletim010.htm>.........................................................................................................................33
Imagem 22: Desenhos Kadiwéu ...............................................................................................................................................33
Imagem 23: Michelangelo, Esboço de torso .................................................................................................................................34
Imagem 24: Detalhe de azulejo Árabe, Alambra, Espanha, Disponível em:
<http://vi-te.blogspot.com/2009/09/alhambra-azulejos.html> ........................................................................................34
Imagem 25: Kazimir Malévich, Círculo negro, 1913. ................................................................................................................43
Imagem 26: Pichação na cidade de São Paulo.........................................................................................................................45
Imagem 27: Fernando Velásquez, Paisagem Discreta, 2008. (Imagem gerada por computador a partir de câmera de
vigilância com alteração de leitura de imagem com software específico) ............................................................................48
Imagem 28: Andrei Thomaz, Dédalo e Ariadine, 2006. (Obra interativa que constrói e desconstrói linhas)....................48
Imagem 29 e 30: Bruce Nauman, Sem título (Estudo para Sillas Musicales, desenho. Sillas Musicales, Instalação, 1983......48
Imagem 31 e 32: Bill Viola, desenhos. (Videoartista norte-americano que realiza desenhos preparatórios para suas
videoinstalações. No caso de obras em suportes tecnológicos como a videoarte, os desenhos preparatórios têm a
função de fundamentar a construção e apresentação da obra) .............................................................................................48
Relação de imagens parte II: expressão
Imagem 33: Leon Ferrari, da série Cuadro Escrito, acervo MAC USP. ................................................................................58
Imagem 34: Steven Shearer. (VITAMIN D, p. 283.) ............................................................................................................58
Imagem 35: Sandra Cinto. (VITAMIN D, p. 63.) .................................................................................................................58
Imagem 36: Hayley Tompkins. (VITAMIN D, p. 311.) .......................................................................................................58
Imagem 37: Imagem de software AutoCAD...........................................................................................................................60
Imagem 38: Kazimir Malevich, Cruz Preta. .............................................................................................................................61
Imagem 39: Piet Mondrian ........................................................................................................................................................61
Imagem 40: Hermelindo Fiaminghi, Elevação vertical com movimento horizontal, 1955, acervo MAC USP. .........................61
Imagem 41: Leonardo da Vinci, Estudo de órgãos. ...................................................................................................................61
Imagem 42: Frank Miler, quadro de Sin City (História em quadrinhos) .............................................................................61
Imagem 43: Goya, Diparates número 13. ...................................................................................................................................61
Imagem 44: Marcel Duchamp, Autorretrato de perfil, 1958. ....................................................................................................61
Imagem 45: Pintura Chinesa, 1958. .........................................................................................................................................61
Imagem 46: Oswaldo Goeldi, Duelo. .......................................................................................................................................61
Imagem 47: Robert Wilson, sem título, lápis sobre papel, 1976. ............................................................................................62
Imagem 48 e 49: Ferramentas utilizadas para Xilogravura e ferramentas utilizadas para gravura em metal. Fotografia
Guilherme Minoti. .....................................................................................................................................................................62
Imagem 50: Ilustração de linhas. Uma linha feita à lápis e outra à caneta esferográfica ...................................................63
Imagem 51: Augusto de Campos, Código, poema visual. 1973. ............................................................................................64
Imagem 52: Imagem de ferramenta tablet, mesa eletrônica de desenho digital. .................................................................66
Imagem 53: Sol. Disponível em: <http://cauemathias.files.wordpress.com/2010/02/sol.jpg>....................................66
Imagem 54: Frame extraído de vídeo sobre interface multi touch Adobe technology, Jef Han, TED, 2006. Disponível
em: <http://www.youtube.com/watch?v=UcKqyn-gUbY> ..............................................................................................67
Imagem 55: Frame de vídeo demonstrativo de graffiti eletrônico. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=z00vEik9www> .......................................................................................................67
Imagem 56: Evelien Lohbeck, Noteboek. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=tP-reW1eLYE>...68
Imagem 57: Vik Muniz, Earthwork, Poitinghand. (O artista brasileiro Vik Muniz utiliza a linguagem do desenho em
suas obras como um conceito, uma sintaxe que é preservada, mas executada em um meio expressivo inusitado.
Neste trabalho em específico, ele utilizou-se da superfície de uma usina de transformação de minério para realizar
gravuras, retirando terra para produzir desenhos.) ................................................................................................................69
Imagem 58: Nazca. ....................................................................................................................................................................69
Imagem 59: Fotografia por satélite, Luanda Angola. (Google Earth) ................................................................................69
Imagem 60: Fotografia por satélite, favela bairro do Morumbi São Paulo. (Google Earth) ............................................69
Imagem 61: Fotografia por satélite, Barcelona Espanha. (Google Earth) ..........................................................................69
Imagem 62: Fotografia por satélite, Riyahd Arábia Saudita. (Google Earth) .....................................................................69
Imagem 63: Desmatamento próximo ao Rio Xingu. (Google Earth) ................................................................................69
Imagem 64: Mapa a partir de fotografia de satélite da ocupação de áreas de mananciais em
<http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/billings> ....................................................................................70
Imagem 65 e 66: Sergio Bonilha, Gerador de Linhas. (obra exposta na 2.a Bienal de Santos, que produziu desenhos
gerados por aparelho GPS, transferidos para planta baixa da cidade de Santos. A partir do passeio de espectadores
com uma bicicleta que ficava no local da exposição, o movimento produzido era capturado em suas linhas pelo
GPS e posteriormente grafado sobre o mapa da cidade que ficava em exposição.) .........................................................70
Relação de imagens parte III: linguagem
Imagem 67: Jacques Louis David (1748-1825), Os três irmãos Horacios, 1785. .....................................................................82
Imagem 68: Pixação em escola de São Paulo. Disponível em:
<http://sp3.fotolog.com/photo/35/28/79/podrs_abc/1251696304182_f.jpg>............................................................83
Imagem 69: Escola com muros grafitados, zona oeste de São Paulo. Disponível em: <http://www.graffiti.org.br>.83
Imagem 70: Desenho urbano das cidades. Disponível em: <http://rodrigoschiafino.blogspot.com/> ......................90
Imagem 71: Vista do Eixo Rodoviário, 1960 (ao fundo Esplanada dos Ministérios). Acervo pessoal. (REVISTA
MANCHETE. Rio de Janeiro, n. 417, 16 abr. 1960). ............................................................................................................90
Imagem 72, 73 e 74: Franz Erhard Walther ............................................................................................................................95
Imagem 75, 76 e 77: Franz Erhard Walther ............................................................................................................................96
Imagem 78: Deyson Gilbert e Luiza Nóbrega, Intercâmbio (Performance). Barragem de Sobradinho, Rio São
Francisco (fotografia, Márcia Vaitsman, 2008). ......................................................................................................................97
DESENHAR: PENSAMENTO, EXPRESSÃO E LINGUAGEM

Sumário:
Apresentação.........................................................................................................................................................13
Introdução: Desenhar..........................................................................................................................................16

parte I:
pensamento
● Pensando o desenho;....................................................................................................................................21
● Modelos e modalidades; .............................................................................................................................31
● Arte atual e desenho; ....................................................................................................................................43

parte II:
expressão
● Formas do desenho; .....................................................................................................................................55
● O Meio é a mensagem;................................................................................................................................60
● Desenho e novos meios;..............................................................................................................................65

parte III:
linguagem
● Desenho e a escola;.......................................................................................................................................79
● Linguagem e ensino;....................................................................................................................................88
● O desenho e a imagem contemporânea;................................................................................................92
● Uma experiência síntese .............................................................................................................................95

Considerações finais.......................................................................................................................................102
Referências bibliográficas ............................................................................................................................105
Anexos ................................................................................................................................................................108

Imagem da Capa: Deyson Gilbert e Luiza Nóbrega, Intercâmbio (Performance). Barragem de Sobradinho,
Rio São Francisco, fotografia, Márcia Vaitsman, 2008.
Lay out de Capa: Guilherme Minoti
Revisão: Anderson Massao Tobita
Edição final: Paulo Marquezini
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 13

Apresentação

A presente dissertação de mestrado na linha de pesquisa “Metodologia e Epistemologia

da Arte” do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte foi

elaborada com o intuito de oferecer, aos interessados em desenho, referências, reflexões e

propostas de estudo e prática de sua linguagem.

As três partes da dissertação – pensamento, expressão e linguagem – abordam assuntos

básicos, essencialmente compreendidos como elementos que compõem uma estrutura

metodológica aplicada à ação de desenhar. O enfoque é dado ao conhecimento de alguns

pensamentos, técnicas e metodologias que podem, a partir de uma linha de condução primeira,

ser aprofundados em outras pesquisas que complementem as informações contidas neste

trabalho. Para tanto, partimos de uma bibliografia fundamental, aliada a uma seleção de imagens

que organizam o desenvolvimento da dissertação.

Diante do assunto desenho, a interrogação motivadora foi: o que é isto, desenho na

atualidade? Seguida da reflexão sobre sua educação, seu ensino e em qual medida ainda possui

relevância o seu aprendizado e sua prática. Desta maneira, uma investigação que se seguiu foi da

sua presença na escola, principalmente em relação a estudantes que optam pela graduação em

artes visuais, ou carreiras que envolvam desenho. Esta motivação se direcionou para as escolas do

ensino médio, devido à verificação da ausência de um preparo adequado da grande maioria das

instituições escolares com relação à compreensão do desenho e às provas específicas do

vestibular de artes. Essas pesquisas iniciais originaram um curso de desenho que funcionou como

laboratório e foi realizado em duas edições no Museu de Arte Contemporânea da Universidade

de São Paulo, oferecido a estudantes de Ensino Médio em idade pré-vestibular, candidatos à

carreira de artes visuais. Esse laboratório foi fundamental para o desenvolvimento do trabalho e

permitiu testar alguns conceitos presentes nesta reflexão. Por esta razão o objetivo almejado com

tal pesquisa é, como uma função de uso prático, que seu resultado venha a servir
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 14

fundamentalmente a alunos em nível de ensino médio que procuram encaminhar seus estudos

para o campo das artes visuais ou áreas que envolvam desenho. A sua maior inspiração são estes

alunos, e sua aspiração é tornar-se um material que trate do tema de um modo adequado e

atualizado. Assim sendo, poderá também ser fonte de informação para professores que tenham

preocupação de desenvolver o desenho com seus alunos.

Claro está que o trabalho não está isento de erros, o que o leva a novas e aprofundadas

pesquisas e reflexões, para que os estudos se aprimorem e atendam a um rigor que o tema

“desenho” necessita. Uma possível, e justa, crítica em seu resultado final, é seu aparente

anacronismo, que, se é possível justificá-lo, resulta de uma pesquisa com vistas principalmente a

uma prática. Entretanto, as informações de caráter histórico e filosófico que se apresentam aqui

são consideradas como motivação de aprofundamento de estudo e trabalho. O assunto tem

vastíssima produção intelectual e artística desde a antiguidade clássica até a contemporaneidade e,

abarcar tudo em uma dissertação de mestrado seria obviamente impossível. Neste aspecto, o que

foi considerado foram reflexões que contribuem para questões do desenho que elucidam seus

modos de fazer, de pensar e de se estruturar como uma linguagem capaz de ser transmitida e

experimentada. Estas reflexões passam por artistas e autores que se dedicaram ao tema. As suas

escolhas feitas para este trabalho vêm de algumas relações e compreensões de conceitos que

podemos aplicá-los ao desenho ainda na atualidade. A ideia de ponto, linha e plano, é central no

trabalho, uma vez que aparecem em autores diferentes em épocas diferentes, e acreditamos que

ainda são válidas para se definir o desenho nos dias atuais. As transformações dos suportes e

materiais também constituem um dado importante do trabalho, que procura justamente entender

esta linguagem artística, como uma expressão humana embebida em conceitos que podem ser

realizados em diversos suportes, técnicas e materiais. O olhar expressado neste trabalho é de

alguém que vem das artes plásticas como formação acadêmica, portanto, a sua contribuição se

situa no campo da linguagem visual. É preciso dizer que desenho é tema apaixonante, e realizar

um trabalho como este é como nadar num oceano de informações, porém de águas aprazíveis.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 15

De modo que, embora o trabalho nunca chegue a um fim, a cada descoberta o fôlego se renova e

a vontade de continuar em frente só aumenta.

O que se espera é que esta dissertação colabore de alguma forma com a difusão da cultura

artística, principalmente num tema tão caro como o do desenho, e que venha a servir como

possibilidade de início de investigação sobre o assunto.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 16

Imagem 1.

Introdução: desenhar

“El Dibujo es una de esas palabras que sobrepasan el ámbito Del discurso artístico para instalarse en
un marco más amplio de referencias”.1
(Juan José Gómez Molina)

O título do trabalho: Desenhar2, propõe um entendimento do desenho como verbo, como

uma ação que pode ser pensada e expressada, em um processo de síntese de ideias e conceitos

que se dão na representação espacial. O ato de desenhar, aqui compreendido como

conhecimento que se estende da arte para outros campos da vida, é desdobrado em três partes

básicas, que são o pensamento, a expressão e a linguagem. Objetivando situar modos diversos de

pensar o desenho, buscamos apresentar um conjunto amplo de formas de sua expressão,

demonstrando que há um sistema de comunicação, que podemos chamar de linguagem, que pode

ser transmitida por meio de seu ensino e ser compreendida e compartilhada por qualquer pessoa

que tenha intenção de estudá-la, praticá-la e desenvolvê-la.

A experiência criativa com desenho, ao longo da história, mostra também, por seus

registros, o desenvolvimento das atividades humanas de observação da natureza e compreensão

1 GÓMEZ MOLINA, 1995, p. 17.


2 Segundo FERREIRA (1985, p. 152): DESENHAR v. t. 1. Traçar o desenho (1 e 4) de 2. Dar relevo a; delinear. 3. Exercer
a profissão de desenhista.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 17

racional do mundo. Então, pode-se dizer em uma primeira conclusão que é a partir do desenho

que o registro do mundo em que vivemos é realizado. A organização do espaço territorial, sua

ocupação pelas cidades, os objetos e imagens de consumo, são criadas por um desenho que se

reproduz no mundo. O desenho serve desde os períodos mais remotos, como planejamento de

ações e de construção do ambiente cultural no qual a humanidade habita.

Colocamos assim a ideia de que é por meio da representação gráfica, composta de linhas e

formas colocadas sobre um plano, que se faz possível estudar o espaço, pensar na construção do

abrigo, da casa, tornar presente e visível o que ainda não foi realizado. O desenho tem

característica de não ser um fim. Comporta-se como uma genealogia da obra de arte, como

projeto ou ensaio que deve ser observado, como elemento seminal de algo que virá a ser uma

obra acabada. Organiza assim, os espaços, com linhas que geram formas, funcionando como

mecanismo de experiência para a composição artística.

Em certo sentido, o desenho se comporta como bastidor da obra acabada, sendo uma

parte do trabalho que muitas vezes não aparece em exposições de arte por exemplo. É um saber

que permite compreender o processo de produção, entender as etapas e o modo de construção

das ideias que irão se transformar em objetos no mundo. A partir do estudo, da prática e da

experiência com o desenho tem início um modo de ver e relacionar-se com o espaço e com os

objetos, que é organizado por conceitos da própria linguagem. Os modos de composição, o

conhecimento das técnicas e dos diversos modos de seu fazer formam repertórios, revelam

modelos e referências que dão determinados parâmetros para a organização do pensamento. O

conhecimento da linguagem do desenho permite uma organização expressiva que pode ter uma

função de projeto e de processo de trabalho, no qual a criação artística é pensada, se alicerça, se

estrutura e posteriormente ganha materialidade.

Ignorar o desenho e seu estudo é deixar de refletir com maior profundidade sobre mundo

visível ao nosso redor. É ignorar o crescimento das cidades, o planejamento das edificações, das

casas, das ruas, da relação do ser humano com a natureza e das transformações decorrentes desta
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 18

interação. O universo de imagens que cada vez mais povoa o nosso cotidiano, reflexo do

desenvolvimento das tecnologias de comunicação, necessita de uma atenção sobre sua forma, que

em primeira instância é circunscrita pelo desenho. A imagem contemporânea, o desenho na

atualidade e as possíveis formas de se aproximar de seu estudo e prática são as motivações do

título deste trabalho. Ao verbo DESENHAR seguem como complementos os substantivos

pensamento, expressão e linguagem3 que, em suas definições em língua portuguesa encontradas num

dicionário como o Aurélio, curiosamente se contém uma dentro da outra. Essa proposição,

definida anteriormente, procura enlaçar que o seu conhecer se faz por meio de teoria e prática, e

que se desenvolver neste domínio depende de uma dedicação própria, que exige trabalho como

qualquer outra atividade de estudo, pesquisa ou construção de um saber.

Sendo um tema amplamente explorado, escolher tratar do desenho, como já dito, foi

deparar-se com um volume imenso de informações, que ainda continua a intrigar e motivar novas

investigações. Por esta razão, o trabalho aqui apresentado não encerra assunto algum, mas

propõe desenvolver a percepção de que o desenho está plenamente presente em toda vida

cultural. Porém, tal percepção não é tão evidente e um problema é que no sistema de ensino

permanece praticamente fora do currículo escolar.

Assim, a estratégia usada neste trabalho foi a de selecionar, a partir de um universo de

autores que pensam sobre este tema, alguns conceitos motivadores que se revelam como

fundamentos para a compreensão do que seja desenho. Estes conceitos apresentados arriscaram

definições e se constituíram em modelos culturais de expressão que, no século XX, se imbricaram

em algumas manifestações que se tornaram formas internacionais, como a abstração na década de

50. A esta sequência seguem algumas considerações sobre as manifestações do desenho na arte atual.

3 Segundo FERREIRA (1985, pp. 360, 211, 293): Pensamento s.m. 1. Ato ou efeito de pensar. 2. Faculdade de pensar
logicamente. 3. Poder de formular conceitos. 4. O produto do pensamento: ideia. 5. Intelecto. 6. Recordação. 7. Opinião. 8. Frase que
encerra um conceito moral. Expressão s.f. 1. Ato de exprimir(-se). 2. Enunciação de um pensamento por gestos ou palavras
escritas ou faladas. 3. Dito, frase. 4. Manifestação. Linguagem s.f. 1. O uso da palavra como meio de expressão e de comunicação
entre pessoas. 2. A forma de expressão pela linguagem (1) própria de um indivíduo, grupo, classe, etc. 3. Vocabulário; palavreado.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 19

Há também uma breve apresentação e análise de técnicas e de materiais empregados para

a realização de desenho. Explorando alguns procedimentos, trataremos da relação do uso dos

materiais, no fazer, transformada pelas mudanças técnicas e tecnológicas, no decorrer da segunda

metade do século XX. A partir do conceito de que a escolha dos meios e materiais é uma

condição prévia que orienta e faz parte do resultado final de um desenho, tentamos ampliar sua

percepção pela via da materialidade. Assim como a ideia de desenhar não começou com o lápis e

o papel, sua tecnologia mais difundida e percebida como sinônimo de desenho, novas tecnologias

se desenvolvem para sua produção. Computação, meios digitais e ferramentas tecnológicas atuais

são modos expressivos que ainda se situam segundo de códigos de linguagem que podemos

compreender por desenho. Esta reflexão sobre a expressão pretende apresentar as técnicas e

atualizá-las com vistas à prática do desenho no século XXI.

Do pensamento e expressão se pode organizar a linguagem, que pressupõe a organização

do pensar, com os modos de expressar, com vistas a códigos que se constituem num sistema

possível de ser transmitido por um método de ensino. Esta parte trata, a partir da semiologia, da

lingüística e da semiótica, como métodos de estudo e normatização dos signos, da linguagem do

desenho. Como complemento da pesquisa foi realizado um laboratório de ensino no MAC USP,

que se constituiu em um curso de desenho voltado para alunos do ensino médio. Esta aplicação

prática aconteceu em duas edições nos segundos semestres de 2008 e 2009. Este é o

desenvolvimento da dissertação que é apresentada agora.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 20

Imagem 2. Imagem 3.

Imagem 4 Imagem 5
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 21

Parte I: Pensamento

Pensando o desenho

“Escrevendo sobre pintura nestas brevíssimas anotações, tomaremos aos matemáticos – para que nosso
discurso seja bem claro – aquelas noções que estão ligadas particularmente à nossa matéria. (...) Peço,
porém, ardentemente, que durante toda minha dissertação considerem que escrevo sobre essas coisas, não
como matemático, mas como pintor”.4

As imagens, em papel, nas telas de televisão, cartazes, propagandas, fotografias e nas mais

diversas formas de representação do mundo contemporâneo estão presentes no nosso cotidiano

de modo absoluto. Deparamo-nos com inscrições em muros, paredes, telas de caixas eletrônicos

de bancos, cartazes de supermercado, televisão, telas de computador, etc. Entretanto, a imediata

associação de que há um desenho que estrutura as imagens, independente do suporte ou forma

que ela se apresente, não se faz tão evidente.

É possível que se projete, planeje e construa uma cidade com total embasamento pelo

desenho, pelo projeto urbanístico. Para se erguer uma casa ou um prédio é necessário que haja

uma planta, um guia visual sobre o qual o construtor irá se basear. Uma das funções básicas do

desenho é a de planejar, de projetar. Os objetos e máquinas presentes no cotidiano, como

garrafas de refrigerantes, copos, garfos, facas, mesas, cadeiras, móveis, automóveis, aviões, dentre

muitos outros, são produtos que guardam em si um desenho, o resultado do projeto cuja

indústria convencionou nomear de design. As roupas que usamos – a moda – são criações que

primeiramente são desenhadas em uma folha de papel, idealizando a produção da beleza para se

transformarem em indumentária, em vestimenta. As estradas, as lavouras, a derrubada das

florestas, os objetos de uso prosaico, são todas ações humanas de transformação que têm em sua

estrutura de ocupação de espaço um desenho como resultado. (imagens 6 e 7)

O desenho gera imagens que são a materialização das formas no espaço plano ou

tridimensional. Ao se realizar um desenho observando um modelo, ou motivado por uma

sensação subjetiva, sentimento ou emoção, o resultado material é uma representação. Trata-se da

4 ALBERTI,1992, p.71.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 22

fixação das formas, sensações ou coisas vistas ou sentidas que permanecem, a partir de então,

registradas como imagem. O conjunto dos desenhos que vão sendo produzidos constitui

memória, história e cultura remetendo a significados e sentidos que ao estarem presentes no

mundo, carregam informação em vários níveis. O desenho pode ter a função de sinalização,

como nos sinais de trânsito, ter o objetivo de registrar uma cena rapidamente para que depois seja

trabalhada numa pintura, existir como projeto, como indicação para a realização de um trabalho

tridimensional, de uma escultura, entre diversas outras formas que constroem a comunicação

entre indivíduos.

Apesar da interação social e cultural que imagens interpolam nos processos diversos de

comunicação que usamos, existem ainda alguns mitos sobre o desenho e sua prática. Se

pensarmos a partir do conceito de que uma imagem contém em si uma estrutura compositiva que

vem de um desenho, podemos concluir que haveria um convívio natural com a ação de desenhar.

Entretanto, se for pedido, apenas como uma forma de comunicação, para que um grupo de

pessoas desenhe, de um modo geral, surgirão desculpas seguidas da explicação de que não sabem

desenhar. Tampouco temos na escola formal um trabalho claro e efetivo de busca pelo

conhecimento, prática e exteriorização da expressão pelo desenho. O que intriga é que habitamos

um espaço que é constantemente modificado pelo desenho, sem nos dar conta de seus conjuntos

de conhecimentos, que possibilitam ao individuo uma apreensão de mundo com o uso de uma

linguagem expressiva.

Modo de pensar o mundo, que por determinadas técnicas, procedimentos e

materializações, cria formas, planeja o espaço. Muitas vezes, é obscurecido e colocado

historicamente na condição de conhecimento misterioso. Geralmente tratado como fruto de um

dom divino, ou de outros atributos que o afastam do horizonte de saberes que deveriam integrar

a formação de um indivíduo, o desenho se revela como uma necessidade humana de representar

as formas do mundo e de organizá-las espacialmente. Como resultado de suas funções está a

produção de memória, a partir da representação de algo que se passou no tempo fixado em uma
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 23

materialidade. Plínio o Velho, autor grego da antiguidade clássica, em Naturalis Historia5, nos

livros 34, 35 e 36, se dedica à história da pintura, da escultura e da arquitetura. Uma dessas

narrativas é o mito de Butades, ceramista grego, cuja filha era apaixonada por um jovem que teve

de se ausentar para o estrangeiro. A fim de guardar a imagem desse jovem, Butades delineou com

um carvão a sombra do rapaz projetada na parede pela luz de uma lanterna. A imagem do rapaz,

guardada pelo desenho circunscrito de sua forma física, torna presente no tempo a ausência de

seu corpo. Por meio da forma, que se constitui num registro ou representação, numa memória

acessível, talvez a saudade da jovem filha de Butades seja atenuada. Com a ajuda da imagem a

lembrança se faz mais nítida, presente, informada por detalhes mantidos na forma registrada e

fixada em uma matéria. Resulta em história, em arte, em conhecimento que se pode acessar em

sua fixação no tempo.

Outra função que pode ser atribuída ao desenho é de colocar novas formas no mundo em

busca de projetar, descrever, alterar a natureza e criar a casa, os objetos, a arte. Este modo de

pensar se concentra no plano de ocupação dos espaços. Refere-se à maneira como, a partir de

uma delimitação espacial de uma área específica, se projeta e constrói uma casa. Esta forma de

desenho procura adequar o objeto ao seu plano, superfície, área, contexto. Sua manifestação

plástica e visual se dá frequentemente como um projeto, em escala e proporções menores do que

o resultado material e com orientações de execução. Muitas vezes o desenho é acompanhado de

legendas, informações técnicas, cálculos matemáticos e outras informações que dão parâmetros

para a realização de suas determinações.

“Oriundo do intelecto, o desenho, pai de nossas três artes - arquitetura, escultura, pintura -, extrai de
múltiplos elementos um juízo universal. Esse juízo assemelha-se a uma forma ou ideia de todas as
coisas da natureza, que é por sua vez sempre singular em suas medidas”.6

Com esta afirmação Giorgio Vasari, no Renascimento Italiano, conceitua o desenho

como linguagem que é comum às artes da época. Sua afirmação corrobora com o significado da

palavra desenho, aqui empregada segundo sua origem latina que deriva do verbo designare e que se

5 PLIÍNIO O VELHO, 1985, p. 101.


6 VASARI, 2006, p. 20.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 24

refere ao desígnio de Deus, algo que é descrito, escrito, previsto para realização. Pensando sobre

a etimologia da palavra desenho7, notamos que, em suas várias derivações nas línguas latinas, há a

definição de desenho como forma que advém de um conceito, ou seja, um conteúdo que nasce

no pensamento e se projeta no mundo como forma. Temos, portanto aqui uma ideia de desenho

como projeto, como delineação de algo que se difere da natureza e se inscreve no mundo como

cultura, elaboração humana. Muito já se escreveu sobre o desenho, desde os textos de Plínio O

Velho, passando por autores como Cennino Cennini8, Federico Zuccaro9, além de pensadores

como Jean-Jacques Rousseau10, Johann Heinrich Pestalozzi11 e Friedrich Forebel12, que refletiram

sobre a educação como conceito de formação de um homem integral, no qual o desenho é

tratado como conhecimento fundamental. São artistas, cientistas, filósofos e historiadores, que

colaboraram com as transformações e com o desenvolvimento de reflexões ao longo do tempo.

Mobilizados, pelo período histórico particular em que se encontravam, os pensadores variam suas

reflexões e propostas de acordo com os momentos culturais, sociais frente às técnicas e

tecnologias disponíveis em cada período para o desenho. Em comum há a abordagem de que o

desenho é conhecimento necessário à formação de um indivíduo, além de postularem métodos e

propostas de ensino de desenho e de sua inserção no sistema de educação de cada época.

De uma forma generalista, quando se quer definir desenho, em uma conceituação

apressada, aparece também a ideia de desenho como registro ou representação da natureza

visível, geralmente feito a lápis sobre papel ou técnica e material similar. Esta abordagem pode

tratar o desenho como uma atividade em que se realiza uma espécie de inventário das formas em

busca de apreensão e conhecimento do mundo. Porém, existem desenhos que não são feitos

como reprodução da natureza, mas com intuito de pesquisar, realizar e criar formas, sistemas,

objetos, ou esquemas arquitetônicos, por exemplo. São resultados de uma ideia, de um conceito
7 Segundo CUNHA (2000, p. 254, 392): Desenho: do latim desígnio/designare = desenhar; Desígnio de Deus. Graf(o)-

elem. comp., deriv. do Gr. – graph(o)-, de gráphein ‘escrever, descrever, desenhar’.


8 CABEZAS, 2005, p.229.
9 GOMÉZ MOLINA, 1995, p.44.
10 BORDES, 2008, p.503 - 505.
11 Ibid., p. 511- 515.
12 Ibid., p. 515 – 519.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 25

que parte da observação da natureza, mas que se transformam em algo já não mais identificável

como imitação do visível. Por razões como estas, o desenho pode caminhar em sentido duplo.

De um lado busca apreender com as coisas da natureza, e de outro, mais interno, está ligado a um

conceito, a uma ideia ou um pensamento que precisam ser expressos, colocados no mundo,

projetados. Federico Zuccaro articula uma definição a partir da existência de um desenho interno

e de um desenho externo, como manifestação de uma ideia, expressa como forma no mundo

material. Define como segue os dois tipos de desenho:

“Diseño interno entiendo el concepto formado em nuestra mente para poder conocer culquier cosa y
obrar excelentemente conforme a La cosa entendida, Del mismo modo que nosotros, pintores, al querer
dibujar o pintar alguna digna historia”. 13

“Qué es el diseño externo(...). Siguindo pues nuestro planteamiento digo que, para clarificar este
concepto y diseño interno y mostrarlo al sentido y al intelecto, es necesario darle cuerpo y forma visual; y
para entendimiento nuestro mejor y mayor, lo circunscribiremos y Le daremos el ser, mastrándolo al
sentido com varias delineaciones, asignálandole también aparte sus proprios instrumentos, según sus
varias operaciones. Digo, por lo tanto, que disegño externo no es otra cosa que lo que aparece
circunscrito de forma pero sin sustancia de cuerpo. Simple delineación, circunscripción, medida y figura
de cualquier cosa imaginada y real. Este diseño así formado y circunscrito con línea es ejemplo y forma
de la imagen ideal. La línea, pues, es el próprio cuerpo y sustancia visual del diseño externo, de
cualquier manera que este formado”.14

O desenho interno se refere ao conjunto de informações, formas internas, imagens que

povoam a mente, o pensamento. Coloca-se como atividade intelectual, racional, ainda sem forma

física e material no mundo. O desenho externo surge como manifestação material, das técnicas,

dos processos e procedimentos e materiais. É palpável, possível se ser visto, observado por outra

pessoa, espectador. Desenho interno é intangível, conceito puro, ideia, desenho externo, é

tangível, material, corporificado.

No terreno das modalidades de desenho aparece no horizonte a imaginação, o território e

a dimensão daquilo que muitos chamam de criação. O artista florentino Leonardo da Vinci foi

um desenhista dedicado ao estudo da natureza e à invenção e criação de toda uma sorte de

máquinas, sistemas e objetos absolutamente improváveis de serem realizados na época em que

viveu. Estudava, por meio do desenho, os movimentos e as forças que atuam nas relações físicas

13 GOMÉZ MOLINA, 1995, p. 45.


14 GOMÉZ MOLINA, 1995, p. 46
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 26

da natureza e os aplicava nas suas invenções. Temos o exemplo de seus estudos do movimento

das águas e sua posterior aplicação nos seus projetos de máquinas voadoras. (imagens 8 e 9)

Estes estudos são fundamentalmente desenhos que investigam a natureza e seu

funcionamento. Inventários com descrições de sistemas, de relações de forças e movimento, em

que legendas aparecem como anotações complementares das imagens obtidas em suas pesquisas.

Buscam, ao demonstrar um domínio técnico virtuoso, constituir uma representação da natureza

de modo preciso, mais próximo de uma construção mimética que pretende compreender os

fenômenos e sua dinâmica.

A constituição de modelos para estudo científico passa pelo desenho. Antes da fotografia

e de outras tecnologias que envolvem máquinas de captura ou construção e manipulação de

imagens, como temos hoje, o desenho tinha uma função fundamental para registro de observação

da natureza. Assim, até o século XIX no ocidente, foi se constituindo um conjunto de saberes, e

um sistema de ensino que se organizou como uma academia com regras bem específicas.

Composta de uma ciência de reprodução verossímil, este modelo se manteve como o pano de

fundo do sistema de arte, principalmente na Europa e posteriormente se organizando nas

colônias das Américas. O Sistema conhecido como acadêmico, que privilegia a imagem figurativa,

determinada pelo modelo mimético, de imitação do real começa a sofrer transformações em

meados do século XIX com o advento da fotografia. (imagem 10)

O que passa a ser conhecido por fotografia tem a ver com a captura de imagens e sua

impressão em papel fotossensível por meio de lente acoplada a uma câmera escura. Podemos

verificar que a captura da luz é uma das partes que constituem o conceito de pintura: “Portanto, a

pintura resulta da circunscrição, composição e recepção da luz”.15

Há notícias de utilização da câmera escura e de equipamentos ópticos com espelhos para

captura e projeção de imagens para realizar desenho e pintura, na Europa desde o século XV e

15 ALBERTI, 1992, p. 102.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 27

XVI 16. Porém, a fixação da imagem em um suporte material, em materiais fotossensíveis, sem o

uso da mão humana, com o uso de câmara para captura de imagem, inaugura a fotografia. Esta

transformação possibilitou ao desenho um retorno à expressão como elemento primeiro da

anotação gráfica. Outro fator decisivo foi o aparecimento da indústria e a crise da produção

artesanal, com a fabricação de objetos em série. Sobre esta alteração da função do desenho, a

partir do advento da indústria, Giulio Carlo Argan comenta que:

“O “desenho” já não é o meio gráfico com o qual se abstrai a forma a partir da acidental matéria da
coisa; “desenho”, no sentido ativo de “projeto”, é intuição de relações construtivas ou espaciais dentro da
matéria e por isso já não é um abstrair a realidade pluridimensional em duas dimensões, mas um
concretizá-la e todas as dimensões”.17

Entende-se que após a revolução industrial e da fotografia como documento do visível

mimético, o desenho é conduzido para um campo exclusivamente projetivo, descritivo, voltado

para o sistema industrial. Segundo Juan José Gómez Molina, há dois fatores que provocam e

caracterizam um novo modelo de representação para arte ocidental:

“A crise da representação que produzida diante do desenvolvimento da fotografia e que leva a arte a
abandonar o papel privilegiado de ser a geradora da ideia de realidade e de verdade que permite
constituir-se em sua formulação e crítica. O deslocamento que a arte realiza sobre o território de sua
autonomia ao abandonar os campos da descrição e antecipação de objetos que a vinculavam ao
desenvolvimento da indústria”.18

É sob a influência destas alterações tecnológicas de captura e fixação da imagem que a

estrutura da linguagem do desenho se altera no século XX. A um deslocamento de sua relevância

e as metodologias modernistas o colocam num campo de experimentação de liberdade. A sua

exploração se liga mais a forma do projeto e, devido à entrada de outros modos de expressão e

produção de imagens, como a fotografia, o desenho não seria tão evidente. Entretanto, quando

vamos observar o processo de trabalho de artistas fundamentais na primeira metade do século

XX como Pablo Picasso (imagem 11) ou Marcel Duchamp, constatamos a importância do

desenho em suas obras. No caso específico de Duchamp, é curiosa a existência do desenho como

projeto em seus trabalhos como no caso de O Grande Vidro (imagens 12 e 13). Duchamp

16 HOCKNEY, 2001, p. 35-76.


17 ARGAN, 2005, p. 63.
18 GOMÉZ MOLINA, 1995, p. 11.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 28

investiu um ataque à arte retiniana, pictórica, inaugurando uma arte de ideias, conceitual. Com

esta atitude suas obras se despedem dos suportes e meios que ainda caracterizam a arte como a

pintura a óleo ou a escultura. São objetos, ou proposições de experiências cujo sentido está

repleto de enigmas abrindo um campo de interpretação para os espectadores. A ideia de um

estado pré-linguagem do dadaísmo se recusa a uma narrativa linear, representacional de sistemas

lógicos, e como o próprio Duchamp diz, ligado a uma dimensão de pontos cardeais. Esquerda,

direita, acima ou abaixo, são orientações que este artista tenta desconstruir, por isso a lógica da

linguagem é alterada. Durante o início do século XX as formas industriais começam a fazer parte

cada vez mais presente no modo de vida moderna: os produtos da indústria, os automóveis, a

cidade que se transforma, que muda seu desenho para abrigar as máquinas. O modo artesanal de

produção dá lugar à linha de produção, à especialização no trabalho industrial. Se na produção

artesanal o artesão conhece e participa de todo o processo de produção de um produto, desde

sua criação até a sua finalização, na indústria há a especialidade. O trabalhador passa a conhecer

apenas uma pequena parte, específica, do produto que ajuda a produzir. Surgem os objetos em

série já prontos, como se estivessem sendo gerados apenas no interior da fábrica, cujo desenho

não é de autoria perceptível. O consumo se refere à marca do produto, não compreendido a

partir do trabalho de quem o fez ou criou. Estas são algumas das formas que o desenho vai

assumindo na modernidade. Para os artistas, neste caso específico Marcel Duchamp, as formas da

indústria estão muito presentes e, ainda assim, o desenho, como expressão de um autor, se

mostra fundamento para o processo de elaboração de seu trabalho.

Com este modo de operar, a montagem, que se constitui em organizar partes no todo,

passa a ter uma importância mais acentuada. A composição, o dispor das partes, numa operação

de deslocamento e alteração da função objetiva dos objetos, vai produzir uma arte baseada em

serialismos, em construção, em reconfiguração de formas fixas. Sua disposição e organização se

dão no espaço, num plano de composição a partir de desenhos prévios, formas construídas, a

priori, passíveis de combinações (imagem 14). A diagramação aparece como componente


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 29

fundamental na disposição das partes no todo de uma criação visual, ou de um desenho (imagem

15). Pode-se verificar isso na indústria gráfica, na produção dos jornais, revistas e mídias

impressas que no início do século XX se desenvolve plenamente. Aparece uma forma de desenho

executado segundo formas modulares fixas, que se recombinam criando a imagem. A escola de

arte, arquitetura e design alemã, Bauhaus, cria uma metodologia baseada nos materiais para a

indústria, e a montagem, a composição de estruturas a partir de módulos reagrupáveis caracteriza

boa parte da arquitetura moderna. Paralelamente, também aparece uma arte de registro de

trabalho, de liberação de formas subjetivas e abstratas, como vemos nos artistas do

expressionismo abstrato, na pintura de ação ou nos abstracionismos líricos. Estes modos de

expressão visuais atravessam os anos 1950 e caracteriza a arte desse período quase em escala

mundial. É a partir dos anos 1960 que uma arte já plenamente constituída de referências da

modernidade, começa a apontar para transformações estruturais de suportes, meios e materiais.

Além da indústria, os novos meios de comunicação, como a televisão, surgem no panorama e a

imagem ganha novas possibilidades de veiculação, difusão e amplificação. Podemos caracterizar

este período como o que deu início às muitas formas de expressão, presentes até hoje, na arte que

se convencionou chamar de arte contemporânea.

Segundo esta reflexão, o desenho estaria em que lugar diante de tantas possibilidades de

se fazer arte? Talvez passe a existir justamente neste ponto ou período, um desenho que se

reconfigura diante das novas expressões da arte atual, que trataremos ao longo do trabalho. Aqui

cabe, enfim, pensar a partir do trabalho de alguns artistas que na segunda metade do século XX

incluíram o desenho na sua produção como parte fundamental do processo de se fazer arte. Em

artistas como Joseph Beuys (imagens 16 e 17), verificamos o desenho como suporte primeiro de

um pensamento espacial, visual, plástico e performático. Beuys comenta a função do desenho no

seu processo de criação:

“Desenho é a primeira forma visível em meus trabalhos (...) a primeira forma visível do pensamento, o
ponto de mudança das forças invisíveis para a coisa visível (...) é realmente um tipo especial de
pensamento, colocado sobre uma superfície (...) não é apenas uma descrição do pensamento (...) você
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 30

incorpora também os sentidos (...) o sentido de equilíbrio, o sentido da visão, o sentido da audição, o
sentido do tato”.19

Relacionada com seus aspectos do pensamento visual, materializada numa expressão

gravada num suporte físico, há uma qualidade do desenho que organiza o espaço. Por isso há que

se ressaltar que se trata de uma linguagem, com elementos estruturais, repertório e articulações

que se correlacionam na construção de uma imagem. Colocado em uma equação, com tantas

perdas e ganhos, o desenho, em suas formas e aspectos da modernidade e atualidade, resulta

como parte estrutural de qualquer imagem. E neste trabalho, nosso argumento é que a estrutura

do desenho se apresenta assentada sobre uma tríade já secular. Para Wassily Kandinsky, artista

modernista europeu, o fundamento do desenho está no ponto e na linha sobre o plano20, e sua

linguagem se desenvolve a partir da combinação desses elementos. Talvez um dos primeiros

autores a dissecar esses elementos estruturais do desenho fora Alberti, em seu livro Da Pintura,

que discorre a partir de conceitos emprestados dos matemáticos o seguinte:

“Digo inicialmente que devemos saber que o ponto é um sinal que não podemos dividir em partes.
Chamo aqui sinal qualquer coisa que esteja na superfície, de modo que o olho possa vê-la.(...) Os
pontos, se em sequência se juntarem um ao lado do outro, produzirão uma linha. Para nós a linha será
uma figura cujo comprimento pode ser dividido, mas será de largura tão tênue que não poderá ser
cindida. Das linhas, umas se chamam retas; outras, curvas. A linha reta será uma figura que avança
de um ponto a outro no sentido do comprimento. A linha curva é uma figura que vai de um ponto a
outro, não reta, mas como um arco. As linhas, se numerosas, quando se encostam umas às outras como
fios de um tecido, formam uma superfície. A superfície uma parte externa de um corpo que é conhecida,
não pela sua profundidade, mas tão somente por seu comprimento e largura, e ainda por suas
qualidades”.21

Estes elementos estruturam o desenho e encontram-se subjacentes na construção da

imagem até hoje. Mesmo a imagem digital, constituída de pixels22, se forma na tela eletrônica a

partir da varredura dos pontos de uma linha a outra, até o fim da tela, em cerca de 32 quadros por

segundo; são pontos colocados em movimento, na velocidade da luz construindo formas, cores,

imagem. Assim, consideramos esses elementos como estruturantes e base da linguagem do

desenho como veremos na terceira parte desse trabalho.

19 TEMKIN, 1993, p. 73.


20 O título do livro de Wassily Kandinsky é Ponto e linha sobre o plano, no qual o autor realiza um estudo sobre a
linguagem do desenho.
21 ALBERTI,1992, p. 72.
22 Pontos eletrônicos nos quais a luz perpassa na formação da imagem eletrônica, nos monitores de televisão e

computadores.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 31

Modelos e modalidades

Em uma metáfora, com certo grau de abordagem poética, podemos dizer que andar sobre

a superfície do planeta Terra produz desenho. Mapas geográficos são desenhados com, entre

outras, a função de orientação espacial. Rotas, direção, sentido, senso de orientação espacial são

produzidos com base em referências de desenho. A percepção de um determinado corpo, situado

em um determinado plano, se colocado em movimento, produzirá pela sua ação uma linha e

pode ser um modo de criação de consciência do desenho. Se outros corpos, no mesmo campo

delimitado como superfície, forem colocados em movimento, novas linhas serão produzidas. O

conjunto de linhas dará origem a circunscrições, formas que articuladas se constituirão em

desenhos.

Uma das maneiras de se constituir um acervo de formas, um repertório de elementos para

a ação de desenhar é pelo exercício do olhar. Pensando nisto como uma espécie de interiorização

de imagens colhidas no mundo, pela observação atenta dos fenômenos, pode manifestar-se em

expressão. O desenho pressupõe a ação de um corpo em movimento, por isto, não é necessário

ver para produzir desenho, mas isso acarretaria em outra discussão conceitual, sobre os sentidos e

a comunicação. O que se argumenta é que a visualidade é fator preponderante no resultado do

desenho e sua presença no mundo se dá em grande parte pela visualidade. Esta visualidade,

interiorizada pela observação, se expressa e se organiza como forma de um conceito. Se isto

ocorre, o resultado é um desenho vivenciado, pensado, que cria um mundo em si, que vai além

da representação sendo fruto de uma intenção. O olhar, como um dos inícios do desenho,

recolhe as formas que estão na natureza; produz uma ação, e esta ação transforma o mundo em

linguagem. O pensador francês Maurice Merleau-Ponty argumenta sobre o exercício do olhar:

“Claro que este dom se conquista pelo exercício, e não é em alguns meses, não é tão pouco na solidão
que um pintor entra em posse de sua visão. A questão não é essa: precoce ou tardia, espontânea ou
formada no museu, sua visão em todo caso só aprende vendo, só aprende por si mesma. O olho vê o
mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e, na
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 32

paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas as faltas, e vê os
quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas”.23

Pelo olhar se adquire um repertório cultural, conhecem-se modelos de ver, formas e

caracterizações visuais que compõem uma ideia. Esta argumentação faz referência ao indivíduo

como observador, um ser que possui uma estrutura de cognição informada pela sua origem

cultural. Ao olhar individual, existe como pano de fundo, o olhar coletivo. Este seria um olhar

político, que se configura de acordo com a cultura de cada população e é compartilhado pelo

conjunto de indivíduos. Estes conjuntos culturais se estabelecem constituindo determinadas

diferenças que são particulares a grupo humano. Durante muito tempo e em diversas culturas,

verificam-se formas e métodos artísticos que permanecem fixos, obedecendo a cânones e regras

rígidas24. Modelos, contextos e padrões culturais determinam em grande parte a forma e modo de

apresentação de imagens. Isso é discutido inclusive no campo da antropologia da arte, em que o

sentido de arte de uma cultura é diferente de outra. O conceito de arte, organizada como campo

de conhecimento específico que utilizamos no Brasil, vem da Europa. Segundo Ana Mae

Barbosa25, a ideia de arte que prevaleceu no país se assentou a partir da Missão Francesa de Le

Breton26 e de seu modelo de desenvolvimento artístico trazida por Dom João VI27 (imagem 18).

O contato da cultura europeia com a cultura indígena no Brasil, por exemplo, produziu um

conflito entre dois paradigmas culturais muito diversos entre si. O que para o europeu português

eram roupas para vestir, que transmitem códigos de situação social e proteção do corpo, para o

índio era pintura corporal (imagem 19). O próprio desenho, que resulta da reunião de pessoas

para viver em comunidade, dos povos indígenas é muito diverso do nosso modo de viver e de

morar em cidades. As aldeias são circulares (imagem 20), as casas coletivas, e as imagens pintadas

nos corpos e objetos de uso cotidiano, quase sempre se configuram, grosso modo, como

23 MERLEAU-PONTY, 1980, p. 19.


24 GOMBRICH, 1987, p. 9- 13.
25 BARBOSA, 1978, p. 16.
26 Academia Imperial de Belas Artes, criada pelo Decreto-Lei, datado de 1816 e que só começaria a funcionar em

1826.
27 Naturalmente, antes desse período no Brasil, houve o chamado Barroco Brasileiro e sua arte que ainda hoje chama

atenção e motiva estudos e aprofundamento intelectual. Entretanto, a organização de um sistema institucional de


estado das artes no país, se dá com a implantação da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 33

abstrações. Se tomarmos apenas um exemplo, o dos índios Kadiwéus, estudados pelos

antropólogos Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro, vamos notar que a sua expressão gráfica,

ainda que não seja considerada arte para nossa cultura, tem um comportamento bastante singular.

A pintura corporal desses índios (imagens 21 e 22) é uma das mais notáveis e ricas expressões da

arte indígena brasileira. Os Kadiwéus tinham seu território localizado nas serras que separam os

rios Paraná e Paraguai, na divisa entre o estado do Mato Grosso do Sul e o Paraguai. Conhecidos

no passado pela resistência guerreira aos colonizadores portugueses e espanhóis, dominando

inclusive a habilidade da montaria, sendo chamados de índios cavaleiros, os componentes dessa

tribo hoje está em número bastante reduzido. A pintura corporal dos Kadiwéus se caracteriza por

finos desenhos que estampam os rostos e os corpos em traços sinuosos e simétricos. São obtidos

de uma tinta que é resultado da mistura de suco de jenipapo com pó de carvão, aplicada na pele

com uma fina lasca de madeira ou taquara. Interessante ressaltar que essa arte era executada

apenas por mulheres, e embora utilizassem padrões repetidos, as artistas mais habilidosas criavam

novas ornamentações. Há também as questões de cosmologia, mitologia e demarcação de

hierarquia social. No passado, a pintura corporal marcava a diferença entre nobres, guerreiros e

cativos. O fato é que são expressões de uma cultura que hoje praticamente desapareceu e não

deixou história, porém, possui uma expressão original e particular, diferente dos modelos que

seguimos pela influência do academicismo de origem europeia em nossa constituição cultural.

Outras referências de imagens e formas de arte, mais uma vez na constituição de repertório, de

culturas nativas do território brasileiro, talvez possam conduzir a desenhos diversos, se trazidas

para a educação, de um modo presente no conjunto das formas que são tratadas como arte. A

importância de se apresentar estes aspectos se dá na possibilidade de relativizar os padrões

estéticos que são muitas vezes tidos como únicos.

Retomando o senso comum do “não sei desenhar”, que cria uma falsa ideia de que

algumas pessoas desenham e outras não, vamos pensar nos modelos visuais que definem

desenho. Talvez, um dos bloqueios ou insatisfação com o próprio desenho tenha origem em um
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 34

desenho interno que se configura a partir de um padrão inalcançável. A imagem figurativa,

normalmente verossímil, resultante de um trabalho de desenho que, muitas vezes, é sinônimo de

acadêmico, é um modelo muito poderoso. A cultura religiosa do catolicismo, instaurada no Brasil

pelos Padres Jesuítas, é fundamentada por imagens idealizadas. Um de seus grandes expoentes foi

Michelangelo Buonarroti (imagem 23), artista ícone dessa representação. Essa cultura fortemente

presente no ocidente, se comparada com as religiões orientais, como o Judaísmo ou Islamismo,

não se aplica em suas expressões artísticas. A impossibilidade dogmática de representação

advinda dessas religiões faz com que haja um desenho geometrizado, abstrato, que articula

formas no espaço. Em árabe28, por exemplo, as palavras usadas para definir desenhista e desenho

têm a ideia de forma: Musawer = o artista, que traça a linha, que faz a forma; Taswuir = desenhar,

formar. (imagem 24) O artista faz a forma e sua ação é a de montar essas formas em uma

composição.

O modelo, virtuoso, de conquista da realidade, que se configurou como maneirismo após

o renascimento, por diversas razões, é na atualidade inatingível. Faz sentido em um determinado

período histórico, para certa cultura, que o elaborou como uma ciência da arte, cuja importância

não se coloca em dúvida. Conhecê-lo faz grande diferença, porém, seu modo de se inserir no

mundo não deveria intimidar a prática do desenho. Entre o modelo de desenho interno, que é

impregnado pela ideia acadêmica de figuração e virtuosismo como sinônimo de bom desenho, e a

expressão do desenho de cada um, existe uma lacuna difícil de superar, entretanto isto não deve

frustrar ou inibir a vontade de desenhar. Trata-se de buscar uma expressão, um desenho interno

em acordo com a própria personalidade. Os modelos têm função fundamental, que é apontar

caminhos, linguagens, processos de trabalho, modos de operar na conquista do desenho. Gómez

Molina argumenta que os modelos podem funcionar de modo positivo, quando intentam resolver

problemas de representação, ou transmitir de modo objetivo conhecimentos já desenvolvidos,

28 Esta referência de tradução nos foi transmitida pelo Sr. Fares Youssef Murr, libanês radicado no Brasil. Este
senhor foi aluno participante em vaga oferecida pela Universidade Aberta para a Terceira Idade na disciplina de
graduação “O Papel do Desenho na Arte”, ministrada pela Profa. Dra. Carmen S.G. Aranha, no MAC edição de
2007.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 35

colaborando com a criação de continuidade da ação de desenhar.29 Porém, são negativos quando

se enraízam e se arcaízam em formas estanques e acabam servindo mais para a inibição do que

para a manutenção da linguagem do desenho. É desejável que se tenha consciência de qual

modelo de desenho se parte, e como este modelo pode ser favorável ao desenvolvimento da

expressão pessoal.

Quando Merleau-Ponty fala do olhar como primeira manifestação da criação da obra de

arte, se deduz que o desenho como manifestação sígnica está já presente no recorte espacial, no

enquadramento do plano, no ponto de vista escolhido para a apresentação oferecida como

linguagem, comunicação, independente do meio. Ponty fala de um “corpo operante”, de um

observador do fenômeno que se movimenta, produzindo formas no espaço e reinterpretando o

visível, mediado pela posição, pelo material empregado no registro gráfico, pela pressão do lápis

sobre o papel, e uma série de contingências que interferem no resultado das linhas e formas.

Bruno Munari, em Das coisas nascem coisas30, apresenta algumas modalidades de desenho. O

autor trabalha motivado pelo campo do design, porém pode nos interessar conhecer estas

tipologias que o autor tenta definir. São tipos de desenho, segundo a concepção de Munari:

- Esboço rápido; anotação, memória, registro de uma ideia.


- Desenho sintético, desenho plano, de contornos rígidos, muito usados nas artes gráficas, sobretudo em
marcas de fábrica ou símbolos.
- Desenho em perspectiva, de objeto ou construção, com maior detalhamento.
- Desenho de frente ou frontal, desenho de vista superior, de cima, planta baixa, executados com
máxima precisão, sempre em escala e cotados.
- Desenho científico, ilustração científica, representação de um objeto, uma planta, um animal,
exatamente como ele é, sem cuidados de estilo, sem intenções estéticas, só para mostrar bem o objeto em
todos os seus possíveis pormenores.
- Desenho explodido, frequentemente usado para apresentar partes, mecânicas ou objetos formados por
várias partes, as quais se apresentam destacadas da parte central, de forma a que se percebam quantas
partes compõem o objeto e como estão dispostas. Reaproximando mentalmente as várias partes pode
imaginar-se o objeto inteiro.
- Desenho axonométrico, baseado na perspectiva axonométrica em que as linhas que a compõem não
convergem para pontos de fuga, mas são paralelas entre si, seguindo três direções que dão três
parâmetros: largura, altura, profundidade.
- Desenho em corte, no qual se vê o objeto representado em axonometria ou em perspectiva, como se fosse
cortada uma fatia, com visão interna.
- Desenho artístico.
- Desenho sobreposto, feito em folhas diferentes e transparentes, que depois sobrepostas formam a
composição, simulando três dimensões.
- Desenho executivo, traçado por meio de uma série de linhas em secções.

29 MOLINA, 1995, p 49-50.


30 MUNARI, 1981, p. 67-94.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 36

Esboço da pintura A Negra, de Tarsila do Desenho sintético: placa de sinalização de


Amaral. banheiro masculino.

Desenho de Perspectiva, estudo. Lúcio Costa. Planta do Plano Piloto de


Brasília após as alterações feitas na
implantação, em 21 de abril de 1960. Fonte:
CPDOC-FGV. (Disponível em:
<http://bhpbrasil.spaces.live.com/?_c11_B
logPart_BlogPart=blogview&_c=BlogPart
&partqs=cat%3Darquitetos>)
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 37

Ilustração Científica, Litogravura de autor Desenho explodido, (Ver: MUNARI,


não identificado. (Disponível em: p.85.)
<http://darwinonline.org.uk/content/fra
meset?itemID=F8.1&viewtype=image&p
ageseq=53>)

Desenho axonométrico Desenho em corte. (Disponível em:


<http://arte-
concepcao.blogspot.com/2009/11/edifi
cio-vodafone-no- porto.html>)
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 38

Desenho artístico: D. Alvarez. (VITAMIN D, p.13.) Desenho Sobreposto: Gabriel Borba,


MAC USP.

Desenho Executivo. Ver: MUNARI, p.63

Neste trabalho, visando uma possível atualização do conceito, vamos supor, como modo

de definir alguns parâmetros, e propor, como possibilidade de articulação, que existam alguns

tipos de desenho possíveis de serem agrupados e compreendidos como pertencentes a uma

mesma categoria (outros tantos são possíveis; este é apenas um recorte para facilitar a

aproximação com a linguagem):

a) De observação: que extrai formas da natureza, ou de algo já existente, principalmente

tridimensional, mas também a partir de imagens bidimensionais, ou colhido diretamente da

superfície (frotagem). Representa mais do que apresenta.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 39

Desenho de Giorgio Morandi

b) De memória: saído de um referencial existente, porém mais sintético, organizado a

partir da lembrança do objeto, cena ou situação. A interpretação e a expressão do autor são

bastante evidentes neste tipo de desenho. A ilustração, os cartoons e histórias em quadrinhos

utilizam normalmente este desenho.

Desenho de Kaoru Arima's,


VITAMIN D, p.22
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 40

c) De imaginação: articula a memória com a construção de uma simulação. Apresenta

mais do que representa.

Desenho de Hans Bellmer

d) De invenção: coloca formas no mundo. Normalmente ocorre no desenho de

arquitetura ou de design, quando há um projeto envolvido. Um arquiteto, a partir do desenho da

natureza, imagina formas que se articulam sobre esta mesma natureza, e com a invenção de um

projeto constrói uma edificação que passa a existir e fazer parte da paisagem. Da observação da

natureza e seu relevo, a arquitetura interfere na geografia e inventa uma construção que se

executa a partir de um projeto. Depois da obra pronta é possível observá-la e fazer um novo

desenho que investiga as formas produzidas e dá ao desenhista uma nova visão, por meio do

desenho de observação, de seu projeto realizado. Esta ação conjuga vários desenhos e camadas

de compreensão da forma gráfica.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 41

Desenho de Oscar Niemeyer

e) De intervenção: sobre uma imagem produzida por outros meios ou suportes, como a

fotografia, são feitas intervenções pelo desenho. Não é um tipo de desenho específico: é mais

uma ação.

Desenho de Dr. Lakra. VITAMIN D,


p.167
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 42

f) De recolhimento: que recolhe imagens de desenho de lugares diversos. Normalmente

desenho registrado por fotografia e imagens digitais. Existe a possibilidade atualmente de com as

ferramentas da internet, a partir do volume de imagens digitais disponíveis na rede mundial de

computadores, das fotografias fetias por satélite, etc; selecionar, reagrupar, fazer colagens e

transformar as imagens, criando significados diversos da imagem de origem, para se fazer

desenhos usando ferramentas digitais.

Ricardo Carioba, Sem Título. Imagem extraída de


monitor eletrônico de computador.

Por meio da verificação deste conjunto de modalidades de desenho é possível ter alguns

parâmetros de como se utilizar dessas formas de desenhar. Pensando sobre o desenho com o

objetivo de atualizar suas formas e linguagem, é preciso avaliar que sua amplitude se tornou

maior, e não desapareceu do sistema de produção de imagens. Na arte contemporânea esta

amplitude pode ser encontrada em meio às novas mídias, formas e características diversas que se

inserem no contexto atual.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 43

Arte atual e desenho

Boa parte da chamada arte contemporânea, é reflexo e resultado de um processo de

desconstrução da linguagem acadêmica, em suas regras mais rígidas de representação, que se

desenrolou ao longo do século XX. Este aspecto trouxe muitas vezes para o senso comum a ideia

de que arte contemporânea é hermética, de difícil interação e compreensão, pois a imagem

figurativa e mimética é mais reconhecível e compreensível. Muitos textos críticos, ainda hoje,

lidam com o conceito de estranhamento como uma relação de desestabilização do espectador

frente à obra de arte. Ou seja, a arte contemporânea, para um determinado extrato cultural e

social, é quase sinônima de incompreensível, incomunicável. Este aspecto acaba sendo muito

presente na estratégia de diversos artistas e acaba caracterizando a arte contemporânea de um

modo bastante uniformizado. Esta estratégia possivelmente tem origem na alteração da

linguagem, como estrutura com base na representação, figurativa e mimética. Victor Chklovski

no texto A Arte como Procedimento, argumenta, ao analisar os escritores formalistas da literatura

russa do final do século XIX e início do XX, sobre uma mudança na linguagem literária. Esta

alteração estaria marcada por aspectos formais que incorporam uma mobilização do espectador

diante da obra literária. A quebra da linearidade e da literalidade, em prol de uma liberdade

expressiva, a abstração e a geometrização das formas, os temas inconclusos, a linguagem

desestabilizada pelos diferentes pontos de vista, são alguns dos aspectos que são enfatizados por

Chklovski. Podemos estabelecer nas artes uma similaridade formal com a literatura, inclusive, os

movimentos modernistas têm sempre conexões entre as linguagens expressivas (imagem 25).

Estas propostas criativas passam a ser exploradas pelos autores e artistas de então com o objetivo

de mobilizar o espectador a ser um participante, um coautor. Chklovski, ao citar o linguista

Aleksandr Potebnia, no seu texto, diz que “a imagem é um predicado constante para sujeitos variáveis, um

meio constante de atração para percepções mutáveis”.31

31 CHKLOVSKI, 1971, p. 40.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 44

Assim, o conjunto de sujeitos, possibilita uma leitura plural da obra de arte, que possui

diversos pontos de vista e possibilidades de atribuição de sentido e significado. A ideia de

discurso, sob o ponto de vista da semiologia, relacionada com as tendências político-filosóficas da

educação32 torna-se fundamento e ferramenta didática na abordagem da mediação. No livro

Estratégias dos Signos, Lucrécia D'Aléssio Ferrara, aponta os estudos do discurso de Mikhail

Bakhtin e Julia Kristeva33. Caracterizando a existência de três formas de discurso, a saber,

discurso monológico, discurso dialógico e discurso polifônico, os autores os qualificam segundo a

participação do receptor diante da obra de arte da seguinte forma: o discurso monológico é

imperativo; o discurso dialógico abre a possibilidade de interação do sujeito com a obra, mas para

Bakhtin, o discurso democrático por natureza seria o polifônico, cujas vozes interagem com a

obra, e interagem entre si, numa construção de conhecimento coletiva, na qual todos são atores

envolvidos no processo cultural e aprendem uns com os outros. Esta estratégia, digamos assim,

de interatividade, propondo uma participação nos trabalhos, tem se mostrado bastante relevante

em algumas produções da arte contemporânea.

Arthur Coleman Danto trata do tema a partir da ideia de fim da história da arte,

argumentando que existe atualmente uma equidade das manifestações culturais, e que a arte teria

abandonado o fim das grandes narrativas históricas, sendo muito mais múltipla e complexa. Seu

argumento se apoia sobre a teoria de Hegel, a qual diz que só há história onde há civilização,

notadamente de modelo europeu, e que este pensamento não se verifica possível no tempo que

vivemos. A concepção Hegeliana, segundo o autor denota o seguinte:

“A visão de história de Hegel impõe que apenas certas regiões do mundo, e só em determinados
momentos, eram verdadeiramente “mundo histórico”, de modo que outras regiões, ou a mesma região em
outros momentos, não eram parte do que realmente estava ocorrendo historicamente”.34

Este conceito desenvolvido por Danto é definido como o fim das grandes narrativas

históricas e o fim da era dos manifestos, também apresentado e refletido pelo autor alemão Hans

32 Cf. AQUINO, 1996.


33 Cf. FERRARA,1986.
34 DANTO, 2006, p. 29.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 45

Belting. O início desta argumentação se encontra no momento que o autor nomeia de Alto

Modernismo, que ocorre entre as décadas de 1940 e 1950. Este período é caracterizado pela arte

abstrata, de apelo internacional, que pode ser verificado, por exemplo, no catálogo da segunda

Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. A história e no nosso caso expressão de outras

culturas entram em cena e produzem outros modos de pensar e fazer arte. A estas transformações

surgem alguns conceitos que são precedidos de prefixos como inter-, pós-, multi-, trans-, neo-.

Termos como pós-modernismo, transculturalismo, neoexpressionismo, entre outros, aparecem e

acabam sendo sinônimos de arte contemporânea. Acreditamos que aprofundamentos sobre estas

questões não estão entre os principais temas a serem discutidos neste trabalho em específico. O

interesse refere-se à transformação dos suportes, ao aparecimento de uma indústria cultural

internacional e das novas tecnologias de produção e difusão da imagem terem alterado o modo

de exteriorização do desenho. Estas novas configurações sociedade atual trazem uma sensação de

perda do desenho, que se desloca para o campo do projeto, do design. Há, no entanto, uma

transformação, uma migração do desenho, com ênfase no processo, que acaba se tornando

invisível, escondido do público. O desenho se expande ganha outra dimensão, muitas vezes

marginal, e desaparece da escola, do ensino, da prática, concentrando-se em outros campos da

sociedade. A percepção do desenho dá-se então em outra chave de maior espectro, encontra-se

expandido e imbricado na vida, presente nos produtos de consumo. Décio Pignatari fala da

ausência de um design brasileiro como falta de desenvolvimento da sociedade brasileira, no

urbanismo, na arquitetura, na arte, na indústria35. O desenho submerso e não visto, se torna

conhecimento misterioso, fruto da genialidade, ou de ações subversivas, muitas vezes expressas

pelas pichações (imagem 26). Ocorre que do desenho ignorado decorre um desenho não

pensado, estereotipado, inadequado. Falta a compreensão da linguagem, de sua estrutura, de

ferramentas do fazer, estrutura de composição, de adequação a suporte e contexto. Isto resulta

em um tipo de desenho espontâneo, não pensado, mau desenho: quando não penso o desenho,

35 PIGNATARI, 1998, p. 84-91.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 46

outro pensa por mim. Se o desenho não é perceptível na sociedade corre-se o risco de que ele

não seja explorado adequadamente, e sua falta produz uma construção social, urbana, ecológica,

deficiente, sem originalidade.

De acordo com o que argumentamos, o desenho, como linguagem, em seus

procedimentos técnicos diversos, permanece atual na arte. Às vezes, se comporta segundo as

definições e os meios expressivos seculares; outras vezes, utiliza-se das novas possibilidades e

explorações oferecidas pelas técnicas e tecnologias atuais. É no movimento de investigar o

desenho que vamos perceber suas novas formas e configurações na contemporaneidade. O

desenho atual tem disponível para sua expressão, novos meios, suportes e técnicas. A conjugação

cérebro, olho, mão, lápis, papel, muitas vezes é compreendida como sinônimo de desenho,

assunto que abordaremos na terceira parte desse trabalho, linguagem. O ato de empunhar um

objeto, normalmente pontiagudo, cuja forma mais comum que temos é o lápis, e produzir um

ponto, uma linha e formas sobre uma superfície, são os primeiros movimentos da ação de

desenhar. O papel como conhecemos hoje, ainda é um dos suportes mais consagrados onde se dá

o desenho. No entanto, se pensamos nos novos processos, técnicas e procedimentos para a arte

atual, faz-se necessário entender as manifestações de desenho de um modo mais amplo.

O filósofo alemão Walter Benjamin, em sua obra clássica “A Obra de Arte na Época de suas

Técnicas de Reprodução”, traz a seguinte citação atribuída ao poeta Paul Valéry:

“Tal como a água, o gás, e corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas, atender às nossas
necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e
auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal” 36

Esta afirmação, com caráter premonitório de Valéry, é uma realidade hoje, em um

momento em que vivemos o processo de interatividade e profusão de imagens via internet.

Refletir sobre o desenho neste contexto, em que convivem sobrepostos um conjunto de

possibilidades significativas leva a verificar a potência de alguns caminhos, porém, sem definições

fechadas. É possível perceber e apontar algumas possibilidades de lidar com o desenho, que se

36 Valéry (1931 apud BENJAMIN, p. 6).


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 47

apresentam num panorama de grande diversidade. Esta diversidade, além dos meios, tem a ver

também com culturas que começam a aparecer e serem visíveis no mundo contemporâneo. Para

além do “Velho Mundo” Europeu, e da América desenvolvida, outras vozes se fazem ouvir e

passam a solicitar participação no discurso da cultura mundial. Assim, a arte atual com o desenho

se manifesta nas diversas culturas, em suportes e materiais variados, com o desenho se

apresentando como projeto, como processo, mas ainda guardando em si uma estrutura de

linguagem, ou mesmo explorando os suportes consagrados para sua prática.

Um dado relevante na produção e veiculação da imagem na atualidade é que sua difusão

se dá em diversos suportes e mídias. Mesmo um desenho feito sobre papel, é escaneado,

digitalizado e colocado na internet à disposição de milhões de usuários da rede. Ou podemos

mesmo pensar em imagens, ou desenhos, que são produzidos digitalmente e que são feitos

exclusivamente para transitarem na rede, podendo também ser impressos e circularem em

suportes materiais. Não há preconceito da grande parte dos artistas atuais no uso de materiais,

suportes e técnicas; o digital tem se misturado ao artesanal, o tecnológico ao analógico. O que

pesa de um modo talvez negativo, é que a “facilidade” em se produzir imagens, no sentido do

uso de novas tecnologias, retira ou obscurece a necessidade de conhecer com maior profundidade

a linguagem, a história, os processos que conduziram o desenho até os dias de hoje. De outro

ponto de vista, esta mesma “facilidade” de produzir imagens, se insere num aspecto relativo à

interatividade. Surgem cada vez mais coletivos de arte e obras que necessitam da participação do

espectador para acontecerem plenamente. Estes fatores mobilizam a existência de mais

produtores de imagem, de geradores de conteúdo. Hoje talvez o grande desafio esteja em

encontrar para uma ideia o suporte e meios adequados para sua realização. Existem programas de

computador que simulam uma pintura com óleo sobre tela. O que ocorre é que não é um óleo

sobre tela, e a utilização do computador para um trabalho como este se torna uma subutilização

da técnica e da linguagem expressiva. Se o objetivo é realizar um óleo sobre tela, o adequado é

realizar a pintura, que tem sua linguagem própria. Entretanto, o computador pode gerar imagens,
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 48

e criar desenhos, por meio de uma câmera de segurança que altera a imagem transmitida

aleatoriamente (imagem 27). Ou mesmo construir games, jogos que geram linhas aleatoriamente,

constituindo um labirinto eletrônico na tela de reprodução de imagem do computador. (imagem 28)

O que propomos é um reconhecimento de que o desenho, na atualidade, ampliou suas

possibilidades, mais do que desapareceu do panorama de trabalho dos artistas, e mesmo de

outros campos como a produção de objetos, a arquitetura ou o urbanismo. Sua parcela de

contribuição para a arte atual é justamente sua amplificação. Entendê-lo dessa forma pode

contribuir para um desenho adequado ao seu suporte, à sua manifestação visual, à composição

pensada, que contribui para a qualidade da expressão artística.

Alguns artistas pioneiros na experimentação com as novas tecnologias como o norte-

americano Bruce Nauman, tem o desenho como estrutura fundamental de seu pensamento na

criação de suas obras. Nauman trabalha com suportes diversos, inclusive instalações, vídeoarte,

vídeoinstalações. O artista faz um comentário sobre o desenho em seu trabalho (imagens 29, 30,

31 e 32):

“Desenhar é equivalente a pensar. Alguns desenhos se fazem com a mesma intenção do ato de escrever:
são anotações que se tomam. Outros intentam resolver a execução de uma escultura ou trabalho em
particular, ou imaginar como funcionaria. Existe ainda um terceiro tipo, desenhos representacionais de
obras, que se realizam depois das mesmas feitas, dando-lhes um novo enfoque. Todos eles possibilitam
uma aproximação sistemática no trabalho, inclusive muitas vezes sua eficácia é de dar uma lógica a
algo absurdo”.37

É a partir desse contexto que se inscreve o desenho na arte atual, como manifestação que

continua a existir e a ser debatida. Portanto, ignorar o desenho e seu estudo, é o descartar como

ato do conhecimento que, por um lado pode expressar-se como primeira forma de visualidade,

como disse Beuys, e por outro, organizar, ao se estudar sua linguagem artística e seus elementos,

o mundo visível ao nosso redor. Esta lacuna prejudica a percepção da ocupação adequada dos

espaços e territórios, do crescimento das cidades, do planejamento das edificações, das casas, das

ruas, da relação do ser humano com a natureza e sua transformação. A possibilidade de pensar

visualmente e testar projetos usando o desenho, antes de cometer erros deve ser considerada. O

37 Nauman, (1995 apud GOMÉZ MOLINA, 1995, p.33).


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 49

volume de imagens que povoa o nosso cotidiano necessita de uma reflexão sobre sua forma, que

em primeira instância é desenho. A informação tem sempre seu valor, os caminhos já percorridos

encurtam a estrada e há de se pensar que as transformações na cultura atual ocorrem

aceleradamente. No campo das tecnologias de comunicação e informação isso não é diferente, o

que faz surgir um horizonte em aberto, no qual há muitos desenhos por se fazer.

Não é possível deixar de relacionar o gesto, principalmente no desenho artístico, a

presença da mão do artista, da humanização do traço livre de aparatos técnicos ou tecnológicos,

como início de um planejamento e estudo de ideias, num terreno de experimentação.

A compreensão da linguagem, o aprendizado e a prática do desenho são atos que

estruturam um modo de pensar visual, gráfico e espacial. As ferramentas, técnicas, materiais e

suportes podem ser muito variáveis, e ir desde o lápis e papel até o uso do corpo, da computação

e de outras possibilidades. Não é imprescindível optar exclusivamente por uma forma, pela

representação, pela abstração, ou qualquer outra forma estilística para começar a utilizar a

linguagem do desenho. O que vale é a exploração da ação de desenhar e de pensar pelo desenho,

gravando e registrando no plano uma intenção, que possui consciência de sua interferência, e,

portanto, responsabilidade com o mundo.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 50

Imagem 6 Imagem 7

Imagem 8 Imagem 9.

Imagem 10. Imagem 11.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 51

Imagem 12. Imagem 13

Imagem 14. Imagem 15.

Imagem 16. Imagem 17.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 52

Imagem 18. Imagem 19.

Imagem 20.

Imagem 21. Imagem 22.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 53

Imagem 23. Imagem 24

Imagem 25. Imagem 26.

Imagem 27. Imagem 28.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 54

Imagem 29. Imagem 30.

Imagem 31. Imagem 32.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 55

Parte II: Expressão

“Qualquer atividade mental produz um conhecimento; se a arte não produzisse, seria uma brincadeira
inútil. Mas o conhecimento artístico distingue-se do científico e do místico. O conhecimento científico
alcança-se por meio de tipos e categorias, que a razão formula como verdades. O conhecimento místico
deve-se à completa dedicação do indivíduo ao universal, sem recorrer à razão. O conhecimento artístico
também não se deve à razão, mas, em vez de ser dedicação ao universal, é conhecimento individual, de
um individual em que o universal presumivelmente se espelha”.38

Formas do desenho

Ao entendermos por desenho primeira elaboração de uma ideia nascida no interior do ser

e convertida em uma ação que se materializa em um suporte, é possível assim considerá-lo um

rudimento da comunicação e da expressão humana. Como qualquer outra área de conhecimento,

sua prática e estudo aprimoram seu uso e constituem repertório para a criação visual. O resultado

de uma expressão, livre de parâmetros ou cânones específicos, pode passar a constituir códigos,

representações e se estruturar como linguagem. Esta construção se codifica e converte-se em

comunicação compartilhada entre membros de uma mesma cultura, gerando informação trocas

entre os indivíduos. O desenho está inserido em vários campos da atividade humana, porém não

diremos aqui que todo desenho pode ser chamado de arte. A subjetividade do desenho, nascido

no intelecto e expresso numa materialidade, se localiza num campo de comunicação e de

interpretação abertos, que se soma à percepção do espectador. O desenho como manifestação

artística está aberto a uma reinterpretação do espectador. Como vimos no capítulo anterior, na

atualidade há a predominância, no sistema das artes, de um tipo de desenho que se configura de

maneiras diversas. Entretanto, em seu sentido artístico, uma característica comum se refere a

atributos que propõem uma recriação, uma participação do espectador, motivado por formas,

temáticas, propostas e experiências estéticas que buscam alteração do senso comum. Marcel

Duchamp, um dos nomes que propôs formas diferentes de fazer arte no início do século XX,

pensava em termos de uma arte viva enquanto interação com o espectador. Otavio Paz comenta

38 VENTURI, 1984, p. 22.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 56

este pensamento de Duchamp: “Uma das ideias mais inquietantes de Duchamp se condensa numa frase

muito citada: “o espectador faz o quadro”.39

Ainda sobre Duchamp, refletindo sobre sua obra, o autor mexicano a define como: “Uma

arte que obriga o espectador e o leitor a converter-se em um artista e em um poeta”.40

A esta subjetividade convertida em expressão podemos atribuir um grau artístico que

poderá vir a ser considerada obra de arte. É desta característica do desenho que atribuímos o

elemento de expressividade como força estética. Entre o desenho interno ou a intenção do

pensamento, e o resultado material alcançado há uma diferença, que Duchamp chamava de

coeficiente artístico41, conceito que trataremos mais adiante. A arte, para Duchamp, estaria

justamente nesta diferença entre o que se quis fazer e o que de fato apareceu na expressão

material.

A ação de desenhar coloca em movimento articulado, um organismo vivo, ou seja, o

desenhista, e um suporte físico. Entre eles há uma ferramenta, como um lápis, por exemplo. O

resultado se dá a partir da intenção convertida em ato, atitude, ação. Este movimento tem uma

amplitude que se relaciona com os dimensionamentos da forma no espaço, de sua colocação no

campo espacial, da composição. Existe uma movimentação ligada à ponta do lápis ou ao

instrumento que se move que gera a linha, originam-se tensões, densidade, ao se conjugar os

elementos que devem ser organizados para a construção de uma imagem.

Partindo da experiência e prática destas elaborações é que o desenho se organiza e cria

um repertório de possibilidades de exploração que lhe atribui qualidade.

O ato de desenhar é que produz o desenho. Quando se inicia nesta prática, nesta

linguagem é necessária disponibilidade, tempo e exercício. Procurar pelo desenho, tentando

confrontar o resultado expressivo pessoal com um modelo ideal, como foi tratado na primeira

parte deste trabalho, não é o caso. Deve-se agir desenhando e, assim, com experiência e pesquisa,

39 PAZ, 2002 p. 60.


40 Ibid., p. 61.
41 DUCHAMP, 2008, p. 71-74.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 57

em um momento inesperado, é que se encontra com o desenho. Um desenho pessoal, que a

partir de então vai se colocando sobre diversos panos de fundo da cultura, assimilando

referências, recusando posturas, se definindo como linguagem particular, que se comunica com o

todo. Após este encontro, abrem-se caminhos para pesquisas a partir de conceitos, ideias,

processos e interrogações que a própria dimensão da arte suscita. Neste ponto é possível começar

a estabelecer um conjunto de elementos que fundamentarão e poderão articular novos e outros

desenhos. Desenhar, portanto, exige desenhar. Sendo o resultado dessa ação traços, riscos, linhas

sobre uma superfície, em contrastes tonalidades sobre um plano, signos e registros de ideias, de

figuras, de descrições visuais, que se organizará na construção de uma linguagem.

Coloquialmente falando, existe a história popular do “desenho ao telefone”. Muitos

alegam desenhar livremente quando falam ao telefone. Portando um lápis ou uma caneta na mão

entregam-se à ação de rabiscar, de desenhar intuitivamente, sem o compromisso de realizar algo

bem acabado, mas apenas de se perder nas linhas produzidas sobre a folha de papel. Fazendo um

paralelo, quase não nos damos conta que escrever é um modo de desenhar. As letras do alfabeto

são abstrações dos sons produzidos pela fala, linearmente e em sequência, que no ocidente se

convenciona a escrita na direção da direita para a esquerda. Esse modo de ordenação materializa

uma comunicação que é grafada num plano. Cada pessoa possui uma letra, uma voz e uma

impressão digital individual, que a identifica, sendo isso também desenhos que caracterizam sua

expressão no mundo. A expressão da mão, o temperamento da linha, o resultado de valor tonal,

da forma sobre a superfície em que se inscreve o desenho, traz consigo a revelação de uma

intencionalidade e de uma individualidade, aquilo que historicamente é tratado como o estilo do

artista, sua expressão pessoal. Este tipo de construção da expressão desenvolve-se ao longo do

tempo, com trabalho constante e poderá vir a definir uma individualidade criadora. A linha, um

dos elementos básicos da linguagem, revela um determinado temperamento, uma psique, um lado

subjetivo do autor e é carregada de sentido em si própria. É neste aspecto que podemos falar em

valor linear, tensão linear, correlações de intensidade, ritmo e movimento, que


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 58

independentemente da representação ou imagem que resulte dessa operação, traz em si a noção

de expressão. (imagens 33, 34, 35 e 36)

Retomando Marcel Duchamp e o seu conceito de coeficiente artístico, no texto O Ato

Criador, sua reflexão é sobre a criação artística. Ele não trata exatamente sobre o desenho, mas de

alguma forma sua ponderação nos serve e é assim apresentada:

“Segundo esta declaração, o artista nunca tem plena consciência de sua obra: entre as suas intenções e a
sua realização, entre o que quer dizer e o que a obra diz, há uma diferença. Essa “diferença” é
realmente a obra. Pois bem, o espectador não julga o quadro pelas intenções de seu autor, mas pelo que
realmente vê; esta visão nunca é objetiva: o espectador interpreta e “refina” o que vê. A diferença se
transforma em outra diferença, a obra em outra obra”.42

“A obra faz o olho que a contempla – ou, ao menos, é um ponto de parida: desde ela e por ela o
espectador inventa outra obra”.43

Entre o que se quer realizar e o que se realiza temos uma diferença, que na verdade

somente o autor é capaz de perceber plenamente, que deve ser usada a favor da obra. Entre a

expressão do autor e uma compreensão e interpretação da obra pelo observador é necessário o

reconhecimento da linguagem. A leitura da obra, reconhecendo a linguagem, a enriquece de

interpretações, significados e sentidos tornando-a mais complexa. Mostra-se como uma estranha

sensação que temos de não nos cansarmos de olhar uma mesma imagem, uma mesma obra de

arte que sempre se mantém nos estimulando e intrigando.

Uma grande ambição dos artistas talvez seja a de produzir algo de se mantenha chamando

atenção por algum tempo, ou traga uma característica que mobilize de alguma forma o

espectador, em um olhar que se renove. Outro aspecto que precisa ser considerado é que existe,

de algum modo, uma motivação psíquica que se manifesta em vontade de expressão, que é inata

ao ser humano. Ainda que seja por meio de uma comunicação introspectiva, sendo o criador o

próprio espectador da obra, esta necessidade de expressão habita o ser. O poeta Manuel de

Barros tem um breve poema que diz: “estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma”.44 Este curto

poema de apenas um verso, ilustra uma postura de confiança do traço que sai da mão e como

42 DUCHAMP, 2008, p.60.


43 Ibid., p. 61.
44 BARROS, 2002, p.69.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 59

cada um tem um modo individual de se expressar. É a parte de um estudo que não se pode

perder, o trabalho de insistir no desenho, reconhecendo a própria expressão, ao se fazer mais e

mais desenhos experimentando matérias, materiais, percepções e ideias. E quando se trata de

pensar em uma expressão pessoal, nos confrontamos com a cultura e modelos. A força e

presença, nas culturas ocidentais, da produção imagens figurativas ou miméticas, podem criar um

afastamento das pessoas da prática de desenhar. Pensamos, entretanto, que isso deve ser

combatido. Tomando como exemplo a escrita em sua forma desenhada, percebemos que cada

um tem sua própria maneira de expressar a letra pessoal, a assinatura.

A expressão é identificável pela materialidade, pelo resultado das relações dos pontos, das

formas, das linhas, sobre o suporte, sobre o campo delimitado no qual se assenta a composição, a

disposição das partes. É da articulação entre o olhar e o gesto, mediado pelo pensamento

reflexivo que se origina desenho. Desenhando com a atenção direcionada para a própria linha,

tendo os modelos de bom ou mal desenho em suspensão, tem-se a possibilidade de tomada de

consciência da própria expressão. Falamos isso para os indivíduos que querem se expressar pelo

desenho, mas que convivem com um bloqueio, que não cabe aqui averiguar sua procedência. O

desenho como expressão pode ser explorado pelo olhar e desenhar, desenhar e olhar, em ato, em

ação. Esta uma forma de exercício expressivo primeiro, de investigação e reconhecimento de

identidade gráfica que posteriormente vai se organizando pelos elementos fundadores da

linguagem.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 60

O meio é mensagem

O material em si próprio com suas características específicas de materialidade orienta e

condiciona uma interpretação, uma linguagem como um timbre particular.

A invenção do lápis como conhecemos, é bastante recente conforme consta no Manual

do Artista, de Ralph Mayer:

“Os antigos desenhavam com finas varetas metálicas (chumbo, prata, paládio) e, apesar da grafita ser
conhecida e utilizada em lápis rudimentares, o lápis de grafita moderno, em sua presente forma com
revestimento de madeira, data aproximadamente do começo do século XIX”.45

A invenção do papel, feito de fibras vegetais, remonta há cerca de 2.000 anos, e seu uso

popular ainda é recente na história humana, sendo popularizado notadamente pela imprensa no

século XIX. Antes disso a feitura de desenho era em suportes orgânicos como pele de animais,

pranchas de madeiras, minerais como a cerâmica ou em paredes de construções. O conhecimento

dos materiais nos ajuda a ter a compreensão, de antemão, de resultados do desenho.

A textura, coloração, aspectos de sua trama, dimensões do papel, do suporte dão ao olhar

os primeiros aspectos da composição de um desenho. É partindo das condições físicas do

material que se inscreve o desenho e sua expressão vai se constituindo a partir das características

inerentes à matéria. Esta relação também se apresenta nas escolhas do material de construção das

formas no plano, ou seja, os lápis, os instrumentos de gravar e outras possibilidades técnicas de

registro material. Os objetos de desenho como compasso, esquadro, régua, entre outros,

normalmente descritivos e usados para o desenho técnico, tendem a criar uma impessoalidade,

uma manifestação de uma comunicação e linguagem direta. O design e a arquitetura se utilizam

desse desenho e atualmente as ferramentas utilizadas são também contidas em softwares de

computadores como o AutoCAD. (imagem 5)

Espera-se de um desenho técnico uma comunicação direta e imediata, sem ruídos com o

receptor, uma vez que se destina a pessoas que serão executores normalmente de um projeto. O

45 MAYER, 1996, p. 03.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 61

modo desenhar conhecido como “desenho à mão livre” carrega quase que necessariamente a

expressão do desenhista. Entretanto, a arte geométrica ou o desenho projetado também geram

estilo e ao observar em conjunto trabalhos de artistas que lidam com a geometria de forma direta,

podemos notar uma identidade que se manifesta na composição. (imagens 38, 39 e 40)

Observando desenhos e refletindo sobre a imagem e como ela se inscreve no plano, uma

metáfora ou um conjunto de analogias pode ser aplicado à expressão com o desenho. Esta

verificação, transformada em metáforas, nos serve para perceber possibilidades de realizar

desenho. A historiografia relata no Renascimento a presença do conceito de “claro-escuro”, que

se caracteriza em uma relação formal binária entre luz e sombra. Esta oposição se verifica

também nas operações de desenhar com um lápis, quando a matéria se deposita no papel, ou de

fazer uma gravura em madeira, em que se retira matéria da superfície da matriz. Parece-nos que

sempre há uma ação de colocar ou retirar matéria, luz e sombra, entre outras ações dualistas, para

se produzir uma imagem. Mesmo as imagens digitais, projetadas nas telas eletrônicas, lidam com

o código binário “0-1”, no qual passa ou não passa a luz. Deste olhar, um tanto empírico, talvez

possamos determinar que pela relação de oposição binária é que dão-se as operações expressivas

do desenho. Surgem a partir das ações de cavar e amontoar, erodir e juntar, raspar e aglutinar,

retirar e colocar matéria, iluminar e escurecer, dos dígitos binários – 0 e 1 – do computador,

passar ou não passar energia, projetar e executar. É pela articulação e consequente gradiente de

passagens dessas polaridades, junto com o atrito e resistência do suporte, do plano na ação sobre

a matéria, que podemos conceber a criação e o fazer do desenho. Quando se desenha está se

fazendo este tipo de operação, normalmente com ênfase em um ou outro lado da polaridade, ou

articulando ambos. O exemplo da construção gráfica, citada anteriormente, se baseia no conceito

de “claro e escuro”, no contraste fundamental entre luz e sombra. (imagens 41, 42, 43, 44, 45 e

46)

O lápis sobre o papel configura-se em uma ação de depositar matéria sobre uma

superfície com determinada textura; ao ser pressionado e arrastado, a grafite se fragmenta e


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 62

assenta sobre o plano. O carvão ou a grafite, por exemplo, têm como resultado de sua ação a

matéria orgânica ou mineral, depositada sobre a superfície. Porém, temos outras formas de

produzir desenho, retirando matéria do próprio suporte. A ação de retirar matéria é

compreendida como um processo de gravação, aplicado na gravura, de origem etimológica do

grego gráphos46, que significa também desenho.

O ato de gravar47, no sentido de ferir uma superfície para registrar uma imagem que, por

sua vez, pode ser reproduzida por posterior impressão em outra superfície, significa retirar

matéria, que resulta num sulco, numa erosão do material. É possível também desenhar por

apagamento, preenchendo o papel com grafite raspada, cobrindo toda sua superfície, e em

seguida desenhar com uma borracha ou outro instrumento de apagamento. (imagem 47)

A passagem da imagem para o suporte seja de observação, memória ou imaginação, dá-se

pela articulação de determinados materiais ou ferramentas sobre uma superfície. Os materiais

usados para desenho vão desde pedaços de madeira, como gravetos, bambu, penas, lápis em

gradação de rigidez da grafita variável e vários outros. Existem pincéis, carvão vegetal, bastões de

pastel seco ou oleoso, mouse de computador, canetas esferográficas ou eletrônicas, o corpo, as

próprias mãos, e muitas outras possibilidades possíveis. Para gravação, são usados, normalmente,

instrumentos de metal com pontas diversas, como goivas e formões, para gravura em madeira, e

ponta seca, como buris e berceau, para a gravura em metal (imagem 48 e 49). Em outras

modalidades de gravação se utiliza lápis oleosos, ácidos e outros produtos químicos para gravar

sobre uma superfície. A própria fotografia é um processo de gravação, sobre um filme

emulsionado com substância fotossensível, como sais de prata, da luz capturada pela lente da

máquina e projetada no interior de uma câmara escura. Não entraremos aqui em detalhes

técnicos, mas é preciso dizer que em cada uma destas técnicas ou tecnologias há características

46 A definição de Graf(o)- pode ser lida na nota de rodapé n. 9.


47FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário Aurélio. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1985.
Segundo FERREIRA (1985, p. 244): Gravar v.t. 1 Grav. Abrir com buril, cinzel, ponteiro, etc. 2. Grav. Entalhar com
formão, talhadeira, etc., em madeira. 3. Grav. Entalhar, incisar, fixar ou fazer corroer (imagens e eventualmente
letras), para posterior impressão. 4. Fazer gravação (2) de. 5. Memorizar.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 63

físicas que dão resultados específicos na feitura da imagem. Os suportes para a fixação de

imagens são vários. A própria Terra pode servir de suporte, a parede das cavernas, as paredes das

construções e edifícios, além é claro dos papéis diversos, dos tecidos, do couro de animais, argila,

pedras, metais, madeira, tela de vídeo e outras muitas possibilidades. É pelos resultados obtidos

pelo uso dos materiais que argumentamos que a expressão se apresenta e dimensiona parâmetros

para linguagem que produz a imagem. Nos anos 1960, Marshall McLuhan afirmava que o “meio é

a mensagem”; neste trabalho pretendemos entender a afirmação sob a ótica de que o meio já traz

informação nele próprio e por isso mesmo é, também construção de linguagem. Por esta razão

escolher o material, o suporte para a realização de um trabalho, ajuda nas soluções do desenho.

Por exemplo, uma linha grafada uma linha grafada com uma esferográfica e uma linha inscrita a

lápis produzem resultados visuais muito diferentes entre elas. (imagem 50)

O mesmo se dá com o uso do papel, com sua gramatura, sua coloração e com outros

aspectos que trazem resultados plásticos diferentes, ressaltando ainda a existência dos limites do

suporte, a informação das dimensões do campo de atuação que temos para desenhar. É, também,

a partir dos limites do plano e de suas características que se desenha. Quando colocamos linhas

em um determinado suporte atuamos dentro dos limites do campo espacial que vamos utilizar: as

dimensões do suporte.

Podemos pensar, então, o espaço e a interferência gráfica que será executada pela

construção das sombras, pelo deposito da matéria ou pela exploração das luzes, do vazio. Pode-se

depositar matéria na superfície ou pode-se retirar matéria. O modo de pensar em cada operação é

diferente, assim como a forma de execução altera o resultado expressivo. Desenhar a partir da luz

é um exercício interessante, muito usado para aguçar a percepção e para descondicionar o olhar já

acostumado a desenhar depositando matéria sobre o plano.

Outra construção expressiva pede ser feita pela exploração da palavra como desenho,

objeto de experimentos entre artistas e poetas. No Brasil, nos anos 1950 um grupo de jovens

poetas, inspirados pelas vanguardas artísticas do início do século XX, notadamente pela arte
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 64

construtivista abstrata, criou a chamada “poesia concreta”. Essa poesia buscava realizar uma

integração da palavra escrita com a imagem, produzindo um tipo de texto que valorizava o

aspecto visual da escritura. Três dos expoentes da chamada poesia concreta foram os paulistas

Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. O desenho está eminentemente

presente nesse tipo de arte, pois tem importância fundamental na composição gráfica do texto.

(imagem 51)

Além do desenho como resultado de uma elaboração mental é importante notar que seu

resultado tem sempre propriedades expressivas determinantes. A expressão, ou resultado

expressivo, tem algumas características que podem ser previamente conhecidas, sendo úteis no

sentido de proporcionar um determinado controle sobre o resultado plástico. Neste sentido,

investigar os materiais é uma necessidade fundamental para a solução de questões expressivas no

desenho.

Diante de diversas e variadas possibilidades de se expressar, notamos que o desenho tem

manifestações que vão para além das formas mais conhecidas de expressão. O lápis sobre papel,

como meio expressivo, se comporta, para o senso comum, quase como sinônimo de desenho, e é

apenas mais uma das possíveis técnicas de desenhar. O desenho, como conceito, ultrapassa uma

relação específica com uma determinada técnica. O que propomos é uma forma de compreender

a sua expressão de uma maneira mais ampla, que leve em consideração os meios expressivos e

materiais, considerando que na atualidade novas tecnologias de produção de imagens estão

surgindo. Essa visão lança a reflexão de como o desenho ainda está na estrutura, na

expressividade das imagens. Conhecê-lo a partir de experiências com suas diversas possibilidades,

pode contribuir no desenvolvimento da linguagem, do seu uso informado e pensado, resultando

em criações não estereotipadas. Mais do que seguir regras para a expressão, propomos tornar o

desenho experimentável a partir de possibilidades.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 65

Desenho e novos meios

Atualmente temos assistido o aparecimento de um grande volume de meios tecnológicos

ou mesmo de abordagens do desenho que questionam sua validade, presença ou existência na

arte atual. As novas tecnologias que surgem e a produção de imagens com meios e suportes

diversos sugerem alguns questionamentos. O que seria considerado desenho na arte atual? Quais

são suas abordagens como linguagem hoje? Quais tecnologias e suportes são usados no atual

contexto?

Se o desenho não nasceu com a invenção do lápis, ele sobrevive submerso nas estruturas

dos objetos, nas composições de imagens, no planejamento da ação humana do mundo.

Tecnologias sempre estiveram presentes na arte: a fotografia que surge no século XIX pode ser

considerada uma forma moderna de desenho. Do campo de expressão do desenho, ela guarda a

composição, o enquadramento, as relações de luzes e de valores tonais. Soma-se a isso a

possibilidade de multiplicação e difusão da imagem, que hoje pode até prescindir do suporte

material do papel, existindo em suportes digitais como tela de computadores, formada somente

pela emissão de luz. A partir da fotografia muitos artistas têm se dedicado à arte digital, cujas

ferramentas gráficas estão contidas em softwares de computador e são utilizadas para realizar

interferência e recomposição de imagens. Esse tipo de manifestação artística tem sido

amplamente difundida. Digitando “arte digital” em um site de buscas da Internet, com somente

um clique aparecerão centenas de imagens criadas em computador. Por esta razão, desenhar hoje

também pode se caracterizar por um processo de seleção de imagens, em trabalhos de colagem

ou montagem, com possibilidades de interferência nas imagens originais.

A tela de computador é o veículo onde as imagens produzidas pelos hardwares e softwares

são expostas. A imagem eletrônica é composta de uma trama de pontos luminosos, com um

sistema de funcionamento binário, com entrada ou não de energia. A tela toda branca emite

todos os pontos de luz e a tela toda preta não emite luz. A partir desse sistema, usando um
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 66

programa de computador, podemos produzir desenho. A composição, a distribuição da partes, os

modos de dimensionamento da imagem, toda estrutura pode ser trabalhada. Alguns programas

são muito usados como o Adobe Photoshop, Adobe After Effects, Adobe InDesign, CorelDRAW, dentre

muitos outros. Existem sites da Internet que simulam a ação de desenhar e há também hardwares

específicos para serem ferramentas de desenho como canetas, lápis e o próprio mouse do

computador. Tecnologias de manipulação de imagens diretamente em telas ou imagens

projetadas, em sistema touch screen, no qual a mão produz desenhos e os movimenta neste espaço,

são utilizadas em caixas eletrônicos de bancos, em smartphones como o iPhone, que possui plugins

para softwares de desenho. Mesas de tecnologias tocáveis têm sido desenvolvidas para

proporcionar uma interação similar ao do papel. (imagens 52 e 53)

Existem alguns sites que colocam programas online de desenho e animação, que podem

ser utilizados em rede. Como exemplos, temos o Mugtug Sketchpad48 e o Caligari49, no qual é

possível fazer um download gratuito de um programa de ilustração e animação chamado trueSpace 7.6.

São novas ferramentas de desenho que se apresentam atualmente bastante desenvolvidas,

que ainda são mais utilizadas por ilustradores ou aficionados por tecnologia. Porém, não

podemos deixar de perceber que cada vez mais estas ferramentas estão presentes na construção

de imagens e de desenho: basta verificar as crescentes e gigantescas indústrias dos games e da

animação cinematográfica. São modos de desenhar que fazem parte do universo cultural de

muitos jovens no mundo todo, que produz uma cultura digital, difundida via Internet para todo o

mundo. Aqui cabe a reflexão de como o desenho se insere neste contexto e como sua expressão

pode se individualizar diante das ferramentas disponíveis. É possível fazer desenho com um lápis

digital sobre mesa tablet sensível ao toque, ou usando as próprias mãos em telas tocáveis, ou até

mesmo desenhar com o próprio corpo a partir de softwares sensíveis ao calor. Enfim, é um

universo tecnológico e digital que se apresenta e propõe diferentes formas de desenhar, causando

48 SKETCHPAD: online paint/drawing application. Disponível em: <http://mugtug.com/sketchpad>. Acesso em:

29. jun. 2010.


49 3D modeling software: trueSpace. Disponível em: <http://www.caligari.com>. Acesso em: 29. jun. 2010.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 67

bastante interesse em artistas, ilustradores, arquitetos, designers e pessoas que trabalham

produzindo desenho. (imagens 54 e 55)

As imagens eletrônicas, elaboradas em programas como o Adobe Photoshop, são criadas a

partir de layers ou camadas que se sobrepõem. É possível desenhar sobre uma imagem já existente

como uma fotografia, ou mesmo com um desenho feito à mão, alterando texturas, luzes, formas,

etc. São recursos que produzem imagens que podem ser descartadas com um simples toque de

exclusão. Some-se a isso a possibilidade da inserção do movimento, que é algo que surge

praticamente junto com qualquer produção digital. As animações em computador ganharam

muita força a partir da década de 1990, sendo o Pixar Animation Studios, pertencente ao

conglomerado Walt Disney, o estúdio pioneiro neste tipo de linguagem gráfica. O documentário

The Pixar Story, dirigido por Leslie Iwerks em 2007, conta a história da Pixar, relatando o processo

de passagem da animação manual para a animação digital. É interessante verificar no

documentário que, por parte dos animadores mais antigos, havia um medo da perda do desenho

como habilidade manual. O que transparece no filme é a tecnologia surgindo como mais uma

possibilidade de expressão, e o desenho à mão ainda tendo uma importância fundamental na

criação, elaboração de personagens, cenas e outras formas de planejamento gráfico do filme.

Para nossa verificação neste trabalho realizamos uma breve entrevista com Nelson

Yokota de Paula Lima50, artista de animação brasileiro que trabalha em Londres, Inglaterra e

participou de produções como O Corajoso Ratinho Despereaux (2008), Sinbad – A Lenda dos

Sete Mares (2003) e O Grilo Feliz (2001). O objetivo de tal entrevista foi o de entender, a partir

do ponto de vista de um criador que lida cotidianamente com a tecnologia, que lugar o desenho

ocupa no seu processo de trabalho, bem como refletir se ainda há relevância do desenho fora do

suporte digital na sua produção. O breve diálogo que segue acaba por revelar que conhecer o

desenho e sua linguagem permite uma prática em que os suportes e técnicas são lugares de

expressão que estão condicionados por um pensamento organizado em linguagem. E também

50 INTERNET MOVIE DATABASE. Nelson Yokota. Disponível em:


<http://www.imdb.com/name/nm2498441>. Acesso em: 13. abr. 2010.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 68

nos mostra que os meios materiais e digitais não se excluem, mas se complementam no processo

de criação e de trabalho de animação.

1- Qual é a importância do desenho na sua vida?

Desenho é o transporte que leva minhas ideias que não podem ser transmitidas por palavras. Em minha opinião,

desenho é a forma de expressão mais pura e abstrata que existe. É a única forma que alguns pensamentos podem

ser transmitidos. Porque o desenho usa a verdadeira língua dos pensamentos.

2- Nas atuais produções, trabalhar com animação envolve uma tecnologia de ponta.

Porém, lápis e papel ainda existem. Você usa ainda lápis e papel no seu trabalho, ou materiais,

digamos tradicionais? Em que momento e que peso isso tem na sua criação?

Lápis e papel ainda são as ferramentas mais importantes em animação, mesmo na animação em computador

(CGI). Tudo que é criado por computador precisa ser desenhado primeiro. Por exemplo, o character designer

desenha um personagem com todos os detalhes em mais ou menos um dia. Para se recriar o mesmo personagem em

3D, no computador, levam-se diversos programas e meses de trabalho por um time de artistas. Em qualquer forma

de animação (stop motion, 3D/CGI ou 2D/tradicional), o desenho é usado para se chegar ao resultado desejado

sem perder tempo.

3- Quanto à tecnologia, você poderia dizer quais equipamentos que utiliza e com quais

softwares trabalha?

Utilizo os equipamentos Cintiq e Mac Pro. Existem muitos programas de animação e a cada dia aparecem mais.

Entre os que eu usei: Autodesk Maya, 3D Studio MAX, LightWave 3D, Adobe Flash, Toon Boon

Animation, Adobe Photoshop, CorelDRAW.

Um trabalho bastante interessante que explora a integração do desenho a mão, com

programas de animação e edição de vídeo, é o trabalho Noteboek51 da artista holandesa Evelien

Lohbeck. Este vídeo pode ser visto na Internet, em meio a outros tantos trabalhos de desenho

pesquisados na rede. (imagem 56)

51LOHBECK, Evelien. Noteboek. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=tP-reW1eLYE>. Acesso


em: 13. Abr. 2010.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 69

Podemos dizer de alguma forma que o planeta Terra é um suporte que registra o desenho

que a humanidade grafa em sua superfície, por interferência no processo de transformação da

natureza. Existem muitos desenhos feitos dessa forma que só podem ser observados de cima, a

certa distância ou do céu e do espaço, como os desenhos de Nazca, no sul do Peru, realizados

por aglomeração de pedras. (imagem 57 e 58)

A ocupação territorial realizada pelo ser humano, tanto nas cidades quanto nas áreas

rurais e agrícolas hoje pode ser observada pelos satélites. Mapeamentos de áreas de

desmatamento, demarcações geográficas de posse de terras, planejamento de criação de estradas e

sistemas de transportes estão resultam em imagens capturadas pelos satélites e transmitidas pela

internet, muitas vezes em tempo real. Uma ferramenta de observação dessas imagens, que pode

ser instalada facilmente em computadores pessoais é o programa da empresa Google, o googleearth.

As construções, as estradas, as ruas, as cidades e a agricultura, produzem desenhos dos

mais diversos modos sobre o planeta. Basta observar estas fotografias realizadas por satélites para

vermos os desenhos que a atividade humana faz sobre a Terra. Os planos urbanísticos, ao serem

observados de cima, mostram desenhos produzidos em cada cidade. Observar estas imagens nos

ajuda a compreender que a presença humana obrigatoriamente gera desenhos, e que estes

desenhos muitas vezes são inadequados ou não pensados, ou muitas vezes causam ou são fontes

de problemas. (imagens 59, 60, 61 e 62) Podemos observar desenhos produzidos pela agricultura,

como as extensas plantações de trigo nos Estados Unidos ou as áreas de monocultura de cana de

açúcar do interior do estado de São Paulo. Os desmatamentos e as derrubadas de árvores nas

florestas podem ser vistos em sites como Brasil Visto do Espaço52, da Empresa Brasileira de

Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Notamos nestas imagens que as atividades humanas

produzem desenho até na destruição da natureza. Em imagens de desmatamento podemos

observar um desenho agressivo, desordenado, com linhas adentrando a mata, que revela a

inconsciência de sua ação enquanto alteração do ecossistema da floresta. (imagem 63)

52 BRASIL visto do espaço. Disponível em: <http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br>. Acesso em: 13. Abr. 2010.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 70

Na cidade de São Paulo temos inúmeros problemas causados por desenhos inadequados,

que surgiram de uma expressão espontânea de ocupação territorial desorganizada. Um exemplo

disso está em ocupações irregulares em áreas de mananciais, que são fornecedoras de água para a

cidade como as represas Billings e Guarapiranga na zona sul da capital53 (imagem 64). Mesmo

esta desordem produz desenho, talvez um mau desenho, que acarreta problemas de difícil

solução, pois apagar um desenho é também manifestar expressão ao alterar um espaço que está

fixo.

Há a abordagem da cidade como um suporte para o desenho como temos visto em

muitos trabalhos de arte contemporânea. Um aparelho de GPS pode ser usado como um lápis

virtual, em grande escala, e arquivar os desenhos produzidos pelo caminho de uma pessoa de

bicicleta. (imagens 65 e 66)

São proposições que procuram propiciar um desenho que seja capaz de ser vivenciado,

colocando os sentidos todos em sua percepção na experiência de desenhar com o corpo. São

tentativas, pela arte, de tornar o desenho experimentável, de reconstruir e vivenciar a paisagem,

num passeio bicicleta pela cidade, vendo um possível desenho que é feito neste movimentar-se.

Quando surge uma nova tecnologia ou novo meio expressivo, aparecem discussões sobre

a probabilidade do meio novo provocar o desaparecimento ou desuso do anterior. Foi assim com

a fotografia em relação à pintura, com o vídeo em relação ao cinema. O fato é que a linguagem

ou o suporte mais antigo sofre abalo em suas estruturas, promovendo mudanças no uso e na

exploração do meio. Assim as tecnologias anteriores não desaparecem, mas passam a se

manifestar ou serem usadas de formas diferentes, ou seja, há uma transformação na linguagem.

Goméz Molina reflete sobre a questão da seguinte forma:

“Pero lo mismo que la fotografia no Dio muerte a la pintura, ni el cine, ni el vídeo enterraron a los
otros sistemas ninguno de estos há enterrado al dibujo, em el entramado de todos ellos, e incluso algunas
de sus operaciones sustanciales como formas de conocimento siguen teniendo ahora mayor virtualidade.
Por eso si mirarmos ahora las imágenes de 3D, aquellas que se venden como las auténticas promesas de
la utopia futura, podemos observar que ellas más que ninguna outra son las herederas de los problemas
fundamentales de las antiguas representaciones a mano. Solo desde el conocimiento inteligente del dibujo

53 Este assunto pode ser conferido visitando o site:


<http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/billings>.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 71

manual podemos compreender sus limitaciones y estabelecer los nuevos programas, como podemos ver los
ejemplos que nis proporcionam los nuevos catálogos digitales de imágenes. Frente a las pretendidas
posibilidades del sistema, la compreension de las interrelacines, de las articulacines, es la única
possibilidad de organizar com realidad; frente a su pretendida variedad, los nuevos modelos siguen más
que nunca fortaleciendo la homogeneidad de la representación. Si observarmos uma publicación como
Digital beauties, donde se reproducen representaciones de la mujer desde todas las partes del mundo,
veremos que más que nunca estas formalizan um imaginário de su visión tremendamente reductivo.
Olvidamos que la posibilidad de gerar nuevos modelos de representacion nunca está en la posibilidad de
establecer más variables del sistema, sino en establecer este como problema; cuantas más variables del
sistema de reencarnarse em múltiples apariencias, más favorecerá su clonación. En la medida que los
programas se universalizan, más possibilidades habrá de que ellos se conviertan em único modelo de
realidad posible, sobre todo si este se vende como el auténtico manual de libertad”.54

Por isto pensamos e tentamos salientar o desenho, em sua expressão material como inicio

de experiência com a linguagem e sua permanência como conhecimento na arte atual. Uma vez

que o ato de desenhar independe da eletricidade, condição sine qua non de manifestação da arte

digital, o desenho pode ser feito com lápis sobre papel, ou com outro instrumento qualquer.

Nossa argumentação sobre o desenho em sua expressão tem haver com a compreensão de que

conhecer os processos de trabalho, materiais e uso de ferramentas, permite que se constitua uma

percepção do fazer que vá além do que é visível como resultado final. Cada meio expressivo traz

uma característica especifica e o desenho se organiza em linguagem. As novas tecnologias são

mais uma forma dessa expressão que se soma a outros modos do fazer. O que ocorre é que a

expressão em si mesma se esvazia, por isso sempre se dá inserida num sistema de códigos, que

são dados pela linguagem. Em expressão consideramos que conhecer os modos de produção de

desenho, em seus mais variados aspectos, revela uma parte fundamental da construção artística e

proporciona uma forma diversa de ver a obra de arte. Desse modo, na próxima e última parte

desse trabalho procuramos situar o desenho como linguagem capaz de congregar informações

teóricas, históricas e estéticas com os conhecimentos práticos, de ordem material envolvidos no

seu fazer.

54 GOMÉZ MOLINA, 2002, p.55.


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Parte III: linguagem

“O desenho é linguagem e, como tal, à composição, ao equilíbrio, aos contrastes, à diversidade dos
formatos, agrega-se os do repertório, ou os matizes e tons, as luzes, os traços, os pincéis, a sensibilidade
dos materiais grafite, pastel e dos suportes“.55

4.1. Desenho e a Escola

Até este momento do texto a abordagem de desenho que procuramos utilizar o

compreende e define como resultado de ações humanas sobre o ambiente em que habita. A arte

estaria então como o lugar do exercício criativo, estético, onde é possível pela representação

exercer o desenho em sua plenitude. Entretanto, se ações humanas produzem desenho, e se isso

pode ser compreendido por indivíduos como uma expressão cultural, sua organização se dá de

alguma forma. Esta forma de organização é o que trataremos aqui por linguagem. E um lugar

social em que se dá o ensino de linguagem, não somente do desenho, mas de todas as áreas do

saber, é a escola formal. Na esta terceira parte desse trabalho, intitulada linguagem, o que

pretendemos refletir é sobre a organização do desenho como forma de ensino e presença no

contexto escolar. A partir da consciência da ação no mundo como um desenho, a organização

dessas ações devem ser trabalhadas em linguagem. Acreditamos que uma possibilidade e um lugar

adequado é a escola, organizando o desenho como uma disciplina de conhecimento que contribui

formação do indivíduo e seu modo de ver o mundo a sua volta.

O desenho pode começar como uma garatuja, despretensioso, um simples ato de rabiscar.

Este deter-se, concentrando numa atividade de desenho, aos poucos conduz a uma ideia, uma

imagem, um conceito, que vai posteriormente encontrar um caminho a ser seguido, podendo

desembocar no uso de outro meio ou suporte, além do lápis e papel. Este desenho pode ir além:

de um projeto poderá se transformar em forma, objeto ou obra.

O plano, a bidimensionalidade é um campo de atuação que possibilita ampla liberdade. É

possível se envolver com o espaço bidimensional para estudar as composições espaciais.

55 ARANHA, 2010, p.1.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 80

Estruturas do pensamento espacial vão aparecendo, vão sendo testadas, trazendo uma evolução

no processo de elaboração criativa da obra de arte, da expressão.

Em princípio pode-se não ter ideia do que se está fazendo, mas a partir do debruçar-se

sobre a superfície em branco, numa ação transformadora, é que se pode encontrar o desenho, em

sua expressão individual, em sua linguagem.

Campo de estudo e de dedicação ao trabalho intelectual, pensar sobre o desenho e seu

ensino na atualidade, requer uma atitude criteriosa. Motivo para muitas reflexões ao longo da

história, e tão apregoado como virtude a ser aprendida e desenvolvida pelo estudo, o desenho

ainda permanece como mistério em sua presença no mundo. Relegado seu ensino a um universo

de domínio da genialidade de uns poucos escolhidos, perde-se a referência de sua presença na

construção material da cultura humana. Elemento de dominação, o conhecimento do desenho, de

suas ferramentas, inclui-se aí o desenvolvimento de tecnologias para sua execução, é conduzido a

um campo de posicionamento social excludente. O mau preparo de professores da escola formal

o relega a existir, quando muito, no ensino de arte. Sua presença em segundo plano no modelo da

escola brasileira faz com que seu ensino se degrade, e deixe de existir no território da educação.

Em muitas ocasiões, o desenho e seu ensino são considerados fundamentais para a

construção de uma sociedade, de seu artesanato, de sua arte e de sua cultura. Entre os gregos

antigos, sua prática para os filhos dos nobres era parte da educação. Citando Plínio, Palomino

observa:

“(...) En Grécia los niños de los nobles debian aprender ante todas las cosas la diagrafica: esto es
picturam in buxo y como Dia era la diosa de la juventud...asi de dia e buxo pudo venir la etimologia
de dibuxo”.56

O autor se refere à madeira buxo, e a atividade de gravar a madeira durante o dia. Sua

reflexão tem a ver com a palavra Dibujo, desenho em espanhol, e denota sua atividade como parte

da formação do cidadão grego.

56 BORDES, 1995, p.396.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 81

O Brasil particularmente teve alguma preocupação como esta, notada principalmente no

Estado de São Paulo, na primeira metade do século XX. Ana Mae Barbosa relata em seu livro

Arte-educação no Brasil, a necessidade da inserção do desenho no currículo escolar no início da

década de 1920, inclusive devido ao desenvolvimento da indústria naquele momento57.

Entretanto, esta preocupação não sobreviveu ao longo do tempo e das mudanças ocorridas na

educação brasileira nas últimas décadas. Ainda hoje padecemos de desinteresse em relação à

educação artística no currículo escolar. Mais que isso, apesar dos Parâmetros Curriculares

Nacionais, os Pcns, os conteúdos e o entendimento das artes como área de conhecimento

específico, com saberes particulares e fundamentais para a formação do indivíduo, seguem

indefinidos. Neste sentido, quando falamos em artes visuais ou artes plásticas, o desenho ainda é

base para a compreensão da estruturação na feitura de imagens, para a orientação espacial, para o

planejamento e desenvolvimento das cidades e na ocupação geográfica pelo ser humano. Mais do

que uma ferramenta para a educação artística, o desenho é interdisciplinar e está presente na

matemática, na geografia, na física, na biologia e em outras áreas do conhecimento. Quando

desenhamos algo, o conhecemos de modo diferente. Percorremos suas linhas, notamos sua

relação com o espaço, percebemos e tomamos consciência da matéria em relação ao vazio. O

domínio de sua linguagem possibilita a criação de projetos de intervenção, de ocupação de

espaço, de criação de objetos. Além de ser um meio de expressão subjetivo, evoca emoções e

sentidos que só podem ser expressos por meio de imagens, pelo desenho.

Em um artigo intitulado Desenho e emancipação, o arquiteto Flávio Motta argumenta,

partindo de análise do modo como foi constituído o ensino de arte institucionalizado no Brasil,

como o desenho foi deslocado para uma esfera diletante, em detrimento do reconhecimento de

sua importância na construção de uma sociedade. Sobre a organização da Academia Real de Belas

Artes no Brasil, Motta diz:

“Sabemos que os companheiros de Le Breton trouxeram para cá, principalmente, as lições de Jacques
Louis David. Sabemos ainda que David conhecera de Laymerir, por volta de 1777, a noção de que “o

57 BARBOSA, 1978, p.97-115.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 82

verdadeiro desenho é a linha”. Entendida mais como contorno, a linha era o elemento configurador – o
limite, a favor da austeridade que na época se opunha à galanteria rococó. Estava assim impregnada de
uma nova comoção, produzida por um conjunto de condições emocionais da burguesia pré-
revolucionária. Era também manifestação de “um projeto social restrito”. Respondia melhor a uma
parte da sociedade que participou da revolução – os burgueses – e não ao povo em geral”.58
(imagem 67)

Neste aspecto, Motta avalia que se impôs um modelo único de desenho que desconsidera

a possibilidade de emancipação por meio de outras formas de se pensar a arte e o desenho que

poderiam ter se constituído no Brasil da época. Sobre a estratégia de desenvolver uma sociedade

burguesa, na qual a arte era atividade de apêndice, supérflua, necessária a um modo de vida de

uma elite social que surgia no Brasil, comenta:

“A ideia de desenho, ligada à linha, ao traço, ao limite espacial, foi considerado o fundamento das
assim chamadas “artes plásticas”, conforme a visão de Lessing. Outra proposição teórica que muito
influi no neoclassicismo, foi Winckelmann que reconhecia no desenho um fundamento na necessidade e
que, gradativamente, envolvia o supérfluo. Por isso, mais tarde poderíamos perguntar e verificar se essa
necessidade não era mais do que resultado da ciência burguesa. Toda essa visão que atingia o Brasil,
nas vésperas da nossa independência, era, possivelmente, um anteparo ante as ameaças inglesas”.59

Dessa maneira, as artes foram separadas dos ofícios, se restringindo ao hedonismo, sem

presença real no mundo e na sua construção.

“Naquela oportunidade cuidavam de diversificar as “belas artes” dos “ofícios fabris”, como se a arte se
reservasse, apenas, a esfera do “prazer”, e a dos ofícios à área do “saber””.60

Este modo de operar com a arte e seu ensino, ou mesmo o reconhecimento da verdadeira

necessidade de ser parte da organização da vida humana, acaba por retirar do sistema

educacional, em específico, o desenho nas expressões dos indivíduos. Os interesses envolvidos

neste modo de organização da arte não serão os descritos aqui, porém é interessante verificar o

modo como Motta vê o resultado desta dinâmica:

“Até hoje essa dicotomia perpassa os conflitos da modernidade. Inúmeros são aqueles que preferem ver
a arte confinada à condição de deleite pessoal. Assim, ela passará a ser o território onde se organizarão
as frustrações. Assim também, ela ingressa, quase exclusivamente, no terreno da laborterapia. Vira,
para alguns, atividade marginal. É interessante observar como determinados espectadores,
consumidores, desejam manter com a obra de arte apenas um relacionamento puramente agradável,
eliminando qualquer aprofundamento crítico que representaria o reconhecimento do trabalho
intelectual”. 61

58 MOTTA, 1970, p.3.


59 MOTTA,1970 p. 3.
60 Ibid., p. 4.
61 Ibid., p. 4.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 83

É possível verificar esta assertiva, por exemplo, nas escolas públicas atuais, nas quais é

imperativa a presença de pichações nas paredes e nos objetos de uso escolar. Parece, grosso

modo, uma reação à impossibilidade de conter ou frear o desenho, à manifestação expressiva de

uma necessidade não trabalhada pela escola. Estas manifestações ocupam as cidades por dentro;

nas suas ruas e construções é possível verificarmos uma proliferação desses desenhos.

Configuram-se como expressões gráficas que são feitas nas paredes, nos muros e nos lugares

mais inusitados, ocupando os espaços vazios entre as edificações. A vontade do desenho, da

expressão, parece incontrolável e vai preenchendo os espaços da cidade, sem pedir licença. Parece

que o contexto social mediado pela educação formal, não dá conta de lidar com essa necessidade

incontida de expressão, que não consegue ser reprimida. Se essas formas de desenho ocupam

espaços que são considerados intocáveis, é talvez porque não exista um lugar dedicado à

expressão desses jovens. Se essa linguagem é extremamente codificada, e muitas vezes

incompreensível para quem não compartilha de seus códigos, é porque não lhes é dado

oportunidades de conhecimento de outras possibilidades oferecidas pela arte. (imagem 68)

Assim, estes desenhos vão se espalhando, em fluxos contínuos, gerando uma avalanche

de signos, que muitas vezes incomodam, mas que expõem justamente a inexistência de espaços

de expressão visual. Nesta ausência, a alternativa é a marginalidade, a manifestação que acontece

sob a revolta de um não pertencimento. É nesta condição de vandalismo que a pichação se

inscreve, como a forma expressiva de amplificar um grito que não é ouvido, e que faz de tudo

para ser esquecido. Daí decorre outro desvio: quando a escola tenta lidar com esta situação

recorre ao graffite, arte de rua que produz imagens com cores e figurações, mais aceitos do que a

pichação. Sem atribuir juízo de valor a esta atitude, que se converte em atividade escolar que

envolve o desenho, é preciso salientar que o graffite acaba por gerar também um modelo que

prevalece sobre outras possibilidades de manifestação visual. O uso da graffitagem, se

sobrepondo outras formas possíveis de trabalhar o desenho, é prejudicado pelo fato de gerar uma

única forma de ação visual no universo escolar (imagem 69). Existem uma série de estereótipos,
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 84

regras e modos de construção gráfica do graffite que tem que ser seguidas por quem o pratica. É

uma forma de expressão ligada à cultura urbana, que se organiza em grupos que criam normas

específicas de trabalho formal. Este fator gera, em oposição a uma pretensa liberdade de

expressão, uma obrigatoriedade e uma uniformidade expressiva aos seus praticantes. Existem

muitas outras formas de arte e de desenho que a escola deve apresentar aos estudantes, na

formação de seu repertório cultural que precisam ser trabalhadas. Entretanto, o que vemos se

espalhando pelos muros das escolas é a expressão do graffite, havendo raríssimas exceções. É

exatamente em oposição a uma forma de manifestação visual que tenha a tendência a se sobrepor

e anular outras formas e modos de se expressar que este trabalho gostaria de argumentar.

Retomando Flávio Motta, o autor explana sobre o modelo imposto pela academia, que

nos dá o lastro desta expressão que se impôs sobre o ensino de arte brasileiro, demonstrando

como acabamos por estereotipar e perder originalidade em nossa arte:

“A noção de beleza no traço sensível, por exemplo, nos veio muito de Ingres (1780-1867). Seu estilete
traçava linhas tão sensíveis quão precisas. Era o desenhista exemplar, cuja qualidade das obras se
ajustava a simplicidade dos meios. Poucos foram os que conseguiram versar dentro dos níveis
qualitativos de Ingres. Muitos, entretanto, se deixaram iludir pelas aparências quase “fotográficas” de
suas figuras. E se mostraram incapazes de reconhecer as sólidas estruturas do desenho do mestre
francês. Mais do que isso. Confundiram a simplicidade dos meios com a própria significação do
desenho. Academizaram o mestre. Passaram assim, a falar em desenho como “coisa” de lápis e papel.
Os propósitos, os desígnios, o conteúdo se separou da forma, na procura de um deleite, de uma
confirmação imediata. A forma reduziu sua significação. Foi esse o desvio”.62

Contrário a este modelo acadêmico surgiram no Brasil, a partir da segunda metade do

século XX, as propostas modernistas de ensino da arte, nas quais o principal fundamento era o

“deixar fazer”. O professor não deveria fazer nenhuma interferência no trabalho do aluno,

metodologia que ficou conhecida como “livre expressão”, nem mesmo informá-lo ou dar

referências. A partir desta ideia de liberdade, a “criatividade” passou a ser o foco. É desse modo,

ao se perder a noção de repertório e ao não se constituir linguagem a partir da expressão, que o

desenho vai se localizando e se mantendo, de um modo geral, somente na educação infantil e se

perdendo para o restante dos níveis escolares.

62 MOTTA, 1970, p 4.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 85

Este modo de operar, junto com a facilidade de se produzir imagens na atualidade,

contribui com o que chamamos neste trabalho de perda do desenho, que é verificável, por

exemplo, nos currículos escolares brasileiros. Hoje, há poucos trabalhos com o desenho na

escola. Os Parâmetros Curriculares Nacionais não o colocam como conhecimento necessário à prática

artística. Os Cadernos do Professor, tanto os do Ensino Fundamental quanto do Ensino Médio,

utilizados nas escolas da rede estadual de São Paulo, esboçam uma relação com o desenho na

disciplina de artes, em alguns de seus pontos, mas não o aprofundam. Conteúdos e competências

relativos ao campo do desenvolvimento da linguagem visual, amparada pelos conceitos do

desenho, inexistem. O seu ensino, com uma continuidade lógica, integrado nas disciplinas,

compreendido como forma de estudar a imagem, sobretudo com relação à estrutura de seu fazer,

é completamente ignorado. Estes fatores mostram uma imensa lacuna no sistema de ensino, que

não tem sido pensado para a construção da sociedade do futuro, muito influenciada pela

multiplicação da imagem. Sem conhecer a estrutura, o como é feito e a forma de realizar, o

mundo que vai se construindo fica entregue ao acaso, a soluções inadequadas, imediatistas e

provisórias que acabam por se tornar permanentes.

A habilidade de desenhar é exigida no vestibular, em prova específica, para candidatos aos

cursos de arquitetura, desenho industrial, artes, moda, entre outros. Entretanto, na escola, nos

ciclos fundamental e médio, os estudantes que escolhem estas carreiras, não obtêm nenhuma

informação ou formação adequada para realização de provas dessa natureza.

No campo do ensino das artes, em sua prática em nível superior, trazemos aqui a reflexão

sobre o assunto feita pelo autor belga Thierry de Duve63. Para o autor, as dificuldades que se

colocam ao ensino de artes visuais, ainda hoje, estão ligadas a três modelos que se impuseram ao

longo dos tempos e que influenciaram a maioria das escolas de arte no mundo. O primeiro

modelo é o Acadêmico, cuja principal característica está na continuidade de uma tradição,

formada por três conceitos fundamentais: talento, métier e imitação; o segundo é o Moderno (ou

63 DE DUVE, 2005, p. 19-31.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 86

modelo da escola alemã Bauhaus), cujas bases se assentam em conceitos como criatividade, meio

(suporte) e invenção, e que objetiva o questionamento do próprio meio por intermédio da

experimentação; o terceiro modelo é designado por De Duve como modelo Pós-moderno, que

teria surgido a partir da década de 1960, ante a crise do modelo Moderno, alicerçando-se sobre

noções de atitude, prática e desconstrução. Seu argumento, como o próprio autor destaca, tenta

fazer um diagnóstico e não apontar uma solução. Porém, pode ser relevante na medida em que

revela a existência de um campo em aberto, com possibilidades diferentes de se pensar o ensino

da arte, de maneira menos conflituosa, principalmente quanto a modos e práticas que têm que

necessariamente estarem filiadas a esta ou aquela escola.

Nosso intuito aqui é de lançar uma luz nesta dimensão obscura, em uma tentativa de

traçar um panorama, ainda que num recorte bem reduzido, do que se entenderia por desenho e

seu ensino na atualidade. Buscando colaborar com uma reflexão sobre a possível, e necessária,

permanência e conhecimento do desenho como fator de emancipação cultural, conforme

argumenta o artigo de Flávio Motta. Por esta razão, se faz necessário propor algumas

desconstruções de mitos acerca da arte tais como, o da genialidade e o do talento inato64, ao

argumentar que o desenho pode ser vivenciado e experimentado por qualquer indivíduo. Neste

trabalho, em específico no campo de estudos da estética e da história da arte, a proposição de um

tratamento interdisciplinar não caberia de momento. A discussão parte da reflexão no campo da

atividade artística e se desdobra na abordagem sobre seu ensino.

Para tanto, ter consciência do ato de desenhar e procurar conhecer sua linguagem é um

modo de melhor compreender o espaço que habitamos e o desenho. É possível estudar desenho

por meio da investigação do processo de um artista, por meio de seu desenho e pelo aprendizado

do desenho, que dará subsídios para o desenvolvimento de um pensamento visual mais

64 Segundo Imannuel Kant, a arte deve ser separada do artesanato, e sua compreensão de artista tem haver com a
ideia de gênio, como um indivíduo diferente dos demais. Ainda hoje esta assertiva tem sido considerada como
sinônimo de grande arte. Crítica da Razão Pura. (Da Arte do Gênio Livro II) Coloca a arte como dom natural,
dividida e independente da noção de trabalho sendo fruto de um talento inato em que não se deve interferir com
formação ou informação. Ao artista deve ser dada total liberdade de expressão, e dotá-lo de conhecimento específico
ou de ciência da arte constrangeria o ato criador.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 87

elaborado. Assim, há um desdobramento prático que pretende utilizar o desenho justamente

como uma ferramenta de estudo da linguagem visual, entrando em contato com suas técnicas e

exercitando uma prática que podemos chamar de aprender a desenhar. Configura-se, portanto

um conhecimento de desenho que se torna ferramenta de alicerce da obra de arte, lugar que a

criação vai se estruturando e ganhando forma e materialidade diversa.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 88

Linguagem e ensino

Ao tornar o desenho perceptível como processo de construção e manejo do mundo,

organizado num sistema que estabelece um processo de comunicação compartilhado pelos seres

humanos, estabelece-se a consciência de sua presença no mundo que a cultura construiu. Em seu

ensino, a proposição de que se perca o receio de vivenciar o desenho, motiva uma aproximação

com a linguagem antes da afirmação fatídica: não sei desenhar. Este ensino é conduzido a uma

prática que constrói certa habilidade, possibilitando vivenciar o desenho, compreender pelo

conhecimento dos aspectos factuais de sua linguagem, tornando-o experimentável.

A manifestação do pensamento expresso em comunicação acaba por desenvolver um

sistema de signos, de estrutura material que se estabelece como conjunto de códigos que são

determinados ponto fixos. O termo linguagem tem sua referência direta com a linguística,

semiologia e semiótica. Utilizamos aqui a semiótica como parâmetro desta reflexão visando sua

aplicação de um modo amplo, no sentido do uso do termo linguagem, que esta ciência propõe.

Segundo Décio Pignatari, a semiótica lida fundamentalmente com o conceito de signo:

“Toda e qualquer coisa que substitua ou represente outra, em certa medida e para certos efeitos. Ou,
melhor: toda e qualquer coisa que se organize ou tenda a organizar-se sob a forma de linguagem, verbal
ou não, é objeto de estudo da Semiótica.”65

Utilizando este conceito tratamos o desenho como uma manifestação sígnica e o

abordamos segundo uma teoria de comunicação por imagens.

A partir desta abordagem, fazendo uma analogia com as teorias de comunicação,

especificamente da estrutura linguística proposta por Roman Jakobson, em Linguística e

comunicação66, que propõe um esquema no qual os fatores envolvidos no processo de comunicação

seguem a seguinte forma:

65 PIGNATARI, 2004, p. 15.


66 JAKOBSON, 1971, p.123.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 89

No modelo de Jakobson, no campo da mensagem existe um contexto em que se

estabelece um contato, utilizando-se de um código. Em nossa abordagem, propomos a

transposição da estrutura da linguagem verbal ou escrita para a visualidade do desenho. Ao

código e mensagem acrescentamos o desenho, e suas formas de composição são nosso estudo

como ideia de linguagem.

Segundo essa premissa, notamos que o fenômeno da linguagem é ensinado, aprendido e

compartilhado por determinada cultura, ou grupo, que é capaz de compreender os códigos

compartilhados entre si. Comunicar-se tem uma relação direta com ensinar e aprender. Posto isto

e conduzido a uma visão de desenho que aplicamos neste trabalho, a hipótese levantada é que há

um processo de aprendizagem que precisa ser explorado numa educação artística que envolva

aprender a desenhar ou explorar o desenho. Isto parte da compreensão de que há linguagem no

desenho, que há uma estrutura que permite ser transmitida em códigos e estruturas de

comunicação, que são ferramentas para a expressão do pensamento visual ou gráfico. Dessa

maneira algumas colocações do estudo da linguística tornam-se pertinentes no campo do ensino

de desenho, como a própria definição de comunicação dada pelo esquema proposto por

Jakobson.

Diferentemente da escrita, construída por meio da articulação seqüencial e linear de

símbolos, os quais a semiótica trata por sintagma, o desenho apresenta-se no espaço total do

plano, tratado por paradigma. Ou seja, o eixo do sintagma para a semiótica é linear, horizontal,

exige uma sequência para construção da compreensão e leitura dos códigos. O desdobramento

seguinte leva para articulações sígnicas, gráficas, que se referem a tensões, densidades,
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 90

temperamento, intensidade, equilíbrio espacial, ordenação simétrica e outros elementos de uma

sintaxe espacial. Quando falamos em linguagem, pensamos que todo desenho ou imagem

produzido pode ser “lido” por um espectador, observador. Quanto aos eixos do paradigma e do

sintagma, os exemplificamos da seguinte forma: ao escrever um texto, por exemplo, uma carta, a

operação que se faz é da articulação de signos de forma linear, com o objetivo de construir uma

mensagem a um leitor. Assim, o eixo do sintagma é linear, sequencial e horizontal, sendo o

condutor da mensagem, em linguagem escrita está para a prosa. No caso da poesia, em linguagem

escrita, a linearidade fica em segundo plano e a mensagem se desenvolve com maior liberdade

espacial. O eixo condutor é o eixo vertical, o paradigma. Em desenho, a linha segue o eixo do

sintagma, ao ser definida como sequência de pontos. Entretanto sua dimensão de composição é

espacial, se expandindo e se relacionando com todo o espaço delimitado do suporte. Desse ponto

de vista, podemos dizer que o desenho começa na delimitação do campo de atuação, no suporte

e nos limites do enquadramento. Antes da colocação da linha ou da forma, o espaço delimitado já

é parte do desenho. O desenho linear é construído pela linha que produz uma circunscrição, um

contorno que gera uma forma. A esta linha traçada se determina um valor linear, em termos de

força, intensidade, densidade e tonalidade. A linha se inscreve em um campo de expressão,

suporte ou espaço de composição. O desenho então começa pelos limites impostos por um

enquadramento, por um espaço de construção de formas. A própria delimitação do campo, no

qual o trabalho irá se inscrever, já é desenho. É neste aspecto que o pensamento espacial

determina a construção gráfica. O plano permite uma movimentação que não se dá de modo

sequencial, mas sim de modo espacial. O pensamento tem toda a superfície para atuar e para se

organizar em termos de distribuição de pontos, linhas, formas e elementos. É neste campo

espacial de ação que se pode prever, planejar pelo desenho. O desenho redimensiona o espaço e

orienta seu uso, por exemplo, no urbanismo das cidades. (imagens 70 e 71)

No que se refere à composição, o enquadramento é noção fundamental, em sua

determinação de que o desenho começa no campo visual delimitado para a representação. Se este
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 91

campo for uma folha de papel, seu tamanho, suas arestas, seu perímetro já formam um recorte,

um contexto pré-determinado, ao qual o desenho irá se adequar. A observação do suporte é uma

percepção de que se está desenhando, e, a partir desse suporte, é que se produzirá a imagem.

Leon Alberti menciona o quadrângulo, que consiste em um bastidor vazado em forma retangular,

como se fosse uma janela, com linhas esticadas entre seus lados formando uma trama, sendo

utilizado para fazer o enquadramento da paisagem ou de objetos na composição da imagem.

“Inicialmente, onde devo pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o
qual reputo ser uma janela aberta por onde possa eu mirar o aí será pintado, e aí determino de que
tamanho me agrada sejam os homens da pintura.”67

Já foi dito anteriormente, que o meio é a mensagem. O suporte e os materiais são o

principio do desenho; suas escolhas são parte da ação e resultado material. Há no desenho uma

proximidade com a letra, com a escrita manual que atribui identidade e expressão em um

temperamento da linha. Cada indivíduo tem uma letra, uma escrita que se dá segundo a sintaxe

do ponto, da linha, da forma, do enquadramento, da composição, da pressão sobre o papel, das

tensões de linhas da imagem gráfica. Em síntese, o campo de visão e o campo da expressão se

estruturam pela linguagem.

A determinação de que o desenho se inicia com um ponto, que colocado em movimento

produzirá uma linha, que unida a outras linhas produzirão forma, é outro aspecto que

fundamenta a linguagem do desenho. Destas estruturas é que podemos partir para o desenho

como prática, exercício, estudo, comunicação.

67 ALBERTI, 1992, p. 88.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 92

O desenho e a imagem contemporânea

Como resultado aplicado desta pesquisa houve a elaboração do curso de desenho “O

Desenho e a Imagem Contemporânea”, dirigido para alunos do ensino médio em idade pré-vestibular,

com opção de seguir carreira em Artes Visuais. Este curso foi ministrado no MAC USP em duas

edições, nos segundos semestres de 2008 e 2009. O objetivo do curso foi o de possibilitar ao

estudante uma aproximação com a linguagem do desenho artístico, construindo repertório e

dando referências para a prática e experimentação com sua linguagem.

O curso, cuja duração é de dez aulas, teve uma proposta diretamente relacionada com a

conquista de uma forma pessoal e de uma percepção da identidade no trabalho com o desenho.

Complementando os exercícios foram apresentadas informações específicas de linguagem,

técnicas, procedimentos de composição e materiais. Acrescentou-se a isso tópicos da história da

arte, numa perspectiva de desenho como campo de estudo, dedicação e trabalho. Esta proposta

de ação educativa com o desenho buscou mostrar que é possível desenvolver o desenho, quando

se conhece sua estrutura de linguagem, em oposição a um senso comum de percepção do

desenho como um dom, algo misterioso, fruto de um autodidatismo que somente o talento

natural é capaz proporcionar. Neste sentido o curso caminhou na articulação da história do

desenho, de suas técnicas, materiais e possibilidades de expressão, com vistas à consciência de sua

linguagem.

Com esta proposta metodológica, seu intuito foi proporcionar uma visão abrangente do

desenho em suas várias possibilidades. Lidando com estes aspectos, percorreu-se um caminho

que ampliou horizontes, tanto com relação a técnicas, quanto de abordagens do desenho. Assim

sendo, foram apresentados aos estudantes os fundamentos da linguagem expressiva, permitindo-

lhes seguir adiante com pesquisas individuais.

Embora as técnicas e os materiais tenham partido dos tradicionais, os alunos são

estimulados a desenvolver um caminho pessoal. Foram experimentados vários exercícios de


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 93

percepção como o desenho cego, o desenho do espaço entre os objetos, o desenho de

observação, o desenho de memória, o desenho de objeto, a paisagem, a figura humana, além de

exercícios de composição.

Os resultados obtidos foram os seguintes:

Primeira turma do curso “O Desenho e a Imagem Contemporânea”, realizado no MAC

USP, entre 01/09/2008 e 03/11/2008.

Alunos inscritos 20

Alunos que concluíram o curso 17

Vestibulandos 11

Aprovados na prova de aptidão (ECA USP) 05

Aprovados em outras Universidades (Unesp, Belas Artes) 02

Segunda turma do curso “O Desenho e a Imagem Contemporânea”, realizado no MAC

USP, entre 28/09/2009 e 14/12/2009.

Alunos inscritos 20

Alunos que concluíram o curso 09

Aprovados na prova de aptidão (ECA USP) 03

Para esta segunda turma, devido aos imprevistos causados pela greve na universidade,

aconteceram alguns prejuízos. Houve um atraso no período de divulgação e início do curso,

acarretando baixa procura de alunos que iriam prestar o vestibular. Por esta razão optamos por

aceitar também alunos que não estavam necessariamente inscritos para vestibulares.

Naturalmente, em dez aulas não é possível se ensinar desenho. Esta foi uma experiência

de um formato sintético que teve o objetivo de traçar uma linha que objetivou trazer à luz o

conhecimento das possibilidades do desenho, informado por um repertório e uma organização

material. Os alunos do curso, interessados na matéria, já tinham uma prática com o desenho, e o
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 94

programa interferiu a partir de uma relação preexistente. Entretanto, o que gostaríamos de

argumentar é que se faz preciso reconhecer a presença do desenho, sua tentativa de expressão,

sufocada pela incompreensão da escola. A ausência de espaço para sua manifestação, que o

marginaliza, o deixa a mercê de uma exploração, que pouco informada, perde a chance de se

emancipar, conquistar autonomia, originalidade e colocar novas formas no mundo.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 95

Uma experiência síntese

Ao ampliar as formas de pensar e expressar o desenho, que se organiza em uma estrutura

que neste trabalho é chamada de linguagem, observamos que sua manifestação se dá, na

contemporaneidade, de um modo processual e com características múltiplas. A confluência do

pensamento, da expressão e da linguagem, que se tornam atitude, são ações que se mostram na

arte atual. Uma dupla de artistas reviveu, no ano de 2008, como parte uma viagem artística

intitulada Expedição Francisco68, um trabalho do artista alemão Franz Erhard Walther denominado

Interchange69.

Navegando de barco pelo rio São Francisco, no nordeste brasileiro, um grupo de artistas

percorreu sua linha natural, vivenciando a experiência de tensão, de esforço, de trabalho que

diagrama o desenho do chamado rio da integração nacional. Em específico, dentro deste grupo,

houve o trabalho performático que os artistas Deyson Gilbert e Luísa Nóbrega70 realizaram ao

longo da Expedição Francisco. A performance da dupla procurou investigar o olhar, a tensão, a

relação entre o eu e o outro, a dimensão conceitual do que seja desenho e sua participação

estrutural na interferência do humano na cultura e na natureza. A referência para o trabalho

foram os desenhos e fotografias de Walther, publicados no seu livro Diagramme zum 1. Werksatz

(imagens 72, 73 e 74). O livro do artista traz uma série de propostas de performances

interpessoais, todas orientadas por desenhos descritivos de ações e fotografias de performances,

que envolvem pessoas e objetos em interação. O trabalho motivador de Deyson e Luiza, segundo

68 Em abril de 2008, um grupo de cinco artistas organizados em torno do projeto Expedição Francisco, com o apoio
do programa Conexão Artes Visuais da Funarte, percorreu o rio São Francisco, de Januária (MG) até sua foz, em
Piaçabuçu (AL). Colocando a produção de arte contemporânea no contexto desse debate sobre a transposição do
rio, realizou performances artísticas que propunham relações específicas com o rio, bem como uma tentativa
particular de entender questões que se colocam para a arte contemporânea no momento em que ela se dirige a
espaços distantes do circuito artístico de cidades como São Paulo. O projeto procurou pesquisar e compreender de
que maneira o trabalho de arte contemporânea do grupo seria transformado pelo contato com o rio São Francisco,
em um momento chave, marcado pelo início das obras de transposição de suas águas. Configurado como um ateliê
flutuante, o grupo promoveu ao longo de mais 1.800 km uma série de atividades artísticas, tais como exposições,
workshops e performances, buscando sempre a interação com as comunidades locais.
69 Desenhos e fotografias podem ser vistos em WALTHER (vide Bibliografia).
70 Deyson Gilbert é artista plástico e diretor de teatro. Luiza Nóbrega é atriz e performer.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 96

os registros do próprio Walther (imagens 75, 76 e 77), procura discutir a visão, o olhar, a relação

entre dois observadores ligados entre si. Esta performance, e todas as demais do livro, necessitam

da experiência entre corpos para acontecer plenamente. O desenho informa e está presente como

descrição, como orientação dos procedimentos que os artistas/performers devem adotar para

reproduzir ou fazer o trabalho acontecer. No caso de Intercâmbio, Walther propõe que se crie, pelo

encapuzamento, um canal de visão entre duas pessoas. O objeto é uma “linha” feita de tecido,

costurada na forma de um tubo e com uma abertura em cada extremidade, na qual os usuários

colocam suas cabeças. Se o tubo do capuz ficar frouxo, significa que os participantes se

aproximam, mas não conseguem se observar. Para que um possa olhar para o outro é necessário

que coloquem os seus corpos em tensão, os deslocando para trás de modo que se produza uma

força que, ao mesmo tempo, se expande e se contrai. A possibilidade de visão, de um olhar, de

enxergar, de ver o outro, se dá pela relação de forças que une e separa os corpos ao mesmo

tempo. No movimento, os músculos se expandem e descansam sobre a tensão gerada pelo tecido

estendido, devido à contração muscular e ao represamento da força. Ao colocarem as cabeças no

tecido (a linha que os une) não se veem de imediato, mas graças ao esforço em produzir a tensão,

aos poucos há a possibilidade de um olhar para o outro. Intercâmbio, como um trabalho de tensão,

de identidade e alteridade teve seu sentido plenamente contemplado na discussão que os artistas

pretenderam participar, a transposição do rio São Francisco. Suas ações ao longo da viagem

inseriram a arte no debate acerca das tensões regionais provocadas pela transposição do rio. A

cultura, a sociedade e a política no Brasil, cuja diversidade é bastante grande, são parte dessa

alteração ambiental que a engenharia realizou ao mudar o desenho do rio São Francisco. Em

meio ao debate acirrado sobre a transposição ou não do rio, a arte apresentou sua mediação e

expressão de reflexão sobre a comunicabilidade e a incomunicabilidade.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 97

O resultado do trabalho pode ser verificado em registro fotográfico no livro Trans Posição

Francisco71, e no texto Intercâmbio, publicado em 2009 sobre a expedição.

Foi a partir do contato com os desenhos de projetos de performances de Walther, que a

dupla Deyson Gilbert e Luiza Nobrega, realizou o trabalho Intercâmbio (imagem 78). Esta ação,

que se pode chamar de releitura do trabalho, foi feita em outro contexto, no caso às margens do

Rio São Francisco no Brasil, e mostra um desenho em camadas. Primeiro existe o desenho

original, de Walther e as imagens do trabalho, realizado na década de 1970. Segundo, há o

registro fotográfico do ano de 2008 feito a partir da performance de Deyson e Luiza. A alteração

do contexto, da época, do propósito de se reativar esta obra, fazem com que a performance

ganhe uma natureza diferente da original, e portanto tenha uma autonomia. Este trabalho

exemplifica o desenho sistema de comunicação, ao ligar dois observadores e atores, como

emissores e receptores, ao mesmo tempo unidos pelo canal de mensagem. A mensagem é o

olhar, e um somente consegue ver o outro no estado de tensão. De certa maneira, em todo

processo de comunicação, de solução de problemas de capacidade de organizar a linguagem de

modo a ser compreendida está envolvida, em algum grau, uma tensão. O momento em que a

Expedição Francisco navegou pelo rio foi justamente quando o debate sobre a transposição do rio

estava acontecendo. O projeto secular de conduzir pelo engenho as águas do rio para o sertão

nordestino provocou um grande mobilização de forças sociais e políticas no Brasil. Esta

circunstância gerou uma grande tensão no país, principalmente naquela região, por questões

sociais, econômicas, culturais e ambientais, fato que contribuiu com o sentido da proposta dos

artistas. É pela tensão acaba por enxergar o outro e é no equilíbrio entre os corpos ao unir as

forças que o canal de comunicação se abre. Além da ação ter nascido de um desenho projeto, ela

se constitui num desenho como linguagem, como linha que liga pontos por meio de um

movimento e de força de tensão. O próprio rio como um desenho natureza, alterado pela

engenharia e técnica humanas, se torna cultura ao ser transposto e, portanto, redesenhado. O

71 Livro resultante de um trabalho coletivo de mesmo nome, organizado pela Organização Social de Interesse

Público Ato Cidadão, com apoio da Prince Claus Fund for Culture and Development.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 98

resultado artístico foi apresentado também num contexto de grupo, de um coletivo de arte, como

parte de um todo. Embora ao observarmos esta performance, ou as fotos da ação, seja algo que

nos produz sensações de apreensão, de questionamento, entre outros sentidos, a plenitude do

trabalho só é vivenciada pelos performers. Trata-se de uma arte que exige a experiência. Ao

espectador de fora resta ver as fotografias de registro do trabalho, que acabam por reconstituir

um desenho em sua particular forma de linha, cortando o horizonte da paisagem do rio São

Francisco.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 99

Imagem 67 Imagem 68

Imagem 69

Imagem 70 Imagem 71
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 100

Imagem 72 Imagem 73

Imagem 74

Imagem 75 Imagem 76
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 101

Imagem 77

Imagem 78
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 102

Considerações finais:

A apreensão das formas do mundo e suas posteriores representações pelo desenho

podem promover uma ampliação da capacidade visual humana. Há um aperfeiçoamento da

percepção e um desenvolvimento de uma velocidade de visualização das linhas e da composição

das coisas da natureza e dos objetos visíveis que surgem a partir do treino e desenvolvimento da

sua linguagem como forma expressada do pensamento.

Não há motivo para se cobrar um resultado com base em um conceito artístico reduzido

a realismo, verossimilhança ou beleza. Pensando a partir dessa ideia, notamos que o único pré-

requisito para desenhar é ter coragem de seguir um caminho próprio, com desenvolvimento e

consciência da linguagem. É óbvio que todo artista possui influências e referências que o ajudam

a elaborar seu trabalho, entretanto, é necessário investir na linguagem pessoal, dando vazão à

própria personalidade, deixando que ela transpareça na arte, transformando um possível defeito

em efeito. Talvez o receio do erro possa ser um elemento intimidador, porém o erro tem sua

função. Existe na arte o mito do certo ou errado. A arte pode seguir caminhos de acerto, mas

pode-se usar um descaminho em favor da criação, só depende da inteligência do artista em

conseguir assimilar o erro e transformá-lo em algo positivo na sua obra. A poeta paulista Orides

Fontela, em um de seus poemas do livro Teia, diz: “só porque erro encontro o que não se procura72”.

O desenho possui muitas facetas e, apesar de toda a tecnologia disponível e envolvida

hoje em dia para a produção de imagens, o lápis e o papel ainda permanecem como fundamento

rudimentar da arte de desenhar. Basta ter uma folha de papel em branco e um lápis à mão e

deixar-se levar pela a linha, pela dança do desenho, pela geração e materialização de uma ideia.

Essa entrega pode dar início a uma obra de arte, a um projeto que pode vir a ser realizado, por

exemplo, em um computador, ou dar origem a uma instalação ou a uma pintura. Além disso,

estar à disposição do desenho leva o desenhador a um tipo de estado mental próximo a uma

72 FONTELA, 1988, p 192.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 103

espécie de meditação, proporcionando descobertas intelectuais, só então possíveis por meio da

ação de desenhar. Há também a vantagem do desenho ser esboço, não se comprometendo com

um produto, sendo um lançar-se livremente em um território desconhecido, percorrendo

caminhos que podem gerar grandes frutos. Porém, não podemos esquecer que se trata de um

sistema de comunicação e expressão que é compartilhado entre os seres humanos, presente em

todas as formas culturais e assim sendo é possível de ser transmitido como conhecimento. Neste

aspecto, sua presença na formação e na educação se faz necessário. Habitamos um mundo

desenhado, que se constitui de espaços e objetos que são resultado da ação humana sobre a

natureza. A cultura se inscreve em formas que se desdobram do simbólico ao utilitário, do

religioso ou místico ao profano e banal, em uma organização que foi, ou é, ou pode vir a ser

desenhada. A imagem que se assenta sobre um desenho e nos encanta pelas suas linhas, pelas

suas formas, pela sua ocupação de um espaço e sua existência em um contexto. Mais do que uma

atividade que provem de um dom, ou inspiração divina, o desenho é faculdade humana, é

linguagem que se compartilha, e como tal pede diálogo, capacidade de ser decifrada e interpretada

em um processo de troca simbólica. Sua presença como parte de uma educação, não só artística,

mas científica e social, é muito relevante, principalmente em um mundo em que as imagens se

multiplicam nos sistemas de consumo e comunicação. Estas considerações, esperamos que

nutram uma vontade e um propósito de inserir o desenho como um conhecimento necessário e

que serve a vida. Conhecimento que pode ser partilhado e que se dá como sistema que organiza

os espaços habitados pelo homem. Daí sua importância. Neste sentido, quem quiser se dedicar a

este modo de expressão pode encontrar um campo de pesquisa e informação bastante vasto, que,

de algum modo, este trabalho se propôs a apresenta algumas referências. É neste aspecto que

esperamos mobilizar a vontade, organizar informações e colocar o desenho em um lugar de

adequado, onde o receio e a dúvida sejam substituídos pela experiência informada. Sua utilidade

está na conjugação da teoria informando a prática e refletindo o fazer. Há também a procura por

ampliar o conceito ou compreensão do que seja desenho, demonstrando que suas formas podem
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 104

ser diversas e seus modos de fazer muito variados. Que envolve técnicas, conhecimento material

amparado pela história, pela filosofia, talvez se constituindo como uma parte fundamental de uma

ciência da arte. Suas formas então se transformam conservando uma essência que se manifesta

em processos de capazes de serem ensinados e aprendidos. Por esta razão é preciso desmistificar

os signos de bloqueio de se aproximar do fazer. O medo do desenho é que destrói o próprio

desenho. O modo de lidar com esse medo é enfrentar a sua prática, tendo em mente que sua

amplitude de formas supera preconceitos e mesmo modelos visuais estanques. Mais que isso, o

somos um desenho no mundo, uma presença da forma humana que em conjunto desenha

realidades. Mesmo sem percebermos todos estamos deixando marcas de nossas ações

movimentos, interferências no mundo. Desse modo, o medo é fruto da inconsciência do

desenho, da carência de um sistema que o explique, que permita que ele seja vivenciado e

percebido como parte da vida. Finalmente, o que queremos com este trabalho é que o medo se

torne atividade criativa, força expressiva e aprendizado pela arte, para que isso aconteça basta

entregar-se ao desenho e experimentar desenhar.


Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 105

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Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 108

Anexos

Curso: O Desenho e A Imagem Contemporânea


Local: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

Conteúdo resumido do curso:

1. Introdução nas especificidades da linguagem do desenho através de sua relação com a história
da arte.
2. Reflexões sobre a linguagem do desenho e sua contextualização histórica.
3. Estudo dos desdobramentos originados com tecnologias de produção e reprodução da
imagem, surgidas no século XX.
4. Experimentação de diferentes técnicas e recursos expressivos próprios do desenho.

Desse modo, segue o programa do curso em dez aulas, sendo que as oito primeiras trabalham
com conteúdo e as duas últimas são dedicadas exclusivamente para análise e reflexão dos projetos
individuais de trabalho.

Exercícios de fundamento

Nosso argumento intenta construir uma ampliação da compreensão de desenho,


entretanto, existem alguns exercícios básicos de aproximação com a linguagem que julgamos
adequados como introdução de sua prática. A experiência com a linha, com a percepção e
descoberta do desenho pessoal, em relação ao desenho ideal, faz muito sentido nas aulas e
atividades que vão se desdobrar posteriormente em outras pesquisas para os estudantes. Por isso
cabe aqui comentar alguns exercícios básicos e introdutórios com a linha para a percepção do
desenho como linguagem. São exercícios de livre expressão, nos quais o professor pode
investigar a linha, as referências, o “estágio” do aluno e como se pode contribuir na construção
do caminho de sua expressão. Em seguida exploram-se exercícios de investigação da linha, da
descoberta da linha pessoal em seus valores lineares. Da percepção da linha segue-se para
exercícios de escala tonal, de construção de timbres gráficos pelas passagens de valores lineares.
Finalmente temos os exercícios de observação, de desenho cronometrado, desenho cego,
desenho de observação. Desta prática a proposta seguinte é desenhar invertendo o modo de
pensar, desenhando por apagamento e também desenhando a forma do vazio, numa articulação
da expressão binária de desenho.
Como complementação dos fundamentos da linguagem, estão a composição, a partir da
semiótica, e a montagem do esquema de sintagma e paradigma. A composição da imagem está no
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 109

eixo do paradigma, que não obedece à linearidade linguística. Assim, são propostos exercícios de
diagramação, composição e distribuição das formas no espaço, no contexto. Como finalização do
processo, está a elaboração a partir de temas que devem resultar em um projeto pessoal de
pesquisa e desenvolvimento de desenho.

Aulas:

1ª AULA:
- Apresentação do curso, com os objetivos, formato, interesse, processo e projeto pessoal de
trabalho ao longo do curso.
- Imagem contemporânea e sua relação com o desenho.

Proposta:
Explorar o seu próprio desenho. O objetivo é reconhecer a linha de cada um e verificar como o
professor pode colaborar com o caminho escolhido pelo estudante.

2ª AULA:
- O desenho: história, materiais, abordagens e o desenho no século XX.
- Exercício de investigação da Linha.

Exercício:
A partir de um objeto:
- Desenho cego com tempo marcado.
- Desenho com tempo marcado.
- Desenho livre de observação.

3ª AULA:
- Exposição de imagens de desenhos de estudos, esboços, projetos e linguagem em si.
- As modalidades de desenho.

Exercício:
- Escala Tonal: como está relacionada com a percepção da luz.
- Exercício expressivo.
- Exploração de materiais.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 110

4ª AULA:
- Composição no espaço; o signo distribuído na delimitação do suporte.

Exercício:
- Composição, diagramação, planos, figura e fundo.
- O desenho como pensamento; o desenho analógico.

5ª AULA:
- A ação expressiva, materiais, ações de riscar, ferir, raspar, friccionar, etc.
- A materialidade: o meio é a mensagem.
- Linha temperamento: construção expressiva pelo valor da linha.
- Branco sobre preto. (exercício experimentação com materiais)

Exercício:
- Desenhar com borracha, por apagamento, sobre fundo de grafite espalhado sobre o papel.

6ª AULA:
- Forma, perspectiva, bi e tridimensionalidade, ilusão.
- Linguagem, léxico, gramática visual, ortografia, desenho e elementos que compõem sua
estrutura.

Exercício:
- Desenho da forma, perspectiva.

7ª AULA:
- Projeto pessoal de trabalho.
- Desenho conceito, desenho texto.
- Construção de uma proposta de trabalho que envolva a produção de um desenho pessoal.

Exercício:
- Desenho do vazio, das formas resultantes do espaço entre as coisas, o entremundo, olhando as
formas geradas pelo espaço vazio, o espaço negativo.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 111

8ª AULA:
- O desenho contemporâneo, a imagem contemporânea, tratando da construção da imagem pela
luz, pela linha digital, pelo pixel, etc.
- Desenvolvimento do projeto pessoal.
- Apresentação e conversa sobre o campo de atuação artística.
- Análise dos resultados do curso a partir dos trabalhos realizados nas aulas e no cotidiano.

9ª AULA:
- Apresentação da proposta, projeto ou exemplo do Projeto Pessoal de Trabalho.
- Orientação do projeto pessoal a partir do material apresentado pelos alunos.
- Desenvolvimento e acompanhamento do projeto pessoal.

10ª AULA:
- Apresentação de trabalhos.
- Fechamento do curso.

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