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A Polônia se levanta contra a ultradireita

Pauta conservadora vira tiro pela culatra. Em resposta a


tentativa de limitar direito ao aborto, centenas de milhares
vão às ruas — especialmente jovens. Após vitória, exigem
democracia e fim do governo fundamentalista. Que isso diz ao
Brasil?
OUTRASPALAVRAS
FEMINISMOS
por Magda Grabowska
Publicado 18/11/2020 às 18:13 - Atualizado 23/12/2020 às 16:17
Por Magda Grabowska, no ctxt | Tradução: Gabriela Leite

Muita gente viu fotos das grandes manifestações que tomaram as ruas de
cidades da Polônia nas últimas semanas. Talvez se perguntem como é possível
que, durante uma pandemia, centenas de milhares de pessoas, principalmente
mulheres jovens, tenham saído para manifestar-se no que parece ter sido a
maior mobilização social do país desde o movimento Solidariedade na década
de 1980. O que levou as pessoas às ruas?

A razão mais imediata desta mobilização é uma sentença recente do Tribunal


Constitucional, um organismo político que, segundo muitos observadores, não é
mais independente do Lei e da Justiça (PiS, na sigla em polonês), o partido de
direita que ocupa o governo. Em síntese, em 22 de outubro, este tribunal,
presidido por uma mulher, decidiu invalidar a constitucionalidade do acesso ao
aborto por má formação no feto, limitando ainda mais a estrita lei de aborto
polonesa. De fato, a Polônia tem uma longa história de restrições do direito
reprodutivo. 

A interrupção da gravidez era legal e acessível durante o período do socialismo


de Estado posterior a 1956, mas uma lei promulgada em 1993 o limitou a apenas
três casos: quando a gravidez for resultado de um crime (ou seja, de um
estupro), quando a vida ou a saúde da mulher estiverem em risco e quando o
feto apresenta anomalias graves. Enquanto estavam vigentes estas restrições, o
número de procedimentos realizados foi escasso: pouco mais de mil abortos
anuais feitos pela via legal, em um país com uma população de quase 40
milhões de habitantes. Além disso, até outubro de 2020, 97% destes
procedimentos foi levado a cabo através do pressuposto que acaba de ser
proibido.

A consequência disso é que a decisão do Tribunal supõe que, na prática, quase


todas as interrupções de gravidez estão proibidas. Naturalmente, as mulheres
seguirão podendo fazer aborto às margens do sistema. Quando, no começo da
década de 1990, esse direito foi restringido, as mulheres passaram a buscar
procedimentos clandestinos. Atualmente, existem redes de acompanhamento
que oferecem às mulheres o financiamento e a informação necessárias para
abortar de forma segura no exterior, ou fazê-lo elas mesmas em casa.

A ilegalidade quase total do aborto poderia ter sido prevista no clima político
atual da Polônia. O governo não previa, no entanto, uma resposta tão
multitudinária contra essa decisão. As últimas medidas tomadas pelo PiS e a
resistência frente a elas devem ser analisadas no contexto da guerra corrente
contra a “ideologia de gênero e LGBTI+”, que o governo polonês tem lutado nos
últimos cinco anos (desde que o Lei e Justiça ganhou pela primeira vez as
eleições presidenciais). 

Para resumir, essas são algumas das suas últimas ações claramente contra a
igualdade: o ministro da Justiça ameaçou, em julho de 2020, retirar-se de forma
oficial do Convênio de Istambul [o instrumento do Conselho da Europa que
trata de prevenção e luta contra a violência às mulheres e as violências
domésticas] e Andrzej Duda, o presidente da Polônia, em sua campanha de
reeleição recente, afirmou em uma conhecida declaração que “LGBTI+ é uma
ideologia, não é gente”. Além disso, as ações do governo têm se agravado com o
tempo e, em agosto de 2020, a polícia atacou e prendeu ativistas LGBTI+ de
Varsóvia.

Os protestos que estão acontecendo agora são uma resposta ao aumento da


perseguição contra os direitos das mulheres e das pessoas LGBTI+, que
culminou com a sentença do Tribunal Constitucional, mas são também fruto de
mobilizações anteriores da esquerda. Em 2016, a tentativa do Parlamento de
restringir o acesso ao aborto legal foi detido por manifestações em massa
(conhecidas como o “protesto negro”) e greves de mulheres. E na primavera de
2020, durante o confinamento, uma tentativa parecida foi contra-atacada por
bloqueios do trânsito nas maiores cidades, protestos nas sacadas de prédios,
reuniões espontâneas e passeios coletivos em espaços públicos.

A partir de uma perspectiva mais ampla, esses protestos são igualmente


consequência, direta e indireta, de todas as mobilizações sociais ocorridas,
desde os anos 1990 e início dos anos 2000, pelos direitos das mulheres e
LGBTI+, e das recentes greves globais pelo clima. No contexto polonês, além de
tudo, podem ser entendidas em linhas gerais como um indicador do fim do
domínio cultural e político da Igreja católica e de sua contínua ingerência na
esfera pública e no sistema educativo (a religião foi introduzida nos colégios
públicos em 1990). Um exemplo disso é que, hoje, a lei do aborto de 1993 é
entendida pela população em geral como um “pacto”, feito pelas costas das
mulheres, entre os líderes políticos homens e os membros da Igreja católica.

A questão do aborto na Polônia está muito politizada nos últimos 30 anos — e,


especialmente, nos últimos cinco. O governo, ao dar sinal verde para uma nova
restrição na lei, brincou com fogo. Foi contra a maioria que forma a opinião
pública polonesa, que se opõe a novas restrições e prefere que os supostos casos
de aborto de legal se ampliem, em vez de serem reduzidos. Daí, vem a reação. Os
protestos contra a sentença do Tribunal começaram no dia 22 de outubro e
continuaram de outras formas nos dias seguintes: marchas de rua, bloqueios em
horários de grande tráfego em entroncamentos importantes e manifestações em
escritórios e em frente a casas de algumas personalidades importantes da
direita. A concentração mais multitudinária ocorreu no dia 30 de outubro,
quando mais de 100 mil pessoas se uniram para bloquear Varsóvia.  

A sentença do Tribunal chegou em um momento muito difícil para muitos


setores da sociedade: com a pandemia de covid-19, o sistema de saúde a ponto
de colapsar e previsões de recessão econômica, muitos grupos perderam a
confiança em um governo que está distraído intensificando sua campanha de
ódio contra as pessoas LGBTI e mulheres. Por esse motivo, se somaram aos
protestos outros grupos, como taxistas, associações agrícolas, sindicatos e, de
maneira espontânea, motoristas de ônibus e bondes urbanos. É importante
mencionar que essas revoltas se ampliaram e chegaram às cidades menores,
sobretudo em áreas conhecidas por serem a base política do PiS, como a região
noroeste de Podlasie e a região sul de Podkarpacie.

Sabemos que, na Polônia, um país onde as organizações de mulheres lutam há


mais de duas décadas pelo aborto legal, esta onda de manifestações foi de longe
a que mobilizou mais gente. E também foi incomum por muitas outras razões.
Em primeiro lugar, porque o ápice foi a raiva das mulheres, sentida de forma
massiva, coletiva e transbordante, de forma parecida, por exemplo, ao
movimento #MeToo. Essa reação emocional potente poderia ter sido resultado
da frustração acumulada pelos contínuos passos do governo para limitar os
direitos das mulheres.
Agora, a raiva das mulheres se desatou ao ver como o partido que está no
governo proibia a prática de aborto em sua totalidade, sem aparentar qualquer
respeito pelo processo democrático — a lei foi modificada sem debate público e
isso constitui uma omissão do dito processo — e talvez também devido a que
essa proibição é algo muito pessoal para muitas delas, porque se deram conta,
mais uma vez, de que suas vidas são tratadas com total desprezo por numerosos
homens a frente de cargos políticos. Seja como for, essa raiva contra o governo
respingou na Igreja católica — muitas mulheres protestaram nas missas de
domingo, e algumas igrejas foram “decoradas” com grafites em sinal de
protesto. E também se dirigiu contra líderes políticos homens e falsos aliados,
que queriam apropriar-se da raiva das mulheres para seu próprio benefício
político. Um exemplo é o movimento recém-criado e de corte bastante
conservador chamado “Polônia 2050”.

O cansaço, a ira e a raiva absoluta foram bem refletidas nos slogans. Entre os
mais populares, destacam-se “Cai fora” (Wypierdalać, em polonês) e “vá à
merda PiS” (J… PiS). Em todo o país, centenas de milhares de manifestantes,
em sua maioria mulheres jovens, tomaram as ruas portando cartazes com
dizeres como “Queria poder abortar o governo”, “Isso é guerra” ou “O inferno
para as mulheres”. Ao contrário do que se temia, o uso de linguagem vulgar não
afetou o propósito da luta. Ao contrário, como a escritora e acadêmica Inga
Iwasiów destacou: “Assim que começamos a ser vulgares, o outro lado começou
a nos escutar”.

Além do mais, nos debates políticos do país se produziu uma autêntica mudança
quase que da noite para o dia: organizações de mulheres com a All-Poland
Women’s Strike, que coorganizou os protestos pelo direito pleno ao aborto, e a
Abortion Dream Team, um coletivo de acompanhamento que ajuda as mulheres
a abortarem em suas próprias casas, que eram consideradas “muito radicais” até
para alguns setores do feminismo, e se converteram em um grande interlocutor
nos debates políticos convencionais, e atraíram a atenção dos principais meios
de comunicação. Agora já não são vistas como minoria radical ou extremistas
que devem ser silenciadas para que as posturas supostamente moderadas do
espectro político fiquem onde estão…

Mas o que realmente fez com que os protestos crescessem durante semanas foi a
enorme mobilização de jovens e sua determinação. Gente jovem de todos os
gêneros celebrou sua subjetividade política nas ruas, gritando palavrões ao
governo. Os que ficaram em casa, mostraram apoio a partir de suas sacadas,
janelas e pela internet. O compromisso dos jovens, que com frequência são
vistos como despolitizados e descomprometidos, foi uma surpresa. Sobretudo
porque, como geração, cresceram em uma realidade social marcada por uma
sucessão de governos, “progressistas” e conservadores — em função do apoio
político da Igreja –, defensores da militarização e do nacionalismo. Foi uma
revelação ver massas de jovens, imunes e indiferentes à retórica disciplinadora
de ameaça e medo do ministro da Educação, Przemysław Czarnek, que tentou
intimidar o alunato e o professorado com a advertência de que aqueles que
participassem das manifestações poderiam ser levados a juízo. Ou as palavras
de Jarosław Kaczyński, um dos líderes do PiS, que chamou à “defesa da Polônia
e das igrejas católicas” frente às forças que “querem destruir a Polônia” e
buscam “o fim da nação polonesa como a conhecemos”.
No cartaz preto, “Meu corpo, minhas regras”

A determinação e persistência da juventude são uma novidade e dão o que


pensar a todos. Graças a ela, o partido que governa o país aprendeu uma lição
amarga sobre o quanto seus métodos e sua retórica nacionalista estão
desgastados, e o quanto seu partido está distante dos mais jovens — ou seja, de
seu futuro eleitorado. Além disso, o alcance dos protestos pode ter posto fim à
ideia do monopólio do populismo de direita, algo sobre o qual o governo atual
sempre se apoia. A narrativa compartilhada por grande parte da população, de
que os direitos LGBTI+ e das mulheres são um ataque da “ideologia estrangeira”
contra os “valores tradicionais” da Polônia pode parar de funcionar em vista dos
recentes acontecimentos. Essa nova onda de manifestações, suas palavras de
ordem e sua estética podem ser um sinal de que a narrativa liberal de alcançar
pequenas conquistas de direitos humanos, em particular os relacionados aos
LGBTI+ e ao aborto, também mostra que a oposição progressista ao governo
está desatualizada. Os partidos de esquerda, que apoiam abertamente os
direitos LGBTI+ e o direito ao aborto — ainda que seu respaldo social seja de
somente cerca de 10% –, poderiam beneficiar-se dessa nova realidade política se
forem capazes de superar o estigma do pós-comunismo.
Mesmo com essa grande onda de protestos de rua chegando ao seu final natural,
devido ao puro esgotamento de todas as pessoas envolvidas, os resultados da
mobilização ainda estão por vir. Já estamos em 10 de novembro, e o governo
ainda não publicou a sentença do Tribunal, o que significa que, na prática, a lei
não mudou. Além disso, no último mês, a All-Poland Women’s Strike ampliou
suas demandas perante ao governo a outras áreas além dos direitos ao aborto:
direitos LGBTI e das mulheres em geral, direitos trabalhistas, separação entre
Igreja e Estado e independência total do poder legislativo. Agora mesmo, as
organizadoras desse movimento se encontram construindo suas bases, de baixo
para cima, para serem capazes de continuar a luta no futuro.

Plano de ação para a Internacional


Progressista
Yanis Varoufakis provoca: crise abre espaço para projeto pós-
capitalista. Mas esquerda precisa assumir o combate ao
sistema, que os fascistas fingem fazer. Há um leque de
alternativas para tanto, desde que se retome a imaginação
política
OUTRASPALAVRAS
PÓS-CAPITALISMO
por Yanis Varoufakis
Publicado 09/10/2020 às 20:21 - Atualizado 23/12/2020 às 16:55
Por Yanis Varoufakis, em seu blog | Tradução de Simone Paz

Nossa era será lembrada pela marcha triunfante do autoritarismo e seu rastro,
em que a vasta maioria da humanidade passou por dificuldades desnecessárias e
os ecossistemas do planeta sofreram uma destruição climática que podia ter
sido evitada. Por um breve período — que o historiador britânico Eric
Hobsbawm descreveu como “o curto século 20” — as forças do establishment se
uniram para lidar com os desafios à sua autoridade. Foi uma fase rara, em que
as elites tiveram que enfrentar um leque de movimentos progressistas, todos
buscando mudar o mundo: social-democratas, comunistas, experimentos de
autogestão, movimentos de libertação nacional na África e na Ásia, os primeiros
ecologistas, radicais, etc.

Cresci na Grécia de meados da década de 1960, governada por uma ditadura de


direita estimulada pelos Estados Unidos, sob o comando de Lyndon Johnson
(cujo governo foi um dos mais progressistas internamente, mas que não hesitou
em apoiar fascistas na Grécia ou em bombardear o Vietnam). O medo e a
aversão ao populismo de direita que encontramos hoje estampado nas páginas
do New York Times, simplesmente não existiam naquela época.

As coisas mudaram depois de 2008, o ano em que o sistema financeiro


ocidental implodiu. Após 25 anos de financeirização sob o manto ideológico do
neoliberalismo (entenda mais no artigo de Ann Pettifor sobre o sistema
financeiro global), o capitalismo global teve um espasmo semelhante ao de
1929, que quase o deixou de joelhos. A reação imediata dos governos a esta
crise, para apoiar as instituições financeiras e os mercados, foi ligar as
impressoras dos bancos centrais e transferir as perdas bancárias para as classes
trabalhadoras e médias, por meio dos chamados “resgates”.

Essa combinação de um socialismo para poucos e uma rígida austeridade para


as massas, desencadeou duas coisas. Em primeiro lugar, deprimiu o
investimento real global, pois as empresas sabiam que as massas tinham pouco
para gastar em novos bens e serviços. Isso gerou descontentamento entre
muitos, enquanto poucos recebiam grandes doses de “liquidez”.

Em segundo lugar, eclodiram inicialmente levantes progressistas —


dos Indignados na Espanha e os Aganaktismeni na Grécia, ao Occupy Wall
Street e a várias forças de esquerda na América Latina. Esses movimentos, no
entanto, tiveram vida relativamente curta e foram tratados de modo eficiente
pelo establishment, tanto de forma direta, com o esmagamento da primavera
grega em 2015, por exemplo; como indireta, como no enfraquecimento de
governos esquerdistas latino-americanos quando caiu a demanda chinesa por
suas exportações.

À medida em que as causas progressistas foram sendo eliminadas uma a uma, o


descontentamento das massas teve que encontrar uma expressão política.
Imitando a ascensão de Mussolini na Itália, que prometeu cuidar dos mais
fracos e fazer com que eles se sentissem orgulhosos de serem italianos
novamente, testemunhamos a ascensão do que podemos chamar de
Internacional Nacionalista, mais claramente expressa nos argumentos de direita
alimentando a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e nas vitórias eleitorais
de nacionalistas de direita: Donald Trump nos Estados Unidos; Jair Bolsonaro
no Brasil; Narendra Modi na Índia; Marine Le Pen na França; Matteo Salvini na
Itália e Viktor Orban na Hungria.

E assim, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o grande confronto
político deixou de ser entre o establishment e os diversos progressismos, para se
tornar um conflito entre diferentes partes do establishment. Uma parte aparece
como os baluartes da democracia liberal; a outra, como os representantes do
movimento anti-liberal.

Evidentemente, esse choque entre o establishment liberal e a Internacional


Nacionalista é totalmente ilusório. Na França, o centrista Macron precisou da
ameaça do nacionalismo de extrema-direita de Le Pen, sem o qual ele nunca
seria presidente. E Le Pen precisou de Macron e das políticas de austeridade
do establishment liberal, que geraram o descontentamento que alimentou suas
campanhas. Da mesma forma nos Estados Unidos, onde as políticas dos Clinton
e dos Obama, que resgataram Wall Street, alimentaram o descontentamento
que criou Donald Trump — cuja ascensão reforça, em um círculo sem fim, as
defesas de Clinton e Biden contra alguém como Bernie Sanders. Foi um
mecanismo de reforço entre o establishment e os chamados populistas,
replicado em todo o mundo.

No entanto, o fato do establishment liberal e a Internacional Nacionalista serem


co-dependentes, não significa que o choque cultural e pessoal entre eles não seja
autêntico. A autenticidade de seu confronto, apesar da falta de qualquer
diferença política real entre eles, tornou quase impossível para os progressistas
serem ouvidos, devido à cacofonia causada pelas muitas variantes conflitantes
do autoritarismo.

É exatamente por isso que precisamos de uma Internacional Progressista — um


movimento internacional de progressistas para conter a falsa oposição entre
duas variedades do autoritarismo globalizado (o establishment liberal e a
Internacional Nacionalista) que nos prendem em uma típica agenda de negócios
que destrói as perspectivas de vida e desperdiça as oportunidades de frear a
catástrofe climática.

A questão, então, é: o que uma Internacional Progressista faria? Com que


propósito? E por quais meios?

Se a nossa Internacional Progressista simplesmente criar espaço para a


discussão aberta nas praças das cidades (como fez o Occupy Wall Street há uma
década) ou apenas buscar emular esforços como o Fórum Social Mundial, ela
acabará novamente fracassando. Para ter sucesso, precisaremos de um plano de
ação comum e de uma estratégia de campanha incomum, que incentivem os
progressistas ao redor do mundo a implementar esse plano. Por último, mas
não menos importante, precisaremos da vontade compartilhada para visualizar
uma realidade pós-capitalista.

Permitam-me destrinchar esses três pré-requisitos, um a um:

Pré-requisito 1: Um plano de ação progressista comum

Os fascistas e os banqueiros têm um programa comum. Se você conversar com


um banqueiro no Chile ou na Suíça, com um apoiador de Trump nos Estados
Unidos ou com um eleitor de Le Pen na França, você ouvirá a mesma narrativa.
Os banqueiros dirão que a regulamentação e os controles de capital são
prejudiciais ao progresso; que a engenharia financeira aumenta a eficiência com
que o capital flui para a economia; que o setor privado é sempre melhor na
prestação de serviços do que o setor público; que salários mínimos e sindicatos
impedem o crescimento ou que as mudanças climáticas só podem ser
enfrentadas pelo setor privado.

Por sua vez, a narrativa Internacional Nacionalista é a seguinte: cercas elétricas


nas fronteiras são essenciais para preservar a soberania nacional; os imigrantes
ameaçam os empregos locais e a coesão social; os muçulmanos, em particular,
não podem ser integrados e precisam ser mantidos pra fora; os estrangeiros
conspiram com as elites liberais locais para enfraquecer a nação; as mulheres
devem ser incentivadas a criar seus filhos em casa; os direitos LGBTQI+ vêm em
detrimento da moralidade básica e, por último, mas não menos importante:
“Dê-nos o poder de agir de forma autoritária, que nós faremos com que o país
volte a ser grandioso e você orgulhoso”.

Os progressistas também precisam de narrativas compartilhadas. Felizmente,


sabemos o que deve ser feito: a geração de energia deve transitar maciçamente
de combustíveis fósseis para fontes renováveis, principalmente eólica e solar; o
transporte terrestre deve ser eletrificado, enquanto o transporte aéreo e o
transporte marítimo devem recorrer a novos combustíveis com zero emissão de
carbono (como o hidrogênio); a produção de carne deve diminuir
substancialmente, com maior ênfase nas culturas orgânicas; e limites estritos ao
crescimento físico desde toxinas até cimento são essenciais.

Também sabemos que tudo isso custará pelo menos 10% da receita global, ou
quase 10 trilhões de dólares, anualmente – uma soma que pode ser facilmente
mobilizada, desde que estejamos prontos para criar instituições para coordenar
as várias ações e redistribuir as receitas entre o Norte e o Sul globais. Para
conseguir isso, precisamos invocar o espírito do New Deal original de Franklin
Roosevelt — uma política que teve sucesso porque inspirou pessoas que haviam
perdido a esperança de que existissem maneiras de direcionar os recursos
ociosos ao serviço público.

Nosso Green New Deal Internacional terá de utilizar instrumentos de crédito


transnacionais e impostos sobre carbono — de modo que o dinheiro arrecadado
com a taxação do petróleo possa ser devolvido aos cidadãos mais pobres que
dependem de carros a gasolina, a fim de fortalecê-los de modo geral,
permitindo, também, que possam comprar carros elétricos. Para aplicar esses
recursos em investimentos ecológicos, é necessária uma nova Organização para
a Cooperação Ambiental de Emergência, com o fim de reunir a inteligência da
comunidade científica internacional em algo como um Projeto Manhattan verde
— que vise, em vez do assassinato em massa, o fim da extinção.

Sendo ainda mais ambiciosos, nosso plano comum deveria incluir uma União de
Compensação Monetária Internacional, do tipo sugerido por John Maynard
Keynes durante a conferência de Bretton Woods em 1944, apresentando
restrições bem elaboradas aos movimentos de capitais. Ao reequilibrar salários,
comércio e finanças em escala global, tanto a migração involuntária quanto o
desemprego involuntário diminuirão, encerrando assim o pânico moral sobre o
direito humano de circular livremente pelo planeta.

Pré-requisito 2: Uma campanha incomum

Sem isso, nosso plano comum, o Green New Deal Internacional, permanecerá


só no rascunho. E aqui vai uma ideia de campanha: precisamos identificar as
empresas multinacionais que abusam dos trabalhadores localmente e atacá-las
globalmente, utilizando a grande disparidade de custos para os participantes de,
por exemplo, boicotar a Amazon por um dia e os custos dos mesmos boicotes
para as empresas-alvo. Boicotes de consumidores globais não são novos, mas
agora, usando o poder de megaempresas de plataforma, como a Amazon, contra
elas próprias, podem ser muito mais eficazes. Especialmente, em uma segunda
fase, eles seriam combinados com ações de greve local envolvendo os sindicatos
mais importantes. Essa ação global em apoio aos trabalhadores ou comunidades
locais tem um alcance imenso. Com comunicação e planejamento inteligentes,
eles podem se tornar uma forma popular de as pessoas no mundo todo
compartilharem o sentimento de estar ajudando a tornar o planeta um lugar
mais livre e justo.

Claro, para que isso aconteça, nossa Internacional Progressista requer uma
organização internacional ágil. O problema das organizações que são capazes de
uma coordenação global é que elas, sorrateiramente, reproduzem em si
burocracias, exclusão e jogos de poder. Como podemos evitar que o
neoliberalismo e o nacionalismo autoritário destruam o mundo sem criar nossa
própria variedade de autoritarismo? Reconheço que é mais difícil encontrar a
resposta certa para essa pergunta sendo progressistas que rejeitamos as
hierarquias, as burocracias e as invasões do paternalismo. Mas temos o dever de
encontrá-la.

Pré-requisito 3: Uma visão compartilhada do pós-capitalismo

Consideremos o que aconteceu no dia 12 de agosto de 2020, quando foi


divulgada a notícia de que a economia britânica havia sofrido a maior queda de
sua história. A Bolsa de Valores de Londres deu um salto de mais de 2%! Nunca
tinha acontecido nada comparável a isso. Fatos semelhantes ocorreram em Wall
Street, nos Estados Unidos.

Efetivamente, quando a Covid-19 se deparou com a bolha gigantesca na qual


governos e bancos centrais têm mantido corporações e instituições financeiras
vivas como zumbis, desde 2008, os mercados financeiros finalmente se
desvincularam da economia capitalista em seu redor.

O resultado destes desenvolvimentos notáveis é que o capitalismo já começou a


evoluir para um tipo de feudalismo tecnologicamente avançado. O
neoliberalismo é hoje o que o marxismo-leninismo costumava ser durante os
anos 80 soviéticos: uma ideologia totalmente em desacordo mesmo com o
regime que a invocou. Após o colapso do bloco soviético em 1991, e do
capitalismo financeirizado em 2008, estamos numa nova fase, em que o
capitalismo está morrendo e o socialismo se recusa a nascer.

Caso eu esteja certo, mesmo aqueles progressistas que ainda nutrem esperanças
de reformar ou civilizar o capitalismo devem considerar a possibilidade de
olharmos para além do capitalismo — ou, na verdade, de planejar uma
civilização pós-capitalista. O problema é que, como meu grande amigo Slavoj
Zizek apontou, a maioria das pessoas acha mais fácil imaginar o fim do mundo
do que o fim do capitalismo.

Para combater essa falha de nossa imaginação coletiva, em meu livro mais
recente, intitulado Another Now: Dispatches from an alternative
present (“Outro Agora: despachos de um presente alternativo”), tento imaginar
o que ocorreria se minha geração não tivesse perdido todos os momentos
cruciais que a história nos apresentou. E se tivéssemos aproveitado o momento
de 2008 para uma revolução pacífica de alta tecnologia, que tivesse nos levado a
uma democracia de economia pós-capitalista? Como seria?

Haveria mercados para bens e serviços, já que a alternativa — um sistema de


racionamento do tipo soviético, que confere poder arbitrário ao pior dos
burocratas — é deprimente demais. Mas, para que um novo sistema seja à prova
de crises, há um mercado que não podemos nos dar ao luxo de preservar: o
mercado de trabalho. Por que? Porque, se que o tempo de trabalho é reduzido a
um bem de aluguel, os mecanismos de mercado inexoravelmente empurram seu
preço para baixo, enquanto mercantilizam todos os aspectos do trabalho (e, na
era do Facebook, até do lazer). Quanto maior a capacidade do sistema para fazê-
lo, menor o valor de troca de cada unidade de produção que ele gera, menor a
taxa média de lucro e, em última análise, mais nos aproximamos de uma nova
crise sistêmica.

Uma economia avançada pode funcionar sem mercados de trabalho? Claro que
sim! Considere o princípio de a cada um funcionário, uma ação e um voto.
Alterar a legislação societária de modo a transformar cada funcionário em um
sócio igual (ainda que não igualmente remunerado), através da concessão de um
voto não negociável de uma pessoa-uma ação-um voto, é tão inimaginável e
radical hoje quanto o sufrágio universal parecia ser no século 19. Se, além dessa
transformação fundamental da propriedade da empresa, os bancos centrais
proporcionassem a todos os adultos uma conta bancária gratuita, passaríamos a
ter uma economia de mercado pós-capitalista.

Com o fim dos mercados de ações, a alavancagem da dívida associada a fusões e


aquisições também se tornaria uma coisa do passado. A Goldman Sachs e os
mercados financeiros que oprimem a humanidade, subitamente deixariam de
existir — sem nem ser preciso bani-los. Livres do poder corporativo, livres da
indignidade imposta aos necessitados pelo estado de bem-estar social, da tirania
dos lucros e do cabo de guerra entre lucros e salários, as pessoas e comunidades
podem começar a imaginar novas maneiras de empregar seus talentos e
criatividade.

Chegamos a uma bifurcação. O capitalismo está em crise profunda, embora


sigamos a caminho da distopia. Somente uma Internacional Progressista poderá
ajudar a humanidade a alterar o seu caminho.

E agora, que o neoliberalismo está em


ruínas?
Wendy Brown, filósofa feminista, provoca: fracassa, em meio
à pandemia, ideia de organizar a sociedade a partir do
indivídualismo e mercados. Está evidente a necessidade
do Comum. Mas contra a direita, é preciso ressignificar
a liberdade
OUTRASPALAVRAS
MERCADO X DEMOCRACIA
por Redação
Publicado 21/12/2020 às 22:29 - Atualizado 23/12/2020 às 16:15
Wendy Brown, entrevistada por Verónica Gago, no Le Monde
Diplomatique –Cono Sur | Tradução: Simone Paz

A filósofa, cientista política e professora Wendy Brown conversou com Verónica


Gago no ciclo de debates feministas “Conversas Latino-Americanas”, poucos
dias após a derrota de Trump, e na véspera do lançamento de seu livro “Nas
ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no Ocidente”.
Na palestra, Brown abordou a sobrevivência do trumpismo, a demonização da
democracia pelo neoliberalismo e a necessidade de redefinirmos o conceito de
liberdade para a esquerda, a fim de separá-lo da carga agressiva e antiestatal
que lhe é atribuída pela direita.

A derrota de Trump, mas não do trumpismo, os desafios da esquerda e dos


movimentos sociais, as maneiras de entender o devir reacionário dos setores
populares e o conceito de liberdade em disputa. Essas são algumas das chaves
da conversa entre Wendy Brown e Verónica Gago que vão muito além da
conjuntura estadunidense, para interrogar, também, a vida e seu cotidiano.

Você começou a escrever o livro “Nas ruínas do neoliberalismo. A


ascensão da política antidemocrática no Ocidente” no início do
governo Trump; e hoje estamos traduzindo e editando o texto no
final desse ciclo político — embora saibamos que dificilmente tenha
chegado ao seu fim. O que significa a ideia das ruínas do
neoliberalismo?

Temos que pensar que a expressão “ruínas” se refere a algo que já é antigo mas
que, no entanto, não morreu. Uso o termo “ruínas” porque ainda vivemos no
neoliberalismo, o neoliberalismo não acabou, mas ele está em decadência.
Muitas coisas estão desmoronando ou se arruinando. No âmbito econômico, o
neoliberalismo dispersou e deslocou comunidades, as regulamentações estatais
desapareceram e muitas empresas locais foram substituídas por empresas
globais. Tudo isso fez com que milhões de pessoas no mundo todo tivessem sua
situação deteriorada, ficassem na precariedade. Nunca, desde a Grande
Depressão, a classe trabalhadora americana esteve em uma posição tão
vulnerável e com um futuro tão difícil. Essas são as ruínas econômicas do
neoliberalismo.

Mas a ruína vai para muito além da economia. É a ruína de uma forma de
organizar e governar que valorizava a moralidade tradicional como única forma
possível de organização: os mercados e a moralidade tradicional. As formas
livres e espontâneas de associação, a soberania dos povos, os projetos de justiça
social e igualdade, tudo isso é demonizado pelo neoliberalismo, que não busca a
liberdade, mas a imposição de um modelo de engenharia social. O
neoliberalismo é uma forma de totalitarismo. Assim, depois de quarenta anos
dessas políticas econômicas e forma de raciocínio, temos, em muitas sociedades
industrializadas, uma classe trabalhadora que se reconverteu a formas mais
baratas de trabalho, os salários foram reduzidos. O mesmo acontece com a
educação ou infraestrutura, que estão em frangalhos. Mas o neoliberalismo
também é responsável pela perda da confiança na democracia. É um ataque à
democracia em termos de justiça social, redistribuição, igualdade. Enquanto
isso, os mercados são subsidiados e a moralidade tradicional continua sendo
promovida.

Ao mesmo tempo, o neoliberalismo trouxe novas formas de desigualdade social


que antes não existiam. Há muitas maneiras de medir esse fenômeno, mas a que
melhor ilustra tudo isso é o fato de que uma única pessoa possui mais riqueza
do que outras 5 bilhões. Em outras palavras, 22 homens têm mais dinheiro do
que todas as mulheres da África. Isso indica que algo diferente do que estava
nos planos originais está acontecendo: o ataque plutocrático às instituições.
Essa classe plutocrática, que agrediu os poderes institucionais, constitui um
poder antagônico à democracia e usa esse poder político para garantir sua
própria posição. Porém, ao mesmo tempo em que se vale dela, o poder
plutocrático quer suprimir a democracia — à primeira vista, algo contrário ao
que [os criadores do neoliberalismo] tinham em mente no início. O que a
plutocracia faz hoje é criar uma economia que lhes garanta o monopólio do
poder sem ter que recorrer às instituições da democracia. Isso acontece no
Brasil e em outras partes da América Latina, mas também nos Estados Unidos.
Os valores da democracia são substituídos por uma vontade agressiva de poder.
Os plutocratas, em coligação com as igrejas evangélicas, demonizam a
democracia e o estado social em nome de uma ideia muito particular de
liberdade, agressiva e antissocial.

A promessa de recuperar um mundo que não existe mais cria uma base
extraordinária para o autoritarismo. Um mundo estável, seguro, homogêneo,
organizado por valores cristãos e patriarcais. Meu argumento é que o
neoliberalismo é um dos berços das formas fascistas e autoritárias.

Como funciona essa articulação entre neoliberalismo e


conservadorismo? Como você mesma diz, não era algo que estava
nos planos originais dos pais fundadores do neoliberalismo. Como
surge essa combinação, que vemos se desenvolver em escala global e
que tem seu momento de laboratório político na era Trump? Qual é a
particularidade conjuntural da junção entre neoliberalismo e
conservadorismo? É algo que você passou a notar principalmente a
partir da era Trump?

O conservadorismo faz parte da arquitetura original do neoliberalismo. Os


neoliberais argumentam que a moralidade tradicional deve ser a base da
legislação social; que deve se pautar em valores de família, propriedade privada
e autoridade. Se há primazia do indivíduo, é sempre em um quadro hierárquico,
não em um modelo igualitário. O que chamamos de conservadorismo esteve
presente desde o início, o que não se previa era que passaria de uma forma de
organizar a ordem das coisas, a uma abordagem tão agressiva e demagógica,
para se tornar uma verdadeira formação neofascista. E acho que isso deve ser
explicado pela falha original do neoliberalismo em entender que as populações
não podiam ser pacificadas pelos mercados nem pela moralidade, mas que
podiam ser ativadas de forma agressiva — forma que eu chamo de “não-
exaltada” — e que alude a uma certa perda das inibições, ao surgimento de um
caráter antissocial e agressivo que se manifesta publicamente em ataques
abertos aos outros. É só isso que não existia no início do neoliberalismo. Os
mercados e a moral tinham que organizar a sociedade, mas de forma silenciosa
e com calma, e não operando em um plano tão decididamente político.

Quanto à aliança entre o moralismo de mercado e o conservadorismo cristão no


trumpismo, os evangélicos dos EUA estão bem cientes de que Trump não é
cristão, não é uma pessoa virtuosa, não é alguém que opta pelos mesmos valores
que eles. Mas estão convencidos de que Deus o enviou como agente de sua
missão na Terra, que é cristianizar a nação, reintroduzir o ensino religioso nas
escolas, acabar com o aborto e erradicar o feminismo. Eles acreditam em tudo
isso e acham que Trump é o agente do projeto, embora não seja um deles. E ele
trabalhou nisso com muito cuidado. Finge rezar, por exemplo, mesmo com
todos sabendo que Trump não é uma pessoa piedosa. Acho que Bolsonaro
também tem muito disso, assim como outras figuras da Europa, como Le Pen na
França, e outras personalidades da extrema-direita alemã. Mesmo na Hungria,
onde o cristianismo faz parte do conservadorismo, os líderes da extrema-direita
não são necessariamente líderes cristãos.
Levando em consideração essa caracterização do conservadorismo
como um ativismo político, como podemos pensar sua expansão
numa escala massiva, mesmo em setores populares de nossas
sociedades? Como esse conservadorismo consegue combinar-se com
uma afetividade das classes populares e trabalhadoras, enquanto
assume esse ativismo político em termos conservadores.

Aqui é possível começar a perceber algumas diferenças entre as culturas de


nossos diferentes países. Um dos legados da globalização neoliberal nos Estados
Unidos é a profunda divisão cultural entre, por um lado, aqueles que se sentem
conectados ao mundo, à cultura global, ao cosmopolitismo, à vida urbana —
pessoas que se reconhecem como norte-americanos, mas também parte de um
mundo musical, linguístico, artístico, laboral, econômico, que existe além das
fronteiras do país — e, por outro lado, aqueles que eu chamaria de “a média do
país”, que podem ser chamados de “suburbanos”, “exurbanos”, ou também
“rurais”. Este grupo se sente profundamente alienado de todo esse aspecto da
cultura contemporânea, mas também desse aspecto do que o neoliberalismo
tem feito, que é quebrar as barreiras nacionais, provocar o movimento de
pessoas ao redor do mundo através da migração e nos tornar um país com
muito mais mistura — em alguns anos, os brancos serão uma minoria neste
país, os Estados Unidos serão o que chamamos de um país de minoria
majoritária. Isso é muito ameaçador para aqueles que se sentem terrivelmente
abandonados de todas as maneiras que já falamos. Eles estão despencando
economicamente, e se sentem social e culturalmente desprezados ou
ridicularizados por seus modos de vida, seus hobbies, seus interesses ou sua
falta de educação. E, é claro, o trumpismo cultivou esse sentimento. Ele se
dirigia a eles como se sua ignorância e rejeição ao cosmopolitismo, inteligência,
intelectualismo, ideias, cultura, fosse algo bom, algo valioso.

O próprio Trump incorporou esses valores. Com isso, ele reforçou aquele
conservadorismo refratário a um mundo mais aberto, mais diverso, mais
mutante; fortaleceu a ideia de que é possível se limitar àquelas vidas fechadas
dos subúrbios brancos. Mesmo se colocarmos o cristianismo de lado, por uns
instantes, podemos nos limitar apenas a essas vidas suburbanas brancas,
fechadas, e chamar isso de “América” e rejeitar todo o resto. Esse sentimento foi
fortemente intensificado, por um lado, pelo conservadorismo, mas também
pelos efeitos da desvalorização da educação no neoliberalismo. Para o
neoliberalismo, educação é formação para o trabalho; não o enxerga como uma
formação que joga luz sobre a humanidade, o mundo, a natureza ou a cultura.
Trata a educação simplesmente como forma de desenvolver o capital humano, e
essa perspectiva foi concretizada por meio do desinvestimento na educação
pública, especialmente no ensino superior, mas onde também as escolas foram
afetadas e sua qualidade caiu drasticamente. Isso agrava o problema da
população de classes trabalhadora e média que não vivem nos centros urbanos,
que não conhecem o mundo, não querem conhecer o mundo e se sentem
ameaçadas pelo mundo. E isso, por sua vez, exacerba o conservadorismo, o anti-
intelectualismo, a xenofobia e tudo o mais.

Existe uma discussão em torno das expressões “fascismo”, “novos


fascismos”, “tendências neofascistas”. Você acha que elas estão
corretas, em termos sistemáticos e de uso político, para caracterizar
a situação atual em relação a esse desenvolvimento que você acaba
de fazer da relação conservadorismo-neoliberalismo?

Eu tenho uma contradição interna, comigo mesma, nesse quesito. Em parte,


porque o termo “fascismo” é muito carregado de significado relacionado à
Segunda Guerra Mundial. Acredito, sim, que vivemos em uma formação
neofascista, se entendemos por isso a mobilização do poder do Estado para
definir a nação e o povo de forma homogênea e arregimentá-los após um projeto
específico que é discriminatório, violento, militarizado. Tudo isso está aí. Mas,
ao mesmo tempo, o motivo pelo qual uso outro termo, “liberalismo autoritário”,
é porque as liberdades civis nos EUA estão no centro do projeto neofascista
neste momento. É muito importante que vejamos como a ideia de liberdade é
mobilizada pela direita contra a esquerda, como forma de construir um apoio
para este — que agora eu chamo assim — movimento neofascista. É complicado
porque, quando falamos de fascismo, imaginamos um Estado muito forte e uma
falta de liberdade individual; no entanto, aqui temos algo diferente. Por um
lado, sim, temos um regime de propaganda no trumpismo; temos, também, a
mobilização do etnonacionalismo branco para a construção de um projeto
nacional muito específico. Mas, por outro lado, a liberdade é o cartão de visita
deste projeto, e ela é usada para constranger a esquerda.

Acho que se não prestarmos atenção nisso, nunca entenderemos o diferencial


desse regime e o porquê de ser tão bem-sucedido. Especialmente nos EUA, onde
a liberdade individual está há muito tempo na raiz de seu credo, mesmo que ela
não tenha sido estendida às minorias subjugadas do país, mulheres ou pessoas
LGBTI. Mesmo não tendo sido universalizada, está no cerne do credo norte-
americano. Portanto, prefiro o termo “liberalismo autoritário” porque acho que
descreve com maior precisão o que temos hoje e por que temos que lutar. Mas
não estou dizendo que não haja dimensão fascista em tudo isso. Há e, de fato,
estamos vendo isso na recusa de Trump em deixar o poder, em seus esforços de
desinformação e propaganda, em seu esforço para incitar à violência, sem
descartar que ele tente usar a força militar para permanecer no poder mais um
pouco. Mas acho que o fascismo é apenas uma dimensão, não é tudo.

A palavra “derrota” é pertinente no caso de Trump, mas também


parece grandiosa demais para nos referirmos ao trumpismo,
correto?

O trumpismo não foi derrotado. Trump foi derrotado e temos que celebrar esse
momento. E comemoramos. A dança nas ruas foi algo extraordinário. Nós,
norte-americanos, não costumamos sair para dançar assim, mas dessa vez sim,
fizemos uma coisa que é mais comum pra vocês [argentinos]: dançar na rua.
Comemoramos e dançamos porque essa figura específica do neofascismo, do
liberalismo autoritário, foi expulsa da presidência. Ele vai alegar e tentar de
tudo, mas terá que deixar seu gabinete presidencial. No entanto, o trumpismo
não foi derrotado, 70 milhões de pessoas ou mais votaram em Trump e muitos
deles estão inconformados por não terem vencido. Eles estão com medo, estão
convencidos de que o novo regime vai destruir suas vidas, seus valores, suas
igrejas e se apegam ao pouco que têm. Toda a formação antidemocrática, racista
e patriarcal que Trump ungiu e mobilizou ainda está bem viva. Ele ainda está
vivo não apenas graças à sua base, mas também porque Trump agora tem um
enorme controle sobre o partido da direita. E não posso mais chamá-lo
simplesmente de “conservador”, é um partido de direita. O próprio partido é
antidemocrático. Literalmente, eles estão tentando anular votos, estão tentando
manipular os distritos, para poder manter o controle do país, mesmo com uma
minoria dos votos. E eles estão em uma posição muito favorável para fazer tudo
isso. Então, temos um partido trumpista e suas bases que não foram derrotadas.
E há Trump. Estamos muito satisfeitos em tê-lo removido da presidência, mas
não há muito que o governo Biden possa fazer, com um Senado e uma Suprema
Corte republicanos nas mãos da extrema direita, então este não será o ensaio
para uma alternativa. Além disso, há o problema de que o que Biden representa
é um retorno ao centro, não uma saída para o caos do neoliberalismo.

Qual formato de articulação ou organização política você imagina


que esse trumpismo social assuma sem a liderança presidencial de
Trump?

Existem diferentes dimensões para abordar essa questão. O trumpismo não é


uma formação unitária, de um único tipo. Existe a alt-right, que imagino que vai
continuar atuando como de costume. São neonazistas, fascistas, racistas radicais
que, sempre que puderem, tentarão provocar distúrbios e ataques. Eles têm
estado surpreendentemente silenciosos nas últimas semanas e tenho certeza de
que estão se reagrupando e repensando sua estratégia, mas não vão embora.
Depois, há aqueles que Trump mobilizou para acreditar que a eleição foi
roubada, mas que não são necessariamente da extrema-direita. Fico feliz em ver
que esse número está diminuindo. Provavelmente, apenas metade do Partido
Republicano acredite, atualmente, que a eleição foi fraudada, mas mesmo
assim, ainda há muitos eleitores. E com isso me sinto meio paralisada, porque,
sem dúvida, Trump vai mobilizá-los para recuperar a Casa Branca; com certeza,
eles já têm vitórias no Senado e nas legislaturas locais — o quanto as vitórias
republicanas alcançaram nas eleições locais foi impressionante — então eles já
têm uma boa base para operar.

Acho que a grande questão é se a ala de esquerda e a ala de centro dos


democratas poderiam combinar-se para construir uma alternativa mais
poderosa e atraente. Esta é a pedra angular de toda a situação atual. A esquerda
não pode romper, mas o centro também não pode se dar ao luxo de empurrar a
esquerda pra fora do trem. Porque é aí que estão os millennials, o Black Lives
Matter, o ativismo LGBTI, o movimento MeToo… É onde está todo o ativismo. E
se eles não ganharem nada com este governo, se forem ocultados, ou negados,
como companhia vergonhosa, eles não voltarão a apoiar um candidato
democrata, nem voltarão a participar da política eleitoral. Esta é a primeira vez
em décadas que a esquerda participa tão ativamente. Muita gente da esquerda já
tinha votado antes, mas esta é, provavelmente, a primeira vez desde os anos
1930 que a esquerda se engaja na política eleitoral como se tivesse futuro para
um projeto de esquerda, social-democrata ou socialista. Se isso for subtraído do
Partido Democrata, como se não fosse nada — que é o que eu acho que alguns
centristas querem fazer — será o fim do Partido Democrata. Se esse acordo for
quebrado, o Partido Democrata está acabado.

Como avaliar o impacto da mobilização mais recente do Black Lives


Matter, mas também dos movimentos feministas e LGBTI? Sua
capacidade de instaurar um termo como “racismo estrutural” na
campanha trouxe que tipo de consequências? Como a sua força entra
em jogo, de agora em diante?

No momento, essa é a grande questão. Temos, de um lado, o Black Lives Matter,


as feministas, os movimentos pelos direitos dos migrantes, pela Justiça
Climática, o Extinction Rebellion e muitos outros. Enfim, um grande leque de
ativismos que se mobilizou para a eleição, mas que entendeu imediatamente
que deveria voltar ao seu trabalho nos movimentos sociais. Não vamos
conseguir nada vindo de dentro [do governo], a menos que os movimentos
continuem crescendo. Os movimentos sociais de esquerda, os populismos de
esquerda não podem permitir que toda a energia dos movimentos sociais seja
desviada para a política legislativa e eleitoral, onde seria neutralizada e diluída.
Em vez disso, os movimentos têm que voltar às ruas, têm que voltar à
organização e a mobilizar as pessoas que ainda não participam. Por exemplo, a
população latina ao longo da fronteira com o Texas, que apoiou fortemente
Trump — em parte, porque são famílias de segunda e terceira geração que, em
muitos casos, trabalham para o ICE, nossa agência de deportação, ou são
pequenos empreendedores, ou têm pequenos comércios — foi organizada e
mobilizada pelo Partido Republicano, que apelava à ideia de liberdade, a valores
sociais conservadores e ao medo do que os democratas poderiam fazer com eles.
Enquanto isso, os movimentos sociais e o Partido Democrata nem sequer se
aproximaram deles. Os movimentos sociais precisam crescer, precisam sair das
bolhas, sair para se organizar. Estou falando da organização convencional, o
tipo de organização que sai do Facebook e das redes sociais e vai ao encontro do
ser humano em seus bairros, em suas casas, em suas comunidades, onde essas
pessoas vivem e, mobilizando-as por mundos melhores, torna-se parte dessas
comunidades. Se isso não acontecer, os movimentos sociais continuarão sendo
um estímulo efetivo para a política eleitoral, mas não terão o poder real de fazer
cumprir suas reivindicações, nem crescerão para além da população
basicamente urbana com a qual já dialogam hoje.

Você diria que o fantasma do socialismo, que rondou a campanha


contra a ideia de liberdade, foi realmente eficaz, que ele tem
capacidade real de interpelação, ou seria uma coisa mais midiática?

Acho que o discurso contra o socialismo foi usado de forma muito eficaz pela
direita. Um dos presentes que o neoliberalismo deu ao conservadorismo, foi o
de continuar a demonizar o socialismo e a social-democracia, muito além do
“espectro” do comunismo representado pela União Soviética e até pela China. A
ideia, por exemplo, de uma política de estado responsável em torno da covid-19,
que impusesse distanciamento social, o uso de máscaras e os fechamentos
necessários para conter o vírus, foi acusada de ser socialista, totalitária. Reações
semelhantes suscitaram esforços para estabelecer um Programa Nacional de
Saúde que garantisse o acesso aos serviços para toda a população do país — este
também foi qualificado como socialista e totalitário. Essas reações não vêm do
velho discurso da Guerra Fria, vêm da demonização neoliberal do Estado de
bem-estar. Penso nas sociedades onde o sentimento de precariedade já era
muito grande, onde a ideia do estado força você a fechar o seu negócio por um
mês, ou fechar a escola por três meses, para conter o vírus, parecia catastrófica.
A direita chama essas ações do Estado de “socialismo” e responde dizendo:
“precisamos de liberdade”, “precisamos abrir nossos negócios”, “todos temos
direito de trabalhar”. Acho que tudo isso teve um grande poder de ressonância e
mobilizou muito os eleitores de Trump.

No livro você fala sobre cultivarmos perspectivas de esquerda: como


poderíamos repensar uma noção de liberdade que não seja
conjugada nos termos de uma liberdade ingênua, ou rapidamente
capturada em termos liberais, e que também não seja absorvida pela
ideia de liberdade que o neoliberalismo conseguiu atrelar à ideia de
segurança?

Qual seria, então, o conceito de liberdade capaz de fugir desses outros dois? O
mais importante para os norte-americanos — e não acho que seja
necessariamente o mesmo desafio que enfrentam os brasileiros, argentinos ou
chilenos, porque vocês têm uma tradição mais robusta em termos de socialismo
e social-democracia, tanto em termos intelectuais quanto num nível mais
popular — é que a esquerda possa explicar e fazer circular, em termos muito
simples, uma noção de liberdade que se conecte com o cerne do socialismo.
Uma noção de liberdade que envolva o livrar-se da carência, ser livres do
desespero e da precariedade, livres do desamparo de não ter moradia.
“Liberdade de”, mas também “liberdade para”: liberdade para realizar nossos
sonhos, e não apenas sobreviver; liberdade de escolher, não simplesmente de
abortar ou de com quem dormir – que é importante –, mas também de
construir vidas, construir comunidades e mundos nos quais todos tenhamos
vontade de viver. Se não trabalharmos imediatamente na ressignificação da
liberdade, para torná-la um conceito que afirme as visões da esquerda, para
afastá-la desse tipo de reiteração libertária, agressiva, antissocial e antiestatal,
perderemos essa batalha.

Porque muitas dessas pessoas das quais eu falo, que vivem na precariedade,
sentem que a liberdade é a única coisa que lhes resta, é a única coisa que
pensam que têm. Elas se sentem abandonadas e descartadas; com tanta coisa
acontecendo no mundo, se sentem bombardeadas por poderes que não
entendem; se sentem como objeto de desprezo por um mundo mais sofisticado
— e se apegam ao que chamam de liberdade, mas nós temos que ressignificar
essa liberdade. A liberdade deve criptografar não apenas a solidariedade e o
bem-estar social, mas também a capacidade de vivermos em um ambiente
sustentável e protegido que, atualmente, está sob enorme perigo. É assim que a
liberdade nos envolve e atinge. E é inútil dizer que recuperar a liberdade é
livrar-nos de algum peso, ou falar de liberdade apenas como abolicionismo, ou
liberdade como sinônimo de livrar-nos da polícia. Tudo isso pode até ser
verdade, mas não vai seduzir ninguém. O que seduz é a liberdade como algo
com o que se constrói a vida.

Quando o liberalismo arrasa a liberdade


Em novo livro, história que se repete. Nos anos 30, em nome
de economia “sem intervenções”, liberais alemães exigiram
mão forte do Estado contra “excessos” da democracia. Carl
Schmitt liderou o giro teórico, e em seguida aderiu ao nazismo
OUTRASPALAVRAS
MERCADO X DEMOCRACIA
por Joseph Confavreux

Publicado 18/12/2020 às 21:36 - Atualizado 22/12/2020 às 13:33

Por Joseph Confavreux | Tradução: Antonio Martins | Imagem: William


Gropper

Uma etimologia comum não significa uma política coerente. Entre as liberdades
e o liberalismo, pode haver abismos, especialmente quando os liberais assumem
o programa de um neoliberalismo cujas políticas, amplamente rejeitadas,
precisam ser impostas por meios violentos.
O filósofo Grégoire Chamayou, autor de um livro importante sobre a genealogia
do “liberalismo autoritário” (A sociedade ingovernável, Grégoire Chamayou,
Ubu Editora, 2020), amplia seu trabalho de documentação e análise de uma
ideologia cuja gênese é necessário examinar sem o cacoete preguiço do “retorno
aos anos 1930”, para compreender como ela poderia estruturar o mundo
contemporâneo.

Para escrever Sobre o Liberalismo Autoritário, publicado pelas edições Zones,


que ele por sinal dirige, o pesquisador comentou e traduziu dois textos
conflitantes, ambos redigidos em 1932 por juristas e filósofos alemães. Um, de
Carl Schmitt (1888-1985), conservador que aderiria ao nazismo em 1933; o
outro, de Hermann Heller (1891-1933), militante de esquerda na república de
Weimar e morto no exílio em Madri, onde, como judeu, buscava refúgio.

No discurso “Estato forte e economia sã”, pronunciado em 23/11/1932, diante


de uma assembleia de empresários em Dusseldorf, Carl Schmitt diz que o
Estado alemão, que ele vê como um Estado-Providência, curvou-se sob o
suposto peso das exigências sociais e se transformou num Estado fraco e
pesado, ainda que presente em cada vez mais terrenos. Ele opõe a este Estado
“total” – num sentido “puramente quantitativo, relativo a seu tamanho, não à
sua intensidade ou energia política” – um “Estado total qualitativo”, que diz
explicitamente preferir. Chamayou descreve este último como um “Estado forte,
que concentrará em suas mãos toda a potência da técnica moderna e os
instrumentos de comunicação de massa; um Estado militar-midiático, guerreiro
e propagandista, dotado da tecnologia de ponta em matéria de repressão dos
corpos e de manipulação dos espíritos.

O que Schmitt diz aos empresários alemães, decifra o pesquisador, “é no fundo o


seguinte: vocês querem ‘libertar’ a economia, querem acabar com o
intervencionismo do Estado social, com os gastos públicos excessivos, com a
carga fiscal relacionada a eles, com o Direito do Trabalho que os bloqueia etc. Já
compreendemos. Mas precisam se dar conta de que, para obter tudo isso, ou
seja, uma retirada do Estado da economia, será preciso algo muito distinto de
um Estado mínimo e neutro”. Bem ao contrário, será preciso um Estado forte,
capaz de silenciar as oposições sociais e políticas. Schmitt assegura a seu
auditório que esta potência não penetrará pela porta das empresas e mercados.

Hermann Heller, opositor de longa data de Carl Schmitt, respondeu a este


discurso constatando – explica Chamayou – “a emergência de uma nova
categoria política, uma síntese estranha”, que ele nomeou de “liberalismo
autoritário”. Uma fórmula que caracterizava, segundo ele, uma nova “vontade
política”, da qual Schmitt tornou-se teórico e porta-voz, mas que já animava na
prática a ação dos últimos governos da república de Weimar.

Qualificar a posição de Schmitt de “liberal”, mesmo agregando o adjetivo


“autoritário” pode surpreender, já que ele atacava com frequência o liberalismo.
Mas Heller queria sublinhar deste modo que Schmitt não repudiava de fato o
liberalismo econômico clássico, adepto de um estrito laisser-faire, ao constatar
sua obsolescência.

Seu pensamento procurava dar uma nova forma e um novo impulso ao


liberalismo: os aportados pelo “novo liberalismo” alemão, renomeado mais
tarde como “ordoliberalismo”. 1932 é também o ano de nascimento do
neoliberalismo alemão, sob a égide em especial de Alexander Rüstow e Walter
Eucken. Ambos citam Schmittee compartilham seu diagnóstico e sua crítica a
um Estado-Providência, que teria se tornado expansionista porém impotente.

Para estes liberais, a crise, que na Alemanha remontava (e se agravava) ao início


dos anos 1930, não tinha explicação no campo teórico mas bebia na fonte do
“intervencionismo e subvencionismo da mão pública”, para usar as palavras de
Rüstow. O título de uma de suas conferências expõe a orientação que ele
buscava dar a seu país: “A ditadura nos limites da democracia”. E o contrário,
seria possível acrescentar…

Os “males que outras teorias econômicas atribuíam ao capitalismo”, comenta


Chamayou, “eram associados por Rüstow e seus colegas ao Estado; mas em
especial à democracia e às classes trabalhadoras, os sindicatos e suas lutas”.
Este “neoliberalismo”, que herdamos, “não rejeita todo tipo de intervenção do
Estado. Ele frequentemente exige, ao contrário, “um exercício mais autoritário
do poder de Estado”.

Rüstow reivindica, portanto, um “intervencionismo liberal”. Ao contrário dos


projetos de criação de empregos diretos formulados pelos sindicatos, ele
privilegia um plano de subvenção ao capital, não de investimento público sem
intermediários. Em consequência, escreve Chamayou, “o neoliberalismo, na
forma em que emerge na Alemanha em 1932, define-se como sendo, ao mesmo
tempo, intervencionista no plano econômico e autoritário no plano político”.

Importa, pois, insistir sobre estes dois aspectos conjuntamente, já que a


historiografia do ordoliberalismo tendeu à negligenciar o segundo. Na verdade,
para os neoliberais, escreve o pesquisador, “pode-se reabrir as comportas de
despesa pública e do crédito – desde que se esmague a luta de classes com um
calcanhar de ferro”.
Para conduzir esta proposta, Schmitt, que no outono de 1932 ainda não apoiava
o Führer, mas defendia um poder presidencial verticalizado, que colocasse seu
“aparelho propagandístico e repressivo a serviço de um programa econômica
liberal”, procura reinterpretar a noção de estado de emergência, acrescentando
ao estado de emergência securitária um estado de emergência econômica.

Este ponto é crucial, julga Chamayou, quando escreve que “o gesto conceitual
decisivo de Schmitt não consistiu apenas em colocar a exceção no centro da
soberania – o que era há muito tempo visto e comentado – mas também, e
sobretudo, a estender o campo desta exceção à decisão econômica”.

“Decretinismo”

Na prática, o programa econômico deflacionista então decidido pelo chanceler


Brüning, nota o pesquisador, “atingiu com um golpe duro as classes populares,
sem no entanto controlar a crise econômica, contribuindo a uma polarização e
ao derretimento do bloco burguês sobre o qual ele se apoiava.

O poder foi então tomado por aquilo que poderíamos chamar de


uma engrenagem austeritária-autoritária: os efeitos socialmente desastrosos
do programa econômico rejeitado do chanceler corroeram o pouco de apoio
político que de que ele ainda dispunha, de maneira que logo teve de manter seu
autoritarismo para impor medidas do mesmo tipo, que produziram os mesmos
efeitos, e assim sucessivamente”.

Ao contrário de seus adversários políticos, à sua esquerda ou à sua direita, este


liberalismo autoritário não podia apoiar-se num bloco eleitoral robusto, e “não
tendo nem partido, nem movimento, nem apoio popular, só lhe restava o Estado
na condição de mero aparato”

Hermann Heller perguntava-se, no texto em que respondeu a Schmitt, sobre a


viabilidade do liberalismo autoritário como estratégia política. Ele constatava:
ainda que este poder se proclame e se creia forte, ele se revelará politicamente
frágil.

Primeiro porque, como sua política choca-se diretamente com 90% da


população, este poder tende a perder toda sua base de massas. E é o
estreitamento de seu apoio político que explica seu endurecimento autoritário:
ninguém pode ser forte politicamente se não desperta um apoio vasto, difícil de
obter quando se busca uma política econômica liberal em contexto de crise.

Além disso, porque coloca sua crença em ordens e decretos de emergência com
soluções milagrosas à crise política. É o que Heller denomina “decretinismo”
(Dekretinismus). Palavra formada de “decreto” e “cretino”, ela se aplica,
segundo Chamayou “à estupidez de crer que um poder contestado pode impor
duradouramente sua vontade por meio de decretos presidenciais”. Para Heller,
o liberalismo autoritário não pode, portanto, ser nada mais que um momento
transitório que desemboca numa situação revolucionária ou no que ele designa
por uma “comunhão racial autoritária”.
Sabemos hoje o fim da história. Karl Polanyi, em A Grande
Transformação, resume-a nestes termos: “A obstinação com a qual, durante dez
anos críticos, os partidários do liberalismo econômico sustentaram o
intervencionismo autoritário, a serviço de políticas deflacionistas, teve por
consequência pura e simples um enfraquecimento decisivo das forças
democráticas”.

Os ingredientes estavam reunidos para a formação do que Polanyi chama de


uma “situação fascista”, na qual os “bastiões da democracia e das liberdades
constitucionais”, estando já vastamente abalados, ficam suscetíveis de serem
rapidamente sacudidos por uma extrema direita que até muito pouco tempo
antes era minoritária.

No início dos anos 1930, na Alemanha, “longe de ter constituído uma defesa
diante do nazismo, o liberalismo no poder abriu-lhe o caminho”, escreve
Chamayou, sem julgar que o destino estivesse “predeterminado”, nem esquecer
de mencionar um outro elemento-chave: “a linha política suicida do Partido
Comunista Alemão, ditada por Stálin”. Ao se afastar igualmente dos nazistas e
dos social-democratas, o partido bloqueou, na prática, qualquer frente comum
contra a ameaça fascista. “A partir daí, a sorte do mundo havia mudado”,
escreve o pesquisador.

Enquanto isso, ao contrário das análises de Polanyi, formulava-se um contra-


discurso para “livrar o liberalismo autoritário de sua responsabilidade”.
Construído em especial pela pluma de Friedrich Hayek, que popularizou a tese
em 1944, em O caminho da servidão, este discurso fazia do nazismo acima de
tudo um “socialismo”, que estendia a “democracia sem limites” supostamente
característica da República de Weimar.

É difícil traçar qualquer linha contínua, ou mesmo pontilhada, entre ontem e


hoje, sem levar em conta as evoluções do capitalismo ou as transformações dos
Estados-Nações e da democracias liberais. E qualquer paralelo entre nossa
contemporaneidade e o período singular do início dos anos 1930 é ainda mais
delicado que o estabelecido entre a grande crise de 1929 e o nazismo. É uma
associação que pode abrir espaço para generalizações abusivas sobre as relações
entre as crises econômicas e a ascensão do fascismo.

Mas sem chegar a afirmar que estaríamos agora numa situação de “recidiva”,
para usar o termo do filósofo Michaël Fœssel, em relação ao que se produziu nos
anos 1930 na Alemanha, Grégoire Chamayou julga necessário associar “toda a
ambiguidade do neoliberalismo em sus relações diante do poder de Estado”, a
que assistimos hoje, “à emergência ou reemergência de formas de exercício do
poder de Estado que são ao mesmo tempo liberais em termos de programa
econômico e, em diversos graus, autoritárias no plano político”.

Para o pesquisador, “após décadas de contrarreformas socialmente


devastadoras, o neoliberalismo tardio encontra-se afetado por uma “crise de
governabilidade de grande amplitude”. E responde a elas por meio de um
“neoliberalismo autoritário de múltiplas facetas”.
Para o filósofo, ao lado dos exemplos contemporâneos de Bolsonaro, Trump ou
Salvini, “exite uma versão de extremo centro, que partilha com seu predecessor
dos anos 1930 a pretensão de poder barrar, munido deste tipo de programa, o
caminho da extrema direita”.

Para Chamayou é também chocante constatar o ressurgimento, “na boca dos


representantes atuais desta corrente, de fórmulas que, sem que tenham
consciência, os vinculam, palavra por palavra, ao discurso de seus ancestrais
políticos”.

Entre estas fórmulas encontra-se a denúncia do “iliberalismo”, que o presidente


francês Emmanuel Macron transformou em pau para toda obra. Ora, este
vocabulário encontra-se de maneira notável na escrita de um dos fundadores do
ordoliberalismo: Wilhelm Rôpke, para quem o “ascenso das massas é a causa
principal do iliberalismo”. E, em consequência, “ainda que o liberalismo exija a
democracia, é preciso impor limites e garantias para assegurar que o liberalismo
não seja engolido pela democracia”.

Em sua obra anterior, Grégoire Chamayou lembrava “que a transformação de


Estado liberal em Estado total autoritário é possível e não é acidental, ainda que
isso não permita concluir que o liberalismo é por essência um cripto-fascismo,
nem que o fascismo seja a simples continuação da economia liberal por outros
meios ideológicos”.

Mas, adiante, ele constata que, diante da vontade do Estado neoliberal, de fazer
aprovar a qualquer custo um programa econômica maciçamente rejeitado, é
“uma limitação aguda da democracia que esta agenda seja mais uma vez
preconizada”.

Stiglitz: mundo corporativo dos EUA


está cindido
Paralisia econômica e desigualdades explosivas levam
executivos a questionar busca do lucro máximo, a curtíssimo
prazo. Mas hesitam: por que romper com os dogmas de Milton
Friedman, que glorificam o interesse egoísta acima de tudo?
OUTRASMÍDIAS
MERCADO X DEMOCRACIA
por IHU

Publicado 15/12/2020 às 17:28 - Atualizado 15/12/2020 às 17:34


Por Richard Feloni, no Business Insider, traduzido pelo IHU Online

Joseph Stiglitz acredita que a popularidade da ideologia do falecido Milton


Friedman, ganhador como ele do Prêmio Nobel de Economia, seja um fator
significativo por trás da alta desigualdade e do crescimento modesto que
caracteriza atualmente os Estados Unidos. Friedman dizia que em um mercado
livre, uma empresa de capital aberto existe apenas para servir os próprios
acionistas. Para Stiglitz, há evidências abundantes de que essas condições que
caracterizam o mercado livre não podem ser atendidas.

Esse debate está em curso desde a década de 1930, mas parece que o vento
esteja mudando a favor daqueles que defendem que a prioridade deva ser dada à
criação de valor de longo prazo, tirando a importância dos resultados de curto
prazo.

No encontro anual do World Economic Forum, que foi realizado em Davos


(Suíça) em janeiro, o CEO do Business Insider, Henry Blodget, explicou os
motivos pelos quais chegou a hora do que vê como um “capitalismo melhor”.

A atual desigualdade que reina nos Estados Unidos, explicou, está ligada
principalmente a uma reação à estagnação que começou nos anos 1970 e durou
muito tempo – fase em que a busca pelo lucro trimestral deu lugar ao
chamado short-termism, ou seja, a obsessão tóxica por resultados de curto
prazo.

Quando Blodget iniciou a discussão do painel que havia organizado, Joseph


Stiglitz, da Columbia University, disse, referindo-se às pessoas que, em sua
opinião, são responsáveis por essa ideologia preponderante: “Quero ressaltar
que, nesse período, não foi somente um grupo de acionistas ativistas, mas
também Milton Friedman”, o falecido economista e ganhador do Prêmio Nobel
(como Stiglitz). “E Friedman estava errado.”

Em sua influente coleção de ensaios de 1962, Capitalismo e Liberdade,


Friedman proclamou que em uma economia livre “uma empresa tem uma, e
apenas uma, responsabilidade social: usar seus recursos e conduzir negócios
destinados a aumentar seus lucros, desde que respeite as regras do jogo, ou seja,
desde que pratique uma concorrência livre e aberta, sem enganos nem fraudes”.

Entramos em contato com Stiglitz depois do painel de Davos: ele nos disse que a
posição de Friedman “não se baseava em nenhuma teoria econômica”. Depois,
fez considerações sobre as origens desse debate.

A “mão invisível” pode existir, mas não no mundo real

Friedman fez essa afirmação desenvolvendo uma passagem decisiva do texto


crucial de Adam Smith A riqueza das nações (1776), que falava de uma “mão
invisível”. Para Smith, um indivíduo que promove seus próprios interesses é
“guiado por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua
intenção. Ao buscar seu próprio interesse, frequentemente ele promove o da
sociedade de maneira mais eficiente do que quando realmente tem a intenção de
promovê-lo. Nunca vi pessoas que pretendiam fazer negócios pelo bem da
sociedade, trazer efetivamente algum bem”.

Stiglitz apontou que de fato a existência da mão invisível foi “demonstrada” em


1954 pelos economistas Kenneth Arrow e Gerard Debreu. Os dois conseguiram
demonstrar a existência de um equilíbrio entre oferta e demanda em uma
economia livre e competitiva — mas também deixaram claro que essa situação
só pode ocorrer na presença de determinadas condições relacionadas à
economia e ao comportamento dos consumidores. E de acordo com Stiglitz, este
último ponto é essencial.

“Mais tarde, alguns de nós, no final da década de 1960, apresentaram a


pergunta: “Pois então, o que acontece se essas condições não forem
atendidas?’”, explicou ele.

Contou que ele e o economista Sandy Grossman estudaram a questão ao longo


dos anos 1970. Em 1980, publicaram um artigo no qual declaravam que, embora
o equilíbrio de mercado possa existir em teoria, é “impossível” que exista na
realidade dentro de uma economia competitiva. Com base nesse raciocínio, o
argumento de Friedman perde toda a validade. Consequentemente, o fato de
uma empresa existir com o único propósito de beneficiar os acionistas não dará,
ao contrário do que Friedman defendia, qualquer benefício às outras partes
envolvidas em sua atividade — como os funcionários, os consumidores e a
sociedade como um todo.

Stiglitz respeitava Friedman (que morreu em 2006) por seu trabalho sobre o
consumo, que lhe rendeu o Prêmio Nobel. Escreveu isso em seu livro de 2012, O
preço da desigualdade, mas os dois tiveram várias discussões sobre a ideia de
livre mercado. “Lembro-me de longas discussões com ele sobre as
consequências das informações imperfeitas ou sobre os mercados de risco
incompletos; meu próprio trabalho e o de numerosos colegas mostraram que,
na presença de tais condições, os mercados geralmente não tinham um bom
desempenho. Friedman simplesmente era incapaz de entender os resultados
que emergiram ou não estava disposto a fazê-lo”.

No entanto, as ideias de Friedman se popularizaram nos Estados Unidos por


várias décadas.

Keynes vs. Escola de Chicago

Stiglitz explicou que quando cita o que em sua opinião é o problema de


Friedman, o toma como figura de referência de um movimento que se
aproveitou das tendências sociais citadas por Blodget. Esse movimento foi
liderado pela Escola de Chicago, que formulou a ideologia do livre mercado na
Universidade de Chicago em meados da década de 1920.

Segundo Stiglitz, os norte-americanos, principalmente os de direita, abraçaram


a visão da Escola de Chicago porque se apresentava como a solução eficiente
para o problema de como estimular uma economia estagnada.

No âmbito dessa ideologia de livre mercado, a busca de valor a curto prazo é, ao


mesmo tempo, uma busca do valor a longo prazo. Se essa ideia for aceita, a
atribuição da prioridade aos lucros de curto prazo se dá por meio da otimização
da gestão gerencial e dos gastos, o que permite que a empresa cresça e por sua
vez proporcione retornos maiores, um maior número de empregos e outros
benefícios para a sociedade, bem como melhores produtos.

Stiglitz observou que essa visão é baseada na negação de uma das crenças
centrais de Keynes.

O economista britânico John Maynard Keynes publicou seu revolucionário


livro A teoria geral do emprego, do juro e da moeda em 1936, logo após a
Grande Depressão. No texto, ele distinguiu entre valor de curto prazo e valor de
longo prazo; além disso também expressou sua frustração com a forma como o
mercado de ações estadunidense incentiva as empresas de capital aberto a
priorizar os lucros de curto prazo, preferíveis do ponto de vista da maioria dos
investidores atuais, em relação aos de longo prazo, que são preferíveis do ponto
de vista de toda a sociedade. A premissa básica do debate entre Keynes e seus
colegas é idêntica àquela em torno da qual gira o debate atual.

“O objetivo social do investimento especializado deveria ser o de derrotar as


forças obscuras do tempo e da ignorância, que envolvem o nosso futuro”, foi a
advertência lançada por Keynes.

A vitória de Friedman

Na década de 1970, mais e mais norte-americanos em posições de poder


começaram a gravitar em torno das ideias da Escola de Chicago, e Friedman
tornou-se conselheiro do presidente Ronald Reagan.
Friedman não era apenas uma figura estimada e ouvida pelo líder do chamado
“mundo livre”, mas também as teorias da Escola de Chicago sobre legislação
para promover a eficiência do mercado tiveram uma boa aceitação.

Em seu livro de 2015, Rewriting the Rules of the American Economy, Stiglitz


escreveu que a normalização da supremacia dos acionistas foi consolidada
durante a presidência de Reagan por meio de modificações introduzidas nas leis
federais que regem os impostos sobre a renda e sobre os instrumentos
financeiros, incluindo um abrandamento das normas antitruste. Isso promoveu
o crescimento da especulação.

“Se tudo isso tivesse levado a empresas mais eficientes e inovadoras, teria sido
uma coisa”, escreveu Stiglitz. “Mas, na realidade, os novos investidores
‘insistiram em ingressar nos conselhos de administração e pressionaram a
gestão das empresas para que seguisse políticas consideradas mais favoráveis
aos investidores [shareholder-friendly] de curto prazo (os acionistas) —
incluindo o aumento dos dividendos e das recompras de ações”.

E embora a correlação cada vez mais significativa entre remuneração dos


executivos-chefes (CEOs) e o desempenho na bolsa tivesse em aparência o
objetivo de garantir a responsabilização dos CEOs perante seus acionistas, de
acordo com Stiglitz, ela se materializou mais como “um incentivo para
manipular os preços das ações empregando fundos empresariais para
recomprem as próprias ações com o objetivo de aumentar os preços”. É assim
que passamos de uma relação média de 20 para 1 entre remuneração do CEO e
remuneração de um funcionário de nível médio em 1965 para a atual proporção
de 295 para 1.

Para Stiglitz, o fato de alguns indivíduos ganharem tanto dinheiro não é


moralmente ultrajante em si; o problema é que isso está acontecendo às custas
de toda a economia.

Por que agora, então?

O ganhador do Prêmio Nobel nos disse que este debate que já se arrasta há uma
década sobre como encontrar o equilíbrio entre criação de valor a curto e a
longo prazo está recentemente retomando força nos Estados Unidos devido à
política reprovável e aos odiosos conflitos de classe que decorrem da
desigualdade de renda; outro motivo é que as pessoas em posições de poder
estão observando o quadro geral e estão percebendo que algo precisa mudar.

E, independentemente do desempenho obtidos pelos mercados de ações neste


ano, a economia como um todo não está indo muito bem, argumenta Stiglitz,
quando considerada da perspectiva do crescimento do PIB.

“Quando estávamos crescendo a 4%, poderíamos ter conseguido crescer ainda


mais rapidamente”, disse ele. “Mas colocamos no bolso o 4% e nos
congratulamos. Agora [antes dapandemia] que estamos crescendo a 2-2,5%,
depois de uma fase de crescimento de 3,5%, a pergunta que surge
espontaneamente é: ‘O que aconteceu? Há algo errado?'”.
De acordo com Stiglitz, os desenvolvimentos a que estamos assistindo hoje são
em grande parte o resultado das ideias defendidas por pessoas como Friedman,
que pareceram muito promissoras para as pessoas que estavam no poder nos
anos 1980. Essa abordagem contribuiu de forma muito significativa para o atual
mix de desigualdade e crescimento modesto nos EUA.

O economista disse que, se é verdade que os CEOs não serão capazes de resolver
o problema da desigualdade sozinhos, também é verdade que o propósito para o
qual existem na sociedade é o de fazer crescer a economia, e cada vez mais CEOs
estão percebendo que precisam aportar algumas mudanças.

É por isso que, por exemplo, alguém como o CEO da BlackRock, Larry Fink, na
função de principal executivo da maior empresa de gestão patrimonial do
mundo, se sentiu no dever a se posicionar contra a obsessão pelo curto prazo.
Em uma carta aos CEOs das empresas de capital aberto no início deste ano, Fink
anunciou que a BlackRock só fará negócios com empresas que tenham definido
claramente estratégias de longo prazo que tragam algum tipo de benefício para a
sociedade.

“Se não tiver claro quais são seus objetivos, nenhuma empresa, seja de capital
aberto ou não, pode realizar plenamente seu potencial”, escreveu Fink. “Ela
cederá às pressões orientadas ao curto prazo para que distribua seus lucros e, ao
fazê-lo, sacrificará os investimentos realizados para o crescimento dos
funcionários, para a inovação e para as despesas de capital – investimentos
necessários para um crescimento de longo prazo. Permanecerá exposta às que
expressarão um propósito mais claro, mesmo que tal propósito apenas promova
a realização de objetivos mais limitados e de curto prazo.”

De acordo com Stiglitz, a carta de Fink e outras declarações similares feitas por
grandes empresas como a Unilever não são um convite a afundar na
autocomplacência e se congratular mutuamente, mas decorrem de uma
sensação de urgência – ou seja, a sensação de que existe a necessidade urgente
de abandonar a doutrina de Friedman.

Para o economista, o cerne desse debate dentro da direita estadunidense


permaneceu inalterado desde os anos 1930; só que o mundo de hoje é muito
diferente.

“Como diz a Bíblia: ‘Não há nada de novo sob o sol’”, disse Stiglitz com uma
risada. “Mas o contexto hoje é novo”.

A dívida infinita e o paraíso do baronato


financeiro
Dívida pública bate recorde e já representa mais de 90% do
PIB. Mas dinheiro não é gasto com as maiorias. Rentistas
sugam bilhões da sociedade, enquanto falta dinheiro para o
SUS e o Auxílio Emergencial. É preciso recolocar o tema em
pauta
OUTRASPALAVRAS
MERCADO X DEMOCRACIA
por José Álvaro de Lima Cardoso
Publicado 21/12/2020 às 19:01

Por José Álvaro de Lima Cardoso

A dívida pública brasileira, atingiu em outubro o valor de R$ 6,57 trilhões,


90,7% do PIB, a maior relação dívida/PIB da série histórica do BC iniciada em
dezembro de 2006. Em dezembro de 2019, a relação dívida/PIB estava em
75,8% e subiu em todos os meses desde então, com aumento de 15 pontos
percentuais só neste ano. Esses são os valores da Dívida Pública Bruta, que é a
dívida do setor público não-financeiro e do Banco Central com o sistema
financeiro (público e privado), o setor privado não-financeiro e o
resto do mundo. A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) – conceito mais em
voga atualmente – corresponde à DLGG (Dívida Líquida do Governo Geral),
mas sem descontar os ativos do governo geral.

A dívida líquida (que leva em conta os ativos) é um indicador de solvência fiscal


mais importante, porque aponta com precisão quanto que o ente federativo terá
que produzir de superávits, no futuro, para dar conta de pagar a dívida. Quanto
maior a dívida líquida hoje, maior será a necessidade de “esforço fiscal” no
futuro, seja para arrecadar mais, seja para reduzir despesas. A dívida líquida no
Brasil está em 68% do PIB atualmente.

No caso do Brasil o endividamento público subiu bastante nos últimos anos, em


função de seis anos de estagnação ou de recessão e deve subir mais ainda nos
próximos anos, devido aos efeitos econômicos da Covid-19 e às restrições
políticas e sociais a um reequilíbrio fiscal mais rápido. O que mede o tamanho
da dívida é a sua relação com o PIB, ou seja, quanto significa a dívida em relação
a tudo que o país produz de riquezas num determinado período. A relação
percentual é o mais importante. Dizer que a dívida é de um trilhão de reais não
significa nada: se for da economia dos EUA (cuja dívida é de 21,5) não faz nem
cócegas, se for uma dívida de Honduras ou Haiti, aí seria um problema
gravíssimo.

Em qualquer país, a dívida pública é emitida pelo Tesouro Nacional para


financiar o déficit orçamentário do governo federal. Ou seja, para pagar
despesas que ficam acima da arrecadação com todos os impostos e tributos. A
dívida, inclusive, não é um problema em si. Depende da razão para a qual ela foi
gerada. Por exemplo, uma dívida para o desenvolvimento de um projeto como o
Minha Casa, Minha Vida, do governo Dilma, é extremamente vantajoso para o
país, a partir de várias dimensões do problema (crescimento da economia,
melhora do orçamento familiar, redução do déficit habitacional, e assim por
diante).

No entanto, o que vigora no Brasil já há muitos anos é o que os especialistas


chamam de “sistema da dívida”. Este sistema, que existe em muitos países do
mundo, representa uma drenagem permanente dos recursos públicos, em favor
do sistema financeiro, em detrimento dos interesses da esmagadora maioria da
população. E sempre em montantes elevados. O problema da dívida afeta
inclusive os países centrais do capitalismo. Os EUA, maior economia do planeta,
tem uma dívida que equivale a 100% do PIB, ou US$ 21,5 trilhões. Por uma série
de razões, apesar do estoque da dívida ser maior, estes países pagam menos
juros, em função do nível da taxa de juros, que é bem menor.

No Brasil, praticamente não se questiona a respeito da dívida. É como se gastar


muito dinheiro com “rentistas”, fosse uma exigência da economia e estivesse
“escrito nas estrelas”. O sistema da dívida é ao mesmo tempo, financeiro,
cultural, político e social. A política de superávit primário, tão alardeada pelos
meios de comunicação, visa exatamente fazer poupança para pagar os credores
da dívida que, no Brasil, são cerca de 20.000 famílias.
O sistema da dívida retira da saúde e educação para pagar aos banqueiros,
portanto é prejudicial ao povo de uma forma geral. No entanto, o senso comum,
cuidadosamente construído, é de que o país tem que ter superávit primário, do
contrário terá problemas em suas contas. O superávit primário (que é receita
menos despesas, desconsiderando os gastos com juros) é um mecanismo que
garante os recursos para pagar os banqueiros e rentistas.

Discutir a dívida pública é um imperativo para os brasileiros e os trabalhadores


em geral, em função do que a dívida significa em transferência indevida de
recursos para o setor financeiro e, portanto, do que significa em desperdício de
recursos que poderiam ser usados para saúde, educação, habitação e melhoria
de vida do povo.

Até 2013 ou 2014 o Brasil tinha superávit primário, que era um dos cinco
maiores do mundo, e era política intocável no país. Os meios de comunicação,
absolutamente controlados pela burguesia, disseminaram ao longo dos anos a
ideia de que se o país não realizar superávit primário, não sobrevive. Claro que a
maioria da população nem sabe o que vem a ser “superávit primário” (que é
arrecadação menos despesas, desconsiderando os gastos com juros).

As transferências de dinheiro público para o pagamento da dívida obviamente


provocam graves consequências sobre controle da inflação, dos juros, salários,
renda, programas sociais, etc. Está sempre faltando dinheiro para o orçamento.
Em 2019 o gasto total com servidores federais somou R$ 319,5 bilhões, valor
equivalente a 4,4% do PIB. Já as Despesas com juros somaram R$ 330 bilhões
em 2019. Ou seja, se destinou mais recursos para 20.000 famílias de super-ricos
do que para milhões de pessoas (trabalhadores e suas famílias), que dependem
dos salários do setor público.

Os ajustes fiscais sempre cortam dinheiro do pobre: funcionários públicos,


aposentados, trabalhadores de salário-mínimo. Mas para a burguesia nunca
falta dinheiro do Estado. Segundo Maria Lúcia Fattorelli, da Auditoria Cidadã
da Dívida, os rentistas contam atualmente com um “colchão de liquidez”, para
ficarem mais tranquilos. São mais de R$ 4 trilhões em caixa: saldo de R$ 1,4
trilhão na conta única do Tesouro Nacional, mais de R$ 1,7 trilhão em Reservas
Internacionais (US$ 340 bilhões), e mais de R$ 1 trilhão no caixa do Banco
Central. Se alguém tem dúvida sobre a quem pertence o Estado é só prestar
atenção nessa informação: rentistas contam com mais de 4 trilhões funcionando
como um colchão de liquidez para eventuais “tombos” dos capitalistas.
Definitivamente este país é o paraíso dos rentistas.

Dowbor: Pós-capitalismo e os limites da


Razão
Num parêntese em suas reflexões sobre o esgotamento do
sistema e as saídas, o economista indaga: como superar o
desejo, tão humano, de acomodação ao que está posto? Em
busca de respostas, ele invoca, entre outras, Hannah Arendt
OUTRASPALAVRAS
PÓS-CAPITALISMO
por Ladislau Dowbor

Publicado 21/12/2020 às 21:20 - Atualizado 21/12/2020 às 21:25

Por Ladislau Dowbor

MAIS:
Este texto é o quinto capítulo de:
> O Capitalismo se desloca, livro mais recente do autor
(Edições SESC).
> A obra está sendo publicada em partes, por Outras Palavras. Acesse:
Capítulo 1
Capítulo 2 [1ª parte | 2ª parte]
Capítulo 3 [1ª parte | 2ª parte]
Capítulo 4 [1ª parte | 2ª parte]
> Uma breve apresentação e uma entrevista com Ladislau Dowbor a respeito da
obra podem ser acessados aqui.
OS LIMITES DA RACIONALIDADE: AFINAL, O QUE SOMOS?

Ainda que se abram imensas oportunidades com a sociedade do conhecimento,


a economia imaterial e a conectividade planetária,na realidade, tudo dependerá
da nossa capacidade de aproveitá-las. Independentemente das análises sobre
classes sociais, organizações de trabalhadores ou partidos políticos, ou ainda da
possibilidade de criarmos uma mídia democrática, coloca-se com força hoje a
necessidade de compreender com mais realismo o que somos como pessoas,
como seres humanos. Estou indo além da economia, extrapolando, por assim
dizer, a minha expertise? Sem dúvida, e é o que os economistas sempre fizeram
ao apoiarem, por exemplo, todo o edifício da teoria econômica herdado dos
últimos séculos, fundado em uma imensa simplificação psicológica. Para que as
equações fizessem sentido, era preciso imaginar que o ser humano maximizava
racionalmente as suas vantagens, tornando-o cientificamente previsível e
possibilitando apresentar a economia como ciência. Isso, obviamente, é uma
monumental bobagem. Desenvolvemos construções científicas sofisticadas
apoiadas numa premissa falsa. Uma leva de estudos recentes demonstra
claramente que se trata, na expressão de Michael Hudson, de junk economics.
Gostamos naturalmente de nos considerar racionais, somos superiores aos
animais com os seus instintos e capazes de construir racionalmente o nosso
futuro. Aqui há claramente um imenso wishful thinking, uma ilusão sobre o que
somos. É tão gratificante nos sentirmos superiores. Aliás, procuramos sempre
justificativas racionais para as nossas crenças ou ações, por absurdas que sejam.
O conceito de racionalização resume bem essa construção precária em torno de
opções que de racionais têm muito pouco.

Os nazistas estavam aperfeiçoando a raça superior, os carrascos da Ku Klux


Klan estavam limpando o país e protegendo donzelas brancas, as ditaduras
latino-americanas estavam nos protegendo do comunismo, a invasão do Iraque
nos protegeria das armas de destruição em massa, o golpe de 2016 no Brasil foi
para restabelecer o equilíbrio econômico e para combater a corrupção, Lula foi
preso porque roubou e assim por diante. Hoje as racionalizações são
construídas em escala industrial por empresas especializadas
em marketing político, com o apoio de think tanks, de setores da academia e,
evidentemente, da imensa máquina de comunicação articulada com as
plataformas de informação individualmente direcionadas. A realidade foi
substituída pelas narrativas. Qualquer semelhança com racionalidade é mera
coincidência, ou uma construção a posteriori.

Essa dimensão dos nossos comportamentos é essencial para entendermos a


nossa imensa dificuldade em construir uma sociedade que funcione. Em outros
termos, uma coisa é analisarmos as dinâmicas de poder e as dificuldades
estruturais para melhorarmos a sociedade, por exemplo o fato de que a
economia se globalizou enquanto os governos são nacionais, ou ainda o fato de
que as tecnologias avançam muito mais rapidamente do que a nossa capacidade
de gerar instrumentos de governança. Outra coisa é pensarmos a que ponto a
nossa própria irracionalidade, como seres humanos, torna difícil a construção
de uma sociedade que funcione. Já pararam para pensar no imenso absurdo que
são as guerras e os massacres por motivos ridículos, século atrás de século?
Claramente, a nossa classificação como Homo sapiens constitui um forte
exagero. Como funciona o Homo realmente existente?
O PRIMATA DENTRO DE NÓS

Não há como não considerar barbárie, nesta era de grande riqueza planetária,
deixarmos morrer cerca de 6 milhões de crianças, todos os anos, por falta de
acesso à comida ou à água limpa: sabemos onde essas crianças estão, temos os
recursos e o conhecimento de que custa muito menos remediar a situação do
que arcar com as consequências; no entanto, pouco ou nada fazemos. A
comoção mundial com o resgate de 12 crianças de uma caverna na Tailândia
mostra que podemos nos sentir solidários, mas é impossível não pensar que,
diariamente, morrem 15 mil crianças por falta de alimento, um problema cuja
solução não custaria quase nada e permitiria que se tornassem pessoas
produtivas. É o espetáculo que comove? Como podemos manter 850 milhões de
desnutridos, cifra que voltou a crescer, quando não só produzimos alimentos em
excesso mas os desperdiçamos de maneira absurda? Como podemos assistir
impotentes às famílias que se afogam no Mediterrâneo, à destruição ambiental,
às fraudes generalizadas praticadas por corporações ou governos equipados com
as mais avançadas tecnologias, manejadas por pessoas com formação superior e
ampla cultura geral? Podemos nos dotar de fantásticos avanços tecnológicos
para alcançar os nossos fins, mas os próprios fins estão profundamente
enraizados nas águas turvas dos nossos instintos, preconceitos, ódios, ainda que
frequentemente aflorem surtos de emocionante generosidade.

É muito impressionante a sofisticação técnica do software elaborado pela


Volkswagen para fraudar a verificação de emissões de partículas pelos seus
veículos, programa desenvolvido por pessoas que sabiam perfeitamente que 7
milhões morrem anualmente por causas relacionadas à poluição, em particular,
crianças e idosos. A fraude foi montada em paralelo com grandes campanhas
publicitárias incitando as pessoas a preferir esses carros por serem
ambientalmente mais limpos. Que tipo de gente trambica informações sobre
remédios ou agrotóxicos, mas dorme em paz com a sua família? A mídia
comercial, sem dúvida, nos faz de palhaços, mas o que impressiona mesmo é a
nossa facilidade de acreditar em argumentos completamente idiotas, quando,
por outro lado, somos capazes de tantas proezas criativas. Quando Jessé Souza
fala da imbecilidade das nossas elites, não se refere à sua falta de inteligência, e
sim à imbecilidade de como a usam. E, francamente, a facilidade com a qual
absorvemos como verdade os contos de fadas mais absurdos que nos empurram
é impressionante.

Parece que andamos esquecidos das nossas origens. Somos essencialmente


primatas. Primatas inteligentes, sem dúvida, mas uma coisa é constatar a
inteligência, outra é avaliar como a utilizamos. E aí vamos para a profundidade
das emoções, dos instintos, das nossas raízes primitivas. Não necessariamente
para o mal, obviamente, tanto que temos poderosos instintos que nos levam a
colaborar, a manter relações amorosas, a defender a justiça. Mas também para
o mal, e aí estão as guerras, a mesquinhez, a violência absurda, a destruição do
meio ambiente e as fraudes generalizadas. Como o Homo sapiens pode cair tão
baixo?

A questão é que não somos divididos entre pessoas boas e pessoas más, todos
nós contamos com amplos potenciais para o bem e para o mal. Curiosamente,
analisar os primatas nos fornece um espelho perturbador do nosso próprio
comportamento. Nascido em 1948 na Holanda, Frans de Waal se tornou um dos
pesquisadores mais respeitados na análise do comportamento dos primatas e de
seu forte viés ético. Depois de muitos livros sobre primatas, ele escreveu um
sobre “o primata dentro de nós”, traçando um paralelo muito interessante, por
vezes divertido e por vezes deprimente, entre nós e os outros primatas. A
verdade é que um grupo se separou dos símios há milhões de anos, gerando um
caminho evolutivo independente que permitiu o aparecimento do gorila, do
orangotango, do chimpanzé, do bonobo e, naturalmente, de quem aqui escreve e
de você que me lê. E esse grupo compartilha alguns comportamentos comuns.

Um exemplo interessante é a existência do bode expiatório nas comunidades de


chimpanzés. Pode haver uma briga entre os mais poderosos na hierarquia do
grupo, mas quem perde ou é humilhado lá em cima vai rapidamente buscar um
coitado mais fraco ou mais jovem e tirar a desforra. Mesmo que não tenha nada
com a história, alguém tem de pagar o pato. O paralelo apresentado por De
Waal é ótimo. À Fiesp se recomenda a leitura.

Para o homem moderno, buscar um bode expiatório se refere a demonização,


vilificação, acusação e persecução inapropriadas. O exemplo mais horrível da
humanidade foi o Holocausto, mas liberar o ódio às custas de outros cobre um
leque muito mais amplo de comportamentos, inclusive a caça às bruxas na
Idade Média, o vandalismo de torcidas derrotadas e o abuso por parte de
esposos depois de conflitos no trabalho. E a base desse comportamento – a
inocência da vítima e uma liberação violenta de tensões – é
impressionantemente semelhante entre humanos e outros animais […].
Costumamos vestir esse processo com simbolismo e encontramos vítimas com
base na cor da pele, na religião ou no sotaque estrangeiro. E também
tomamos muito cuidado para nunca admitir a vergonha [shame] que a
penalização de bodes expiatórios na realidade constitui. Nesse particular,
somos mais sofisticados que outros animais1.

Soa familiar? Homo sapiens… Não importava, escreve De Waal, que não


houvesse nenhuma prova de ligação com os atentados em Nova York: o
bombardeio de Bagdá representou um grande relaxamento de tensões para o
povo estadunidense, recebido por uma mídia entusiasta e bandeiras nas ruas.

Imediatamente após essa catarse, no entanto, dúvidas começaram a surgir.


Dezoito meses depois, pesquisas indicaram que a maioria dos estadunidenses
consideravam a guerra um erro […]. É deprimente constatar que
compartilhamos essa tendência – que gera tantas vítimas inocentes – com
ratos, macacos e primatas. É uma tática profundamente arraigada de manter
o controle sobre o estresse às custas da decência [fairness] e da justiça2.

Mas os primatas também devem seu sucesso e sua sobrevivência a um conjunto


de práticas colaborativas, assim como a impressionantes demonstrações de
solidariedade e compaixão, e o autor dá vários exemplos, inclusive é possível
encontrar vídeos muito divulgados de primatas salvando crianças,
compartilhamento de comida, organização solidária entre mães para a proteção
dos filhos etc. A organização social, a formação de grupos solidários ou rivais, o
sentimento de indignação diante de injustiças – animais que se recusam a
aceitar comida se outros membros do grupo não a recebem igualmente, por
exemplo – mostram que os polos do bem e do mal estão profundamente
enraizados nos nossos genes. De Waal inclusive critica fortemente a deformação
do darwinismo, que permite justificar tantos comportamentos “desumanos” (!)
sob a justificativa de que isso é a natureza, a sobrevivência do mais apto.

O próprio Darwin nunca foi um “darwinista social”. Pelo contrário,


acreditava que havia espaço para o bem [kindness] tanto na natureza humana
como no mundo natural. Precisamos urgentemente dessa compaixão, porque
a questão com a qual se defronta a crescente população mundial não é tanto se
conseguiremos ou não manejar o aperto [crowding], mas se seremos decentes
e justos na distribuição dos recursos. Pegaremos o rumo do vale-tudo
competitivo ou tomaremos um caminho humano? Nossos primos próximos
podem nos dar algumas lições importantes. Mostram-nos que a compaixão
não é uma fraqueza recente que vai contra a natureza, mas um poder
formidável que faz parte tanto de quem e do que somos quanto das tendências
competitivas que buscamos ultrapassar3.

Uma distinção importante de Waal é entre princípios morais e normas culturais.

Por exemplo, um dos meus primeiros choques culturais quando me mudei para
os Estados Unidos foi ouvir que uma mulher havia sido presa por amamentar
num shopping. Impressionou-me que isso pudesse ser visto como ofensivo. O
jornal local descreveu a sua prisão em termos morais, como se tivesse a ver
com decência em público. Mas, já que um comportamento materno natural
não pode fazer mal a ninguém, tratou-se apenas da violação de uma norma.
Por volta de dois anos de idade, crianças sabem distinguir entre um princípio
moral (“não roube”) e normas culturais (“nada de pijamas na escola”). Elas
passam a entender que quebrar algumas regras faz mal aos outros, mas
quebrar outras regras apenas viola expectativas. Esse segundo tipo de regras
é culturalmente diferenciado. Na Europa, ninguém pestaneja diante de seios
nus, que podem ser vistos em qualquer praia, mas, se eu dissesse que tenho
uma arma de fogo em casa, as pessoas ficariam muito perturbadas e se
perguntariam o que está acontecendo comigo. Uma cultura teme mais armas
de fogo do que seios, enquanto outra teme mais seios do que armas de fogo. As
convenções são frequentemente cercadas de solene linguagem de moralidade,
mas na realidade têm pouco a ver com ela4.

A divisão entre “nós” e “os outros” pesa imensamente no comportamento moral.


Podemos encontrar muita solidariedade e até sacrifícios entre membros de uma
comunidade de primatas, e comportamentos “animais”(!) da mesma
intensidade nos confrontos com outras comunidades. É conhecida a reflexão de
que o ser

humano só encontraria a solidariedade entre todos se o planeta fosse invadido


por extraterrestes. De Waal mostra a que ponto a moralidade e a solidariedade
têm raízes profundas no terror e no ódio do “outro”. Uma reflexão que nos ajuda
a entender a nossa complexidade e a coexistência de sentimentos contraditórios.
O bem e o mal, o racional e o irracional, aparecem como profundamente
articulados.
No desenvolvimento dos direitos humanos – que devem ser aplicados até aos
nossos inimigos, como pretende a Convenção de Genebra – ou ao debatermos
a ética do uso de animais, aplicamos um sistema que evoluiu a partir de razões
de “dentro do grupo” para outros grupos, inclusive outras espécies. As nossas
melhores esperanças de sucesso estão baseadas nas emoções morais, pois a
emoções são desobedientes. Em princípio, a empatia pode reverter qualquer
regra sobre como tratar os outros. Quando Oskar Schindler salvava judeus
dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, por
exemplo, estava sob claras ordens da sua sociedade sobre como tratar essa
gente, e no entanto os seus sentimentos interferiram […]. Ao resolver dilemas
morais, nós nos apoiamos mais no que sentimos do que no que pensamos 5.

Não se trata, portanto, apenas de sermos mais racionais, mas de usarmos a


razão para uma sociedade mais humana. No conjunto, lendo De Waal, esse
vaivém entre o comportamento humano e o de outros primatas, em particular
dos bonobos, que preferem fazer amor do que guerra, é imensamente instrutivo.
Temos sempre essa forte tendência para encobrir o que há de mais podre no
nosso comportamento, por meio de discursos moralizantes; inclusive, como
vimos, apelando erradamente para Darwin. Mas o fato é que as raízes dos
comportamentos estão profundamente ligadas às nossas emoções, e aqui o
paralelo com o comportamento dos primatas é muito rico. Poder soltar as
nossas piores dimensões em nome de elevadas motivações éticas gera uma
satisfação profunda. Sabemos fazer o bem, sabemos sentir como é gratificante,
mas é tão mais fácil navegar no ódio!

MOTIVAÇÕES E JUSTIFICAÇÕES

Para entender a nossa realidade, precisamos racionalmente dimensionar o peso


da irracionalidade e compreender como é possível encobrir, com justificativas
racionais, comportamentos frequentemente absurdos. A barbárie sempre
encontra “boas razões”. Nas palavras de Jonathan Haidt, “mentimos,
trapaceamos e justificamos tão bem que passamos a acreditar honestamente
que somos honestos”. Não posso deixar de lembrar, durante a fase que
desembocaria no golpe de 2016, das pessoas envolvidas na bandeira brasileira
manifestando-se em frente à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp) na avenida Paulista. Não é falta de inteligência. Mas é muita ignorância,
e uma imensa capacidade de se autoenganar6.

É difícil traduzir a expressão inglesa “self-righteousness”. Significa a profunda


convicção de uma pessoa de que domina os outros da altura de sua elevada
postura ética. Em geral, isso leva a comportamentos estreitamente moralistas e
intolerantes. E frequentemente vemos atos violentos justificados com fins
altamente morais. Não há barbárie que não se proteja com argumentos de
elevada nobreza. Eles permitem soltar as rédeas do ódio, daquela sensação
agradável de odiar com boas razões. A Marcha da Família com Deus pela
Liberdade representou um marco histórico da hipocrisia na defesa de
privilégios. Vieram mais marchas e manifestações, a hipocrisia tem pernas
longas. As invasões de países se dão em geral para proteger as populações
indefesas; as ditaduras, para salvar a democracia; os ataques a diferentes
orientações sexuais se sustentam no sentimento de superioridade de quem acha
que usa os côncavos e convexos como se deve, ou como os deuses mandam.
Haidt, no seu livro The Righteous Mind – título que traduziremos aqui por “A
mente moralizante”, para distinguir da pessoa meramente “moral” –, parte de
um problema relativamente simples: como é que a sociedade estadunidense se
divide, de maneira razoavelmente equilibrada, em democratas e republicanos,
cada um acreditando piamente ocupar a esfera superior na batalha ética e
considerando o adversário hipócrita, mentiroso, enfim, desprovido de qualquer
sentimento de moralidade? O imoral é o outro. E, no entanto, de cada lado há
pessoas inteligentes, sensíveis, por vezes brilhantes – mas profundamente
divididas. Em nome da ética, o ódio impera.

O tema, evidentemente, não é novo. Um dos livros de maior influência, até hoje,
nos Estados Unidos é An American Dilemma [Um dilema estadunidense], de
Gunnar Myrdal, dos anos 1940, que lhe valeu o Prêmio Nobel. É uma das
análises mais finas não dos Estados Unidos, mas do bom estadunidense médio,
de como cabem na mesma cabeça a atitude compenetrada no serviço religioso
da sua cidade, a profunda convicção da importância da liberdade e dos direitos
humanos e práticas como a perseguição dos negros. O livro é muito inteligente e
correto. Myrdal adverte que desautoriza qualquer uso da sua análise para um
antiamericanismo barato. O objetivo dele não é defender nem atacar, é
entender. Mas conclui que “o problema negro”, nos Estados Unidos, “é um
problema dos brancos”. A análise, naturalmente, poderia ser estendida para
muito além da mente estadunidense.

O campo de trabalho de Haidt é a disciplina chamada psicologia moral, moral


psychology. Estuda justamente como se articulam, em termos psicológicos, as
construções dos nossos valores, em particular os valores que podemos qualificar
de políticos. Com que base real passamos a achar que o que fazemos é
moralmente certo ou correto? Através de quais mecanismos o que era razão se
transforma em mera racionalização de emoções subjacentes?

Existem as leis, naturalmente, mas elas definem o que é legal e, frequentemente,


foram elaboradas por quem as manipula, tornando legal o que é moralmente
indefensável. Os paraísos fiscais permitem às corporações pagar poucos
impostos, o que não é viável para a pequena empresa. Não é ilegal estabelecer a
sua sede em um paraíso fiscal, evitando pagar impostos no país onde a empresa
funciona, enquanto seus empregados pagam os impostos normalmente,
inclusive porque estes são deduzidos na folha de pagamento? Basta ser legal
para ser ético? Snowden, ao revelar a amplitude da invasão da privacidade e o
uso abusivo das tecnologias de rastreamento da NSA, cometeu um ato ilegal do
ponto de vista da justiça estadunidense (ainda que com controvérsias), mas o
fez, com risco pessoal, por razões éticas. Os que lutavam contra a escravidão
eram presos e condenados. Nelson Mandela pagou 27 anos da sua vida por
combater um regime legal, mas medieval. Os republicanos qualificam Snowden
de traidor, como a máfia considera traidor quem não se solidariza com o grupo,
ainda que seja para não cometer crimes. A ética pode ser muito elástica.

Há um referencial confiável, um valor absoluto? Émile Durkheim escreveu que


“é moral, pode-se dizer, tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o
homem a contar com outrem, a reger seus movimentos com base em outra coisa
que não os impulsos do seu egoísmo”7. Em seu estudo, Haidt busca “os
mecanismos que contribuem para suprimir ou regular o autointeresse e tornam
as sociedades cooperativas”8. Paulo Freire, que era um homem simples, mas não
simplório, resumia a questão dizendo que queria “uma sociedade menos
malvada”. Com quais mecanismos psicológicos grupos sociais conseguem
justificar em termos éticos o que claramente traz danos aos outros e vantagens
para eles? Haidt chama isso de “raciocínio motivado” (motivated reasoning)9.

Haidt entra no coração das racionalizações. Sua visão é a de que buscamos mais
parecer bons do que ser bons.

Mentimos, trapaceamos e dobramos regras éticas frequentemente quando


achamos que podemos sair impunes, e então usamos o nosso raciocínio moral
para gerir a nossa reputação e nos justificar para os outros. Acreditamos no
nosso raciocínio a posteriori tão profundamente que terminamos
moralisticamente [self-righteously] convencidos da nossa própria virtude. […]
Somos tão bons nisto, que conseguimos enganar até a nós mesmos 69.

Para Haidt, o raciocínio serve essencialmente para justificar o que já foi


decidido por outros mecanismos intuitivos. “É o primeiro princípio: as intuições
chegam em primeiro lugar, o raciocínio estratégico, em segundo. O que resulta é
um raciocínio de confirmação, não de análise e compreensão: “Que chance
existe de que as pessoas pensem de mente aberta, de forma exploratória,
quando o autointeresse, a identidade social e fortes emoções as fazem querer ou
até necessitar chegar a uma conclusão preordenada?.

Uma das maiores contribuições de Haidt é nos permitir entender um pouco


melhor nosso poço de ódios e de identificações políticas, ao detalhar, baseado
em pesquisas, a diversidade das motivações humanas. Ele trabalha com uma
“matriz moral” de seis eixos que se encontram por trás das nossas atitudes de
solidariedade ou de indignação, de aprovação ou de ódio.

O primeiro é o “cuidar” (care), que nos leva a evitar causar danos aos outros e
nos faz querer reduzir sofrimentos. Está dentro de todos nós. Ao ver um
cachorrinho ser maltratado, ficamos indignados, ainda que não gostemos de
cachorros. É um motor poderoso, que exige, inclusive, que as pessoas que
massacram ou torturam outras pessoas precisem “desumanizar” a vítima,
transformá-la em objeto fictício: é um terrorista, um comunista, um marginal,
um gay, uma puta, qualquer coisa que a rebaixe do status de pessoa,
permitindo o tratamento desumano. O garotão de classe média que ateia fogo ao
mendigo se sente, inclusive, mais “pessoa”. Está “acima”. O mendigo não é
pessoa, é mendigo. “Vai trabalhar, vagabundo.”

A liberdade (liberty) constitui outro vetor de valores, com o correspondente


repúdio à opressão. Naturalmente, para muitos, liberdade significa liberdade de
oprimir, para isso também é preciso reduzir a dimensão humana do oprimido.
Os doutores do direito canônico resolveram o dilema de defender “a liberdade
de se ter e de caçar escravos” dizendo que “o negro não tem alma”. Todo valor
precisa criar suas hipocrisias para ser violentado. Foi em nome da liberdade
que, nos Estados Unidos e aqui no Brasil, repelimos a limitação das armas de
fogo pessoais, ainda que se saiba que seus donos são as primeiras vítimas. No
entanto, reconhecemos, sim, a aspiração à liberdade como um valor
fundamental, que orienta as nossas opções éticas.
Um terceiro vetor de valores está no que consideramos tratamento justo ou não
desigual. Em inglês, o conceito utilizado, fairness, fica mais claro. Milhões de
brasileiros ficam indignados, a cada fim de semana, quando o árbitro dá um
cartão amarelo a um time por uma falta, mas não dá o mesmo cartão ao outro
time por falta semelhante. Se o cartão foi merecido ou não é secundário, o que
gera indignação é o tratamento desigual. Critério ético perfeitamente válido; e
têm razão milhões de pessoas que veem como escandaloso o tratamento
desigual dado pela justiça, que ostenta no seu símbolo a balança, a
imparcialidade. O sentimento é muito enraizado.

Um quarto vetor é o da lealdade (loyalty), que nos faz buscar adotar os valores
do nosso grupo, considerando traidor quem não os adota. Muito presente nas
Forças Armadas, o esprit de corps faz com que os militares jurem, com toda a
tranquilidade, que seus colegas não torturaram ou não estupraram, porque eles
se sentem leais aos companheiros. Essa lealdade supera, inclusive, a
consideração ética sobre o crime cometido, gerando um agradável sentimento
de pertencimento heroico ao grupo. Um filme famoso com Al Pacino, Perfume
de mulher, é centrado neste tema: um jovem universitário que testemunhou
uma pequena bandidagem dos seus colegas recusa-se a denunciá-los, ainda que
isso possa prejudicar o seu futuro universitário. O sofrimento dele permeia todo
o filme, justamente, porque é um rapaz profundamente ético.

Um quinto conjunto de valores está centrado na autoridade (authority), que nos


faz considerar ético o que os líderes decidem e chamar de subversivos os que se
rebelam. Essa identificação a priori com a autoridade é profundamente
escorregadia, em particular porque nos permite fazer qualquer coisa com a
justificativa de que estávamos cumprindo ordens. Aqui, o maravilhoso livro de
Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, ajuda muito, pois nos permite entender que não se trata apenas de
criminalizar quem se esconde atrás do argumento de autoridade, e sim de
aprofundar o conhecimento sobre como funciona a banalização do mal e sobre o
tipo de ódio que muitos têm contra quem os priva do que consideram ódio
legítimo10. Voltaremos a isso mais adiante. Mas vá dizer a pessoas de direita que
o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) foi preconceituoso: ficam
apopléticas, estamos privando-as do gosto do seu ódio, ainda que seja
impossível ver as distorções: mas vê-las exige o uso da razão, a capacidade de
contestação objetiva.

Há uma experiência muito famosa que foi feita com estudantes universitários, a
quem funcionários vestindo jalecos, como se fossem médicos, chamaram para
dar choques elétricos em pessoas desconhecidas, com o argumento de que se
tratava de uma experiência científica. A maioria dos estudantes não se fez de
rogada.

O último vetor de justificativas éticas levantado por Haidt é o da santidade


(sanctity), ligada a valores sagrados como tradições ou razões religiosas, que
nos fazem condenar ao fogo do inferno quem acredita em outras visões de
mundo73. Aqui temos um prato cheio. Um exemplo clássico é o Malleus
Maleficarum, famoso manual de instruções da Inquisição, que ensinava, por
exemplo, que as mulheres suspeitas de bruxaria ou de estarem possuídas
deviam ser torturadas nuas, pois isso as fragilizaria, e de costas, pois as
expressões de dor e de desespero causadas pela tortura, obra naturalmente do
próprio demônio, podiam ser fortes a ponto de amolecer o inquisidor. Tudo em
nome de Jesus, da caridade, do amor ao próximo. A mutilação genital feminina,
termo que inclui os diversos tipos de lesão ou remoção (sem anestesia), parcial
ou total, dos órgãos sexuais externos, como o clitóris e os grandes e pequenos
lábios, atinge milhões de meninas e jovens mulheres. O que se fez, e ainda se
faz, em nome de Deus ou das tradições é impressionante. Estamos no século
XXI.

Ao comparar, em inúmeras entrevistas, visões de pessoas de todos os pontos do


espectro político, da esquerda até os mais conservadores, Haidt constata que há
uma graduação muito clara relativa a quais elementos da matriz se dá mais
importância. A esquerda dá muito mais importância aos três primeiros eixos:
não causar dano, não machucar, reduzir o sofrimento e assegurar o cuidado;
lutar contra a opressão e pela liberdade; garantir que as regras do jogo sejam
limpas, com igualdade de tratamento, a chamada justiça social. Inversamente, a
direita dá mais valor aos últimos eixos, concentrando sua visão na lealdade de
grupo (veja-se a Ku Klux Klan, por exemplo); na autoridade e na
correspondente obediência; e no respeito a valores considerados sagrados, em
boa parte no sentido religioso, em que o sagrado mistura o político e o religioso,
como no Gott mit Uns [Deus conosco], adotado pelos nazistas, acompanhado do
símbolo da suástica. O fato de milhões terem virado fanáticos na Alemanha, um
país cujo nível educacional ou cultural não poderia ser considerado baixo, é
significativo. Não se trata do nível de educação, e sim de instituições, de cultura
política. A barbárie não depende de diplomas.

A conclusão interessante de Haidt, um confesso liberal, no sentido


estadunidense, que corresponde ao que seria um progressista entre nós, é que a
direita usa argumentos e sentimentos que calam fundo nas pessoas, pois mais
fortemente ancorados nas emoções, nos sentimentos de grupo, coesão,
bandeira, religiosidade, autoridade e obediência. É o que em inglês se
chama gut feeling, as tripas. Eu digo que são reflexões que migram para o
fígado. São mensagens que ecoam mais fortemente no emocional do que no
raciocínio; em particular, são as narrativas que nos permitem dar uma
aparência de legitimidade ética ao ódio. A direita estadunidense, por exemplo,
sempre evocou um demônio – externo, naturalmente – para justificar tudo e
qualquer coisa: Muammar Khadafi, Saddam Hussein, Osama bin Laden, Fidel
Castro; e, hoje, o terrorismo em geral. No Brasil, temos o ótimo exemplo da
revista Veja, que vive de agitar o ódio contra demônios que explicariam todos os
males. Não resolve nada, mas funciona. As perseguições a Dilma, a absurda
prisão de Lula, o ódio contra o petismo são comportamentos que não
necessitam reflexão. São ódios à procura de uma justificativa para se manifestar.

Explicar o drama dos que passam fome (eixo care) e as estatísticas de


mortalidade infantil apela muito mais para o raciocínio e não tem o mesmo
efeito mobilizador do que argumentos que atingem o fundo emocional, por
exemplo, de que os imigrantes vão roubar o seu emprego. Apelar para o
emocional dá à direita vantagens de um discurso simplificado, que pega mais no
fígado do que na razão, como a bandeira dos marajás, de Fernando Collor, ou
a vassourinha, de Jânio Quadros. O ódio à corrupção é uma arma tradicional de
mobilização das massas, com a óbvia vantagem de que parece naturalmente
legítimo. O problema é que combater a corrupção, o que se faz racionalmente
por meio da transparência que as tecnologias hoje permitem, é muito diferente
de usar o combate à corrupção para fins políticos, canalizando ódio em vez de
mudar os procedimentos.

Haidt busca um mundo mais equilibrado. Não desaparecerão as motivações


mais valorizadas na direita. O essencial do livro é que nos permite compreender
melhor as raízes emocionais da razão, a facilidade com a qual se constroem
pseudorrazões e fanatismos. Ajuda-nos, por exemplo, a entender como se
constrói uma campanha contra a presença de médicos cubanos em regiões
aonde os nossos médicos não querem ir, um projeto inatacável do ponto de vista
humanista. Inúmeras razões são apresentadas, mal encobrindo um ódio
ideológico que é a verdadeira razão. O ódio, como fenômeno de massas, é
contagioso. Explicar racionalmente um projeto é muito menos contagiante.

Haidt se preocupa, em particular, com o poder que simplesmente não tem


contas morais a prestar: o universo das grandes corporações.

Se o passado serve para nos iluminar, as corporações crescerão para se


tornarem cada vez mais poderosas com a sua evolução, e elas mudam os
sistemas legais e políticos nos países onde se instalam, para gerar um
ambiente mais favorável. A única força que resta na Terra para enfrentar as
maiores corporações são os governos nacionais, alguns dos quais ainda
mantêm o poder de cobrar impostos, regular e dividir as corporações em
segmentos menores quando se tornam demasiado poderosas 11.

Vem-nos à lembrança a frase de Milton Friedman, da escola de Chicago, de que


as empresas, como as paredes, não têm sentimentos morais. Ou a visão
proclamada em Wall Street: “greed is good”, a ganância é boa. Parece que uma
parte do universo escapa a qualquer ética. O filme O lobo de Wall Street vem
naturalmente à memória. O personagem real da história deu entrevistas dizendo
que o filme não exagerou em nada. Chega o denominador comum que assegura
a absolvição por atacado: “todos fazem, não fizemos nada que toda Wall Street
não faça”.

Aqui a dimensão é outra, pois se trata da diluição das responsabilidades nas


pessoas jurídicas. Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial,
Nobel de Economia e insuspeito de esquerdismo, resumiu a questão em
pronunciamento na ONU sobre direitos humanos e corporações:

Mas, infelizmente, a ação coletiva que é central nas corporações mina


[undermines] a responsabilidade individual. Tem sido repetidamente notado
como nenhum dos que estavam encarregados dos grandes bancos que
trouxeram a economia mundial à borda da ruína foi responsabilizado [held
accountable] pelos seus malfeitos [misdeeds]. Como pode ser que ninguém seja
responsável? Especialmente quando houve malfeitos da magnitude dos que
ocorreram nos anos recentes12?

Quando somos uma massa, em que todos fazem o mesmo, o que pode ser o
linchamento de um rapaz na favela, um estupro coletivo ou massacres numa
guerra? Numa gigantesca corporação, onde tudo se dilui, a ética se torna tão
diluída que desaparece. Ninguém gosta de se achar pouco ético. E nossas
defesas são fortes. Não posso deixar de citar o texto genial de John Stuart Mill,
de 1861, sobre a sujeição das mulheres na Grã-Bretanha da época, quando eram
reduzidas a palhacinhas decorativas e proibidas de qualquer participação adulta
na sociedade e na construção do seu destino. Ao ver a dificuldade de penetrar na
mente preconceituosa, Mill escreve:

Enquanto uma opinião está solidamente enraizada nos sentimentos [feelings],


ela ganha mais do que perde estabilidade quando encontra um peso
preponderante de argumentos contra si. Pois, se ela tivesse sido construída
como resultado de uma argumentação, a refutação do argumento poderia
abalar a solidez da convicção; mas, quando repousa apenas em sentimentos,
quanto pior ela se encontra em termos de argumentos, mais persuadidos
ficam os seus defensores de que o que sentem deve ter uma fundamentação
mais profunda, que os argumentos não atingem; e, enquanto o sentimento
persistir, estará sempre trazendo novas barreiras de argumentação para
consertar qualquer brecha feita às velhas13.

O fígado é poderoso, e muitos o preferem ao cérebro. A política, em particular,


navega nesses mares. A mensagem de Haidt não é de passar a mão na cabeça da
esquerda ou da direita, e sim de sugerir que tentemos entender melhor como se
geram os agrupamentos políticos, a identificação com determinadas bandeiras,
os eventuais fanatismos e as formas primárias de divisão da sociedade entre
“bons” e “maus”. O maniqueísmo é perigoso. Quando vemos que os mesmos
homens podem ser autores de atos abomináveis e heroicos, o que interessa
mesmo é construir instituições que permitam que se valorizem as nossas
dimensões mais positivas. Nas palavras de Haidt, criar “os contextos e sistemas
sociais que permitam às pessoas pensar e agir bem14.

A BANALIDADE DO MAL

A crueldade desempenha aqui um papel particularmente importante. Como


pode o homem se deixar bestializar com tanta facilidade? Seria muito fácil
reduzir o problema a aberrações sociais, à existência de alguns doentes mentais,
sem os quais a sociedade seria decente, “normal”. Assim como é fácil reduzir o
problema do nazismo ao personagem que o criou. Até quando vamos considerar
como momentos de anormalidade as incessantes guerras que acompanham a
história da humanidade, os massacres, os estupros e a tortura que sempre
caracterizaram as relações humanas e estão hoje generalizados? Com
tecnologias cada vez mais sofisticadas, pois a nossa inteligência permite avanços
prodigiosos, mas com a bestialidade de sempre.

Trata-se de um tema central no pensamento de Hannah Arendt, a questão da


natureza do mal. Arendt acompanhou, em Israel, como correspondente da
revista The New Yorker, o julgamento de Adolf Eichmann, esperando ver o
monstro nazista, a besta assassina. O que viu, e só ela viu dessa maneira, foi a
banalidade do mal. Viu um burocrata preocupado em cumprir ordens, para
quem as ordens substituíam a reflexão, qualquer pensamento que não fosse o de
bem cumprir ordens. Pensamento técnico, descasado da ética, banalidade que
tanto facilita a vida. Servilidade para com os de cima e brutalidade para com os
de baixo, dois comportamentos casados num só. A análise do julgamento,
publicada pela The New Yorker, causou escândalo, em particular entre a
comunidade judaica, como se Arendt estivesse absolvendo o réu, desculpando a
monstruosidade.

A banalidade do mal, no entanto, é central. Meu pai foi torturado durante a


Segunda Guerra Mundial, no sul da França. Não era judeu. Aliás, de tanto se
falar em judeus no Holocausto, tragédia cuja dimensão trágica ninguém vai
negar, esquece-se que essa guerra vitimou 60 milhões de pessoas, entre as quais
6 milhões de judeus. A perseguição atingiu as esquerdas em geral, sindicalistas
ou ativistas de qualquer nacionalidade, além de ciganos, homossexuais e tudo
que cheirasse a algo diferente. A questão da tortura, da violência extrema contra
outro ser humano, me marcou desde a infância, sem saber que eu mesmo viria a
sofrê-la. Eram monstros os que torturaram o meu pai? Poderia até haver um
torturador particularmente pervertido, tirando prazer do sofrimento, mas, no
geral, eram homens como os outros, colocados em condições de violência
generalizada, de banalização do sofrimento, dentro de um processo que abriu
espaço para o pior que há em muitos de nós.

Por que é tão importante isso? Porque a monstruosidade não está na pessoa, ela
está no sistema. Há sistemas que banalizam o mal latente em nós. Isso implica
que as soluções realmente significativas, as que podem nos proteger do
totalitarismo, do direito de um grupo a dispor da vida e do sofrimento dos
outros, estão na construção de processos legais, de instituições e de uma cultura
democrática que nos permitam viver em paz. O perigo e o mal maior não estão
na existência de doentes mentais que gozam com o sofrimento de outros – por
exemplo, skinheads que queimam um pobre dormindo na rua, gratuitamente,
pela diversão – mas na violência sistêmica exercida por pessoas banais.

Entre os que me interrogaram no Departamento de Ordem Política e Social


(DOPS) de São Paulo, encontrei um delegado que tinha estudado no Colégio
Loyola, de Belo Horizonte, onde eu também estudara, nos anos 1950. Colégio de
orientação jesuíta, onde nos ensinavam “amai-vos uns aos outros”. Encontrei
um homem normal, que me explicava que, arrancando mais informações, ele
seria promovido, inclusive me falou sobre os graus de promoções possíveis na
época. Aparentemente, ele queria progredir na vida. Um outro que conheci,
violento ex-jagunço do Nordeste, claramente considerava a tortura uma coisa
banal, algo com que seguramente conviveu nas fazendas desde a sua infância.
Monstros? Eles praticaram coisas monstruosas, mas o monstruoso mesmo é a
naturalidade com a qual a violência se pratica e a facilidade com que se organiza
o apoio das instituições superiores.

Um torturador da Operação Bandeirantes (Oban) me passou uma grande pasta


A-Z onde estavam cópias dos depoimentos dos meus companheiros que tinham
sido torturados antes. O pedido foi simples: por não querer se dar a demasiado
trabalho, ele pediu que eu visse os depoimentos dos outros e fizesse o meu
confirmando as verdades, bobagens ou mentiras que estavam lá escritas.
Explicou que eu escrever um depoimento repetindo tudo o que eles achavam
saber deixaria satisfeitos os coronéis que ficavam lendo depoimentos no andar
de cima (os coronéis evitavam sujar as mãos), pois eles veriam que tudo se
confirmava, ainda que fossem histórias absurdas. Disse ainda que, se houvesse
discrepâncias, eles teriam de chamar os presos que já estavam no presídio
Tiradentes e voltar a interrogá-los, até que tudo batesse. Queria economizar
trabalho. Não era alemão. Burocracia do sistema. Nos campos de concentração,
era a IBM que fazia a gestão da triagem e a classificação dos presos, na época
com máquinas de cartões perfurados. No documentário A Corporação, de 2003
– dirigido por Mark Achbar e Jennifer Abbott, com roteiro de Joel Bakan –, a
IBM esclarece que apenas prestava assistência técnica.

O mal não está nos torturadores, está nos homens de mãos limpas que geram
um sistema que permite que homens banais façam coisas como a tortura, numa
pirâmide que vai desde aquele que suja as mãos com sangue até um Donald
Rumsfeld, que dirige uma nota ao exército estadunidense no Iraque exigindo
que os interrogatórios sejam harsher, ou seja, mais violentos. Hannah Arendt
não estava desculpando torturadores, estava apontando a dimensão real do
problema, muito mais grave. A compreensão da dimensão sistêmica das
deformações não tem nada a ver com passar a mão na cabeça dos criminosos
que aceitaram fazer ou que ordenaram monstruosidades. Hannah Arendt
aprovou plena e declaradamente o posterior enforcamento de Eichmann. Eu
estou convencido de que os que ordenaram, organizaram, administraram e
praticaram a tortura devem ser julgados e condenados. Mas o fato de eu
detestar torturadores não justifica eu me tornar um ignorante. O combate que
eu quero combater, o que dá resultados, é batalhar por um sistema em que
torturar seja inviável.

O segundo argumento poderoso do filme vem das reações histéricas dos judeus
pelo fato de Arendt não considerar Eichmann um monstro. Aqui, a questão é tão
grave quanto a primeira. Ela estava privando as massas do imenso prazer
compensador do ódio acumulado, da imensa catarse de ver o culpado enforcado.
As pessoas tinham, e têm hoje, direito a esse ódio. Não se trata de deslegitimar a
reação ao sofrimento imposto. O fato é que, ao tirar do algoz a característica de
monstro, Arendt estava tirando o gosto do ódio, perturbando a dimensão de
equilíbrio e de contrapeso que o ódio representa para quem sofreu. O
sentimento é compreensível, mas perigoso. Inclusive, amplamente utilizado na
política, com os piores resultados. O ódio, conforme os objetivos, pode
representar um campo fértil para quem quer manipulá-lo. E haja candidatos.

Quando exilado na Argélia, durante a ditadura militar, eu conheci Ali Zamoum,


um dos importantes combatentes pela independência do país. Torturado,
condenado à morte pelos franceses, foi salvo pela independência. Amigos da
segurança do novo regime localizaram um torturador seu numa fazendo do
interior. Levaram Ali até a fazenda, onde encontrou um idiota banal, apavorado
num canto. Que iria ele fazer? Torturar um torturador? Largou-o ali para ser
trancado e julgado. Decepção geral. Perguntei-lhe um dia como eles
enfrentavam os distúrbios mentais das vítimas de tortura. Na opinião dele, os
que se equilibravam melhor eram aqueles que, depois da independência,
continuavam na luta, já não contra os franceses, mas pela reconstrução do país,
pois a continuidade da luta não apagava, mas dava sentido e razão ao que
tinham sofrido.

Em 1984, de Orwell, os funcionários são regularmente reunidos para uma


sessão de ódio coletivo. Aparece na tela o rosto do homem a odiar, e todos se
sentem fisicamente transportados e transtornados pela figura de Emmanuel
Goldstein. Catarse geral. E odiar coletivamente pega. Estamos iludidos se não
vemos o uso atual dos mesmos procedimentos em espetáculos midiáticos.
Apelar para o animal dentro de nós funciona muito. Cobrir-se com uma
bandeira até compensa, disfarça a animalidade.

O texto de Hannah Arendt apontando um mal pior, os sistemas que geram


atividades monstruosas a partir de homens banais, simplesmente não foi
entendido. Que homens cultos e inteligentes não consigam compreender o
argumento é em si muito significativo e socialmente poderoso. Como diz
Jonathan Haidt, para justificar atitudes irracionais, inventam-se argumentos
racionais ou racionalizadores. No caso, Arendt seria contra os judeus, teria
traído o seu povo, tinha namorado um professor que se tornou nazista. Os
argumentos não faltavam, conquanto o ódio fosse preservado e, com ele, o
sentimento agradável da sua legitimidade.

Esse ponto precisa ser reforçado. Em vez de detestar e combater o sistema, o


que exige uma compreensão racional, é emocionalmente muito mais satisfatório
equilibrar a fragilização emocional que resulta do sofrimento e concentrar toda
a carga emocional no ódio personalizado. Nas reações histéricas e na
deformação flagrante, por parte de gente inteligente, do que Arendt escreveu,
encontramos a busca do equilíbrio emocional. “Não mexam no nosso ódio.” Os
grandes grupos econômicos que abriram caminho para Adolf Hitler, como a
Krupp, ou as empresas que fizeram a automação da gestão dos campos de
concentração, como a IBM, agradecem.

O filme é um espelho que nos obriga a ver o presente pelo prisma do passado.
Os estadunidenses sentem-se plenamente justificados em manter um amplo
sistema de tortura – sempre fora do seu território, pois do contrário teriam
certos incômodos jurídicos. Israel criou, através do Mossad, os centros mais
sofisticados de tortura da atualidade, nos quais se pesquisam instrumentos
eletrônicos que infligem uma dor que supera tudo o que se inventou até agora.
Soldados estadunidenses que filmaram com seus celulares a tortura que
praticavam em Abu Ghraib, no Iraque, eram jovens, moças e rapazes saudáveis,
bem formados nas escolas, que até achavam divertido o que faziam. Nas
entrevistas posteriores, a bem da verdade, numerosos foram os jovens que
denunciaram a barbárie, e houve até aqueles que se recusaram a praticá-la. Mas
foram minoria15.

O terceiro argumento do filme, central na visão de Arendt, é a desumanização


do objeto de violência. Torturar um semelhante choca os valores herdados ou
aprendidos. Portanto, é essencial que não se trate mais de um semelhante: uma
pessoa que pensa, chora, ama, sofre. É um “judeu”, um “comunista”, um
“elemento”, no jargão da polícia. Na visão da Ku Klux Klan, um “negro”. No
plano internacional de hoje, o “terrorista”. Nos programas de televisão, um
“marginal”. Pessoas se divertem vendo as perseguições. São seres humanos? O
essencial é que deixem de ser humanos, indivíduos, pessoas, e se tornem uma
categoria. Sufocaram 111 presos nas celas? Ora, eram “marginais”.

Um manuscrito abandonado de Sebastian Haffner, estudante de direito na


Alemanha em 1930, foi resgatado mais recentemente por seu filho, que o
publicou com o título Defying Hitler: a Memoir [Desafiando Hitler: memórias].
O livro mostra como um estudante de família simples vai aderindo ao Partido
Nazista por influência dos amigos, da mídia, do contexto, repetindo com as
massas as mensagens. Na resenha que fiz desse livro, em 2002, escrevi que o
que deve assustar no totalitarismo, no fanatismo ideológico, não é o torturador
doentio, mas como pessoas normais são puxadas para dentro de uma dinâmica
social patológica, enxergando-a como um caminho normal. Na Alemanha
daquela época, 50% dos médicos aderiram ao Partido Nazista. O problema não
era Hitler, e sim a facilidade com a qual pessoas comuns ou até muito cultas lhe
deram apoio e o seguiram, em vez de interná-lo. O próximo fanatismo político
não usará bigode e bota nem gritará “Heil” como os “skinheads”. Usará terno e
gravata e será multimídia. E, seguramente, procurará impor o totalitarismo,
mas em nome da democracia, ou até dos direitos humanos. Conseguiremos,
pessoas e comunidades realmente existentes, tais como somos, 7,5 bilhões de
indivíduos de racionalidade duvidosa, resgatar o caminho do bem comum?

Há anos um aluno perguntou o que eu achava do ser humano, se era essa


desgraça mesmo que vemos ou se havia esperança, se tinha sentido a visão de
Rousseau do homem bom desviado por dinâmicas sociais. Vou na linha do
grande jurista que foi Sobral Pinto: as instituições são fundamentais e o respeito
à lei é que nos salva. Ou seja, temos de analisar em circunstâncias diferentes, em
particular no quadro de instituições diversas, como os mesmos povos se
comportaram como selvagens ou civilizados. Podemos contar com os países
nórdicos que já foram vikings, os alemães que já foram nazistas, os belgas que já
mataram milhões no Congo; e, ao mesmo tempo, com o imenso progresso que
foi superar a escravidão, o feudalismo, o colonialismo. Não estou aqui falando
de passado longínquo.

Batalhar o convívio civilizado se dá através da construção de sólidas regras do


jogo. Elas têm de ser justas. Não podem privilegiar sistematicamente uma
minoria, como o fazem as regras que hoje temos. E há um tempo para cada
coisa. A luta dos americanos para se livrar da escravidão, a de tantos outros
países para se livrar do colonialismo, a dos sul-americanos para se livrar das
ditaduras foram não só legítimas como necessárias. As barbáries subsistem,
o apartheid conviveu na África do Sul com o que há de mais moderno do ponto
de vista tecnológico e sobrevive na Palestina nessa estranha mistura de
modernidade técnica e de tragédia humana.

O presente desvio de raciocínio, num estudo sobre a sociedade do conhecimento


e os modos de produção, para abordar as deformações coletivas humanas, faz
para mim todo o sentido. A realidade é que teremos de mudar o mundo com o
ser humano realmente existente. E esse ser humano é apenas parcialmente
racional. E mais: os avanços tecnológicos são cumulativos, uma descoberta
serve de estribo para outra. Mas o ser humano que hoje nasce vem com
basicamente o mesmo DNA de Calígula ou de Galileu. A crueldade de que são
capazes as crianças, o comportamento patético de tantos adolescentes ou
patológico de tantos adultos mostram, a cada geração que nasce, como
precisamos reconstruir uma herança cultural civilizatória, apontando para a
facilidade com a qual podemos regredir para a barbárie. Nossos avanços
civilizatórios são reais, mas extremamente frágeis. Sem a cultura democrática e
as instituições correspondentes, assim como a luta permanente por sua
implantação e defesa, o horizonte pode ser muito inseguro.
1Frans de Waal, Our Inner Ape: a Leading Primatologist Explains Why         We
Are Who We Are, New York: Riverhead Books, 2005, p. 169.

2Ibidem, p. 171.

3Ibidem, p. 176.

4Ibidem, p. 202.

5Ibidem, p. 224.

6Jonathan Haidt, The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by


Politics and Religion, New York: Pantheon Books, 2012, p. 82.

7mile Durkheim, Da divisão do trabalho social, trad. Eduardo Brandão, São


Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 420.

8Jonathan Haidt, The Righteous Mind, op. cit., p. 270.

9Ibidem, p. 159.

10Veja a respeito o meu texto sobre o filme Hannah Arendt, dirigido por


Margarethe von Trotta (2012), sobre a banalização do mal,
em  <http://dowbor.org/2013/08/hannah-arendt-alem-do-filme-agosto-
2013-3p.html/>

11Ibidem p. 297.

12Joseph E. Stiglitz, “Joseph E. Stiglitz’s Adress to Panel on Defending    


Human Rights (revised)”, in: UN Forum on Business and Human Rights,    
Geneva, 3 dez. 2013, disponível
em:<https://www8.gsb.columbia.edu/faculty/jstiglitz/sites/jstiglitz/files/201
3_UN_Biz_HR.pdf>, acesso em: 9 abr. 2020.

13John Stuart Mill, The Subjection of Women, Mineola: Dover Publications,


1997, p. 1.

14Jonathan Haidt, The Righteous Mind, op. cit., p. 15Melhor do que        


qualquer comentário é ver o filme Fantasmas de Abu Ghraib, de 2007,        
dirigido por Rory Kennedy. Sobre a rede de esquadrões da morte e centros de
tortura no Iraque, ver Mona Mahmood et al., “Revealed: Pentagon’s Link to
Iraqi Torture Centres”, The Guardian, 6 mar. 2013, disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2013/mar/06/pentagon-iraqi-
torture-centres-link?INTCMP=SRCH>, acesso em: 19 abr. 2020.
China: das bugigangas “1,99” a potência
tecnológica
De exportador de itens primários e manufaturas baratas, país
transformou-se, em poucas décadas, no principal polo global
de inovação. Agora, com ambicioso plano, quer liderar
Indústria 4.0. “Guerra comercial” com os EUA apenas
começou
OUTRASPALAVRAS
GEOPOLÍTICA & GUERRA
por Diego Pautasso
Publicado 21/12/2020 às 19:00 - Atualizado 21/12/2020 às 21:18

MAIS:
Em esforço para compreender em profundidade a
China, Outras Palavras publica série de textos do cientista político e geógrafo
brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos. Uma entrevista
com o autor pode ser vista aqui.
O artigo a seguir foi publicado originalmente no site Bonifácio.
Leia todos os artigos da série

Os processos nacionais de desenvolvimento são, via de regra, construídos a


partir de uma complexa estrutura intergeracional, cujo caminho é repleto de
percalços e contradições. No caso da China, a longa estrada rumo ao
desenvolvimento pleno da nação entrelaçou, em suas origens, a confluência de
processos de descolonização, de revolução antissistêmica e de reconstrução
nacional a partir de heranças imperiais milenares.

Assim, o desenvolvimento resulta, pois, da combinação de processos globais


com políticas nacionais, pragmaticamente adequadas às oportunidades
conjunturais. Absolutamente todos os países hoje considerados desenvolvidos
se utilizaram amplamente de políticas industriais, comerciais e tecnológicas
(ICT) para atingirem tais condições. Em outras palavras, atingem-nas a partir
de uma intrincada rede de interações e conhecimento mobilizada em prol da
potencialização da economia nacional, com o progressivo aumento de
produtividade se vinculando aos mecanismos de agregação de valor, de
conhecimento e de inovação que, por sua vez, vinculam-se ao aumento do Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH).

O avanço de qualquer projeto nacional consistente tende, em última instância, a


se defrontar com os limites impostos pelas estruturas hegemônicas de poder de
sua era, formados por mecanismos de dominação que direta e indiretamente
respaldam a supremacia de determinados países e a legitimação de certas
organizações internacionais. Daí a importância da plena articulação de uma
estratégia de inserção internacional consequente e a afirmação de um projeto
nacional de desenvolvimento de longo prazo para a superação
do gap produtivo-tecnológico que sustenta tais estruturas de poder.

Pertence ao passado a indústria de baixa tecnologia chinesa, na qual se destacava a


produção de brinquedos.
Por isso, não é possível compreender as questões concernentes ao
desenvolvimento das nações quando as dissociando da dialética da forma como
se refletem no deslocamento dos centros decisórios globais. Afinal, são os
resultados da contenda entre polos dominantes e ascendentes que acabam por
determinar os respectivos graus de autonomia e lugar dos países nas
configurações hierárquicas de poder no mundo.   

Dito isso, para compreender no que consiste o Made in China 2025, cabe
recuperar a trajetória mais ampla da China, emblemática da tensa e
contraditória relação entre desenvolvimento e inserção internacional. A política
de Reforma e Abertura, de Deng Xiaoping, visava superar contradições do ciclo
de reconstrução nacional iniciado em 1949. O ajuste nas estratégias tanto de
desenvolvimento nacional quanto de inserção internacional incluíram
movimentações bruscas, como a aproximação político-diplomática entre China
e Estados Unidos da América na década de 1970, em plena Guerra Fria, num
contexto de recém superação dos sobressaltos da Revolução Cultural. Atos como
esse demonstram, com exatidão, que a política é, na maioria das vezes, mais
sinuosa do que pareceres pautados por juízos morais podem fazer crer.

Nesse quadro de aproximação sino-americana, a expansão financeira


estadunidense potencializou o progressivo deslocamento do epicentro produtivo
global do Atlântico Norte para a Ásia Oriental. Esse resultou, nas décadas
seguintes, num perceptível e vigoroso renascimento do papel protagonista da
Ásia a partir da liderança da reemergente civilização chinesa, e da reconstituição
do sistema sinocêntrico.

Hoje, enquanto as potências ocidentais endossam a crescente


desregulamentação financeira e atrofiam setores fundamentais de suas
economias, a China aprofunda a condição de epicentro da produção mundial.
No âmbito das exportações, os valores passaram de 16,8 bilhões de dólares, em
1980, para 82 bilhões em 1990, 370 bilhões em 2000, 1,680 trilhão em 2010 e
1,980 trilhão em 2016. Entre 2007 e 2017, os superávits comerciais acumulados
da China totalizaram quase 3,5 trilhões de dólares.

Na década de 1980 as exportações chinesas praticamente se restringiram ao


petróleo e seus derivados, alimentos e outros produtos primários; durante os
anos 1990 passaram a ter importante composição de calçados, vestuário,
brinquedos e outros bens manufaturados de baixo valor agregado; já na
atualidade, predominam os equipamentos eletroeletrônicos, motores, veículos,
materiais de construção, dentre outros bens sofisticados. 

A atuação das empresas chinesas no âmbito global reflete a amplificação do


poder do país oriental na esfera internacional. Tal fato pode ser bem ilustrado
pela rápida expansão do número de suas multinacionais entre as grandes
corporações do mundo. Não obstante as dificuldades de mensuração, devido aos
dados variáveis de controle acionário e perfil das empresas, é evidente a
ascensão ocorrida: dentre aquelas listadas como as 500 maiores empresas do
mundo pela revista Fortune, a China detém hoje cerca de 120, quando eram
apenas 18 em 2005; a título de comparação, nesse mesmo período os EUA
reduziram o número de suas empresas na lista, passando de 176 empresas, em
2005, para 126 empresas, em 2018. Ressalte-se: não se trata apenas de
empresas ligadas a setores tradicionais, vinculados à exploração de minérios,
petróleo, alimentos, têxteis, por exemplo, mas muitas empresas de tecnologias
de ponta, incluindo setores de informática, comunicação, energia limpa, entre
outros. O país, que nos anos 1990 se notabilizou por exportar produtos de
“1,99”, tornou-se um polo protagonista de inovação produtiva e tecnológica. 

Durante a política de Reforma de Abertura, do final da década de 1970, a ênfase


chinesa recaiu sobre o desenvolvimento da capacidade produtiva nacional, com
atração de investimentos estrangeiros voltados para a internalização de capital e
de tecnologias; a partir dos anos 1990, a China já ensaiava a projeção de seus
investimentos para o exterior, priorizando os países periféricos como destino;
desde 2005, entretanto, a China tem expandido ainda mais seus investimentos
no exterior, ensejando uma evidente transformação qualitativa da expansão dos
seus negócios internacionais.

Alinhada a essa dinâmica, foi elaborada, em 1999, a estratégia Going Global,


justamente no contexto de ingresso do país na Organização Mundial do
Comércio (OMC), em 2001, voltada para a ampliação da segurança em recursos
naturais, alimentares e energéticos, via controle das cadeias de valor desses
setores em outros países. Atualmente, a China desenvolve a Going Global
2.0 com o objetivo central de promover demanda à economia nacional,
alavancando-a por meio da Nova Rota da Seda. 

Diante do exposto, pode-se compreender e abordar os principais aspectos


do Made in China 2025, que sinaliza o aprofundamento da sinergia entre
desenvolvimento nacional e potencialização da inserção global da China. É um
caso exemplar da capacidade estatal de promover políticas de ICT em favor da
indústria nascente. Ou seja, o governo chinês tem impulsionado a interação
entre Estado e setor privado e financiado a fusão de setores, conformando
oligopólios (“campeões nacionais”) com vistas a aprofundar a produtividade e a
socialização do investimento. O planejamento estatal inclui financiamento
barato oferecido por bancos públicos nacionais, produção de insumos básicos
com preços baixíssimos e estímulo da demanda por meio de compras
governamentais. 

Como já abordado, políticas de ICT têm sido historicamente cruciais para


possibilitar processos de desenvolvimento das nações. No entanto, num
segundo momento, após a consolidação destes processos, costumam combinar a
manutenção de seus principais sustentáculos com uma retórica de defesa de
políticas liberais no âmbito global multilateral. Assim, é “chutada a escada” para
evitar a ascensão de competidores que queiram trilhar o mesmo caminho, e o
país desenvolvido passa a alimentar ações e empreendimentos voltados à
garantia da monopolização de seus domínios (patentes) e a inibição destas
mesmas políticas públicas, que lhes deram origem, em terceiros países.

Trata-se, portanto, de uma estratégia ciclicamente adotada por potências


mundiais em prol da reafirmação de suas vantagens e, por extensão, das
assimetrias globais expressas na divisão internacional dos processos produtivos
– ou seja, na estrutura que rege o lugar que cada país ocupa nas cadeias de valor
e riqueza. Com efeito, o caminho ao desenvolvimento combina, portanto, a
execução de um projeto nacional com a paralela construção da capacidade
política para romper estruturas internacionais hegemônicas, voltadas para a
cristalização das configurações globais de riqueza e poder. 

No caso da China, entrelaçam-se as políticas de reafirmação da soberania,


integridade territorial e reconstrução nacional da Era Mao com as reformas
modernizantes desencadeadas pela Era Deng. No caso atual, falamos das
múltiplas políticas públicas governamentais voltadas para a promoção da
complexidade econômica chinesa, englobando a abertura comercial gradual,
com complexo sistema de tarifas, barreiras não-tarifárias e licenças; a atração
de investimentos condicionados às transferências tecnológicas e joint ventures,
o encadeamento dos distintos segmentos da indústria nacional; os fortes
estímulos à engenharia reversa e a aplicação branda das leis de proteção
intelectual; a criação de clusters nacionais por meio de requisitos de conteúdo
local; além de uma política econômica capaz de combinar câmbio desvalorizado,
juros baixos, controle de capitais, dentre outros mecanismos. 

Nesse quadro de acirramento da competição interestatal e corporativa, a China


mira o que se convencionou chamar indústria 4.0 – conceito criado em 2011, na
feira de Hannover, na Alemanha, para se referir à produção de manufatura
avançada. São inovações tecnológicas ligadas à inteligência artificial, robótica,
internet das coisas, Big Data, veículos autônomos, impressão em 3D,
nanotecnologia, biotecnologia, armazenamento de energia, novos materiais
(grafeno) e computação quântica. 

A política Made in China 2025 (MIC 2025), inspirada no plano “Indústria 4.0”


da Alemanha (adotado em 2013), foi aprovada pelo Conselho de Estado da
China em 2015, voltada ao desenvolvimento da manufatura inteligente. Trata-se
de um aprofundamento de outro estudo, de 2010, intitulado China’s drive for
‘indigenous innovation’, cujo objetivo era valer-se do poderoso regime
regulatório chinês para forçar a diminuição da dependência de tecnologia
estrangeira, por meio da promoção de inovações nacionais. O MIC 2025 se
propõe a impulsionar a liderança da China nas redes globais de produção e
inovação, conferindo eficiência e qualidade aos produtos nacionais. O plano foi
elaborado pelo Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (MIIT), com
a contribuição de 150 especialistas da Academia de Engenharia da China. 

Este documento governamental destaca 10 setores prioritários de atuação: 1)


nova tecnologia de informação avançada; 2) máquinas e ferramentas
automatizadas e robótica; 3) equipamentos aeroespaciais e aeronáuticos; 4)
equipamento marítimo e transporte de alta tecnologia; 5) equipamento
moderno de transporte ferroviário; 6) veículos e equipamentos de nova energia;
7) equipamentos de energia; 8) equipamentos agrícolas; 9) novos materiais; e
10) biofármacos e produtos médicos avançados.

Para tanto, o governo chinês não está focado apenas na inovação, mas em toda a
cadeia de produção e serviços modernos. O objetivo central é aumentar o
conteúdo de componentes e materiais nacionais primeiramente para 40%, até
2020, e posteriormente para 70%, até 2025. A estratégia do governo chinês
inclui políticas cujos objetivos são acelerar os esforços de transferência de
tecnologias e de requisitos de licenciamento e aquisição de empresas
estrangeiras estratégicas, bem como de diversas atividades de engenharia
reversa. É interessante observar as metas na indústria automotiva, setor em que
se entrelaçam tecnologias da informação, veículos autônomos, novas formas de
energia, dentre outros. 

Infográfico 1

Fonte: MIIT, disponível
em: http://english.gov.cn/policies/infographics/2015/06/02/content_281475119391820.
htm

O Made in China 2025 é, definitivamente, um ambicioso plano para afirmar a


liderança industrial e tecnológica da China, em compasso com um robusto
processo de substituição de importações. Entre 2016 e 2020, o MIIT e o Banco
de Desenvolvimento da China executaram programas de financiamento –
incluindo empréstimos, títulos e leasing – para os grandes projetos, com um
financiamento estimado em mais de 45 bilhões de dólares. Trata-se de uma
escalada produtiva que tende a recrudescer a competição interestatal e
interempresarial internacional, típicas dos contextos de reorganização do poder
mundial. E é por isso que nem a “guerra comercial” desencadeada pelos Estados
Unidos contra a China em 2018, nem a detenção de Meng Wanzhou, diretora
financeira da gigante de telecomunicações chinesa Huawei, resumem-se a
litígios deslocados desse quadro geopolítico mais amplo.     

Consequentemente, não restam dúvidas quanto a veracidade de que o


desenvolvimento nacional e a projeção global de um país se entrelaçam e se
fortalecem mutuamente – e a trajetória da China é emblemática dessa sinergia.
O projeto Made in China 2025 é causa e consequência desse processo, cujas
origens remontam à reconstrução nacional iniciada em 1949, dinamizada e
potencializada após as reformas empreendidas nos anos 1970. Se é fato que a 3ª
Revolução Industrial e a assim chamada “indústria 4.0” trarão mudanças
estruturais na produção e no trabalho, estas não se dissociam do
desenvolvimento e poder das nações e, com efeito, de suas políticas públicas
voltadas à produção de riqueza (complexa e tangível). Consequentemente, o
maior poder geoeconômico da China torna imperativa uma maior assertividade
geopolítica, tensionando as estruturas hegemônicas de poder lideradas pelos
Estados Unidos.

É, sem sombra de dúvidas, dessa resultante que surgirão as novas configurações


de poder internacionais, a serem estruturadas a partir de rupturas com maior
ou menor escala de violência, a depender dos rumos que suas dinâmicas
assumirem.

Observação: abaixo consta o artigo acadêmico no qual aprofundamos o


debate sobre o Made in China 2025 e, com efeito, todas as suas referências.

PAUTASSO, Diego.“Desenvolvimento e poder global da China: a política Made


in China 2025”. Austral: Brazilian Journal of Strategy & International
Relations, v. 18, p. 183-198, 2019.

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