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A estratégia da guerra cultural

usada por Trump para distrair


o povo perante a crise falhou
POR
MEAGAN DAY
TRADUÇÃO
GIULIANA ALMADA

Se Joe Biden conseguiu se sair vitorioso, apesar da falta


de brilho de sua campanha, é porque o eleitorado sentiu
a necessidade urgente de um presidente que se
concentrasse na crise do coronavírus, em vez de se
queixar de bichos-papões culturais. A maioria das
pessoas se preocupa mais com suas condições materiais
do que com fantasias reacionárias.

Apresidência de Donald Trump foi abreviada para apenas um mandato. Os


próximos meses serão destinados à definição do trumpismo e à interpretação
da rejeição estadunidense a ele.

Diversas teorias serão publicadas, mas pode-se antecipar que a vitória de Joe
Biden sugere a recuperação do centrismo político, o qual tem sido desafiado
por forasteiros políticos de todos os tipos durante a última década. A janela
para alternativas experimentais à política consagrada pelo establishment —
representada, para muitos moderados, tanto por Trump como por Bernie
Sanders, independentemente das políticas diametralmente opostas de direita e
esquerda — será declarada ultrapassada.

A simplicidade dessa explicação é atraente, e especialmente sedutora para os


interessados na restauração da confiança popular na elite política existente,
mas ela não reflete com precisão a natureza da política. Biden, como
representante do establishment, contra Trump, como o penetra, é um
retrocesso em relação às últimas eleições, quando Trump era um magnata do
setor imobiliário e estrela de reality show sem experiência política, e não o
presidente em exercício durante uma série de crises intermináveis.

Esta eleição foi diferente. Foi sobretudo um referendo sobre em qual ameaça o
povo estadunidense prefere que seus líderes se concentrem: no coronavírus e
sua catástrofe econômica, ou numa série de bichos-papões de esquerda. Em
outras palavras, foi mais uma disputa entre atrações principais e espetáculos
secundários do que entre políticos de dentro e fora do sistema. A campanha
politicamente vazia de Biden certamente não fez jus às atrações principais,
mas quando os eleitores estadunidenses o escolheram, por apenas uma fração
dos votos, escolheram um líder que pelo menos pareceu se preocupar com fim
da pandemia em vez de, digamos, na suposta ameaça que os antifas
representam.

A realidade nos EUA é extremamente sombria, então a principal estratégia de


campanha de Trump foi tentar desviar dela. Em especial, ele procurou agitar
sua base frente a ameaças fabricadas, alegando que as cidades administradas
por democratas estavam cheias de anarquistas e saqueadores; a cultura de
cancelamento praticado por “pessoas más”; e a imaginária fraude
eleitoral generalizada, tudo isso enquanto enaltecia elementos marginais de sua
coalizão como os Proud Boys, QAnon e o movimento milicianos de direita. A
estratégia de Biden, por outro lado, foi a de manter a calma, tornar as coisas
simples e vagas e absorver passivamente o apoio de qualquer pessoa que
estivesse mais preocupada com a pandemia do coronavírus e a recessão
econômica do que o melodrama da guerra cultural de Trump.

https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1270333484528214018
[TWEET: O manifestante empurrado pela Polícia em Buffalo, pode ser um
provocador ANTIFA. Martin Gugino, 75 anos, foi empurrado após parecer
sondar as comunicações da polícia com a intenção de apagar seu
equipamento.  @OANN eu vi, ele caiu com mais força do que foi empurrado.
Ele queria o rastreador. Será uma armadilha?]
Em muitas questões, do clima à saúde, as promessas ambiciosas de Biden em
relação à crise e à recuperação econômica não foram muito específicas e, por
sua vez, as promessas específicas feitas por ele também não foram muito
ambiciosas. Mas Biden pelo menos reconheceu a gravidade da situação
estadunidense, na qual 230.000 pessoas morreram, 12 milhões perderam
o seguro de saúde patronal, oito milhões foram empurrados para a pobreza e assim
por diante. Esse reconhecimento parece ter sido suficiente para distingui-lo de
Trump, o qual rotineiramente desvaloriza tanto a saúde pública quanto as
dimensões econômicas da atual catástrofe.

O aparente descaso de Trump pela gravidade da pandemia afastou muitas


pessoas, incluindo elementos de sua própria base. Veja o exemplo dos idosos
do Arizona, um grupo demográfico crucial nesta corrida. Em 2016, Trump
conquistou eleitores do Arizona com mais de 65 anos por 13%, um nível que
ele não chegou perto de alcançar desta vez.

Por que a reversão? Um perfil de eleitores no condado de Maricopa, que vivia


em uma comunidade de aposentados fora de Phoenix, era caracterizado pela
defesa constante de Trump. Eles se preocupavam com os protestos distantes
do movimento Black Lives Matter e com a necessidade de restaurar a “lei e a
ordem”, apesar de sua cidade ter entrado na lista das quinze mais seguras dos
EUA. Outro perfil de idosos do Arizona incluía um homem que votou no
Partido Republicano a vida toda, mas que estava mudando para Biden porque
Trump “não aceita a responsabilidade” pela pandemia do coronavírus e “não
fala sobre a vulnerabilidade das pessoas em nossa idade, 65 e mais velhos,
embora ele faça parte desse grupo.”

Todas as evidências apontam que aqueles que abandonaram Trump estavam


preocupados com coisas que os ameaçavam concretamente, enquanto os
resistentes no apoio a Trump estavam preocupados com a imagem
fantasmagórica do apocalipse retratada pelo presidente em sua campanha. Em
outras palavras, aqueles que insistiram em Trump estavam teimosamente
apegados a uma fantasia, enquanto aqueles que o abandonaram foram atraídos
pela realidade.

Há uma lição importante aqui, e não é a de que o caminho para a vitória


eleitoral passa pelo centrismo. A lição é que, quando o bicho pega, as pessoas
se preocupam mais com suas condições materiais do que com o conflito
cultural contra oponentes imaginários.

Os estadunidenses são cada vez mais reféns de extensos enredos partidários,


convolutos e em constante mudança —
tanto conservadores quanto progressistas — que colonizam suas mentes e
alimentam um intenso tribalismo político que desabilita todos os outros modos
de raciocínio. Trump acreditava que esse tipo de política com bomba de
fumaça cultural seria sempre mais forte do que a vontade de, por exemplo,
não morrer de um vírus mortal ou declarar falência após meses de desemprego
sem qualquer assistência. Sim, a margem foi apertada, e claramente muitas
pessoas ainda caíram na conversa de Trump, mas, no final, a estratégia de
Trump estava errado.

A crise aumentou a atenção das pessoas para a incerteza sobre seu próprio
bem-estar. Biden fez o mínimo necessário para tirar proveito disso. Ele
previsivelmente se recusou, por exemplo, a incluir uma ampla expansão do
seguro de saúde pública em sua campanha, mesmo durante uma crise de saúde
pública e quando uma super maioria da nação a apoia. Mas não seria correto
sugerir que os democratas não demonizaram histericamente seus oponentes;
como sempre, havia paranoia e “vilanização” para todos os lados. Mas o que
importou, no fim das contas, foi o fato de a pandemia ter sido a preocupação
de Biden. Os eleitores associaram ele, e não Trump, à atenção à crise atual.

Isso deve encorajar, de alguma forma, a desmoralizada esquerda


estadunidense. Afinal, o nosso programa consiste em garantir bons cuidados
de saúde, habitação, educação, infraestrutura e emprego para todos. Embora
não tivéssemos um candidato na disputa desta semana, devemos interpretar o
resultado como um pequeno contrabando da afirmação da premissa básica que
orienta nossa abordagem política: que, embora as pessoas comuns tenham
todos os tipos de ideias perversas e atitudes reacionárias, recorrer diretamente
a necessidades de uma vida decente têm o poder, ocasionalmente, de afastar as
ilusões.
Ora, imagine só os tipos de margens que teríamos se o oponente de Trump
tivesse feito sua campanha em uma plataforma realmente ambiciosa e que
conectasse a política diretamente às condições materiais das pessoas!
Independentemente do que mais tal campanha pudesse lograr, ela ajudaria a
tirar milhões de pessoas da névoa da hipnose política lastreada na pós-
verdade. Para a esquerda, esse é o primeiro passo para a vitória.

Sobre os autores

MEAGAN DAY

faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.

Sob Trump, a “presidência


imperial” colocou os EUA à
beira da guerra
POR

BRANKO MARCETIC
TRADUÇÃO
GIULIANA ALMADA

Há 1 ano, Trump tentou arrastar os EUA para uma guerra


com o Irã. Ele não obteve sucesso, mas a política
imperialista que tantos democratas ajudaram a construir
seguirá oferecendo riscos senão houver um abandono
completo dessa política internacional.

Oassassinato de Qassem Soleimani, no início do ano passado, uma escalada


ilegal e imprudente das tensões entre EUA e Irã que o presidente Trump
impulsionou deliberadamente ao longo de seu mandato, é um pouco como a
vitória de Trump em 2016: nada do que aconteceu deveria nos surpreender,
mas o resultado foi tão alarmante que é difícil não se sentir abalado.

Como especialistas já apontaram, o assassinato de Soleimani tinha o potencial de


desencadear algo muito perigoso. Soleimani era uma das figuras militares
mais poderosas do país, o chefe de sua Força Quds de elite, que
essencialmente dirigia a força militar e a política externa iraniana na região.
Um herói de guerra rotulado pelo Supremo Líder do Irã, como “mártir vivo da
revolução”, era uma figura extremamente popular que foi alvo de uma
romantização da propaganda estatal e que possivelmente tinha uma futura
liderança política à vista.

Havia uma alta probabilidade, portanto, de que sua morte provocasse


represálias contra, por exemplo, as numerosas bases, embaixadas e tropas dos
EUA ao redor do Irã, muitas destas implantadas entre as tentativas de Trump de
incitar um conflito com o Irã para valer no ano passado. Essas represálias
provocariam, em resposta, suas próprias represálias por parte de Trump, talvez
até servindo como o pretexto para a guerra que o presidente estadunidense
tanto procurava. Durante todo o ano de 2019 o governo estadunidense parece
ter tentado incitar o Irã a fazer algo, qualquer coisa, que pudesse justificar um
ataque ao país; o assassinato de Soleimani foi o ponto culminante nesse
processo. Não é à toa que já em 2018 um especialista designou a possibilidade
de assassinato de Soleimani como “um verdadeiro ato de guerra”. Se essa
escalada de represálias não explodiu, não foi pelas atitudes do governo
estadunidense, mas pelo cálculo estratégico iraniano.

Obviamente, uma guerra com o Irã representaria mais uma calamidade


amplamente orquestrada pelos EUA para o Oriente Médio adicionar à essa
lista sempre crescente. A lição deveria ter sido aprendida nos anos 2000 com o
Iraque. Longe de uma guerra rápida e fácil de não mais de cinco meses —
como previra o secretário de Defesa de George Bush — o Iraque tornou-se
rapidamente a “longa, longa, longa batalha” que eles negaram que seria.
Os militares não apenas falharam em estabilizar o Iraque diante do vácuo de
poder que se seguiu, mas enfrentaram uma insurgência prolongada
desencadearam uma torrente de sectarismo violento e, eventualmente, uma
guerra civil; ajudaram a produzir o surgimento de uma organização terrorista
ainda mais cruel na forma do ISIS; e, na mais sombria das ironias, abriram a
porta para a intromissão iraniana no país — especificamente, pelo próprio
Soleimani. As condições criadas por uma guerra tola contra o Irã sem dúvida
criariam o mesmo tipo de pretexto para uma guerra contra outros Estados no
futuro.

A elite estadunidense naturalmente não aprendeu nada com tudo isso,


lançando outra guerra míope para depor o ditador líbio Muammar Gaddafi em
2011, com consequências igualmente desastrosas e desestabilizadoras,
que continuam turbulentas ainda hoje. Os resultados não foram mais bonitos no
Afeganistão, onde os Estados Unidos depuseram o regime do Talibã, apenas
para substituí-lo por um governo de sua própria criação, infundido pela
corrupção, e permanecendo presos no país por duas décadas em uma batalha
aparentemente interminável. Todas as três guerras também foram tóxicas para
a posição global dos EUA, alimentando a raiva que sustenta a violência anti-
estadunidense.

Uma guerra com o Irã não seria diferente, nem produziria o tipo de vitória
rápida e temporária nas relações públicas que a mudança de regime
proporcionou a Obama e Bush em suas guerras.
Como vários especialistas destacaram, o Irã é um país de massa física e
populacional cuja geografia física imponente torna, nas palavras da empresa de
inteligência Stratfor, uma “fortaleza” que “é extremamente difícil de se
conquistar”. Ao mesmo tempo, o país pode revidar aos EUA por meio
de proxies regionais ou ataques cibernéticos por todo o mundo. Se as últimas
duas décadas serviram para qualquer coisa, foi como um horrível lembrete dos
limites profundos do poderio militar estadunidense.

Infelizmente, a realidade tem pouco a ver com a política externa de


Washington.
Acabar com a Lista da Morte
Não é apenas pela situação preocupante em que o mundo foi colocado naquele
momento que o assassinato de Soleimani é significativo, mas pelo que isso diz
sobre a classe dominante estadunidense.

A causa imediata de tudo isso foi, obviamente, o homem volátil, cercado de


escândalos e profundamente inseguro eleito para a Casa Branca em 2016. No
entanto, as instituições democráticas e, de fato, a Constituição dos EUA
especificamente, existem para servir como um controle contra inaptos e até
líderes tirânicos. Muitos liberais de destaque, do senador do estado de
Connecticut Chris Murphy, a Ben Rhodes, ex-assessor de política externa de
Obama e Tommy Vietor, ex-porta-voz do Conselho de Segurança Nacional de
Obama, questionaram, com razão, qual era a base legal para Trump lançar tal
ataque, visto que a Constituição estadunidense explicitamente concede o
poder de guerra ao Congresso.

A resposta é: a mesma base jurídica frágil que essas figuras que agora
proclamam clamorosamente seu choque e horror apoiam quando os seus
chapas estão na Casa Branca.

Barack Obama foi eleito em 2008 prometendo uma ruptura com a política
externa de Bush, após uma onda de eleições de meio de mandato em que os
republicanos perderam o controle de ambas as casas do Congresso em uma
onda de repulsa a Bush. Porém, uma vez no cargo, em vez de cumprir essa
demanda popular, Obama expandiu o projeto de presidência imperial que
Bush perseguira de maneira radical. Talvez o ponto principal nisso tenha sido a
ampliação do programa de assassinatos por drones, estendendo-o a vários
países (sem autorização do Congresso, naturalmente) e o institucionalizando
na forma de reuniões semanais na Casa Branca, nas quais o presidente e seus
consultores examinavam casualmente um “lista da morte” de suspeitos de
terrorismo e escolhiam qual deles deveria morrer em um ataque aéreo
robótico.
Na época, comentaristas tanto de esquerda e quanto de direita apontavam que,
mesmo que você confiasse na capacidade do próprio Obama de supervisionar
esse programa de assassinatos de maneira responsável e humana (uma
contradição tanto na teoria quanto na prática), em um sistema democrático em
que líderes e administrações mudam regularmente, e às vezes drasticamente,
esses poderes extraordinários podem cair nas mãos de alguém muito diferente
— por exemplo, de um paranóico provocador de guerras do tipo Richard
Nixon.

Os críticos foram ignorados. De fato, tipos como Rhodes e Vietor defenderam


veementemente o programa de drones. Até Murphy comemorou o assassinato
sem drone de Osama bin Laden, porque “os americanos podem dormir melhor
sabendo que um homem verdadeiramente mau não caminha mais sobre esta
Terra”. Embaraçosamente, mesmo uma grande maioria de liberais e
progressistas comuns se declaravam fãs dos drones quando Obama estava no
comando.

E então, como se cerca de oito anos de advertências civis libertárias


assumissem uma forma física, Donald Trump se tornou presidente. Assim, em
eventos como o assassinato de Soleimani, não se trata apenas das atitudes de
um palhaço racista que adentrara o escritório mais poderoso do mundo por
meio de uma campanha de mentiras. Estamos lidando com um sistema
assustadoramente autoritário criado e posto em prática por
um establishment liberal complacente e sem visão, que continuamente e
alegremente entregava ao homem que até poucos meses atrás eles chamavam
regularmente de “ditador em espera” maiores poderes de vigilância e orçamentos
militares obscenos.

Graças aos cálculos estratégicos das partes iranianas, o assassinato de


Soleimani acabou não se revelando a catástrofe completa que tinha o potencial
de ser. Todavia, dada a natureza opaca, destrutiva e antidemocrática do
programa de drones criado em grande parte sob Obama, outros incidentes
como esse são apenas uma questão de tempo. Se os custos humanos de tirar o
fôlego do programa de drones não são o suficiente, o assassinato de Soleimani
deveria ter servido de alerta para todos os democratas e liberais que
diminuíram os críticos progressistas à política externa de Obama ou que
consideraram esse assunto uma mera distração por oito anos. O Estado de
segurança nacional estadunidense precisa ser freado.

Sobre os autores

BRANKO MARCETIC

é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.

As utopias radicais de Ursula


Le Guin continuam ressoando
POR
NICK HUBBLE
TRADUÇÃO
EVERTON LOURENÇO

Ursula K. Le Guin, nascida neste dia em 1929, usava a


ficção científica para explorar as falhas da sociedade
capitalista - e os mundos alternativos que poderíamos
construir em seu lugar.
Ursula K. Le Guin

“Vocês não podem comprar a revolução, não podem fazer a revolução. Vocês
só podem ser a revolução.” Este é o cerne da mensagem que o anarquista
Shevek proclama para uma manifestação em massa de trabalhadores
sindicalistas e socialistas reunidos na Praça do Capitólio na cidade de Nio
Esseia no planeta de Urras no clássico romance utópico publicado por Ursula
le Guin em 1974, Os despossuídos.

Na minha opinião, em vez de tentar desvendar a mistura de anarquismo,


taoísmo e feminismo que permeia a visão de mundo de Le Guin, é melhor
começar com esta passagem endereçada diretamente ao leitor se quisermos
pensar sobre a relevância contínua de Le Guin para os socialistas. A ênfase
aqui não é apenas na responsabilidade moral pessoal, embora essa seja uma
característica constante da filosofia de Le Guin, mas na necessidade
imperativa de integrar valores individuais e coletivos, recusando binariedades
e hierarquias de pensamento fáceis.

Longe de ser uma celebração do mundo natal anarquista de Shevek,


Anarres, Os despossuídos representa aquilo que o crítico Tom Moylan
chamou de uma “utopia crítica”, explorando as possibilidades e as limitações
de tal sociedade. Uma das maneiras pelas quais o romance é capaz de
expandir seu quadro de referência além de uma investigação interna de um
possível modelo de sociedade anarquista é por meio do enredo paralelo da
viagem de Shevek a Urras.

Quando Shevek pergunta aos socialistas de Nio Esseia o que Anarres (que eles
vêem como sua “lua”) significa para eles, eles respondem que toda vez que
olham para o céu noturno, eles são lembrados de que existe uma sociedade
sem governo, sem polícia, e sem nenhuma exploração econômica e que ela
não pode ser descartada como uma mera fantasia utópica. Em outras palavras,
tanto Shevek quanto os leitores de Le Guin percebem que a política não gira
apenas em torno da adoção de práticas corretas, mas também depende de
significados simbólicos para os outros.

Le Guin teve uma longa carreira e toda a sua obra vale a leitura, mas os livros
que cimentaram sua reputação foram escritos entre o final dos anos 1960 e
meados dos anos 1970, durante um período de ansiedade da Guerra Fria e de
aguda crise social e cultural nas sociedades ocidentais. Dentro desses
contextos, romances como Os despossuídos e A mão esquerda da
escuridão (1969) ganharam reconhecimento imediato pela clareza da visão
pela qual diagnosticavam os males da época e ofereciam visões de valores e
sociedades alternativos que pareciam alcançáveis através do trabalho duro e
de um auto-exame convicto. Os romances foram rapidamente estabelecidos
como clássicos do gênero, mas essa não é necessariamente uma vantagem a
partir da perspectiva de hoje.
Em sua introdução a uma reedição recente de A mão esquerda da escuridão,
China Miéville observa que “os livros mais azarados são aqueles que são
ignorados ou esquecidos. Mas guarde um pensamento também para aqueles
fadados a se tornarem clássicos. Um clássico é muitas vezes um volume que
todos pensam que conhecem.” Existe algum desincentivo maior para se ler um
livro do que o conhecimento de que ele é visto como uma obra valiosa e
inovadora, importante para a sua época? Para Miéville, a desfamiliarização do
gênero realizada no romance o torna inquestionavelmente um precursor das
teorias e movimentos queer de gênero e fluidez sexual do nosso presente no
século XXI, mas isso ainda deixa em aberto o pensamento de que poderia ser
melhor ler livros mais recentes.

De qualquer maneira, como ele reconhece, A mão esquerda da escuridão nem


sempre foi visto sob uma luz tão radical. O uso universal que Le Guin faz de
pronomes masculinos para denotar uma sociedade sem uma divisão sexual
permanente e, portanto, sem uma divisão de gênero, levou Joanna Russ, entre
outros, a criticar o romance por na prática conter apenas homens. Por muitos
anos, persistiu a ideia de que os romances de Le Guin eram sinceros e bem-
intencionados, mas não estariam na vanguarda radical do campo.

Uma maneira de desafiar essa percepção residual de Le Guin como escritora


de clássicos valiosos, mas embotados, é considerar um romance menos
célebre escrito no mesmo período, A curva do sonho (1971). Em vez da
abordagem comedida e repleta de nuances pela qual ela é geralmente
conhecida, este livro é estruturado no estilo excêntrico e irrestrito de Philip K.
Dick como um passeio selvagem por uma sequência de realidades em colapso.

O protagonista do romance, que atende pelo ressonante nome George Orr, tem
sonhos indesejados que mudam a realidade. Seu psiquiatra, Haber, ao invés de
tentar curá-lo, busca usar esse poder indiretamente para transformar o mundo
para o benefício da humanidade. Claro, toda tentativa de transformação para o
bem é sempre acompanhada por alguma consequência monstruosa inesperada.
[Os próximos 3 parágrafos apresentam detalhes do enredo que podem ser
vistos como spoilers de A curva do sonho]

Por exemplo, ao tentar resolver o problema de superpopulação, Haber instrui


Orr a sonhar com um mundo cheio de espaço por onde se mover – e então este
sonha com uma pandemia e acorda para descobrir que “reduziu” a população
mundial em seis bilhões de vidas. Como Haber começa a perceber, Orr só
consegue sonhar com “conceitos utópicos baratos, ou talvez conceitos anti-
utópicos carregados de cinismo”.

Por um lado, é uma piada às custas do homônimo de Orr, George Orwell: em


uma das muitas histórias alternativas do livro, a Constituição dos EUA é
reescrita em 1984 para formar um estado policial. No entanto, também há algo
de valioso na resistência de Orr à vontade de poder de Haber. Quando este
último exige a paz mundial, Orr sonha que alienígenas pousaram na lua,
fazendo com que os povos da Terra se unam em oposição. Então, quando
ordenado a sonhar que os alienígenas deixaram a lua, Orr sonha que eles
invadem a Terra.

Os alienígenas telepatas ensinam a Orr que “tudo sonha”, até as pedras, e que,
portanto, a única maneira de viver em harmonia com o que de outra forma
seria o caos é sintonizar-se conscientemente com o todo. O romance termina
com uma resolução digna de Philip K. Dick, na qual Orr, não mais
atormentado pelos seus sonhos efetivos, agora está feliz trabalhando com o
projeto de utensílios de cozinha alienígena. É difícil não ver esse final como
uma brincadeira com a ideia de “trabalho alienado”: seria uma espécie de
“negação da negação” se o trabalho fosse conduzido para benefício mútuo
com alienígenas com os quais o trabalhador estivesse telepaticamente
sintonizado.

A curva do sonho ilustra a importância de pensar sobre livros esteticamente,


tanto quanto  julgá-los ideologicamente. Como observou o crítico Fredric
Jameson, o romance pode ser lido como uma expressão da ansiedade liberal
em face da transformação revolucionária, mas, esteticamente, está preocupado
com seu próprio processo de produção.
As tentativas mal sucedidas de Orr em sonhar com a Utopia refletem as
tentativas de Le Guin de escrever a Utopia; um processo que é, dessa maneira,
reconhecido como sendo impossível. Ainda assim, na própria maneira como o
romance explora as contradições em se tentar produzir uma Utopia, a narrativa
é escrita – e, de alguma forma, uma versão da Utopia acaba sendo produzida.

Embora nem Os despossuídos nem A mão esquerda da escuridão sejam


simplesmente sátiras divertidas, compará-los com A curva do sonho abre
algumas possibilidades para se pensar neles como mais do que apenas
clássicos do seu tempo. Por exemplo, podemos enxergar a aparente
incongruência no uso universal de pronomes masculinos em A mão esquerda
da escuridão como uma exposição deliberada da impossibilidade de se narrar
o gênero fora da estrutura binária à qual nossa linguagem frequentemente nos
limita.

De maneira semelhante, Os despossuídos especificamente coloca em primeiro


plano a impossibilidade temporal de se pensar o futuro no interior da
mentalidade do presente. Em outro momento-chave de discurso em segunda
pessoa falando diretamente ao leitor, Shevek diz ao embaixador terráqueo em
Urras: “Você não compreende o que é o tempo”.

O que experimentamos como o presente não é real ou estável: é o produto de


uma mudança constante. Somente a realidade do passado e do futuro, mantida
na memória e nas intenções humanas, torna o presente real. A ficção de Le
Guin não só simboliza a possibilidade de mudanças para os leitores
socialistas, portanto: ela também fornece uma ideia do próprio grau de
trabalho mental necessário para compreendermos a diferença radical que seria
acarretada por essas mudanças.

Sobre os autores

NICK HUBBLE

é professor de inglês moderno e contemporâneo na Brunel University. Seu


último trabalho, Growing Old with the Welfare State, foi publicado pela
Bloomsbury.
Os trabalhadores estão se
reorganizando para enfrentar a
crise pós-pandemia
POR

SOFIA SCHURIG

Mês passado um fenômeno de mobilizações trabalhistas


cruzou o oceano pacifico. Na Coreia do Sul, meio milhão
de trabalhadores deixaram seus empregos em uma greve
geral, enquanto uma onda de greves varria os EUA no
Striketober demandando melhores salários e saúde
gratuita para todos.

Do oriente ao ocidente: os Estados Unidos e a Coreia do Sul estão passando


por enormes greves gerais, e você, trabalhador brasileiro, pode estar
precisando de histórias de inspiração para passar por este momento sombrio
de imobilismo social em que vivemos. Funcionários de diversos setores — de
cinema, até terceiro setor — estão lutando por seus direitos.

As consequências da crise cíclica do sistema capitalista afetaram os


trabalhadores durante a pandemia mais do que nunca — lembre-se que, pelo
menos no Brasil, a maior parte dos “empreendedores” também são parte da
classe trabalhadora. Mais de 700 mil negócios fechados, incluindo
estabelecimentos históricos, piores condições de trabalho por conta da
quarentena, diminuição nos salários. Tudo piorou. Em meio a isso, a  maior
greve-geral da história ocorreu: em novembro do ano passado, mais de 250
milhões de trabalhadores se uniram, apoiados por sindicatos e pelo Partido
Comunista da Índia.

Este ano, milhares entraram em greve na Grécia em junho contra os planos do


governo de reformar as leis trabalhistas que colocaram a conta da crise nas
costas dos trabalhadores, ao fazerem com que eles trabalhassem mais, por
menos. Os maiores sindicatos dos setores público e privado da Grécia
realizaram uma greve de um dia que paralisou o transporte público e manteve
as balsas atracadas nos portos. E agora, temos outros dois enormes
movimentos: o Striketober, algo como outubro grevista, nos Estados Unidos, e
uma greve geral massiva na Coreia do Sul.

Striketober: salário, assédio e saúde


gratuita para todos
Éoficialmente Striketober nos Estados Unidos. Equipes de TV e cinema de
Hollywood, trabalhadores da fabricante de máquinas agrícolas John Deere,
mineiros de carvão do Alabama, trabalhadores da empresa fabricante de
biscoitos Nabisco, trabalhadores da Kellogg, enfermeiras na Califórnia,
trabalhadores da saúde em Buffalo. Após um ano e meio de pandemia, a
demanda por todos os tipos de bens e serviços caíram.

A escala da mobilização no setor industrial é notável. Dez mil trabalhadores


da John Deere entraram em greve, mil e quatrocentos trabalhadores da
Kellogg saíram, bem como uma greve ameaçada por mais de trinta mil
trabalhadores da Kaiser Permanente, todos inflamados por uma profunda
desconexão entre trabalho e gestão.

Muitos trabalhadores da linha de frente — após trabalhar tanto e arriscar suas


vidas durante a pandemia — dizem que merecem aumentos substanciais: 

Não estamos pedindo para ser milionários, estamos pedindo salários justos,
uma pensão e assistência médica pós-aposentadoria.

Com isso em mente e com uma miríade de empregadores reclamando de uma


suposta escassez de mão de obra, muitos trabalhadores acreditam ser um
momento oportuno para exigir mais e entrar em greve. A escassez de
trabalhadores é questionável. Em um artigo para o jornal britânico The
Guardian, o ex-secretário do Trabalho, Robert Reich, argumenta que não há
falta de mão de obra, mas de condições dignas de trabalho. É necessário
relembrar que diversos direitos que temos no Brasil — tratados como
“regalias” pelas nossas elites e alguns parlamentares — não existem nos
Estados Unidos, como um sistema de saúde universal. Uma das reivindicações
da greve geral consiste na criação de alguma assistência médica para
funcionários que se machucam ou ficam doentes no ambiente de trabalho.

Cap
tura de tela do “Labor Action Tracker”, criado pela Universidade de
Cornell. Por conta de uma disputa entre o número de greves
contabilizado pelo governo e o número dito por trabalhadores, a
universidade criou um site onde sindicatos e movimentos podem
registrar, mostrando quantas greves existem atualmente no país.

Como aponta Reich, “o que está acontecendo é descrito com mais precisão
como falta de salário mínimo, falta de subsídio de risco, falta de creche, falta
de licença médica remunerada e falta de saúde”. 

“A menos que essa falta seja corrigida, muitos americanos não vão voltar para
trabalhar em breve”, conclui o autor.
Sindicalize-se
Ao falarmos da classe de trabalhadores que não teve oportunidade de trabalhar
em casa durante a quarentena, mas também não recebeu aumentos ou uma
maior segurança no ambiente de trabalho, é necessário falar do setor de
serviços. Trabalhadores da rede McDonald’s estão organizando uma
paralisação contra o assédio sexual contínuo de funcionários e uma campanha
para que os trabalhadores da rede se sindicalizem.

Funcionários em pelo menos dez cidades pretendem fazer greve em resposta


ao alegado estupro de um trabalhador do McDonald’s de quatroze anos em
Pittsburgh por seu gerente, e outras acusacoes de assédio em franquias da
empresa. Em abril, a empresa anunciou novas diretrizes globais focadas em
várias áreas, incluindo a prevenção de assédio, discriminação, retaliação e
violência no local de trabalho. A partir de janeiro do ano que vem, os
restaurantes dos Estados Unidos serão avaliados com base na realização dos
treinamentos necessários sobre essas questões, na definição de procedimentos
para que os trabalhadores façam reclamações e em outras medidas.

Jamelia Fairley é uma funcionária da rede e é a principal demandante em uma


ação coletiva que alega que a empresa criou um ambiente de trabalho hostil
que permite o assédio sexual e viola direitos civis. “Eu acredito que estamos
em um momento em que os trabalhadores estão defendendo mais seus
direitos”, disse Fairley em uma entrevista na semana passada. Ela também
afirma que conheceu outros colegas que passaram por assédio sexual, e que a
formação de um sindicato impedirá que isso ocorra.

O momento para os trabalhadores norte-americanos é mais oportuno que


nunca: uma pesquisa mostra que cerca de 68% da população atual dos Estados
Unidos apoia greves-gerais e sindicatos, o maior número em décadas.
Também é o maior número entre todas as demografias, mostrando que até
republicanos estão apoiando movimentos trabalhistas.
Meio milhão de trabalhadores sul-
coreanos abandonam empregos
Em fevereiro de 1996, o apoio popular ao governo sul-coreano estava caindo
rapidamente após uma série de incidentes. Então, o governo de Kim Young-
sam decidiu alterar a legislação trabalhista como uma “carta de conversão”.
Até o momento, as expectativas da população eram altas com o anúncio do
governo de que mudaria o paradigma das relações de trabalho. No entanto,
quando a emenda foi anunciada pela primeira vez, chocou os trabalhadores.

Haviam emendas como a abolição da proibição sindical e um projeto de lei


permitindo funcionários públicos e professores de terem direitos trabalhistas,
mas algo que causou comoção entre todos os trabalhadores: esta nova Lei do
Trabalho tornaria mais fácil e legal para as empresas demitir trabalhadores,
aumentaria a jornada legal de trabalho em doze horas e permitiria que as
empresas proibissem o pagamento durante greves. Após isso, sindicatos sul-
coreanos organizaram uma das maiores greves da história do país. Tudo
começou em janeiro, com uma passeata de cem mil trabalhadores de
montadoras, trabalhadores do metrô de Seoul, capital do país, funcionários
dos dez maiores hospitais da capital e milhares de outras categorias.

Em vinte de outubro deste ano, pelo menos meio milhão de trabalhadores sul-
coreanos deixaram seus empregos em uma greve geral. Os setores da
construção, serviços e transportes foram somente alguns dos diversos setores
paralisados. A greve está sendo organizada pelo maior sindicato do país, a
Confederação Coreana de Sindicatos, com mais de um milhão de membros, e
está se alastrando pelos centros urbanos e rurais com a ambição de organizar
toda a população para janeiro.

As quinze detalhadas demandas dos grevistas podem ser resumidas a três


áreas específicas. 1) Abolir o “trabalho irregular” — meio período, trabalho
temporário ou contratado com poucos, ou nenhum benefício — e estender a
proteção do trabalho a todos os trabalhadores; 2) Dar aos trabalhadores poder
nas decisões de reestruturação econômica em tempos de crise; e 3)
Nacionalizar as indústrias-chave e socializar os serviços básicos, como
educação e habitação.

A Coreia do Sul é um dos países mais desiguais do mundo, além de ter


péssimas condições de trabalho — ambos fatores são questionados pelos
manifestantes. Por exemplo, mais de 40% de todos os trabalhadores sul-
coreanos estão em trabalhos “irregulares”, grande parte em aplicativos dos
gigantes da tecnologia e do setor de serviços. Além de ter o terceiro lugar em
horas de trabalho e em mortes no ambiente de trabalho, a economia do país é
dominada por conglomerados corporativos, conhecidos como chaebol. 10%
dos mais ricos do país possuem mais de 40% da renda total.

As explorações trabalhistas estão nos setores privados e públicos. No setor de


tecnologia, uma das áreas econômicas mais fortes do país, existem diversas
histórias de exploração. No início deste ano, a equipe de limpeza da LG
acampou do lado de fora do arranha-céu da empresa por cento e trinta e seis
dias durante os meses mais frios do inverno para protestar contra demissões
em massa e as péssimas condições de trabalho — e a empresa contratou
indivíduos para despejar água nas tendas dos trabalhadores enquanto eles
dormiam. Já os mineiros de carvão da Korea Coal, empresa estatal de
mineração de carvão, estão sofrendo diversos problemas de saúde por respirar
poeira de carvão e excesso de trabalho em condições extremas.

O meio milhão de trabalhadores sul-coreanos que estão abandonando seus


empregos exigem a abolição de todas as formas de trabalho “irregular”. Eles
também exigem o fim das lacunas nas leis trabalhistas que permitem que os
empregadores enganem seus empregados quanto aos direitos básicos, como o
direito de organização, acesso a benefícios e compensação por acidentes de
trabalho. Os grevistas também afirmam que, diante a pandemia, as
consequências climáticas e de um esforço do governo sul-coreano para
construir uma economia “digital”, é necessário que trabalhadores participem
de decisões de reestruturação econômica. Eles não estão apenas exigindo que
o governo faça mudanças para eles, eles estão lutando por mais poder para
determinar essas mudanças.
Outra demanda, surpreendente para muitos do ocidente que desconhecem a
força do movimento trabalhista no país, é a nacionalização de setores que vem
dispensando trabalhadores em massa- entre eles, setores de aviação civil,
fabricação de automóveis e construção naval.

Reação ao neoliberalismo
Isso vem após décadas de políticas econômicas de austeridade. Durante a
ditadura de Chun Doo-hwan na década de 80, reformas neoliberais abriram o
mercado do país e recursos para investidores estrangeiros — e tudo estava
bem, até a crise financeira de 97. Com a falência financeira, o país foi forçado
a pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O empréstimo veio,
mas com restrições: as políticas de ajuste fiscal e estrutural desmantelaram as
proteções aos trabalhadores, empresas públicas foram privatizadas e mercados
domésticos foram abertos para o capital estrangeiro. Em 2004, mais de 40%
da capitalização total do mercado de ações sul-coreano pertencia a
estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos, União Europeia e Japão.

Lee Jeong-hee, diretor de políticas da Confederação Coreana de Sindicatos


lembra que, constantemente, 

“O governo usa o dinheiro do contribuinte para socorrer empresas com


problemas. Deve desempenhar um papel mais importante para garantir a
justiça e proteger as pessoas comuns.”

As consequências da austeridade fizeram com que a Confederação Coreana de


Sindicatos desafie o Estado a assumir a responsabilidade e garantir moradia,
saúde, assistência social e educação para todos. As demandas da organização
por reformas sociais incluem o aumento de unidades habitacionais públicas de
5% para 50% de todas as moradias disponíveis no país. Além disso, os
grevistas também querem que aulas pré-vestibular sejam gratuitas para todos,
e que o Estado contrate pelo menos um milhão de cuidadores para garantir
assistência social gratuita aos idosos do país.
Os trabalhadores sul-coreanos lançaram o desafio e todos devemos prestar
muita atenção. Embora a dinâmica em jogo na greve da Confederação
Coreana de Sindicatos seja particular da cultural do país, a situação dos
trabalhadores precários sob o peso do neoliberalismo é uma luta global.
Enquanto as lutas trabalhistas abalam a Coreia e o mundo neste “Striketober”,
surgem oportunidades para construir um movimento global contra as
explorações trabalhistas que se aprofundaram ainda mais nesta pandemia.

Sobre os autores

SOFIA SCHURIG

é editora da revista O Sabia.

A “liberdade” usada em defesa


do discurso antivacina é uma
falácia
POR

ARTHUR CRISTÓVÃO PRADO

Liberais e conservadores têm manejado o argumento em


defesa da "liberdade individual" para justificar a recusa
em tomar vacina. Mas há um enorme perigo, e falta de
embasamento, por trás dessa narrativa que deveria estar
bem claro para todos após uma pandemia ceifar a vida
de mais de 600 mil brasileiros.

Embora não pareçam ter muita expressividade no Brasil, os movimentos


antivacina passaram por uma nova onda de projeção na esfera pública com a
pandemia da Covid-19. Em algumas partes do mundo, inclusive em alguns
países centrais e produtores de tecnologia médica, como nos Estados Unidos,
a questão se tornou ainda mais controversa quando os governos restringiram a
circulação ao trabalho e ao acesso de certos serviços a pessoas que não se
vacinassem – os chamados vaccine mandates, os passaporte de vacinas. 

Entidades privadas e líderes políticos se opuseram a essas regras com base,


sobretudo, em um argumento: obrigar alguém a se vacinar fere a liberdade
individual. Uma pesquisa que coletou material do YouTube em português
sobre o assunto identificou esse argumento na maioria dos vídeos. Esse
argumento faz sentido?

Há vários motivos para que não nos convençamos por ele. Alguns deles são
relativamente bem explorados na esfera pública. O discurso antivacina parte
de um anticientificismo vulgar, que se vale de notícias falsas para gerar um
ceticismo antissistema com consequências nefastas para a saúde pública. Sob
a perspectiva propriamente moral, poderíamos, ainda, questionar se nenhuma
perda de liberdade justifica nenhum bem-estar coletivo, ainda que a perda
individual seja mínima e o ganho de bem-estar seja imenso. 

Deveríamos respeitar o capricho dos sujeitos que se recusam a tomar a vacina,


mesmo que isso significasse um exercício de liberdade, diante dos danos
graves que sua opção seria capaz de provocar não só para eles, mas também
para a comunidade, fomentando o alastramento de um vírus mortal? Para
muitas pessoas, a resposta a essa pergunta é um retumbante não. 

Precisamos analisar o núcleo do argumento da liberdade, aceitando


provisoriamente sua premissa de que liberdades devem ser respeitadas e
separando-o dessas outras questões. Nesse caso, será que é possível defender
um direito apenas porque ele preserva liberdades?

De que liberdade estamos falando?


Delimitar dessa maneira a questão é útil por ao menos dois motivos. Primeiro,
a narrativa da liberdade torna a pauta palatável como parte do discurso liberal.
Quem, afinal, pode ser contra a liberdade? Emplacar a narrativa de que uma
certa bandeira é uma defesa da liberdade funciona como artifício retórico para
tentar equiparar seus opositores a autoritários. Além disso, pode ter o efeito
prático de dificultar represálias institucionais, como o estudo que citei mostra
ser o caso quanto ao controle de conteúdo do YouTube em relação a vídeos
antivacina.

Em segundo lugar, a retórica da liberdade é empregada em muitas outras


pautas além das capitaneadas pelo movimento antivacina. A liberdade de
expressão, por exemplo, que no passado recente foi por vezes
instrumentalizada em defesa de propagadores de discurso de ódio, veio, na
esteira de movimentos autoritários dentro e fora do Brasil, a ser empregada
também para defender ataques golpistas a instituições democráticas.

Esclarecer o que é liberdade nesse sentido político da palavra, adotando,


embora criticamente, a perspectiva dos próprios liberais e libertários, pode,
portanto, trazer clareza sobre um instrumento retórico poderoso. O que é,
então, uma liberdade?

A primeira intuição sobre liberdade para maioria das pessoas provavelmente


passa pela ideia de poder fazer alguma coisa. Mas não “poder” em qualquer
sentido. Não posso, por exemplo, voar, mas essa incapacidade decorre,
digamos, de eu não ter asas, e não de eu não ser livre. Falamos em liberdade
quando não somos impedidos de fazer algo por outras pessoas. É essa a
conceituação, por exemplo, de Isaiah Berlin – um liberal – sobre liberdade
“negativa” (em contraste a liberdade positiva ou política) em seu livro Dois
conceitos de liberdade: 

“normalmente, chamam-se livre na medida em que nenhum homem ou grupo


de homens interfere em minha atividade”. 

É desse tipo de liberdade que falam os movimentos antivacina ou os


defensores da liberdade de expressão irrestrita: a obrigação de se vacinar e a
vedação a certos discursos torna as pessoas menos livres porque, devido à
coação de terceiros, algo que essas pessoas desejam fazer ou deixar de fazer
lhes é negado.
Não tenho problemas com essa conceituação. Acho que ela delimita bem de
que estamos falando e corresponde em grande medida à forma como a palavra
é usada em português. Mas qual é sua força moral, em sentido amplíssimo, e
política? É possível defender um direito apenas porque sua supressão implica
a perda de uma liberdade?

Algumas liberdades valem mais que


as outras
Libertários e alguns liberais dirão que sim, a partir da premissa de que as
organizações políticas, em especial o Estado, só se justificam quando
preservam, na maior medida possível, as liberdades dos envolvidos. Esse é um
passo bastante controverso na filosofia política. Quero, antes, apontar uma
circularidade lógica em que ele recai. Para isso, recorro ao trabalho do filósofo
britânico G. A. Cohen.

Cohen foi um filósofo político marxista – algo raro, já que, segundo ele
próprio, a ideia de fazer filosofia moral ou política parecia para boa parte de
seus colegas uma perda de tempo falaciosa. Um de seus méritos, que me
parece ainda insuficientemente apreciado pela academia brasileira, foi
empregar o rigor lógico da filosofia analítica para criticar categorias políticas
importantes do liberalismo e do libertarianismo – inclusive a de liberdade.

Tomando por paradigma o libertarianismo de Robert Nozick, o autor do


clássico libertário Estado, Anarquia e Utopia, Cohen começa a conceituar
liberdade da mesma maneira que fizemos, ou seja, como a ação não impedida
por terceiros. Cohen destaca, então, que libertários como Nozick definem
justiça a partir de liberdade: um arranjo social justo precisa maximizar as
liberdades dos sujeitos envolvidos, a partir de um Estado tão pequeno quanto
possível, necessário apenas para assegurar essas liberdades, inclusive por
meio da força. Liberdade aparece, então, à primeira vista, como um conceito
logicamente simples, definido sem recurso a outras entidades politicamente
controversas.

Acontece que essa ideia não basta para resolver sequer problemas morais
simples. Digamos que A e B sejam sujeitos em uma sociedade libertária, e que
B, por não ter uma casa ou por qualquer outro motivo, decida montar uma
barraca em um imóvel pertencente a A. Como o Estado libertário
compromete-se firmemente com a defesa da propriedade – que é vista como
um desdobramento das liberdades básicas –, é muito provável que agentes
desse Estado removam B do terreno de A, à força, se necessário. Essa coação
sobre B acarreta uma indiscutível redução de sua liberdade, já que uma ação
sua – montar e habitar uma barraca em um certo local – é impedida por
terceiros. E, no entanto, ela é aceita por libertários. Por quê?

A resposta óbvia é que nem todas as liberdades são iguais. Algumas são
legítimas, outras não. Essa ideia também é muito intuitiva e se mostra no uso
da palavra: não tenho a liberdade de roubar seu celular, por exemplo, e se o
fizer deverei ser punido por isso, talvez com encarceramento (no Brasil,
chamamos esse tipo de pena de “privativa de liberdade”). Mas, se isso é
verdade, então deve haver algum critério para distinguir as minhas liberdades
de não tomar vacina ou de incitar violência contra instituições – defensáveis
para certo discurso libertário – das liberdades de roubar seu celular ou ocupar
seu quintal – condenáveis para esse discurso.

Esse critério só pode ser moral. Devemos poder separar de algum modo
liberdades “boas”, no sentido de moralmente valiosas e merecedoras de
proteção pelo Estado, de liberdades “ruins”, ou ao menos pouco valiosas.
Mas, para isso, precisaríamos ter uma concepção de justiça independente da
concepção de liberdade, sob pena de circularidade lógica. E isso os libertários
não têm, já que, como vimos, sua concepção de justiça é estabelecida em
termos da maximização de liberdades.

Poderíamos parar por aqui. Essa crítica já mostra que não é possível defender
um direito exclusivamente com base em liberdade. O argumento de que
obrigar pessoas a tomar vacina diminui sua liberdade só pode terminar com
uma vírgula, não com um ponto final: ele pede a explicação do porquê essa
liberdade é moralmente preciosa e como seu valor se justifica em relação aos
outros sujeitos.

O debate que realmente importa


Um debate mais rico, assim, depende de um critério valorativo para a ação,
que não pode ser apenas a própria liberdade. Esse é um ponto reconhecido há
milênios na filosofia moral, e é como começa a Ética a Nicômaco, de
Aristóteles: tudo o que fazemos é para alcançar aquilo que é bom, embora as
pessoas discordem sobre o que seja esse bem. 

Ao interditar essa discussão quanto aos fins da ação, libertários e alguns


liberais terminam com uma teoria da justiça e do Estado em certo sentido
vazias e, por isso, incapazes de resolver problemas práticos, embora às vezes
aptas a alimentar paixões ideológicas. Deveriam, antes, formular, como o
liberal John Rawls e como muitos filósofos de outras vertentes, uma teoria
que conecte liberdades a uma boa vida, dando-lhes uma finalidade. Para
Rawls e outros autores, precisamos ser livres para vivermos bem, e na medida
em que algumas liberdades, e não outras, sejam conducentes a uma boa vida.
Precisamos de liberdades que sirvam para algo.

É verdade que o meu argumento não demonstra que obrigatoriedade de


vacinação ou sancionamento do discurso de ódio ou o que incita violência
contra instituições são legítimos; há muito mais em jogo. Pode ser, por
exemplo, que tenhamos bons motivos para desconfiar que o Estado não seja
capaz de exercer um controle justo sobre o discurso de modo a distinguir o
que é odioso do que não é. 

Esse, porém, é um argumento sobre a falibilidade do Estado, que deve ser


formulado, digamos, em termos da virtude da tolerância que devemos ter em
relação a discursos que nos ofendem para coibir censura. Não é um argumento
sobre a liberdade, e reconhecer isso força seu enunciante a formulá-lo
claramente e em seus próprios termos, o que nos permite, por sua vez, mostrar
porque também esse tipo de raciocínio não procede.

Não é possível defender nenhuma dessas pautas simplesmente em nome dela.


Suspeito, no mais, que isso baste para submeter libertários, certos
conservadores e até mesmo alguns autoritários a um ônus argumentativo e
político insuportável, e que, sem essa instrumentalização da defesa da
liberdade, muitas de suas pautas percam sua plausibilidade e apoio.

Sobre os autores

ARTHUR CRISTÓVÃO PRADO

é advogado da União, atuando com litigância estratégica junto ao STF. É


também mestre e doutorando em filosofia do direito pela USP.

Como o neoliberalismo
naturalizou o sofrimento e
esvaziou a democracia
POR

ROBERTA PEDRINHA

Novo livro de Rubens Casara esmiúça como projeto


neoliberal substituiu o cidadão pelo consumidor
despolitizado, retirando as pessoas dos ambientes
coletivos para competirem entre si individualmente em
espaços privatizados - e mostra por que o
aprofundamento democrático precisa ser anticapitalista.
Resenha do livro Contra a Miséria Neoliberal, de Rubens Casara (Autonomia
Literária 2021)

Fomos brindados nesses tempos sombrios com um presente, o mais recente


estudo de Rubens Casara, Contra a Miséria Neoliberal, que já se encontra no
topo da lista de leituras obrigatórias. Sua obra advém de uma sequência
frenética de pesquisas produzidas nos últimos anos, a qual culminou nas
publicações: Estado Pós-Democrático (2017), Sociedade sem
Lei (2018), Bolsonaro, o Mito e o Sintoma (2020), em que aborda, entre outras
relevantes questões, a contraposição entre o neoliberalismo e a democracia. 

A respeito deste seu novo manuscrito, trata-se de uma obra de urgência,


particularmente, diante do cenário desenhado no Brasil, radicalizado com a
ascensão da ultradireita ao poder. Consiste em um estudo impactante, não
apenas por desvelar a realidade contemporânea, mas por expor a crueza de
suas entranhas. São escritos que traduzem um alerta diante da gravidade na
qual estamos imersos. O trabalho desenvolvido pelo autor insculpe-se entre
àqueles de absoluta necessidade, não somente em razão da densidade teórica e
do referencial crítico que lhe conferem vertebração, mas pela assombrosa
reflexão acerca da sociedade atomizada, fragmentada e pós-humanista. 

Indo além da razão neoliberal


Contra a miséria neoliberal já evidencia em seu título a dupla conotação do
termo miséria, atrelado ao neoliberal. Miséria carrega a acepção de ruína,
destruição a que está fadada a sociedade pelo engendramento da racionalidade
neoliberal. Além disso, designa pobreza extrema, como consequência do
acirramento da desigualdade estrutural produzida pelo neoliberalismo. Vale
sublinhar que, apenas no Brasil, a insuficiência alimentar nos últimos anos
atingiu cerca de metade da população, que não sabe se conseguirá realizar três
refeições diárias até o fim deste ano, enquanto 1% dos mais abastados da
nação detêm mais de 40% de todas as riquezas produzidas, de acordo com
dados de 2020 do IBGE. Portanto, ao nomear seu livro, explicita sua crítica
em sentido ambivalente e a reforça pela assunção de sua postura de refutação
ao modelo, por um agir contrário, o contrapoder, a contra-hegemonia, o
contra-ataque. Já no título encarna a força de sua (o)posição, assim como de
toda a problematização alavancada em seu texto. 

O autor é um dos mais importantes difusores do trabalho de Christian Laval e


Pierre Dardot no Brasil, os quais já contam com obras traduzidas no país. Bem
como, cada vez ganham mais notoriedade, tanto no meio acadêmico, quanto
no ativismo democrático anticapitalista, acerca da razão neoliberal. Mas
Rubens Casara vai além, pois sua obra agrega elementos originais, que
fornecem ferramentas peculiares para compreensão da dimensão da
subjetividade, ao trazer como grande contributo, o imaginário neoliberal,
introjetado nas pessoas. Para tal feito, acopla seus conhecimentos específicos
na área da psicologia, que vão de Freud à Lacan, e dialoga internamente com
psicanalistas brasileiros como Joel Birman e Christian Dunker. 

Casara parte com seus mestres franceses do significante neoliberalismo,


desnuda as novas articulações entre as esferas públicas e privadas, a fusão
entre o econômico e o político. Denuncia como o neoliberalismo
consubstancia-se enquanto forma de estruturação, de organização da
plataforma dos governos às ações dos governados. Testemunha o princípio da
concorrência, como nova ordem do mercado, em detrimento da troca. Agora a
concorrência está em ascendência, coloca-se como regra de sociabilidade,
novo ethos, pela lógica da competição internalizada nas pessoas, incitando o
individualismo. Então, cada um vira empresário de si mesmo, uma vez que a
empresa se torna o novo referencial de subjetivação, do indivíduo ao Estado.  

Nessa linha, a intervenção ativa estatal avança, não na gestão de políticas


públicas sociais e nem no papel fiscalizador. Mas, na parceria com empresas
privadas, nas regras de concorrência, que desobrigam as regulações,
viabilizando uma maior eficiência do mercado, este ente ou entidade, que se
eleva à quase Deidade. Por conseguinte, as pessoas não se unem contra as
injustiças conflagradas. Pois, na medida em que cada pessoa funciona como
uma empresa, forjada na produtividade da autogestão, assiste-se à
transmutação do outro em concorrente, em permanente disputa. Logo, nasce o
inimigo. 

Sujeito neoliberal
Nessa órbita, o neoliberalismo, para além de uma forma de dominação
capitalista, atua enquanto racionalidade, maneira de ver, compreender,
perceber e sentir o mundo, na metamorfose do próprio sujeito, pela introjeção
subjetiva, através do imaginário. Nesse viés, o autor debruça-se a desvendar o
imaginário neoliberal, com destaque para o capítulo três do seu livro, que
caminha a partir de Castoriadis, Freud e Lacan. Para daí enunciar como as
categorias do mundo social se concatenam, como conectam ideias dos outros,
como se organizam nas imagens de si, nas práticas cotidianas, pela
mobilização de todo tipo de recurso tecnológico, de entretenimento ou de
dispositivo publicitário. Verifica a maneira na qual são internalizadas tais
imagens, o modo como ocorre a interiorização no imaginário subjetivo, de
naturalização de atitudes disruptivas, de concorrências e disputas, de
introjeção da lógica mercantil, da concepção da gestão empresarial e dos
valores do capital ilimitado, que conduzem ao esquecimento da finitude
humana, da condição de fragilidade, na aproximação com o pós-humanismo.
Afinal, é no campo das subjetividades que nasce o sujeito neoliberal. 

O sujeito neoliberal investe-se do papel performático na sua autogestão


empresarial, rompe com a alteridade, na percepção do outro como
concorrente, ao naturalizar os absurdos, na caracterização do egoísmo como
atributo. Em certos casos, entra em cena o sujeito perverso (violador de
limites) ou psicótico (que não introjeta os limites), de que nos alerta o autor,
frente à regressão civilizatória no devir bárbaro, no horizonte da
descivilização, com o monopólio da violência. Nesse cenário, como advertem
Gizlene Neder e Vera Malaguti Batista, configura-se a adesão subjetiva à
barbárie, com a normalização da opressão e da dominação. 

Eleva-se a aposta na ruptura dos direitos assegurados, individuais e coletivos,


consagra-se a violação das garantias. Acredita-se na demanda por ordem, no
direito à segurança contraposto à segurança dos direitos, no neoliberalismo
ilimitado, na sociedade da acumulação. Esta produz também o acúmulo dos
corpos no super encarceramento e o acúmulo de corpos mortos nos massacres,
como preleciona o mestre argentino Raúl Zaffaroni, em sua obra A palavra
dos mortos, em que procura ouvi-los, dar-lhes voz.  

 Acompanha-se a imperatividade do sujeito de desempenho que, como denota


Byung Chu Han, não apenas deve comprar como se fosse viver para sempre,
como deve produzir permanentemente, guerreando contra o outro, seu rival.
Há o abandono da noção de cuidado para com as pessoas, gerando um
empobrecimento subjetivo. O pensar e o refletir tornam-se desnecessários.
Nesse mote, tem-se a despolitização da questão social e a politização da
questão criminal. Desenha-se a despolitização do sofrimento, a medicalização
do mal-estar, na privatização do espaço público que transforma a própria vida
em forma de condomínio, condominaliza o sintoma, na expressão conceitual
de Christian Dunker. Nesse ínterim, como apontado por Joel Birman, amplia-
se o desamparo do indivíduo, lançado à própria sorte em cisma com a
coletividade, sem laços de solidariedade com toda a sociedade, quando os
afetos são colonizados pelas raivas e temores.

Para além do identitarismo


Para além da colaboração na profusão das ideias de Christian Laval e Pierre
Dardot, grifa-se que Rubens Casara não as importa e traduz. Ele reflete
incessantemente o Brasil. Então, traz para a discussão a questão racial, ao
constatar que não se trata de elemento meramente identitário. Denota, ao
travar interlocução com Silvio Luiz de Almeida, que o racismo não é só
individual ou institucional, mas verdadeiramente, estrutural. Logo, não é
fenômeno conjuntural, pois perpassa as relações sociais, é constitutivo delas.
O racismo estrutural se inscreve no plano econômico, da organização da vida
social, da divisão do trabalho, no plano político, jurídico, psíquico, subjetivo.
É também uma racionalidade, forma de ver o mundo, compreendê-lo, senti-lo.
Configura-se enquanto processo político de poder que afeta e é afetado, como
a razão neoliberal.

Acerca da raça, sabe-se, com Frantz Fanon, que não é critério físico,
biológico, antropológico ou genético, constitui-se como construção social, que
adveio com o colonialismo, que passou a fixar a existência negra na
subalternidade, que estabeleceu a negação da sua humanidade ou o seu
escalonamento. Nesse diapasão, verifica-se que a desigualdade, agigantada
pelo neoliberalismo, no Brasil, reforça o componente racial em sua
estruturação. Pois, resta nos substratos sociais mais baixos a população negra,
como denunciado por Lélia González, em o lugar do negro, que se confunde
com o espaço do rebotalho, da miséria, que pode ser concebido do quilombo à
favela.

Nesse debate, o autor afiança sua brasilidade, sua condição latino-americana,


sempre presente, especialmente, ao desnudar a instituição da escravidão. Esta,
segundo José do Patrocínio, foi sequestro, tortura, estupro, lesão corporal e
homicídio. Porém, ainda hoje, não foi desconstruída, pois a desigualdade por
ela produzida revela-se majorada. Vale rememorar que no Ocidente o Brasil
foi a última nação a aboli-la (1888), sem nenhum tipo de ressarcimento ou
indenização. A massa humana escravizada, trazida da África, para um único
país, foi de cerca de 6 milhões de indivíduos, revelando-se o maior
contingente de escravizados do planeta. Diante disso, Rubens Casara denota
como ocorreu a naturalização da escravidão, ou seja, a partir de um imaginário
que foi introjetado na subjetividade, que aceita a desumanização de pessoas
racializadas. 

Nota-se também que a questão racial é estruturante do sistema penal, do


oficial, pela aplicação da pena de prisão, ao extra-oficial, ou subterrâneo, na
expressão cunhada por Lola Aniyar de Castro, pelas execuções extrajudiciais
sumárias. Afinal, embora no Brasil a população negra (composta por pessoas
que se autodeclaram pretas e pardas) seja de cerca de 56%, de acordo com o
IBGE de 2019, as pessoas negras correspondem a mais de 70% das
encarceradas. Nessa direção, nos dados de letalidade, registra-se que as
pessoas negras incorrem três vezes mais em riscos de morte, sendo, de acordo
com Ana Flauzina, o corpo negro o caído no chão. De onde se depreende que
está em curso a necropolítica de que nos adverte o professor camaronês
Achille Mbembe, pelo devir negro, reverberado na obra de Casara.

Dialético e materialismo histórico


Cumpre salientar que Rubens Casara utiliza a metodologia interdisciplinar, a
qual evoca o entrelaçamento de diferentes campos de conhecimento, que se
interconectam para enriquecer o objeto foco da pesquisa. Desse modo, saberes
distintos como Psicologia, Direito, Sociologia, Economia, Filosofia,
Criminologia e Teoria Política convergem na intersecção de conteúdos que se
comunicam, que passam a ser lidos por múltiplas lentes, com abordagens
complementares, afeitas às referidas disciplinas.   

O autor ancora-se no método dialético de leitura da realidade, a qual não é


estática, visto que os processos históricos estão em constante movimento, na
contraposição materialista, que explica as relevantes transformações
incidentes na história e identifica os estágios de desenvolvimento das forças
produtivas, conforme a organização do trabalho e o modo de produção.
Perfilha-se à concepção filosófica e metodológica do materialismo-histórico,
com base material econômica, que compreende a dinâmica das contradições
internas na percepção da realidade social como um todo. Coloca no epicentro
o modelo econômico e faz da crítica o cerne do desvelamento na procura de
seus elementos contraditórios.
Logo, Rubens Casara nos suscita recorrentes questionamentos, maneja
indagações críticas, acerca do modelo econômico, da racionalidade neoliberal.
Nessa quadratura, interroga como funciona o neoliberalismo, como se
inscreve enquanto chave de dominação do mundo, de compreensão cognitiva
e psíquica. Pergunta como é capaz de alcançar e modelar subjetividades,
investiga como orienta suas práticas, as quais norteiam o agir humano.
Caminha no escopo de decifrar a perigosa plasticidade que observa do
neoliberalismo, de natureza camaleônica, que se adapta às diferentes matrizes
de versões de Estado, ora laica, ora fundamentalista, ora autoritária,
consolidando-se.

Esvaziamento democrático 
Cumpre frisar que o neoliberalismo se contrapõe aos princípios democráticos.
Pois, não é a democracia, entendida como soberania popular, que regula o
capital, mas é o capital financeiro quem condiciona a democracia pelo novo
colonialismo neoliberal. Constata-se que da fusão do poder econômico com o
político resulta a hegemonia do executivo, como superpoder. Daí, exacerba-se
a concentração de riquezas, de onde se assiste ao quadro desolador de miséria,
pelo empobrecimento radical da população global. A crise democrática
desenha-se por modalidades híbridas, uma vez que não se tem uma
democracia nítida, nem uma ditadura nos moldes clássicos. Exsurgem as
expressões talhadas por Boaventura de Souza Santos,
como: democradura e ditacracia que mesclam características de ambas as
formas de governo. 

Não é sem razão que obras anteriores de Rubens, como: Sociedade sem


lei e  Estado Pós-Democrático, denunciam a escalada de traços autoritários. O
autoritarismo revela-se enquanto categoria permanente no Brasil. Nesse rumo,
foi feita alusão à saída progressiva da democracia, por Wendy Brown, que
nomeou como desdemocratização. Frente à emergência das práticas
autocráticas, Felipe Demier designou o termo democracia blindada. Já a
expressão democracia de efeito moral ou democracia de segurança nacional,
com a ênfase no autoritarismo, foi ditada por Edson Telles, como sendo um
abismo na história, ao lado do racismo, do patriarcado e da escravidão.
Manuel Castells ratifica a ruptura vivenciada com a democracia liberal.
Cláudio Souza Neto denota a democracia em crise no Brasil. E, finalmente,
foi advertida por Ziblatt e Levitsky a gestação da morte da democracia.

 Diante desses abusos, crescem precarizações trabalhistas, terceirizações,


privatizações de empresas públicas lucrativas, esvaziamentos sociais. O
indivíduo deixa de ser um sujeito de direitos, transmuda-se em capital
humano, pela servidão voluntária, e deverá se moldar às premissas do
empreendedorismo e aos discursos de meritocracia. Pois, do contrário,
assistir-se-á ao controle dos indesejáveis, incidente nos excluídos do mercado
de trabalho, alvos das políticas criminais atuariais, de tolerância zero, de lei e
ordem, de defesa social e do direito penal do inimigo.  

Nesse rumo, a democracia perde seu conteúdo, sua essência enquanto sufrágio
universal, supremacia do voto igualitário, pluralidade partidária, capacidade
plena eleitoral, liberdade de expressão e autonomia. Boaventura de Souza
Santos, assinala que se necessita de uma hermenêutica da suspeita. Esta deve
ser indagadora, que requeira a separação entre as esferas econômica e política,
em prol da cisão no que tange à concentração de forças e injunção de poderes.
Do contrário, perpetuar-se-á o acirramento das desigualdades estruturais e a
verticalização das relações sociais. 

O sociólogo português lembra-nos que a passagem da democracia de baixa


intensidade para a de alta intensidade necessita da democratização efetiva do
Estado, da Sociedade Civil, espraiada em suas relações familiares,
comunitárias, educacionais, trabalhistas e declaradamente políticas. Portanto,
o que está em jogo não é meramente democracia, mas democratização, os
novos mecanismos de participação a serem engendrados, com escopo
transversal, para que se horizontalizem as sociabilidades e se refutem as
desigualdades, se desabilite a sanha punitivista, e se abra a derrocada
neoliberal.
Nesse prisma, uma efetiva democracia circunscrever-se-á à prática social
anticapitalista, à participação no público, pelo compartilhamento do bem
comum, no autogoverno das pessoas, como defendia Michel Foucault, do
cuidado de si ao cuidado do outro, para além da governamentalidade de si.
Portanto, em direção a uma nova governamentalidade coorperativa, de
assistência mútua coletiva, em consonância à pluralidade da sociedade, à
reabilitação do comum. Dessa forma, rejeita-se a subjetivação-sujeição e
eleva-se a subjetivação pela contraconduta, contraposta à competição, contra a
miséria, como evoca Rubens Casara.

Saída Comum
Oautor oferece em seu último e quarto capítulo a propositura de alternativas,
visando romper com a desigualdade estrutural, a economicização, a
mercantilização de pessoas, a manipulação da verdade, a relativização de
valores imprescindíveis como justiça, igualdade e vida. Nesse rumo infere a
aposta na mitigação do direito à propriedade, para caminhar rumo à
construção coletiva, o comum da humanidade, na linha do que foi descrito na
obra Comum de Christian Laval e Pierre Dardot, com quem trava
interlocução, em permanente diálogo.

Nessa senda, o Comum é o oposto à razão neoliberal, nele não há o consumo


ilimitado dos finitos recursos naturais, conduzindo à absoluta escassez,
levando à destruição do meio ambiente e ao exaurimento da própria vida
planetária. Prima-se o bem de todos e para todos. No Comum vigora a
hegemonia da resistência, na mutação do homem-empresa objeto negociável
para o ser humano solidário, que reserva o uso comum da propriedade, as
práticas cooperativas, dá voz aos movimentos sociais, com atuação conjunta
pela coisa pública, com efetiva participação das pessoas nas decisões políticas,
em pleno exercício da soberania popular.   

O autor atesta o necessário protagonismo da causa coletiva, rechaça o


empobrecimento subjetivo, a maximização do egoísmo, das auto
performances, dos assujeitamentos, propiciadores da banalidade do mal, como
alude Hannah Arendt. Logo, consagra a imprescindível afirmação da
humanidade pela aderência à alteridade. Frisa o resgate do que se encontra na
esfera do inegociável, que deve ser erigido, como os direitos fundamentais,
que precisam ser democratizados. 

Dessa forma, poder-se-á garantir a fratura do sujeito neoliberal, para, em


contraponto, ascender o sujeito de direitos. Bem como, no campo dos afetos,
no lugar do ódio, da inveja e do medo, advir o renascimento da solidariedade
coletiva. E que, em detrimento do escalonamento de humanidade, derive a
horizontalização das relações sociais, através da autoridade compartilhada.
Para que, ao invés de seres coisificados, que fixam seus afetos às coisas, na
reificação do humano, surjam relações centradas na troca que fundamenta a
máxima: amar e ser amado, no amor ao outro, na coletividade das pessoas.
Tais apostas apresentadas pelo autor, efetivamente, podem refrear e conter o
tsunami autoritário já em curso, caso o ovo da serpente em gestação vingue no
mundo e, mais particularmente, no Brasil.  

A obra é um primeiro passo na tomada de ciência da realidade que nos cerca,


dos desafios a serem enfrentados, pelo imprescindível esforço de
conscientização, pela ode que representa à reflexão, aliada à sua
incomensurável preocupação com o ser humano e a sociedade, quer seja, o
destino comum da humanidade, por ele resgatado.     

Por derradeiro, Rubens Casara destaca-se como um dos mais proeminentes


pensadores de sua geração, cuja atuação desponta sempre comprometida com
as teses que sustenta, ora como professor, ora como magistrado, das suas
lições aos seus julgados, na práxis do cotidiano. Pois, tem como marca a
coerência e o exemplo inspirador, que carrega inquietações, frente às agruras
que ameaçam a já frágil condição humana e a própria existência da vida
planetária. Isso se reverbera em sua alma em permanente estado de
indignação.  Mas ele persiste, sem esmorecer, posto que é dessas pessoas que,
mesmo em tempos sombrios, iluminam os caminhos por onde passam. Segue
afetando e sendo afetado, provocando, retirando-nos do espaço de conforto,
instigando-nos a pensar. É isso o que faz em seus escritos magistrais, como
nesta nova e imperdível obra.

Sobre os autores

ROBERTA PEDRINHA

é pós-doutora em Criminologia e Direito Penal pela Universidade do Estado


do Rio de Janeiro.

Herbert Marcuse’s One-Dimensional Man was once


the New Left’s bible. The book’s rich analysis offers
today’s socialists a chance to learn from its spirit of
protest, its materialist social theory, and its warnings
regarding commodified liberation, while leaving firmly
in the past its political Manichaeism and culturalist
despair.
Few intellectuals have been so closely identified with a social
movement as Herbert Marcuse was with the transatlantic New
Left in the late 1960s. In 1966, the year One-Dimensional
Man was issued in paperback, Students for a Democratic Society
(SDS) included the book in their political education curriculum,
alongside the works of C. Wright Mills, Gabriel Kolko, Paul A.
Baran, and Paul Sweezy. Following its translation into German
and Italian the next year, it quickly became recognized as “a
primary ideological source” for young radicals in Europe.  In the 1

upheavals that rocked universities during the first half of 1968,


Marcuse, the “prophet of the New Left,” was suddenly
everywhere.  Students in Berlin held a banner proclaiming “Marx,
2

Mao, Marcuse!” — an alliterative slogan more elaborately


formulated by demonstrators in Rome: “Marx is the prophet,
Marcuse his interpreter, and Mao his sword!”  Although dismissed
3

by most liberal critics and increasingly denounced by a motley


chorus of conservatives, left sectarians, and Soviet
apparatchiks, One-Dimensional Man maintained its position as
the “bible” of the New Left through the end of the decade,
providing, as one American commentator noted in 1968, a
“special philosophical vocabulary” that graced New Left journals
“as if it were part of ordinary language.”
4

This article aims to introduce and critically reevaluate One-


Dimensional Man for today’s socialists. We begin with the book’s
enthusiastic reception within the New Left, capturing why and how
it resonated with a generation of young activists in the 1960s.
Marcuse’s resolute moral and political opposition to the
destructive direction of late capitalist society helped resuscitate
the sense that the status quo was unsustainable and change was
urgent. Unfortunately, however, some of the book’s weakest
aspects — such as its offering as alternatives to the status quo
various paths (cultural radicalism, new subjects of history,
ultraleftism) that proved to be dead ends — were often its greatest
draws for its New Left readers, something Marcuse himself
understood and resisted.

In important ways, the New Left missed core aspects of


Marcuse’s critical project that are worth retrieving for today. We
turn to reconstructing and evaluating Marcuse’s moral and
materialist analysis of late capitalism. We lay out the philosophical
basis for his critique and his insistence on the breadth and depth
of the moral commitments — to freedom, equality, happiness,
reason, and peace — undergirding socialist politics. We then
examine Marcuse’s materialist social theory, which raised critical
questions about the gap between socialist theory and social
conditions in “the affluent society” that resonate in our own
moment. Our interpretation emphasizes the overlooked degree to
which the “classical” Marxism of the Second International provides
the underpinnings of One-Dimensional Man. Marcuse’s materialist
analyses of working-class integration through consumerism, a
rising standard of living, and the culture industry aimed to explain
capitalism’s unexpected resilience and absorptive capacities.

It would ultimately be left both to Marcuse’s contemporaries Ralph


Miliband and André Gorz and to today’s socialists to draw out the
political implications of Marcuse’s questions and method and to
formulate a socialist strategy adequate to the advanced capitalist
world. Though he insisted that the basic premises of Marxist
social theory remained correct — a distinct and underappreciated
quality of the book — a sense of futility with the theory’s practical
implications in the present, as well as fidelity to a vision of social
change as total historical rupture, drew Marcuse to paint an
imaginative but inadequate picture of his moment as Hegel’s
proverbial “night in which all cows are black,” void of possibilities
for radical social transformation.

There are, we suggest, two souls of Herbert Marcuse — on the


one hand, the critical and materialist; on the other, the moralistic
and defeatist — each with its own significance for today’s
activists. We close by suggesting that One-Dimensional Man’s
decline from its previous stardom may offer today’s Left a chance
to learn from its spirit of protest, its materialist social theory, and
its warnings regarding commodified liberation, while leaving firmly
in the past its political Manichaeism and culturalist despair.
Society, the Cult Horror Film
Where the Monster Is Class
Conflict
BY

BRANKO MARCETIC
The 1989 cult horror classic Society is remembered for its
sensational effects and disturbing undertones. But it's the
movie's grisly portrayal of the rich exploiting the poor that's
the scariest thing of all.

Society feels like it was meant for our era of Jeffrey Epstein, QAnon, and oligarchic
scheming. (Wild Street Pictures)
The rich are not like you and me. Studies have shown again and again that the
wealthier you are, the less stressed, empathetic, and morally scrupulous you’re
likely to be. The psychological effect of money can be so powerful, the rich
may as well be a different species.

In fact, what if they are?

This was the conceit of 1989’s Society, one of the more fantastically deranged
cinematic artifacts from the era of low-budget body horror. This kind of thing
wasn’t unusual for cinema in the decade of Ronald Reagan, when movies
like Trading Places and Wall Street called attention to the class divide that
had become more visible than seemingly ever in American society.
But Society stands out not just for the sensational physical effects that
solidified it as a cult classic for horror fans, but the directness and savagery of
its class critique. For all the pastel colors, poofy hair, and teen sex antics that
date it firmly to the 1980s, Society oddly feels like it was meant for our era of
Jeffrey Epstein, QAnon, and oligarchic scheming.

The film follows Billy (Billy Warlock), a paranoid, seemingly mentally


unwell teenager who starts to suspect there’s something sinister going on with
his well-to-do California family. In between the usual teen-movie hijinks —
parties, girls, an election for student body president — Billy uncovers
evidence his parents, sister, and apparently almost the entire world of the
Beverly Hills elite that he moves in are part of some kind of twisted sex cult.
Incest, conspiracy, murder, a cover-up — all of it culminates in the movie’s
notorious climax, which can probably best be described as Bob
Guccione’s Caligula filtered through an Eli Valley cartoon.

Tonally, Society treads an uneasy line between laughs and outright nausea.


Director Brian Yuzna has said that he played up the camp elements of the
story on purpose, to emphasize the movie as a piece of satire.

“It was my first time directing,” he says. “When it came out, it was seen as
awkward, but a generation later, it just looks like that’s what the 1980s were.”

Inadvertently, that unaffected, ’80s-teen-movie style, all bright colors and


loopy sound effects, gives a booster shot to the story’s horror, the movie’s
goofiness making the incestuous undertones and paranoia of the film
somehow more disturbing. It feels, to both Billy and the viewer, like they’re in
a typical teen sex comedy from the era, but something’s just . . . off. It’s safe
to say that by the time you find out what exactly that is and the credits are
rolling, you’re left feeling deeply unclean, both for the sights you witnessed
on screen and for the movie’s reminder of the very real way those at the top
use and abuse those at the bottom of society.

Up One Day
As Yuzna tells it, he had been a student radical in the 1960s with all that it
entails: taking drugs, marching in the streets, and eventually dropping out of
college and joining a commune in the country, where he waited for the
revolution. But the revolution never came, so he had to go back to work.
He spent the next while working a variety of jobs and running different
businesses, saving some money. It wasn’t until his thirties that he decided
he’d try his hand at making movies, moving to LA with a couple of kids in
tow. With the money he’d saved up, he produced the classic Re-Animator and
developed several more projects, including Honey, I Shrunk the Kids, which
he’d pitched and wrote the story for before being taken off the project.

Around that time, screenwriter Zeph Daniel, then going by Woody Keith, was
pursuing the same dream, signing up for a screenwriting course at the
Hollywood Scriptwriting Institute. It was there that he wrote the screenplay
for Society, and where he met Rick Fry, his cowriter who contributed what
Daniel describes as his gift for dialogue. Daniel had come from a well-off
Beverly Hills family similar to Billy’s, and has said that the movie is “about
things in our society that shouldn’t be there but are.”

“Let’s just say I started writing it about things that happened a long time ago,”
he told me. He points to the Nathaniel Hawthorne short story Young
Goodman Brown as a key inspiration.

Yuzna had just had another project fall through, this one
with Alien screenwriter Dan O’Bannon about a woman who finds out that all
men are aliens, when he says Fry handed him the script for Society. He liked
its sense of paranoia, which reminded him of his just scuttled movie with
O’Bannon, and he felt “it would be a fun way to make a new monster, to make
the monster class conflict.” With Re-Animator a big success, and Yuzna
owning the rights, he struck a deal to direct two pictures: Society and, as a
backstop in case his first outing as director was a failure, the Re-
Animator sequel.

Yuzna says the finished movie is basically just as it came to him, with one key
difference: while in the original script the elite were part of a satanic blood
cult, Yuzna wanted something more “fantastical” and, as a fan of effects, a
climax that would let him put something on screen he’d never seen before. It
was just as well he did. The Japanese company financing the movie
introduced Yuzna to practical effects wizard Joji Tani, a.k.a. Screaming Mad
George, maybe best known for the wild effects in John Carpenter’s Big
Trouble in Little China. The two hit it off instantly, owing to their shared love
of surrealism; Yuzna has said the infamous “shunting” scene — a
portmanteau, says Daniel, of “shun” and “hunt” — was partly influenced by
Salvador Dali’s The Great Masturbator.

Given the fickle, plodding nature of film production, both Yuzna and Daniel
were exhilarated by the speed with which the movie got off the ground. Daniel
recalls their first day of filming in Paradise Cove.

“Brian was sitting in a director’s chair, the big one, and he told me, ‘We’re
making our movie!’” he says. “He was like a kid.”

But the giddy high of seeing their vision come to life — including the retch-
inducing finale, which saw a troupe of extras that included Daniel and the
filmmakers’ friends and family literally dive into their roles with gusto — was
ended by its chilly reception. A Cannes critic called it “sodomy gore,”
while Variety dismissed it as “rough trade porno.”

“I never had a review before,” says Daniel.

“I was incredibly disappointed, I thought it was going to be a box-office


smash,” says Yuzna. “In the US, even my friends didn’t like it, they were
embarrassed for me.”

Yuzna thinks that, at the height of the Reagan era, when many Americans still
broadly thought of themselves as temporarily embarrassed millionaires, “it
was the wrong kind of joke to tell at the time.” What saved the movie was a
world market that didn’t have the same taboo. The film was a roaring success
in France, Italy, and particularly the UK, where class is an inescapable fact of
existence. Audiences there must’ve been especially amused by the movie’s
theme, the “Eton Boating Song,” sung normally by aspiring English youth on
the elite assembly line, but with new lyrics:

Oh how we all get richer


Playing the rolling game
Only the poor get poorer
We feed off them all the same

BBC critic Mark Kermode would later praise the movie as “a pseudo-Marxist


assault on the inequities of the class system which depicts the privileged few
feeding hungrily on the downtrodden masses.” But even years after, US critics
would assail the movie for what they saw as its ill-fitting politics. “While the
Brits may go ballistic over the notion that their class-heavy society is indeed a
plot against the everyman, here in the States we tend to be more wary of the
electorate than the greed-mongers who finance them,” wrote the Austin
Chronicle’s Marc Savlov in 1992.

In Capitalist America, the Rich Eat You


It’s hardly surprising that Society came out of the 1980s, when class warfare
became a fact of American life again, this time waged and won by the rich.
“People were very materialistic back then,” says Daniel.

The movie eventually found its audience. It first made a lot of money on home
video through the 1990s, and then, say Yuzna and Daniel, it had a mini-
renaissance after 2000, partly thanks to a rising nostalgia for the 1980s. But it
was after the global financial crisis, Yuzna says, that he started getting a lot
more calls asking him to screen the movie.

For all the anger and fright Reagan’s policies inspired, the movie’s indictment
of the rich and portrayal of class antagonism feel far more from this era than
his. “If you don’t follow the rules, Billy, bad things happen,” Billy’s
psychiatrist tells him. “Now some people make the rules, and some people
follow the rules. It’s a question of what you’re born to.” By the end of the
movie, it’s put to him more directly: “The rich have always sucked off low-
class shit like you.”

We gradually realize that the sick ritual at the heart of the story is one that all
of Beverly Hills high society is involved in: parents, police, the judicial
system, even paramedics. It also stretches beyond, with the judge mentioning
to one young Society member he’d be an ideal candidate for an internship
under him in Washington.

The reveal that Billy is, in fact, adopted, was one Yuzna brought to the movie.
In story terms, it explains why he’s been kept in the dark about the nature of
Society, and why he’s targeted by it. But it also has a deeper significance.
“You’re not one of us,” Billy’s told. It’s not enough to be nouveau riche,
Yuzna explains. To be accepted into the upper crust, you have to have more
than money; you need to join bloodlines.

The air of sexual predation throughout is another element that seems a better
fit for a movie about class inequality today. We’ve now had several decades
worth of scandals that at least purport a link between society’s powerful elite
and human trafficking: both unproven episodes with allegations of something
much larger, like the Franklin Credit Union scandal of the 1980s and
Belgium’s Dutroux affair in the 1990s, and cases where this link is very real
and proven, like the involvement of UK members of parliament in child abuse
and its subsequent cover-up, and, of course, the Epstein scandal.

Fittingly, Society offers no real closure for the viewer, and the fact that its
protagonists escape in the end doesn’t seem to make a difference to the
movie’s villains or the world they operate in. “What are they going to do?”
chuckles Yuzna. “Go to the police and say, ‘The rich are exploiting us’?” As
Billy’s told at the end by one of Society’s elite: “We don’t lose. Ever.”

It’s bleak stuff. But as awful as it is, maybe it’s what people want to see in our
neo-Gilded Age of massive inequality and hyperexploitation. There’s been an
explosion of interest in anti-capitalist entertainment of late, with Western
audiences, unable to find the systemic critiques they’re looking for in English-
speaking cinema, turning to Korean projects like Parasite and Squid Game.
Yuzna says he’s had interest from Korean filmmakers in securing the rights
for a Society remake.

“Horror movies give you a chance to deal with uncomfortable topics in kind
of an entertaining way, but you get a distance from it,” he says. “I don’t want
to see a movie about someone dying of cancer. But if it’s not cancer but, say,
an alien disease . . .”

And maybe this, beyond all its gross-out effects and taboo-breaking, is what
continues to make Society such an uncomfortable watch, whether on
Halloween or any other night. The world it presents is sickening, no doubt.
But it’s the reality of class warfare waged by those at the top against the poor
and working class that’s the scariest thing of all.

Dungeons & Dragons Is a Case


Study in How Capitalism Kills
Art
BY

LEONARD PIERCE
The story of Dungeons & Dragons isn’t just about nerds
creating a wildly popular game and then losing control of it.
It’s also about how the dictates of the free market inevitably
end up stripping even our leisure activities of joy.

Dungeons & Dragons is a perfect illustration of how capitalism bends and deforms any
artistic endeavors to its own ends. (Esther Derksen via iStock / Getty Images)
Our new issue, “The Working Class,” is out in print and online now
Review of Game Wizards: The Epic Battle for Dungeons & Dragons by Jon
Peterson (MIT Press, 2021)

Tabletop role-playing games (TTRPGs, to insufferable nerds like myself) are


suddenly a hot commodity. For those of us who have been fans of the hobby
for many decades, it’s hard to believe that the thing that got us ridiculed in
high school is suddenly a mainstream success. There are podcasts and web
series about TTRPGs! There are blockbuster movies about
TTRPGs! Celebrities play them! What was once a small, marginalized corner
of an already obscure hobby is now . . . well, still pretty small, but growing.
And you can’t talk about TTRPGs without talking about the granddaddy of
them all, the first and the biggest role-playing game: Dungeons & Dragons
(D&D).

D&D is the hobby’s 800-pound gorilla (or, in game terms, its seven-headed
hydra). But it’s not just because it was the first role-playing game — most
fans would argue that it isn’t the best. A big part of D&D’s fame is the history
of the game as a business. The unexpected success of D&D, the financial
struggles that deepened as it grew bigger, and the loss and alienation of
its two cocreators make for a narrative as compelling as any crafted in the game
itself — and show the perils of putting profit before purpose in any artistic
medium.

Following the death of D&D’s creators, Gary Gygax and Dave Arneson, in
2008 and 2009 respectively, there has been a surge of interest in the origins of
TTRPG, particularly as the game’s fanbase has expanded during COVID-19.
Enter Jon Peterson’s Game Wizards: The Epic Battle for Dungeons &
Dragons. Peterson focuses on the business end of D&D, examining a period
of roughly a dozen years from the game’s creation in the mid-’70s to Gygax’s
loss of control of TSR, Inc., its publisher and the company he founded. It’s a
surprising, fascinating, and often depressing look at the legal wrangling,
corporate warfare, and bitter personal recriminations that followed the game’s
path from an amusement for a tiny group of like-minded enthusiasts to an
international business.
The Rise and Fall of TSR, Inc.
Peterson is a good choice to write Game Wizards, the first in a proposed series
about the history and culture of games from MIT Press. He’s enthusiastic about
the hobby without being an uncritical fanboy, and his knowledge of TTRPGs
(and D&D in particular) is broad and deep. His writing style is unflashy but
compelling, and he constructs the story of TSR’s rise and fall soundly and
cleverly. He keeps the bigger picture at the forefront but provides enough
detail to keep readers engaged, and the book is as well-documented as any
academic work — something of a miracle given the often contradictory and
ever changing stories told about TSR by its principals over the years.

But why should anyone outside the realm of TTRPG hobbyists care
about Game Wizards? In a general sense, the hobby has a lot of appeal to us
socialists, who look at the state of the world and wish that we could construct
an alternate one where life is more just and people are more willing to stand
up to tyranny. Like any hobby, TTRPGs have gone through social and
political revolutions. While D&D’s original players were largely
Midwesterners with a libertarian bent, the hobby soon became influenced by a
wave of ’70s psychedelia as it traveled west, and has been pulled in every
other possible direction, from neofascist to old-school socialist.

A game of Dungeons &


Dragons. (Ville Miettinen / Flickr)

But Dungeons & Dragons is also a perfect illustration of how capitalism bends
and deforms any artistic endeavors to its own ends, and how, whatever the
specific details of the situation or the intentions of the people involved, the
demand for profit will always subsume the desire for aesthetic value or artistic
integrity. Just as television puts the goals of its creators behind the demands of
advertisers, and movies are more answerable to accountants and marketers
than to audiences and filmmakers, role-playing games bend the knee to
owners who care more about the bottom line than the needs of play and story.

Peterson notes early on that D&D was an unlikely success. Although Gygax
left behind a comfortable living in insurance to pursue his gaming hobby, he
likely never expected to make more than a modest income. A big reason why
is that D&D was never actually meant to be a product. He wasn’t initially
interested in selling the slick, glossy product line we see in bookstores today;
he wanted to sell a set of rules, essentially guidelines for play that could easily
be adopted and adapted to whatever scenario other hobbyists cared to cook up.
He wanted this because that’s exactly what he had done as a game player and
creator himself, folding J.R.R. Tolkien–style fantasy into his passion for
wargaming.

Role-playing games bend the knee to owners who care more about the bottom
line than the needs of play and story.

It was only when the rules caught a unique moment in the cultural zeitgeist
and became more successful than he and Arneson had anticipated that the
TTRPG changed from a hobby to an industry, and TSR, Inc. shifted from, as
Peterson puts it, “a club to a company.”

To grow, the company had to expand. To expand, it had to acquire capital and
take on debt. And to pay off debt, it had to expand even further. As TSR’s
stockholders began to think the company’s financial expansion was more
important than paying its authors, artists, and designers a fair price for their
work, the workers — not just the company’s employees, but the founders
themselves — felt the familiar sting of alienation from their labor.

Arneson, who always found the creative end of things more enjoyable, wanted
to pursue other TTRPG projects, but TSR denied him credit for his work,
triggering years of lawsuits. Their conclusion guaranteed him a lifelong
income but left him bitter at the feeling he was underappreciated for the
creative work that made D&D a reality. Gygax, meanwhile, overestimated his
own head for business and eventually found himself marginalized and
ultimately forced out of his own company. He lost control of the phenomenon
he created and worked on less prestigious projects; the company continued to
grow but had a number of rocky years of declining reputation, poor
leadership, and financial chaos until it was finally swallowed up by a bigger
company with more money to spend.

Evil Wins in the End


Peterson recounts this story in Game Wizards, but while the book ends in
1985, the full story of D&D does not. TSR, Inc. would eventually undergo
spells of mismanagement, creative lulls, and unprofitability even as it faced
competition from younger, leaner companies who took the ideas Gygax and
Arneson had created in new directions.

In 1997, TSR was acquired by a Seattle company called Wizards of the Coast,
and a few years later, that company was snatched up by gaming giant Hasbro,
becoming another revenue-generating machine in their huge corporate portfolio.
The results have been predictable. D&D may be more popular than ever, but
it’s just another profit-making entity in a company flush with them, and the
company will surely abandon the title the moment it starts to make a
downturn, to be bought by another company more interested in the value of
the name than the worth of the game.

It’s already undergone reworkings designed more to sell products than to


improve the game; its flagship website, D&D Beyond, has introduced a suite
of high-tech innovations to the game to bring it into the internet era, but it’s
also become notorious for extracting as much money from consumers as
possible through usurious licensing and constant upselling. Users pay nearly
as much for digital versions of the core game books as they do hard copies,
and gimmicky items like thematic dice and spin-off products for kids and
teens are cranked out while the main game itself remains largely moribund.
A Dungeons & Dragons–branded augmented reality pin.
(Pinfinity)

What’s more, the behind-the-scenes corporate drama that powers the narrative
of Game Wizards continues well past the sale of TSR, Inc. and its D&D-
related properties to Hasbro. Gygax’s widow, Gail, has carried on an ugly and
very public feud with investors, relatives, and other claimants to his legacy,
while over the past year, no less than three groups have emerged to present
themselves as the “new” TSR, Inc., including one fronted by Gygax’s son
Ernie, who quickly distinguished his with absurd, overblown claims and racist
and transphobic statements. (Like father, like son: Gygax himself didn’t think
TTRPGs would or should appeal to women because of a “difference in brain
function”). It’s a grim story about fallen heroes where evil wins in the end, and
it’s not getting any better.

The hell of it is, it didn’t have to be this way.

The Open Game License


Gygax never anticipated making D&D into a corporate behemoth. He just
wanted to make it easier for other people to join in his favorite hobby. It
wasn’t until the profit-driven logic of capitalism began to dictate the direction
of the game that everything started to fall apart.

It would have been easy enough to release the basic structure of D&D, freed
from the litigious claws of copyright enforcement, to the general public to do
with it whatever they wanted. “Home brews” — campaigns, settings, and even
rule sets derived from D&D’s mechanics but tailored toward the creative
desires of small groups and individuals — have always been a big part of the
TTRPG hobby. Some of the biggest innovations and most creative
expressions came from creators who took the original framework of the game
and created their own worlds in which to play, including some (the wildly
successful Eberron setting, for example, and the gothic-horror Ravenloft) that
TSR made part of its official licensing.

Some of the most enjoyable moments of my life have been spent around a
table, rolling funny-looking dice and pretending to be a wizard.

This was codified during the Wizards of the Coast years when, recognizing
the popularity of home brews, the endless knockoffs of their intellectual
property, and the difficulty of enforcing their copyright, TSR released the
Open Game License (OGL). This allowed other publishers and creators to
release products, within defined limits, using the D&D framework but not
bound by the company’s IP restrictions. While it eventually became just
another revenue extraction stream for Hasbro, the OGL pointed out a direction
that could have freed the entire TTRPG hobby from capital’s clutches.

Without the market’s demands and the accompanying dictates that stifle
creativity in favor of profitability, TTRPGs could have been part of the public
domain, with gamers free to build and expand on whatever ideas they wanted,
either their own or ones drawn from other sources. The games could have
been like baseball. While Major League Baseball (MLB), for example, enjoys
a vastly profitable and government-supported monopoly on
the professional game, no one owns baseball itself, and outside the confines of
MLB’s multibillion-dollar marketing machine, millions of people watch and
play baseball, compete in tournaments, and enjoy it as a rich and malleable
hobby that belongs to the people. There’s no reason other than greed that
TTRPGs can’t do the same thing.

Gary Gygax, who created D&D along with Dave


Arneson, pictured in 1999. (Moroboshi / Wikimedia Commons)

Profit First, Art Second


I’ve been playing Dungeons & Dragons since I was twelve. At that time, the
TTRPG hobby had grown from a marginal one to a national phenomenon;
over the years, I’ve been both alarmed and gratified to see it expand ever
further and accommodate an ever widening range of visions, ideas, and styles
of play, and to welcome in a more diverse body of players than I thought
possible back then. D&D has never been a perfect game, but it’s one that a lot
of people remember the same way they do their first love. It was a formative
experience for us. Some of the most enjoyable moments of my life have been
spent around a table, rolling funny-looking dice and pretending to be a wizard.

But Marvel’s and DC’s growth from small companies making comics for kids
to corporate juggernauts churning out content for billions has made the love
many of its fans once had for the characters turn to dust. Crafts were once an
in-home leisure activity passed on from parents to children; now it’s
a megabillion-dollar industry whose major players are
both greedy and politically toxic. Disney’s gatekeeping of their products to
maximize profit has made them vast amounts of money, but it’s torn out the
heart and soul that once marked those products.

This is more than just hipster disdain for the sudden popularity of what once
was enjoyed by a select few; it’s a recognition that capitalism will always put
profit first and art second — or last. It’s naive to think the same thing won’t
happen with TTRPGs. These are all specific problems of capitalism: comics,
movies, hobbies, and games exist in formerly self-described socialist states,
but were considered the property of the people, not just commodities
controlled by already wealthy investors.

Game Wizards is not just a captivating story about how one man lost control
of his dream. It’s also an object lesson in the way capitalism invariably strips
even our leisure activities of their communal joy.
The Strike at Kellogg’s Is Now
Entering Its Second Month
BY

ALEX N. PRESS
Workers at Kellogg’s cereal plants across the United States
are still on strike. As the company drags out the bargaining
process, workers, now without health insurance, are
demanding a contract without concessions.

Kellogg’s cereal plant workers and their families demonstrate in front of the plant on
October 7, 2021, in Battle Creek, Michigan. (Rey Del Rio / Getty Images)
Our new issue, “The Working Class,” is out in print and online now. 
One month ago, roughly 1,400 workers at Kellogg’s cereal plants across the
country went on strike. The workers at the four facilities — in Battle Creek,
Michigan (the company’s hometown and site of its headquarters); Lancaster,
Pennsylvania; Memphis, Tennessee; and Omaha, Nebraska — opposed the
company’s offer on a new five-year contract.

The key issue is Kellogg’s desire to expand a two-tier system in the contract.
The workers are members of the Bakery, Confectionery, Tobacco Workers
and Grain Millers’ International Union (BCTGM), a union that has struck at
both Frito-Lay and Nabisco in recent months. They say the company’s desire
to expand the contract’s tiers would undermine their union by pitting workers
against one another while also placing a target on the back of those workers
slotted into the higher tier, as the company would see them as a cost in need of
cutting.
The specifics of how this works are as follows: in a previous contract, workers
agreed to the creation of a “transitional” class of employees who receive lower
pay and benefits. That category is capped at 30 percent of the workforce, a
means of keeping Kellogg’s from simply hiring more and more lower-cost
workers. But in the latest negotiations, the company is pushing to lift that cap,
all but ensuring the company will steadily phase out the livable wages and
benefits current workers have secured in favor of transforming Kellogg’s jobs
into low-paid work.

In a range of industries, workers are rejecting tiered contracts, even if it means


going on strike.

As Kevin Bradshaw, vice president of Local 252G and a case-sealer operator


at the Memphis plant, where he has worked for twenty years, told me when the
strike began, two-tier threatens the future of the workplace and the union
itself. “Why would any worker in the future want to be a part of a union that
sold them out and allows them to work the rest of their lives with no insurance
and no benefits once they retire?” he asked.

It is an existential question — one over which Kellogg’s workers are willing


to strike. They are not alone in seeing it that way. In a range of industries,
workers are rejecting tiered contracts, even if it means going on strike.

At John Deere, where ten thousand United Auto Workers (UAW) members
are still on strike after recently rejecting another tentative agreement, the
company’s proposal to weaken benefits for new hires has provoked ire and
outrage among a workforce already subject to a tiered system that was
originally instituted in 1997. At Kaiser Permanente, too, some fifty thousand
health care workers are preparing to walk off the job to resist, among other
issues, the company’s desire to lower wages for people hired beginning in
January 2023.

Kellogg’s, like these other employers, hasn’t realized the moment we’re now


in. Workers have leverage in a tighter-than-usual labor market, and a growing
number of those in unions are using that strength to refuse concessions and try
to claw back those to which they previously agreed.
Workers at Kellogg’s cereal plants know they aren’t alone in taking this stand,
and they know, too, that Kellogg’s has the money to agree to their proposals.
Sales are up; Steve Cahillane, Kellogg’s CEO, made roughly $11.6 million last
year; and the company recently authorized $1.5 billion in stock buybacks to
boost shareholders’ returns. In light of these numbers, the argument that
Kellogg’s can’t afford to accede to workers’ demands falls apart.

Yet the company is still resisting, trying to coerce those who kept its profits
flowing for the past year — some of whom worked more than one hundred
days straight — even at risk to their health and that of their families.
Kellogg’s shut off workers’ health insurance when the strike began, a heinous
attempt to force workers to agree to concessions, and a reminder that tying
health care to employment status always gives the boss an advantage.

Kellogg’s cereal plant in Battle Creek,


Michigan, the company’s hometown and the site of its headquarters.
(rossograph / Wikimedia Commons)

“Most are doing okay, but a few have health conditions that now don’t have
any medical insurance, because the company cut our insurance off,” Bradshaw
told me of Kellogg’s decision to deny strikers their health insurance. “We
have people with scheduled surgeries, and some who, just as we speak, have
been diagnosed with cancer — who have worked more than twenty years,
who today can’t even get chemo and other treatments they need. Kellogg’s is
playing really dirty!”

After weeks of silence, as workers continued their strike and Kellogg’s sought


scabs, the company finally reached out to BCTGM in late October about
returning to the bargaining table. As the union told members at the time,
“They have finally signaled their willingness to reach an agreement that will
include a path for all current and future employees to fully loaded wages and
benefits to get rid of the two-tier system.”
On November 2, the bargaining committee offered another update.
Negotiations had resumed, stretching late into the evening. But “there has
been very little movement from the company on anything.” Kellogg’s
decision to resume bargaining “seems as though [it] was just a media grab.”

The next day, the committee offered its latest update. Negotiations had ended
at 5:19 p.m. after the company gave the union its last, best, and final offer.
The committee wrote:

That offer does not achieve what we were asking, a pathway to fully vetted workers
without takeaways. The company said they would get off their two-tier and get to a
pathway, but they could not find a fully benefited way to achieve this. With this issue,
we were unable to address the other items that are still on the table. We cannot
recommend this offer and will not bring it back for the membership to vote on. We
agreed that we will not have concessions, and that is all their last offer was.

We will be home tomorrow. We will continue this fight for as long as it takes!

Continue to hold the line and stand strong.

In a statement yesterday, BCTGM said, “Kellogg’s continues to insist on


takeaways. The company came to the table insisting that there will only be an
agreement if the union accepts the company proposal exactly as it has been
written. The company’s proposal was filled with conditions and terms as to
what was acceptable to Kellogg’s. These terms and conditions are
unacceptable to our members.”

There are no more bargaining dates on the calendar. Workers say donations to
their strike fund are appreciated, as they will hold the line until the company
changes its tune.
The Labour Left’s Fatal
Contradictions Are Still
Unresolved
BY

JAMES A. SMITH
In the best moments of Jeremy Corbyn’s leadership, the
Labour left captured an insurgent, democratizing spirit. Yet
two years after the Left’s defeat, the top-down approach that
led to the fatal “second referendum” policy continues to
hamper its recovery.

Jeremy Corbyn, former leader of the Labour Party, at an event during the Labour Party
conference in Brighton, UK, 2021. (Hollie Adams / Bloomberg via Getty Images)
Our new issue, “The Working Class,” is out in print and online now. 
Minutes after the exit poll, the Labour left’s narrative was set. Brexit, not
socialist policies, had cost Jeremy Corbyn’s Labour Party the 2019 general
election. Those within the movement who had counseled against a second
referendum on EU membership claimed vindication. Those who took us
toward that policy could either — like Shadow Chancellor John McDonnell
— plead guilty, or protest fatalistically that while the policy was bad, the
Brexit pincer grip would have damned us whatever was done. Left
influencers’ former flirtation with anti-Brexit politics evaporated as
completely as the dodgy People’s Vote campaign itself.

With Britain finally out of the EU, we’re all Lexiters now (though pollster
YouGov reports that 59 percent of Labour members want to rejoin). But there’s a
deeper problem: the dynamics within Corbynism that allowed the radical left’s
shot at state power to be squandered remain substantially uncorrected.

Short of a politically activated revolutionary working class, taking back the


Labour Party remains a component of most socialists’ hope for the future. But
failing to address the dynamics that led the Labour left to get Brexit so wrong
will lead to structurally similar failings over whatever landmark issues a
hypothetical future left electoral project is faced with. Today, the Labour left
in defeat seems worryingly uncurious about the regressive influence earlier
defeated lefts have sometimes inadvertently had.

We’re seeing similar dynamics play out again, through the Left’s response to
the COVID-19 pandemic, and the bandwagon in favor of electoral reform. Of
course, there are many plausible stances the Left could take on such fraught
questions. But the apparent unanimity of the Left on these issues is itself
ominous — not least because of its family resemblance to the capture of
crucial parts of the Left by “Remainism” in the run-up to 2019.

Unsolved Weaknesses
It’s worth emphasizing that the obliteration of Corbynism was not inevitable
after the 2019 general election. As I wrote the week after polling day, the core
political claims of the Left’s “centrist” rivals inside Labour were, if anything,
even more humiliated by the result than Corbyn was. The Left’s real defeat
came in the Labour leadership election that followed, which revealed the
pliability and political shallowness of much of the membership Corbyn had
always relied on.

It is easy to represent Sir Keir Starmer’s leadership as a right-wing coup. But


the disturbing fact is it couldn’t have happened without substantial support
from sincere “leftist” Corbyn supporters, just like the disastrous second
referendum position before it. Sir Keir lied to win, but it hardly takes a paid-
up Freudian to suspect it was more than just deception that led a Labour
membership newly rueful of its Remain-ward drift to eagerly elect the man
most associated with this policy.
The motives leading good Corbynistas to both blunders might best be
summarized using terms coined by the socialist Hal Draper in the 1960s:
leaning toward a technocratic and moralizing “socialism from above,” rather
than chaotically democratizing “socialism from below.”

Today, this dynamic tends to take the form of some combination of the
following habits: anti-populism (a misanthropic suspicion of “the people” as
tendentially reactionary, racist, and ignorant); hyper-partisanship (the reflex to
blame “the Tories” and their supporters, rather than the four-decade cross-
party consensus on neoliberalism); a revulsion at petit-bourgeois nationalism
untempered by an equal dislike of Davos-class globalism (when distance
from both is needed to avoid being subsumed by one or other side in an intra-
elite conflict); and a “retreat from class” toward liberal bourgeois institutions
and procedures.

The dynamics within Corbynism that allowed the radical left’s shot at state
power to be squandered remain substantially uncorrected.

These are the self-defeating temptations of a political faction that wants the
best for people and rarely gets it, and that is increasingly drawn from a class
different to the one it sets out to liberate. In its most glorious moments,
Corbynism transcended these constraints of vision. But the Left’s mistakes —
from the second referendum policy to the election of Sir Keir to the flagship
positions taken after — have invariably been coded by them.

A Defeated Left Is a Dangerous Thing


The second danger of this strain of “socialism from above” is that it has the
potential to be not merely self-sabotaging, but also actively regressive. The
defeat of Corbyn and Bernie Sanders was followed by a carve-up of their
policies by the ruling centrists in the United States and the ruling right wing in
Britain.

Far from the Left “winning the argument,” as Corbyn himself put it, this has
resulted in superficially left-wing ideas around climate, racial justice, anti-
fascism, and indeed a new settlement on the role of the state, being stripped of
their liberatory, democratizing content, and put in the service of projects —
Bidenism and Johnsonism — that are only interested in relegitimizing elite
power.

In becoming cheerleaders of such crumbs, defeated leftist rumps can end up


advancing the exact opposite political outcomes to those they promised when
their projects were still on the rise. If this seems an unduly brutal appraisal of
the left-populism of the 2010s, it’s not like it hasn’t happened before.

As theorists as diverse as Luc Boltanski and Ève Chiapello, Adolph Reed, and
Nancy Fraser have argued, the apparent defeat of the 1968 “New Left” was
followed by many of its demands, aesthetics, and frames of feeling being
embraced by victorious elites as part of neoliberalism’s “new spirit of
capitalism.” As Fraser reflects:

Conscripted in the service of a project that was deeply at odds with our larger, holistic
vision of a just society . . . utopian desires found a second life as feeling currents that
legitimated the transition to a new form of capitalism: post-Fordist, transnational,
neoliberal.

It is increasingly voguish to suggest that state responses to COVID-19 augur


an “end to neoliberalism.” If this is right, we should remember that the last
such transition was to a yet more exploitative form of capitalism, dressed in
the clothing of the defeated left.

Proportional Representation
For all the opportunity afforded by the dire Sir Keir, leadership from the
Labour left of the movement Corbyn bequeathed them has been nonexistent.
From this awful vacuum, two recognizable positions have emerged as the
post-Corbyn left’s main raison d’être: replacing Britain’s “first past the post”
(FPTP) voting system with proportional representation; and pursuing a “zero
COVID” strategy of maximum containment of the virus. Both appear to be
highly popular on the Left, but — I claim — can unfortunately trace their
lineage back to the same “from above” instincts that brought us to the second
referendum position.
This is not the place for a thoroughgoing “Left case against proportional
representation” — and I acknowledge there are reasonable arguments for it.
What is troubling, however, is the apparently unanimous support electoral
reform has in Constituency Labour Parties and within the membership
of Momentum, after barely any public discussion.

Momentum even took PR as its number two policy aim for 2021 — easily
swatted away by Sir Keir for the irrelevance it was — at a conference where
the only issue was the marginalization of the Left through internal party rule
changes. This is the spontaneous priority we emerge from the radical
liberatory experimentation of the Corbyn project with? Really?

Superficially left-wing ideas are being stripped of their liberatory, democratizing


content, and put in the service of projects that are only interested in re-
legitimizing elite power.

The prospect of campaigning on a complex meta-political issue at one remove


from the daily exploitations that govern people’s lives smacks of Corbynism’s
nadir: the constitutional nit-picking over a “no deal” exit from the EU and the
proroguing of parliament in fall 2019.

When the Conservatives legislate to change electoral boundaries and


introduce voter ID, or when the Labour right changes the rules on Labour
leadership elections, we know it is because they doubt their ability to win
“honestly” under the current systems in future. How, then, can we accuse
them over this when our own response to defeat is to beg to move the
goalposts?

The best case for PR is the virtual Tory hegemony that FPTP has yielded over
the past half-century. But Corbyn’s 2017 performance under FPTP would
have won handily in any previous election since the millennium. Do we now
join with the Labour right and the entire political class in pretending that
never happened? It will never happen again if we adopt a system which has in
every other national context made power brokers of centrist liberals.

FPTP, it should be added, was hardly bad for Labour governments in the
1960s and ’70s. If we wanted to argue that something has changed in British
democracy that illegitimately makes Tory hegemony structurally
insurmountable, a more obvious and direct target would be media ownership.
Unlike PR, this is something the Left could meaningfully campaign over
without the blessing of the Labour conference or leadership, and — such are
the sins of journalists — with the appropriate populist framing, could rightly
garner visceral public support.

Anti-populist in its disbelief that a near-majority of the “rainy fascism island”


would ever support Corbynite policies again, hyper-partisan in its delusion
that “taking the fight to the Tories” with a progressive alliance of Liberal
Democrats and Greens is something that animates huge swathes of people,
and a retreat from class in its eagerness to make alliances with reactionary
liberal factions (inside and outside the party): the campaign for proportional
representation is a virtual checklist of the self-defeating pathologies of
“socialism from above,” and a mirror image of the campaign for a People’s
Vote. Perhaps it’s worse than that. The affiliated organizations listed by the
pro-PR group Labour for a New Democracy is a rogue’s gallery of unrepentant
professional Remainers.

The Response to COVID-19


If the Labour left’s newfound enthusiasm for PR is likely to be merely self-
sabotaging, “Zero COVID” — a monomaniacal insistence on maximal
containment until the disease is entirely eradicated — is outright regressive. I
am not going to attempt to outline an alternative pandemic strategy to the
lockdowns adopted in most major countries. Nor do I make an informed
prediction about how the balance sheet on lockdowns is going to look in
retrospect for the rich world (the appalling mistake of obliterating the informal
economies of poor countries with much younger populations is already clear).

Once again, what is problematic in the first instance is the extraordinary


unanimity of the post-Corbyn left in supporting the most “from above”
position possible. This suggests another continuity with the drift to the second
referendum. But it also risks putting the Left in the service of a dramatically
regressive transformation in society, analogous to that the ’68 New Left has
been accused of accommodating in the neoliberal revolution.

If we wanted to argue that something has changed in British democracy that


illegitimately makes Tory hegemony structurally insurmountable, a more
obvious and direct target would be media ownership.

It is interesting to reflect on the other responses a newly marginalized left


could have adopted in the face of an unprecedented suspension of liberties and
upward movement of wealth and power. To record in real time the material
losses experienced by the working class during lockdown in preparation for a
1945-style reckoning after the crisis? To campaign for not-at-risk furloughed
workers to be deployed to pandemic-controlling infrastructure projects (as
they were in parts of China)? To at least uphold a culture of enlightened
skepticism about the sudden and uniform reversal of almost all public health
orthodoxy: not least the World Health Organization’s established commitment
to community-specific treatment and holistic assessment of harms, and its
explicit ruling out of lockdowns just weeks before the historic volte-face.

Instead, the post-Corbyn left has spent the pandemic urging a strategy that —
if pursued — could only entail yet more unquestioning submission to a
government it supposedly regards as “far right”; to pharmaceutical companies
it had spent the 2019 election representing as vultures circling our most
intimate data; to borders it fulminated against whenever they were mentioned
by Brexiteers; and to police it was at the time calling to be abolished as agents
of racism and gendered violence.

It is true, some have seen lockdowns as a bridge to liberatory policies such as


Universal Basic Income. But has the gift of unlimited moral ballast for
lockdowns ever been attached to conditions of any kind? Was the Left’s
support for undemocratically imposed measures whose implementation it
couldn’t influence really likely to result in the spontaneous flowering of
Corbynism by other means?

It needs to be reckoned with that the Left has not just been unreflectingly
complicit with mainstream liberal opinion in this, as it was sometimes argued
to have been over Brexit. It has been the most pro-lockdown of anyone: the
UK’s main zero-COVID campaign describes itself as “jointly convened by
Diane Abbott MP and the Morning Star.” Meanwhile, the closest thing to the
Labour left in government, in the Welsh Assembly, has followed the Scottish
National Party in driving through an illiberal regime of vaccine passes —
winning on the technicality of an opposition MP failing to join the Zoom vote
in time.

Public compliance with lockdowns was formidable, and polling unnervingly


suggests support for some lockdown measures becoming permanent, however
much the pandemic recedes. Vaccination is very high in Britain, but elsewhere
it has already become a focus for new kinds of social control.

In France, we see gendarmes barging through restaurants ensuring vaccine


status. In the United States, the withdrawal of medical rights and basic
freedoms for the unvaccinated has become acceptable liberal opinion, and, in
Colorado, law. Yet in Britain, the Left’s energies of resistance have been
reserved for the fight against a barely existent “COVID skepticism.”

We will see who benefits from the Left’s abandoning any critique of anti-
COVID measures to the fringe right, when healthy vaccinated people
reasonably blanche at the prospect of future lockdowns, indefinite boosters,
and vaccines for healthy children, and the probable long-term obesity and
mental health disaster set in motion by lockdowns starts to kick in.

To refer to my checklist again: as with the second referendum and PR, the
Left’s instinctive reaction to the lockdowns was anti-populist: it anxiously
suspected the public of being selfish yahoos, when they were in the main
either deeply compliant or sensibly flexible (e.g. defying the ban on seeing
loved ones outside or visiting beaches, but in many cases continuing to mask
in crowded areas after the mandate to do so expired).

This reaction has also been hyper-partisan: a government of asset strippers led


by a celebrity journalist has been unsurprisingly ineffectual. But the Left has
been so eager to attribute the country’s poor COVID performance to Boris
Johnson’s personal genocidal impulses, that it has missed the opportunity to
tell the more important story: that Britain’s poor pandemic response was the
outcome of forty years of neoliberal demobilizing of state capacity, which passive
lockdowns have done nothing to reverse. Johnson’s popularity is undented by
the Left’s histrionic representation of him. So, what was gained?

Finally, the increasing influence over the Left of a downwardly mobile


professional class meant it was more likely to see lockdown from the
perspective of those who often work from home anyway (or who stood to save
a fortune on commuting), than it was to take the perspective of the “essential
workers” making deliveries to them in increasingly alienated conditions.

For the Many?


The 2017 election proved that a functional majority in Britain can support
radically social democratic and even anti-imperialist policies, even under FPTP.
But it comes at the entry price of a performed willingness to show trust in
people beyond the Left’s familiar constituencies, and a populist precision
about who stands to gain by supporting us. For the Many, Not the Few.

Everything that has happened since has been a journey away from that, and it
may be the case — with the Brexit question closed — that it will be a long
time before the Left gets such another opportunity to differentiate itself from
the neoliberal centrists the Labour Party forces it to fraternize with.

Electoral reform and COVID-19 are — for now — too politically


indeterminate in Britain to represent such a test, and the Left’s position on
them (in England and Scotland at least) has been broadly ignored. Which is
fortunate, because on both issues it has been as anti-populist, hyper-partisan,
class-blind, and malignly “from above” as it was on the drift to the second
referendum. It’s not too late. Better shape up.
O Vox está se tornando o pivô
da extrema direita na América
Latina
POR

NATHÁLIA URBAN

Partido de extrema direita da Espanha, fundado há


poucos anos, reivindica a herança colonial, aprofunda
relação com a família Bolsonaro e Steve Bannon e almeja
reorganizar a direita global – em um momento em que os
movimentos indígenas são a ponta de lança da
resistência.

No dia 12 de outubro, os espanhóis celebram o Dia da Hispanidade, que


também coincide com o Dia das Forças Armadas. Essas celebrações já são
normalmente questionáveis, uma vez que exaltam o caráter imperialista da
cultura espanhola. 

Na atual conjuntura, as celebrações podem ser analisadas como a


consolidação da agenda neocolonial, racista e anticomunista dos movimentos
da extrema direita espanhola, em especial o partido Vox – cujo presidente,
Santiago Abascal, reivindicou a data dizendo estar orgulhoso por “nos
sentirmos herdeiros daqueles que descobriram o novo mundo”. 

Abascal diz sentir orgulho de ser herdeiro 

“daqueles que acabaram com o genocídio dos povos indígenas, daqueles que
inventaram o Império dos Direitos Humanos, dando ao mundo a maior obra
de fraternidade universal que um povo já contribuiu, do intrépido que deteve
os turcos no Mediterrâneo e, ainda, daqueles que regaram com o seu sangue
os campos da metade da Europa para fazer uma Espanha à medida dos seus
sonhos!”
Não é surpreendente que ele ignore o genocídio dos povos originários da
América, a escravidão e todas as outras mazelas que o colonialismo provocou,
o preocupante é que sua retórica esteja exercendo influência em outros países
do mundo, em especial daqueles que sentiram na pele a fúria do colonialismo
hispânico. 

Apesar do Vox liderar essa movimentação, não podemos esquecer dos


conservadores tradicionais do Partido Popular da Espanha (PP), Isabel Díaz
Ayuso, presidenta da Comunidade de Madrid e membro do partido,
que disse que “o indigenismo é o novo comunismo”. Ayuso ainda acusou as
articulações indígenas de quererem “dinamitar a herança cultural hispânica na
América Latina” — ignorando o genocídio cometido contra esses povos pelos
seus ídolos numa prática que dura até hoje.

Foro de Madrid 
Graças ao Foro de Madrid – uma iniciativa lançada em 2020 na Espanha,
Portugal e países latino-americanos, criada “para conter os avanços do
comunismo” –, o Vox está tomando um papel de liderança, no nosso
continente, nessa cruzada de guerra cultural proposta pela extrema direita
global. Em um vídeo gravado para o Vox pelo filho de Jair Bolsonaro, o
deputado federal Eduardo Bolsonaro, membro do Foro de Madrid, ele disse
que “nossos inimigos sabem que se deixarem que falemos a verdade,
ganharemos essa guerra cultural”. 

O denominador comum usado para unir vários atores à essa narrativa é, por
sua vez, um eurocentrismo construído a partir da tradição do colonialismo
espanhol e português, que mistura um apego desenfreado ao
embranquecimento social e cultural e o cristianismo usado como ferramenta
de dominação, como o que aconteceu a 600 anos atrás. 

Não é à toa que o Vox e outros signatários da Carta de Madrid, documento que
assinala a aliança entre conservadores ibéricos e latino-americanos, se
sentiram tão compelidos em impulsionar Jeanine Áñez, a ditadora que
assumiu o poder no Bolívia após o golpe de 2019, para o Prémio Sakharov
para a Liberdade de Pensamento dado pela União Europeia, ela acabou
perdendo o prêmio para opositor russo Alexei Navalny. Ao se autoproclamar
presidenta da Bolívia em 2019, Áñez bradou “A Bíblia volta ao Palácio”
fazendo uma crítica ao pluralismo cultural e religioso promovido pelo
Movimento ao Socialismo de Evo Morales, de etnia aymara, cujo partido não
só é de maioria indígena como, ainda, promoveu uma reforma constitucional
para reconhecer o plurinacionalismo boliviano.

Essa iniciativa está conseguindo criar uma rede de apoio internacional,


manipulação de conteúdo e de estratégias geopolíticas. Esse intercâmbio de
experiências entre a extrema direita é algo que foi idealizado por Steve
Bannon e o seu The Movement, mas o Foro de Madrid conseguiu levantar isso
a um outro patamar, justamente por conta da relação histórica colonial da
Espanha na América Latina.

Esse suposto contraponto à lendária articulação latina Foro de São Paulo é, na


verdade, uma mistura de ódio cego e recalque. Recentemente, tivemos o
lamentável episódio em que a TV Record convidou a espanhola Cristina Seguí
para falar sobre as conspirações desvairadas da extrema direita de seu país,
com ela chegando a afirmar, sem apresentar provas, que “o narcotráfico
patrocinou partidos de esquerdas na Europa e na América Latina”, incluindo o
PT, e claro, o Foro de São de São Paulo.

Ascensão do Vox
OVox foi fundado em 2013 por militantes mais radicais do PP, tradicional
partido de centro direita espanhola da era democrática que, no entanto, sempre
tolerou quadros de extrema direita em suas fileiras, levando em consideração
que o regime fascista em seu país só terminou tardiamente nos anos 1970. A
memória ainda muito recente do fascismo fez com que a extrema direita não
conseguisse se organizar em um partido próprio, ainda que continuasse a
existir e atuar, fazendo a Espanha parecer imune a onda da extrema direita que
assolava a Europa desde os anos 1980 e que piorou após a crise de 2008. 

Ainda assim, foi só a partir de 2018 que o Vox tomou um protagonismo


perigoso. Durante as eleições regionais na Andaluzia, o então recém-formado
partido populista de direita obteve 11,1% dos votos e 12 dos 109 assentos no
parlamento regional. Esse sucesso eleitoral foi repetido durante as últimas
eleições regionais em maio de 2019: das 12 comunidades autônomas que
realizaram eleições, ele ganhou representação em 7 (em Madrid e Murcia,
pode-se dizer que o Vox tem um papel potencialmente central no equilíbrio de
poder). Nas eleições gerais da Espanha em novembro de 2019, o Vox obteve a
terceira maior parcela de votos. 

Além das pautas que todos já conhecem, como xenofobia, racismo,


negacionismo e etc., o Vox também levanta questões culturais problemáticas
contra memórias históricas (como a exumação do ditador espanhol Francisco
Franco), contra o feminismo ou contra a autonomia ou independência regional
(o conflito catalão e basco). Todas essas questões foram enquadradas na
chamada polarização esquerda-direita. O eleitorado de Vox também se
encaixa no perfil sociodemográfico dos partidos populistas de direita radical:
seus eleitores tendem a ser jovens, do sexo masculino e com menos
escolaridade.

Liderado por Santiago Abascal, um sociólogo da cidade de Bilbao, no País


Basco, região historicamente separatista. Ele se autodenomina um “patriota
forte”, é neto de um prefeito franquista e filho de um líder do Partido Popular
Basco. Por conta de sua história familiar, diz que anda armado para se
proteger de possíveis ataques do grupo separatista basco Pátria Basca e
Liberdade (ETA).
O contra-ataque
Além do apoio escancarado às extremas direitas latino-americanas e o
saudosismo do colonialismo, não podemos esquecer que isso se choca com a
agenda de união das nações da América Latina, que buscam há décadas
enfrentar esse passado aterrorizante. 

O dia 12 de outubro coincidiu com a celebração da primeira viagem de


Cristóvão Colombo às Américas, razão pela qual a data também é
comemorada nos Estados Unidos, onde eles chamam de Dia de Colombo –
muito embora esse dia não tenha nada de comemorativo, pois marca o início
do processo de genocídio dos povos originários. Tanto é que em diversos
países da América Latina se comemora o Dia da Resistência dos povos
indígenas na mesma data. 

Enquanto a extrema direita espanhola faz apologias ao colonialismo, a


esquerda latino-americana além de estar, cada vez mais, celebrando os povos
originários, se revoltou com a postura de parte dos espanhóis. O presidente
venezuelano, Nicolás Maduro, escreveu uma carta ao Rei da Espanha, Felipe
VI, com o propósito de protestar contra a celebração da conquista da América
e exigir respeito pela memória dos povos indígenas que sofreram durante este
processo Maduro disse

“Nossa intenção com esta carta é fazer ao mesmo tempo um alerta ao povo
espanhol, um apelo à sua consciência histórica e à sua razão política, em face
do ressurgimento da supremacia e do fascismo que nos leva de volta à parte
mais escura da Europa imperial”.

O venezuelano também se mostrou disposto a unir forças com Andrés Manuel


López Obrador, o primeiro esquerdista a presidir o México, que no começo do
seu primeiro ano de mandato em 2019 gravou um vídeo antológico do sítio
arqueológico de Comalco, onde ele disse

“Enviei uma carta ao rei espanhol [Felipe VI] e outra ao Papa para que os
abusos sejam reconhecidos e um pedido de desculpas possa ser feito aos
povos indígenas pelas violações do que hoje chamamos de direitos
humanosHouve massacres… A chamada conquista foi feita com a espada e a
cruz. Eles ergueram igrejas em cima de templos… Chegou a hora de se
reconciliar, mas primeiro eles deveriam pedir perdão.” 

O secretário executivo da Aliança Bolivariana dos Povos de Nossa América


(ALBA-TCP), Sacha Llorenti, resumiu bem a situação: 

“A direita espanhola vem construindo um discurso que visa mudar o passado.


Seu dinheiro irá para candidatos que garantem o fornecimento de recursos
naturais e a privatização.Eles querem perpetuar a “maldição de Malinche” de
pegar ouro como bugigangas. Mas não vivemos em 1492.”

Sobre os autores

NATHÁLIA URBAN

é uma jornalista independente e comentarista política, anti-imperialista.


Nascida no Brasil mas radicada na Escócia.

O neofascismo na semiperiferia do sistema imperialista


O professor titular de Ciência Política da Unicamp Armando Boito
explica por que caracterizar o bolsonarismo como neofascismo
5 de novembro de 2021, 15:33 h Atualizado em 5 de novembro de 2021, 15:53
   

A derrota do fascismo de Bolsonaro será a derrota do


sistema (Foto: REUTERS/Adriano Machado)
Por Armando Boito Jr.

(Publicado no site A Terra é Redonda)

Tenho caracterizado o movimento de apoio a Bolsonaro bem como o


seu governo como neofascistas (Boito, 2019). Neste texto, pretendo
retomar essa tese, apresentá-la com argumentos talvez mais apurados
e indicar minhas diferenças com a bibliografia que recusa tal
caracterização.

Note o leitor que estou falando de um movimento e de um governo a


dominante neofascista e não de uma ditadura fascista. Alguns
observadores e analistas da política brasileira têm argumentado que
não cabe caracterizar o bolsonarismo como fascismo em geral ou
como uma das variantes desse fenômeno político porque no Brasil
ainda há eleições e também outros componentes caracterizadores da
democracia. Sim, no Brasil ainda nos encontramos numa democracia
burguesa, porém é evidente que é possível formar-se um movimento
social fascista num regime democrático e, talvez menos evidente, é
possível a constituição de um governo fascista sem que ocorra a
passagem para uma ditadura fascista.

Hitler iniciou o processo de transição para a ditadura em menos de um


mês após assumir a chefia do governo, mas no caso do Governo
Mussolini, esse, nos seus primeiros anos, manteve-se dentro dos
limites do regime democrático burguês. Palmiro Togliatti (2010) vai
mais longe na sua avaliação da trajetória desse governo. Sustenta que
o Partido Nacional Fascista não tinha sequer um “projeto de ditadura”
definido ao chegar ao poder. Para Togliatti, a implantação da ditadura
fascista foi se colocando como objetivo e se tornando viável em
decorrência da evolução da situação econômica e da luta de classes no
início e em meados da década de 1920.[1]

No Brasil, temos, hoje, um governo predominantemente neofascista,


baseado num movimento neofascista, mas até aqui o que ainda temos
no que diz respeito ao regime político é uma democracia burguesa,
embora deteriorada. Por que democracia burguesa? Porque os
mandatários foram eleitos e o Congresso Nacional segue funcionando
e tendo influência efetiva no processo decisório – influência limitada
pelo hiperpresidencialismo brasileiro, mas essa limitação não é
novidade desta conjuntura. Por que deteriorada? Fundamentalmente,
por dois motivos. Porque, desde o início da Operação Lava Jato e
graças à chamada Lei da Ficha Limpa, foi criado pelo aparelho
judiciário um filtro político para impugnar candidaturas de esquerda
ou de centro-esquerda com chances de vitória e porque as instituições
políticas, inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF), encontram-se
sob a tutela das Forças Armadas, particularmente do Exército.
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Como exemplos, basta lembrar o enquadramento público do STF em


abril de 2018 pelo General Eduardo Villas Bôas, então comandante do
Exército, determinando a rejeição do habeas corpus solicitado pela
defesa do ex-presidente Lula da Silva e também a proibição que pesa
sobre o Legislativo de legislar, ele próprio, sobre a aposentadoria dos
militares – o projeto em tramitação foi elaborado pelas próprias Forças
Armadas. A essa deterioração na forma de organização democrática
das instituições do Estado corresponde alterações no regime político
vigente, plano no qual podemos observar ameaças e atentados às
liberdades políticas – censura, atentados ao direito de reunião, prisões
arbitrárias etc.

Por um conceito geral e teórico de fascismo

Trata-se, então, de um movimento neofascista e de um governo


predominantemente neofascista, mas não, pelo menos até aqui, de uma
ditadura fascista. Cabe, agora, a pergunta geral: por que podemos falar
em fascismo ou neofascismo no século XXI e num país localizado na
periferia do capitalismo internacional? O fascismo não seria um
fenômeno político típico do século XX e dos países imperialistas?
Nessa matéria, há algumas respostas que, a nosso ver, são equivocadas
e que devem ser criticadas antes de apresentarmos a nossa própria
definição.

O primeiro equívoco provém da proposta de confinar o fenômeno


fascista à Itália do período de 1919 a 1945 ou, quando muito, também
à Alemanha desse mesmo período. Um prestigiado historiador do
fascismo, Emilio Gentile, publicou recentemente um livro para
defender essa tese restritiva (Gentile, 2019). Trata-se de uma posição
historicista radical: o conceito de fascismo, e devemos entender que os
conceitos em geral, só serviriam para designar fenômenos do período
no qual e/ou para o qual foram criados. Gentile resume a sua tese com
a seguinte afirmação: o conceito de fascismo é a própria história do
fascismo e essa não teve predecessores no século XIX e não terá
sucessores no século XXI (Gentile, 2019, p. 126). A crítica
aprofundada a esse tipo de enfoque demandaria um espaço que não
dispomos neste texto.
O que cabe argumentar é que, do mesmo modo que generalizamos
quando elaboramos e utilizamos o conceito de democracia, ditadura,
monarquia, república e outros conceitos da ciência política, devemos
também generalizar quando elaboramos e utilizamos o conceito de
fascismo, que é um movimento político reacionário das camadas
intermediárias da sociedade capitalista e um tipo específico de
ditadura burguesa.

Gentile não é um marxista, mas o historicismo está presente também


em algumas tradições marxistas, a começar pelo marxismo italiano.
Recentemente, um autor marxista, Atilio Boron, escreveu sobre
Bolsonaro recorrendo à mesma ideia geral: o fascismo é um fenômeno
histórico não repetível (Boron, 2019). O argumento específico de
Boron é o de que a fração burguesa hegemônica na ditadura fascista
era a burguesia nacional, entidade política que teria desaparecido em
decorrência da nova onda de internacionalização da economia
capitalista. Eu fiz uma crítica desenvolvida dessa tese no artigo “O
neofascismo no Brasil” (Boito Jr, 2019). Não entrei no mérito – e
tampouco vou entrar no presente texto – da questão de saber se as
burguesias dos diferentes países capitalistas se fundiram, ou não,
numa burguesia única mundial.

Quero apenas indicar o seguinte. No que respeita ao regime político, o


fascismo é um tipo de ditadura e, como outros regimes políticos, ele
comporta, dentro de certos limites, composições distintas do bloco no
poder com diversas frações burguesas hegemônicas. Um mesmo
regime político comporta diversas forças hegemônicas e, o que não é
necessariamente um mero reverso da medalha, uma mesma fração
burguesa pode exercer sua hegemonia em diferentes regimes. De um
lado, a democracia burguesa serviu para a organização da hegemonia
do médio capital na época do capitalismo concorrencial e para a
organização da hegemonia do grande capital monopolista a partir do
século XX. De outro lado, enquanto na Itália e na Alemanha, o grande
capital instaurou a sua hegemonia por intermédio do fascismo, essa
mesma fração burguesa chegou ao posto hegemônico na Inglaterra e
nos Estados Unidos por intermédio da democracia burguesa. A relação
entre bloco no poder e regime político, embora não seja aleatória, não
é unívoca.
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O segundo equívoco que pretendemos criticar diz respeito aos autores


que, como nós, trabalham com um conceito geral de fascismo, mas
com um conceito de fascismo que consideramos descritivo. Vamos
nos referir a dois autores que publicaram trabalhos que obtiveram
repercussão. Estamos pensando em Umberto Eco, com o seu pequeno
livro Il fascismo eterno, o qual se encontra na trigésima edição, e em
Robert Paxton, com o seu importante trabalho Anatomy of facism.
Nesses casos, dizemos que o fascismo é definido de modo descritivo
porque tais autores, seguindo o que talvez seja a tendência
amplamente dominante nos estudos sobre o fascismo, definem-no
construindo uma lista, maior ou menor, daqueles que seriam os
atributos do fascismo como fenômeno político e ideológico.

Umberto Eco enumera quatorze características do fascismo (Eco, pp.


34-48); na conclusão do seu livro, Paxton define o comportamento
político fascista recorrendo a nada menos que vinte atributos (Paxton,
2004, pp. 218-220). Esse tipo de definição deve ser denominado
descritivo porque os seus autores não explicitam os critérios teóricos a
partir dos quais selecionam os atributos do fascismo; acreditam, num
enfoque empiricista radical, partir exclusiva e diretamente dos fatos
empíricos para criar o conceito; não nos dizem o que é principal e o
que é secundário; não qualificam as relações existentes entre um e
outro atributo, isto é, se formam ou não um todo organizado e
tampouco nos dizem como proceder diante de um determinado
fenômeno histórico que, eventualmente, apresente apenas uma parte
da lista de características arroladas para caracterizar o conceito.

Um movimento e um regime ditatorial reacionários de massa

Nós entendemos que o conceito de fascismo é um conceito geral.


Entendemos também que a definição desse conceito deve ser teórica e
não descritiva, isto é, deve, partindo simultaneamente tanto dos fatos
históricos quanto de uma teoria geral da política e do Estado, localizar
aquilo que é essencial ao fenômeno, oferecendo um rumo para as
análises históricas. Do mesmo modo que ao definirmos o capital como
o valor que se valoriza; o Estado como uma instituição específica que
organiza a dominação de classe e as classes sociais como coletivos
definidos pela posição que ocupam na produção social, do mesmo
modo que ao lançar tais definições não fazemos senão indicar um
rumo para o desenvolvimento da análise, e não apresentar uma lista
exaustiva das características de cada um desses fenômenos – capital,
Estado e classes sociais –, assim também ao apresentarmos uma
definição teórica de fascismo o que obtemos é um norte para a análise
histórica.

Todos os tipos históricos de Estado de classes dominantes


exploradoras – escravista, feudal, capitalista – apresentam-se,
historicamente, na forma ditatorial ou democrática. O fascismo,
enquanto forma de organização do aparelho e do poder de Estado, é
uma variante da forma ditatorial do Estado capitalista, ou seja, é um
tipo de ditadura distinto, por exemplo, da ditadura militar. Porém, o
fascismo é também e como já indicamos a ideologia que justifica essa
ditadura e o movimento que, coesionado por essa ideologia, pode lutar
para implantar tal tipo de ditadura ou para mantê-la.  Os textos nos
quais podemos nos apoiar são as análises marxistas sobre o fascismo.
Pensamos em autores coevos do fenômeno e em outros mais recentes
como: Palmiro Togliatti e o Corso sulli avversari: Le lezioni sul
fascismo, obra que reúne o conteúdo das palestras proferidas pelo
dirigente comunista italiano em 1935; Daniel Guerrin, Fascisme et
grand capital de 1936, e Nicos Poulantzas, Fascisme et dictature de
1970.

Definimos o movimento fascista como um movimento reacionário de


massa e, seguindo Togliatti, a ditadura fascista como um regime
reacionário de massa. Esse elemento distingue a ditadura fascista da
ditadura militar – questão muito discutida na esquerda brasileira nas
décadas de 1960 e 1970. O fascismo é, digamos assim e tomando
emprestada a terminologia da biologia, o gênero, sendo o fascismo
original e o neofascismo brasileiro duas espécies diferentes desse
gênero à qual ambas pertencem. Cada uma das duas espécies citadas
realizam as qualidades do gênero de um modo particular. Tentamos
indicar essa semelhança geral e as diferenças específicas na tabela
abaixo.

Gênero e espécie: fascismo original, neofascismo


O fato de se tratar de um movimento de uma camada intermediária da
sociedade capitalista é importante. O fascismo não é um movimento
burguês, embora chegue ao governo cooptado pela burguesia e
embora seja, desde o seu início, ideologicamente dependente da
burguesia. Ele é um movimento de massa de uma camada
intermediária e apresenta, portanto, elementos ideológicos e interesses
econômicos de curto prazo que podem destoar da ideologia e dos
interesses econômicos imediatos da burguesia. Com a sua crítica
conservadora do capitalismo, de tipo pequeno burguês, o movimento
fascista original chegou, em diversos aspectos, a confundir socialistas
e comunistas – Poulantzas (1970) fala de uma ideologia
“anticapitalista de status quo”.

No Brasil, o movimento de massa reacionário se formou em 2015 na


campanha pela deposição de Dilma Rousseff. De lá, saiu, após
depuração, o movimento especificamente neofascista – o
bolsonarismo. A crítica desse movimento e do seu entorno, também de
classe média, à corrupção e à dita “política do toma lá dá cá” chegou a
confundir partidos de esquerda e de extrema-esquerda. A ala
hegemônica do PT e inclusive a equipe governamental do governo
Dilma, embaladas pela ideologia segundo a qual as instituições do
Estado burguês são socialmente neutras – o dito “republicanismo” –,
acreditou que a Operação Lava Jato visava realmente a combater a
corrupção, e não a instrumentalizar a luta contra a corrupção em nome
dos interesses do capital internacional e atendendo as expectativas
ideológicas da alta classe média (Boito Jr., 2018). Por sua vez, o
PSTU e uma das alas do PSOL foram atraídos pela Lava Jato, nesse
caso movidos inclusive pelo erro político de eleger o reformismo do
PT como inimigo principal a ser combatido. Em grau maior ou menor,
parte da esquerda e da centro-esquerda tampouco percebeu que a
crítica à velha política era e é a crítica à política parlamentar, isto é, à
própria democracia burguesa. O grupo neofascista aspira governar por
decreto.

A base de massa do movimento fascista cria uma situação complexa


quando tal movimento assume o governo, o que ocorre graças à sua
cooptação pela burguesia e particularmente por uma das frações
burguesas que disputam a hegemonia no bloco no poder. Hitler e
Mussolini tiveram de se desvencilhar, para cumprir a função de
organizar a hegemonia do grande capital monopolista, da chamada ala
plebeia do fascismo, chegando, como é sabido, a eliminar fisicamente
a liderança dessa ala e tiveram de alterar – no caso de Mussolini – ou
tornar letra morta – no caso de Hitler – o programa original do
movimento (Guerrin, 1965; Poulantzas, 1970; Togliatti, 2010; Shirer,
2017). Em escala menor, Bolsonaro é levado, para atender
prioritariamente, mas não exclusivamente, aos interesses do capital
internacional e da burguesia associada, a entrar em conflito com os
segmentos da classe média que aspiram ao fim daquilo que
denominam “velha política” e com o movimento dos caminhoneiros,
seus apoiadores que se sentem traídos pela política de preços dos
combustíveis que atende aos interesses dos investidores
internacionais.

A crise política que gera o fascismo original é mais grave que a crise
política brasileira que gerou o neofascismo. Ambas possuem
elementos gerais comuns: estão articuladas com uma crise econômica
do capitalismo; apresentam uma crise de hegemonia no interior do
bloco no poder – disputa entre o grande e o médio capital, num caso, e
disputa entre a grande burguesia interna e grande burguesia associada
ao capital internacional, no outro –; comportam uma aspiração da
burguesia por retirar conquistas da classe operária; são agravadas pela
formação abrupta de um movimento político disruptivo de classe
média ou pequeno burguês; comportam uma crise de representação
partidária da burguesia; são marcadas pela incapacidade dos partidos
operários e populares apresentarem solução própria para a crise
política – os socialistas e comunistas foram derrotados antes da
ascensão do fascismo ao poder (Poulantzas, 1970) e o movimento
democrático e popular no Brasil vem sofrendo uma série de derrotas
desde o impeachment e revelando incapacidade de reação (Boito,
2018 e 2019). Essa semelhança entre as duas crises é muito forte e é
de importância maior para caracterizar o fascismo e explicar a sua
origem nas sociedades capitalistas (Poulatazas, 1970). Há, contudo,
um componente fundamental que diferencia a crise política na qual
nasceu o fascismo original da crise política na qual nasceu o
neofascismo. E essa diferença nos leva de volta para a questão da base
de massa do fascismo.

A “esquerda” que o fascismo original enfrenta é um movimento


operário de massa, organizado em partidos socialista e comunista, e
esforça-se, por exigência da luta política de então, para replicar esse
tipo de organização, criando, como sucedâneo das células e sessões, as
milícias. O seu inimigo é mais ameaçador e poderoso. Já o
neofascismo, esse tem pela frente uma “esquerda” que é representada
por um reformismo burguês – o neodesenvolvimentismo dos governos
do PT – que se apoia numa base popular desorganizada. O seu inimigo
ameaça menos e é politicamente mais frágil. Nessa situação, o
neofascismo organizou-se fundamentalmente por intermédio das redes
sociais. No primeiro caso, multiplicaram-se as ações de bandos
fascistas promovendo agressões físicas, assassinatos políticos,
incêndios de sedes das organizações operárias, contra judeus, ciganos,
comunistas e contando, sempre, com a condescendência do aparelho
judiciário (Shirer, 2017). No segundo caso, tivemos as agressões
verbais e as ameaças em locais públicos ou pelas redes sociais, as
manifestações ostensivas de preconceito contra a população da Região
Nordeste, os negros, e população de baixa renda e contando com a
colaboração do aparato judicial e policial para ameaçar reuniões dos
movimentos democráticos e populares e prender as suas lideranças.

Hoje, o neofascismo dá mostras de incompetência organizativa. As


duas manifestações convocadas para defender o governo foram fracas.
O próprio governo hesitou na convocação e acabou recuando. O
ideólogo desse movimento, Olavo de Carvalho, deu-se conta dessa
debilidade e está conclamando a malta a se organizar para poder
defender o governo. Não está descartada a hipótese de esse
movimento declinar e o seu grupo dirigente ser absorvido pela
democracia deteriorada que contribuíram para criar no Brasil. É
preciso ter em mente a sábia observação de Palmiro Togliatti: pode-se
ou não chegar a uma ditadura fascista em decorrência da situação
econômica e da luta de classes e não apenas, e nem principalmente,
em decorrência da existência de ambições autoritárias dos fascistas. E,
acrescentamos nós, o movimento neofascista pode, no limite, se
dissolver ou moderar o seu programa, do mesmo modo que, mudando
o que deve ser mudado, um partido de esquerda pode moderar o seu
programa e se descaracterizar com a finalidade se manter no poder
governamental. O que deve ser mudado aqui é o seguinte: o
movimento neofascista tem como obstáculo a forma de Estado
democrático burguesa, enquanto um movimento socialista tem como
obstáculo o próprio Estado burguês.

Publicado originalmente na revista Crítica Marxista no. 50.

Referências

BOITO JR., Armando. “O neofascismo no Brasil”. Boletim LIERI,


UFRRJ, número 1, maio de 1919. Acessível
em: http://laboratorios.ufrrj.br/lieri/wpcontent/uploads/sites/7/2019/05
/Boletim-1-O-Neofascismo-no-Brasil.pdf

BOITO JR., Armando. Reforma e crise política no Brasil – os


conflitos de classe nos governos do PT. São Paulo e Campinas:
Editoras Unesp e Unicamp. 2018.

BORON, Atilio. “Caracterizar o governo Bolsonaro como fascista é


um grave erro”. Portal Brasil de Fato.
Link: https://www. brasildefato.com.br/2019/01/02/artigo-or-
caracterizar-o-governo-de-jair-bolsonaro-como-fascista-e-um-erro-
grave/

ECO, U. Il fascismo eterno. Milão: La nave di Teseo, 2017.

GENTILE, E. Chi è fascista. Roma-Bari: Editori Laterza, 2019.

GERRIN, D. Fascisme et grand capital. 2a ed. Paris: François


Maspero, 1965 [1936].

PAXTON, R. O. The anatomy of fascism. New York: Alfred A.


Knopf, 2004.

POULANTZAS, N. Fascisme et dictature. Paris: François Maspero,


1970.

SHIRER, W. Ascensão e queda do Terceiro Reich. 2a. Ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

TOGLIATTI, P. Corso sugli avversari: le lezioni sul fascismo.


Torino: Einaudi, 2010.

Nota
[1] “È un grave errore il credere Che il fascismo sia partito dal 1920,
oppure dalla Marcia su Roma, con un piano prestabilito, fissato in
precedenzia, di regime di dittatura quale questo regime si è poi
organizzato nel corso di dieci anni e quale poi oggi lo vediamo.
Sarebbe, questo, um grave errore. (Togliatti, 2010, p. 20-21) La
dittatura fascista è stata spinta ad assumere le forme sue attuali da
fatori obbiettivi: dalla situazione economica e dai movimenti delle
masse Che da questa situazione vengono determinati. (…) (Togliatti,
2010, p. 21) Tra il 23 e il 26 (…) Nasce il totalitarismo. Il fascismo
non è nato totalitario, esso lo è diventato” (Togliatti, Corso sugli
avversari, p. 32).

Fascismo ontem e hoje


"Durante o processo de “fascistização”, o aparelho repressivo do
Estado parece perder parte do seu monopólio de exercício da força e
da violência em proveito de milícias privadas", avalia a ex-presidenta
Dilma Rousseff em coletânea organizada por Julian Rodrigues e
Fernando Sarti Ferreira
16 de novembro de 2021, 20:18 h Atualizado em 16 de novembro de 2021, 21:00
   
Por Dilma Rousseff 

Fascismo, ditadura militar e o legado da escravidão

No livro Fascismo e Ditadura, de Nicos Poulantzas, há uma


interessante afirmação sobre a atualidade do fascismo: “Quanto à
atualidade da questão do fascismo, digamos simplesmente que os
fascismos – como, aliás, os outros regimes de exceção (ditadura
militar, ditadura bonapartista) – não são fenômenos limitados no
tempo. Podem muito bem ressurgir atualmente, mesmo nos países da
área europeia. Na medida que se assiste a uma crise grave do
imperialismo, crise que atinge o seu próprio centro. O ressurgimento,
pois, do fascismo continua possível, sobretudo, hoje – mesmo que não
se revista agora exatamente das mesmas formas históricas de que se
revestiu no passado”.

Nessa perspectiva, vamos resgatar a análise do fascismo como algo


atual, pois estamos vivendo a crise da etapa do neoliberalismo
financeirizado, que engendra imensa desigualdade e extraordinária
concentração de riqueza e renda. É isto que produz o caldo de cultura
para o reaparecimento das tendências denominadas neofascistas, tanto
nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.

É necessário, portanto, analisar o ressurgimento do fascismo atual a


partir das características políticas que assume, em especial, quanto ao
Estado. É importante ter em conta que o Estado Capitalista de
Exceção não é, necessariamente, uma forma de Estado restrita a um
momento histórico do capitalismo, ou seja, o fascismo dos anos 1920
e 1940. Pode-se pensá-lo no presente como integrando do período do
capitalismo neoliberal porque o fascismo é uma possibilidade histórica
que pertence ao tipo capitalista de Estado.

Sem dúvida, o fascismo é um “regime da forma de Estado Capitalista


de Exceção”. Poulantzas entende que o Estado Capitalista admite
variações que podem se manifestar consubstanciando-se na forma de
Estado Capitalista Democrático ou, alternativamente, na forma
“Estado Capitalista de Exceção”. Cada uma dessas formas de Estado
admite, por sua vez, diferentes regimes.
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O Estado Capitalista de Exceção comporta formas de regime não


democráticos, como a ditadura fascista, a ditadura militar e a ditadura
bonapartista. São diferentes regimes do Estado de Exceção que, na
fase imperialista, e também no estágio do capitalismo imperialista
neoliberal, seja em países capitalistas periféricos, seja em países
centrais, podem, de acordo com as fases da luta de classes, assumir
combinações distintas, entre a instituição repressiva (policial e
militar), os diferentes aparelhos ideológicos (igreja, partido, família,
imprensa) e as instituições econômico-financeiras e fiscais.

De forma esquemática, é possível observar diferentes combinações


históricas, em determinadas fases do desenvolvimento do fascismo em
determinada sociedade, por exemplo: no regime fascista espanhol,
dominavam a Igreja e o aparelho repressivo militar; no regime fascista
italiano, a predominância era do partido e do aparelho repressivo
militar; e, na Alemanha, prevalecia a forte presença do partido e da
polícia política, liderando o aparelho repressivo.

Deve ser esclarecido que o conceito de Estado Capitalista aqui


considerado é constituído por um aparelho repressivo, formado pelas
burocracias civil, militar e jurídica; uma variedade de aparelhos
ideológicos, como os aparelhos políticos, escolar, religioso, de
informação / comunicação e um aparelho econômico integrado pela
gestão orçamentária-financeira-fiscal, banco central etc.

O fascismo nas suas formas históricas pressupôs a existência de um


partido ou um movimento responsável pela mobilização permanente
das massas populares e um destacamento paramilitar que assumia a
violência política privada, portanto não estatal – em termos atuais,
milicianos. Ao longo do processo de implantação, verificou-se a
existência de relações de articulação e/ou disputa entre o aparelho
partidário responsável pela violência e o aparelho repressivo do
Estado. No início, o partido e o movimento dominam. Depois,
progressivamente, quando o regime fascista se implanta, são
devidamente enquadrados pela força do aparelho repressivo estatal, ou
seja, pelo exército, pela administração, pela polícia e pela
magistratura.

Ademais, o fascismo, ao contrário das ditaduras militares, geralmente


chega ao poder de modo constitucional, por meio da corrupção das
democracias. Assim, Hitler e Mussolini chegaram ao poder segundo
as regras e as normas jurídicas do regime democrático parlamentar.

Na verdade, o fascismo ascende ao poder sobretudo porque neutraliza


os aparelhos judiciário e legislativo, neutralização que só é possível
porque as massas populares sofreram uma série de derrotas. Além
disso, porque o fascismo conquistou o apoio do bloco de classes
hegemônico que viu no fascismo um instrumento imprescindível para
afirmar seu poder sobre o conjunto da sociedade.
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Em resumo, durante o processo de “fascistização”, o aparelho
repressivo do Estado parece perder parte do seu monopólio de
exercício da força e da violência em proveito de milícias privadas. No
entanto, deve ficar claro que só o bloco no poder lucra com isso, pois
há clara conivência e relações cúmplices entre o aparelho repressivo e
essas milícias, uma vez que, na maior parte dos casos, é o Estado que
as arma ou, pelo menos, permite que elas se armem.

Uma das perguntas que Poulantzas procura responder e importante no


caso brasileiro é: quais são as condições históricas que permitem a
emergência do fascismo? De acordo com ele, o advento do fascismo
seria, em linhas gerais, marcado: (a) pela derrota estratégica prévia do
movimento operário e popular, o que significa que o processo de
“fascistização” não ocorre quando há um forte movimento operário e
popular organizado e situado na ofensiva política. Para o fascismo ser
viável, tal movimento deve encontrar-se na defensiva política. Assim,
não faz sentido pensar que a conjuntura aberta pelo processo de
“fascistização” seja um momento marcado pela polarização entre
fascismo e socialismo. Não. O fascismo só deita raízes nos momentos
e lugares em que se depara com um movimento operário e popular
débil e com movimentos e organizações sociais, sindicais e partidárias
com dificuldades de exercer a representação organizada de amplas
bases de trabalhadores e setores populares;

(b) pela ofensiva política da burguesia em seu conjunto contra as


massas operárias e populares em meio a um processo de crise de
hegemonia no seio do bloco no poder, que busca a adoção de sua
agenda a qualquer preço, aliando-se ao movimento fascista. É essa
ofensiva que permite a emergência de segmentos das classes médias
(da pequena e média burguesia) como força social organizada ou no
partido fascista ou em algum tipo de movimento conservador;

(c) pela constituição da aliança entre as classes médias (pequena e


média burguesia) e o grande capital, estabelecida ao longo do
processo, logrando confiscar e dirigir politicamente a base de massa
do fascismo e avançando na direção da implementação da ditadura
fascista. O momento de constituição desta aliança é caracterizado por
Poulantzas como “ponto de não retorno”, indicando assim o caráter
irreversível do processo de “fascistização” a partir daí;

(d) pelos diferentes papéis e funções exercidos pelas diferentes frações


representadas no Estado. Trata-se do papel e das funções
representadas, por exemplo, pela “fração de classe hegemônica”, que é
aquela cujos interesses são impostos sobre as demais classes; pela
“fração de classe reinante”, aquela que exerce o poder de forma
aparente; e pela “fração de classe detentora do Estado”, aquela que
controla o aparelho burocrático do Estado.

Vamos desenvolver, de forma mais concreta, esses três conceitos,


aplicando-os ao Brasil. A fração de classe hegemônica é a fração do
bloco no poder que detém prioridade sobre a política estatal. No caso
brasileiro, por exemplo, é a fração financeira, expressa no complexo
bancário-financeiro e na grande burguesia financeira industrial,
agrícola e de serviços. Já a fração de classe que reina na cena política,
o faz a partir de suas organizações, sendo que seus representantes
podem variar. Por exemplo: no governo Temer seria a aliança entre o
PMDB-PSDB; no governo Bolsonaro, o Centrão e a base bolso-
miliciano-fascista. Já a fração que ocupa a alta administração do
Estado, no governo Bolsonaro, seria o “partido militar”. Em muitos
casos, a fração reinante se entrelaça com a fração que controla o
aparelho de Estado.

*Dilma Rousseff, economista e política, foi presidenta do Brasil


entre 2011 e 2016.

Referência

Julian Rodrigues e Fernando Sarti Ferreira. Fascismo ontem e hoje.


São Paulo, Ed. Maria Antonia / Ed. Fundação Perseu Abramo, 2021.

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