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DOSSIÊ

A intelectual afro-americana June Jordan não sexismo, a exploração de classe, o nacionalismo, a

Se perdeu na tradução?
esteve interessada na liberdade somente para afro- religião e a homofobia. A luta por liberdade de que
-americanos, mas para todas as pessoas oprimidas. June Jordan participou e as políticas emancipatórias
Uma leitura atenta de seu trabalho mostra que seu em que esteve envolvida foram árduas, mas também

Feminismo negro, interseccionalidade


foco na liberdade imprimiu um ímpeto interseccio- cheias de esperança.  
nal ao feminismo negro assim como estreitou laços
Com frequência me pergunto o que June Jordan

e política emancipatória
entre movimentos sociais do século XX.   Como
e tantas outras intelectuais e ativistas dos anos 1950 a
uma mulher negra que cresceu nos Estados Unidos,
80, que levaram as ideias do movimento social para
Jordan compreendeu como a ideia de liberdade foi
a academia, fariam com a compreensão acadêmica
fundamental para a cultura, a filosofia e a política
contemporânea de políticas emancipatórias. Assim

Patricia Hill Collins


afro-americana (Kelley, 2002; King, 1996; Ransby,
como elas se deslocaram do movimento social para
2003). Jordan estava familiarizada com o quanto
as formatações acadêmicas, acadêmicas-ativistas dos
uma história de racismo, sexismo, exploração de
Professora da Universidade de Maryland, estudos das mulheres, estudos negros, estudos pós-
classe, xenofobia e homofobia contradiziam a ideo-


College Park. -coloniais, estudos culturais e projetos similares de
logia dominante do sonho americano. Poetisa, ensa-
perspectiva crítica enfrentam o desafio de traduzir
ísta e crítica cultural, Jordan se recusou a perceber
as ideias dos movimentos sociais de liberdade, equi-
Resumo as injustiças sociais como naturais, normais ou ine-
vitáveis e simplesmente ignorá-las para se dedicar à
dade, justiça social e democracia participativa para
Neste ensaio, foco em como as ideias e práticas de inter- formatos que possam ser reconhecidos por gestores
seccionalidade mudaram de forma e propósito confor- produção criativa. Em vez disso, seu trabalho inte-
de faculdades.   Algumas ideias foram assimiladas
me foram traduzidas nos diferentes contextos materiais, lectual e político refletiu uma política emancipatória.
pelas normas acadêmicas predominantes enquanto
sociais e intelectuais.   Para tanto, mapeio as mudanças (Jordan, 1985; Jordan, 1992; Jordan, 1998).
outras foram censuradas ou deixadas à míngua.
de contorno do feminismo negro e da interseccionali- Ou a liberdade é indivi- Jordan se baseou no avanço de políticas emanci-
dade em três períodos: (1) como o feminismo negro,
Como forma de investigação crítica e práxis, o
no contexto de movimento social, adotou perspectivas sível ou não é nada além patórias, conquistadas pelos movimentos sociais, em
contorno da interseccionalidade na academia reflete
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de raça, classe, gênero e sexualidade como sistemas de que predominavam grandes ideias como liberdade,
intersecção de poder, (2) como essas ideias chegaram à da repetição de slogans igualdade, justiça social e democracia participativa.
o contexto de uma tradução imperfeita. Assim, a
academia inicialmente sob a rubrica de estudos de raça/ interseccionalidade proporciona lentes sugestivas
e avanços temporários, No trabalho de Jordan, assim como no de Angela
para examinar o que poderia se perder na tradu-
classe/gênero e subsequentemente foram nomeadas e le-
Davis, Toni Cade Bambara, Shirley Chisholm, Alice
gitimadas como interseccionalidade; (3) as implicações míopes e passageiros, Walker, Audre Lorde e outras feministas negras do
ção, em situações de ideias deslocadas entre diferen-
da legitimação acadêmica de interseccionalidade para as tes comunidades de interpretação, com diferentes
políticas emancipatórias contemporâneas. para poucos. Ou a liber- período, pode-se encontrar uma declaração forte e
níveis de poder. A interseccionalidade conecta dois
Palavras-chave: feminismo negro; interseccionalidade; precoce sobre interseccionalidade, em que a “liber-
dade é indivisível e tra- dade é indivisível”, tanto intelectualmente quando
lados de produção de conhecimento, a saber, a pro-
política emancipatória.
dução intelectual de indivíduos com menos poder,
balhamos em conjunto nas múltiplas lutas políticas. Jordan argumentou que
Abstract o feminismo negro exigia esforços contínuos para
que estão fora do ensino superior, da mídia de ins-
In this essay, I focus on how intersectionality’s ideas and por ela ou você estará desmantelar a intersecção, as relações estruturais
tituições similares de produção de conhecimento, e
practices shifted shape and purpose as they were transla- o conhecimento que emana primariamente de ins-
em busca de seus pró- de poder de raça, classe, gênero e sexualidade, que
tituições cujo propósito é criar saber legitimado. A
ted within varying material, social and intellectual con-
reproduziram as injustiças sociais de uma geração à
texts. To focus my argument, I map the changing contours prios interesses e eu dos outra. Mas ela também viu que as mulheres afro-a-
interseccionalidade pode ser vista como uma forma
of Black feminism and intersectionality across three pe- de investigação crítica e de práxis, precisamente, por-
riods in time: (1) how Black feminism within social mo- meus June Jordan mericanas jamais poderiam ser livres se perseguis-
que tem sido forjada por ideias de políticas eman-
vement settings fostered perceptions of race, class, gender sem apenas o próprio interesse. A luta não tratava
and sexuality as intersecting systems of power; (2) how
(Jordan, 1992, p. 190). apenas de análises abstratas da liberdade, mas sobre
cipatórias de fora das instituições sociais poderosas,
these ideas travelled into the academy initially under the assim como essas ideias têm sido retomadas por
as formas que as iniciativas de justiça social deveriam
rubric of race/class/gender studies and subsequently be- tais instituições (Collins; Bilge, 2016). A eficácia das
assumir para dar vida a políticas emancipatórias. A
came named and legitimated as intersectionality; and (3) ideias centrais de interseccionalidade, em situações
ideia de interseccionalidade e a solidariedade polí-
the implications of intersectionality’s academic legitima- díspares politicamente, levanta questões importantes
tion for contemporary emancipatory politics. tica que a sustentava tinham o objetivo de tornar a
sobre a relevância do conhecimento para a luta por
Keywords: black feminism; intersectionality; emancipa- liberdade significativa para pessoas cujas experiên-
liberdade e iniciativas de justiça social.
tory politics. cias de vida estavam circunscritas pelo racismo, o
Tradução_Bianca Santana.
PARÁGRAFO. JAN/JUN. 2017 PARÁGRAFO. JAN/JUN. 2017
V.5, N.1 (2017) - ISSN: 2317-4919 V.5, N.1 (2017) - ISSN: 2317-4919
Neste ensaio, foco em como as ideias e práticas de Combahee River, um pequeno grupo de mulheres criarem espaço para seu empoderamento dentro dos plar neste sentido. Alice Walker, June Jordan, Angela
interseccionalidade mudaram de forma e propósito afro-americanas de Boston, publicou um manifesto limites dos movimentos sociais que, como na política Davis, Nikki Giovanni e Barbara Smith, para nomear
conforme foram traduzidas nos diferentes contextos chamado A Black Feminist Statement, que apresen- afro-americana, eram moldados por um naciona- algumas, estiveram todas ativamente engajadas nos
materiais, sociais e intelectuais.  Para tanto, mapeio tou uma declaração mais abrangente do quadro de lismo patriarcal. O feminismo latino veio na mesma movimentos sociais, especialmente dos Direitos
as mudanças de contorno do feminismo negro e da políticas do feminismo negro (Combahee-River- década de 1980, com o trabalho de Gloria Anzaldua, Civis, anti-guerra, Black Power e/ou movimentos
interseccionalidade em três períodos: (1) como o Collective, 1995). Esse documento inovador argu- especialmente seu clássico Borderlands/La Frontera , de mulheres.   O acesso a carreiras acadêmicas per-
feminismo negro, no contexto de movimento social, mentava que uma perspectiva que considerasse que marcou uma importante contribuição na cons- mitiu que mulheres afro-americanas politicamente
adotou perspectivas de raça, classe, gênero e sexu- somente a raça ou outra com somente o gênero avan- trução dos estudos de raça, gênero e sexualidade ativas trouxessem as ideias políticas do feminismo
alidade como sistemas de intersecção de poder, (2) çariam em análises parciais e incompletas da injus- (Anzaldua, 1987). O trabalho de Anzaldua, particu- negro para os estudos de raça/classe/ gênero.   As
como essas ideias chegaram à academia inicialmente tiça social que caracteriza a vida de mulheres negras larmente, prepara o cenário para a análise de temas principais obras de mulheres negras afro-america-
sob a rubrica de estudos de raça/classe/gênero e sub- afro-americanas, e que raça, gênero, classe social e contemporâneos como espaços fronteiriços, frontei- nas, que estabeleceram as bases para o que veio a ser
sequentemente foram nomeadas e legitimadas como sexualidade, todas elas, moldavam a experiência de ras e relacionalidade, que se tornaram logo depois conhecido como interseccionalidade, incluem Civil
interseccionalidade; (3) as implicações da legitima- mulher negra. O manifesto propunha que os siste- tão proeminentes na interseccionalidade (Collins; Wars , de June Jordan (Jordan, 1981); o clássico Sister
ção acadêmica de interseccionalidade para as políti- mas separados de opressão, como eram tratados, fos- Bilge, 2016). Outsider  (Lorde, 1984) de Audre Lorde; e o inova-
cas emancipatórias contemporâneas. sem interconectados. Porque racismo, exploração de dor Mulheres, Raça e Classe de Angela Davis (Davis,
Examinar como as mulheres de cor lidaram com
classe, patriarcado e homofobia, coletivamente, mol- 1981). Em trabalhos como esses, pode-se ver como
o desafio de seu próprio empoderamento demons-
1.  Feminismo Negro nos Estados davam a experiência de mulher negra, a libertação
tra diferentes padrões de como raça/ classe/ gênero/
a produção intelectual de mulheres negras contém
Unidos e Origens do Movimento das mulheres negras exigia uma resposta que abar- uma análise explícita das interconexões de raça,
sexualidade foram negociadas no contexto político
Social de Interseccionalidade casse os múltiplos sistemas de opressão.   A sucinta classe, gênero e sexualidade como sistemas de poder
dos movimentos sociais. Por exemplo, mulheres
declaração de June Jordan sobre liberdade encapsula explicitamente ligados a diversos projetos de jus-
afro-americanas e mexicanas confrontaram o desafio
As narrativas contemporâneas relativas à emer- o pensamento daquele tempo: “ou a liberdade é indi- tiça social catalisados por seu envolvimento com os
de incorporar gênero aos argumentos predominantes
gência da interseccionalidade ignoram, com frequên- visível ou não é nada além da repetição de slogans movimentos sociais (Collins, 2000). Mais uma vez,
de raça/classe dos movimentos nacionalistas negros
8 cia, a relação desta com as políticas feministas negras e avanços temporários, míopes e passageiros, para esse conjunto de estudos de raça/ classe/ gênero não
poucos. Ou a liberdade é indivisível e trabalhamos
e mexicanos, assim como incorporaram raça e classe
estava limitado a mulheres afro-americanas.
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dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos.   Apesar ao movimento feminista que avançava somente nos
de um longo projeto feminista negro, nos movimen- em conjunto por ela ou você estará em busca de seus
argumentos de gênero. Neste contexto, argumentos No contexto do movimento social, a sinergia
tos sociais do século XX, mulheres afro-americanas próprios interesses e eu dos meus” (Jordan, 1992,
sobre a intersecção de raça/ classe/ gênero/ sexua- entre as ideias de interseccionalidade como um pro-
avançaram diversas dimensões do feminismo negro 190). Aqui, a discussão de Jordan sobre liberdade
lidade foram forjados na intersecção de múltiplos jeto de conhecimento, bem como sua organização
que foram claramente reconhecidas como intersec- adianta ideias importantes dos projetos de conhe-
movimentos sociais, uma localização estrutural que estrutural e aspirações, se reforçam uma a outra.
cionais. Por exemplo, o volume editado por Toni cimento interseccionais, ou seja, encarando a tarefa
teve um importante efeito nas dimensões simbólicas Nessa sinergia, pode-se perceber a relação recorrente
Cade Bambara nos anos 1970, The Black Woman, de compreender as desigualdades sociais complexas
do discurso interseccional seguinte. entre as dimensões sociais e simbólicas dos projetos
se coloca como um trabalho inovador feito por como intrinsecamente ligadas a uma agenda de jus-
de conhecimento (Lamont; Molnár, 2002). Quando
mulheres afro-americanas envolvidas na luta política tiça social, ou as interseções não apenas como ideias A transitória década de 1980 levou os movi-
ideias, ou material simbólico, vão de um ambiente
(Bambara, 1970). Tomando uma postura implicita- por elas mesmas, mas como ideias e ações. mentos sociais a uma pausa, mas isso constituiu um
social a outro, essa relação entre os limites sociais
mente interseccional em relação à emancipação de avanço nos contornos estruturais dos projetos de
Dada a diminuição história de mulheres de e simbólicos também muda. Nesse caso, tanto o
mulheres afro-americanas, mulheres afro-america- conhecimento que viam raça, classe, gênero e sexua-
ascendência africana, é tentador conferir às afro-a- feminismo negro como os estudos de raça/ classe/
nas de diversas perspectivas políticas apresentaram lidade como se construíssem mutuamente sistemas
mericanas a descoberta de uma interseccionalidade gênero se desdobram em espaços sociais e simbóli-
ensaios provocativos sobre como as mulheres negras de poder. Mulheres de cor, ao argumentarem as
ainda não nomeada. No entanto, é evidente que nos cos diferentes dos discursos hegemônicos.   Ambos
nunca ganhariam sua liberdade sem perceber sua interconexões de raça, classe, gênero e sexualidade,
Estados Unidos as mulheres afro-americanas faziam os discursos encontraram o desafio de definir limites.
raça, classe e gênero.  Escrito para o público geral e não produziram apenas documentos nos movimen-
parte de um movimento mais amplo de mulheres, Quando mulheres de cor que seguiram engajadas em
não para a academia, o volume pode ser visto como tos sociais, muitas dessas mulheres entraram na aca-
em que mexicanas e outras latinas, mulheres indíge- movimentos sociais entraram para a academia, trou-
um importante trabalho pioneiro sobre interseccio- demia como estudantes de pós-graduação, professo-
nas e asiáticas estavam na vanguarda de reivindicar xeram com elas as sensibilidades dos movimentos.
nalidade, embora seja negligenciado.   ras assistentes, docentes.  É importante lembrar que
a inter-relação de raça, classe, gênero e sexualidade Elas também encontraram normas acadêmicas que,
os movimentos sociais não lutaram pela inclusão
Por volta de 1980, algumas das principais ideias em sua experiência cotidiana. O coletivo Combahee de muitas formas, eram antiéticas para as suscetibi-
de mulheres e pessoas de cor na academia, que as
forjadas no contexto do ativismo de mulheres negras River não estava sozinho ao propor essas ideias. Nos lidades dos movimentos, por exemplo, enquadrar a
ideias trazidas por elas dificilmente teriam aceita-
foram cristalizadas em panfletos, poesias, ensaios, Estados Unidos, por exemplo, latinas estavam enga- política como sendo partidária e não-objetiva. Além
ção. O caso das mulheres afro-americanas é exem-
coletâneas, arte e outras obras. Em 1982, o Coletivo jadas em lutas intelectuais e políticas similares, ao disso, quando o feminismo negro foi incorporado à

PARÁGRAFO. JAN/JUN. 2017 PARÁGRAFO. JAN/JUN. 2017


V.5, N.1 (2017) - ISSN: 2317-4919 V.5, N.1 (2017) - ISSN: 2317-4919
academia, ficou difícil sustentar as suscetibilidades dos movimentos sociais, e se limitam a localizar um e simbólicos da interseccionalidade se deslocaram em seguida, mostrando como múltiplos sistemas de
do movimento quanto à pesquisa e à práxis.   Um ponto de origem no momento em que a academia ao longo dos anos de 1990, quando este projeto de poder afetam suas vidas, não de uma forma priori-
projeto de justiça social permaneceu, mas era dife- primeiro noticia e nomeia este emergente campo conhecimento foi afastado do movimento social e zada, em vez disso, de forma sinérgica.  Mutuamente,
rente daquele que buscava transformar a academia; de estudos, as ideias associadas aos estudos de raça/ incorporado pela academia.    a construção de sistemas de poder produz distintos
um projeto que, no processo de deslocamento para a classe/ gênero na década de 1980 foram constante- lugares sociais para indivíduos e grupos dentro deles,
Diversas características prenunciadas no artigo
academia, foi ele mesmo transformado.   mente ignorados até que atores institucionais pode- nesse caso, as identidades desempoderadas que
de 1991 foram consideradas, subsequentemente,
rosos o reconhecessem. Ao aceitar um nome para o mulheres de cor carregam, as posiciona em inequi-
A denominação inicial do campo como estu- pontos focais da interseccionalidade, alguns caloro-
campo, que foi afastado de sua origem nos movimen- dades sociais complexas, de forma diferente daquelas
dos de raça/ classe/ gênero refletia as relações dinâ- samente acolhidos, outros que permaneceram como
tos sociais e seus praticantes, esses atores ajudaram a vividas por homens ou mulheres brancas.   
micas entre os diversos movimentos sociais, cada pontos de contenção dentro do próprio campo (para
legitimá-lo.
qual engajado em tentar descobrir as relações com uma discussão que expande essas ideias, Collins; Quarto, o artigo de Crenshaw expressa um ethos
os outros.  Por essa expansão para a academia, limi- Histórias da emergência da interseccionalidade Bilge, 2016; Collins; Chepp, 2013). Primeiramente, de justiça social que assume que uma análise mais
tes simbólicos mais fluidos de “raça/ classe/ gênero” costuram clamar que a intelectual feminista afro- Crenshaw foca nas experiências de mulheres de cor, compreensiva dos problemas sociais pode render
como um projeto de conhecimento que se forjou nos -americana Kimberlé Crenshaw “cunhou” o termo um grupo desvalorizado não somente na perspec- ações mais efetivas.  Por que escrever esse artigo sobre
movimentos sociais encontraram, eles mesmos, dis- interseccionalidade no artigo Mapping the Margins: tiva acadêmica, mas também na sociedade como um mulheres de cor e violência, se não oferecer alguns
putando espaço e legitimidade na política acadêmica Intersectionality, Identity Politics, and Violence todo. Crenshaw argumenta que as experiências de insights para iniciativas de justiça social?   Ecoando
predominante.  Especificamente, à medida em que a against Women of Color, publicado na Stanford Law mulheres de cor são importantes em si mesmas, mas o clamor de Jordan de que a liberdade é indivisí-
incorporação acadêmica ocorreu, estratégias e argu- Review (Crenshaw, 1991). Como uma teórica crítica se tornam especialmente significativas no entendi- vel, alcançar justiça social para vítimas de violência
mentos associados a estudos de raça/ classe/ gênero da temática racial e advogada, Crenshaw não foi uma mento e na solução de questões sociais importantes. doméstica requer compreender raça, gênero, classe
se deslocaram.   As políticas confusas dos estudos militante nos movimentos sociais, mas estava inti- Crenshaw trabalha com os princípios de epistemo- e sexualidade como construções mútuas de um
de raça/ classe/ gênero associados aos movimentos mamente familiarizada com o trabalho por justiça logia de standpoint, reconhecendo que a experiência sistema de poder. Ironicamente, a análise de siste-
sociais se reformularam como um campo de estudo social dos movimentos. Nesse sentido, Crenshaw foi importa, não ao incorporar, simplesmente, as expe- mas de poder interseccionais é secundária à razão
acadêmico mais reconhecido. idealmente posicionada na convergência dos estudos riências individuais, mas também ao perceber as primária de melhoria social, nesse caso, melhoria
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de raça/ classe/ gênero na academia, assim como na mulheres de cor a partir de um lugar diferente, como social para mulheres de cor e para todo mundo, por 11
Essa fase provisória dos estudos de raça/ classe/
centralidade de iniciativas de justiça social para a criadoras de conhecimento. Ângulos de visão e desa- consequência.
gênero se tornou suplementar ao longo do tempo à
mudanças legais e sociais que fizeram avançar argu- fios distintos acompanham locais sociais diferentes,
sexualidade, idade, habilidade, etnia e religião.  Ainda Quinto, o artigo de Crenshaw dá ênfase à
mentos da interseccionalidade. um tema desenvolvido pela atenção de Crenshaw às
dessa forma flexível, com uma lista cada vez maior racionalidade. Ao introduzir o termo interseccio-
diferentes experiências que mulheres de cor têm com
de divisões sociais, foram criadas categorias deste Porque o artigo de 1991 de Crenshaw é tão fre- nalidade, Crenshaw enfatiza o significado das rela-
a violência doméstica. Todos os discursos vêm de um
campo interdisciplinar crescente, dentro das dificul- quentemente citado como o ponto de origem da ções intelectuais e políticas. Crenshaw se baseia na
ponto de vista particular, ainda que sejam frequente-
dades acadêmicas.  Nomear o campo parecia resol- interseccionalidade, ele se coloca como um docu- ideia de que mulheres de cor, que se desenvolveram
mente obscurecidos.  
ver o dilema. A construção da interseccionalidade mento fundamental ao marcar a tradução dos enten- nos movimentos sociais atuais, perceberam que essa
ofereceu um termo guarda-chuva reconhecível, que dimentos de interseccionalidade que vinham do Em segundo lugar, Crenshaw coloca a si mesma questão das relações era crucial - não era suficiente
fixava essas relações dinâmicas de modo a tornar o feminismo negro e outros projetos de justiça social, e na narrativa em que se auto identifica como “femi- ter um inimigo em comum, ao contrário, tiveram
campo compreensível nas normas acadêmicas de aqueles que cada vez mais caracterizavam um conhe- nista negra”. Por este movimento, Crenshaw sinaliza que descobrir padrões de interconexão. O argumento
autoria, propriedade e descoberta. cimento acadêmico da interseccionalidade. Uma lei- uma posição epistemológica particular para estudio- dela carrega este nuance, no qual Crenshaw inclui
tura atenta do artigo de 1991 de Kimberlé Crenshaw sos, especialmente estudiosas de cor, que se enga- muito grupos sob a categoria guarda-chuva “mulhe-
2.  O que há em um nome? mostra que ele: (1) identifica diversas ideias de inter- jam no feminismo negro, estudos de raça/classe/ res de cor”, com atenção para especificar e universa-
De raça/ classe/ gênero à seccionalidade que reaparecem nos projetos intersec- gênero e/ou projetos de conhecimento interseccio- lizar suas experiências com a violência doméstica.
interseccionalidade cionais subsequentes; e (2) oferece uma visão clara nal.  Experiência e conhecimento corporificado são Essa atenção às relações e o significado delas para a
da inter-relação dos limites estruturais e simbólicos valorizados, assim como o tema da responsabilidade coalização política encontra uma perspectiva impor-
Na década de 1990, o termo interseccionalidade no desenvolvimento da interseccionalidade como que acompanha tal conhecimento. tante neste trecho. O tema das relações permeou os
emergiu nos limites entre movimentos sociais e a projeto de conhecimento. Em outras palavras, ele movimentos sociais como se tentassem descobrir
Terceiro, Crenshaw argumenta que as necessi-
academia, como um termo que parecia capturar mostra o que persistiu, o que ficou silenciado, o que como diversos indivíduos e movimentos poderiam
dades das mulheres de cor não podem ser atendidas
melhor o crescente corpus interseccional de ideias desapareceu. O artigo de Crenshaw oferece menos trabalhar juntos.  
por um pensamento mono-categórico. A inovação
e práticas. Ironicamente, narrativas da emergência um ponto de origem da interseccionalidade, do que
de Crenshaw aqui é construir seu argumento a par- Kimberlé Crensaw, considerada a que cunhou
da interseccionalidade raramente incluem o período um marcador que mostra como os limites estruturais
tir da base das experiências das mulheres de cor e, o termo interseccionalidade, foi fundamental ao

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campo, mas não da maneira como isso frequente- acadêmicos que abraçaram as normas acadêmicas percepções interseccionais foram cultivadas em um tidade disciplinar de seus autores quanto o escopo
mente é compreendido. O ponto de origem dessa hegemônicas, por exemplo, uma crença de que posi- contexto intelectual explicitamente dedicado à ação interdisciplinar do feminismo. Até agora, vários tex-
história não só costuma negligenciar os escritos e ati- ções políticas (como aquelas ligadas às iniciativas por social e à mudança. Da mesma forma, a política tos que definem o campo de estudos de raça, classe
vidades de muitas outras pessoas que vieram antes de justiça social) introduziram viés às práticas aparente- pública encontra utilidade nas análises interseccio- e gênero expandem essas ideias e/ ou usam paradig-
Crenshaw, como faz interpretações equivocadas  dos mente objetivas, puderam ver no trabalho dela uma nais para entender como os locais sociais interseccio- mas interseccionais como dispositivos heurísticos,
argumentos da autora. Crenshaw se baseia nas ideias atenção à narrativa que vem do pós-estruturalismo. nais influenciam escolhas de vida. por exemplo, Floya Anthias e Nira Yuval-Davis’s
de Combahee não só para nomear a intersecciona- O trabalho de Crenshaw visava, assim, desafiar nor- em Racialized Boundaries: Race, Nation, Gender,
A interseccionalidade também tem contribuído
lidade, mas também para (1) estabelecer relações mas acadêmicas ainda que muitos de seus leitores se Colour and Class and the Anti-Racist Struggle, ou
significativamente para o campo da saúde pública,
entre identidade individual e identidade coletiva; (2) sentissem confortáveis com elas. Chela Sandoval’s em   Methodology of the Oppressed
em que os determinantes sociais e disparidades de
manter o foco nas estruturas sociais; (3) teorizar a (Anthias; Yuval-Davis, 1992; Sandoval, 2000). Tais
Ironicamente, assim como a estrutura- saúde são abordados cada vez mais a partir de pers-
partir da base (em de um modelo top-down) casos de textos usam paradigmas interseccionais para identi-
ção dos movimentos sociais nos anos de 1960 e pectivas interseccionais (Collins; Bilge, 2016; Collins;
violência contra mulheres de cor como um conjunto ficar que tipos de questões e conceitos são importan-
1970,  retornaram ao passado, a incorporação da Chepp, 2013).
de experiências com  conexões estruturais, políticas tes, o que procurar na condução da pesquisa e como
interseccionalidade à academia nos anos 1990 e no
e representativas; (4) lembrar leitoras que o propó- No ensino superior dos EUA, a aceitação do as análises interseccionais podem ajudar a explicar
início dos anos 2000 se tornaram um novo normal
sito dos estudos interseccionais é contribuir com campo de estudos de raça, classe e gênero tem sido os resultados de pesquisa. A teoria pós-colonial tem
que cada vez mais separou o conhecimento emancipa-
iniciativas de justiça social. Crenshaw é clara está impressionante. Nesta expansão de estudos intersec- sido uma beneficiária especial do trabalho teórico
tório da política emancipatória.  Interseccionalidade
claramente defendendo a interseccionalidade como cionais, estudos da mulher tem sido um importante de estudos de raça, classe e gênero, com  seus princi-
como projeto de conhecimento deslocou dos proje-
uma construção de justiça social, e não como uma campo interdisciplinar que levou a interseccionali- pais textos influenciados pelos estudos de mulheres
tos de conhecimento bottom-up refletidos na habi-
teoria da verdade desvinculada das preocupações de dade a sério. que transitam por muitas das disciplinas tradicio-
lidade de Crenshaw a partir de políticas de base, a
justiça social.  No entanto, esse aspecto do trabalho nais (Alexander; Mohanty, 1997; McClintock, 1995;
projetos de conhecimento top-down cujos contornos Estudos das mulheres permitiram a pesquisado-
de Crenshaw tem sido cada vez mais negligenciado. Stoler, 1995).
estruturais foram cada vez mais moldados pelas prá- res de gênero, que estavam espalhados em várias dis-
No entanto, o artigo de 1991 de Crenshaw oferece ticas normativas da academia e cujos contornos sim- ciplinas, para reunir, comparar e contrastar o estudo Apesar da centralidade dos estudos de mulheres
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um registro útil do momento de transição da forma- bólicos refletiam os objetivos, o conteúdo temático e das mulheres nas disciplinas distintas, depois voltar para a interseccionalidade, seria um erro conside- 13
ção de um cânone contemporâneo, em que as tra- as abordagens epistemológicas dos campos de estudo para as mesmas disciplinas com este novo conheci- rar a interseccionalidade como um projeto exclusi-
duções de interseccionalidade da academia se afas- existentes. mento. Lynn Weber, liderança precoce nos estudos vamente feminista ou como uma variante da teoria
taram do movimento feminista e da compreensão de de raça / classe / gênero, sugere: “É em estudos de feminista (ver, por exemplo, Davis, 2008). A inter-
Uma vez nomeada, ao longo dos anos 1990, iní-
interseccionalidade do movimento social como uma mulheres - não em estudos raciais ou étnicos, não em seccionalidade é muito mais ampla que isso. Na aca-
cio de 2000, a interseccionalidade como projeto de
forma de pesquisa prática e práxis. estudos de estratificação social (classe) na sociologia, demia norte-americana, os ganhos dos estudos de
conhecimento se expandiu na academia, ganhando
nem na psicologia ou em qualquer outra disciplina raça / classe / gênero e interseccionalidade têm sido
O texto de Crenshaw pode ter sido tão bem aceitação em muitos campos de estudo. No iní-
tradicional - que os estudos de raça, classe, gênero substanciais.
recebido, em parte, porque demonstra a habilidade cio do século 21 estudos caracterizaram-se por um
e sexualidade surgiram pela primeira vez” (Weber,
de fundir a sensibilidade do movimento social e o crescimento explosivo de interesse na ideia de Apesar do significado da pesquisa, o verdadeiro
1988, p. 14). Essencialmente, professores dos estudos
comprometimento com iniciativas de justiça social interseccionalidade. trabalho de estabelecer um campo reside na constru-
de mulheres participaram de uma espécie de passa-
com perspectivas teóricas sofisticadas, em particu- ção de uma base de estudantes de graduação e pós-
Atualmente abrigada em um vasto e interdiscipli- gem e quebra de fronteira que é agora reconhecida
lar, a importância crescente das análises pós-moder- -graduação, garantindo assim que a próxima geração
nar corpo de estudos, a ideia de interseccionalidade como essencial para a inovação em pesquisa.  Dado
nas e pós-estruturalistas no final do século XX na de profissionais irá emergir.  Nesse sentido, as cole-
se entrelaça em várias disciplinas, obtendo crescente o tamanho e o fôlego da comunidade acadêmica
academia americana. Crenshaw, dessa forma, falou tâneas editadas tornam-se especialmente importan-
aceitação no campo de ciências sociais tão diversos dos estudos de mulheres, o crescimento de estudos
com dois públicos primários dentro da academia. tes porque reúnem artigos de modo a oferecer um
como a sociologia, a psicologia, a economia e a ciên- influenciados por intersecções de raça, classe, gênero
Primeiro, acadêmicos-ativistas cuja sensibilidade de roteiro para um campo de estudo. Coletâneas formu-
cia política. e sexualidade nos estudos de mulheres também
movimento social incorpora o ethos da justiça social lam os parâmetros do campo, por exemplo Andersen
explica a rápida disseminação de estudos de raça,
da interseccionalidade, por exemplo, estudiosos de Campos orientados às políticas públicas têm e Collins’ Race, Class and Gender: An Anthology,
classe e gênero em campos ostensivamente muito
raça/classe/gênero e aqueles no emergente campo mostrado uma afinidade especial com a intersec- agora na nona edição (Andersen; Collins, 2016).
diferentes uns dos outros.
dos estudos raciais críticos, puderam ver as relações cionalidade. Por exemplo, a afinidade próxima da
Como um desenvolvimento paralelo, as coletâ-
entre seus chamados para estratégias de ação con- interseccionalidade com os estudos jurídicos, espe- Esse engajamento interdisciplinar, durante um
neas editadas que se baseiam em variações do termo
tra a violência doméstica e sua própria comunidade cialmente a teoria crítica racial e a LatCrit (teoria período considerável, levou a uma profusão de estu-
interseccionalidade e que incorporam artigos-chave
organizando projetos dentro da academia. Segundo, crítica latina), destaca as maneiras pelas quais as dos feministas que podem reivindicar tanto a iden-
selecionados que ajudaram a moldar esse campo de

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investigação começaram a aparecer em vários cam- dos interseccionais que parecem mais dedicados a vários estados-nação europeus sugerem que a teoria Finalmente, a trajetória da interseccionalidade
pos (Collins; Bilge 2016), assim como leitores inde- descrever a verdade do que criticá-la e reescrevê-la social ocidental, desenvolvida em relações sociais aponta para os desafios de avançar políticas eman-
pendentes como Patrick Grzanka (2014). deterioram inadvertidamente o propósito da inter- neoliberais, pode estar cumprindo seu propósito. cipatórias em um contexto político e epistêmico da
seccionalidade em si. Ironicamente, esse afastamento academia  neoliberal. O neoliberalismo valoriza a
Olhando em retrospectiva, a popularidade do
3.  Se perdeu na tradução? da justiça social tem sido tão incremental que mui-
pós-estruturalismo entre muitos acadêmicos ociden-
realização individual e a responsabilidade pessoal
Interseccionalidade e políticas tos assumem que a interseccionalidade está fundida acima das idéias coletivas relativas ao bem público.
tais nos anos 1990 ocorreu no mesmo período em
emancipatórias inerentemente com a justiça social, apesar de evi- Nessa lógica, problemas sociais podem ser mais
que muitos governos implementaram políticas neo-
dências decrescentes para essa convicção.   A inter- bem resolvidos pela objetividade das soluções de
liberais de contenção de recursos para instituições
A incorporação da interseccionalidade na aca- seccionalidade pode servir como uma ferramenta mercado, não políticas de ação coletiva. Na aca-
públicas e a implementação de políticas punitivas
demia tem sido impressionante, mas assim como teórica e metodológica para estudar qualquer coisa e demia, a lógica do mérito individual, ou, de forma
de encarceramento em massa. Estes eventos sim-
o artigo de Crenshaw sugere, essa incorporação não precisa estar conectada às experiências das controversa, a falta de indicadores, sustenta a cul-
plesmente se desenvolveram paralelamente ou, de
também levanta questões sobre quais dessas ideias pessoas com a injustiça ou a justiça social. A verdade tura de auditoria que permeia tantas faculdades e
alguma forma, um facilitou o outro? Dentre muitas
migraram para as instituições acadêmicas norte-a- importa, porém, quando os estudos interseccionais universidades. Acadêmicos, indivíduos, certamente
disciplinas, a geração de acadêmicos dos anos 1990
mericanas e quais não. Liberdade, equidade, justiça privilegiam a verdade sobre a justiça, entrando no trabalham por todo o grupo, mas quando são ava-
criticou cada vez mais termos centrais como liber-
social e democracia participativa devem constituir terreno escorregadio do conluio com hierarquias de liados para promoções, renovações e ocupar cargos,
dade, justiça social, equidade e democracia partici-
as ideias centrais do feminismo, lutas por direitos poder. os critérios de avaliação enfatizam métricas de rea-
pativa, apesar da contínua necessidade dessas políti-
civis, assim como o movimento pacifista e sindical, lização individual. Essa cultura de auditoria parece
Em segundo lugar, desestimular as dimensões cas, a ideia central de interseccionalidade e projetos
mas como essas ideias encontraram lugar em uma diretamente contrária ao ethos coletivo dos movi-
éticas da interseccionalidade sugeridas pela liber- similares pareciam, cada vez mais, ter falhado ou
academia cada vez mais neoliberal? O que sobreviveu mentos sociais que inspiraram June Jordan. Quando
dade, equidade, justiça social ou democracia partici- completado com êxito os projetos do iluminismo.
na migração do feminismo negro para a academia Kimberlé Crenshaw escreveu sobre interseccionali-
pativa molda o tipo de política que a intersecciona- Uma série de estratégias retóricas facilitou a opres-
e seu recondicionamento como uma cada vez mais dade, ela não tentou nomear um campo ou cunhar
lidade persegue. Uma maneira de conter o potencial são epistêmica, ainda que um quadro importante se
legítima interseccionalidade?  De que forma os vín- um termo, mesmo que seu trabalho seja amplamente
emancipatório da interseccionalidade consiste em destaque (Dotson, 2014). A predisposição de etique-
14 culos da interseccionalidade com a política emanci- citado dessa forma nessa moda dentro das pesquisas
apropriar-se de suas ideias, reformulando-a em rela- tar tudo com o prefixo !pós” sugere que, no início
interseccionais.  Em vez disso, reformular a intersec-
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patória foram renegociados, em sua pesquisa crítica ção às agendas neoliberais, depois descartando-a ao do século XXI, estamos em um período “depois” dos
e sua práxis, em resposta às normas acadêmicas, tan- cionalidade como a moeda do reino levanta a ques-
apontar uma aparente impossibilidade de a inter- projetos emancipatórios que aspiram à liberdade.
tas vezes antitéticas? O que se perdeu na tradução? tão de por que esse termo particular tem sido tão
seccionalidade promover mudança. A feminista Pós-modernismo, pós-estruturalismo, pós-colonia-
bem-sucedido.
Muitos temas são alimento para o pensar. negra intelectual Vivian May, dentre outras, analisa lismo, pós-racionalidade e pós-feminismo foram
Primeiro, pesquisadoras contemporâneas percebem habilmente as estratégias retóricas que caracterizam articulados de forma a catalisar uma falta de entendi- A promessa inicial do feminismo negro e a ideia
um núcleo ético como essencial ou opcional nos estu- os esforços para minar a interseccionalidade (May, mento fundamental do presente como um momento de interseccionalidade que a acompanhou consistia
dos interseccionais? Há uma diferença entre acreditar 2015). Por exemplo, extirpar o valor de uso da inter- em que, apesar da crescente desigualdade social, já em promover políticas emancipatórias para as pes-
nos princípios éticos como um suporte para a igual- seccionalidade para desempoderar as pessoas redefi- havia alcançado igualdade de direitos. Essa leitura soas que aspiravam a construção de uma sociedade
dade de agir segundo eles. A ética está no cerne do nindo-a, depois aconselhando subordinados a irem equivocada do presente, ironicamente, demandava mais justa. No entanto, podemos perguntar, quando
feminismo negro, cuja razão de ser consiste em des- “além” da interseccionalidade para uma “pós-inter- um foco retrógrado, que forçava um pessimismo se trata de abordar as questões sociais importantes
mantelar as injustiças sociais de raça, classe, gênero seccionalidade” lembra os esforços para revogar leis fundamental sobre a ação humana que beirava o nii- do nosso tempo, o que se perde quando os projetos
e sexualidade, que produzem desigualdades sociais que podem salvar vidas sem qualquer substituição lismo.     Dos anos 1990 até hoje, a micropolítica na interseccionais contemporâneos de conhecimento
nas experiências das mulheres de cor. Os estudos de viável. A ausência de um núcleo ético que forneça teoria política, que postula que o poder está aparen- falham em incorporar um ethos de justiça social?
Dill de como acadêmicas que organizaram preco- princípios orientadores deixa acadêmicos fazerem temente em toda parte, produziu resultados micro- Mais importante, o que se pode obter se nos esfor-
cemente estudos de raça/ classe/ gênero iluminam aquilo que querem, individualmente, livres de qual- políticos contra as injustiças sociais.   Além disso, çarmos para desenvolver projetos interseccionais de
como estas pesquisadoras/ ativistas permearam seu quer senso de responsabilidade para combater injus- pode-se perguntar quanto desse pessimismo reflete conhecimento mais robustos, que tenham a justiça
trabalho por um ethos de justiça social  (Dill, 2009). tiças sociais. o tempo em que estamos e quanto fala às tendências social em seu cerne?  
Durante seus anos iniciais na academia, na década de da educação superior contemporânea. Dito de outra
Terceiro, o surgimento da ação política global
1980, estudos de raça/ classe/ gênero demonstraram desde a Primavera Árabe, o renascimento de um ati-
forma, projetos de conhecimento que propõem  uma Referências
as suscetibilidades de incorporar um ethos de jus- abordagem pós-tudo podem estar de luto por um
vismo político de base em movimentos como o Black
tiça social extrapolaram limites entre o movimento passado que já foi e, ao final desse funeral, darão à ALEXANDER, M. Jacqui; MOHANTY, Chandra
Lives, bem como uma reação significativa contra ini-
social e a academia.  No entanto, ao negligenciarem luz um futuro em que somente as elites ocidentais Talpade. Introduction: Genealogies, Legacies,
ciativas de justiça social nos EUA, Brasil, Turquia e
a justiça social e princípios éticos semelhantes, estu- irão prosperar. Movements. In: ALEXANDER, M. Jacqui;

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