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Se perdeu na tradução?
esteve interessada na liberdade somente para afro- religião e a homofobia. A luta por liberdade de que
-americanos, mas para todas as pessoas oprimidas. June Jordan participou e as políticas emancipatórias
Uma leitura atenta de seu trabalho mostra que seu em que esteve envolvida foram árduas, mas também
e política emancipatória
entre movimentos sociais do século XX. Como
e tantas outras intelectuais e ativistas dos anos 1950 a
uma mulher negra que cresceu nos Estados Unidos,
80, que levaram as ideias do movimento social para
Jordan compreendeu como a ideia de liberdade foi
a academia, fariam com a compreensão acadêmica
fundamental para a cultura, a filosofia e a política
contemporânea de políticas emancipatórias. Assim
“
College Park. -coloniais, estudos culturais e projetos similares de
logia dominante do sonho americano. Poetisa, ensa-
perspectiva crítica enfrentam o desafio de traduzir
ísta e crítica cultural, Jordan se recusou a perceber
as ideias dos movimentos sociais de liberdade, equi-
Resumo as injustiças sociais como naturais, normais ou ine-
vitáveis e simplesmente ignorá-las para se dedicar à
dade, justiça social e democracia participativa para
Neste ensaio, foco em como as ideias e práticas de inter- formatos que possam ser reconhecidos por gestores
seccionalidade mudaram de forma e propósito confor- produção criativa. Em vez disso, seu trabalho inte-
de faculdades. Algumas ideias foram assimiladas
me foram traduzidas nos diferentes contextos materiais, lectual e político refletiu uma política emancipatória.
pelas normas acadêmicas predominantes enquanto
sociais e intelectuais. Para tanto, mapeio as mudanças (Jordan, 1985; Jordan, 1992; Jordan, 1998).
outras foram censuradas ou deixadas à míngua.
de contorno do feminismo negro e da interseccionali- Ou a liberdade é indivi- Jordan se baseou no avanço de políticas emanci-
dade em três períodos: (1) como o feminismo negro,
Como forma de investigação crítica e práxis, o
no contexto de movimento social, adotou perspectivas sível ou não é nada além patórias, conquistadas pelos movimentos sociais, em
contorno da interseccionalidade na academia reflete
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de raça, classe, gênero e sexualidade como sistemas de que predominavam grandes ideias como liberdade,
intersecção de poder, (2) como essas ideias chegaram à da repetição de slogans igualdade, justiça social e democracia participativa.
o contexto de uma tradução imperfeita. Assim, a
academia inicialmente sob a rubrica de estudos de raça/ interseccionalidade proporciona lentes sugestivas
e avanços temporários, No trabalho de Jordan, assim como no de Angela
para examinar o que poderia se perder na tradu-
classe/gênero e subsequentemente foram nomeadas e le-
Davis, Toni Cade Bambara, Shirley Chisholm, Alice
gitimadas como interseccionalidade; (3) as implicações míopes e passageiros, Walker, Audre Lorde e outras feministas negras do
ção, em situações de ideias deslocadas entre diferen-
da legitimação acadêmica de interseccionalidade para as tes comunidades de interpretação, com diferentes
políticas emancipatórias contemporâneas. para poucos. Ou a liber- período, pode-se encontrar uma declaração forte e
níveis de poder. A interseccionalidade conecta dois
Palavras-chave: feminismo negro; interseccionalidade; precoce sobre interseccionalidade, em que a “liber-
dade é indivisível e tra- dade é indivisível”, tanto intelectualmente quando
lados de produção de conhecimento, a saber, a pro-
política emancipatória.
dução intelectual de indivíduos com menos poder,
balhamos em conjunto nas múltiplas lutas políticas. Jordan argumentou que
Abstract o feminismo negro exigia esforços contínuos para
que estão fora do ensino superior, da mídia de ins-
In this essay, I focus on how intersectionality’s ideas and por ela ou você estará desmantelar a intersecção, as relações estruturais
tituições similares de produção de conhecimento, e
practices shifted shape and purpose as they were transla- o conhecimento que emana primariamente de ins-
em busca de seus pró- de poder de raça, classe, gênero e sexualidade, que
tituições cujo propósito é criar saber legitimado. A
ted within varying material, social and intellectual con-
reproduziram as injustiças sociais de uma geração à
texts. To focus my argument, I map the changing contours prios interesses e eu dos outra. Mas ela também viu que as mulheres afro-a-
interseccionalidade pode ser vista como uma forma
of Black feminism and intersectionality across three pe- de investigação crítica e de práxis, precisamente, por-
riods in time: (1) how Black feminism within social mo- meus June Jordan mericanas jamais poderiam ser livres se perseguis-
que tem sido forjada por ideias de políticas eman-
vement settings fostered perceptions of race, class, gender sem apenas o próprio interesse. A luta não tratava
and sexuality as intersecting systems of power; (2) how
(Jordan, 1992, p. 190). apenas de análises abstratas da liberdade, mas sobre
cipatórias de fora das instituições sociais poderosas,
these ideas travelled into the academy initially under the assim como essas ideias têm sido retomadas por
as formas que as iniciativas de justiça social deveriam
rubric of race/class/gender studies and subsequently be- tais instituições (Collins; Bilge, 2016). A eficácia das
assumir para dar vida a políticas emancipatórias. A
came named and legitimated as intersectionality; and (3) ideias centrais de interseccionalidade, em situações
ideia de interseccionalidade e a solidariedade polí-
the implications of intersectionality’s academic legitima- díspares politicamente, levanta questões importantes
tion for contemporary emancipatory politics. tica que a sustentava tinham o objetivo de tornar a
sobre a relevância do conhecimento para a luta por
Keywords: black feminism; intersectionality; emancipa- liberdade significativa para pessoas cujas experiên-
liberdade e iniciativas de justiça social.
tory politics. cias de vida estavam circunscritas pelo racismo, o
Tradução_Bianca Santana.
PARÁGRAFO. JAN/JUN. 2017 PARÁGRAFO. JAN/JUN. 2017
V.5, N.1 (2017) - ISSN: 2317-4919 V.5, N.1 (2017) - ISSN: 2317-4919
Neste ensaio, foco em como as ideias e práticas de Combahee River, um pequeno grupo de mulheres criarem espaço para seu empoderamento dentro dos plar neste sentido. Alice Walker, June Jordan, Angela
interseccionalidade mudaram de forma e propósito afro-americanas de Boston, publicou um manifesto limites dos movimentos sociais que, como na política Davis, Nikki Giovanni e Barbara Smith, para nomear
conforme foram traduzidas nos diferentes contextos chamado A Black Feminist Statement, que apresen- afro-americana, eram moldados por um naciona- algumas, estiveram todas ativamente engajadas nos
materiais, sociais e intelectuais. Para tanto, mapeio tou uma declaração mais abrangente do quadro de lismo patriarcal. O feminismo latino veio na mesma movimentos sociais, especialmente dos Direitos
as mudanças de contorno do feminismo negro e da políticas do feminismo negro (Combahee-River- década de 1980, com o trabalho de Gloria Anzaldua, Civis, anti-guerra, Black Power e/ou movimentos
interseccionalidade em três períodos: (1) como o Collective, 1995). Esse documento inovador argu- especialmente seu clássico Borderlands/La Frontera , de mulheres. O acesso a carreiras acadêmicas per-
feminismo negro, no contexto de movimento social, mentava que uma perspectiva que considerasse que marcou uma importante contribuição na cons- mitiu que mulheres afro-americanas politicamente
adotou perspectivas de raça, classe, gênero e sexu- somente a raça ou outra com somente o gênero avan- trução dos estudos de raça, gênero e sexualidade ativas trouxessem as ideias políticas do feminismo
alidade como sistemas de intersecção de poder, (2) çariam em análises parciais e incompletas da injus- (Anzaldua, 1987). O trabalho de Anzaldua, particu- negro para os estudos de raça/classe/ gênero. As
como essas ideias chegaram à academia inicialmente tiça social que caracteriza a vida de mulheres negras larmente, prepara o cenário para a análise de temas principais obras de mulheres negras afro-america-
sob a rubrica de estudos de raça/classe/gênero e sub- afro-americanas, e que raça, gênero, classe social e contemporâneos como espaços fronteiriços, frontei- nas, que estabeleceram as bases para o que veio a ser
sequentemente foram nomeadas e legitimadas como sexualidade, todas elas, moldavam a experiência de ras e relacionalidade, que se tornaram logo depois conhecido como interseccionalidade, incluem Civil
interseccionalidade; (3) as implicações da legitima- mulher negra. O manifesto propunha que os siste- tão proeminentes na interseccionalidade (Collins; Wars , de June Jordan (Jordan, 1981); o clássico Sister
ção acadêmica de interseccionalidade para as políti- mas separados de opressão, como eram tratados, fos- Bilge, 2016). Outsider (Lorde, 1984) de Audre Lorde; e o inova-
cas emancipatórias contemporâneas. sem interconectados. Porque racismo, exploração de dor Mulheres, Raça e Classe de Angela Davis (Davis,
Examinar como as mulheres de cor lidaram com
classe, patriarcado e homofobia, coletivamente, mol- 1981). Em trabalhos como esses, pode-se ver como
o desafio de seu próprio empoderamento demons-
1. Feminismo Negro nos Estados davam a experiência de mulher negra, a libertação
tra diferentes padrões de como raça/ classe/ gênero/
a produção intelectual de mulheres negras contém
Unidos e Origens do Movimento das mulheres negras exigia uma resposta que abar- uma análise explícita das interconexões de raça,
sexualidade foram negociadas no contexto político
Social de Interseccionalidade casse os múltiplos sistemas de opressão. A sucinta classe, gênero e sexualidade como sistemas de poder
dos movimentos sociais. Por exemplo, mulheres
declaração de June Jordan sobre liberdade encapsula explicitamente ligados a diversos projetos de jus-
afro-americanas e mexicanas confrontaram o desafio
As narrativas contemporâneas relativas à emer- o pensamento daquele tempo: “ou a liberdade é indi- tiça social catalisados por seu envolvimento com os
de incorporar gênero aos argumentos predominantes
gência da interseccionalidade ignoram, com frequên- visível ou não é nada além da repetição de slogans movimentos sociais (Collins, 2000). Mais uma vez,
de raça/classe dos movimentos nacionalistas negros
8 cia, a relação desta com as políticas feministas negras e avanços temporários, míopes e passageiros, para esse conjunto de estudos de raça/ classe/ gênero não
poucos. Ou a liberdade é indivisível e trabalhamos
e mexicanos, assim como incorporaram raça e classe
estava limitado a mulheres afro-americanas.
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dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos. Apesar ao movimento feminista que avançava somente nos
de um longo projeto feminista negro, nos movimen- em conjunto por ela ou você estará em busca de seus
argumentos de gênero. Neste contexto, argumentos No contexto do movimento social, a sinergia
tos sociais do século XX, mulheres afro-americanas próprios interesses e eu dos meus” (Jordan, 1992,
sobre a intersecção de raça/ classe/ gênero/ sexua- entre as ideias de interseccionalidade como um pro-
avançaram diversas dimensões do feminismo negro 190). Aqui, a discussão de Jordan sobre liberdade
lidade foram forjados na intersecção de múltiplos jeto de conhecimento, bem como sua organização
que foram claramente reconhecidas como intersec- adianta ideias importantes dos projetos de conhe-
movimentos sociais, uma localização estrutural que estrutural e aspirações, se reforçam uma a outra.
cionais. Por exemplo, o volume editado por Toni cimento interseccionais, ou seja, encarando a tarefa
teve um importante efeito nas dimensões simbólicas Nessa sinergia, pode-se perceber a relação recorrente
Cade Bambara nos anos 1970, The Black Woman, de compreender as desigualdades sociais complexas
do discurso interseccional seguinte. entre as dimensões sociais e simbólicas dos projetos
se coloca como um trabalho inovador feito por como intrinsecamente ligadas a uma agenda de jus-
de conhecimento (Lamont; Molnár, 2002). Quando
mulheres afro-americanas envolvidas na luta política tiça social, ou as interseções não apenas como ideias A transitória década de 1980 levou os movi-
ideias, ou material simbólico, vão de um ambiente
(Bambara, 1970). Tomando uma postura implicita- por elas mesmas, mas como ideias e ações. mentos sociais a uma pausa, mas isso constituiu um
social a outro, essa relação entre os limites sociais
mente interseccional em relação à emancipação de avanço nos contornos estruturais dos projetos de
Dada a diminuição história de mulheres de e simbólicos também muda. Nesse caso, tanto o
mulheres afro-americanas, mulheres afro-america- conhecimento que viam raça, classe, gênero e sexua-
ascendência africana, é tentador conferir às afro-a- feminismo negro como os estudos de raça/ classe/
nas de diversas perspectivas políticas apresentaram lidade como se construíssem mutuamente sistemas
mericanas a descoberta de uma interseccionalidade gênero se desdobram em espaços sociais e simbóli-
ensaios provocativos sobre como as mulheres negras de poder. Mulheres de cor, ao argumentarem as
ainda não nomeada. No entanto, é evidente que nos cos diferentes dos discursos hegemônicos. Ambos
nunca ganhariam sua liberdade sem perceber sua interconexões de raça, classe, gênero e sexualidade,
Estados Unidos as mulheres afro-americanas faziam os discursos encontraram o desafio de definir limites.
raça, classe e gênero. Escrito para o público geral e não produziram apenas documentos nos movimen-
parte de um movimento mais amplo de mulheres, Quando mulheres de cor que seguiram engajadas em
não para a academia, o volume pode ser visto como tos sociais, muitas dessas mulheres entraram na aca-
em que mexicanas e outras latinas, mulheres indíge- movimentos sociais entraram para a academia, trou-
um importante trabalho pioneiro sobre interseccio- demia como estudantes de pós-graduação, professo-
nas e asiáticas estavam na vanguarda de reivindicar xeram com elas as sensibilidades dos movimentos.
nalidade, embora seja negligenciado. ras assistentes, docentes. É importante lembrar que
a inter-relação de raça, classe, gênero e sexualidade Elas também encontraram normas acadêmicas que,
os movimentos sociais não lutaram pela inclusão
Por volta de 1980, algumas das principais ideias em sua experiência cotidiana. O coletivo Combahee de muitas formas, eram antiéticas para as suscetibi-
de mulheres e pessoas de cor na academia, que as
forjadas no contexto do ativismo de mulheres negras River não estava sozinho ao propor essas ideias. Nos lidades dos movimentos, por exemplo, enquadrar a
ideias trazidas por elas dificilmente teriam aceita-
foram cristalizadas em panfletos, poesias, ensaios, Estados Unidos, por exemplo, latinas estavam enga- política como sendo partidária e não-objetiva. Além
ção. O caso das mulheres afro-americanas é exem-
coletâneas, arte e outras obras. Em 1982, o Coletivo jadas em lutas intelectuais e políticas similares, ao disso, quando o feminismo negro foi incorporado à
COMBAHEE-RIVER-COLLECTIVE. 1995. A Black KING, Richard H. Civil Rights and the Idea of
Feminist Statement. In: GUY-SHEFTALL, Beverly Freedom. Athens: University of Georgia Press, 1996.
(org.). Words of Fire: An Anthology of African-
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CRENSHAW, Kimberlé Williams. Mapping the
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MAY, Vivian M. Pursuing Intersectionality,
DAVIS, Angela Y. Women, Race, and Class. New Unsettling Dominant Imaginaries. New York:
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