Você está na página 1de 356

LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Nilson Macêdo Mendes Junior


(organizador)
Nilson Macêdo Mendes Junior
(organizador)

LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Diálogo Freiriano
Veranópolis - RS
2020
CONSELHO EDITORIAL

Ivanio Dickmann - Brasil


Aline Mendonça dos Santos - Brasil
Fausto Franco Martinez - Espanha
Jorge Alejandro Santos - Argentina
Miguel Escobar Guerrero - México
Carla Luciane Blum Vestena - Brasil
Ivo Dickmann - Brasil
José Eustáquio Romão - Brasil
Enise Barth - Brasil
Martinho Condini - Brasil

EXPEDIENTE

Editor Chefe: Ivanio Dickmann


Financeiro: Maria Aparecida Nilen
Diagramação: Renan Fischer

FICHA CATALOGRÁFICA

L776 Literatura, linguística e educação, 1 / Nilson Macêdo Mendes Junior


(organizador). 1.ed. – Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020.

ISBN 978-65-87199-11-5

1. Literatura. 2. Linguística. 3. Educação. I. Mendes Junior, Nilson Macêdo.

2020-0005 CDD 410 – 22.ed.

Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056

EDITORA DIÁLOGO FREIRIANO


[CNPJ 20.173.422/0001-76]
Av. Osvaldo Aranha, 610 - Sala 10 - Centro
CEP 95.330-000 - Veranópolis - RS
dialogar.contato@gmail.com
www.dialogofreiriano.com.br
Whatsapp: [54] 98447.1280
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Nilson Macêdo Mendes Junior .................................................................................................. 7

BACO E BORGES: A INVENÇÃO DO VILÃO


Ana Clara de Paula Etore e Jéssica Adriane Etore Fogaça ...................................................... 9

NA RODA: EDUCAÇÃO, CORPO E DANÇA OLHAR O CORPO COMO


ELEMENTO ESSENCIAL PARA A PRÁTICA DA DANÇA E PARA A
CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS A PARTIR DO CONGEAFRO –
NÚCLEO RODA GRIÔ/UFPI
Artenilde Soares da Silva e Francis Musa Boakari................................................................. 21

O ABSURDO E O MUNDO A FILOSOFIA DO ABSURDO CONTIDA NAS


DISTOPIAS POLÍTICAS E EXISTENCIAIS DE 1984, DE GEORGE
ORWELL E MISTO-QUENTE, DE CHARLES BUKOWSKI.
Caio Silas Alvarenga Malaquias............................................................................................ 37

A ESCRITA DRAMATÚRGICA NO TEATRO CONTEMPORÂNEO: DO


ESCRITÓRIO À SALA DE ENSAIO
Carolina Montebelo Barcelos ................................................................................................. 55

VIAGEM, MOVIMENTO E REPRESENTAÇÃO NO LOCUS LITERÁRIO


DE RIVERÃO SUSSUARANA, GLAUBER ROCHA
Denise Veras .......................................................................................................................... 69

FANTASIA E REAL NA LITERATURA INFANTIL: UM EXCURSO


TEÓRICO PARA EMANCIPAÇÃO DO LEITOR CRIANÇA
Dheiky do Rêgo Monteiro Rocha e Maria do Socorro Rios Magalhães................................... 83

A MULHER NA POLÍTICA: DE “ASSUJEITAMENTO” A


EMPODERAMENTO
Francisco Renato Lima e Safira Ravenne da Cunha Rêgo ......................................................111

CONTOS DE FADAS: UMA BREVE RETROSPECTIVA DE SUAS


ORIGENS E PRINCIPAIS AUTORES
Gisele Arruda Eckhardt ....................................................................................................... 127
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A ESPERA DO NUNCA MAIS, UMA SAGA AMAZÔNICA: UM LUGAR


DE PULSÃO E DE CÁLCULO NA CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE
NICODEMOS SENA
Iza Reis Gomes Ortiz, Izabel de Brito Silva Nascimento e Suélen da Costa Silva .................. 141

TRANSGRESSÃO POÉTICA VERBO-VISUAL EM OS CAÇADORES DE


PROSÓDIAS (1994), DE DURVALINO COUTO
Josivan Antonio do Nascimento ........................................................................................... 155

FORMAÇÃO LEITORA COM BEBÊS: A LITERATURA NA CRECHE


Larissa Barbosa dos Santos ..................................................................................................173

A POESIA NA SALA DE AULA: ENTRE VERSOS E RITMOS COM PAULO


LEMINSKI
Letícia Queiroz de Carvalho ................................................................................................ 189

CRENÇAS SOBRE ENSINAR-APRENDER A SER PROFESSOR DE


LÍNGUA ESTRANGEIRA: REPRESENTAÇÕES DE GRADUANDOS E
FORMADORES
Luciana Kinoshita ............................................................................................................... 201

O MUNDO DO SÉCULO XIX NA NARRATIVA DE JÚLIO VERNE:


REFLEXÕES SOBRE MODERNIDADE E ALTERIDADE
Marcus Pierre de Carvalho Baptista .................................................................................... 217

A MEMÓRIA AFRO-AMERICANA EM NARRATIVE OF THE LIFE OF


FREDERICK DOUGLASS, DE FREDERICK DOUGLASS
Nilson Macêdo Mendes Junior .............................................................................................. 233

UMA GEOGRAFIA DAS “TERRAS DO SEM FIM”: A NATUREZA DO SUL


DA BAHIA, A FORMAÇÃO DE SUA REGIÃO CACAUEIRA E AS
CRÍTICAS DE JORGE AMADO À SOCIEDADE DO CACAU
Paulo Fernando Meliani ......................................................................................................247

LITERATURA E SOCIEDADE: O TEXTO LITERÁRIO E O ENSINO.


Orniane Guimarães Bahia, Dirlenvalder do Nascimento Loyolla e Eliane Pereira Machado
Soares .................................................................................................................................. 267

PERCURSO HISTÓRICO DOS CURSOS DE LETRAS NO BRASIL


Osalda Maria Pessoa ........................................................................................................... 279

5
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A CONSTRUÇÃO DO HERÓI MALANDRO EM MEMÓRIAS DE UM


SARGENTO DE MILÍCIAS (1854) SOB A ÓTICA DE ROBERTO
DAMATTA (1997)
Raimunda Maria dos Santos ................................................................................................293

PERCEPÇÕES DE PROFESSORES SOBRE USO DE METODOLOGIAS


ATIVAS PARA A APRENDIZAGEM DE INGLÊS NOS ANOS FINAIS DO
ENSINO FUNDAMENTAL
Raimundo Nonato Sousa, Alexandre dos Santos Oliveira, Alexandra Mury Martins Farias e
Christopher Thomas Hall..................................................................................................... 307

A INFLUÊNCIA DO DESLOCAMENTO DE MIGRAÇÃO SOBRE A


PERFORMATIVIDADE MATERNAL DAS DUAS MULHERES-MÃES NAS
OBRAS DE VIDAS SECAS DE GRACILIANO RAMOS E AS VINHAS DA
IRA DE JOHN STEINBECK
Raphael de Andrade Lima Amorim ...................................................................................... 323

A MUDEZ DO SUJEITO COLONIZADO EM FOE, DE J M COETZEE: A


METÁFORA DA SUBORDINAÇÃO E DA RESISTÊNCIA
Rosa Áurea Ferreira da Silva............................................................................................... 337

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................................... 353

6
APRESENTAÇÃO

Saudações aos colegas e às colegas!

A presente obra coletiva que vocês têm em suas mãos nesse exato mo-
mento é fruto de um sonho que toda pessoa acalenta desde a sua entrada na gra-
duação. Todo aluno de graduação e todo pesquisador que produz conhecimento
deseja que suas ideias saiam de suas gavetas e venham a público, e esse desejo de
partilhar é intrínseco a todos nós.
E foi pensando nisso que comecei a idealizar o presente projeto, e ele só
foi possível por causa da oportunidade que tive para publicar três artigos na Edi-
tora Diálogo Freiriano ano passado, um foi publicado na obra DNA da Educação e
os outros dois na obra Rumos da Educação. Com isso, a proximidade com a editora
e com meus calorosos interlocutores, Ivanio e Cida, cresceu e percebi a informali-
dade democrática da empresa.
E graças a todas essas condições favoráveis, uma ideia nasceu dentro de
mim, a de coletar artigos que abordassem as três diferentes áreas do conheci-
mento, mas que se complementam, e essa foi nossa intenção metodológica ao con-
siderar produções textuais nas grandes áreas da Literatura, Linguística e Educa-
ção e suas interdisciplinares.
Então, a vontade de publicar e a filosofia da editora de ampliar as possi-
bilidades de publicação a qualquer pessoa dentro do mundo acadêmico se encon-
traram, e partir delas se tornou possível convidar pesquisadores e pesquisadoras
de diversas titulações e das mais diferentes partes do país.
E esta chamada resultou em 22 artigos de temas e objetos de pesquisa
diferentes, mas que dialogam entre si. É chegada a hora de agradecer a confiança
depositada em mim pela Editora Diálogo Freiriano, e meus amigos pesquisadores
e minhas amigas pesquisadoras.
Aproveitem a leitura, ele é todo nosso agora!

Nilson Macêdo Mendes Junior


Organizador
BACO E BORGES: A INVENÇÃO DO VILÃO

Ana Clara de Paula Etore 1


Jéssica Adriane Etore Fogaça 2

Introdução

O presente artigo se converge na interpretação de duas obras de ex-


trema relevância social, separadas por décadas e que se unem nesse escrito para
tratar a subjetividade no processo de vilanização de figuras marginalizadas,
cada qual em seu contexto: o conto “La Casa de Asterion”, de Jorge Luis Borges
e a canção “Minotauro de Borges”, de Baco Exú Do Blues, que encontram-se
aqui interpretados através de suas relações intertextuais.
Jorge Luis Borges, escritor argentino, lançou em 1949, uma de suas
obras mais celebres: O Aleph. Na coletânea, composta de 17 contos, Borges pro-
tagonizou em seu conto “La casa de Asterion” um personagem vilanizado pelas
mais diversas gerações, ao longo de séculos: o Minotauro. Figura emblemática
e singular, Borges trata as questões pertinentes ao labirinto de Creta em uma
narrativa que ocorre pela perspectiva do monstro mitológico, chamado Aste-
rion. Na mitologia grega, Poseidon entrega a Minos, como presente para sacri-
fício, um touro branco, de aparência tão bela que o rei decide por não matá-lo.
O deus, descontente com os desdobramentos do benesse, decide por vingar-se
e, para isso, inspira na rainha Pasiafe uma ardente atração pelo touro. Da junção
carnal entre uma mulher e um touro origina-se Asterion, um ser hibrido, me-
tade homem, metade touro. O rei ordena a Dédalo, um talentoso construtor,
que construa um labirinto, e assim o “problema” do rei é resolvido. A prisão do
“ser” se dá para suprimir da sociedade a vergonha de Minos.
Décadas mais tarde, em novembro de 2018, houve o lançamento, pela
gravadora Selo EAEO Records, do álbum Bluesman, desenvolvido pelo artista
Diogo Álvaro Ferreira Moncorvo, conhecido como Baco Exú do Blues. Ganha-
dor de prêmios de renome no cenário musical, como o de artista revelação pelo
Prêmio Multishow de Música Brasileira, Baco propõe com o disco uma perspectiva

1
Graduanda do último ano do curso de Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e Inglesa. Atu-
almente atua na educação infantil. Interessa-se por estudos literários com ênfase nos estudos compa-
rados de literatura.
2
Graduanda em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e Inglesa e suas respectivas literaturas.
Atua na área de estudos literários, com ênfase em Literatura Comparada.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

artística que envolve elementos da música, cultura, cinema e literatura, utiliza-


se de referências, intertextualidades e samples para tratar de um tema tocante
a sua vivência e a de tantos outros: o preconceito racial. A figura do negro é
retratada na obra do compositor como protagonista de avanços essenciais para
a sociedade, porém, não admitidos pelos brancos, que insistem em demonizar
a imagem do negro e tirar-lhe o crédito das benfeitorias realizadas.
Na obra de Borges, Asterion é retratado como um vilão construído pela
sociedade, que o marginaliza por ele matar nove pessoas, a cada nove anos, mas
não compreende que o objetivo das pessoas que são enviadas para o labirinto é
executar um inocente. Por que a sociedade o colocou nessa posição? Devido a
sua aparência e origem, como vemos no trecho narrado pelo eu lírico após uma
aparição pública:

Mesmo porque, num entardecer, pisei a rua; se voltei antes da noite, foi pelo te-
mor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a
mão aberta. Já se tinha posto o sol, mas o desvalido pranto de um menino e as
rudes preces da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia,
se prosternava. (BORGES, 2001, p. 52)

Na composição de Baco, o eu lírico se identifica na figura de Asterion,


pois, assim como o monstro retratado em Borges, tem consciência da sua supe-
rioridade, e, no entanto, foi encarcerado por uma sociedade que o despreza por
sua aparência. A letra nos oferece uma ressignificação do negro enquanto indi-
víduo autêntico e responsável pelo desenvolvimento da sociedade, posicio-
nando-o como parte integrante e fundamental, que sofre o preconceito de uma
maioria branca, incapaz de identificar na figura do negro o precursor de desen-
volvimentos, e o vilaniza, criando um vilão social, impedido de ascender.
Como citado na canção, “Dizem que o céu é o limite e eles se pergun-
tam como esse negro não cai” (MONCORVO, 2018) há a perspectiva de que o
labirinto retratado em Borges, seria, em Baco, os labirintos que o negro precisa
percorrer para que sua notoriedade seja conquistada. A ascensão negra é um
labirinto social, uma luta constante por um lugar ao sol. Sobre o tema da can-
ção, Baco comenta: “Você não sabe a história por trás dos vilões que sua mente
cria” (apud, LAYS, 2019).
Estudar obras contemporâneas, que tratam da cultura de um povo sub-
jugado em relação a obras clássicas, de autores consagrados como Jorge Luis
Borges, reafirma à comunidade acadêmica o aspecto democrático da literatura,
conferindo à Baco Exú do Blues reconhecimento pelo trabalho, muito além de
musical, confeccionado e ofertado à cultura brasileira.

10
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Encaminhamentos

O desenvolvimento deste artigo foi feito de forma qualitativa, através


de pesquisa bibliográfica baseada em textos científicos – livros, artigos e dis-
sertações - com foco na discussão intertextual do conto “La Casa de Asterion”,
de Jorge Luis Borges, e da canção “Minotauro de Borges”, do rapper baiano Baco
Exú do Blues.
Para construção desse sentido, foi utilizada a obra A Literatura Compa-
rada, de Tania Franco Carvalhal, que ofereceu um panorama de como literaturas
de épocas distintas podem se convergir, extraindo de cada qual a sua referência
e aplicando-as num contexto distinto, expandindo a interpretação para um ní-
vel global das obras.
Para o aprofundamento na obra de Jorge Luis Borges usou-se a obra
referente a seu trabalho: Jorge Luis Borges: um escritor na periferia, da escritora ar-
gentina Beatriz Sarlo, que explora as influências, narrativas e pessoalidades na
obra do escritor.
Foram, também, utilizadas obras que trabalham o desenvolvimento do
preconceito racial no Brasil, como o livro O negro no lugar do branco, do estudioso
consagrado na área Florestan Fernandes, e O lugar do negro, produção conjunta
de Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, que trata também das relações raciais
nos Estados Unidos, não mencionadas neste trabalho.
As obras mencionadas até o momento tiveram por objetivo contribuir
essencialmente para a compreensão da perspectiva, sobretudo do eu lírico pre-
sente em “Minotauro de Borges“, visto que o conto “La Casa de Asterion” já foi
interesse de análise de diversos estudiosos ao longo das décadas, enquanto a
canção do rapper pouco foi acrescida na comunidade acadêmica. Estudos a cerca
do conto argentino, como Traducción y transtextualidad em “La casa de Asterión” de JL
Borges: una poética de la polifonia, de Lucas Scavino e Rodolfo P. Buzón foram ob-
servados para que houvesse a conceituação da obra no contexto acadêmico.
Para tornar a discussão efetiva, enquanto autoras brancas, no processo
de criação deste trabalho foi consultada a obra O que é lugar de fala, da filósofa
Djamila Ribeiro, para que a construção de interpretações relacionadas ao pro-
cesso de vilanização do negro enquanto membro da sociedade não se tornasse
apenas mais uma invasão de perspectiva; foi entendido pois, que ao analisar,
enquanto brancas, uma obra de pertinência à criticas raciais, é preciso pensar
criticamente a posição do negro e se responsabilizar por ela, compreender que
é importante analisar a dimensão do preconceito racial a partir da posição de
poder ocupada pelos brancos na sociedade, e como citado por Djamila, contri-
buir, dessa posição, para uma sociedade menos desigual.

11
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O conjunto de obras variadas consultadas sobre o tema tornou funda-


mentado o trabalho presente, contribuindo para uma interpretação objetiva.

A invenção do vilão

No final da década de 40, Jorge Luis Borges apresentou uma releitura


do mito de um personagem icônico da mitologia grega: o Minotauro. Com isso,
reavaliou a capacidade representativa da história e viabilizou a interpretação
da complexidade da dualidade presente na existência do protagonista.
Enquanto na versão original do mito a importância do Minotauro se
resume às condições de sua criação, em “La Casa de Asterion”, Borges propõe
uma nova perspectiva para o conto, evidenciando a existência da criatura en-
quanto ser vivo e pensante, que se vê recluso em um labirinto e é julgado e vi-
lanizado por sua natureza.
Essa releitura se apresenta carregada de metáforas, interpretadas por
diversos estudiosos, como Nicolas Emilio Alvarez em Lectura y re-escritura; La
mitopoieses de “La Casa de Asterion” de Borges ou em Traducción y trasntextualidad en
“La Casa de Asterion” de J.L. Borges: uma poética de la polifonia, de Lucas Scavino e
Rodolfo P. Buzón, entretanto, neste trabalho a interpretação da obra acontece
a partir da canção “Minotauro de Borges”, do rapper Baco Exu do Blues.
A obra do compositor baiano por completa possui sua relevância e suas
significações, mas a menção à obra de Jorge Luís Borges incita uma profunda
reflexão sobre o processo de identificação do rapper com o conto, considerando
seu trabalho enquanto artista e sua vivência enquanto indivíduo negro, afinal:

Se a defesa da autonomia da arte e do procedimento formal é um dos pilares da


poética Borges, o outro (conflitivo e velado) é a problemática filosófica e moral
em torno do destino dos homens e suas formas de relação em sociedade.
(SARLO, 2018, p.20)

Pautada nessa perspectiva, as pesquisas realizadas buscaram relacio-


nar e comparar as duas obras, identificando de que forma elas dialogam entre si
e considerando as diferenças contextuais e literárias, já que comparar literaturas
não se resume somente a identificar referências e ligações entre duas obras, mas
sim procurar fazer uma análise mais ampla dessas manifestações artísticas, ideia
defendida por Tânia Franco Carvalhal em A Literatura Comparada:

(...) o estudo comparado de literatura deixa de resumir-se em paralelismos biná-


rios movidos somente por “um ar de parecença” entre os elementos, mas com-
para com a finalidade de interpretar questões mais gerais das quais as obras ou

12
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

procedimentos literários são manifestações concretas. Daí a necessidade de ar-


ticular a investigação comparatista com o social, o político, o cultural, em suma,
com a História num sentido abrangente. (CARVALHAL, 2006, p. 56)

Considerando a pretensão de se analisar panoramicamente as obras em


questão, constatou-se que elas convergem em diversos significados comuns que
se relacionam intimamente com seus respectivos contextos, como, por exem-
plo, a ideia da marginalização que limita as oportunidades.

Isso significa que, considerados sociologicamente, o preconceito e a discrimina-


ção de cor são uma causa estrutural e dinâmica da “perpetuação do passado no
presente”. Os brancos não vitimizam consciente e deliberadamente os negros e
os mulatos. Os efeitos normais e indiretos das funções do preconceito e da dis-
criminação de cor é que o fazem, sem tensões raciais e sem inquietação social.
Restringindo as oportunidades econômicas, educacionais, sociais e políticas do
negro e do mulato, mantendo-os “fora do sistema” ou à margem e na periferia da
ordem social competitiva, o preconceito e a discriminação de cor impedem a
existência e o surgimento de uma democracia racial no Brasil. (FERNANDES,
2013, p.48)

No conto, a marginalização e o isolamento de Asterion se dá por sua


condição física, criatura metade homem e metade touro, que ocasiona estranha-
mento e medo nas pessoas e impede que ele consiga vivenciar outras experiên-
cias que não a de reclusão no enorme labirinto.
No rap, por sua vez, a perspectiva da realidade estruturalmente racista
do Brasil cria um paralelo com essa marginalização que, diferente do conto, não
ocorre devido ao estranhamento entre duas espécies de seres distintos, mas devido
à um longo trajeto histórico que contribuiu para que seres da mesma espécie fos-
sem julgados, condenados, excluídos e mortos, simplesmente por serem negros.
Essa marginalização da população negra é ainda mais visível em grandes centros,
onde é nítida a dissonância econômica e de oportunidades em geral.
Asterion, em seu labirinto, expressa a sensação de que tudo dentro dele
é infinito e que o mundo se limita ao espaço a que foi condicionado, isso porque
tudo é muito parecido e se repete diversas vezes, como podemos ver no seguinte
trecho:

Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não
há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são quatorze [são
infinitos] as manjedouras, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do
mundo; ou melhor, é o mundo. (BORGES, 1972, p. 53)

É natural que a reclusão do Minotauro faça com que ele acredite que
só aquilo que vê constantemente se resuma a seu mundo já que, na prática, é só
a isso que ele tem acesso. Tal situação pode ocorrer, também, as pessoas de ori-
gem periférica, que ao crescerem em um contexto de escassez e injustiça social

13
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

onde as oportunidades são limitadas, se deparam com a sensação de impotência


e impossibilidade de ascensão. Existe nessas situações a sensação de se estar
vivendo somente mais do mesmo, sem progresso, sentimento expresso clara-
mente na obra do contista argentino e do compositor brasileiro.
Tanto o conto quanto a composição musical transitam pela dualidade
dos personagens, que hora se sentem superiores, ora se sentem impotentes e
cansados de suas condições. Também em ambas as obras existe um momento
em que os personagens vislumbram outras possibilidades e outras perspectivas
sobre a vida, seus entendimentos sobre e os lugares que ocupam nela. Esse vis-
lumbre se dá no seguinte trecho do conto:

Contudo, por força de esgotar pátios com uma cisterna e poeirentas galerias de
pedra cinza, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso
até que uma visão da noite me revelou que também são quatorze [são infinitos]
os mares e os templos. (BORGES, 1972, p. 53).

Já na música, esse vislumbre é expresso em versos que indicam a as-


censão econômica do músico e seu empoderamento e superioridade, contrari-
ando as expectativas de todos e reconhecendo seus valores enquanto indivíduo
artístico. Essa consciência de que há outras formas de viver a vida e a expansão
do horizonte de possibilidades é contrastada pela sensação de injustiça acome-
tida por esses personagens, que sofrem uma vilanização por parte de pessoas
que não compartilham de suas vivências. Como vemos no trecho, essa situação
ocorre factualmente:

Várias pesquisas feitas em sociedades nacionais distintas demonstraram que o


preconceito e a discriminação raciais dificultam a ascensão social de minorias
étnicas ou raciais. Não obstante, ela pode ocorrer sem que o preconceito e a dis-
criminação desapareçam. (FERNANDES, 2013, p. 24)

No caso do Minotauro, ele é visto como um vilão por não se enquadrar


nos padrões da sociedade, sendo de uma espécie diferente e única, que quando
tenta sair de seu labirinto é terrivelmente rejeitado; no caso do rapper, ele é
vilanizado por ter ascendido na profissão, ficado famoso e sido reconhecido no
meio cultural, o que ocasiona a rejeição por parte de pessoas que não acreditam
em seu mérito e desconfiam dos meios pelos quais ele chegou até lá, já que para
uma sociedade estruturalmente racista, é difícil entender que negros podem ser
bem sucedidos sem utilizar de meios ilícitos, pois, como vemos no excerto de
Lélia Gonzales e Carlos Hasenbalg, o preconceito racial está diretamente ligado
à classe social, e se uma pessoa negra transcende a regra, ela é posta em situação
de questionamento:

14
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A raça, como atributo social e historicamente elaborado, continua a funcionar


como um dos critérios mais importantes na distribuição de pessoas na hierar-
quia social. Em outras palavras, a raça se relaciona fundamentalmente com um
dos aspectos da reprodução das classes sociais, isto é, a distribuição dos indiví-
duos nas posições da estrutura de classes e dimensões distributivas da estratifi-
cação social. (GONZALEZ, HASENBALG, 1982, p. 89)

A humanização de Asterion se dá pela representação da complexidade


que o constitui como indivíduo, a construção da sua identidade, e a sua relação
com o outro, sua alteridade. Essas relações são ilustradas no conto por meio do
labirinto, onde o lado externo representa o estranhamento e a discordância so-
bre o outro e a parte interna, a forma como o personagem se perde física e lite-
ralmente dentro dele, e a forma como ele se perde no reconhecimento da sua
própria identidade.
Essa dificuldade de se enxergar em relação ao outro e conseguir reco-
nhecer sua identidade é muito presente em Minotauro de Borges, assim como
o confronto entre a realidade e a aparência, que coloca em xeque todas as cren-
ças dos personagens diante da constatação de que o infinito é muito mais do
que o espaço que os limita e que os priva de diversas outras possibilidades. No
conto de Borges, por exemplo, o labirinto pode apresentar inúmeras significa-
ções, pois para o Minotauro é a casa dele, enquanto para todo o resto, o labi-
rinto é uma prisão.
No rap em questão, a ideia inicialmente apresentada pelo cantor é a de
isolamento e reconhecimento de sua superioridade, expressada em diversos
versos da música, como em “Negro correndo da polícia com tênis caro/ Tipo
Usain Bolt de Puma não paro/ Correndo mais que os carros” (MONCORVO,
2018), onde o autor diz correr tanto quanto o ex-velocista jamaicano Usain
Bolt, multicampeão olímpico e mundial, usando um calçado da Puma, uma
marca famosa de produtos de vestuário, especialmente de calçados, ou até
mesmo quando ele afirma que museus estão a procura de mármore negro para
lhe fazerem uma estátua – “Museus estão a procura de mármore negro/ Pra fa-
zer uma estátua minha’ (MONCORVO, 2018) – o que reafirma sua importância
no cenário hip hop nacional e critica a despreocupação da representação de
pessoas negras nas estátuas comumente caucasianas que expressam, normal-
mente, grandes feitos heroicos atribuídos, majoritariamente, à pessoas brancas.
Assim como o Minotauro, que matava as pessoas enviadas ao labirinto
para sobreviver, o eu lírico expressa em seus versos “Vencer me fez vilão/ Eu
sou Minotauro de Borges” a denúncia de que, para a sociedade, o negro impor-
se enquanto indivíduo fundador é ofender a supremacia branca, que o margina-
liza, num processo de identificação do negro enquanto vilão, assim como a so-
ciedade em Creta faz com Asterion.

15
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Como diz Florestan em seu estudo, “os valores vinculados à ordem social
tradicionalista são antes condenados no plano ideal que repelidos no plano da
ação concreta e direta” (FERNANDES, 2013) ou seja, a um repúdio do preconceito
racial no plano imaginário da comunidade branca, que não se aplica na realidade,
pois o preconceito é parte integrante do processo de colonização brasileiro.

Embora o “negro” e o “mulato” façam contraponto nesses arranjos pelos quais o


sistema de valores está sendo reorganizado, eles não são considerados de ma-
neira explícita. Ao contrário, ficam no background, numa confortável amnésia
para os “brancos”. Assim, a pressão verdadeiramente compulsiva, que poderia
dar outro conteúdo às vacilações e às ambiguidades axiológicas relacionadas
com as avaliações raciais, acaba sendo neutralizada. Os aspectos verdadeira-
mente dramáticos e injustos da situação são eliminados, atenuados ou esqueci-
dos, como se não competisse ao branco operar com uma balança de dois pratos.
(FERNANDES, 2013, p. 27)

A canção retoma a ideia de superioridade do personagem na medida


em que o cantor faz uma série de afirmações que evidenciam sua ascensão e seu
sucesso, ao mesmo tempo que sugere a existência de pessoas que não o com-
preendem e não o apoiam, como nos seguintes versos “Dizem que o céu é o li-
mite e eles se perguntam:/ “Como esse negro não cai?”/ Fiz roda punk com os
anjos / Pintei o Éden de preto/ Fui ghost rider de Beethoven/ Escrevi vários so-
netos” (MONCORVO, 2018).
Além disso, como uma característica comum dos raps, Baco utiliza de
trocadilhos para expressar as múltiplas leituras da personalidade do persona-
gem, como “ghost rider”, que faz referência tanto ao filme Ghost Rider, traduzido
para o português como Motoqueiro Fantasma (personagem que suga a alma das
pessoas e absorve para si suas experiências), quanto ao termo “ghost writer”,
que significa “escritor fantasma”, aquele que faz o trabalho, mas não recebe os
créditos, sugerindo então ser o verdadeiro autor das obras célebres do compo-
sitor alemão Beethoven. Na música, parece haver também consciência de acon-
tecimentos futuros, uma vez que o narrador anuncia que após sua morte (reve-
lada posteriormente que se dará pelo suicídio ou assassinato) se tornará um
mártir, um símbolo de luta pelo empoderamento negro.
Em contrapartida, abordando um outro lado do aspecto dual do perso-
nagem, o eu lírico confessa se sentir incompreendido, se comparando à Britney
Spears em 2007, ano em que a cantora pop se envolveu em diversos escândalos
devido à sua instabilidade mental e emocional, um caso que ganhou muita noto-
riedade e é hoje usado como símbolo referencial de situações desprovidas de ló-
gica e relacionadas à loucura. Em seguida, o compositor admite seu sentimento
de isolamento e tristeza com versos que insinuam um estado depressivo, a morte
e sua identificação com Asterion, finalizando a música com a confirmação da imi-
nência de sua morte: “Bebo da depressão/ Até que isso me transborde/ Vencer me

16
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

fez vilão/ Eu sou o Minotauro de Borges/ Bebo da depressão/ ‘Tô’ me acabando


por inteiro/ Você me mata ou eu me mato primeiro?” (MONCORVO, 2018).
No trecho há a relação da sociedade, que sufoca e “mata” o eu lírico na
canção, como faz na história de Borges a figura de Teseu, o homem que coloca
fim à angustia de Asterion.
Analisando e relacionando as obras como um todo, nota-se que o rap-
per baiano se identifica com o personagem mitológico de Borges no sentido de
sua construção banhada por uma dualidade que opõe uma série de questiona-
mentos ontológicos, especialmente a complexidade de lidar com a consciência
de sua identidade em oposição à sua sensação de impotência diante de um con-
texto opressor.
Nesse sentido, o labirinto representa na obra de Baco o racismo estru-
tural que tenta limitar as oportunidades e apagar a sua identidade negra e, para
Asterion, representa uma estrutura que o separa fisicamente do resto do uni-
verso, simbolizando seu afastamento do mundo humano e real.
As obras dialogam entre si enquanto literaturas que tratam da exclu-
são e humanização de figuras vilanizadas e abordam a complexidade do ser
como tópico principal de uma discussão que contribui com o fim das concep-
ções religiosas de bem e mal e aproxima seus personagens da realidade do que
é ser humano e viver à margem da sociedade.

Considerações finais

Considerando as pretensões iniciais de analisar o ponto de conversão en-


tre as obras, conclui-se que ele se encontra no processo de isolamento e não com-
preensão da identidade dos personagens principais de ambas literaturas. Essa di-
ficuldade de definir a identidade do personagem de Jorge Luís Borges e de Baco
Exu do Blues se dá em virtude do contexto social vivido por eles.
Os espaços que esses indivíduos ocupam dificultam ou impossibilitam
que eles transitem para outros espaços, pois Asterion é visto como um monstro
perante a sociedade que o levou à reclusão e Baco, enquanto homem negro, lida
com a questão da invisibilidade da população negra e sua marginalização, de-
corrente de um processo de escravidão e miscigenação que tendem a apagar sua
história. Dessa marginalização, portanto, surge o sentimento de não compreen-
der a si mesmo, aspecto muito bem ilustrado nas duas obras e discorrido du-
rante o desenvolvimento do trabalho.
A exclusão dos personagens ocorre em consonância com o surgimento
da ideia de que eles são vilões em suas respectivas histórias e, em virtude disso,

17
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

surge o ponto mais significativo da análise: a compreensão de que eles são con-
siderados vilões simplesmente por serem diferentes do esperado socialmente e
por, além de não terem suas identidades definidas para si mesmos, não as terem
compreendidas por todos os outros.

O presente artigo não teve a pretensão de definir as identidades dos


personagens, mas de expor a complexidade e multiplicidade deles, dis-
tanciando-os de uma visão maniqueísta e os aproximando de uma reali-
dade mais humana e plausível. Dessa maneira, considera -se que a repre-
sentação de figuras tão múltiplas e complexas é reflexo de uma litera-
tura que acompanha a transformação do olhar da sociedade sobre o in-
divíduo e busca acompanhar as ressignificações que surgem dessa
transformação.

18
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, Nicolás E. Lectura y re-escritura: la mitopoiesis de” La casa de Aste-


rión” de Borges. Revista Iberoamericana. v. 57, n. 155, p. 507-518, 1991.

BACO EXÚ DO BLUES. Minotauro de Borges. Bluesman. São Paulo. Selo EAEO
Records, 2018.

BORGES, Jorge. L. O Aleph. Trad. De Flávio José Cardoso. Porto Alegre, Globo.
Brasília. Instituto Nacional do Livro – MEC. 1972.

CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. Vol. 58. Editora Atica, 1986.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global. 2013.
Disponível em: https://docero.com.br/doc/1ns8. Acesso em 22 de setembro de
2019.

GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Editora


Marco Zero Limitada. 1982.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Grupo Editorial Letra-
mento: Justificando, 2017.

SCAVINO, Lucas; BUZÓN, Rodolfo P. Traducción y transtextualidad en” La casa


de Asterión” de JL Borges: una poética de la polifonía. Espéculo. Revista de estu-
dios literários. v. 38, 2008.

SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges: um escritor na periferia. Tradução por Samuel
Titan Júnior. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 2008.

19
NA RODA: EDUCAÇÃO, CORPO E DANÇA
OLHAR O CORPO COMO ELEMENTO ESSENCIAL PARA A
PRÁTICA DA DANÇA E PARA A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS
A PARTIR DO CONGEAFRO – NÚCLEO RODA GRIÔ/UFPI

Artenilde Soares da Silva 1


Francis Musa Boakari 2

INTRODUÇÃO

Debater sobre educação, corpo e dança da forma e na ordem aqui apre-


sentada, talvez pareça incoerência. Pois os nossos pensares ocidentais, comu-
mente, seguem uma ordem cartesiana e dual, onde existem definições lógicas e
fechadas para tudo, além de adjetivar como bom, ruim todas as coisas, nos dando
inclusive acesso à fronteira do “mais ou menos” que também é redutível. Pode-
mos também nos colocar de outra forma sobre essas temáticas como, por exem-
plo, definir corpo como elemento essencial para a prática da dança e para a cons-
trução de conhecimentos definido como a práxis, educação, sendo que nem a
dança e nem os processos educativos são possíveis mediante a ausência do
corpo. Assim, o que queremos dizer em relação a essa ordem incoerente refere-
se a não preocupação/intenção em colocar a educação como topo nestas refle-
xões, mas referenciar este conjunto de elementos integradores como um produ-
tor de linguagens, fruto das experiências e experimentos próprios do corpo.
Estas questões aqui apresentadas são movidas pela experiência no Nú-
cleo RODA GRIÔ GEAFRO - Gênero, Educação e Afrodescendência, núcleo de
pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) sob a presi-
dência de Francis Musa Boakari, Ph.D. na Área da Educação para a Diversidade.
A Roda Griô existe desde 2010 como um local de desenvolvimento de pesquisas
em educação, com relevâncias socioculturais; cooperações e assessorias no
campo da Educação, Ciências Sociais, Arte, Psicologia, Pedagogia, História e
áreas afins, de forma dialógica, interdisciplinar e/ou multirreferencial. Um lu-

1
Licenciada em Educação Artística e Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI).
2
Ph.D. Educação Internacional e Comparada, University of the Incarnate Word, San Antonio, Texas, Es-
tados Unidos.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

gar de inquietudes e que em nós, provoca a vontade de desequilibrar estas refe-


rências humanas tão bem colocadas e niveladas em nossa sociedade ao tratar-
se do lugar pré-definido para cada corpo e suas epistemologias.
Temos a pretensa questão: como a Roda Griô, um espaço alternativo
de construção de saberes, consegue dialogar com os temas: educação, corpo e
dança? Neste caso, levo em consideração as diversas narrativas em volta e en-
volvente aos processos de educação que apresentam o corpo como um elemento
fútil, ignorando a sua especificidade como um lugar problematizador e não pro-
blemático e também a dança como outro campo interpretado, muitas vezes, de
maneira ambígua e negativada. Enquanto a educação, embora seja conceituada
na maioria das vezes de forma restrita. Nesta relação, elegemos o corpo como o
elemento aglutinador do saber/aprendizagem/educação e do fazer, dança.
Comumente, o corpo/dança é silenciado dentro dos espaços de sa-
ber/conhecimento, por isso pretendemos dialogar sobre as invenções humanas
no que diz respeito à linguagem e a relação corpo e conhecimento a partir de
uma concepção de educação, mais especificamente na Roda Griô. Deste modo
ao apresentar o tema educação, pretendemos levar em conta o fato que:

Costuma-se pensar a educação do ponto de vista da relação entre a ciência e a


técnica ou, às vezes, do ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o par
ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva e retificadora, o par teo-
ria/prática remete, sobretudo a uma perspectiva política e crítica. (LARROSA,
2002, p. 20).

Sendo que o nosso intento é olhar para a educação na perspectiva po-


lítica e crítica, retificando o par teoria/prática, definido neste destaque a cima.
Trazemos também Boakari (2019), que apresenta o saber como conhecimento
ao mesmo tempo como implicações colonizadoras, por ser construção humana,
produto social cultural cuja própria natureza é de dinamicidade, criticidade
histórica e adequações permanentes. Ou seja, é um campo aberto de linguagens
e línguas, aptas a discrasia pelas diversas interpretações possíveis, sendo um
dos motivos que “[...] nas últimas décadas o campo pedagógico tem estado se-
parado entre os chamados técnicos e os chamados críticos, entre os partidários
da educação como ciência aplicada e os partidários da educação como práxis
política [...]” (LARROSA, 2002, p. 20). Contudo podemos dizer que essas rela-
ções, encontros e desencontros produzem acordos e desacordos. Enquanto os
experimentos que caracteriza os fazeres científicos produzem, consenso ou ho-
mogeneidade entre os sujeitos, as experiências que caracterizam os saberes/fa-
zeres, produzem a pluralidade entre outras dissonâncias. Segundo Boakari
(2019, p. 77/78):

22
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O conhecimento social como saber de fenômenos sociais não é posse. É de rela-


ções entre as agências do próprio individuo, de outras pessoas e o seu mundo, o
contexto em que se encontram e restabelecem relações. Nestas relações, o ele-
mento aglutinador é o fenômeno em torno do qual é construído o saber especí-
fico. Este saber/conhecimento no mundo das políticas de cognição como rela-
ções entre diferentes elementos, diferentes dinâmicas inter-relacionadas e inter-
dependentes poderia viabilizar novos desafios criadores por que há deslocamen-
tos que providenciam outras perspectivas-olhar o velho de outro ângulo com o
foco aberto numa disposição não fechada com o saber/conhecimento já constru-
ído. (BOAKARI (2019, p. 77/78).

Ou seja, precisamos buscar novos olhares sobre a produção de conhe-


cimento, mesmo mediante e mediados pelas velhas concepções e práticas. Pre-
cisamos ter um ponto de partida. Se ao invés de desqualificar as ações, os pen-
samentos e os saberes do outro, partíssemos do ponto em que foram deixados,
provavelmente os problemas da educação como, por exemplo, o analfabetismo
funcional que tanto assola a população estudantil brasileira pudesse já ter sido
superado. São mensagens marcadas em nossos corpos, mas também silenciadas
no/por estes mesmo corpos.

Interligação entre corpo e educação ou educação e corpo

Corpo, copo, objeto


Receptáculo de espermas,
esparreia-se em gotas
Conta gotas
Corpo nu na TV
É preto!
Não verão nas marcas
Os saberes que te compõem
Não contam teus versos
Mas o teu reverso
Fonte: Criação da autora

Partindo deste foco o qual não prioriza o que realmente importa, mas
apenas ao que nos interessa como sociedade ainda com resquícios colonialista,
nos propomos pensar sobre conhecimento-saber-educação como marcas, apên-
dice ou anexo, ou seja: considerando marca como registros visíveis ou invisí-
veis, apêndices como os saberes elaborados pela própria pessoa e anexos como
os saberes apreendidos de outras/os, mas que incorporamos como nossos tam-
bém. Esta referencia nos ajudará a compreender este contexto, que segundo Bo-
akari (2019) todas estas invenções estão ligadas aos processos colonizatórios,

23
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

por isso partiremos das velhas interpretações sobre o território das práticas
educacionais e educativas, o corpo, pois o que:

[...] temos visto, na sociedade contemporânea, é um discurso hegemônico sobre


o corpo considerado como santuário de músculo, como emblema da cultura da
aparência, como modelo de perfeição e identidade tido como universalmente
aceito e desejado, reforçando a imagem do sujeito narcísico. (BRASILEIRO;
MARCASSA, 2008, p. 194).

Esta é uma forma de apresentar tal território a partir de um conceito


geral, ou seja, de um conceito generalizador de corpo. Provavelmente seja a
forma mais debatida a esse respeito. São conceitos baseados no senso comum.
Ao dizer isso estou caindo no vácuo que move a modernidade, a ideia de que “o
sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina” (LARROSA,
2002, p. 24. grifo nosso). Considerando limitadamente:

Como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se aprender


não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação.[...] se alguém não
tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o que se passa, se não tem
um julgamento preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em
falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que tem de ter uma opinião.
Depois da informação, vem a opinião. (LARROSA, 2002, p. 22).

Diante desta citação, percebemos mais uma vez que os velhos constru-
tos referentes às caracterizações dos saberes orais, potencializados na fala, que
podemos definir como “sentido ou o sem-sentido” representado pelo o modo
“como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do
mundo em que vivemos”. (LARROSA, 2002, p. 21), através das palavras ele-
mento comum ao corpo, o que pode ser chamado de experiências, como apren-
dizagem, segue sendo desconsideradas. Desta forma faz-se:

Imprescindível, portanto, pensar sobre o corpo, os movimentos, os gestos, os


comportamentos, assim como o esporte, a ginástica, a dança e as demais práticas
corporais, como manifestações culturais expressivas, como linguagens partici-
pantes da vida social, na construção de saberes, valores, ações, sentidos e signi-
ficados, comportamentos e relações humanas. (BRASILEIRO; MARCASSA,
2008, p. 197).

Todas estas ações e reações apresentada pelo o corpo fazem parte de


um processo de aprendizagem, necessitam do reconhecimento epistêmico, por
que não chamar memória/experiência. Como produzimos conhecimento? A
partir de qual meio é criado à linguagem, a comunicação? A relação entre nós e
os objetos, os espaços e o outro é experiência do corpo, assim pode ser dito que
a interação social é um dos meios de produção de linguagens e conhecimentos.

24
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Em cada território ocupado pelo o corpo, diferentes discursos serão cria-


dos/elaborados, palavras e expressões corporais serão movidas pelo pensa-
mento ali adquirido e produzido/elaborado. Não podemos nos distanciar do
real a respeito da definição de raças e fragmentação do ser humano perpas-
sando, especificamente, por este canal, pois:

O corpo através da sua linguagem, ao longo da história, se tornou um emblema


étnico, e sua manipulação tornou-se característica cultural marcante para dife-
rentes povos. Ele é um símbolo explorado nas relações de poder e de dominação
para classificar e hierarquizar grupos diferentes. (GONÇALVES, 2008, p.43).

Por isso que o que nos apresenta Freitas (2008, p. 76) como o [...] “to-
mar consciência de si é se sujeitar a uma norma social, a um julgamento de valor;
é tentar, num certo sentido, ver-se com os olhos de um outro representante de
seu grupo social, de sua classe” e aqui acrescento: de uma classe/grupo total-
mente alheio aos seus saberes, pois participa de um outro meio social, muitas
vezes autoafirmado como superior ao seu. E os elementos que alimentarão estes
posicionamentos epistêmicos são acessados por sua linguagem corporal e au-
dível em palavras. Afinal são:

As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o
que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E,
por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras,
pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras
palavras são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras [...].
(LARROSA, 2002, p. 21).

A palavra nos define como corpo cultura, nos relacionando a identida-


des, e nos colocando em espaços definidos como urbano ou rural, como subal-
ternos ou como soberanos. Diante de algumas nomeações as quais podemos
chamar de taxações, o corpo perde sua naturalidade e ganha características
para se inserir no espaço dito aceitável (urbano e/ou soberano). Sendo que aqui
retornarei ao que chamei antes de marca, apêndice e anexo do corpo, lembrando
que marca significa aqui registros visíveis ou invisíveis, apêndices como os sa-
beres elaborados pela própria pessoa e anexos sendo aqui dizíveis como os sa-
beres apreendidos de outras/os, mas que incorporamos como nossos também.
Assim podemos problematizar as palavras que caracterizam os corpos
étnicos de descendência africana, pois continuam dizendo o que somos de
acordo com estas invenções, nos definindo, fazendo uso de outras palavras para
classificar a nossa insatisfação como: audácia, cegueira, pensamento torto, ca-
beça oca, preguiça intelectual, preguiça política. Mas estas palavras, só nos le-
vam a um desabafo e a mais uma intolerância com o ritmo da outra pessoa ou

25
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

com a compreensão e contextualização dos corpos que reproduzem tais cria-


ções como verdades. Que tal, olharmos por outro ângulo olhar de novo, olhar
mais devagar e vagar...
Precisamos nos desvincular do vício da informação-opinião e admitir-
mos que o saber conhecimento também é experiência a qual é tão única como
“temos um corpo que é único, que é só nosso [...] Mas nosso próprio corpo só
pode ser percebido como nosso e único nas relações que estabelecemos com o
outro, com outros corpos” (FREITAS, 2008, p. 76). Precisamos nos reconhecer
como sujeito da experiência e também reconhecer a/o outra/o na mesma condi-
ção. Considerando que estando no mesmo lugar cultural que o outro/igual, não
ocupamos o mesmo lugar, daí as nossas compreensões, as nossas memórias se-
rão únicas, específicas e individuais. Como diz Larrosa (2002, p, 24):

[...] em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de che-
gada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua
atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibili-
dade, por sua abertura. (LARROSA 2002, p, 24).

Assim a Roda Griô oferece experiências diferentes, por este motivo de-
sejamos que sejamos capazes de não querer que a/o outra/o faça as mesmas i n-
terpretações, as mesmas escolhas e as mesmas falas que nós, e que possua o
mesmo saber/aprender que nós, pois:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um


gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para pensar, parar para escutar,
pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sen-
tir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspen-
der o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,
aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,
ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2008, p. 23/24).

Tudo isso exige destreza e acima de tudo compaixão. Refiro-me o sen-


tir-se “com paixão” pelo o outro, ser amorosa/o consigo e com as demais vidas
que nos circundam. Busco em Rousseau, citado por Orwin (1998, p.312) este
conceito: “a compaixão é o último refúgio natural que nos resta, a única possi-
bilidade de comunhão ou intimidade com o próximo [...] A razão divide os ho-
mens; só o sentimento os une de forma segura”.
Assim reforçamos que os pensares sobre o saber da experiência apre-
sentado por Larrosa (2002, p. 27) não “trata da verdade do que são as coisas,
mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece” o que desequilibra os
conceitos a respeito do entendimento do termo conhecimento, o qual na maio-

26
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ria das vezes reduz-se ao saber de coisas e saber opinar sobre elas. Aqui chega-
mos à teoria/prática da dança, que traz para quem a vivencia/pratica, a incons-
tância do saber, pois se relaciona ao fazer, se assim for considerada como a ação
de transportar a ideia (teoria) para a elaboração de imagens comunicativas/lin-
guagens, isto pode ser definido como uma práxis política.
Deste modo, mais uma vez, trago Rousseau sobre o que ele chama de
amor-de-si, nos dizendo que nós devemos dar-nos “[...] a si mesmo uma lei e
esta lei não pode cair do céu, nem, muito menos, brotar unicamente da expres-
são de seu próprio interesse; mas, deve forjá-la no encontro conflitivo com o
outro” (SOËTARD, 2010, p. 19). Ou seja, o corpo/dança nos encaminha ao en-
contro com nossas possibilidades e impossibilidades e ao encontro com a di-
versidade do fazer junto a outras/os e a ser visto pelas/os outras/os, espaços de
conflito, de negação e/ou aceitação.

Corpo/dança um território de saber/fazer/educação

Assim preciso dizer de qual dança estou falando. Porque o termo dança
não basta em si. Posso dizer em um primeiro momento que a necessidade em
definir e especificar esta prática/conhecimento deve-se aos conflitos culturais
anteriormente mencionados, vivenciados ao longo da história humana. Pois
possuímos a mania de caracterizar a cultura como dominante e/ou subordi-
nada. Ficando assim, este discurso visual, chamado dança, dentro/parte desta
relação de conflito. Como estamos buscando entender à presença da educação,
corpo e dança dentro da Roda Griô, este local de desenvolvimento de pesquisa
em Gênero, Educação e Afrodescendência, a dança a qual nos referimos é a
dança afro-brasileira, a qual pode ser descrita como, linguagem ou conceito,
aqui tratamos da linguagem dança afrodescendente mas em outros momentos
aparecerá como conceito, pois estes dançares:

Instituídas por uma poética política elas agregam diferentes gêneros, constru-
indo um panorama múltiplo capaz de conectar suas expressões com as expecta-
tivas de lutas histórico-sociais e políticas em torno da negritude de seus prota-
gonistas. (FERRAZ, 2017, p. 115).

Podendo ser acrescida a essa interpretação o entendimento desta


dança como sendo uma forma de expressão, de protesto e de afirmação de uma
identidade permanentemente questionada pelas diversas maneiras de imposi-
ção da cultura dita e tida como dominante a qual aqui nomeio como euro -cen-
trada. Essa dança, se mostra através de elementos que a vincula a heranças afri-
canas, da diáspora e também a elementos das danças definidas como modernas
e contemporâneas, as quais somam caracteres de várias identidades culturais

27
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

inclusive europeias é um saber/fazer que tem a liberdade de acompanhar ou


rejeitar os ditos valores da cultura dominante, mas que em seu discurso visual
há a incorporação das indumentárias, dos adornos afrodescendentes mas em
especial do uso de teorias e também técnicas que a caracterizam, como por
exemplo a dobra dos joelhos e a reverência à terra, ou seja, ela se dar a liberdade
de fazer escolhas distintas e diversas.
É um elemento que está ligado também à memória, mesmo ancorada
em uma sociedade na qual os acontecimentos são imediatamente substit uídos
por outros, consegue apresentar-se como lugar de elaboração, imbuída de uma
práxis reflexiva podendo ser descrita como experiência dotada de sentido, não
é somente uma questão terminológica, que me leva de volta ao que me propus
no início desta narrativa que seria fazer este caminho em uma perspectiva po-
lítica e crítica, retificando o par teoria/prática, o que a dança afrodescendente
me permite, como um saber/fazer que agrega corpo e educação, é também o que
podemos definir como:

Nossa perspectiva se alinha a uma ideia de pedagogia não enquanto conjunto de


normas e ideias fixas sobre ela mesma e sobre os outros, mas sobretudo como
reconhecimento do valor da troca, da invenção e como esses fatores nos formam,
deformam e transformam. Trata-se de organizar os saberes e ao mesmo tempo
reconhecer suas flutuações, sua volatilidade a depender do lugar em que se anun-
cia. Essa característica de porosidade e circulação não deixa de ser fundamento
africanizado, pois a relação e a extroversão sempre foram características pulsantes
das culturas negras nas Áfricas e nas suas diásporas. Por sobrevivência, gosto ou
estratégia elas sempre se relacionaram. (SILVA, 2018, p. 92).

Assim podemos dizer que também nos ocupamos do fazer ancestral,


que nos leva a dialogar com o passado, o presente e o futuro, sabendo que este
passado vai além do nosso existir. Pois a ancestralidade permanece mesmo de-
pois que eu findar. Podemos dizer que “ao entrarmos no campo da diáspora –
essa condição de movimento e relação – convocamos a ação de desconstruir o
lugar do ocidente enquanto único saber técnico, poético, crítico e centro exclu-
sivo de produção de sentido” (SILVA, 2018, p. 38) no intuito de dar vazão ao
fazer/saber afrodescendente. Não que exista uma preocupação ou a despre-
tensa intencionalidade nesta vivencia, mas não é o que nos move em primeiro
plano, pois:

O simbólico e o ritual estão presentes no conceito formas africanizadas de es-


crita de si, que agrega os valores civilizatórios da presença africana no Brasil,
orientados para que cada dançante busque e compreenda sua própria memória
e ancestralidade. Não, há, portanto, a busca de um referente cultural específico,
mas a abertura para a compreensão de que cada pessoa deve lidar com sua pró-
pria ancestralidade. (SILVA, 2018, p. 134/135).

28
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O desafio de manter a especificidade de cada um/a na construção, des-


construção e reconstrução destas experiências do corpo que dança, trazem as in-
terpretações dos quilombos, das formas como o corpo afrodescendentes res-
ponde aos processos de expropriação e como a experiência, as transmigrações
históricas que envolvem África/Américas, senzalas/quilombos, campo/cidade, ou
seja esta diversidade de deslocamentos que tanto podem resultar em perda, mas
especialmente e indiscutivelmente em reorganização e redirecionamentos e con-
sequentemente em redefinições das imagens pessoais, ambientais e educativas.
Por ser esta a nossa compreensão, buscamos visualizar isso nos traba-
lhos/pesquisas apresentados/as durante a realização da Roda ampliada, cha-
mada de CONGEAFRO (Congresso, Gênero, Educação e Afrodescendência)
realizado desde 2013, ou seja, nas I, II, III e IV edições deste evento realizado
pelo núcleo de pesquisa chamado de Roda Griô, sediado no PPGED-UFPI
desde 2010, o qual é realizado intra Universidade Federal do Piauí (UFPI). Se-
gue quadro/tabela com o nº dos eventos, ano, atividades que dizem respeito às
práticas e relações do corpo/dança como um construto educativo fruto dos ex-
perimentos e das experiências conduzidas pelo corpo e das/os autoras/es, apre-
sentados nos eventos de 2013, 2015, 2016 e 2017 respectivamente.
A nossa pretensão era compartilhar uma visão panorâmica dos temas
estudados e apresentados nestas rodas de saberes dentro do CONGEAFRO, es-
pecificamente sobre os saberes/fazeres (educação) do corpo/dança. Buscando
responder a questão: como a Roda Griô, um espaço alternativo de construção
de saberes, consegue dialogar com os temas: educação, corpo e dança? Podemos
dizer que ao dialogar com os produtos das investigações, apresentadas no I
CONGEAFRO o qual aconteceu nos dias 06, 07 e 08 de novembro de 2013, o
que percebemos é que já havia a presença da dança afrodescendente na progra-
mação, embora como um fazer/prática, o que não deixa de ser produção de co-
nhecimento, pela experiência produzida pelo fazer dança e pelos experimentos
corporais ao que também chamamos de exercícios e desenhos de linguagens
elaborados nos processos de adequação (alongamento e aquecimento) do corpo
e nas criações de sequências coreográficas.
Esta atividade (oficina de Dança afro-brasileira) é a mais específica, mas
elenquei atividades como comunicação oral (painéis), pôsteres e minicursos, que
estão ligadas de alguma forma com a temática: Educação, Corpo e dança.

29
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Quadro 1 - Visão panorâmica dos temas estudados e apresentados no I CONGE-


AFRO, especificamente sobre os saberes/fazeres (educação) do corpo/dança.
Nº e PERÍODO DATA TEMA ATIVIDADE / SALA AUTORAS/ES
COMUNICAÇÕES
ORAIS
I CONGEAFRO Leila Dupret Guilherme
Conquistas,
06, 07 e 08 de DIA: PAINEL 1 da Silva Pereira Eliezer e
experiências
Novembro de 06.11.2013 Flavio dos Santos Souza
e desafios Samba-enredo: informação
2013. Nikolas Bigler.
e profissionalização nas
escolas;
PAINEL 6 - ARTE E
AFRODESCENDÊNCIA:
Wesllana Maria Melo
DIA: Manifestação cultural afro- Araújo e Vicelma Maria
08.11.2013 brasileira: uma cartografia de Paula Barbosa Sousa.
da associação cultural de
capoeira escravos brancos
de piripiri-piauí
PAINEL 7 - EDUCAÇÃO,
PSICOLOGIA E
AFRODES-CENDÊNCIA: Débora Brasil Miranda.
Princesas de contos de
fadas e crianças negras:
racismo, estética e
subjetividade
PÔSTERES:
Francilene Brito da Silva
DIA: “O bicho arte e as máscaras Vicelma Maria de Paula
06/11/2013 de áfrica como dispositivos Barbosa Sousa
para um conceito de arte”
MINICURSOS
DIA: Jonas Rodrigues de
08/11/2013 Baião: uma sonoridade Moraes
negra em diáspora
Oficina de Dança
Afro: Grupo Afoxá
DIA:
07/11/2013 Local: Sala Esperança
Garcia (In memoriam) - Sala
de Dança/DMA
FONTE: A autora (2020).

No II CONGEAfro o qual aconteceu nos dias 4, 5 e 6 de novembro de


2015, as atividades diminuíram ao que se refere a temática corpo/dança ficou me-
nos evidente, quase imperceptível. Elenquei as apresentações nas comunicações
orais com temas aproximados como música (reggae), cinema e literatura, mas
houve a exibição de documentário sobre a dança dos congos (Oeiras-PI) e nas ati-
vidades culturais aconteceu uma exibição de uma performance que mesmo não
sendo uma linguagem específica das danças afro-brasileiras mas imaginamos, em-
bora não tenha nenhum tema mas apenas quem assina, uma intenção do que cha-
mamos aqui de atravessamentos de elementos discursivos desta temática.

30
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Quadro 2 - Visão panorâmica dos temas estudados e apresentados no II CONGE-


AFRO, especificamente sobre os saberes/fazeres (educação) do corpo/dança.
Nº e PERÍODO DATA TEMA ATIVIDADE / SALA AUTORAS/ES
COMUNICAÇÕES
Orgulho de Ser RT6 Sala 02 PPGEd
II CONGEAfro
DIA: Afrodescen- Cultura da diáspora: o reggae Sílvio Tavares dos
4 a 6 de novem-
05/11/2015 dente: Lugares como instrumento pedagógico Santos
bro de 2015
e Identidades para as discussões étnico-raciais
na escola
RT9
Sala 02 PPGEd José de Sousa
De montanhas e abismos: litera- Magalhães e
tura e identidade em “o artista Pedro Pio
negro e a montanha racial”, de Fontineles Filho
langston hughes.
RT6
Sala 01 PPGEd
DIA: Francisca Márcia
06/11/2015 Congo de oeiras: documentário, Costa Souza.
ensino de história do piauí e pa-
trimônio cultural.
ATIVIDADE CULTURAL
Hall do PPGEd
Prof. Kacio Silva.
Núcleo de Dança da Faculdade
Santo Agostinho
FONTE: A autora (2020).
Já em relação ao III CONGEAFRO que aconteceu nos dias: 09, 10 e 11 de
novembro de 2016 é perceptível um crescimento significativo da temática
corpo/dança, desde as comunicações orais, pôsteres, apresentações artísticas que
incluíam a dança e evidenciam o corpo como agente de conhecimento, inte-
grante/produtor de linguagens, fruto das experiências e experimentos do próprio
corpo através da capoeira, que também é dança, corpo como territórios, conversas
sobre a produção da elaboração de espetáculo de dança e apresentações, tanto de
linguagens como afoxés, e de performances de conceito afro-brasileiro.
Ao nos referirmos sobre a linguagem de dança afro-brasileira, os refe-
rimos a danças específicas de características da diáspora afrodescendente no
Brasil, como por exemplo: samba, congos, pagode, afoxé e várias outras lingua-
gens e ao tratarmos de conceito são os elementos políticos que atravessam o
fazer dança, com uma técnica e uma pedagogia ligada a ancestralidade afrodes-
cendente. A intenção aqui não é tecer uma discursão a respeito destes cruza-
mentos, mas catalogar a presença desta temática dentro destes eventos de de-
bate e divulgação das produções/pesquisas sobre gênero, afrodescendência e
“descolonialidades”, por isso não nos alongaremos em conceituar as linguagens
de danças afrodescentes ou conceito de dança afrodescendente.

31
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Quadro 3 - Visão panorâmica dos temas estudados e apresentados no III CONGE-


AFRO, especificamente sobre os saberes/fazeres (educação) do corpo/dança.
Nº e PERÍODO DATA TEMA ATIVIDADE / SALA AUTORAS/ES
III CONGE PÔSTERES Lucinete Aragão Mascare-
Direitos de
Afro 09, 10 e 11 DIA: Capoeira na escola no combate ao nhas e Emanuelly Mascare-
ser nas nhas e Silva
de novembro de 09/11/2016 preconceito racial;
relações de
2016 A importância da valorização da cul- Luylly Vanessa da Silva Lima e
poder
tura negra na educação infantil; Ludmilla da Silva Alves
RODAS DE CONVERSAS:
Comunicações Orais
Eduardo Oliveira Miranda
RT3 SALA de REUNIÃO – CCE
Coord.: Leudjane Michelle
Sociopoética e corpo-território: Viegas Diniz Porto
rupturas da razão indolente na for-
mação docente
Outras Mídias
RODA TEMÁTICA
Francisco Elismar Junior e
RT5
Camila Cecilina do Nasci-
Modos de ser afrodescendentes, mento Martins
narrativas, histórias e conheci-
mentos “martelo”.
|MINICURSOS
Raimunda Ferreira Gomes
RT3 SALA 1 – PPGEd Coelho
DIA: A capoeira: encontro e reencontro
10/11/2016 dos jovens com a identidade racial
nos quilombos de São João do Pi- Coord.: Fernanda da Silva
aui Rocha
OUTRAS MÍDIAS
Raimunda Gomes.
Local: Hall do PPGED/CCE
Teatro – “SOMOS TODOS
IGUAIS? – Estudantes do IFPI de
São João do Piauí. Dança Ingrid de Ogum e Cristi-
ano de Ogum.
“AFIXIRÊ”
OUTRAS MÍDIAS: RODA TE-
MÁTICA
RT5_ Anna Karitha Menezes
Brito, Pedro Celso
Modos de ser afrodescendentes,
Araújo Filho e Kácio dos
narrativas, histórias e conheci-
Santos Silva.
mentos black hair tia do café
fashion bombril week
RODAS DE CONVERSAS: Camila Cecilina do Nasci-
Comunicações Orais mento Martins, Sarah Fonte-
DIA: Salas do PPGEd nelle Santos e Francisco Elis-
11/11/2016 mar Júnior
Martelo: a dança afro e a resistência
das mulheres numa perspectiva ar- Coord.: José Wendel Sousa
tística de corpos que falam de Aguiar
APRESENTAÇÕES ARTÍSTICAS
Local: Auditório/CCE Carlos Veras, Daniel Brito
Dança: “BOMBA, PASTEL E CO- e Kácio dos Santos Silva
XINHAS”
FONTE: A autora (2020).

32
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

E por último, o IV CONGEAFRO realizada nos 07, 08, 09 e 10 de no-


vembro de 2017, já inicia com uma performance de dança com um tema muito
sugestivo “Mercado negro” e as discussões muito potentes com um número bem
maior inclusive nas rodas de diálogos, nos espaços de mídias e de apresentações.

Quadro 4 - Visão panorâmica dos temas estudados e apresentados no IV CONGE-


AFRO, especificamente sobre os saberes/fazeres (educação) do corpo/dança.
Nº e PERÍODO DATA TEMA ATIVIDADE / SALA AUTORAS/ES
IV CONGEAfro ABERTURA
Luzia Amélia Silva Mar-
07, 08, 09 e 10 de DIA: Descolonialidades Salão da ADUFPI
ques; Kácio dos Santos
novembro de 08/11/2017 e cosmovisões. APRESENTAÇÃO –
Silva
2017 “Mercado negro”
SALA 02: RT2
Grupo Emauê: o condiciona-
mento da dança afro para Leonardo Gonçalves
construção da identidade Freitas
educacional do Quilombo
Olho D’agua dos Negros em
Esperantina –PI
SALA 04: RT4
Corpos mandingas entre gin- Vicelma Maria de Paula
gas e berimbaus: uma educa- Barbosa Sousa
ção do chão.
MINICURSOS
SALA 01: RT1
Artenilde Soares da Silva
DIA: Imagens, narrativas e dança e Francilene Brito da
09/11/2017 afro: mulheres e crianças nas Silva
artes visuais – como tecer
uma educação decolonial?
SALA 04: RT4
Lezeira da Comunidade Qui-
lombola Custaneira/Tronco:
arte, patrimônio cultural e or-
ganização descolonial
SALA DE DEFESA: RT5
Racismo e Mídia: percepções Áureo João de Sousa
de alguns (mas) estudantes Elisiene Borges Leal
afrodescendentes da UFPI so- Coord. e Vânia Sebasti-
bre as discriminações na arte ana Macedo de Oliveira
de encenar
PALESTRAS/MESAS Artenilde Soares da Silva
REDONDAS: (AFOXÁ-Piauí)
SALA 04: RT4
Psicologia, arte, sociopoética Luzia Amélia Silva Mar-
e afrodescendências: descolo- ques (UFBA-Bahia/Piauí)
nizando cosmovisões e epis- Valdimere Pereira de
temologias Souza – VAL (São Paulo)
Coord. Kácio dos Santos
Silva (FSA/UFPI-Piauí)

33
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

OUTRAS MÍDIAS
Hall do PPGED/CCE/UFPI
RT4 Vicente de Paula Nasci-
Tarde da esperança mento Leite Filho; Sarah
Fontenelle Santos e Ro-
RT4 nald Moura
Como aprender a estar
morto? Val Souza Coordenação:
Kácio dos Santos Silva
MINICURSOS
Maria Dolores dos Santos
SALA 04
Vieira; Samara Layse da
RT4 Rocha Costa e Ilanna
Corpos dissidentes: descolo- Brenda Mendes Batista
nizando cosmovisões e epis-
Vicelma Maria de Paula
temologias;
Barbosa Sousa; Maria Da-
SALA 03 yane Pereira e Lourdes
“Tem mulheres na roda de ca- Angélica Pacheco Cer-
poeira? Quem vê as mulheres meño
na roda?”
COMUNICAÇÕES ORAIS
SALA 01
RT1
Relatos e experiências com Elizandra Dias Brandão;
tambor de crioulo e caracte- Iranilda Pereira da Silva;
rísticas regionais de afrodes- Rejane da Silva Dorne.
cendentes no município de
pinheiro em São Luiz do Ma-
ranhão
OUTRAS MÍDIAS
Hall do PPGED/CCE/UFPI
RT4
DIA:
10/11/2017 A oficina de dança afro-brasi- Artenide Soares da Silva
leira “Dança de Raiz- a ances- e Francisco Elismar da
tralidade em nós” Silva Junior
RT4
Brasil Gueto Brasil RT4
Mercado Negro: Kácio dos Santos Silva;
Corpo/dança/sobrevivência Carlos Mateus Santos
Veras e Daniel Wesley
Costa de Brito
Luzia Amélia Silva Mar-
ques e Kácio dos Santos
Silva
Coord. Luzia Amélia
Silva Marques

FONTE: A autora (2020).

34
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

CONCLUSÕES

Neste momento, onde faremos as nossas considerações finais ao que


chamamos de conclusão, diremos que muito tem a ser dito sobre estas ativida-
des realizadas nos quatro primeiros Congressos de Educação, Gênero e afro-
descendência, realizada pelo núcleo de pesquisa Roda Griô, ligada ao PPGED-
UFPI, embora não tenha sido esta a nossa intenção, catalogar estas produ-
ções/pesquisas especificamente, mas este foi o caminho para responder a ques-
tão: como a Roda Griô, um espaço alternativo de construção de saberes, conse-
gue dialogar com os temas: educação, corpo e dança? e o que podemos dizer é
que analisando os quadros de toda a programação destes primeiros momentos
do CONGEAFRO, os temas corpo e dança se fazem presentes neste lugar de
visibilização de forma intencional, como vontade e com o passar do tempo a
presença deste elemento foi sendo potencializada e não houve uma desconti-
nuidade agravada ou agravante, mesmo que tenha tido uma queda na segunda
edição do Congresso, mas a presença foi mantida e que a partir da III CONGE-
AFRO, houve uma ampliação significativa, acredito que tanto a comunidade
acadêmica dentro e fora da Roda tenha contribuído para esta participação cres-
cente em quantidade assim também como em qualidade.
Podendo ser evidenciado que para a Roda Griô a produção de conhe-
cimento não é desvinculado do corpo, mas é integrado e cadenciado por ele
(corpo) e que o ato de dançar é considerado como linguagem/comunicação/es-
crita de saberes /conhecimentos específicos e identitários que devem perpassar
pelos elementos acadêmicos circulando no mesmo espaço dos livros, dos deba-
tes e das produções grafadas em papel ou em outros suportes, sendo que aqui,
nesta dança, sendo que aqui, nesta dança, que são as danças afrodescendentes
no/do Brasil, o corpo é o suporte necessário e efetivo tendo a memória ancestral
como fonte substancial, existencial e essencial, parte viva na/da experiência e
no/do experimento da dança afrodiaspórica.

35
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BOAKARI, Francis Musa, 2019.DAS EXPERIÊNCIAS, NOSSAS VOZES EPISTÊ-


MICAS: QUESTIONAR E CONSTRUIR, SABERES-CONHECIMENTOS PRO-
BLEMATIZADORES, em Vozes epistêmicas e saberes plurais: gênero, Afrodes-
cendência e sexualidade na educação, MACHADO, Raimunda Nonata da Silva;
SILVA, Sirlene Mota Pinheiro da. – São Luís: EDUFMA, 2019. p. 77/100.

BRASILEIRO, Lívia Tenorio; MARCASSA, Luciana Pedrosa. Linguagens do


corpo: dimensões expressivas e possibilidades educativas da ginástica e da dança.
Pro-Posições, v. 19, n. 3 (57) - set./dez, 2008. Disponível em: http://www.sci-
elo.br/pdf/pp/v19n3/v19n3a10. Acesso em: 5 de nov. 2019

FREITAS, Amanda Fonseca Soares. Corpo, movimento e linguagem: em busca do


conhecimento na escola de educação infantil. Dissertação (Mestrado em Educa-
ção) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Belo Horizonte, p.144 pá-
ginas, 2008.

GONÇALVES, Veruska Barreiros. Moda afro-baiana: comunicação e identidade


através da estética afro, p. 1-124, 2008. Dissertação (mestrado) - Universidade Fe-
deral da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2008. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/23958/1/dissertacao_VBGoncalves.pdf.
Acesso em: 23 de nov. de 2019.

LARROSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de Experiência. Uni-


versidade de Barcelona, Espanha. Tradução de João Wanderley Geraldi. Universi-
dade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística. 2002.

ORWIN, Cliffor. Rousseau, a compaixão e as crises da modernidade. Revista So-


cial, vol. XXXIII (146-147), 1998 (2.°-3.°), 307-321 vol. 33. 1998.

SILVA, Luciane da. Corpo em diáspora : colonialidade, pedagogia de dança e


técnica Germaine Acogny. Campinas, SP : [s.n.], 2018.

SOËTARD, Michel. ROUSSEAU, Jean-Jacques. tradução: Verone Lane Rodrigues


Doliveira. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 100 p.:
il. – Coleção Educadores,) MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massan-
gana.

36
O ABSURDO E O MUNDO
A FILOSOFIA DO ABSURDO CONTIDA NAS DISTOPIAS POLÍTICAS
E EXISTENCIAIS DE 1984, DE GEORGE ORWELL
E MISTO-QUENTE, DE CHARLES BUKOWSKI.

Caio Silas Alvarenga Malaquias 1

INTRODUÇÃO

Nascido na Argélia em 1913, Albert Camus desde cedo defrontou-se


com uma série de conflitos. Num país colonizado, onde já se fazia sentir o cho-
que entre nacionalidades, fora educado segundo os padrões franceses, apesar
de vir de uma família operária.
Do seio de uma família humilde, pôde no decorrer da vida conciliar –
algo irrealizado pela maioria dos demais intelectuais de seu tempo – os dois
mundos de sua época, o do homem “comum”, alcunhado popularmente como
“proletário”, e os círculos hedonistas da intelligentsia. Antes de chegar aos círcu-
los literários da França, trabalhou como mecânico, no comércio e como tano-
eiro, quase se consolidando nesse último ofício, não fosse o incentivo e ajuda de
dois professores que nele vislumbraram um talento apurado.
Após obter sua formação, Camus emigrou para a França na ânsia de
consolidar-se profissionalmente. Fundou um jornal independente, filiou-se ao
partido comunista, seguindo a voga, e a partir de 1940 passou a integrar o mo-
vimento de resistência contra a ocupação alemã.
Sua participação na vida “proletária” impediu-o de anestesiar a cons-
ciência quanto à coletivização do homem para a construção de um novo mundo,
devaneada nos cafés de Paris, e essa atitude fê-lo romper relações com alguns
dos intelectuais da época.

Como Orwell e ao contrário de Sartre, ele coerentemente achava que as pessoas


eram mais importantes que as ideias. Beauvoir relata que em 1946 ele lhe confi-
denciou: “O que temos em comum, você e eu, é que os indivíduos são o que mais
conta para nós. Preferimos o concreto ao abstrato, pessoas à doutrina. Coloca-
mos a amizade acima da política.

1
Professor de inglês formado pela Universidade Aberta do Brasil, pós-graduando em ensino de língua
portuguesa pela Universidade Cândido Mendes.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Em seu enorme coração, Beauvoir deve ter concordado com ele, mas quando a
briga final ocorreu, em razão do livro de Camus O homem revoltado, em 1951-
1952, ela obviamente ficou do lado de Sartre.” (JHONSON, 1990, p. 263.)

Profundo admirador da literatura, atribuísse-lhe o famoso aforismo:


“se queres fazer filosofia, escreva romances”; romancista e ensaísta, retirou da
literatura boa parte do material para as observações psicológicas e filosóficas
que fez em sua época; e vice-versa, pois da filosofia também extraiu o fulcro
para a elaboração de seus romances mais famosos: A peste e O estrangeiro.
Em Orwell, assim como Camus, temos a figura do militante humanista.
Orwell também se deixou seduzir pela causa comunista, foi desenganando -se
com as conclusões draconianas da doutrina, passou a defender um “socialismo
democrático” e terminou a vida isolado na Escócia, onde escreveu sua obra-
prima, o romance 1984.
Bukowski, por sua vez, foi o típico americano comum que veio emi-
grado das mazelas de uma guerra mundial e que ainda viveria outra. Sua geração
corresponde àquela nascida nos “loucos anos 20”, frutos da desilusão de uma
guerra, viveu as vicissitudes e os desdobramentos causados pela Grande De-
pressão, que pôs em xeque todo o encanto de uma nação e seu conceito utópico
de “sonho americano”.

A FILOSOFIA DO ABSURDO

A filosofia de Camus é conhecida como a do absurdo. Seu conceito de-


veria ser encarado como a consequência lógica do existencialismo.
Camus é frequentemente associado à filosofia cujo amigo Sartre foi o
mais prolífico defensor. A diferença entre os dois está na conclusão que tiram
desta noção. Para Sartre a ausência de sentido no mundo, conjugada ao vazio
do espírito – ou natureza humana –, dá ao homem uma “terrível liberdade” para
construir o próprio “destino”. Para Camus, entretanto, tal situação é trágica,
primeiro porque a tal “liberdade” dita por Sartre não significa poder: estarem o
mundo e o homem destituídos de lógica, sentido e significação nada altera de
suas limitações, tampouco os fará alinharem-se em prol dum tal “progresso” por
razão desta “descoberta”. Para Camus a perca de significação pode – e costuma
– descambar num abismo ou no abraço às mais diversas causas, das frívolas às
torpes. É por isso que como solução, ao invés da iconoclastia de Sartre, Camus
propõe um modelo de simulacro do simbólico.
Em sua obra juvenil, O mito de Sísifo (2010), numa clara alu-
são à narrativa da mitologia grega, Camus propõe, mediante argumentação fi-
losófica e literária, um divórcio entre o homem e a simbologia do mundo sem a

38
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ela negar, a partir da compreensão do absurdo, que está no próprio funciona-


mento da realidade.
Assumindo que o único problema verdadeiramente sério na filosofia é
o suicídio, suscita a reflexão de se vale à pena ou não ser a vida vivida. E a partir
de então realiza uma acurada análise no mundo real e literário para descobrir a
tais razões. Argumenta nas páginas iniciais da obra:

Se me pergunto em que julgar se uma questão é mais urgente do que outra, res-
pondo que é com ações a que ela induz. Eu nunca vi ninguém morrer pelo argu-
mento ontológico. Galileu, que detinha uma verdade científica importante, ab-
jurou-a com a maior facilidade desse mundo quando ela lhe pôs a vida em perigo.
Em certo sentido, ele fez bem. Essa verdade não valia a fogueira. Se é a Terra ou
o Sol quem gira em torno um do outro é algo profundamente irrelevante. [...] vejo
que muitas pessoas morrem por achar que a vida não vale à pena ser vivida. Vejo
outras que paradoxalmente se fazem matar pelas ideias ou as ilusões que lhes
proporcionam uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é, parado-
xalmente, uma excelente razão para morrer). (Camus, 2010, p. 8 e 9.)

A crítica de Camus está claramente ligada aos “castelos de areia” que


fundamentam tantas existências, a ponto de estarem por eles dispostos a ex-
tinguirem-se. “Se é a Terra ou o Sol que giram em torno um do outro é algo
profundamente irrelevante”. Assume Camus que a compreensão do mundo não
é uma panaceia e que entendê-lo em nada mudará seu funcionamento e efeitos
no espírito humano.
As revoluções científicas e filosóficas de nosso tempo supostamente
“demoliram” a metafísica e os maniqueísmos, além dos “grilhões” da religião.
Contudo, abriram, assim, uma lacuna à qual o homem cada vez mais solitário
tem apenas seus próprios meios limitados para lidar. Desse divórcio nasce a
compreensão do absurdo:

“Um mundo em que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo
familiar. Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou
ilusões, o homem se sente um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é des-
tituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra pro-
metida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre ator e seu cenário, é que é
propriamente o sentimento da absurdidade (CAMUS, 2010, p. 9).”

Neste mundo não mais explicado, no muito entendido em alguns de


seus processos impassíveis, o ser humano continuará a encontrar o flagelo, a
fome, a desmedida, a falta de significado no sofrimento e o silêncio ante aos
mesmos, agora, porém, sem ter mais a que recorrer para compreendê-los ou
consolá-los. Talvez daí haja tamanho esforço dos intelectuais por doutrinas que
prezam a unidade e a totalidade. Confrontar-se com o absurdo é aceitar a ver-
tigem que lhe acompanha.

39
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Mas é essa mesma a proposição de Camus, aceitá-lo como imanência,


mas a ele não se resignar. O homem absurdo é aquele que “sem o negar, não faz
nada para o eterno [...] Mas ele prefere sua coragem e seu raciocínio” (CAMUS,
2010, p. 44) e que extrai desse absurdo “três consequências que são minha li-
berdade, revolta e paixão.” (CAMUS, 2010, p.42)
Destas três consequências, prioriza o autor a noção de revolta, para
qual dedica um grandioso ensaio chamado O Homem Revoltado (CAMUS, 2017).
Descreve esse sentimento que considera imanente e corolário ao absurdo: “A
primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência ab-
surda, é a revolta” (CAMUS, 2017, p.19).
Adiante, Camus demove desse sentimento a noção de negatividade ou
transgressão gratuita, ao contrário, é um ímpeto positivo de afirmação. Se-
gundo ele:

“A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e in-


compreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a uni-
dade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige,
ela quer que o escândalo termine e se fixe finalmente aquilo que então se escrevia
sem trégua sobre o mar (CAMUS, 2017, p. 19).”

A revolta é, assim, o que motiva a criação do valor, por sua vez a “pas-
sagem do fato ao direito” (CAMUS, 2017, p.25). Ao vislumbrar uma condição
positiva em si ao qual o outro nega, o revoltado inicia um conflito, físico ou
psicológico com aquele que o contrapõe, exigindo ser reconhecida sua condi-
ção, o direito que já enxerga em si. Assim, corresponde à resistência da razão
humana contra a desmedida cega do mundo.
Sabendo, pois, da vacuidade das ilusões deste mundo e dos recursos
limitados a que dispõe, o homem revoltado prefere ater-se ao presente. O sofri-
mento lhe é uma condição fatual, para o qual não cabem soluções que venham
a utilizá-lo como ferramenta ou etapa. Nada de esperanças em parúsias ou a
abdicação de fruir a vida em prol de promessas ou maquinações distantes, ape-
nas as ações diretas e o máximo gozo do presente.
Um paralelo muito pertinente poderia ser traçado entre essa compre-
ensão e um período bem singular do século XX. No entre guerras, uma geração
de americanos vislumbrou o sofrimento da guerra e, ao escandalizar-se, parece
ter atravessado um liame em que a inocência e as esperanças baldias foram des-
prezadas. A explosão da vida urbana e dos prazeres efêmeros denota uma trans-
formação psicológica de um homem agora dedicado ao presente e ao terreno.
Estes homens e mulheres dos chamados “loucos anos XX”, abraçaram o bem-
estar imediato ao rejeitaram alguma significação no sofrimento. Bukowski é um
rebento destas épocas.

40
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O absurdo e a literatura:

“Meu campo é o tempo” (CAMUS apud GOETHE, 2010, p.44). Com


este aforismo de Goethe, Camus continua a deslindar o homem absurdo. Por-
que se é impassível à transcendência e consequentemente à eternidade, o ho-
mem absurdo só pode ater-se a fruir desta vida o máximo possível sem quais-
quer perspectivas de outra promessa futura.
Um dos personagens mais singulares da literatura a encarnar, segundo
Camus, o homem absurdo é o Don Juan de Tirso Molina. Por trás do conquis-
tador inveterado o filósofo enxerga um pleno mergulho no absurdo:

“Não é de modo algum por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher.
É ridículo apresentá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é até
porque eles as ama com igual arrebatamento e a cada vez com total inteireza,
que lhe é preciso repetir esse dom e esse aprofundamento [...] “Enfim,” exclama
uma delas, “eu lhe dei o amor”. Vamos nos espantar com Don Juan rindo disso:
“Enfim? Não,” diz ele, “apenas uma vez mais”. Por que seria preciso amar rara-
mente para amar muito?” (CAMUS, 2010, p. 46).

Retomando, assim, a ideia de presente, é também pontuada a compre-


ensão do amor na cosmovisão do homem absurdo, um sublime sentimento que
nem por isso causa restrições ao prazer. Explicado em maior perspicácia temos:

“O que Don Juan coloca em prática é uma ética da quantidade, ao contrário do


santo, que tende para a qualidade. Não acreditar no sentido profundo das coisas
é a índole do homem absurdo. [...] O homem absurdo é o que não se separa do
tempo. Don Juan não pensa em “colecionar” as mulheres. Ele esgota a quantidade
dela e, com isso, as possibilidades de sua vida. Colecionar é ser capaz de ficar
vivendo do passado. Mas ele rejeita a saudade, essa outra forma de esperança.
(CAMUS, 2010. p. 47)”

Eis a razão pela qual prefere o homem absurdo a quantidade à quali-


dade, o eterno presente. Arredio às significações profundas, privado da eterni-
dade, atem-se ao agora, que ainda possui, e repele as ilusões que a nostalgia
viesse a trazer.
Na obra de Dostoiévski, não é o absurdo que se apresenta como solução,
mas como problema. Especialmente desde “Os Demônios” (DOSTOIÉVSKI,
2008), onde o autor narra, motivado pelos fatos verídicos do assassinato de um
jovem por seus próprios companheiros ideológicos, as desventuras de um grupo
niilista. Um dos personagens principais do romance, Kirílov, vê-se às voltas com
uma série de impressões fragmentadas ante ao absurdo da existência: “Sente que
Deus é necessário e que é preciso demais que ele exista. Mas sabe que ele não
existe e que não pode existir. ‘como você não compreende’, exclama, ‘que aí
existe uma razão suficiente para se matar?” (CAMUS, 2010, P. 66).

41
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Contudo, embora compreenda e suscite o problema do absurdo, ao me-


nos nominalmente, Kirílov se mata para afirmar algo: “Vou me matar pra afirmar
a minha insubordinação, a minha nova e terrível liberdade.” (CAMUS, 2010. p. 66)
Num mundo onde Deus fora desterrado, a tal liberdade nada mais é
que pueril, e eis a razão onde se aparta Kirílov do homem absurdo. Antes de
Sartre e Camus, Dostoiévski já parecera entender o problema do absurdo num
mundo existencialista.
Nos Irmãos Karamázov essa lógica é amplificada, mas o caminho que
se segue é contrário, parte-se do absurdo para se retornar ao sacro. Da lógica de
Os Demônios e do “Tudo é permitido”, chega-se ao colóquio das páginas finais
entre Aliócha e algumas crianças: “Karamázov, é verdade o que diz a religião,
que ressuscitaremos dentre os mortos, que nos reveremos uns aos outros?’ E
Aliócha responde: ‘Claro, nós nos reveremos e nos contaremos de novo, alegre-
mente, tudo o que se passou.” (CAMUS, 2010, p. 68)
Ao contrário do que se pode pensar, o conflito entre os irmãos Kara-
mázov não fora algo ficcional, mas sim o espírito de toda uma época e mais par-
ticularmente de seu autor. Dostoiévski chega a escrever num de seus comentá-
rios sobre a obra: “A principal questão a ser perseguida em todas as partes deste
livro é aquela mesma com que sofri, consciente ou inconscientemente, em toda
a minha vida: a existência de Deus”. (CAMUS, 2010, p. 69)

O absurdo político de 1984

George Orwell escreveu 1984 (2009) num estado de profunda desilu-


são. Ao despertar de um sonho gnóstico onde descobriu serem as flores e o ócio
contemplativo de um novo mundo na verdade o porrete, a escravidão e o assas-
sinato, dispôs-se a testemunhar o estado da alma num último romance, que por
feliz coincidência seria o seu mais prolífico.
1984 é bem mais que um romance, é o testemunho de uma alma que
experimentou uma destituição subjetiva ao compreender que o mundo, sejam
quais forem as utopias, ressentimentos e revoltas nos homens, permanecerá, em
última instância, preservando sua essência. E se crianças morrem, a fome e a
peste ceifam vidas, a dor e o sofrimento tingem a rotina da existência num
mundo “burguês”, tudo isso continuará a ocorrer, senão na mesma medida, bem
acima dela, nos locais apropriados pelo “partido”.
A grande diferença e “vitória” de Orwell esteve em enxergar este absurdo e
dele poder extrair as razões que verdadeiramente interessavam. Se não pôde mais
fazê-lo na vida terrena em face do débil vigor que lhe restara, fê-lo mediante a arte,
encarnando a si próprio em Winston Smith, sua criação mais icônica.

42
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Winston Smith é um sujeito despersonalizado, entregue desde os pri-


meiros anos de vida ao totalitarismo de um partido inexpugnável, cujas lem-
branças da infância e juventude foram sufocadas pela frivolidade e o constante
terror de uma sociedade que expedia seus vereditos brutais pelas mais banais
atitudes, como expressões faciais ou mudanças de humor.
Neste mundo onde até os pensamentos 2 deveriam ser sopitados, Wins-
ton, até então alienado da realidade, encontra os primeiros questionamentos da
mente sã, contemplando, assim, o problema do absurdo. Opta por respondê-lo
no inefável, na vã esperança de uma promessa distante que mal sabe ao certo do
que se trata e como se apresenta. Talvez tenha sido esta sua ruína, algo deveras
claro quando num dos trechos do romance seu acusador acareia-o às promessas
hediondas que fez a fim de derrotar a tirania do partido, simbolicamente à en-
trega total de si à mesma essência que abominara.
O sucesso deste partido, entretanto, esteve mais em saber se valer da re-
alidade e do funcionamento do mundo, ao perceber que seus intentos primordiais
nunca poderiam ser realizados, pois o caos nessa terra continuaria a se perpetuar.
Então, segue-se a lógica, já que não poderemos impedir que se açoite o mundo,
rapinemos ao menos a vergasta daquele que chicoteia e sejamos nós a fazê-lo.
E Winston, no fim do romance, lúcido quanto à fragilidade de todos os
pseudoabsolutos, inclui-se nisto o seu elo com Júlia, ao qual provavelmente
concedia maior significado, torna-se, enfim, o homem absurdo, embora sem
qualquer perspectiva de fruir a essa vida pela condenação e as sequelas física e
espirituais causadas pelas torturas do partido.

A análise da obra

A prosa de Orwell é sutil e clara. Em 1984 temos um escritor simples,


indesejado de metáforas ou idílios exacerbados. Nessa prosa que preza pela cla-
reza, aberta ao homem comum, conquanto longe de ser medíocre, já encontra-
mos traços de vontade do escritor e de sua sensibilização ao homem despido de
privilégios. Winston Smith é um homem de meia-idade, habitante de um exí-
guo aposento em um prédio sem condições dignas à vida. Winston vive para o
trabalho técnico em que está imbuído, vive para o partido, é a figura do homem
fragmentado. Já nas primeiras páginas do romance, Orwell nos introduz a uma
série de pormenores que uma simples caminhada na volta do trabalho para casa
pode trazer:

2
Orwell cunhou o termo Pensamento-crime como a nomenclatura que dava o partido não só para pen-
samentos adversos, mas para qualquer forma de pensamento aleatório, independente e não relacionado
à cartilha política.

43
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

“Winston avançou para a escada. Não adiantava tentar o elevador. Mesmo


quando tudo ia bem, era raro que funcionasse, e agora a eletricidade permanecia
cortada enquanto houvesse luz natural. Era parte do esforço de economia du-
rante os preparativos para a semana do ódio. O apartamento ficava no sétimo
andar e Winston, com seus trinta e nove anos e sua úlcera varicosa acima do
tornozelo direito, subiu devagar, parando para descansar várias vezes durante o
trajeto” (Orwell, 2009, p. 11 e 12).

Desde esse trecho a distopia fica clara, não apenas por fatores huma-
nos, como a corrupção e descaso de um governo, que reverberam na vida coti-
diana de cada um, mas no próprio modus operandi do mundo, assolado por doen-
ças, pela corrupção natural do corpo em decorrência do tempo.
Passemos agora a outros retalhos do romance para perceber o trajeto
de Winston em seu mundo:

Depois de olhar rapidamente para os dois lados da rua, Winston se enfiara na


loja e comprara o caderno por dois dólares e meio. Na ocasião, não tinha a cons-
ciência de querê-lo para alguma coisa específica. Cheio de culpa, levara-o para
dentro da pasta. Mesmo sem nada escrito nele, aquele era um bem compromete-
dor. (ORWELL, 2009, p. 17).
Seus olhos voltaram a fitar. Constatou que durante o tempo em que ficara ali
sentado sentindo-se desamparado continuara a escrever, como numa ação auto-
mática. E já não era a letra retraída e desajeitada de antes. A pena deslizara vo-
luptuosamente pelo papel macio, grafando em letras de formas graúdas e nítidas:
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
Vezes sem fim, enchendo metade de uma página. (ORWELL, 2009, p. 29)

Talvez pareça significar pouco, mas ao adquirir o caderno e começar a


nele escrever, mergulhando pela primeira vez em profundidade nos próprios
pensamentos, Winston rompe com a sacralidade de seu mundo. A escolha pelo
ato “criminoso” em que rejeita o partido, coloca-o numa espécie de revolta con-
tra tudo que a ele suscite, especialmente ao seu líder simbólico: O Grande Ir-
mão: “vão me dar um tiro não me incomodo vão me dar um tiro na nuca não me
incomodo abaixo o grande irmão eles sempre atiram na nuca não me incomodo
abaixo o grande irmão.(ORWELL, 2009, p. 30).”
Como todo primórdio de revolta, a de Winston continua a ser imatura,
não mais que ruminações ante à barbárie realizada pelo partido em seu mundo
destroçado. Ela não organiza soluções à sua desdita, apenas o ódio contra
aquele que o subjuga.
Mas a mente livre aos poucos articula suas razões, e como bom roman-
cista que era, Orwell não negligenciou esse ponto. Num segundo momento ao
retornar ao caderno, escreve Winston:

44
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os


homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós – a um tempo em
que a verdade exista e o que o que for feito não possa ser desfeito (ORWELL,
2009, p. 39)

Winston, qual o homem revoltado, conclama direitos que já vislumbra


caros e irreversíveis a si e aos outros homens, pois a partir do estágio da revolta,
em que o escravo se insurge de sua condição ansiando a ser senhor, o valor surge
compreendido como direito.
À parte da revolta, o homem absurdo deseja também a liberdade. Ele não
é capaz de se conter em absoluto pelas normas de um mundo em que é estrangeiro:

Como um raio, passou pela cabeça de Winston a ideia de que talvez fosse fácil
alugar aquele quarto por alguns dólares por semana – se ousasse assumir o risco.
Era uma maluquice, um despropósito, uma ideia a ser descartada tão logo con-
cebida; porém o quarto despertara nele uma espécie de nostalgia, uma espécie
de lembrança ancestral. Winston tinha a impressão de saber exatamente como
seria a sensação de estar sentado num lugar como aquele, numa poltrona ao lado
da cadeira, com os pés apoiados no guarda-fogo e uma chaleira sobre a chapa
lateral... (Orwell, 2009, p.118)

Esta passagem em que Winston considera fugir dos locais cheios de


câmeras e teletelas, lembra o momento em que Júlia o entrega uma barra de
chocolate. Encanta-se pelos prazeres que começa a experimentar: o da privaci-
dade, do paladar, do pensamento e finalmente o da paixão. As paixões incendi-
adas em Winston não mais podem ser contidas; sôfrego, as quer, e as repressões
do partido, a lei moral ou qualquer tipo de repressão não as tomará dele 3.
Winston, entretanto, não é ainda um homem-absurdo. Pelo menos não
até esse ponto do romance. Seja talvez pela vida de restrições que teve, ao ex-
perimentar as primeiras alegrias transgressoras, recorre sempre à nostalgia.

Mas em algum momento de sua vida Winston já havia provado um chocolate


semelhante ao pedaço que ela lhe oferecera. Tão logo o odor lhe chegou às nari-
nas, emergira de sua memória algo que ele não conseguia definir, mas que era
forte e perturbador. (ORWELL, 2009, p. 148)

O homem-absurdo não possui nenhuma pátria nostálgica para qual re-


tornar. Essa entrega e a busca posterior por um passado saudoso precipitaram-
no a outra ilusão despropositada.

3
Em certo sentido é o homem absurdo um hedonista moderado. Ele não se detém do prazer por razões
morais ou conceitos eternos, apenas os olha com cautela, pois está a par do liame que os ultrapassa e,
ao destruí-los, compele a um caos bem maior. Dar-se por completo aos instintos é também uma forma
de escravidão. Mantém-se, portanto, no desvão do dissoluto e o sacro.

45
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

“A Confraria”, segundo o romance, era “um vasto exército nas sombras,


uma rede clandestina de conspiradores dedicados à derrubada do Estado” (Or-
well, 2009, p. 24). Seu líder, também simbólico, chamado Goldstein foi um su-
posto ex-companheiro do Grande Irmão durante a revolução, tendo posterior-
mente se corrompido e insurgido contra o partido.
Sem entrar no mérito da clara simbologia entre Stalin e Trotski, que
eram respectivamente o Grande Irmão e Goldstein, este último é oferecido aos
militantes do séquito como uma figura odiosa. Há, inclusive, um ritual chamado
“Os Dois Minutos de Ódio”, que consiste num vídeo apresentado diariamente a
vários integrantes do partido para que se transmitam os “crimes” e “crueldades”
de Goldstein. A produção utiliza de sequências sugestivas de sons e imagens
capazes de explodir a cabeça de um epiléptico, a intenção clara é de doutrinar
os espectadores com seu efeito onírico.
Todos estes atos ridículos e fatos ilógicos levam o próprio Winston a
questionar a existência de Goldstein:

O estranho, porém, era que embora Goldstein fosse odiado e desprezado por to-
dos, embora todos os dias, e mil vezes por dia, nos palanques, nas teletelas, nos
jornais, nos livros, suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, ex-
postas ao escárnio geral como lixo lamentável que eram, apesar disso tudo, o
ritmo de crescimento de sua influência parecia nunca arrefecer. Sempre havia
novos trouxas à espera de ser seduzidos por ele. Não se passava um dia em que
espiões e sabotadores agindo a seu serviço fossem desmascarados pela polícia
das ideias. (ORWELL, 2009, p. 24)

Apesar disso e da nebulosidade da tal “Confraria”, Winston aceita en-


tregar sua vida a essa causa desconhecida. Sua companheira de revolta, Júlia,
pensa de um modo distinto. A respeito dela:

nunca ouvira falar da confraria e se recusava a acreditar em sua existência. Todo


tipo de revolta organizada contra o partido lhe parecia uma bobagem. A coisa
mais inteligente a fazer era infringir as regras e dar um jeito de continuar vivo
(ORWELL, 2009, p. 64).

Júlia encarna no pleno sentido o absurdo. Mais que Winston, ela co-
nhece a impotência da noção de revolta da Confraria. Não que tenha ela se re-
signado, muito pelo contrário, ela mesma é uma revoltada. O que se nega a crer
é no conjunto de ideais e princípios que devem vir embutidos nestas tais “re-
voltas coletivas”, que são o que um dia fora o partido a refestelar-se no conti-
nente inteiro em que habitam. Prefere ela os próprios meios, a revolta como
instinto a uma revolução abstrata. Mas por influência de Winston deixa-se per-
der no campo das ilusões ao aceitar confiar em O´Brien e na confraria.

46
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O fim mostra-se desolador. Winston e Júlia são capturados e tortura-


dos. Ao que tudo indica, a confraria era apenas uma cortina de fumaça do par-
tido para manter um constante estado de exceção; e O´Brien, o fio de esperança
ao qual Winston se ligava até nos sonhos, é, na verdade, um espião do partido.
Depois de ser torturado, de ter a essência do partido e das demais di-
taduras presentes nos dois outros continentes do mundo revelada, de interagir
com Júlia como uma desconhecida, sem que houvesse alguma coerção aparente
no momento do encontro, Winston descobre, em última instância, que noções
“absolutas” como filantropia e lealdade, até mesmo o Eros, não são tão mais ab-
solutas que o que se vive todos os dias repetidamente; que se pôde o partido
manter-se no poder foi em conta desta descoberta.
Nas últimas páginas do romance, Winston encontra-se combalido es-
piritualmente, passa seus dias numa pequena lanchonete; não tem mais cader-
nos, amores, camaradas, tampouco ilusões. Aguarda apenas a execução da sen-
tença muda, não obstante certa, que sabe mais cedo ou mais tarde ser execu-
tada. Nesses últimos instantes, compreendera Winston o absurdo, apenas, po-
rém, não lhe resta mais, tal qual o Orwell que o escreve, qualquer vigor físico e
espiritual para vivê-lo.

O absurdo existencial do Misto-Quente

Charles Bukowski nasceu no início do século XX, na Alemanha. Sua fa-


mília emigrou para os Estados Unidos fugindo da desdita alemã no pós-guerra,
quando Bukowski ainda era uma criança.
A primeira característica a se sobressair em sua prosa é a espontanei-
dade. É possível crer que tenha aprendido apenas o suficiente para se comuni-
car pela escrita a fim de contar suas histórias. A falta de compromisso com a
forma, as frases curtas e objetivas e o excesso de diálogos em detrimento das
descrições fazem de sua prosa acessível, sem entanto ser medíocre. Parece-nos,
após ler umas poucas páginas, que o escritor nos fala: “veja só, é isso que tenho,
pegue ou largue!”.
Mas o que torna a prosa desse escritor atraente, malgrado a saturação
hodierna da linguagem vulgar e da “literatura de sarjeta”, é sua experiência real
no meio contido nas páginas. Bukowski realmente viveu aquilo que escrevia, ao
contrário de uma geração de garotos abastados que resolveram reverenciar a
“malandragem” e as periferias mediante a literatura.
Bukowski sempre deixou claro que a maioria de suas obras eram auto-
biográficas, fato que inclusive lhe rendeu várias desavenças pessoais. Portanto,

47
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

lê-las é como estar diante de uma biografia, onde os paralelos psicológicos po-
dem ser realizados quase que diretamente.
Como ocorre com qualquer autor de certa projeção literária, a obra de
Bukowski ensejou um bocado de interpretações. Num artigo de Mariscal
(2017), figura-se a interpretação de dois autores, Harrison (1994) e Sounes
(2008), que à margem de suas ideologias quiseram interpretá-lo como um re-
volucionário comunista, através de observações insensatas relacionadas a al-
guns dos vários aspectos que a metralhadora datilográfica de Bukowski atacou,
especificamente a frivolidade do trabalho e do consumo. Mas como bem trans-
posto numa rica introdução de David Calonne (2008), por mais que ostentasse
ideias caras à esquerda e à direita, Bukowski era apolítico e anarquista. Se aten-
tarmos a leitura convencional que se faz de sua obra, encontraremos um car-
rancudo, pessimista, à beira do niilismo: “Por adotar temas desagradáveis e ser
praticante do anticlímax, ele por vezes pode ser classificado como niilista ”
(MARISCAL, 2017). Mas ao olhar profundamente a fortuna literária de Bu-
kowski, especialmente seu trabalho mais significativo: Misto-quente (2011),
onde sua infância e adolescência são narradas, encontraremos uma cosmologia
muito distante da negação absoluta. Trechos como:

Eu não tinha interesses. Eu não tinha interesse por nada. Não fazia a mínima
ideia de como iria escapar. Os outros, ao menos, tinham algum gosto pela
vida. Pareciam entender algo que me era inacessível. Talvez eu fosse retar-
dado. Era possível. Frequentemente me sentia inferior. Queria apenas encon-
trar um jeito de me afastar de todo mundo. Mas não havia lugar para ir. (BU-
KOWSKI, 2011, p. 118).

Contrastam com passagens como:

A Cafeteria Clifton era bacana. Se você não tivesse dinheiro, deixavam você pa-
gar com o que tivesse [...] Lá dentro era quieto, agradável e limpo. Havia uma
enorme fonte d’água e você podia sentar junto a ela e imaginar que tudo estava
bem. Lugares como esse davam a você um pouco de esperança quando não havia
nenhuma ao seu redor. (BUKOWSKI, 2011, p.149).

Há ainda diversos trechos em que Henry Chinaski (alter ego de Bu-


kowski no romance) extrai revolta e age contra o sofrimento dos fracos, afasta-
se da negação absoluta (suicídio) e desfruta dos prazeres da vida. Em última
instância, a misantropia de Chinaski não tem a ver com um sentimento de des-
truição, mas sim com um ressentimento para com os outros, como se é possível
observar em vários momentos durante o romance.
Portanto, diante de todas essas constatações, da indiferença de Bu-
kowski pelas diversas formas de simbologia, seja esportiva, militar, religiosa,

48
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

sem, contudo, a elas negar, o seu gosto pela vida, por sua existência, (como pre-
tende-se demonstrar na seção seguinte da pesquisa) e sua revolta perante o es-
cândalo da desmedida existencial, compreende-se ser possível situá-lo na cate-
goria do homem absurdo, longe de onde a crítica convencionou fazer.

A análise da obra

Em Bukowski a rota do absurdo já está manifesta sorrateiramente


desde as primeiras percepções da vida: “Minha colher era curva, assim, se eu
quisesse comer, precisava pegá-la com a mão direita. Se eu pegasse com a es-
querda, o alimento se afastava da minha boca. Eu queria pegar a colher com
minha mão esquerda” (BUKOWSKI, 2011, p. 9)
O trecho da primeira página da obra Misto-Quente, quando Bukowski
narra suas primeiras lembranças de vida, denota e preludia bem as contraposi-
ções arbitrárias que a vida reservou à sua existência.
Adiante, nesse romance autobiográfico, acompanharemos a infância
pobre e xucra do autor, em contato com pais violentos, broncos e inseguros, a
repulsa que lhe tinham as demais crianças da escola e a acne severa que defor-
mou sua aparência.
Nessa selva de reveses, não demora a descobrir a revolta ao se afirmar.
O primeiro momento claro se dá numa das surras arbitrárias sofridas pelo pai:

- Baixe suas calças e sua cueca – ele disse.


Não fiz o que mandava. Ele se postou na minha frente, desafivelou meu cinto,
desabotoou minha calça e a arriou. Baixou minha cueca. A correia desceu. Era o
mesmo som explosivo de sempre, a mesma dor.
- Você vai matar sua mãe – ele gritou.
Acertou-me outra lambada. Mas as lagrimas não brotavam. Meus olhos, estra-
nhamente, estavam secos. Pensei em matá-lo [...] A dor continuava lá, mas o
medo que até então eu sentira havia desaparecido [...] Eu podia ver tudo clara-
mente. Meu pai pareceu ter notado a diferença em mim e começou a golpear com
mais força, vez após vez, e quanto mais ele batia menos eu sentia. Era quase como
se ele estivesse na posição de vítima. Alguma coisa acontecera, alguma coisa mu-
dara. Meu pai parou, ofegante, e ouvi quando ele depositou a correia no lugar.
Foi saindo porta afora. Voltei-me:
- Ei – eu disse.
Meu pai me virou e ficou me olhando.
- Bata mais um pouco – eu disse –, se isso faz com que você se sinta melhor (BU-
KOWSKI, 2011, p. 83).

No ensaio O Homem Revoltado, Camus (2017) interliga a sensação da


revolta perante o absurdo com o coletivo, numa espécie de altruísmo:

49
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Observa-se, em primeiro lugar, que o movimento de revolta não é, em sua essên-


cia, um movimento egoísta. [...] Sem dúvida ele exige para si o respeito, mas ape-
nas na medida em que se identifica com uma comunidade natural. [...] a revolta
não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nas-
cer do espetáculo da opressão com outro indivíduo (CAMUS, 2017, p.26 e 27).

O ato da revolta, apesar da possibilidade, não é um sentimento indivi-


dualista, tampouco recluso. Extirpado do individual, o movimento revoltoso
cobre a totalidade dos outros, conclamando o cessar da ignomínia também à
alteridade. Em Bukowski há trechos bem exemplificados:

Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos


do muro. Não podia subir pelos tijolos nem fugir em qualquer outra direção.
Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto,
pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e
se aproximava mais e mais. Tive a impressão de que aquele gato havia sido co-
locado ali pelos garotos e de que somente depois o buldogue fora levado até ali.
Sentia isso intensamente pelo modo como Chuck e Eddie e Gene acompanha-
vam a cena: o aspecto deles os incriminava.
– Caras, vocês armaram essa – eu disse.
– Não – rebateu Chuck –, a culpa é do gato. Ele veio até aqui. Deixe que ele se
vire agora pra escapar.
– Odeio vocês, seus desgraçados – eu disse.
– Barney vai matar o gato – disse Gene.
– Barney vai fazer picadinho do bichano – disse Eddie. – Ele está com medo das
unhas do gato, mas quando avançar tudo estará encerrado.
Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de
baba.
Ele era gordo e meio abobalhado e tinha olhos castanhos inexpressivos. Rosnava
constantemente e ia avançando devagar, os pêlos do pescoço e das costas eriça-
dos. Eu sentia vontade de lhe dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi
que ele me arrancaria a perna fora. O cão estava completamente tomado por um
espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho
soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura be-
líssima, tão limpa.
O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era
uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos?
Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre
por perto. Onde tinham se enfiado agora?
Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas eu não tinha for-
ças.
Tinha medo de que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava
coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Co-
mecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda
que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre (BU-
KOWSKI, 2011, p. 61 e 62).

50
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A vertigem de Bukowski ante à injustiça ao outro ser personifica em


caro esmero o sentimento sedicioso para com o absurdo, a afirmação da condi-
ção e da dignidade que já se vê em si e no outro contra a desordem e a barbárie
cegas que permeiam o mundo.
Em um outro viés do livro, é possível observar, também, em Chinaski
um profundo desejo de exclusão, de enclausurar-se num espaço sem obrigações
e sem ninguém, sem o risco de confrontar-se ao outro que poderia servir de pa-
râmetro para mensurar seu fracasso: “eu sequer sabia o que desejava. Sim, eu
sabia. Queria algum lugar para me esconder, um lugar em que ninguém tivesse
que fazer nada” (BUKOWSKI, 2011, p. 131).

“Jamais haveria um jeito de eu viver confortavelmente entre as pessoas. Talvez


eu me tornasse um monge. Fingiria acreditar em Deus e viveria num cubículo,
tocando órgão e eternamente embriagado de vinho. Ninguém foderia comigo. Eu
poderia entrar numa cela e ficar meditando durante meses sem ter que ver a cara
de ninguém, apenas o vinho chegando, sempre” (BUKOWSKI, 2011, p.112).

Mas o homem absurdo não se aparta do absurdo ou o nega; e trechos


assim, capazes de inferir um niilismo, não são mais que ressentimento humano.
Nas mesmas seções onde o encontramos, há outras observações do escritor que
nos certificam de tal:

“Sentia-me normal ali parado, ainda de camisa, mas quando eu me despisse fica-
ria exposto. Odiava os outros banhistas e seus corpos imaculados. Odiava todas
aquelas malditas pessoas que estavam tomando sol ou que estavam na água ou
comendo ou dormindo ou conversando ou brincando com bolas de praia” (BU-
KOWSKI, 2011, p. 112)

E:

“Então vislumbrei o reflexo do meu rosto admirá-los – marcado por espinhas e


cicatrizes, minha camisa surrada. Eu era como uma fera da selva atraída pela luz,
olhando para dentro [...] Os casais trocavam palavras com facilidade. Era algo
natural e civilizado. Onde eles tinham aprendido a conversar e dançar? Eu não
podia conversar ou dançar. Todo mundo sabia alguma coisa que eu desconhecia.
As garotas eram tão lindas; os rapazes tão elegantes [...]
[...] De repente, contudo, aquilo se tornou demais para mim. Eu os odiei. Odiei
sua beleza, sua juventude sem problemas [...] odiei-os por terem algo que eu
ainda não tinha, e disse para mim mesmo, repeti para mim mesmo, algum dia serei
tão feliz quanto vocês, esperem para ver” (BUKOWSKI, 2011, p.132)

As passagens deixam claro o ressentimento de Bukowski por sua infe-


rioridade em relação aos outros, são sensações momentâneas o que tem, não um
caminho existencial. Se buscarmos o conceito filosófico do ressentimento, per-
ceberemos o perfeito encaixe com o discurso do autor. Albert Camus (2017),

51
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

comentando Scheler e a diferença entre revolta e ressentimento, coloca o último


como uma noção negativa, “impotência prolongada”. A revolta, afirmando
aquilo que se é, contrapõe-se então ao ressentimento, que é sempre “ressenti-
mento contra si mesmo”, buscando ser algo que não se é.
Apesar de tudo, dos longos queixumes ressentidos que delongam-se atra-
vés do misto-quente, eles são no muito frutos de uma alma jovem que acaba de
defrontar-se ao problema do absurdo. Quando num dos trechos do romance Henry
Chinaski passa a questionar Deus e enumerar os reveses de sua vida – os pais e as
espinhas –, segundo os quais não encontra justificativas para que recaiam sobre
ele, a única resposta que obtém é o silêncio. Ou seja, sua espera é baldia, não há
qualquer razão para acreditar que a transcendência interfira o curso deste mundo
em prol de seus problemas pessoais ou na aleatoriedade que ela mesma criou. De
certa forma, ele tenta desafiar Deus, mas percebe também a esterilidade do in-
tento, resignando-se a guardar sua revolta metafísica e, não, viver para ela.
Esse talvez seja um dos momentos mais significativos, pois que repre-
senta com perspicácia o exato momento em que o homem percebe que, tenha ou
não alguma ajuda no percurso, está isolado nesse enorme deserto; e que se há Deus,
ele faz que a dinâmica deste mundo esteja praticamente desligada do absoluto.
A partir daí, torna-se Bukowski o homem absurdo. Por mais que se
multipliquem seus desmazelos, que não tenha paz sequer no trabalho, que seja
expulso de casa pelos pais e tenha que deambular por pensões vulgares, sempre
conserva o apego à vida, rejeitando a negação absoluta.
A mensagem de Bukowski, que consiste na mesma de Camus, poderia
ser resumida da seguinte maneira: se um mar de sofrimento é imanente à essên-
cia da vida, escapemo-lo tanto quanto se possa, quiçá, assim, o desfrute, até
então represado por estas prisões de banalidade, possa proporcionar algum alí-
vio à esta vida combalida.

52
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

BIBLIOGRAFIA

BUKOWSKI, Charles. Misto-quente. Porto Alegre: L&PM, 2011.

CALONNE, David Stephen. Charles Bukowski: portions from a wine-stained


notebook: uncollected stories and essays, 1944-1990. San Francisco: City Lights,
2008.

CAMUS, Albert. O homem revoltado. 2° ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 6° ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. São Paulo: Editora 34, 2009.

JHONSON, Paul. Os Intelectuais. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1990.

MARISCAL, André Affonso. Exclusão na representação da personagem Henry Ju-


nior em Ham on Rye de Charles Bukowski. Brasília: UNB, 2017.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

53
A ESCRITA DRAMATÚRGICA NO TEATRO CONTEMPORÂNEO:
DO ESCRITÓRIO À SALA DE ENSAIO

Carolina Montebelo Barcelos 1

Shakespeare é apenas coautor de si mesmo; o outro


coautor é cada sujeito da plateia. [...] Mas o público
pensa, sente, influi, aplaude e vaia.

Nelson Rodrigues. O reacionário.

Introdução

Nelson Rodrigues, um dos dramaturgos brasileiros mais encenados e


aclamados, era aquele tipo de escritor cujas ideias advinham individualmente e
sua escrita era anterior aos ensaios e, em boa maior parte, independia de quem
dirigiria e atuaria nas suas peças. Mesmo que tais artistas fossem de consenso
dele, a peça era escrita antes do projeto de encenação. No entanto, conforme
epígrafe, Nelson reconhecia que a peça, uma vez encenada, não era autônoma,
dependia em muito da recepção da plateia, de como cada indivíduo a entende-
ria. E, claro, do entendimento, da leitura feita pelos artistas responsáveis pelas
montagens, conforme o caso da icônica montagem do grupo teatral Os comedi-
antes de Vestido de noiva, que levou alguns críticos teatrais a considerá-la o
marco da inauguração da modernidade teatral brasileira.
Os teatros de grupo no Brasil das décadas de 60 e 70, tais como Asdrú-
bal Trouxe o Trombone, Pod Minoga e Ornitorrinco, propiciaram transforma-
ções em relação à escrita e ao uso do texto teatral. Enquanto nas décadas ante-
riores o dramaturgo escrevia suas peças solitária e individualmente, o texto
passou a ser concebido na sala de ensaio, conforme prática do teatro de criação
coletiva. Por outro lado, embora o Arena encenasse, desde sua criação, peças de
autores brasileiros e internacionais, com o início da série “Arena conta” passou
a escrever seus próprios textos a partir de personagens e episódios da história

1
Pesquisadora e professora de teatro e literatura. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporanei-
dade, pela PUC-Rio. Autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos nos livros Rio Circular: a ci-
dade em pauta (2016) e Estudos de encenação e atuação (v. 3, 2019).
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

do país, como em Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes. Assim, ainda naque-
las décadas também surgiam os dramaturgos de seus próprios grupos, como era
o caso de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri e o Teatro de Arena.
Já na década de 80, com o teatro do encenador, este concentrava a con-
cepção da peça sob seus auspícios, transformando totalmente o texto teatral
em algo novo e alinhado a sua estética, como fizera, por exemplo, Gerald Tho-
mas. Contudo, a figura do dramaturgo de escritório2 não desapareceu, haja vista
escritores como Dias Gomes, Plínio Marcos, Vianinha, Naum Alves de Souza;
trata-se, desse modo, do advento de novas formas de escrita teatral que convi-
vem com a do escritor que produz em isolamento.
A partir de fins dos anos 90, surgem as companhias teatrais que pautam
seus trabalhos no processo colaborativo. Nesse caso, os procedimentos de escrita
dramatúrgica são variados, vão desde o diretor da companhia encenando um texto
preexistente – que pode ser uma peça, uma adaptação de romance ou até mesmo
colagem de textos de gêneros diferentes - mas retrabalhado coletivamente, a dra-
maturgos que escrevem para suas companhias, alguns que escrevem também para
outros grupos, até diretores e atores que escrevem suas próprias peças.
Hoje, o texto pode ser concebido na sala de ensaio como criação cole-
tiva, através de improvisações e discussões do grupo, mas muitas vezes com a
escrita unificadora do dramaturgo, a convite de um artista, além da permanên-
cia do escritor que escreve de forma isolada e individual. Considerando essa
natureza e procedimentos diversos da recente escrita dramatúrgica, este estudo
tem por objetivo analisar as diferentes formas de escrita teatral contemporânea:
quem escreve?, para quem escreve?, sobre o quê escreve?, de que forma escreve?
Desse modo, embora uma variedade de dramaturgos contemporâneos seja men-
cionada no texto para fins de contextualização, será examinada de forma mais
aprofundada a escrita dramatúrgica de Pedro Kosovski, Jô Bilac e Renata Miz-
rahi, todos publicados por editoras.
Dada a variedade e número de dramaturgos contemporâneos brasilei-
ros, optei, para fins de recorte, analisar aqueles mais familiares a mim por uma
questão geográfica, por ter participado de conversas públicas por eles conferi-
das e por ter assistido às encenações de seus textos. Portanto, após tecer algu-
mas considerações sobre o estatuto do texto teatral de outras épocas, assim
como na contemporaneidade, serão examinados alguns dramaturgos cariocas
dos dias de hoje.

2
Refiro-me aqui ao dramaturgo que escreve de forma isolada e individualmente, sem que sua escrita
seja realizada de forma colaborativa com atores ou companhias teatrais.

56
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Breve apontamento sobre o estado do texto teatral na contemporaneidade

O teórico do teatro Jean-Pierre Ryngaert abre seu célebre livro Ler o te-
atro contemporâneo afirmando que “O teatro contemporâneo ainda é identificado
à vanguarda dos anos 50, de tanto que o movimento foi radical e nosso gosto por
rótulos amplamente satisfeito por essa denominação” (RYNGAERT, 1998, p.
XI). Dessa forma, as ideias e práticas artísticas de Meyerhold, Bertolt Brecht,
Tadeusz Kantor, Antonin Artaud, Heiner Müller e do Teatro do Absurdo pro-
punham uma nova forma de experiência estética, acenando com mudanças rela-
tivas ao chamado “teatro clássico burguês” e que levaram a um novo olhar sobre
o estado do texto e do autor e sobre a figura do encenador e do teatro de grupo,
categorias estas que foram relidas no fazer teatral contemporâneo.
Ryngaert assinala que na cena contemporânea “tudo é representável”
(RYNGAERT, 1998, p. 31), uma vez que todos os textos seriam dotados de tea-
tralidade sendo, portanto, passíveis de interpretação cênica. No entanto, essa
cena contemporânea não está preocupada em explicar o texto ou servir como
ilustração dele, mas mostrar a leitura e a interpretação de uma encenação a par-
tir desse texto que não é somente o texto escrito, mas trata-se, muitas vezes, de
uma variedade de textos que formam um mosaico ou um caleidoscópio.
Ryngaert acredita que o teatro ainda narra, embora ressalte que “os
pontos de vista sobre a narrativa se multiplicam ou se dissolvem em enredos
ambíguos” (RYNGAERT, 1998, p. 85). Para ilustrar o papel da narrativa con-
temporânea, o teórico recorre a Esperando Godot, de Samuel Beckett, onde dois
mendigos se encontram perdidos em uma paisagem indeterminada, esperando
um Godot indefinível e que nunca aparece. Dessa forma, o teórico nos mostra
que os autores contemporâneos “narram por quadros sucessivos, desconecta-
dos um do outro e às vezes dotados de títulos”3 (RYNGAERT, 1998, p. 85).
Para Ryngaert, a fragmentação no texto teatral contemporâneo não
tem cunho modernista, mas é a expressão de um questionamento ou uma an-
gústia sobre a verdade dos fatos recentes. O presente é constantemente convo-
cado, revivido, questionado e julgado:

3
Embora a escrita por quadros dotados de títulos seja uma influência brechtiana, é importante consi-
derar que a intenção do dramaturgo alemão era decompor para recompor, ou seja, provocar o efeito de
distanciamento para fazer com que o público não tivesse a impressão, ou a ilusão, de que o que estava
vendo era o real e sim uma representação do real, passível de reflexão. Essa categoria do teatro épico
brechtiano com fins de reflexão política não necessariamente diz mais respeito à toda escrita cênica
descontínua por fragmentos da contemporaneidade.

57
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A grande liberdade dramatúrgica que se instaurou nas relações com o tempo e o


espaço é marcada por uma obsessão pelo presente, qualquer que seja a forma que
assumam esses diferentes ‘presentes’, e por uma desconstrução que embaralha
as pistas da narrativa tradicional fundada na unidade e na continuidade. O ‘aqui
e agora’ do teatro se torna o cadinho em que o dramaturgo conjuga em todos os
tempos os fragmentos de uma realidade complexa, em que os personagens, inva-
didos pela ubiquidade, viajam no espaço, por intermédio do sonho ou então,
mais ainda, pelo trabalho da memória (RYNGAERT, 1998, p. 117).

Dentre outros vários teóricos do teatro contemporâneo, Hans-Thies


Lehmann (2007), em seu mais do que já discutido livro Teatro pós-dramático,
parte da premissa de que “com o fim da ‘galáxia de Gutemberg’, o texto escrito
e o livro estão novamente em questão” (LEHMANN, 2007, p.17) e, assim como
o teatro, vem perdendo status devido à circulação de imagens em movimento.
Consequentemente, o teatro estaria se aproximando das forças da velocidade e
superficialidade desse fenômeno imagético e se emancipando da literariedade.
Embora Lehmann considere que a grande maioria da plateia atual
ainda esteja em busca de um teatro cujo contexto faça sentido, um teatro do-
tado de fábula compreensível, ele vê nos dias atuais espaço para encenações que
não privilegiem esses elementos, embora sejam, muitas vezes, pouco compre-
endidas, de modo que predomine a ausência de categorias e palavras para des-
creverem ou conceituarem esse novo tipo de teatro. Lehmann acredita que tex-
tos importantes continuam sendo escritos, mas assinala que a incorporação de
novos signos, desde os anos 70, acena para um novo texto teatral que não é mais
dramático, elemento característico, segundo o teórico alemão, de todo o teatro
feito até então. Estaríamos, portanto, vivendo o teatro “pós-dramático”.
Lehmann sustenta sua tese através de um conceito expandido de
“drama”, ao assinalar que “dramático” seria todo o teatro baseado em um texto
com fábula onde totalidade, representação e ilusão de que o palco representa o
mundo formariam a base do modelo dramático. Já no “pós-dramático”, tais ele-
mentos não regulariam mais o teatro, podendo ser apenas uma de suas variantes.
Para o teórico alemão, o teatro “pós-dramático” foi possível devido à
onipresença das mídias que, desde os anos 70, teriam provocado um modo novo
e multiforme de discurso teatral. Esse novo teatro estaria se afastando da sín-
tese e projeção de sentido, conseguidos antes graças à linearidade narrativa do
texto dramático, e se caracterizaria mais como um work in progress com traços
estilísticos tais como fragmentação da narrativa, heterogeneidade de estilo e
elementos hiperrealistas. Segundo o estudioso, embora o texto não seja aban-
donado por completo, trata-se de uma dramaturgia que não se subordina ao
texto e que pode se desdobrar por lógica própria.
Para Lehmann, os principais artistas do pós-dramático que teriam se
afastado do teatro dramático, acenando com outras possibilidades e experiências

58
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

cênicas, seriam o dramaturgo Heiner Müller e o diretor e encenador Bob Wilson.


Heiner Müller é o exemplo primeiro de pós-dramático utilizado por Lehman, pois
teria sido o dramaturgo responsável pelo processo de desdramatização, ao utilizar
monólogos, estabelecer pouca ou nenhuma relação dialógica, sem conflito, dei-
xando de lado a noção tradicional de personagem e de ação.
Se Hans-Thies Lehmann trouxe à baila o afastamento do teatro contem-
porâneo da primazia do texto teatral – mais uma vez lembrando que o texto teatral
não deixa de existir, mas não é, em grande parte, o elemento mais que fundamental
de uma encenação, dividindo importância com outros elementos teatrais, tais
como música, tecnologia digital, voz, corpo, movimento e cenário -, Jean-Jacques
Roubine ressalta que

O problema do lugar e da função do texto dentro da realização cênica é menos


recente do que se costuma imaginar e, além e acima das considerações estéticas,
ele representa um cacife ideológico. No fundo, trata-se de saber em que mãos
cairá o poder artístico, ou seja, a quem caberá tomar as opções fundamentais [...].
Não é por acaso que a maior valorização beneficia aquelas formas teatrais que
repousam sobre um domínio exclusivo do texto (tragédia, alta comédia, etc.); e
que, pelo contrário, a desvalorização atinge todas as formas que contribuem ao
espetáculo uma parte mais ou menos importante (comédia-balé, farsa, ópera
com máquinas etc.) (ROUBINE, 1998, p. 45).

Desse modo, ao falar do teatro de outrora, o teórico francês nos mostra


que “as práticas que não pudessem ou não quisessem inclinar-se diante do pre-
domínio do texto ficassem ao mesmo tempo marginalizadas e admiradas”
(ROUBINE, 1998, p. 46), como fora o caso da commedia dell’arte. Assim, Roubine
assinala que até o “início do século XX a arte da encenação exigia o apoio de um
bom texto” (ROUBINE, 1998, p. 46), o que chamamos de “textocentrismo”. E
continua: “Quanto à arte de representar, ela utilizava, aperfeiçoava e inventava
técnicas, cada uma das quais era um meio de visualizar, materializar, encarnar
uma ação, situações, personagens, tudo quanto fora previamente imaginado por
um escritor” (ROUBINE, 1998, p. 46).
Vemos na cena nacional e internacional, atualmente, tanto a primazia
do texto de outrora explicada por Roubine quanto o afastamento ao textocen-
trismo conforme exposto por Lehmann, conquanto ser denominado teatro con-
temporâneo este último. Se, em linhas gerais, como já assinalado anteriormente,
na década de 70 muitos dos textos teatrais eram construídos pelos coletivos,
agora parte-se, em muitos casos, do texto escrito. No entanto, esses textos po-
dem até não sofrerem um processo intenso de desconstrução, como muitas
peças do teatro do encenador da década de 80, mas são realizadas colagens,
sofrem intervençõ es. Conforme assinalava Jean Pierre Ryngaert (1998, p. 31),

59
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

para o teatro contemporâneo tudo é representável, todos os textos têm teatra-


lidade, e não se trata somente do texto escrito, mas de uma variedade de textos
que formam um mosaico ou um caleidoscópio, desenhado através do olhar uni-
ficador do diretor da peça e da contribuição dos diversos atores e equipe téc-
nica.Com o retorno da figura do autor, embora agora também escrevendo tex-
tos que ressoam em uma multiplicidade de vozes, é possível identificar na cena
contemporânea, portanto, um retorno ao texto teatral.
Donia Mounsef e Josette Féral, contudo, nos lembram que devido ao
interesse transversal das disciplinas pelas questões da performance e perfor-
matividade, “o status do texto e da escrita teatral permanece instável”4
(MOUNSEF; FÉRAL, 2007, p. 1). As teóricas acrescentam ainda que

Ao longo do século XX, alegou-se que a escrita teatral não pertence à literatura,
mas ao palco, através do seu potencial para ‘mise en scène’, e que suas ferramen-
tas críticas não devem proceder dos estudos literários. Essa visão palco-centrada
ocluiu a análise textual e enfraqueceu a autonomia do texto teatral 5 (MOUN-
SEF; FÉRAL, 2007, p. 1).

Assim, as teóricas do teatro procuraram reunir na revista acadêmica


Yale French Studies artigos que contemplassem a diversidade da escrita teatral
contemporânea francesa, mas sem a intenção de tentar reaver a autonomia do
texto teatral. Elas assinalam que “Perdido o prestígio desde meados do século
XX, o texto teatral, vilipendiado pelas vanguardas, perdeu sua função como um
valioso regulador da representação para se tornar um dos muitos discursos que
constroem o significado do palco”6 (MOUNSEF; FÉRAL, 2007, p. 1). Isso, a seu
ver, teria acontecido por três motivos: “a suspeita da capacidade do teatro de
expressar o real, a impossibilidade de representar o sujeito e a descrença fun-
damental na habilidade da língua de expressar significado”7 (MOUNSEF; FÉ-
RAL, 2007, p. 1).
Tangenciando a questão da fragmentação na escrita dramatúrgica con-
temporânea já apontada aqui por Hans-Thies Lehmann e Jean-Pierre Ryngaert,
Mounsef e Féral asseveram que o que contribui para essa fragmentação “é o fato

4
No original: “the status of the theatrical text and of playwriting remains unstable”. Tradução nossa.
5
No original: “Throughout the twentieth century it was agued that theatrical writing does not belong
to literature but to the stage through its potential to “mise en scène”, and that its critical tools should
not proceed from literary studies. This stage-centric view has occluded textual analysis and under-
mined the autonomy of the theatrical text”. Tradução nossa.
6
No original: “Fallen from grace since the mid-twentieth century, the theatrical text, maligned by the
various avant-gardes, lost its function as the valiant regulator of representation, to become one of the
many discourses that construct stage meaning”. Tradução nossa.
7
No original: “the suspicion of theater’s capacity to express the real, the impossibility of representing
the subject, and the fundamental distrust in language’s ability to convey meaning”. Tradução nossa.

60
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de que o teatro pega de empréstimo de outros gêneros (romance, filme, televi-


são e por aí vai)” (MOUNSEF; FÉRAL, 2007, p. 2). Destarte, os elementos de
fragmentação e intertextualidade podem ser percebidos na maioria dos textos
dramatúrgicos contemporâneos.

A escrita dramatúrgica contemporânea carioca

A maior parte dos dramaturgos brasileiros contemporâneos é oriunda


de escolas de teatro, tais como CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), o Tablado
e Escola de Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro, SP Escola de Teatro, em
São Paulo, e/ou de departamentos de artes cênicas, como UNIRIO, USP, UNI-
CAMP e UFMG. Além disso, no caso específico do Rio de Janeiro, impulsiona-
dos pelo projeto “Nova Dramaturgia Carioca” levado a cabo no início dos anos
2000 no Teatro Carlos Gomes, novos dramaturgos puderam manter uma rede
de estudos, pesquisa e debate. Trata-se de autores teatrais que vêm assinando,
ao longo dos últimos vinte anos, um número substancial de peças, as quais tam-
bém são marcadas pela diversidade de gêneros e estilos. Dentre esses drama-
turgos, podemos citar Jô Bilac, Daniela Pereira de Carvalho, Julia Spadaccini,
Renata Mizrahi, Marcia Zanelatto, Diego Molina, Walter Daguerre, Diogo Li-
berano e Pedro Brício.
Os inúmeros dramaturgos contemporâneos podem ser caracterizados
por uma heterogeneidade de gêneros, estilos e práticas. Em relação a esta úl-
tima, há dramaturgos que concentram seu trabalho na escrita, caso, por exem-
plo, das cariocas Daniela Pereira de Carvalho e Renata Mizrahi; aqueles, como
o recifense radicado em São Paulo, Newton Moreno, que escreve e dirige os es-
petáculos de sua companhia, neste caso, Os fofos encenam; os que atuam como
dramaturgos e diretores de suas companhias, mas que também escrevem para
outras, como o paulista Alexandre Da Farra e o carioca Jô Bilac; aqueles que não
se atêm a uma companhia, trabalhando com diversas delas, como ocorre com a
carioca radicada em São Paulo, Dione Carlos. Há, também, dramaturgos que se
embrenham por diversas áreas, como a mineira Grace Passô, que transita entre
atuação, direção e dança.
Dessa multiplicidade de dramaturgos, há aqueles que escrevem de
forma isolada e individual antes de ser pensado um projeto para determinado
artista ou companhia, mas a maioria trabalha em ou para grupos teatrais. Como
observei em artigo publicado recentemente,

a proposta colaborativa que se tornou marcante nas companhias teatrais con-


temporâneas é, de certo modo, tributária do teatro de criação coletiva caracte-

61
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

rístico das décadas de 60 e 70. A criação coletiva proporciona um texto po-


lifônico e intertextual; sua autoria é do grupo, não de um indivíduo; o texto é
concebido no processo, através de discussões e improvisações, não previamente.
[...] Enquanto no trabalho colaborativo a montagem pode ser ou não assinada
por um único autor, na criação coletiva não há um autor dramático com função
específica e especializada (BARCELOS, 2019, p. 304-305).

Assim, boa parte dos dramaturgos brasileiros contemporâneos trabalha


em ou para companhias teatrais, mesclando a escrita isolada, anterior ao projeto
de encenação, quanto a convite de um ator ou companhia. Neste caso, o artista
ou a companhia discute ou não com o autor os temas a serem abordados; por
vezes, inclusive, a escrita dramatúrgica é paralela a discussões e improvisações
com atores e diretores e o texto se desenvolve durante esse processo.
Conforme assinalado na introdução desse capítulo, dado o variado nú-
mero de dramaturgos contemporâneos brasileiros, um recorte se fez necessário.
Não apenas o enfoque aqui será de dramaturgos do Rio de Janeiro, como optou-
se por três: Pedro Kosovski, Jô Bilac e Renata Mizrahi. Essa escolha, entretanto,
não foi aleatória. Buscou-se contemplar desde Pedro Kosovski, homem branco
oriundo da zona sul do Rio de Janeiro, espaço mais elitizado da cidade, como
Jô Bilac, homem negro, e Renata Mizrahi, mulher, representante de um grupo
felizmente cada vez mais numeroso no País.

Pedro Kosovski

Pedro Kosovski, de 1983, nasceu e mora na cidade do Rio de Janeiro.


Formou-se em Psicologia pela PUC-Rio, mas cursou a escola de teatro O Ta-
blado. Além de dramaturgo, é também professor de teatro.
Kosovski fundou em 2005 a Aquela Cia. de Teatro, sediada no Rio de
Janeiro, em parceria com o diretor Marco André Nunes. Ao contrário da maioria
das companhias teatrais cariocas e brasileiras cujo núcleo é formado por atores
– e a Cia. dos Atores é um grande exemplo disso, haja vista seu nome -, a Aquela
Cia. conta apenas com Kosovski e Nunes; os demais artistas trabalham apenas
em determinadas montagens a convite dos dois.
O início da trajetória de Kosovski como dramaturgo se confunde com
a trajetória da própria companhia. Sua primeira peça, Projeto K., foi escrita em
2005 pelo dramaturgo Walter Daguerre, através de trabalho colaborativo, a
partir da vida e obra do escritor Franz Kafka. Na montagem, Nunes era o dire-
tor e Kosovski um dos atores. O trabalho seguinte da companhia seguiu o
mesmo processo de Projeto: Subwerther, baseado em Os sofrimentos do jovem Werther,
de Goethe, e dos fragmentos desse romance presentes no livro de Roland
Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso. Já em 2006, Kosovski decide ele

62
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

mesmo escrever um texto; dessa vez foi Lobo n. 1 – a estepe, baseado no romance
de Herman Hesse. Logo em seguida o agora dramaturgo escreveu Do artista
quando jovem, inspirado no universo literário de James Joyce.
Após pausa por alguns anos, Kosovski e Nunes entenderam que esta-
vam “fazendo há cinco anos trabalhos sobre cânones literários da Europa” (KO-
SOVSKI In: DIEGUES, ABREU, 2019, p. 218), o que interpretaram como uma
formação deles enquanto artistas. Desse modo, em 2011, os dois decidiram pes-
quisar e experimentar a relação entre teatro e música e, assim, Kosovski escreveu
Outside, um musical noir, elaborado a partir do encarte do álbum homônimo de Da-
vid Bowie, e, em seguida, Edypop, inspirado no mito de Édipo e em John Lennon.
O universo da música e de personalidades persiste nos trabalhos de
Pedro Kosovski, mas a partir da peça Cara de cavalo, a música continua intrín-
seca à montagem, no entanto, as personalidades em foco são o criminoso Ma-
noel Moreira, de alcunha Cara de cavalo, executado por policiais quando fora-
gido na cidade de Cabo Frio, e do artista Helio Oiticica, que lhe rendeu uma
homenagem com o Bólide caixa 18. Cara de cavalo faz parte do que Kosovski cha-
mou de “Trilogia carioca”, sendo seguida de Caranguejo overdrive, sobre um man-
gue carioca aterrado no final do século XIX, onde atualmente se situa a Praça
Onze, e de Guanabara canibal, escrita sobre o encontro do índio com o coloniza-
dor a partir de estudos da Batalha de Uçumirim e de relatos dos cronistas fran-
ceses Jean de Lery e André Thevet. Destarte, o dramaturgo revela que a partir
do início da trilogia carioca com Cara de cavalo, a companhia “deu um passo no
sentido de politização, foi uma chegada a questões do Brasil, e radicalização do
trabalho” (KOSOVSKI In: DIEGUES, ABREU, 2019, p. 219).
Embora Pedro Kosovski há alguns anos assine os textos da companhia,
ele também escreve por convite, ou encomenda de outros artistas. Também um
de seus mais importantes trabalhos foi a peça Tripas, que escreveu para seu pai,
o também ator e diretor Ricardo Kosovski, a partir de um problema gravíssimo
de saúde – rompimento do intestino e septicemia. Curado, Ricardo atuou na
peça que Pedro escreveu e dirigiu.

Jô Bilac

Jô Bilac, nome artístico de Giovani Ramalho Bilac, nasceu em 1985 na


cidade do Rio de Janeiro. Ex-aluno da Escola de Teatro Martins Pena, começou
cedo a carreira de dramaturgo, tendo escrito sua primeira peça, Sangue em caixa
de areia, aos dezenove anos de idade, embora sua primeira peça, Bruxarias urba-
nas, montada profissionalmente, tenha sido escrita dois anos depois, em 2006.

63
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Nesses menos de quinze anos de carreira, Jô Bilac tem uma produção


dramatúrgica profícua – até hoje são 29 peças escritas! - e é um dos dramaturgos
contemporâneos mais premiados. Além disso, suas peças são montadas por vá-
rios grupos de teatro amador e profissional do Brasil e e de países como Ingla-
terra, Colômbia, Suécia e Estados Unidos, e são adotadas por escolas e univer-
sidades do País.
Em 2006, Jô Bilac ajudou a fundar a Cia Teatro Independente, para
quem escreveu peças como Cachorro! (2007), inspirada no universo de Nelson
Rodrigues, Rebú (2009), uma peça de época que usa linguagem cinematográfica,
e Cucaracha (2012), drama que aborda uma improvável relação entre uma paci-
ente em coma e sua enfermeira. Além das peças que o dramaturgo escreve para
sua companhia, faz parcerias com outras também, caso das aclamadas e premi-
adas Savana Glacial (2010), escrita para o grupo Teatro Físico, Conselho de Classe
(2013) e Insetos (2018), escritos em parceria com a Cia dos Atores. No ano de
2019 foi a vez da Cia. Marginal ser contemplada com uma peça de Jô Bilac.
Trata-se de Hoje não saio daqui, que alude à presença africana na carioca Maré,
a segunda maior comunidade angolana do Brasil.
Jô Bilac transita entre diversos gêneros e estilos teatrais, de comédia a
drama, de processos de desconstrução, como em Savana Glacial, a peças em um
âmbito mais realista, como Conselho de classe, que, como o título explicita,
aborda, através de um conselho de classe em uma fictícia escola pública na ci-
dade do Rio de Janeiro, o cotidiano e dificuldades do magistério público brasi-
leiro. Às vezes também resvala para uma fábula, caso de Insetos, cujos persona-
gens – mosquito, barata, mariposa, etc – metaforizam o Brasil recente: fluxos
de emigração para Portugal, surtos de dengue, corrupção, protestos políticos.
Em reflexão sobre seu processo de escrita, o dramaturgo assinala, a
partir da peça Fluxorama, peça considerada performativa, que “comecei, pri-
meiro, [...] num exercício próximo da poesia concreta, para que eu pudesse en-
tender a palavra no papel, dando conta de uma falta de rubrica, de uma falta de
explicação com o ritmo, a subjetividade através da grafia da palavra” (BILAC
In: DIEGUES, ABREU, 2019, p. 242). E, assim, assevera que “outra pesquisa que
comecei a fazer foi a de criar personagens que não fossem humanos. [...] Nesses
três anos, escrevi deuses indianos, um asteroide, uma bactéria, uma arara, uma
flor carnívora, uma joaninha, o Cristo Redentor” (BILAC In: DIEGUES,
ABREU, 2019, p. 242).
Esse elemento heterogêneo e multifacetado não se aplica apenas a sua
dramaturgia, pois além de seu trabalho como dramaturgo, Jô Bilac também di-
rige peças e roteiriza programas de televisão.

64
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Renata Mizrahi

Nascida na cidade do Rio de Janeiro em 1979, Renata Mizrahi cursou


teatro no Tablado, se formou em Artes Cênicas pela UNIRIO e leciona cursos
de roteiros em diversas escolas. Renata faz parte de um grupo felizmente em
ascendência no Brasil, o de dramaturgas mulheres.
A premiada escrita dramatúrgica de Renata varia de adaptações de tex-
tos para o teatro, caso de Uma janela em Copacabana (2008), baseada no romance
policial homônimo de Luiz Alfredo Garcia-Roza; Memórias de um rato (2009), a
partir do folhetim Memórias de um rato de hotel, de João do Rio; e Uma peça sem nome
(2011), a partir da peça As you like it, de William Shakespeare, a outras original-
mente escritas por ela. A primeira foi 5 Atos, um texto de cinco fragmentos sobre
a solidão. Segue-se, então, Nada que eu disser será suficiente até que o sol se ponha, de
2006. Com essa peça, Renata Mizrahi se juntou ao diretor Diego Molina e a ou-
tros artistas parceiros e fundaram a companhia Teatro de Nós.
Dentre as mais de dez peças escritas pela dramaturga, também pode-
mos destacar Joaquim e as estrelas (2010), primeira peça infantil que escreveu; Os
sapos (2013), sobre relações e dependências amorosas – atualmente sendo adap-
tado pela dramaturga para o cinema, War (2015), que aborda as relações inter-
pessoais, e Vale night (2019), que trata do encontro de mães e debate a questão
da maternidade.
Nem todas as peças que a dramaturga escreve são encenadas pela com-
panhia à qual pertence. Algumas são dirigidas por ela, em umas ela atua, outras
são escritas por encomenda, e há ainda aquelas em que ela escreve o texto para
outros atores e diretores encenarem, como foi o caso do monólogo O que ele tem?,
baseado no livro homônimo escrito pela cantora Olívia Byington sobre uma rara
síndrome que acometeu seu filho, com direção de Fernando Philbert e atuação
de Louise Cardoso.
Apesar do conjunto das peças lidar com temáticas e universos diferen-
tes, como a própria dramaturga comenta: “se você parar para pensar todos os
temas têm uma ligação. Todas as peças falam da relação, de microuniversos”
(ROTA CULT, 2020).
Além de escrever para o teatro, Renata Mizrahi também escreve rotei-
ros para cinema e televisão, séries e programas televisivos.

65
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Considerações finais

Na impossibilidade de levar a cabo uma análise totalizante dos novos


dramaturgos contemporâneos, mesmo em um universo mais restrito como uma
cidade, no caso aqui a cidade do Rio de Janeiro, o trabalho dos três dramaturgos
escolhidos, Pedro Kosovski, Jô Bilac e Renata Mizrahi já acenam a algumas ca-
racterísticas que podemos elencar aqui.
Primeiramente, chama a atenção o fato dos três pertencerem a compa-
nhias teatrais, mas cujos trabalhos não se atêm a elas. Os dramaturgos têm uma
liberdade de escrita que os permite escrever para os seus e para outros grupos
ou artistas independentes. Outro elemento a ser destacado é a pluralidade de
gêneros e estilos presentes em um mesmo dramaturgo. Pedro Kosovski adapta
peças, escreve outras baseadas em personalidades e fatos históricos, outra com
caráter mais pessoal, como foi Tripas, escrita sobre o pai. Jô Bilac escreve de
fábulas a peças de caráter de desconstrução a outras mais realistas. Renata Mi-
zrahi adapta textos, escreves dramas, comédias e peças infantis.
Também os três dramaturgos examinados transitam em outras áreas
que não só a escrita, atuando, dirigindo. Por outro lado, não trabalham só com
teatro, mas lecionando e escrevendo para cinema e televisão.
No mais, boa parte dos textos desses dramaturgos foge à linearidade
narrativa do drama de outrora, privilegiando o texto de fragmentos já discutido
anteriormente aqui. Numa visada leiga inicial, poder-se-ia considerar alguns
desses textos ilegíveis, mas como bem ressalta Jean-Pierre Ryngaert:

Os textos teatrais considerados ilegíveis ou herméticos são textos que não sabe-
mos ler, ou seja, para os quais não achamos nenhuma chave satisfatória. Com
frequência, trata-se de textos que não obedecem às regras da dramaturgia clás-
sica, aos quais o leitor se refere com maior ou menor consciência. Todo texto é
legível se dedicamos tempo a ele e se nos damos os meios para isso. O critério de
legibilidade, de qualquer maneira muito discutível mesmo que seja difundido,
não deveria ser acompanhado de um julgamento de valor sobre a “qualidade” do
texto, ou seja, sobre nosso prazer de leitor que entra em relação com o autor
durante o ato de leitura” (RYNGAERT, 1998, p. 27).

66
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELOS, Carolina Montebelo. O estatuto do texto e do autor teatral nos tra-


balhos de companhias cariocas contemporâneas. Caderno de Letras, n. 34, p. 297-
315, mai-ago 2019. Disponível em: < https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/in-
dex.php/cadernodeletras/article/view/16702/10645>. Acesso em: 10 mar. 2020.

DIEGUES, Isabel; AZEVEDO; José Fernando Peixoto de; ABREU, Kil (orgs.). Ma-
ratona de dramaturgia. Rio de Janeiro: Cobogó; Edições SESC: São Paulo, 2019.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

MOUNSEF, Donia; FÉRAL, Josette. Editor’s preface: the transparency of the text.
In: MOUNSEF, Donia; FÉRAL, Josette (eds). The transparency of the text: con-
temporary writing for the stage. Yale French Studies, New Haven, n.112, p. 1 – 4,
2007.

ROTA CULT. Entrevista com Renata Mizrahi. 14 jan 2020. Disponível em:
<https://rotacult.com.br/2020/01/autora-de-sucesso-renata-mizrahi-fala-sobre-
sua-trajetoria-no-teatro/>. Acesso em: 16 mar 2020.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Speech in tatters; the interplay of voices in recent dra-


matic writing. In: MOUNSEF, Donia; FÉRAL, Josette (eds). The transparency of
the text: contemporary writing for the stage. Yale French Studies, New Haven,
n.112, p. 14 -28, 2007.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,


1998.

67
VIAGEM, MOVIMENTO E REPRESENTAÇÃO NO LOCUS
LITERÁRIO DE RIVERÃO SUSSUARANA, GLAUBER ROCHA

Denise Veras (UNB)1

Prólogo

Quando da escrita deste artigo recriminei-me por fazê-lo utilizando


estratégias informais, mas acabei por ceder ao aceitar que, sobretudo na pes-
quisa, mudanças são necessárias, ainda que de formalismos viva a Academia,
pois, tal como refletiram Macedo; Dimenstein (2009) a produção de narrativas
deve prover “uma escrita que resista e insista na produção de conhecimentos
que afirmem possibilidades de variação da vida”.
Assim, entendo que experienciar tais mudanças de rota se constitui
uma forma de pensar a representação diaspórica dentro do texto ora estudado,
pois se relacionarmos o formalismo acadêmico com a construção textual retilí-
nea dos romances de ficção, elaborar uma narrativa acadêmica, fora da objeti-
vidade que lhe é peculiar, parecerá não somente compreensível como também
adequado, haja vista o teor inovador do texto aqui abordado.

Introdução

Publicado em maio de 1978, Riverão Sussuarana é o único romance do


cineasta Glauber Rocha. Quando da publicação do livro, Glauber Rocha já era
figura conhecida no Brasil, tendo seu trabalho ultrapassado fronteiras e ganho
o mundo, provando, o cineasta, o bônus e o ônus da fama. O texto em questão
configura-se em uma obra complexa, plural, cuja amplidão foi estranhada não
somente pelos leitores.
Podendo ser analisado também como um roteiro de viagem, o romance
de Glauber Rocha apresenta seus personagens em andanças pelo Brasil. A re-
gião eleita para a peregrinação é o Nordeste do país, em que os estados do Piauí,
Ceará, Maranhão e Bahia são os cenários da caminhada; o estado de Minas Ge-
rais também é parte desse roteiro e é o seu objetivo final.

1
Mestre em Letras (UFPI), Doutoranda em Literatura (UnB). Email: deniseverasletras@gmail.com
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Para iniciar é preciso esclarecer alguns dados geográficos do Brasil de


1978. Nessa época o país contava com vinte e duas unidades federativas e um
Distrito Federal. Dos vinte e dois estados brasileiros, Glauber Rocha menciona
dezenove em seu romance, excluindo do roteiro os estados do Espírito Santo,
Acre e Mato Grosso do Sul. O autor incluiu também Brasília, o Distrito Federal.

[...] o livro é como o sertão e o sertão é cheio de galhos, cheio de histórias. É como
uma galharia literária. Quem gostar do sertão, que entre. Quem não gostar, vá ler
um livro que se passa na praia. (ROCHA apud REZENDE, 1986, p. 144)

A diversidade do território brasileiro é apresentada no texto, que cita


vários de seus estados, apontando para a decadência econômica do país como
vítima de um imperialismo 2 predatório. O roteiro acentua a descrição geográ-
fica do percurso realizado, área pouco abordada pela cinematografia da época,
centrada principalmente no ambiente urbano e no litoral.
A narrativa de Glauber Rocha, através da alegoria, busca refletir sobre
a realidade brasileira; assim sua escrita literária que, em vários momentos refere
fatos e personalidades da História do Brasil apropria-se deles para contribuir
para a caracterização de uma identidade nacional a partir daquela considerada
por Glauber Rocha como a genuinamente brasileira: o sertanejo, em oposição
ao urbano. A estética fílmica de Glauber Rocha, presente no livro, apresenta
traços de sua busca em retratar a realidade do povo brasileiro. A peregrinação
que os personagens de Riverão Sussuarana fazem no romance objetiva rememorar
os elementos nacionais intocados pela cultura estrangeira, uma forma de fazer
o resgate da cultura genuinamente nacional.
Para ele, a condição histórica do Brasil enquanto colônia não fora supe-
rada pela Independência, e tal condição impedia que o país se libertasse das in-
fluências estrangeiras, fazendo com que o país permanecesse dependente polí-
tica e economicamente dos colonizadores. Rocha (1981) acreditava que a Amé-
rica Latina permanecia colônia e que a diferença do colonialismo do passado
para o atual era unicamente a forma mais aprimorada do colonizador. Assim,
esse colonialismo levou os países subdesenvolvidos ao “condicionamento eco-
nômico e político”, numa dualidade nomeada por ele de esterilidade e histeria:

A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o


autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena posses-
são de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não des-

2
Neste texto valemo-nos do Imperialismo no conceito de Edward Said (1995, p. 177-178), o imperia-
lismo, desde as práticas desenvolvidas pelos europeus no final do século XIX, funciona em formas cul-
turais mais específicas, ainda que sempre baseadas na ideia geral da necessidade de subordinação e
vitimização do nativo ou do “outro”.

70
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

pertam do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas ga-
lerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, fil-
mes [...] A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca dis-
cursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem
até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má po-
lítica por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma
sistematização para a arte popular. (ROCHA,1981, p. 29)

Em sua fala o autor nos aponta as consequências ainda hoje sentidas


nas sociedades predicados de colonização e o quanto elas estão presentes, ainda
que não sejam claramente percebidas.

“O livro é como o sertão e o sertão é cheio de galhos”3

Ismail Xavier em Sertão Mar (2007) relaciona o Manifesto da Violência4


de Glauber Rocha com a argumentação de Frantz Fanon (1968) em “Os condena-
dos da terra”, elucidando o caráter resistente dos textos em questão. Para Xavier
(2007, p. 184), Rocha e Fanon assemelham-se na defesa da legitimidade da vio-
lência como única possibilidade do colonizado reagir frente à dominação que
lhe é imposta: “‘Uma estética da fome’, tal como o livro de Fanon, tem essa di-
mensão de discurso para o Outro, ou seja, para a consciência do colonizador ou
do colonizado que ainda se vê com olhos do colonizador” (XAVIER, 2007, p.
184). O modelo colonial era combatido através da afirmação da cultura nacio-
nal, a afirmação da identidade dos sujeitos brasileiros era o instrumento de luta.
A não aceitação, a negação do servilismo constituiu uma das bases do Cin ema
Novo e da criação da identidade do ser latino-americano. Para a construção
dessa identidade a primeira negação foi a da autoridade do colonizador.
Associando o ideário de Glauber Rocha aos dias de hoje um dos pri-
meiros questionamentos que nos surge é “o que vem a ser uma identidade naci-
onal genuinamente brasileira?”. Para auxiliar no processo de compreensão
dessa proposta, cito as palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2013, p. 74): “A iden-
tidade assim concebida parece ser uma positividade (‘aquilo que sou’), uma ca-
racterística independente, um ‘fato’ autônomo. Nessa perspectiva, a identidade
só tem como referência a si própria: ela é autocontida e autossuficiente.” Por-
tanto ela só existe através de oposições, o “eu” só existe em função da negação
do “outro”, essa diferença entre ambos passa a se cristalizar no processo de
construção da identidade.
O primeiro passo para o povo latino-americano se libertar dos imperi-
alistas seria identificar elementos de sua própria cultura, resgatando os hábitos

3
(ROCHA, 1986, p. 144).
4
Tradução italiana do original em português Estética da fome.

71
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de sua própria gente estabelecendo assim as diferenças entre os colonizados e


os colonizadores, que são o “outro”. A ideia era a de que o processo de criar
pontos em comum entre esses indivíduos colonizados fizesse com que brotasse
o sentimento de unidade e pertencimento nacional.
Se compreendemos o pensamento do cineasta somos induzidos a ques-
tionar se as características plenamente brasileiras por ele apontadas, tais como
a macumba, se constituem, de fato, em caracteres puros. A esse respeito convi-
damos ao diálogo Homi Babha com seu conceito de Hibridização Cultural: “O hi-
bridismo é uma problemática de representação que reverte os efeitos da recusa
colonialista, de modo que outros saberes ‘negados’ se infiltrem no discurso do-
minante e tornem estranha sua base de autoridade” (BHABHA, 1998, p.165).
Bhabha nos conduz à reflexão sobre a redefinição dos limites frontei-
riços em níveis psicossociais e culturais, além dos geográficos. Os sujeitos das
fronteiras carregam bagagens materiais e imateriais, sua tradução se dá na re-
lação da diferença com o outro, o sujeito nativo. As articulações das diferenças
ocorrem no espaço fronteiriço e dão início a novas identidades, é nesse espaço
cruzado entre o eu e o outro que as diferenças se mostram e a articulação entre
as partes promove a troca que recria novos eu’s e outros.
Se o processo de criação/nascimento de novas identidades perpassa
pelo cruzamento entre duas ou mais culturas infere-se que não há identidades
puras, toda e qualquer marca de pureza seria uma falácia. Todas as culturas tra-
riam em si as marcas de seus cruzamentos com outras culturas, suas impurezas
culturais. A esse processo de formação a única constante que existe é a transfor-
mação que ocorre invariavelmente ao longo de toda a construção imaterial.
Glauber Rocha propõe não a criação de uma nova identidade nacional,
mas o resgate de uma identidade que já existe. Ainda que não se saiba ao certo
suas razões, o fato é que era nisso que ele acreditava e foi nessa linha de racio-
cínio que sua obra foi formulada. Seu romance é permeado de representações
do sertão, do cangaço, do efeito do imperialismo e do populismo e de temáticas
afins, construídas com base no sertanejo e no povo brasileiro. Essa representa-
ção tinha como foco abordar a ruptura dos padrões norte-americanos que, acre-
ditava Glauber Rocha, seria alcançada pela revolução social, instigada no povo
através da produção artística.
Na obra do cineasta o resgate da identidade nacional brasileira original
se deu com a inserção de elementos da cultura popular nacional em diversos
aspectos. Nos longas-metragem Barravento (1961) e Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964) o povo brasileiro é apresentado em sua integralidade cultural; em pri-
meiro plano estão representados elementos como a música, a dança, o folclore
popular, a vestimenta, os hábitos e costumes dos povos que não haviam sido

72
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

corrompidos pela cultura estrangeira. Tais elementos também podem ser iden-
tificados em seu romance Riverão Sussuarana de modo a deixar clara a proposta
do autor em expor sua versão para constituir o que deveria ser o cerne da naci-
onalidade original do povo do Brasil.
Aos nos depararmos com a obra de Glauber Rocha o que identificamos
é um artista indignado com os rumos que a nação vinha tomando, em cuja obra
transparece sua crença nas possibilidades de retorno à própria origem. Nessa
tentativa a literatura de cordel também pode ser identificada em Riverão Sussu-
arana, mas é no longa-metragem Deus e Diabo na Terra do Sol que ela se mostra
mais evidente. Num alegorismo da luta de bem versus mal esse filme cumpre o
papel de apresentar o imperialismo predatório norte-americano contra o ideal
popular da sociedade brasileira, que considera o sertanejo seu representante
mais fiel:

há uma tradição de versos populares e de canções que vêm de herança portu-


guesa e espanhola, é a dos cantadores, que agora tornou-se no, Nordeste especi-
alidade dos cegos, que inventam histórias. Por serem cegos, eles têm uma imagi-
nação maior e inventam lendas. Todo episódio de Corisco em Deus e o diabo foi
tirado de quatro ou cinco romances populares (ROCHA, 2004, p. 113).

Esses elementos presentes na temática de Glauber Rocha – o sertanejo,


o poder, a autoafirmação do povo, as desigualdades sociais e a miséria – não
apenas negavam o atraso econômico, mas queriam ir além da denúncia desse
atraso nos países do Terceiro Mundo, em especial o Brasil. Eles veiculam uma
busca por acionar no povo a construção de uma identidade cultural nacional
que o cineasta e romancista acreditava ter já encontrado.
Glauber Rocha considerava que o cinema hollywoodiano ameaçava a
identidade e a cultura nacional do brasileiro e foi com esta preocupação que ele
propôs a expulsão dos enredos daqueles símbolos que ameaçavam o desenvol-
vimento cultural do país, sendo essa expulsão uma catarse. Nos textos o autor
funde o tempo e o espaço entre o território nacional e as mais diversas figuras
históricas.

Riverão e a Cronotopia dos sentidos

Sobre a questão espaço-temporal abro, aqui, uma brecha para apresen-


tar previamente uma discussão a respeito, em busca de sinalizar o caminho es-
colhido pelo cineasta em questão quando da escrita de seu romance e, assim,
facilitar a compreensão do modus operandi da mente inquieta de nosso autor.

73
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A tentativa de explanar a fusão de personalidades históricas, espaço e


temporalidade escolhida por Rocha partirá do conceito de Cronotopos, de Carlos
Fuentes. Sendo assim, sigamos.
A maneira de conceber o tempo e o espaço é variável, para tanto o ho-
mem assumiu diferentes formas de entendê-los, se para alguns povos o tempo
é linear, para outros o tempo é cíclico. À essa relação de tempo e espaço Bakhtin
chamou de Cronotopos, “de cronos: tempo e topos: espaço.” (FUENTES, 1990, p.
38, tradução minha). Essa relação permite tanto identificar o processo de as-
similação da história e da literatura, como o modo pelo qual a informação nar-
rativa se move, pois que o livro se apresenta como algo dinâmico. Com sua lin-
guagem, o livro guarda todo o conceito incerto, pois cada leitor é autor do que
lê, nesse sentido o cronotopo atua como ferramenta cuja capacidade permite ava-
liar a correlação e articulação do tempo e do espaço em determinada época,
texto ou gênero.

A noção de cronotopo [grifo meu] expressa o caráter correlacional e indissolúvel


entre tempo e espaço, pois o espaço pode ser fixo, mas é dentro dele que o tempo
transcorre, movimenta-se e é percebido. Nesse sentido, o tempo pode ser enten-
dido como uma coordenada espacial: a quarta dimensão do espaço. (BASTOS
NETO, p. 110, 2012)

Numa comparação mitológica, o livro surge como um espelho e como tal


reflete o rosto do leitor para o leitor, dessa maneira a construção do romance pe-
las leituras é infinita e inesgotável, pois se o tempo da escrita é finito e uma obra
pode, pela ótica do autor, estar finalizada, para o leitor esta sempre será uma obra
nova, pois a cada nova leitura uma nova criação surge, parcial e relativa.
A noção de cronotopo está expressa na relação indissociável entre
tempo e espaço, pois se o espaço é fixo, o tempo é fluido e transcorre e se mo-
vimenta dentro dele.

O cronotopo [grifo meu] foi concebido como uma forma arquitetônica da narra-
tiva que configura modos de vida em contextos particulares de temporalidades.
O tempo, para Bakhtin, torna-se pluralidade de visões de mundo: tanto na expe-
riência como na criação, manifesta-se como um conjunto de simultaneidades que
não são instantes, mas acontecimentos no complexo de seus desdobramentos A
pluralidade de que fala Bakhtin só pode ser apreendida no grande tempo das
culturas e civilizações, quer dizer, no espaço (MACHADO, 2010, p. 215).

Para Bakhtin a cronotopia funde elementos espaciais e temporais, o


tempo se une ao espaço formando assim o enunciado. Dessa maneira o tempo
se faz visível, ao passo que o espaço se intensifica e invade os movimentos do

74
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

tempo. “o cronotopo é uma categoria conteudístico formal, que mostra a interli-


gação fundamental das relações espaciais e temporais representadas nos textos,
principalmente literários” (BAKHTIN 2002, p. 211).
O romance de Glauber Rocha, considerando essa questão explicitada,
permite uma gama de interpretações. Com muitos contextos interrelacionados,
personagens homônimas e personalidades históricas, além de diversas formas
de escrita, o autor fez um misto de prosa poética, histórica, poesia e reportagem
policial, num emaranhado que pode aparecer caótico para o leitor mas que, ao
mesmo tempo, oferece liberdade para que as páginas do livro sejam lidas te-
cendo interpretações e explorando possibilidades ao texto.
A convivência de diversos tempos em um único espaço faz com que as
personagens do romance ora estudado se mesclem em si mesmos e em outros,
em situações que já não se sabe se ocorre na ficção ou na realidade narrativa. O
texto transforma-se numa gama de possibilidades distintas e indistintas, im-
possível de ser caracterizada objetivamente, mas que nos conduz a avaliações
do inconsciente coletivo de uma época e de uma categoria social específica.

Guimarães Rocha sabia que ah guerra ia começar [...]


Rosa cansado remodelava os escritos [...]
Rosa compreendeu que Riverão queria [...]
[...] falava-se que tinha sequestrado o Embaixador Romancista João Guimarães
Rosa e o Cine Reporter Glauber Andrade Rocha [...]
[...] Rosa sabia das verdadeiras fronteiras e desenrolou das coxas mapa na sua pele [...]
Quando o Tenente Campos chegou lá não encontrou Riverão e seus homens, nem eu e Rosa...
[...] Guimarães Rosa não morreu com noticiou a imprensa ynternacional, nada disto... (RO-
CHA, 2012, p. 214-230, grafia do autor; grifo meu).

Essa estratégia narrativa funciona como uma conversão da autobiogra-


fia para a ficção, inserindo elementos reais ao romance. Nesses pontos do texto
Glauber Rocha aproveitou o caráter exploratório advindos dos limites da auto-
biografia, isto é, o autor explorou as possibilidades advindas da narrativa bio-
gráfica. Malcolm Silverman (2000, p. 62) apresenta a possibilidade dessa pro-
pensão a incluir elementos autobiográficos:

O memorialismo ficcionalizado é um híbrido mais literário, mais variado, e mais


prevalecente. Infelizmente, também é mais difícil de categorizar exatamente
quando, e dentro de que contexto, os fatos acabaram e começa então a ficção,
bem como se eles se misturam, intencionalmente ou não, por parte do autor.

O procedimento do memorialismo ficcionalizado está presente em Ri-


verão Sussuarana, numa diversidade de fatos e ideias que são reunidas com ele-
mentos de uma realidade vivida pelo autor, com suas ideias irracionais, tudo se
mesclando, formando a ficção. O estilo narrativo adotado por Glauber Rocha

75
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

representa uma possibilidade do que poderia ter sido a realidade descrita deta-
lhadamente. Ao narrar trechos e descrever elementos o autor utiliza-se de fra-
gmentos de sua memória e mistura-os ao seu próprio imaginário. Ao apresentar
tais características da obra, o texto de Glauber Rocha se apresenta como uma
mescla de fusão espaço-temporal e fictício-biográfico, em uma desafiadora de-
sarmonia de estilos.

A Coluna Prestes: roteiro de viagem

Em Riverão Sussuarana está presente uma técnica que também foi utili-
zada em A Idade da Terra (1981): o autor representa a multiplicidade territorial
brasileira através da inserção dos personagens que são oriundos dos mais di-
versos estados. A pluralidade identificada nas personagens de Riverão Sussua-
rana garante uma espécie de carnavalização 5 no texto de Glauber Rocha, ex-
pandindo seu sentido antropofágico e remodelando a perspectiva das culturas
nas releituras possíveis das paisagens – incluídos aqui as unidades federativas
mencionadas no romance.
Tanto nesse longa-metragem como no romance, o cineasta mostra a
diversidade da população e a multiplicidade de tradições presentes nos estados
brasileiros, denunciando a decadência da periferia nacional abusada pelo impe-
rialismo norte-americano. Nos fragmentos seguintes encontramos demonstra-
ções de como as representações territoriais e culturais aparecem no texto:

O jagunço Riverão Sussuarana cruzava a Fronteyra Bahia Mynaz pra pedir pro-
teção na fazenda do Coronel Dermeraveldo de Olyveyra. Fervia escaldado fari-
nha de mandioca com leite por cima da carne de sol frita na pimenta acebolada
e café quente todos dentro das capas coloniais beira fogão friozim sertanejo
baixo Tropyko Cancer. (ROCHA, 1978, p. 14)
Fui de Jacaracy para Montes Claros no Estado de Minas a pé, eu e o Lidio. De
Montes Claros comprei passagem na Central do Brasil acompanhado de Lidio,
ele sempre comigo, comprei passagem para São Paulo. (ROCHA, 1978, p. 49)
Queria comecar rodage que fosse reta Amazona Xuy Pyauy Bolyvya. Jaca, pegou
seriema pelo pe nas bandas de Oieras e viu caboclinho com pexera no cinto cu-
mento farinha incostado nas preda. (ROCHA, 1978, p. 46)

Para concretizar no romance a proposta de mostrar o território brasi-


leiro através da viagem ou peregrinação pelo país, o autor utiliza como ideia de
fundo o acontecimento histórico da marcha política de Miguel Costa e Luís Carlos

5
“A teoria da carnavalização amplia o sentido do temo [paródia]. A paródia carnavalesca seria um tipo
de percepção vasta e popular, caracterizada por uma visão às avessas: uma oposição ao sério, ao tradi-
cional, ao dogmático, ao oficial, numa atitude de dessacralização, recusando o absoluto da ordem ofi-
cial” (MAIA, 1985, p. 12).

76
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Prestes, que atravessou o país no sentido sul-norte-sul. Essa marcha foi tomada
por Glauber Rocha como espinha dorsal do romance.
A Coluna Miguel Costa-Prestes constituiu uma viagem que iniciou no sul
do país e percorreu cerca de 25 mil quilômetros, atravessando estados brasilei-
ros com o objetivo de incentivar o povo a se rebelar contra o governo e as elites
agrárias. O objetivo do grupo era o de mobilizar a população das periferias bra-
sileiras com o intuito de conscientizá-las da necessidade de mudança na polí-
tica do país para derrocar o modelo político de República Velha. A Coluna pro-
punha uma revolução em favor dos oprimidos, e sua trajetória terminou em
1927, após se dissolver na Bolívia.
A metaforização do evento Coluna Miguel-Costa Prestes no romance
cumpre a proposta de Glauber Rocha de salientar o Brasil político na literatura
(Cf. ROCHA, 2012, p. 103). A Coluna tinha como propósito denunciar que a
República oprimia a população e, portanto, a institucionalização da democra-
cia popular era urgente. No romance a proposta de Glauber Rocha é apresentar
seu entendimento estético e político-cultural, através das histórias do texto.
Seus personagens percorrem o país fazendo parte de sua literatura, esta que
estava recheada de elementos dos dois manifestos estéticos (Estética da Fome e
Estética do Sonho), introduzindo no enredo tanto aspectos culturais, populares
como biográficos:

Esse livro [Riverão]


faz parte de uma necessidade que tive de publicar toda minha teoria cinemato-
gráfica, num momento em que o cinema brasileiro se encontra numa grande crise
criativa e eu me sinto cada vez mais frustrado porque toda uma teoria revoluci-
onária de cultura brasileira está sendo posta por água abaixo pela burocratiza-
ção estatal, pelo comercialismo da indústria privada de arte no Brasil e pelo con-
formismo com que os artistas resolveram aceitar tudo isso. [...] o meu estilo tem
provocado muitas reações, principalmente certos ‘donos oficiais’ da cultura [...]
Essa minha independência tem me custado a repressão editorial. Por isso, levei
um ano para publicar Riverão que só Alfredo Machado topou editar. (RE-
ZENDE apud ROCHA, 1986, p. 123, grifo nosso)

Nessa citação Glauber Rocha reitera a importância da exposição de


suas ideias acerca dos conceitos, diretrizes e rumos da arte brasileira. A analo-
gia proposta por ele faz referência à sua própria literatura, que percorre o Brasil
em suas diversas nuances culturais e reitera o sertanejo enquanto representante
nacional. A certeza da essencialidade do sertanejo no cerne da cultura nacional
brasileira foi eternizada em Os sertões: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”
(CUNHA, 2015, p. 79).
Assim o que vemos é a saga do brasileiro que poderia resistir a imposi-
ção de valores estrangeiros valendo-se da miscigenação dos elementos alegóri-
cos, do mito e da transgressão em seus versos. A produção temática do cineasta

77
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

em questão, além da forma como ele optou por escrever, tem na Coluna o eixo
central do livro, especificando um labirinto que percorre caminhos traçados
desde que ele se fez como artista.
A Coluna Miguel Costa-Prestes desenrola-se como um novelo que con-
tém as principais ideias do autor, e da narrativa desses acontecimentos, nos
quais se mesclam elementos de ficção e realidade, infere-se uma afronta aos po-
derosos da literatura, do cinema, da cultura em geral, os que ele chamava de
“donos da cultura” (ROCHA, 1986).
Os indivíduos ou entidades que teimam em imperar a forma certa de
criar uma estética artística literária são enfrentados dialeticamente pelo cine-
asta em seu romance. O que o escritor propôs de inovador, de crítica política e
social foi moldado com os movimentos revolucionários defendidos por ele, bem
como com as temáticas de seus filmes.

Considerações Finais

O romance analisado apresenta uma perspectiva da realidade brasi-


leira: a existência da dominação estrangeira, a presença do imperialismo euro-
peu/norte americano que, aceitos no Brasil, tentavam introduzir a identidade
pautada nos moldes extranacionais e não no que Glauber Rocha considerava
genuinamente brasileiro. O que o autor nos apresentou no texto foi uma de-
monstração de que o Brasil é mais do que os colonos quiseram/querem impor.
Há uma identidade tipicamente nacional, há o sertão, o linguajar local de cada
região, há diversas formas de fazer arte. Essas propostas são desnudadas pelo
autor através da metáfora que ele escolheu para trabalhar em seu texto, o mo-
vimento histórico da Coluna Miguel Costa-Prestes.
O percurso artístico de Glauber Rocha que culminou em Riverão Sussu-
arana é narrado dentro do romance. O escritor envereda pelos labirintos de suas
ideias, como a Coluna enveredou pelos estados brasileiros. A Coluna Miguel Costa-
Prestes, portanto, pode ser considerara também como uma metáfora do próprio
processo de criação de Glauber Rocha.
Contemporaneamente, as ideias de pureza cultural brasileira defendi-
das por Glauber Rocha podem ser tomadas como ingênuas, outros podem con-
siderar um sonho inatingível, porém, se assim for possível fazê-lo, conforto
àqueles a quem possa interessar com um bordão popular: sem sonhos não há
esperança.
E tão somente para ceder aos formalismos acadêmicos sobre os quais
falou-se no início, encerramos este texto com a reflexão de um dos mais céle-

78
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

bres filósofos da educação, Paulo Freire (2013): “A esperança é necessidade on-


tológica; a desesperança, esperança que, perdendo o endereço, se torna distor-
ção da necessidade ontológica”. Tenhamos, pois, esperança.

79
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Formas de tempo e de cronotopo no romance (ensaios de


poética histórica. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradu-
ção: A. F. Bernadini et. al. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 211-362

BASTOS NETO, Adalberto. O espaço, o tempo e o ser: uma análise cronotópica do


romance Galileia. Estação Literária, Londrina, v. 10, n. 2, p.108-119, dez. 2012. Se-
mestral. ISSN 1983-1048. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/in-
dex.php/estacaoliteraria/issue/archive

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2005.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. [s.l.]: Mogul Edições Clássicas, 2015. 366 p.
eBook Kindle.

FUENTES, Carlos. Valiente Mundo Nuevo: épica, utopía y mito en la novela


hispanoamericana. México: Fondo de Cultura Económica, 1990. 303 p. (Colec-
ción Tierra Firme).

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do


oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. [recurso eletrônico].

MACEDO, João Paulo; DIMENSTEIN, Magda. Escrita acadêmica e escrita de


si: experienciando desvios. Mental, [S. l.], v. 7, n. 12, p. 153–166, 2009.

MACHADO, Irene. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exo-


topia. In: PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (org.). O círculo de Bakhtin:
teoria inclassificável. Campinas: Mercado das letras, 2010, v.1, p. 203-234.

MAIA, João Domingues; SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carnaval, utopia e


paródia em Utopia selvagem. 1985. [v], 140 f. Dissertação (Mestrado)-Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras, 1985.

REZENDE, Sidney (Org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Philobiblion,


1986. 229 p. (Coleção visões e revisões, 7).

ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004.
568 p.

80
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ROCHA, Glauber. Riverão Sussuarana. Rio de Janeiro: Record, 1978. 288 p. Dis-
ponível em: https://pt.scribd.com/doc/111300513/Rocha-Glauber-Riverao-Sussua-
rana. Acesso em: 20 nov. 2014.

ROCHA, Glauber. Riverão Sussuarana. Florianópolis: UFSC, 2012. 261 p.

SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). A produção social da identidade e da diferença.


In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. Cap. 2, p. 73-102.

SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. Tradução de: Car-


los Araújo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 462 p.

XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac
Naify, 2007. 232 p.

FILMOGRAFIA
BARRAVENTO. Direção de Glauber Rocha. Produção de Rex Schindler, Braga
Neto. Roteiro: Glauber Rocha, José Telles de Magalhães. Música: Washington
Bruno (canjiquinha), Batatinha. Itapoan: Iglu Filmes, 1962. (80 min.), 35 mm, son.,
P&B. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sy60bm2Cn04>.
Acesso em: 20 maio 2014.

DEUS e o Diabo na terra do sol. Direção de Glauber Rocha. Produção de Luiz Au-
gusto Mendes. Roteiro: Glauber Rocha, Walter Lima Jr. Música: Heitor Vila-lo-
bos. Monte Santo: Copacabana Filmes, 1964. (125 min.), 35 mm, son., P&B. Dis-
ponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mS81fFWbJCY>. Acesso em: 25
maio 2014.

A IDADE da Terra. Direção de Glauber Rocha. Produção de Glauber Rocha. Rea-


lização de Glauber Rocha. Intérpretes: Maurício do Valle, Jece Valadão, Antonio
Pitanga, Tarcísio Meira, Geraldo del Rey. Roteiro: Glauber Rocha. Música: Heitor
Villa-lobos, Jorge Ben, Jamelão. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1978. (134 min.), son.,
color.

81
FANTASIA E REAL NA LITERATURA INFANTIL:
UM EXCURSO TEÓRICO PARA EMANCIPAÇÃO
DO LEITOR CRIANÇA

Dheiky do Rêgo Monteiro Rocha 1


Maria do Socorro Rios Magalhães 2

“[...] Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos


que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à
construção literária. Daí a literatura ser próxima da criança. [...]”.

Bartolomeu Campos de Queirós

Para um início de reflexão

A produção literária infantil consiste num gênero que demanda cons-


tante investigação, em razão de a exemplo do seu destinatário – a criança – estar
também em processo de transformação. Dos contos de fadas às narrativas con-
temporâneas, observamos que os estudos acerca desse gênero reivindicam sem-
pre mais atenção da crítica às obras de escritores que ainda não são do conheci-
mento dos mediadores de leitura, sendo necessário também novos olhares sobre
as obras já consideradas como clássicos da literatura infantil. Como a presença
da fantasia e do real se mostra recorrente nos textos literários destinados às cri-
anças, faz-se necessário, mais uma vez, que esses elementos, comuns à vivência
humana, ganhem destaque na crítica voltada à literatura infantil.
Este artigo propõe apresentar reflexões acerca da função da fantasia na
literatura infantil, articulando com os elementos estruturantes da narrativa, para
a constituição de aporte teórico que resulte em uma fundamentação pertinente
aos aspectos basilares voltados para o universo do leitor criança.
O ato de fantasiar é essencial ao ser humano, com efeito de torná-lo mais
capaz para as demandas naturais da sua existência. Nesse sentido, a literatura,

1
Mestre em Letras, pela Universidade Estadual do Piauí. Professor Provisório da Universidade Federal
do Piauí, atuando no curso de Graduação Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e Literatura de
Língua Portuguesa, com experiência e interesse acadêmico em Teoria Literária, principalmente nos
temas crítica literária, literatura brasileira contemporânea, literatura infantil e juvenil, leitura literária
e formação de leitores.
2
Doutora em Linguística e Letras, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Profes-
sora Adjunta IV da Universidade Estadual do Piauí, atuando no curso de Graduação Licenciatura em
Letras Português, com experiência e interesse acadêmico em Teoria Literária, principalmente nos te-
mas crítica literária, literatura infantil e juvenil, literatura piauiense e história da literatura.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

que é essencialmente criação ficcional, já é uma forma de fantasiar a respeito da


vida e do mundo, inventada pelos autores. O encontro da fantasia do escritor
com a fantasia da criança leitora é que vai possibilitar a adesão desta última ao
processo de sua emancipação, enquanto sujeito sociohistórico. Portanto, a subs-
tância subjetiva da literatura infantil, codificada por meio da linguagem em um
livro ou na contação oral, é suporte fundamental para a criança reconhecer-se
ou descobrir-se como detentora de potencial da compreensão do texto literário.
Assim, é lícito discutirmos sobre questões atinentes à literatura infan-
til, à recepção das obras pelos leitores infantis, à fantasia infantil, ao desenvol-
vimento cognitivo do indivíduo, aos interesses de leitura do leitor criança, à
relação fantasia e real na literatura infantil, além disso, aos elementos estrutu-
rais da narrativa literária para crianças, como temática, enredo, linguagem, per-
sonagens e narrador. Todos são aspectos que convergem para um itinerário pro-
fícuo no tocante a uma leitura literária que privilegia a palavra no sentido mais
estético, e não somente pedagógico, permitindo ao leitor criança uma experi-
ência mais comprometida a dar corpo e liberdade ao fantasiado, em um jogo de
conjugação com o real.

A fantasia como elemento fundante da literatura infantil

Preliminarmente, julgamos necessário apresentar alguns conceitos,


funções e discussões acerca da fantasia e do real no gênero literário infantil. Ini-
ciamos pela concepção de literatura infantil que, no âmbito da crítica especiali-
zada, atualmente, se configura mais como movimentos de convergências, do que
divergências, no tocante aos pensamentos construídos sobre o assunto, durante
décadas. A literatura infantil tende a propiciar aos seus leitores possibilidades
de interpretação do mundo. Para isso, o escritor desse gênero deve oferecer ao
leitor mirim um texto que atenda verdadeiramente à demanda existencial desse
sujeito. O conceito de literatura infantil formulado por Leonardo Arroyo, em pu-
blicação de 1968, intitulada Literatura infantil brasileira: ensaio de preliminares
para sua história e suas fontes, ecoa até os dias atuais, ressaltando que o conceito
de literatura infantil é bastante variável, havendo casos em que se baseia apenas
em critérios históricos, sociais e pedagógicos (ARROYO, 2011).
Afirma Magalhães (2001, p. 24, grifo da autora), que “a literatura infantil
não é, portanto, uma literatura de crianças e nem uma literatura sobre crianças, mas uma
literatura para crianças, cujos componentes intrínsecos devem ser adequados às exi-
gências de seu público.” Diante da criação literária, outorgada, na sua natureza,
pela manipulação do real, que habita as páginas das obras infantis, o imaginário
do leitor entrelaça-se ao texto no ato da leitura. Como atesta Lígia Cademartori, a

84
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

literatura “manifesta, através do fictício e da fantasia, um saber sobre o mundo e


oferece ao leitor um padrão para interpretá-lo.” (CADEMARTORI, 2010, p. 23).
Em geral, a literatura infantil é um sistema de obras destinadas às cri-
anças em que o adulto partilha visões de mundo, experiências e conhecimentos,
por meio de um procedimento estético, na expectativa de que os leitores do
gênero descubram através desse canal, com o auxílio da imaginação, vários
eventos existenciais que atendam à sua vivência de ser emancipado em socie-
dade. No caso deste estudo, o enfoque é a descoberta desses eventos, por parte
dos leitores específicos, em razão da presença da fantasia na narrativa, compo-
nente precípuo nesse gênero literário.
A literatura e a formação do homem3, de Antonio Candido, constitui um
texto basilar, para o entendimento da função da literatura. Candido (2002)
propõe que a literatura projeta a experiência do homem e atua na sua formação,
simultaneamente, sob a apreciação de três funções: a psicológica, a formativa e a
de conhecimento do mundo e do ser.
A função psicológica decorre da necessidade que o homem tem de fanta-
siar, de criar e vivenciar eventos imaginários, satisfazendo sua condição exis-
tencial. Em geral, a literatura atende a essa carência universal, integrando entre
as mais diversas necessidades básicas do ser humano. A ficção e a fantasia como
aspectos inerentes ao homem, participando da sua vida sob as mais diversas
formas, seja oral, impressa ou visual. Ademais, para Candido (2002), a litera-
tura é a forma mais completa para atender a necessidade de fantasia do indiví-
duo. De acordo com o autor, geralmente a fantasia se refere a uma realidade, daí
o entendimento de que a literatura tem a função de construir o vínculo entre a
fantasia e o real (CANDIDO, 2002). Desse modo, a criação literária, fruto tam-
bém da imaginação, integra e transforma os aspectos referentes à realidade. Tal-
vez a literatura atue na formação das crianças tanto quanto à instituição escolar
e a família, segundo, ainda, o mesmo autor (Id. ibid.).
A função formativa nada tem a ver com a noção convencional de caráter
pedagógico. Essa função contribui para a formação da personalidade, e não
afasta a presença do bem e do mal constituídos na literatura, assim como na
vida. A literatura não pode assumir o papel de manual de boa conduta, haja
vista que esse papel é da pedagogia oficial. A literatura transfigura o real, re-
presentando a vida no plano narrativo. Essa função tem um aspecto humaniza-
dor porque faz viver, trazendo livremente à tona a ambivalência do bem e do
mal, fator inerente do viver em sociedade.

3
O referido artigo foi apresentado por Antonio Candido na XXIV Reunião Anual da SBPC, em São
Paulo, julho de 1972, e publicado no mesmo ano pela Ciência e Cultura (n. 9, vol. 24, São Paulo, set. 1972)
(Cf. CANDIDO, 2002, p. 77).

85
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A função de conhecimento do mundo e do ser consiste em representar no


texto literário, de forma autônoma, as possíveis personalidades e o mundo ex-
terior, não obstante essas representações terem vínculo com o real, não se po-
dendo descartar que atuam sobre o real. Assim, aos leitores são oferecidas vi-
sões de mundo que podem auxiliar na sua formação existencial e na compreen-
são dos papéis que podem exercer na sociedade. Como ressalta Candido (2002,
p. 92): “o leitor [...] se sente participante de uma humanidade que é a sua e,
deste modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais profunda o
que o escritor lhe oferece como visão de realidade”.
A propósito da função da literatura infantil, acreditamos que seja a de
oferecer subsídios para uma formação do homem, no sentido conferido por An-
tonio Candido. Regina Zilberman (2003) afirma que a literatura infantil pro-
porciona aos seus leitores uma concepção autônoma e, consequentemente, crí-
tica, do mundo que os cerca. Em razão disso, a autora (Id. ibid., p. 29) conclui
que a literatura “dá conta de uma tarefa [...] – a de ‘conhecimento do mundo e
do ser’, como sugere Antonio Candido, o que representa um acesso à circuns-
tância individual por intermédio da realidade criada pela fantasia do escritor.”
Martha (2011) também se alinha ao pensamento do crítico literário An-
tonio Candido, quanto à realização do processo de humanização por meio da
literatura, que se dá através da imaginação e do lúdico, construídos pelo homem
e para ele próprio, numa tentativa de síntese do real, oferecendo uma visão de
mundo ao leitor, para que ele possa atuar como sujeito autônomo e ativo na
sociedade em que vive.
Ainda nesse sentido, Zilberman (2003), defende que o livro para cri-
anças funciona como um suporte que atenderá às suas necessidades existen-
ciais, diante de uma história, fazendo referências ao real, e da linguagem, medi-
ando a relação entre a criança e o mundo, cumprindo uma função de conheci-
mento, resultando no desenvolvimento linguístico, na formação da compreen-
são do fictício, na função específica da fantasia, na credulidade da história e na
aquisição de saber. Nessa perspectiva, a literatura infantil atua na vida do leitor
não somente como veículo de transmissão de informações e valores morais, mas
como veículo que capacita o sujeito no desdobramento de suas habilidades in-
telectuais, alargando seus horizontes frente à vivência que ele tem no mundo.
Góes (2010), na discussão sobre algumas questões básicas da literatura
infantil, entre elas, a função exercida no público do gênero, pontua que “a lei-
tura reflexiva, a aquisição do vocabulário, a aquisição de conceitos, assim como
as preferências, o gosto pela leitura, a escolha de valores são adquiridos através
da literatura.” Para a autora suas funções são amplas, abrangendo vários cam-
pos na formação dos leitores crianças e jovens. A autora ainda acrescenta que a

86
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

função primordial da literatura para crianças é de caráter estético-formativo,


educando a sensibilidade poética dos leitores (Id. Ibid.).
A emancipação4, conceito oriundo da Estética da Recepção (JAUSS,
1994), defendida por Regina Zilberman e Lígia Magalhães, em sua obra Litera-
tura infantil: autoritarismo e emancipação, pode ser apontada como função essencial
na formação do sujeito leitor do gênero e, por conseguinte, na sua atitude crí-
tica assumida no mundo. Conforme as autoras mencionadas,

O exame dos elementos formativos em textos destinados à criança coloca uma


questão que transcende o gênero da literatura infantil, abrangendo o problema
da função social da arte. Hans Robert Jauss considera a função social determi-
nante da literatura a emancipação do homem de todos os laços naturais, religio-
sos e sociais que o impedem de superar os conceitos fixos de sua situação histó-
rica (MAGALHÃES, In: ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1984, p. 53-54).

Assim, na literatura infantil, ainda que esta possa transmitir algum co-
nhecimento aos leitores, o que prepondera é o valor formativo e não o valor di-
dático. A obra infantil deve trazer ao leitor discussões, novos conceitos, abrir
um diálogo permanente com o seu destinatário. O texto deve provocar também
o pensamento crítico-reflexivo, validando mudanças existenciais no leitor mi-
rim. O caráter emancipatório da literatura para crianças, que se realiza, por
meio de novas perspectivas de interpretação, reflete nas experiências e conse-
quentes ações desse mesmo leitor (MAGALHÃES, In: ZILBERMAN; MAGA-
LHÃES, 1984). As representações possíveis na esfera literária assumem valor
relevante para o leitor quando a experiência com o texto repercute na compre-
ensão de mundo e num posicionamento ativo e consciente perante o real.
O reconhecimento da criança como um ser diferente do adulto se deu
no século XVIII, quando a burguesia ascendeu socialmente e a família unicelu-
lar foi considerada como projeto ideal para a organização de uma sociedade.
Isso teve reflexos na nova forma de educar a criança, passando a escola a aten-
der às propostas da estrutura social burguesa. Com a nova ordem social, em que
às crianças eram repassados valores morais que as tornariam aptas a viver o
ideário burguês, a psicologia une-se à pedagogia, ligando a família à escola, daí
surgindo a literatura infantil. Dessa forma, se explica a relação da literatura in-
fantil com fatores pedagógicos na sua gênese, conforme Martha (2011).
Contudo, o valor conferido à criança não é igualitário nas distintas cama-
das sociais. Na classe da burguesia, a criança tinha maior valorização, enquanto
que, na classe operária, era menor. A criança advinda da burguesia foi isolada da

4
Segundo Zilberman (1989), o termo “emancipação” designa “uma obra renovadora, [que], ao desafiar
um código vigente, oferece ao leitor novas dimensões existenciais. Nesta medida, libera-os dos limites
cotidianos e da dominação dos aparelhos institucionais” (ZILBERMAN, 1989, p. 112).

87
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

realidade exterior, já a criança do proletariado, geralmente era cuidada pelo poder


público, quando os pais, ilegítimos, na maioria das vezes, a abandonavam. Nesse
cenário, a escola atua na vida das crianças de forma distinta5. Dessa forma, o sur-
gimento da literatura infantil, decorrido do novo status da criança, age significati-
vamente na sua vida, funcionando como elo com o mundo (MARTHA, 2011).
Assim, a emergência da literatura infantil, associada à pedagogia, com
práticas políticas, implicou o seu estatuto artístico diminuído, não sendo reco-
nhecida pelos manuais de literatura no seu valor estético. Todavia, a especifici-
dade do gênero requer uma maior atenção, em virtude do seu destinatário, de
acordo com Zilberman (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1984).
A noção de infância como uma fase especial da existência do indivíduo
é uma construção sociohistórica que foi se consolidando no Ocidente, a partir
do final da Idade Média, acompanhando as drásticas mudanças ocorridas na Eu-
ropa, com a ascensão do segmento burguês. Na obra História social da criança e da
família (1981), Ariès muito contribuiu para que fosse difundida a ideia de que a
infância é fruto da pedagogia burguesa. Por outro lado, estudos de Psicologia,
Psicanálise e Sociologia também colaboraram para solidificação do conceito de
infância como uma etapa existencial em que o indivíduo ainda se encontra em
desenvolvimento, advindo daí a necessidade de submetê-lo à educação. Como
afirma Piaget (2010, p. 138): “a infância é uma etapa biologicamente útil, cujo
significado é o de uma adaptação progressiva ao meio físico e social”.
A literatura infantil possui como destinatário um sujeito que constrói
mundos em que se misturam fantasia e realidade. Por isso, o que perdurou como
paradigma, por muito tempo, na literatura infantil, foram os contos de fadas,
cuja publicação foi iniciada, no século XVII, pelo francês Charles Perrault, num
trabalho de adaptação de narrativas folclóricas, conforme Ligia Cademartori
(2010). Igualmente relevante, em termos de contribuição para a formação de
uma literatura infantil, no século XIX, surge a obra dos irmãos Grimm 6, Jacob
e Wilhelm, cuja produção também é resultado da transformação de contos fol-
clóricos da tradição oral, que não eram, no passado, dirigidos, especificamente,
ao público infantil. Os irmãos Grimm abrandaram traços de erotismo e de vio-
lência presentes nesses contos, visando a uma transmissão de moralidade, se-

5
“Toda a complexidade da vida foi modificada pelas diferenças do tratamento escolar da criança bur-
guesa e da criança do povo” (ARIÈS, 1981, p. 194).
6
“A coletânea dos irmãos Grimm, constituída de contos folclóricos, mais conhecidos como contos de
fadas, tornou-se a primeira literatura das crianças burguesas. A publicação desses contos marca o início
da adaptação na literatura infantil, pois a passagem da oralidade à escrita implicou não apenas a mu-
dança de destinatário, mas também as alterações quanto à função exercida pelos contos em relação ao
público” (MAGALHÃES, 2001, p. 26, grifo da autora).

88
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

gundo Ceccantini (2011). Outrossim, é válido ressaltar que as versões de Per-


rault e dos irmãos Grimm têm visões de mundo distintas entre si, bem como
das matrizes orais, fontes precípuas para a produção dos contos, seja do nobre
francês, seja da dupla alemã. Os elementos acrescentados ou retirados em am-
bas as narrativas produzidas por eles correspondiam às visões de mundo que
os seus respectivos contextos socioculturais pretendiam transmitir aos leitores
do gênero. A esse respeito, de acordo com Ceccantini (2011, p. 31), “em geral, as
alterações feitas buscam atender aos valores associados à nova concepção de
infância e de família que se consolida no Ocidente e mesmo à circulação escolar
que se dá à maior parte da produção literária voltada às crianças.”
Em se tratando de fantasia e real, é necessário conceituar esses aspec-
tos para o entendimento deste estudo. A fantasia, segundo estudos publicados,
sobretudo na área da psicologia, consiste num processo psíquico comum aos
seres humanos, que faculta a possibilidade de cada indivíduo experimentar
eventos correspondentes às suas demandas existenciais, por meio da i magina-
ção, enquanto sujeito inserido numa determinada sociedade. A vida social, ou
até mesmo as situações de solidão, podem propiciar ao homem o seu encontro
com contextos imaginários, mas que não se realizam na concretude da sua vida.
Portanto, essa esfera significativa, de ordem mental do ser humano, consiste
numa simulação de fatos que geram expectativas por quem as conecta com o
mundo real. Em contrapartida, o real consiste em vivências concretas que a hu-
manidade, também, empreende, para a realização de um construto material que
se organiza de forma natural ou sob a intervenção do homem na sociedade.
Os estudos de Sigmund Freud (1996) acerca da fantasia, em Escritores
criativos e devaneios, dão conta de três sujeitos sociais que fantasiam, são eles: o
escritor, o louco e a criança. O escritor tem a consciência que está fantasiando,
sabendo separar o mundo da fantasia do mundo da realidade. Segundo Freud
(1996), ao se tratar, porém, do mundo imaginativo do escritor, a fantasia traz
efeitos relevantes para arte literária, transformando temas que, no mundo real,
seriam penosos para os indivíduos, em fonte de prazer para os leitores.
Ainda nesse mesmo sentido de que, na literatura, se misturam fantasia
e realidade, Freud afirma que o autor de obra literária é como uma criança brin-
cando: “Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual
investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação
nítida entre o mesmo e a realidade” (Ibid., p. 135-136).
O louco, segundo Freud (1996), vítima de doença nervosa, não conse-
gue guardar suas fantasias, vivenciando-as em sociedade e não logrando o re-
torno à realidade, em virtude da sua condição mental abalada. Por último, a
criança, sujeito que interessa a este estudo, investe o seu tempo nas atividades
do brincar, utilizando brinquedos ou jogos, de maneira intensa, realizando tal

89
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ação com muita seriedade. O mundo da brincadeira, que tem na fantasia seu
elemento fundamental, é percebido pela criança como distinto da realidade. A
criança faz uma ligação dos objetos e eventos imaginados com a materialidade
visível e que pode ser tocada no mundo real. De acordo com Freud,

a criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os obje-


tos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que
chamamos de devaneios. Acredito que a maioria das pessoas construa fantasias
em algum período de suas vidas” (Ibid., p. 136, grifo do autor).

O fantasiar da criança é feito abertamente, podendo ser observado no


seu brincar. Já a fantasia do adulto é menos observável, podendo ser guardada em
segredo, numa preservação de um bem íntimo. Quando a criança brinca, na ver-
dade está realizando desejos. Assim, o desejo de ser adulto prevalece nas ativida-
des lúdicas que a criança realiza, auxiliando no seu desenvolvimento. A criança
pode atuar no mundo real, fantasiando, enquanto o adulto, por normas sociais,
não pode expressar abertamente suas fantasias (FREUD, op. cit.). Por isso, ele
oculta suas fantasias mais íntimas, a criança, porém, sente a necessidade de ex-
pressá-las, motivadas pelo desejo de ser adulto, imitando-o em suas brincadeiras.
Nas palavras do autor, “as forças motivadoras das fantasias são os desejos insa-
tisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade
insatisfatória” (Ibid., p. 137). Nesses termos, ainda podemos acrescentar que o
desejo “utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do pas-
sado, um quadro do futuro” (Ibid., p. 139). Isso demonstra a relação da fantasia
com os três períodos de existência do ser humano, entrelaçados pelo desejo.
Jacqueline Held, em O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica
(1980), esclarece que os desejos da criança correspondem ao seu universo infantil,
com preocupações ou conflitos compatíveis à sua necessidade existencial. Os de-
sejos ainda podem surgir da preocupação com o outro, diante da forma como este
é tratado na vida social.
Em discussão sobre a capacidade da criança em fantasiar, Held (1980)
esclarece que, ao contrário do pensamento de senso comum, a ficção literária é
necessária ao desenvolvimento da inteligência e da imaginação do pequeno lei-
tor, distanciando a ideia de que a ficção reprime a construção do real. É neces-
sário entendermos que a criança também aprende a construir novas possibili-
dades de resoluções, a partir da utilização de brinquedos ou jogos. Assim, po-
demos estender as atividades do exercício de inteligência e de imaginação à di-
mensão do texto literário, provocando no leitor mirim uma ação mais racional
e criativa diante dos desafios encontrados na vida. Como afirma a autora (Id.
ibid., p. 48), “[...] o despertar da inteligência e o de imaginação caminham jun-
tos e constantemente se enriquecem”. A criança torna-se mais lúcida e flexível

90
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

no seu próprio ato de lhe dar com o real e o imaginário, a partir da ficção que o
adulto propõe a ela. O contato da criança com narrativas fantásticas pode ace-
lerar o desenvolvimento da relação entre real e imaginário.

Desenvolvimento cognitivo do indivíduo e fantasia

Diante do contexto de desenvolvimento existencial da criança e do


adolescente, se faz necessário mostrar como ocorre o processo evolutivo da in-
teligência dos indivíduos, no intuito de entender a relação que o leitor mirim
estabelece com a fantasia presente na literatura e como através do elemento
fantástico pode se dar a aquisição de conhecimento. Considerando a teoria pi-
agetiana sobre o desenvolvimento cognitivo, especificamente o pensamento in-
fantil, verificamos que o sujeito em estudo percebe a realidade de forma distinta
do adulto. Segundo Jean Piaget (1896-1980), o desenvolvimento da inteligência
direciona-se a um equilíbrio entre assimilação e acomodação 7, visando obter
uma adaptação do indivíduo ao mundo em que vive (PIAGET, 2003).
Piaget postula que o desenvolvimento psíquico da criança passa por
quatro estágios, correspondendo cada um deles a determinado tipo de inteli-
gência, que, por sua vez, corresponde também a aquisição de determinadas
competências e habilidades. Essas fases são elencadas, como: sensório-motor,
pré-operacional, operacional concreto e operacional formal. 8
O sensório-motor é um estágio compreendido do nascimento aos dois
anos de idade, aproximadamente, em que a criança não possui a função repre-
sentativa, ou seja, ela não consegue evocar o que está ausente do meio exterior.
Nessa fase, a criança ainda não se apropriou da linguagem, portanto não conse-
gue compreender histórias.
O estágio pré-operacional abrange, mais ou menos, o período de dois a
sete anos de idade, quando a criança inicia o processo de aquisição da lingua-
gem. É nessa fase que o indivíduo já começa a representar o mundo, através da
função simbólica. Com a aquisição da linguagem e da função simbólica, revela-
se também o egocentrismo, que já se encontrava latente desde o período sensó-
rio-motor. O egocentrismo faz parte do desenvolvimento cognitivo e consiste

7
“A assimilação e a acomodação são, portanto, os dois polos de uma interação entre o organismo e o
meio que é a condição para qualquer funcionamento biológico e intelectual e uma tal interação supõe,
já de início, um equilíbrio entre as duas tendências dos polos contrários” (PIAGET, 2003, p. 360).
8
Sobre as fases de desenvolvimento cognitivo elaboradas por Jean Piaget, ver: PIAGET, Jean. Seis estudos
de psicologia. 25. ed. Tradução: Maria Alice Magalhães D’Amorim e Paulo Sérgio Lima Silva. Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária, 2012; e também PIAGET, Jean. A construção do real na criança. 3. ed. Tradu-
ção: Ramon Américo Vasques. São Paulo: Ática, 2003. (Série Fundamentos).

91
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

na assimilação do universo como se tudo existisse em função do “eu” individual,


ou seja, a criança acredita que tudo foi feito para ela ou por causa dela.
A função simbólica se expressa pela imitação retardada, imagem men-
tal, desenho, linguagem e jogo simbólico. Vale ressaltar que a atividade da lin-
guagem e do jogo simbólico são essenciais para a compreensão da relação da
criança com a literatura infantil. A linguagem possibilita ao sujeito evocar ob-
jetos que estão ausentes no mundo exterior percebido por ele, ou seja, recons-
tituindo o passado e antecipando as ações futuras, ainda não executadas. As-
sim, como afirma Piaget (2012, p. 20): “a linguagem é um veículo de conceitos e
noções que pertence a todos e reforça o pensamento individual com um vasto
sistema de pensamento coletivo. Neste, a criança mergulha logo que maneja a
palavra”. O jogo simbólico é o pensamento egocêntrico, sendo superado so-
mente pela fantasia e pelo sonho. Nessa atividade, a criança recria a realidade
de acordo com as necessidades existenciais. Para Piaget,

sua função consiste em satisfazer o eu por meio de uma transformação do real


em função dos desejos: a criança que brinca de boneca refaz sua própria vida,
corrigindo-a à sua maneira, e revive todos os prazeres ou conflitos, resolvendo-
os, compensando-os, ou seja, completando a realidade através da ficção (PI-
AGET, 2012, p. 21).

O operacional concreto é um estágio em que o pensamento egocêntrico


ainda se encontra muito presente, começando a desaparecer a partir dos onze
anos, aproximadamente. Nesse período, a criança possui uma imagem mental
das suas ações, além de conseguir operar com objetos tangíveis e raciocinar com
uma certa lógica.
O estágio operacional formal funciona a partir dos doze anos, quando
há uma diminuição gradativa do egocentrismo, tendendo a desaparecer na fase
adulta. Do plano da manipulação concreta ao plano das ideias, as operações do
pensamento formal encaminham-se às várias formas de resolver questões, que,
na fase anterior, o indivíduo não teria capacidade de apontar possíveis soluções.
Assim, nesse estágio o pensamento atinge um patamar que é possível construir
reflexões, conjecturas e hipóteses acerca da realidade.
A respeito do egocentrismo, concordamos com Magalhães (2001, p. 39)
quando afirma tratar-se “[...] de uma constante no pensamento infantil. Por ou-
tro lado, o egocentrismo do adolescente já não é uma decorrência da apreensão
deformada do real, mas uma manifestação de sua vontade de reformar a socie-
dade em que vive”. Isso significa que até a adolescência o egocentrismo se ma-
nifesta de maneira inconsciente, enquanto no período das operações formais o
indivíduo assume conscientemente uma postura egocêntrica.

92
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Outro pensador acerca do desenvolvimento cognitivo, o russo Lev Se-


menovich Vygotsky (1896-1934) discorda de Piaget com relação ao egocen-
trismo, que, na concepção de Vygotsky, não desaparece numa fase mais avan-
çada do desenvolvimento, pois, para este teórico, o desenvolvimento do pensa-
mento parte do social para o individual, e não do individual para o socializado
(VYGOTSKY, 1989). Contudo, Vygotsky reconhece o egocentrismo como etapa
do desenvolvimento da inteligência humana. A sua crítica a Piaget parte do fato
de que este não considerou o contexto social das crianças envolvidas na sua
investigação, de modo que seria impossível generalizar as suas observações so-
bre o desenvolvimento genético.
O teórico russo, ao tratar da fantasia em sua obra Imaginação e criação na
infância, começa por desfazer a ideia comum de separação entre fantasia e reali-
dade, afirmando que a imaginação não é meramente uma atividade despreten-
siosa da mente, mas se trata de uma função vital para a existência humana (VI-
GOTSKI, 2009). Diferentemente de Piaget, Vygotsky (2009) compreende a fan-
tasia como fruto da realidade, combinada com a experiência anterior do indiví-
duo, isto é, a fantasia não seria simplesmente produto do egocentrismo, mas da
experiência acumulada, sendo tanto mais rica a fantasia quanto mais rica for a
experiência do indivíduo com o mundo.
Não obstante, as divergências entre Piaget e Vygotsky acerca da gênese
da fantasia, ambos reconhecem a sua importância no desenvolvimento cogni-
tivo, de modo que a leitura de obras de literatura infantil pode ser uma ativi-
dade enriquecedora da experiência dos leitores crianças, ou segundo a perspec-
tiva piagetiana, uma forma egocêntrica de apreensão do real. Em ambas con-
cepções, a leitura de textos literários pode ser entendida como emancipação do
leitor, no sentido conferido por Jauss, quando este enfatiza a função da litera-
tura na libertação do leitor: “a experiência da leitura logra libertá-lo das opres-
sões e dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova
percepção das coisas.” (JAUSS, 1994, p. 52).

Os interesses e a formação do leitor infantil

A relação entre fantasia e real, presente no texto literário infantil, pode


estabelecer relações significativas para a formação do leitor no que diz respeito
às normas literárias e sociais, conforme podemos depreender das teses de Jauss

93
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

(1994), sobretudo, no que tange à formação do horizonte de expectativas (se-


gunda tese)9 e a relação entre literatura e vida social (sétima tese)10.
Podemos considerar algumas das categorias de leitor infantil, postula-
das por Nelly Novaes Coelho (2006), como pré-leitor (dos 2 aos 5 anos), leitor
iniciante (a partir dos 6/7 anos), leitor em processo (a partir dos 8/9 anos), leitor
fluente (a partir dos 10/11 anos) e leitor crítico (a partir dos 12/13 anos), haja vista
que, para cada fase, há um nível de compreensão correspondente a cada leito r.
Na fase pré-leitor constata-se o primeiro contato da criança com os livros, ante-
rior ao processo de alfabetização, “quando o objeto-livro e as imagens em situ-
ação começam a ser descobertas”; na fase leitor iniciante começa a aprendizagem
da leitura, em que inicia “o processo de socialização e de racionalização da rea-
lidade com que a criança entra em contato”; na fase leitor em processo há um “do-
mínio relativo do mecanismo da leitura e de agudização do interesse pelo co-
nhecimento das coisas; com o pensamento lógico se organizando em formas
concretas que permitem as operações mentais”; na fase leitor fluente tem-se uma
“consolidação do domínio da leitura e da compreensão do mundo expresso no
livro”; e na fase leitor crítico surge um “total domínio da leitura, da linguagem
escrita, capacidade de reflexão em maior profundidade, podendo ir mais fundo
no texto e atingir a visão de mundo ali presente” (COELHO, 2006, p. 11-12).
No tocante ainda às categorias de leitor, apresentamos a classificação de
Vera Teixeira de Aguiar (1985, p. 90-91), em que a autora, seguindo a proposta de
Richard Bamberger (1995, p. 33-35), amplia as fases de leitura, relacionando-as
com o desenvolvimento psicológico da criança e seus interesses de leitura Na pri-
meira fase, denominada por Bamberger de idade dos livros de gravuras e dos versos
infantis (de 2 a 5 ou 6 anos), a autora afirma: “é a fase de mentalidade mágica, em
que a criança faz pouca diferença entre o mundo externo e o interno. A literatura
vai ajudá-la a fazer a distinção entre o ‘eu’ e o mundo, através dos livros de gravuras
de objetos do seu meio.” (Ibid., p. 91). À segunda fase, chamada idade do conto de
fadas (5 a 8 ou 9 anos) (BAMBERGER, op. cit., p. 34), Aguiar (op. cit., p. 91) acres-
centa: “a criança prefere a leitura do realismo mágico: contos de fadas, lendas, mi-
tos, fábulas, que podem oferecer mudança imaginativa, animismo, maravilhoso”, e
voltando a Bamberger (Ibid., p. 34) este diz: “[...] nessa fase do seu desenvolvi-

9
Horizonte de expectativas pode ser entendido como um “saber prévio” do leitor com base no sistema
de normas vigentes na sociedade, “com base no qual o novo de que tomamos conhecimento faz-se ex-
perienciável, ou seja, legível por assim dizer, num contexto experiencial”. (Ver: JAUSS, 1994, p. 28).
10
Segundo Jauss, o sistema de normas em que se baseia o horizonte de expectativas não é somente
estético, mas também social. “A relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto na esfera sen-
sorial, como pressão para a percepção estética, quanto também na esfera ética, como desafio à reflexão
moral”. (Ver: JAUSS, 1994, p. 53).

94
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

mento a criança é essencialmente suscetível à fantasia”. Sobre a terceira fase, tra-


tada como idade da história ambiental e da leitura ‘factual’ (de 9 a 12 anos), consi-
derada intermediária, Aguiar (Ibid., p. 91) comenta: “a criança começa a orientar-
se no mundo concreto. Subsiste, ainda, o interesse pela leitura maravilhosa, mas
ela quer desvendar o meio aprendendo com os livros, através de histórias e acon-
tecimentos vivos”. A quarta fase, compreende a idade da história de aventuras ou
a fase de leitura apsicológica (12 a 14 anos). Para Aguiar (Ibid., p. 91):

é o período da pré-adolescência, em que a criança toma consciência da própria


personalidade. É a etapa do desenvolvimento dos processos agressivos e da for-
mação de grupos. Os interesses de leitura dirigem-se a enredos sensacionalistas,
aventuras vividas por gangues, personagens diabólicos, histórias sentimentais.

A quinta fase, denominada de anos de maturidade ou o “desenvolvi-


mento da esfera estético-literária da leitura” (de 14 a 17 anos) (BAMBERGER,
op. cit., p. 35), é descrita por Aguiar (Ibid., p. 91) nos seguintes termos:

é a fase em que o adolescente descobre o mundo interior e o mundo dos valores.


As preferências de leitura orientam-se para aventuras de conteúdo mais intelec-
tual, viagens, romances históricos e biográficos, histórias de amor, literatura en-
gajada, temas relacionados com interesses vocacionais.

A respeito das fases de leitura que os autores citados assinalam, obser-


vamos que a fantasia se mantém no decorrer do desenvolvimento do indivíduo,
atenuando-se a partir da adolescência, o que justifica o interesse dos leitores
crianças e jovens pelas narrativas em que o elemento fantástico se faz presente.
A seguir, trataremos da fantasia na literatura infantil como recurso fundamen-
tal na constituição desse gênero.

A relação fantasia e real na literatura infantil

O elemento fantástico, como já mencionamos, tem sido a tônica nas


narrativas infantis, repercutindo em várias culturas, durante séculos. Desde o
conto de fadas, o interesse de crianças tem sido atraído pela fantasia, ainda que
esta seja utilizada, muitas vezes, para a transmissão de valores moralizantes.
Isso constitui, na visão de Zilberman, uma traição ao leitor, devido ao fato de
que essa produção para o público mirim expressa “os interesses dos mais ve-
lhos, e não o universo infantil” (ZILBERMAN, 2003, p. 65).
Considerando esse papel de organização da sociedade, por meio de va-
lores e hábitos sociais, o destinatário da literatura infantil pode se tornar tão
somente um receptor da circulação de ideologias, mas também um ser que cons-
trói a sua própria visão de mundo através da visão do adulto. A partir dessa

95
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

segunda perspectiva é que podemos investigar a relação fantasia e real nas


obras literárias para crianças, por acreditarmos, como Lajolo, que:

É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes


imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dos
quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus
desejos, suas utopias (LAJOLO, 2006, p. 106).

O emergencial aparecimento da literatura infantil é explicado pelo fato


histórico do contexto social no século XVIII. A constituição desse gênero se dá
durante o período em que as transformações na sociedade desencadearam re-
percussões no âmbito artístico. O surgimento da literatura infantil “tem carac-
terísticas próprias, pois decorre da ascensão da família burguesa, do novo status
concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola”, conforme Zil-
berman (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1984, p. 3).
Assim, a literatura infantil teria uma finalidade didática, associando-
se com a Pedagogia, pois as histórias foram adotadas como instrumento da edu-
cação. A conscientização da classe burguesa europeia de que a criança era um
ser frágil, cuja psiquê era diferente do psiquismo do adulto, provoca o surgi-
mento da literatura infantil, com finalidade pedagógica, numa tentativa de con-
trolar a criança, tornando-a instrumento dos interesses sociais dos adultos.
Ao contrário do que os idealizadores da literatura infantil acreditavam,
as pesquisas na área, atualmente, apontam que é a vivência que a criança tem no
mundo que deve ser tomada como base para a existência do gênero. Para Zilber-
man (2003), baseada em Kurt Werner Peukert, a literatura infantil deve ser cen-
trada na criança, visto que, pela falta de vivência existencial, ela necessita de
algo que preencha o espaço vazio das suas experiências no mundo. Desse modo,
a literatura infantil pode oferecer à criança um suporte fora de si para organizar
as suas vivências, através de uma história que sistematiza as relações com o real,
bem como uma linguagem que faz a mediação entre o leitor e o mundo.
O encontro da criança com a fantasia na literatura permite que ela te-
nha acesso ao seu mundo interior, conheça seus sentimentos, medos e conflitos,
propiciando um equilíbrio para o seu crescimento existencial. Quando a cri-
ança lê, se projeta na narrativa, por meio da imaginação, reconhecendo suas di-
ficuldades e emoções e, simultaneamente, se dá conta de que é participante do
mundo real, conforme a análise de Bruno Bettelheim (2007). Benjamin (2002,
p. 105), igualmente, entende que: “a criança mistura-se com as personagens de
maneira muito mais íntima do que o adulto”. Por motivos do desenvolvimento
cognitivo, a fantasia, nesse caso, é mais apropriada ao público infantil . E ainda
sobre a visão do livro infantil, o autor (Ibid., p. 69) crê que “não são as coisas
que saltam das páginas em direção à criança que as vai imaginando – a própria

96
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

criança penetra nas coisas durante o contemplar [...]”. Esse movimento ficcio-
nal entre o leitor e a obra, que, a priori, tem uma função de entreter, pode ainda
assumir a função de propiciar conhecimento, atendendo a uma das necessida-
des das crianças.
Desde os contos folclóricos que a fantasia se faz presente nas narrati-
vas populares, sejam elas orais ou escritas, repercutindo entre ouvintes e leito-
res infantis dos mais diversos países. Nesse inventário, os mais conhecidos são
os contos de fadas, que povoam de forma destacada a imaginação das crianças
em todo o Ocidente. Na trajetória das produções literárias destinadas às crian-
ças, a fantasia é um elemento constante em muitas narrativas, das mais antigas,
de tempos primordiais, às contemporâneas. Parece que o fantasioso é um as-
pecto que atrai um maior número de leitores para o mundo ficcional.
A partir do reconhecimento mundial das adaptações de narrativas fol-
clóricas realizadas por Charles Perrault, passando pela adaptação desse mesmo
tipo de narrativas, feitas pelos irmãos Grimm e, expressivamente, pelas criações
literárias para crianças, de Monteiro Lobato, é que, na década de 1970, muitos
escritores e escritoras do Brasil, na esteira do conto de fadas, começam a pro-
duzir uma nova literatura infantil11, preservando a fantasia como elemento com-
posicional de suas narrativas12.
O escritor Monteiro Lobato promoveu a fusão entre o real e o imaginá-
rio, nas suas narrativas infantis, elegendo o território do sítio do Picapau Ama-
relo como lugar mágico em que seres e fatos fantásticos se misturam ao cotidi-
ano das personagens (COELHO, 2010). Em toda a sua produção literária desti-
nada ao público infantil, o elemento fantasia é ingrediente imprescindível, sem,
contudo, perder a referência ao real. Quanto a isso, destacamos algumas obras
do autor, como Memórias da Emília (1994), Viagem ao céu (1995), O picapau amarelo
(2005), A reforma da natureza (2010), entre tantas outras. As narrativas infantis
de Lobato tornaram-se modelo de criação literária para muitos escritores que o
sucederam. Assim, a fantasia reina em quase todo o inventário da literatura in-
fantil brasileira. A esse respeito, na produção literária destinada às crianças,
situamos o tema literatura infantil com Coelho que afirma que a literatura
“funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possí-
vel/impossível realização...” (2000, p. 27).

11
No Brasil, ocorre uma explosão de criatividade nos anos de 1970 na literatura infantil, denominada
“boom da literatura infantil”, em que passa a vigorar na produção uma nova linguagem para seduzir o
público do gênero, provocando, neste, muitos questionamentos e reflexões, diante da vida social que o
cerca e, consequentemente, preparando-o para um porvir de novo mundo (Cf. COELHO, 2006, p. 52).
12
A tendência a uma literatura infantil fantástica é predominante entre autores brasileiros, não obs-
tante a existência de um programa realista adotado por autores em torno do editor André Carvalho,
que, através da Coleção do Pinto, da editora Comunicação, de Belo Horizonte, publicou, nas décadas
de 1970 e 1980, várias narrativas realistas (Cf. ZILBERMAN, 2003, p. 195-203).

97
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

As crianças têm uma maior sinceridade quanto ao gosto pelas obras


infantis. Elas pouco seguem o cânone, muito menos, as recomendações de d e-
terminados manuais, que sob o rótulo de “boa leitura” buscam impingir, ao pú-
blico mirim, a escolha feita pelo adulto. A criança vai ao encontro de uma obra
que toque sua personalidade em formação (CORSO; CORSO, 2011). E essa for-
mação individual implica uma ação que pode ter repercussões na vida social.
Já que o caráter lúdico da fantasia na literatura infantil tem reverbera-
ções na vida diária da criança, compartilhamos do entendimento de Góes (2010,
p. 71), que contribui com a seguinte afirmação:

a dimensão lúdica aberta pela literatura permite ao receptor, criança, jovem ou


adulto, a livre reflexão e posterior ação sobre a realidade e uma atitude espon-
tânea para entrar e fazer parte do universo criado pela palavra literária. Nessa
perspectiva de liberdade, importa colocar o quanto a literatura, especifica-
mente a Literatura para Crianças e Jovens, concorre para a formação desse ser
em desenvolvimento, pelo fascínio e encantamento de transitar entre a reali-
dade e a fantasia e, como no jogo, propiciar uma “separação espacial em relação
à vida cotidiana”.

Assim, a respeito da integração entre a fantasia e o real na narrativa


dirigida às crianças, podemos apreender que o destinatário conseguirá se reco-
nhecer, para, em seguida, vislumbrar uma provável constituição da sua gênese
humana, a fim de se tornar partícipe do processo de conhecimento do mundo.
Partindo desses pressupostos, que nos orientam quanto à compreen-
são sobre o papel da fantasia na gênese da literatura infantil e também como
elemento relevante no desenvolvimento cognitivo do indivíduo, a seguir, apre-
sentamos os fatores estruturantes da narrativa literária, notadamente no âm-
bito do gênero em questão, que servirão de fundamento à análise da fantasia na
literatura infantil.

A temática na literatura para crianças

O livro destinado para crianças, segundo mostram as pesquisas13, geral-


mente contém o elemento fantasia, para que possa contribuir para o desenvolvi-
mento cognitivo dos seus leitores, bem como promover, por meio dos elementos
da narrativa (temática, enredo, linguagem, personagem e voz do narrador), possí-

13
Ver a esse respeito: COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000; JESUALDO. A literatura infantil. Tradução James Amado. São Paulo: Cultrix, 1993; ZIL-
BERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. São Paulo: Global, 2003; ZILBERMAN, Regina;
MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2. ed. São Paulo:
Ática, 1984. (Ensaios, 82).

98
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

veis situações ficcionais que, de alguma forma, trarão equilíbrio interior e maturi-
dade psicológica. Assim, ajudará o seu público a assimilar os valores socioculturais
do meio e também a construir conhecimentos para a sua vida futura. Nessa pers-
pectiva, o texto literário infantil deve apresentar assuntos, forma narrativa, perso-
nagem e estilo, em que privilegiem a capacidade de compreensão e interesses da
criança, ou seja, devem estar relacionados com a condição infantil.
Zilberman (2003), fundamentada em Dieter Richter e Johannes Mer-
kel, lembra que o leitor infantil busca na literatura a emancipação, e não se sa-
tisfaz apenas com o seu caráter compensatório. Não podemos focar o entendi-
mento sobre uma literatura infantil que somente demonstre exemplaridade ao
leitor, mas é importante que essa literatura transfira visões de mundo que pos-
sam formar a sua personalidade.
Seguindo o que podem preconizar os contos de fadas, na narrativa in-
fantil do século XX e XXI, a fantasia promove esse mesmo desenvolvimento no
leitor. Esse mundo ficcional apresentado ao público infantil traz à tona assun-
tos que têm relação ao mundo real, desde a manutenção da estrutura familiar à
denúncia do desmatamento das florestas.
A fantasia imbricada com a realidade, por exemplo, propicia uma pro-
ximidade maior às temáticas que podem ser vivenciadas por qualquer leitor em
processo de amadurecimento da sua psiquê. Carvalho (2011, p. 38) nos alerta
sobre o aspecto da temática que:

os assuntos abordados, enfim, são de natureza múltipla, centrados em questões


objetivas ou subjetivas, tratando da realidade humana como um todo. Deve-se,
no entanto, ter o cuidado para que o tratamento ficcional dado a esses conteúdos
não se limite a focalizar o conjunto de normas em vigor, mas leve o leitor infantil
à compreensão do contexto social em que está inserido por meio de um espaço
aberto para a reflexão crítica da sociedade.

A temática na literatura infantil deve ir ao encontro das necessidades


fundamentais da criança. De acordo com o desenvolvimento psicológico e inte-
lectual do leitor em questão, a temática deve facilitar, de forma progressiva, a
aproximação da criança ao mundo do adulto, construindo uma personalidade
apta ao mundo social, preparada para enfrentar as exigências que a aguardam na
vida adulta (GÓES, 2010). Podemos inferir que a fantasia, como elemento pro-
piciador desse desenvolvimento existencial da criança, atende a um construto
humano esperado para atitudes reflexivas e críticas à sua vida presente e futura.

99
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O enredo na literatura para crianças

O leitor infantil requer um enredo que seja adequado ao seu nível de


assimilação da realidade. Desse modo, o enredo, em geral, apresenta narrativas
dinâmicas, com conteúdos diversos, para que as crianças se reconheçam e/ou
ampliem o conhecimento de mundo. Quanto ao dinamismo do texto, Aguiar
(1985, p. 89) orienta que os recursos de “flash-backs ou longas descrições, con-
ceitos morais e explicações ou justificativas do autor” atrapalham a ação narra-
tiva, transmitindo uma certa complexidade e, por conseguinte, afastando esses
leitores. Isso acontece porque, naturalmente, são leitores em processo de ama-
durecimento no ato de ler e esse retrospecto narrativo, que corresponde ao
flash-back, por exemplo, demanda um jovem com uma maior vivência de leitura.
A presença da fantasia nessas narrativas aciona a imaginação do leitor, seja cri-
ança ou adolescente. A construção da história permeada de acontecimentos
fantasiosos aponta para a tradição dos contos de fadas, configurando uma
forma de sucesso entre os leitores mencionados, mas também essa mesma cons-
trução reivindica, na sua estrutura, aspectos emancipatórios ao leitor, no to-
cante às visões de mundo que podem ser geradas a partir da criatividade dos
escritores. A ação e o perfil de personagens são essenciais para um dinamismo
do enredo, como alerta Aguiar (1985).
A partir de um ponto de vista mais amplo, Góes (2010) afirma que a
literatura infantil transmite ao leitor mirim valores tais como os consignados
na Declaração Universal dos Direitos Humanos: justiça, paz, liberdade, igual-
dade e solidariedade.
A respeito da estruturação da narrativa, concordamos com Coelho (2000,
p. 70) quando afirma que, geralmente, “a história surge de ‘uma situação problemá-
tica’ que desequilibra a vida normal das personagens.14 Situação que vai se modifi-
cando através da narrativa até sua solução final e a volta ao equilíbrio normal”. Essa
postura adotada pelo escritor, na forma de elaborar as narrativas, contribui para a
solução de problemas e desafios vivenciais das crianças leitoras e, ainda, se valendo
da fantasia, isso poderá ter maiores repercussões positivas nos possíveis conflitos
existenciais que estas terão que resolver para o seu equilíbrio no mundo real.

14
Os estudos formalistas e estruturalistas foram pioneiros nos estudos das narrativas folclóricas, des-
cobrindo nas suas sequências ações ou funções que determinam a ruptura do equilíbrio e o processo
de restauração do mesmo. Ver a esse respeito, PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1984 e BREMOND, Claude. A mensagem narrativa. In: BARTHES, Ro-
land et al. Literatura e semiologia: seleção de ensaios da revista Communications. Trad. Célia Neves Dou-
rado. Petrópolis: Vozes, 1972.

100
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O indivíduo consegue construir um sentido para a sua vida, quando


vivencia, através da leitura, situações que lhe impõem uma certa resolutibili-
dade. O enredo alinhavado em tramas que exigem das personagens resultados
de sucesso, propicia aos leitores em questão uma mesma atitude diante do
mundo real. Bettelheim (2007), acerca dos contos de fadas, entende que a men-
sagem que eles transmitem é a de que as dificuldades da vida são inevitáveis,
mas que, se a pessoa não se deixar abater, os obstáculos serão vencidos e a per-
sonalidade emergirá vitoriosa.
Em suma, o enredo bem elaborado pode propiciar o confronto da rea-
lidade com a fantasia, sugerindo, de forma simbólica, questões existenciais,
bem como soluções para estas, incentivando o crescimento individual atrelado
à estrutura social vigente e fazendo com que isso, de alguma forma, se sedi-
mente no pensamento das crianças.

A linguagem na literatura para crianças

As narrativas infantis devem trazer na sua estrutura uma linguagem


que agrade crianças. As fases de desenvolvimento psicológico dos leitores de-
vem ser consideradas no momento de criação do texto literário destinado a esse
público. Como é a linguagem que possibilita que a literatura chegue ao leitor,
então compartilhamos do pensamento de Carvalho (Ibid., p. 38-39), quando diz
que: “escrever para a infância não é escrever de modo simplório, mas escrever
com fluência e versatilidade a fim de ampliar seu repertório linguístico e ins-
trumentalizá-la para perceber o jogo de linguagem característico da literatura”.
Para o elemento fantasia, a linguagem é fundamental, porque desencadeará o
processo imaginativo na mente da criança.
De acordo com a intenção da obra literária, Coelho (2000) explica que a
linguagem na narrativa infantil pode ser classificada como linguagem realista mi-
mética ou linguagem simbólica metafórica. A primeira linguagem reproduz uma
experiência vivenciada, ou que ainda poderá ser vivenciada, no mundo real. Ou
seja, traços marcantes da realidade passam a ter presença nas histórias para crian-
ças, numa possível finalidade de conscientizá-las do cotidiano imprescindível ao
seu crescimento como indivíduo na sociedade. A segunda linguagem expressa uma
realidade para significar outra, ou seja, é uma linguagem figurada. As imagens são
bastante recorrentes para transmitir, de um modo concreto, ideias abstratas.
Na narrativa do século XX, surge uma literatura em que há uma fusão
da linguagem realista com a simbólica, especificamente utilizada no realismo
absurdo ou no realismo mágico, em que a realidade vivenciada no dia a dia s e

101
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

funde ao elemento maravilhoso. Coelho (op. cit.) ainda esclarece que a lingua-
gem narrativa simbólica torna-se explítica na história para o público infantil
através dos seguintes processos: “utilização de animais que ‘representam’
ideias, intenções, conceitos e ‘vivem’ situações exemplares (fábulas)”; “utiliza-
ção de seres inanimados (elementos dos reinos vegetal ou mineral, fenômenos
atmosféricos ou objetos fabricados pelo homem) que adquirem vida e falam ou
agem como humanos, em situações também exemplares (apólogos)”; “alusão ou
analogia que permite que uma situação comum, cotidiana, vivida por homens ou
mulheres, seja compreendida de imediato em um ou outro nível de significação
mais alta, que amplia aquele ‘cotidiano’ particular e precário [...]”; e “transpo-
sição de sentido de um todo completo, do nível narrativo para o nível ideoló-
gico, no qual aquele todo completo adquire uma significação diferente daquela
que o nível narrativo aparenta (alegoria)” (COELHO, 2000, p. 82).
De um ponto de vista acerca da atração exercida pela obra literária
junto ao leitor infantil, um dos critérios de valorização das obras deve ser o
estilo levando-se em conta, naturalmente, a utilização da linguagem no pro-
cesso comunicativo com o leitor criança. Dessa forma, Aguiar (1985, p. 89)
aponta que:

o vocabulário utilizado deve ser adequado ao leitor, coloquial, expressivo. Isso


não significa uma infantilização da linguagem. [...] O escritor deve, pois, utilizar
as estruturas coloquiais e introduzir expressões mais complexas e vocabulário
novo, que se explicite no próprio texto, ampliando, assim, o universo linguístico
do jovem leitor.

Ao mesmo tempo em que a linguagem se aproxima do leitor infantil,


com expressões familiares ao seu universo, ela também se aproxima com termos
inéditos ou poucos usados no cotidiano, a fim de que esse leitor obtenha maior
conhecimento linguístico, bem como conhecimento de mundo, através das pos-
síveis visões de mundo que podem ser construídas por meio da fantasia e reali-
dade constante nas narrativas endereçadas às crianças. É certo que a linguagem
é um fator importante para a construção da linha de comunicação com o leitor,
possibilitando a consolidação da criticidade no imaginário infantil, por meio do
jogo de sentidos, que a relação fantasia/realidade pode propiciar.

As personagens na literatura para crianças

As narrativas para crianças expõem aspectos emocionais da condição


humana que podem contribuir para o desenvolvimento psicológico da criança.
As narrativas fantásticas podem conduzi-la à formação de um pensamento crí-
tico. De acordo com Bettelheim (2007, p. 20), os contos de fadas “representam,

102
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de forma imaginativa, aquilo em que consiste o processo sadio de desenvolvi-


mento humano.”
Uma das marcas de presença da fantasia nas narrativas infantis é a atri-
buição de vida humana aos animais, nomeando-os como gente e atribuindo-lhes
relações interpessoais. Isso talvez garanta um sucesso de atratividade junto ao
público. A rigor, o universo animal, posto nas narrativas infantis, encanta as
crianças, haja vista que os destinatários em questão encontram, nessas produ-
ções literárias, um refúgio, entretenimento e compensação diante do mundo
adulto normatizado, que irá enfrentar no percurso de seu desenvolvimento
existencial (HELD, 1980). Talvez essa transferência de hábitos e ações humanas
para os seres animais seja uma herança das fábulas 15 que foram propagadas pelo
mundo. Essa possível comunicação entre os animais ou entre animais e huma-
nos pode ser um fator importante na narrativa para o alcance das razões criati-
vas de escritores. O certo é que a repercussão de suas criações pode gerar trans-
formações nesses sujeitos leitores. Sobre essa especificidade, a literatura para
crianças ratifica “que a antropomorfização de animais e objetos corresponde a
uma etapa do desenvolvimento cognitivo infantil, constituindo-se num ele-
mento significativo para a compreensão do papel dos animais na literatura di-
rigida à criança” (MAGALHÃES, 2001, p. 44).
Nesses termos, para Held (1980, p. 109),

se o animal humanizado permite à criança, na maioria das vezes, libertar-se ao


encontrar ou projetar seus desejos e temores pessoais frente à sociedade adulta
organizada, é também, em muitos casos, ocasião e suporte que permite transpor,
simbolicamente, certo número de situações da vida familial, especialmente a si-
tuação de aprendizagem que sempre a fascina.

O relacionamento entre adulto/criança/animais também é muito pre-


sente nas narrativas infantis. As relações das personagens, ao longo das histó-
rias caracterizadas com o elemento fantasia, podem trazer visões de mundo que
se consolidam no imaginário infantil. Held (1980, p. 108) aponta que “o diálogo
com os animais, o diálogo dos animais entre si, revela-se tema particularmente
rico, e pode ser interpretado, no plano do desejo, de diversas maneiras [...] ”.
Isso, sendo posto às crianças leitoras, promove uma formação cognitiva e um
olhar crítico para tudo que está à sua volta. As crianças, já que são indivíduos
em formação, podem apreender melhor as experiências da vida real, por meio
da fantasia veiculada pelos textos literários.

15
As fábulas são narrativas que têm a finalidade de transmitir uma instrução, conselho ou lição, nota-
damente, de forma sintética, com a presença de animais, agindo como humanos, com seus vícios e vir-
tudes. Essa forma expressiva, que remonta tempos antigos, origina-se da necessidade natural do ho-
mem de exprimir seus pensamentos através do simbólico, assim como foi o conto e o mito. Ver a esse
respeito: JESUALDO. A literatura infantil. Tradução James Amado. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 144.

103
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Carvalho (2011, p. 42) comenta acerca do perfil da personagem que as


escolhas do autor “evidenciam também uma determinada visão de mundo, o que
implica a representação pelas personagens dos papéis sociais desempenhados
pelas pessoas em sociedade de acordo com o ponto de vista do narrador”. No
entanto, essa visão de mundo não é imposta nas relações das personagens, mas
posta sinceramente para que as crianças leitoras consigam construir a sua pró-
pria visão de mundo.
O protagonismo das crianças nas narrativas destinadas aos jovens re-
presenta melhor o universo em que vivem. A interação do leitor de mesma ou
aproximada faixa etária da personagem infante, promove uma relação privile-
giada para as funções determinantes no amadurecimento daquele. É na segunda
metade do século XIX que as crianças ganham um posicionamento singular nas
narrativas infantis, o de herói, assumindo no território ficcional, de forma re-
presentativa, uma emancipação diante dos problemas da vida real.
Desse modo, a construção das personagens na literatura infantil, va-
lendo-se da fantasia, legitima-se com histórias em que a maioria dos protago-
nistas são crianças, relacionando-se com outras crianças, com adultos e até com
animais antropomorfizados. Além disso, as aventuras e peripécias constantes
nas narrativas evidenciam o perfil das personagens, constituindo-se, diante do
conhecimento adquirido.
O leitor mirim enriquece o seu conhecimento de mundo, através de perfis
e vivências de personagens que geram experiências positivas para o seu ingresso
no âmbito da realidade. Logo, a fantasia é imprescindível na literatura infantil, po-
rém não é sensato que o leitor do gênero se recolha a ela para sempre. Alinhamos
nosso pensamento com o ponto de vista de Aguiar (2005, p. 51) em que comenta:
“precisamos voltar ao real e assumir a vida como ela é. Podemos, contudo, repetir
a experiência, pois a fantasia é o alimento da imaginação e da emoção”.

O narrador na literatura para crianças

O narrador na literatura é um agente que conduz e imprime na enuncia-


ção ou na dinâmica dos acontecimentos um discurso narrativo. Esse elemento da
narrativa é uma entidade fictícia que somente se apresenta no âmbito do texto
(COELHO, 2000). O narrador é a voz que fala na tessitura do texto literário, en-
quanto apresenta os eventos narrativos, também se posiciona diante de visões de
mundo para que o seu destinatário construa a sua própria visão.
Na obra Literatura Infantil: teoria, análise, didática, Coelho (2000)
elenca seis categorias que o narrador pode assumir, considerando as relações
com a narrativa e com o destinatário. Esses tipos de narrador são os seguintes:

104
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Contador de histórias ou narrador primordial (de linhagem homérica ou mí-


tica), caracterizado pelo aspecto testemunhal ou de mediação de fatos que
aconteceram, tanto vivenciados pelo narrador quanto tenha sido contado por
alguém que viveu ou presenciou o fato, valendo-se da memória. Narrador demi-
urgo ou onisciente (de linhagem romanesca) é o que recria a realidade, provo-
cando no leitor o mundo fictício como verdade. Isso pode ser constatado, de
forma consoante, no romance romântico e realista, por exemplo. Narrador con-
fessional ou intimista é um narrador que expressa suas vivências ou as que ele
tenha testemunhado, no caso, as de outras pessoas. Narrador dialógico ou dialé-
tico, caracterizado por um “eu-narrador” que se comunica com um “tu”, na in-
tenção de provocar a narrativa e não de ser ouvido. Narrador insciente, conside-
rado, também, como moderno e pós-moderno, “um ‘eu-narrador’ que ignora as
razões do que acontece com ele e à sua volta; que duvida e convive com incer-
teza ou certezas contraditórias que são, ao mesmo tempo, complementares”
(Id. ibid., p. 68). Narrador in off, identificado como variante do narrador dialó-
gico, em que “trata-se de uma narrativa na qual não se ouve a voz do narrador,
mas apenas as vozes das personagens que com ele interagem” (Id. ibid., p. 68).
Essas categorias do narrador nos auxiliarão no entendimento da voz
assumida nas narrativas infantis. E para, ainda, compreendermos o ângulo de
visão em que se posiciona o narrador, indicaremos, a seguir, as cinco possibili-
dades de foco narrativo adotado pelo narrador, segundo Coelho (2000). Ini ci-
ando pelo Foco memorialista, a autora o define como aquele em que “o narrador
que se mantém fora dos fatos que estão sendo narrados; isto é, permanece no
exterior, sem penetrar no mundo interior das personagens” (Id. ibid., p. 69).
Foco onisciente corresponde ao foco do narrador demiurgo e apresenta-se em 3ª
pessoa. Esse foco “esclarece completamente todos os pormenores do que é nar-
rado. Além de apreender perfeitamente o exterior dos acontecimentos, conhece
com segurança o interior das personagens ou das situações em causa” (id. ibid.,
p. 69). Esse foco ainda pode apresentar-se de duas maneiras diferentes, con-
forme a estudiosa: foco de consciência parcial é quando o narrador expõe um ponto
vista através de somente uma personagem, sendo assim, o leitor tem conheci-
mento de parte dos fatos decorridos na narrativa; foco de consciência narrativa total
refere-se ao narrador que “revela pleno conhecimento de seu universo literário,
por dentro e por fora: as situações que ali se sucedem e o mundo interior de
suas personagens” (Id. ibid., p. 69-70). Ainda segundo Coelho (2000), Foco con-
fessional ou intimista caracteriza-se como o “foco de um eu que está dentro dos
fatos narrados; é através de um eu que a narrativa flui. É o foco privilegiado das

105
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

narrativas confessionais ou dos grandes conflitos psicológicos ou das autobio-


grafias.” (Id. ibid., p. 70). Foco dialético apresenta “um eu que se dirige continua-
mente a um tu, uma 2ª pessoa que se mantém silenciosa do princípio ao fim da
narrativa” (Id. ibid., p. 70). Foco dialógico, é o “foco próprio do narrador ‘in off’,
cuja voz presente/ausente só é percebida através das respostas e dos comentá-
rios da(s) personagem(ns) que responde(m). Só pelas respostas, o leitor deduz
as perguntas feitas” (Id. ibid., p. 70).
A literatura brasileira para crianças, nos séculos XX e XXI, apresenta
um narrador ou voz narradora que tem um papel significativo na transmissão
do processo da trama narrativa. Segundo Coelho (Ibid., p. 153, grifo da autora),
essa voz “mostra-se cada vez mais familiar e consciente da presença do leitor. Seja
em 1ª pessoa (narrativa confessional, intimista ou testemunhal), seja em 3ª pes-
soa (narrador onisciente), ou ainda, a de um eu que se dirige constantemente a
um tu que permanece silencioso [...]”, configurando a natureza da comunicação
na obra literária, sendo acolhida pelo leitor através da compreensão da mesma.
Assim, no contato com a fantasia, o texto literário, também, gerará sentidos à
vida real dos leitores do gênero.

Considerações finais

A formação estética, por meio do texto literário, se dá na configuração


dos elementos da narrativa em articulação com o elemento fantasia. Em certo sen-
tido, a recepção das obras pelos leitores crianças, em desenvolvimento cognitivo,
torna-se mais viável de acordo com os interesses de leitura que privilegiam a rela-
ção fantasia e real, evidenciando a ficção constante no texto literário e, por conse-
guinte, possibilitando ao leitor do gênero infantil uma atitude de comparação da
representação literária com a realidade, cuja função precípua é emancipatória.
Desse modo, a relação entre fantasia e real, presente nos elementos estruturais da
narrativa literária, legitima-se como subsídios para uma experiência estética que
propicia a construção do conhecimento sobre o real, bem como o desenvolvimento
do status do leitor para uma condição de maior criticidade a respeito do mundo e
do ser, conquistando novas dimensões na sua situação histórica.
Portanto, a criança leitora de obras infantis forma-se numa perspectiva
de incorporação dos elementos formativos do texto e dos novos conceitos po-
tencializados pela sua condição de sujeito sociohistórico em emancipação, re-
conhecendo e descobrindo a si e o mundo, numa dinâmica de fruição do plano
narrativo no ato da leitura.

106
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Vera Teixeira de. O contador de histórias para crianças e jovens. O Eixo
e a Roda, Belo Horizonte, v. 11, p. 43-52, 2005. Disponível em: http://www.letras.
ufmg.br/poslit/08_publicacoes_txt/er_11/er11_vta.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guana-
bara Koogan, 1981.

ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. 3. ed. São Paulo: UNESP, 2011.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 21. ed. Tradução de Arlene
Caetano. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

CADEMARTORI, Ligia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 2010.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Textos de intervenção.


São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. (Coleção Espírito Crítico).

CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. As crianças contam as histórias: os horizon-


tes dos leitores de diferentes classes sociais. Teresina: EDUFPI, 2011.

CECCANTINI, João Luís. Outra vez era uma vez: contos de fadas e literatura in-
fantil brasileira. In: MARTHA, Alice Áurea Penteado (Org.). Tópicos de literatura
infantil e juvenil. Maringá: Eduem, 2011. (Formação de professores em Letras – EAD;
n. 16).

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens


indo-europeias ao Brasil contemporâneo. 5. ed. Barueri, SP: Manole, 2010.

______. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. 5. ed. São Paulo: Com-
panhia Editora Nacional, 2006.

______. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. A psicanálise na terra do nunca: ensaios


sobre a fantasia. Porto Alegre: Penso, 2011.

107
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneio (1908). In: Gradiva de Jensen e ou-
tros trabalhos. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard
brasileira. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura para crianças e jovens. São Paulo: Pauli-
nas, 2010. (Coleção literatura & ensino).

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São


Paulo: Summus, 1980.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradu-
ção: Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas; vol. 36).

MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios. Literatura infantil: a fantasia e o domínio do


real. Teresina: EDUFPI, 2001.

MARTHA, Alice Áurea Penteado. Literatura infantil e juvenil: concepções intro-


dutórias. In: Tópicos de literatura infantil e juvenil. Maringá: Eduem, 2011. (Formação
de professores em Letras – EAD; n. 16).

MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1984.

PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. 25. ed. Tradução: Maria Alice Magalhães
D’Amorim e Paulo Sérgio Lima Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

______. Psicologia e pedagogia. 10. ed. Tradução: Dirceu Accioly Lindoso e Rosa Maria
Ribeiro da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

______. A construção do real na criança. 3. ed. Tradução: Ramon Américo Vasques. São
Paulo: Ática, 2003. (Série Fundamentos).

VIGOTSKI, Lev Semenovich. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico.


Tradução: Zoia Prestes. Comentários: Ana Luiza Smolka. São Paulo: Ática, 2009.
(Ensaios Comentados).

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. 2. ed. Tradução: Jeferson Luiz Camargo.


São Paulo: Martins Fontes, 1989.

108
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. São Paulo: Global, 2003.

______. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. (Série Funda-
mentos; 41).

ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura infantil: auto-


ritarismo e emancipação. 2. ed. São Paulo: Ática, 1984. (Ensaios, 82).

109
A MULHER NA POLÍTICA:
DE “ASSUJEITAMENTO” A EMPODERAMENTO

Francisco Renato Lima 1


Safira Ravenne da Cunha Rêgo 2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.


Simone de Beauvior

Muito se fala em progressos no que se refere à figura feminina, das suas


lutas e conquistas. Nesse sentido, o presente capítulo analisa a representativi-
dade da mulher no cenário político brasileiro, levantando abordagens que per-
mitem a discussão sobre sua sub-representação no desenvolvimento de políti-
cas públicas do país, considerando que a prática política se materializa por
meio da participação e que, no percurso de empoderamento, as mulheres tive-
ram uma existência marcada por desafios, a fim de garantir a paridade de gênero
e a representatividade política em um contexto historicamente marcado pela
supremacia masculina.
Nessa perspectiva, apresenta-se uma análise da linguagem presente no
discurso de mulheres que compõem o quadro de funcionários efetivos do setor
administrativo da Prefeitura Municipal de Colinas (MA), evidenciando, atra-
vés do discurso, características específicas envolvidas e ainda, as dificuldades
por elas enfrentadas pelo fato de serem mulheres.
Para compreensão dos sujeitos em análise, faz-se uso da linha teórica
Análise do Discurso (AD), por se tratar de uma corrente que se aprofunda em
pesquisas históricas, políticas e sociais. Analisou-se a representatividade femi-
nina com base ainda na perspectiva contemporânea do empoderamento, com o

1
Graduado em Pedagogia (UNIFSA) e Letras – Português/Inglês (IESM). Mestre em Letras – Estudos
da Linguagem (UFPI). Professor substituto da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Coor-
denador de disciplinas do Centro de Educação Aberta e a Distância (CEAD/UFPI).
E-mail: fcorenatolima@hotmail.com
2
Graduada em Letras - Português (UFPI). Especialista em Docência do Ensino Superior (ISEPRO).
Mestre em Letras – Estudos da Linguagem (UFPI). Professora efetiva da educação básica da Secretaria
Estadual de Educação do Maranhão (SEDUC-MA). E-mail: saffira01@hotmail.com
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

objetivo de identificar a participação delas, considerando a atuação no fortale-


cimento do modelo de sociedade permeada pelos conceitos masculinos.
Para tanto, realizou-se levantamento bibliográfico, tendo como base
teórica a Análise de Discurso (AD), tendo Foucault (2014) e Orlandi (2015) como
autores-referência; além de uma pesquisa de campo, de natureza qualitativa, com
geração de dados a partir do instrumento de coleta entrevista, realizada com mu-
lheres funcionárias da Prefeitura Municipal de Colinas, no Maranhão.
Os resultados mostram que, apesar de se tratar de uma temática perti-
nente e muito se falar em progressão no debate público em torno das questões
femininas em todo o mundo, no que toca à representatividade na política, esse
debate ainda se encontra muito distante do desejado. A mulher ainda ocupa
uma posição de assujeitamento diante do sujeito universal, isto é, o masculino,
como regulamentar evidente, tornando-a produto dessa diferença. Ainda assim,
muitos avanços já foram conquistados, como o direito ao voto e de serem elei-
tas, o alcance de novos espaços, posições e vozes no mercado de trabalho, que
descortinam um horizonte para garantia dos direitos básicos de cidadãs.
Assim, antes de adentrar ao arquivo analisado, faz-se necessário uma
breve explicação do que é AD, seu percurso histórico e seus conceitos, a fim de
elucidar os entendimentos da referida temática.

ANÁLISE DO DISCURSO: NOTAS INTRODUTÓRIAS

A manifestação inicial da Análise de Discurso (AD) enquanto estudo


da língua em movimento, ocorreu por volta dos anos 60 do século XX, tendo
como principal fundador, o filosofo francês, Michael Pêcheux (1975), não se ne-
gando, porém, que o estruturalismo linguístico dominou o campo das ciências,
durante a primeira metade do século XIX e que, de certa forma, corroborou o
surgimento dessa nova tendência do estudo da linguagem. A Linguística saus-
suriana, com as dicotomias língua (sistemática) e fala (social), toma espaço em
1916, a partir de um interesse – que estava sendo posto em segundo plano – o
domínio da fala. Por isso, conforme Brandão (2012, p. 07):

Qualquer estudo da linguagem é hoje, de alguma forma, tributário de Saussure,


quer tomando-o como ponto de partida, quer assumindo suas postulações teó-
ricas, quer rejeitando-as. No nosso caso, a referenda a Saussure deve-se, sobre-
tudo, a sua célebre concepção dicotômica entre a língua e a fala.

A grande necessidade seria a introdução da questão histórica. Mas,


ainda ligada às tradições formalistas e ideológicas do estruturalismo até então
vigente, as noções de língua/fala de Ferdinand Saussure, tornam-se sistemáti-

112
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

cas e equilibradas, excluindo-se assim, a modalidade de linguagem que propor-


cionaria a função produzida pelo sujeito falante. “Embora reconhecendo o valor
da revolução linguística provocada por Saussure, logo se descobriram os limites
dessa dicotomia pelas consequências advindas da exclusão da fala do campo
dos estudos linguísticos”, prossegue Brandão (2012, p. 07)
E, nas décadas de 20 e 30, com formalistas russos e, mais tarde, na dé-
cada de 50, com a perspectiva americana, entra em evidência uma forma de tra-
balhar o texto como estrutura, cooperando com ele, na sua capacidade lógica
interna de significar-se. Daí surge a fonte desse campo da língua como disci-
plina, sendo, esse momento essencial para os estudos linguísticos que se con-
solidaria, nos anos 60, como AD.
Isto posto, a contenda é direcionada para as bases fundadoras da AD,
essenciais para a compreensão das maneiras pelas quais a ideologia se faz pre-
sente na superfície discursiva: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. Muito
embora essas concepções sustentam o embasamento da AD, esta, não se limita
a tais correntes, conforme postula Orlandi (2015, p. 18):

Não se reduz ao objeto da Linguística, nem se deixa absorver pela teoria Mar-
xista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a Linguís-
tica pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo pergun-
tando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise, pelo modo como, conside-
rando a historicidade, trabalha a ideologia.

A Linguística contribui para a AD, ao conceber “a relação lingua-


gem/pensamento/mundo não é unívoca, não é uma relação que se faz termo -a-
termo” (ORLANDI, 2015, p. 17). Logo, a AD rompe com qualquer indício ima-
ginativo, pois parte do pressuposto de que os sentidos não pairam em um
mundo ideal ou sublime. Pelo contrário, ela assume que os sentidos só são pos-
síveis a partir de sua materialização na linguagem. Entretanto, rompe com uma
noção fundamental em AD para produção de sentido, que é a função real histó-
rica, quando a língua e a história transpassam “a forma material (não abstrata
como a da linguística) que é a forma encarnada na história para produzir sen-
tidos” (ORLANDI, 2015, p. 17).
A Psicanálise, por sua vez, vai deslocar essa noção de sujeito, em que é
constituído pela “relação do simbólico com a história” (ORLANDI, 2015, p. 17).
As contribuições do Marxismo evidenciam-se pelo materialismo histórico da
língua, uma vez que esta, em decorrência da ideologia pode modificar o meio.
A AD é a ciência da linguagem que estuda as diversas formas de signi-
ficar a língua como fator social. Difere da Linguística Estrutural e da Gramática
Normativa, que pressupõem a língua como fechada ou enquanto sistema abs-
trato e formal, e embora opere com elas, a AD admite, em sua essência, o fator

113
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

simbólico do homem como ser social e histórico, procura compreender as pro-


duções de sentido contidas na língua em movimento, “pois é justamente pen-
sando que há muitas maneiras de se significar que os estudiosos começaram a
se interessar pela linguagem de maneira particular que é que deu origem a Aná-
lise de Discurso” (ORLANDI, 2015, p. 13).
A linguagem representa, para a AD, um processo de interação do ho-
mem ao corpo social pertencente. Ela “concebe a linguagem como mediação ne-
cessária entre o homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2015, p. 13).
O discurso, que media essa relação, representa, portanto, o caráter de perma-
nência, transformação e continuidade da prática da linguagem.
Partindo disso, o analista do discurso não vai se ocupar do sentido do
texto ou do sentido do discurso, mas da ideologia de como ambos, por ocasião das
condições de produção, adquirem sentido em anuência com o trabalho simbólico
da língua e sujeito ao fio da história. “Na Análise de Discurso, procura-se compre-
ender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho
social geral, constitutivo do homem e da sua história” (ORLANDI, 2015, p. 13).
Neste estudo, essa perspectiva da AD, volta-se sobre a interação da
construção do sujeito feminino e o assujeitamento social sofrido por elas, frente
do quadro social, cultural e político brasileiro, ressaltando a conjuntura histó-
rica e a atualidade no referido tema.

A forma-sujeito histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem


a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso. Ele é capaz de uma
liberdade sem limites e uma submissão sem falhas: pode tudo dizer, contanto
que se submeta à língua para sabê-la. Essa é a base que chamamos de assujeita-
mento. (ORLANDI, 2015, p. 48)

Como os usuários da língua se relacionam por meio da linguagem, en-


quanto sujeitos falantes? Tal indagação se faz importante dentro da AD, tendo
em vista que todos são sujeitos à (da) linguagem. Ela é o meio principal de me-
diação, um signo mediador por excelência, pois carregam em si conceitos gene-
ralizados pela cultura humana e trazem, na própria constituição, ideologias que
assujeitam ao levantamento de hipóteses a respeito do que é dito.
À vista disso, é concebível associar o sujeito feminino a tal conceito,
dado que se evidencia no contraste ao gênero feminino diante do sujeito uni-
versal, isto é, o masculino, que ainda permeia a sociedade contemporânea, tor-
nando-a produto desta diferença.
No trabalho em questão, a AD, mostra-se importante, tendo em vista
que os discursos a serem analisados trazem ideologias fortemente arraigadas na

114
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

sociedade e que assujeitam os interlocutores a aceitarem como correto o ma-


chismo subjacente nas práticas humorísticas. Para isso, é fundamental conhe-
cer o que é a AD, de fato.
O discurso é toda situação que envolve comunicação com efeito de sen-
tidos entre interlocutores. “É, assim, palavra em movimento, prática de lingua-
gem: com os estudos do discurso observa-se o homem falando” (ORLANDI,
2015, p. 13). E ele não é possível sem os sujeitos, que o constituem. Ao sujeito é
dada a efetivação da reprodução do discurso, sendo através dele que a ideologia
se manifesta. Uma vez que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem
ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a
língua faz sentido” (ORLANDI, 2015, p. 13).

Compreendendo a noção de assujeitamento na AD

Sobre a perspectiva do assujeitamento, o norte para o desenvolvimento


deste estudo, tem-se a concepção do sujeito em contradição, no que se refere às
escolhas do seu próprio pensar. Segundo a noção de “assujeitamento”, na AD
pecheuxtiana, os indivíduos são assujeitados, ou seja, dependem e são subordi-
nados ao envolto socioeconômico em que vivem, bem como se sujeitam a língua
para serem sujeitos dela. Segundo Orlandi (2005, p. 101):

Pelo deslocamento proposto por M. Pêcheux (1975) fazendo intervir a ideologia


na relação com a linguagem, o teatro da consciência (eu vejo, eu penso, eu falo,
eu te vejo etc.) é observado dos bastidores, lá de onde se pode captar que se fala
ao sujeito, que se fala do sujeito, antes de que o sujeito possa dizer: ‘Eu falo’. Esse
teatro pelo qual o sujeito é chamado à existência se sustenta na discrepância in-
troduzida pela formulação ‘indivíduo’ / ‘sujeito’.

Quando ele acredita, de modo inconsciente, estar no controle, este é


condicionado pela construção ideológica do meio em que está inserido, efeito
denominado em AD de condições de produção; estas, por sua vez, são definidas
pelo sujeito e lugar onde é produzido o dizer, o meio social histórico e ideoló-
gico determinam diretamente no resultado do discursivo. “Elas compreendem
fundamentalmente os sujeitos e a situação” (ORLANDI, 2015, p. 28).
Aquilo que convencionou-se chamar de sentido, na AD, é, na verdade,
efeito da interação do sujeito mediado pela ideologia. Isto é, o sentido de acordo
com a situação e o contexto pode ser modificado. Sustenta-se então, que um
texto pode ter muitos sentidos, pois é antes um produto, resultado de um pro-
cesso: uma produção, cujos efeitos, são efeitos de sentido.
Conforme a AD, a memória discursiva é a repetição de palavras/ter-
mos/enunciados que circulam em formulações discursivas anteriores o “já dito”.

115
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Nessa concepção, ressalta-se que a língua antecede a existência do indivíduo e


continuará depois dele.
Outro termo concebido pela AD é o esquecimento, identificado pela falsa
impressão de domínio dos pensamentos, quando, na verdade, o ser humano é
direcionado por eles, por pensamentos pré-concebidos no inconsciente. A essa
concepção convenciona-se chamar de falha, por meio da qual é traçada a possi-
bilidade de novas construções discursivas, pois partindo do pressuposto defen-
dido pela AD em que nem o sujeito nem o sentido são concebidos como comple-
tos, estes, mediados pelo método da falha, refazem-se na falta e no movimento.

A CONCEPÇÃO DE MULHER E A NOÇÃO DE EMPODERAMENTO

Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, uma das defini-


ções do termo “mulher” é “aquela cujas características biológicas definem o ser
feminino” (FERREIRA, 2019). Tal afirmação, permite entender o conceito de
mulher como a fêmea, o ser do sexo feminino, que tem os órgãos genitais e se
comporta então, de maneira condizente com sua feminilidade, mais suave, as-
sociada à figura materna. Tem como símbolo, o espelho de Vênus, deusa do
amor e da beleza. Em síntese, tudo aquilo que representa a fertilidade e a função
reprodutora está relacionado à figura feminina.
O sexo biológico, como condição humana, é quem define, com base na
genitália, o papel reprodutivo do indivíduo, uma vez que apenas metade da es-
pécie humana é biologicamente capaz de gerar novos indivíduos diretamente.
No entanto, embora a capacidade reprodutiva da mulher seja determinada por
seu sexo biológico, seu papel social não deve ser, de forma alguma, determinado
por tal condição, intrínseca ao ser humano; portanto, ser mulher não é apenas
ser a fêmea. Assim, segundo Reilly-Cooper (2017, p. 01):

Identificar corretamente os órgãos genitais que uma criança possui e, portanto,


o sexo biológico ao qual pertence não é uma questão de atribuir gênero à criança;
é simplesmente reconhecer os fatos biológicos e dar a eles o rótulo biológico cor-
reto. Independentemente de termos ou não a linguagem para descrevê-la, exis-
tirão homens e mulheres.

Para o verbete “gênero”, do mesmo dicionário, tem-se a seguinte defi-


nição: “categoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes
baseada em critérios tais como sexo e associações psicológicas. Há gêneros
masculino, feminino e neutro” (FERREIRA, 2010).
Diante das discussões sobre o que é gênero, parece acertado considerar
o que diz Scott (1995, p. 03):

116
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças


percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as rela-
ções de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem
sempre à mudança nas representações de poder, mas a direção da mudança não
segue necessariamente um sentido único.

É possível inferir que o gênero está ligado ao conjunto de comporta-


mentos socialmente construídos, determinando assim, de forma imperativa, os
papéis relativos ao “homem” e à “mulher”. Logo, também as relações de poder,
inerentes nesse processo, destacando-se que esse sistema de valores, são subs-
tancialmente vantajosas ao macho e prejudiciais à fêmea, uma vez que estabe-
lece relações de subserviência, fragilidade e passividade a esta, enquanto atri-
bui-se àquele a dominação, o controle, e até mesmo, a violência como traços
característicos.
Os papéis de gênero é que originam as relações referentes a feminili-
dade e a masculinidade, bem como, suas implicações em um quadro real de
opressão, poder autoritário e divisão de classes. Como enfatiza Reilly-Cooper
(2017, p. 01), “a feminilidade é a expressão da submissão feminina, enquanto
que a masculinidade é a expressão do domínio masculino”, isto é, o processo de
socialização por meio do gênero ao longo da vida é responsável por imbuir no
indivíduo a ideia de que há um sujeito mantenedor e um objeto assujeitado a
ele. Trata-se, pois, de um estereótipo ao qual a mulher é, ainda, submetida.
Os estereótipos apenas se repetem e são mantidos inertes. Aqui tem-
se o que Orlandi (2015, p. 70) denominou de “repetição empírica ou mnemô-
nica”, que é o efeito da repetição, como um papagaio. Como um exemplo desse
fato, tem-se a palavra “mulher”, associada à fragilidade e à inferioridade inte-
lectual e por mais que muitas mulheres se mostrem fortes e inteligentes, esse
estereótipo segue se repetindo como se fosse uma regra.
Tem-se então, o imaginário coletivo como uma peça importante na
análise discursiva, que leva o analista a perceber os estereótipos intrínsecos aos
discursos e, com isso, atravessá-los na tentativa de conceber os possíveis senti-
dos presentes nos dizeres, assim como, as possibilidades de diferentes discur-
sos que poderiam surgir através dos já construídos.
E, nessa possibilidade de surgimento de diferentes (e, por que não di-
zer, novos?) discursos, é que se enquadra o “empoderamento feminino”, que é a
consciência coletiva, expressada por ações para fortalecer as mulheres e desen-
volver a equidade de gênero. O conceito de empoderamento encontra-se em
meio a debates teóricos e conflitos políticos. É um conceito fluido e, muitas
vezes, utilizado de forma maleável, de acordo com a necessidade e o corpo ide-
ológico de cada grupo social que dele se apropria (VASCONCELOS, 2003).

117
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Apesar do domínio machista na cultura, essa ideia vem sofrendo, ao


longo dos anos, uma série de abalos, decorrentes principalmente, dos avanços
das conquistas femininas relativas à inserção da mulher em espaços considera-
dos “masculinos”. Essas conquistas permitem à mulher, categoria submetida a
processos de exclusão pelo grupo dominante masculino, ferramentas para se
empoderarem e conseguirem lutar por maior autonomia.
Nesse caso, o “empoderamento feminino” é exatamente a tentativa de
se desfazer esses estereótipos a que a categoria está submetida, possibilitando
a reversão, embora partindo de um processo oneroso e gradual, dessa situação.
Isso é possível, claro, por meio de mudanças em um contexto público que con-
ceda espaços e valores às mulheres, em cargos de poder/decisão, educação não
sexista e serviços de saúde adequados e também, em contextos mais específi-
cos, ou individuais. Isso implica, diretamente, no aumento de autoestima e au-
tonomia, reorganização do trabalho doméstico, da organização política etc.

Inserção da mulher na política

Falar do empoderamento feminino é falar do papel da mulher, na polí-


tica e sua luta por espaço e voz. A história dessa “inserção” no cenário político
registra momentos importantes na luta pela emancipação. Organizadas, as mu-
lheres conquistaram direitos essenciais, como o acesso à educação, a liberdade
para escolher a própria profissão, o direito de votar e de se candidatar.
A necessidade de garantir espaços para as mulheres nas esferas de po-
der tem sido destacada em diversas resoluções. De acordo com a ONU Mulhe-
res, é atribuição do Estado:

Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportuni-


dades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política,
econômica e pública e adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável
para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulhe-
res e meninas em todos os níveis. (ONU, 2019)

É possível notar que tal “igualdade de oportunidades” é algo ainda


longe de ser conquistado, uma vez que, socialmente depara-se com conjunturas
tão contrárias ao empoderamento feminino e diversas barreiras quanto à atua-
ção da mulher na política, por inúmeras razões. Um fator determinante é a
construção da identidade feminina como sujeito político, que está permeada
por um percurso histórico ideológico de exclusão e opressão, visto que desde
os primórdios da humanidade é notória a negação da mulher frente ao enfren-
tamento de questões sociais, econômicas e religiosas, reputadas desde sempre
ao universo masculino, sendo ela reduzida à redoma da família e do lar.

118
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Essa construção de sentidos é (re)produzida em confronto ideológico,


enquanto representação de sujeito feminino no percurso histórico social. Fou-
cault (2014, p. 153) define essa formação discursiva como: “um conjunto de re-
gras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que de-
finiram uma determinada época, para uma área social, econômica”.
A busca por espaço de igualdade de direitos vem se tornando uma rea-
lidade para as mulheres, sobretudo, a partir da promulgação da Constituição
Federativa do Brasil de 1988, que acarretou em novas buscas pela identidade fe-
minina. A consideração que todas as pessoas são iguais perante a Constituição,
compreende que a mulher possui os mesmos direitos do homem. Assim, a parti-
cipação feminina na sociedade busca ultrapassar o que um dia lhes foi negado.
No entanto, os ganhos obtidos nestes significativos momentos não fo-
ram suficientes para o alcance da efetiva igualdade. Esta afirmação pode ser
confirmada por meio de dados disponibilizados pela União Interparlamentar
(2012) apresentados por Oliveira (2014, p. 14):

O Parlamento brasileiro é ocupado por apenas 12,3% de mulheres. A baixa re-


presentação feminina na política ocorre não obstante o fato de que as mulheres
são maioria da população brasileira (51,03%) e do eleitorado (51,86%), de acordo
com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Tribu-
nal Superior Eleitoral (TSE), respectivamente.

Diante disso, percebe-se uma dualidade simultânea entre o assujeita-


mento marcado segundo AD, pelo sujeito inconsciente, submisso às condições
de produção, isto que “ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submis-
são sem falhas” (ORLANDI, 2015, p. 28).
Nesse cenário, o empoderamento, consequência do movimento femi-
nista atual, visa uma consciência coletiva de equidade de gêneros, como “pro-
cesso conflituoso porque diz respeito a situações de dominação – explícitas ou
implícitas – e à busca de mudanças nas relações de poder” (MAGESTE; MELO;
CKAGNAZAROFF, 2008, p. 07).
Nesse sentido, a análise de dados a seguir, colabora a compreensão do
papel da mulher na política, no que tange a representatividade na esfera polí-
tica brasileira atual.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS

Na estreita da realização discursiva se aborda, neste corpus, um instru-


mento de coleta de dados de natureza qualitativa, com levantamento de informa-
ções através de entrevista, realizada numa coletiva com cinco mulheres que com-

119
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

põem o quadro de funcionários públicos efetivos e comissionados do setor de Ad-


ministração Geral da Prefeitura Municipal de Colinas (MA).
A entrevista em questão suscita indagações sobre o posicionamento
político, enquanto sujeito feminino e componente daquele meio social, uma vez
que, mesmo ocupando cargos efetivados, devido a posição que ocupam, as en-
trevistadas estão, de certa forma, intimamente associadas ao cenário polí tico
no âmbito municipal.

Entrevista:
. Como é dividido o trabalho doméstico em sua casa?
. Você exerce alguma profissão fora de casa?
. Pode-se dizer que para as mulheres ainda é mais difícil subir na carreira do que
para os homens? Por que você credita isso?
. Você já votou em alguma mulher para ocupar um cargo político?
. Para você, qual o principal motivo que leva uma mulher a não se candidatar
para um cargo político?
. Você prefere votar em homens ou mulheres?
. E você é a favor ou contra a determinação de que pelo menos um terço dos car-
gos políticos do Senado seja, obrigatoriamente, ocupado por mulheres?

No levantamento das respostas, devido política de privacidade, consi-


dera-se os Princípios Fundamentais e os Direitos Individuais, garantidos pela
Constituição Federativa do Brasil, respeitando assim, os direitos das envolvi-
das na realização da pesquisa. Para tanto, convencionou- se denominá-las como
SujeitAs A, B, C, D e E.
As opiniões colhidas a partir das respostas das sujeitAs A e C são rela-
tivamente iguais, mudando, é claro, o sujeito e o discurso de cada uma. Todavia,
foi possível perceber uma visão empoderada de ambas, partindo do pressuposto
da igualdade de gênero, uma vez que na tratativa sobre a divisão do trabalho
doméstico, as sujeitAs A e C afirmaram que existe essa equidade no que diz
respeito aos componentes do lar, independente do gênero.
Quanto à primeira pergunta: Como é dividido o trabalho doméstico em sua
casa?, voltada para a dinâmica familiar, ainda se vê as descrições de papéis tra-
dicionais masculinos e femininos (homem/provedor; mulher/cuidadora) e a ne-
cessidade da execução adequada das funções (direitos e obrigações) de cada
um dos cônjuges como marido, pai (não deixar faltar as coisas (sujeitA A). “En-
tão ele tem essa muito boa qualidade, que eu acho isso muito importante: paga
as contas em dia, não deixa atrasar nada (sujeitA B) e como mãe e esposa: “En-
quanto mãe, eu deixo de comer pra dar pros meus filhos comer... Eu cuido das
roupas deles, da comida...”.
Além de seus papéis domésticos tradicionais, todas as mulheres entre-
vistadas exercem trabalho remunerado fora de casa, o que se deveu principal-
mente à necessidade de contribuir com o aumento da renda familiar ou, ainda,

120
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

como o único meio de viabilizá-la. Apesar da presença de alguns elementos não-


habituais, compreende-se que, idealmente, para as participantes, os padrões
tradicionais de gênero guiam a compreensão do que é.
Inobstante, elas associaram a desigualdade entre mulheres e homens
na promoção do mercado à jornada tripla exercida pelas mulheres, como in-
fluência negativa. Acrescentaram respondendo sobre a interação da mulher
exercendo cargos de representatividade na política, como algo necessário e evi-
dente, apesar de existir um discurso machista reproduzido, inclusive, pelo pró-
prio sujeito feminino, que impossibilita esse efeito como positivo.
As “sujeitAs” A, B e C respectivamente, discordaram entre si em alguns
pontos, ademais é evidente que a partir das formações discursivas, todas possuem
uma visão de empoderamento assujeitado, visto concordarem sobre a existência
de uma desigualdade de gênero e atribuir esse fato à impossibilidade dos avanços
na luta feminista. Não bastasse, concluem a afirmativa, julgando não concorda-
rem na efetividade e preparação de mulheres na ocupação de cargos políticos,
uma vez que o assujeitamento feminino é algo tido como cultural, sendo assim,
um tanto irrealizável a possibilidade de alteração do quadro vigente.

O conceito de empoderamento também pode ser bastante potente para a con-


cepção e avaliação de práticas que visem promover a autonomia e a superação de
desigualdade de poder em que as mulheres se encontram. Na tradição latino-
americana dos estudos de gênero, ou feministas, parece que alguns fatores leva-
ram à intensificação da aplicação do conceito de empoderamento: a difusão do
debate teórico sobre o poder nas experiências de base de mulheres (León 1997)
e o planejamento de estratégias para o desenvolvimento das mulheres na década
de 1980 (Rowlands 1997) tornaram central o conceito de empoderamento nos
debates e estratégias feministas. (MARINHO; GONÇALVES, 2016, p. 81)

A sujeitA D apresentou um posicionamento acrítico quanto às imposi-


ções de gênero, quando concluiu que não existe uma divisão igualitária nos tra-
balhos domésticos, e que esse fato, surpreendentemente, não a incomoda. Ou-
trossim, defende que a sub-representação feminina, tanto no mercado de tra-
balho quanto no ambiente político é causada pelo preconceito social, uma vez
que as mulheres são cientificamente mais inteligentes que os homens, entre-
tanto, sua capacidade é questionada pela condição de sujeito mulher.
A sujeitA E, por sua vez, demonstrou uma criticidade e um senso de
independência muito forte. “Solteira, livre e feliz”, ela se considera “empode-
rada e dona de seu próprio destino”. A naturalização dos papéis masculinos e
femininos está intimamente relacionada às concepções tradicionais, e ainda
atuais, de gênero; porém, a atitude de modificá-las e, especificamente, conceder
poder às mulheres, é que constitui fator determinante. Beauvior (1967, p. 09),
sobre esse “processo”, salienta:

121
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,


econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e
o castrado que qualificam de feminino.

O imaginário favorece a estruturação das ideologias, quando elabora


modelos mentais de uma realidade exterior em que as representações carrega-
das de afetividade e de emoções impõe sentidos definidos, deturpando o real. A
visão discursiva da noção de realidade das entrevistadas aponta para o efeito
de sentido de um assujeitamento, como “alguma coisa ligada à condição ideo-
lógica do ser mulher”.
Uma análise mais livre dos condicionamentos sociais, que procure ul-
trapassar a perspectiva da simples vitimização, permite identificar a insubor-
dinação nas ações dessas mulheres. Em primeiro lugar, é preciso salientar que
são diversas as barreiras enfrentadas ao longo da mudança da posição de “assu-
jeitamento” a “empoderamento”. Contudo, a percepção de empoderamento é
um fato notório, que reflete os progressos já obtidos nessa área, bem como, a
desconstrução de estereótipos excludentes, a ressignificação de atitudes opres-
soras e arcaicas e a constante luta por direitos iguais e respeito.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Com base em estudos da historicidade da língua foi possível constatar


que, a figura feminina, no cenário público, perpassou várias mudanças no decor-
rer dos anos, e que, de certa forma, há um determinismo histórico-cultural na
construção dos papéis da mulher, que interfere no progresso social necessário.
Por meio da AD, é possível evidenciar, nos discursos em análise, que os
sentidos e sujeitos são diretamente influenciados pelas condições de produção
e pela ideologia inerente ao meio em que estão inseridos. Assim, os discursos
das entrevistadas apresentam variedades de sentidos, como produto dos efeitos
de sentidos determinados em consequência do contexto sócio-histórico. Na
concepção de Orlandi (2015, p. 42), “podemos dizer que o sentido não existe
em si mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no pro-
cesso sócio-histórico em que as palavras são produzidas”.
Ao considerar a distribuição desigual de poder e de controle pelos gru-
pos na sociedade atual, o “empoderamento feminino” buscaria a reorganização
desse arranjo. É um processo que parte do enfrentamento de fatores referentes
à estrutura de poder presentes no “assujeitamento”, que impõe deveres e rótu-
los à mulher, de maneira preconceituosa e machista. Esse novo olhar – empo-
derado – implica, claro, a redistribuição do poder. Ou seja, essa redistribuição
é processo e resultado da promoção do empoderamento.

122
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Existe, sim, um olhar caquético e preconceituoso para o feminino den-


tro da sociedade, assujeitado às imposições dos homens e aos próprios padrões
machistas impostos. Porém, já se nota o empoderamento, no sentido de se al-
cançar cada vez mais espaços e notabilidade.
A vista disso, compreende-se que o sujeito feminino, assim como o dis-
curso, estará sempre em movimento e que, para alcançar uma posição de equi-
dade, necessita-se urgentemente, de um retrato mais fiel da diversidade social
que marca o país, que deve ser amplamente discutido pela sociedade não po-
dendo deixar de destacar campanhas institucionais de incentivo à participação
das mulheres na política.

123
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo II – a experiência vivida. 2. ed. Trad. Sérgio


Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. São Paulo:


UNICAMP, 2012.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France pro-


nunciamento em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.
24. ed. São Paulo: Loyola, 2014.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. 5. ed.


Curitiba: Positivo, 2010.

MAGESTE, Gizelle de; MELO, Marlene Catarina de Oliveira Lopes; CKAGNA-


ZAROFF, Ivan. Empoderamento de mulheres: uma proposta de análise para as or-
ganizações. In: V Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD, Anais... Belo
Horizonte, p. 01-15, 2008. Disponível em: < http://www.anpad.org.br/ad-
min/pdf/EnEO548.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2019.

MARINHO, Paloma Abelin Saldanha; GONÇALVES, Hebe Signorini. Práticas de


empoderamento feminino na América Latina. Revista de Estudios Sociales, nº. 56,
abr./jun., p. 80-90, 2016.

OLIVEIRA, Kamila Pagel de. A trajetória da mulher na política brasileira: as con-


quistas e a persistência de barreiras. Cadernos da Escola do Legislativo, vol. 16, nº
26, p. 11-49, ago./dez., 2014.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). ONU mulheres: Objetivos de


Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 – Igualdade de Gênero. 2019. Disponível
em: < http://www.onumulheres.org.br/areas-tematicas/lideranca-e-participacao/
>. Acesso em 14 dez. 2019.

ORLANDI, Eni P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 2. ed.


Campinas: Pontes, 2005.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas:


Pontes, 2015.

124
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

PÊCHEUX, Michel. Vérités de la palice. Maspero: Paris, 1975.

REILLY-COOPER, Rebecca. Sexo e gênero: um guia para iniciantes. 2017. Dispo-


nível em: < https://sexandgenderintro.com/ >. Acesso em: 08 dez. 2019.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Trad. Maria Betânia
Ávila. 20. ed. Porto Alegre: Nova Fronteira, 1995.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. O poder que brota da dor e da opressão: em-


powerment, sua história, teorias e estratégias. São Paulo: Paulus, 2003.

125
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

CONTOS DE FADAS: UMA BREVE RETROSPECTIVA


DE SUAS ORIGENS E PRINCIPAIS AUTORES

Gisele Arruda Eckhardt 1

Introdução

Antes de qualquer coisa, gostaria de fazer um breve relato. Lembro-me


de minha infância, principalmente na hora de ir dormir, em que minha mãe sem-
pre me contava alguma história. Aquela era uma ocasião extremamente espe-
cial. Ainda que eu soubesse tudo que iria acontecer, tinha prazer em ouvi -la.
Até eu completar uns oito anos, tínhamos essa rotina lá em casa. O momento
da história era sagrado.
A presença dessa oralidade foi crucial para fomentar o gosto pela lei-
tura. Diante disso, sinalizo que a escuta pode ser um instrumento eficaz para o
envolvimento dos educandos nas leituras, fazendo-os esquecer da dicotomia
ficção x realidade e introduzindo-os na experiência com o texto.
Sob esse viés, Pennac (2003) advoga que mais do que demandar a leitura,
devemos partilhar nossa felicidade em ler, através da oralidade. Dificilmente um
aluno vê um professor exultante carregando um livro e exteriorizando o quanto
lhe tocou aquela obra. Creio que é preciso transmitir para nossos alunos o quanto
nos tornamos pessoas transformadas após certas experiências literárias.
A título de exemplificação, Pennac cita em sua obra a experiência de
um professor que seduziu toda a turma apenas contando histórias. A respeito
disso, o autor argumenta que “falar de uma obra aos adolescentes e exigir deles
que falem dela pode se revelar muito útil, mas não é um fim em si mesmo. O fim
é a obra. A obra nas mãos deles” (PENNAC, 2003, p.132).
Não se trata de ignorar a crítica, as biografias, o contexto da obra ou
as questões escritas, mas se faz essencial resgatarmos a ânsia por narrativas.
Conquistar os meninos. Xeque-mate. Partindo dessa premissa, o autor faz uma
descrição cativante do resultado da contação de história realizada pelo docente
que seduziu toda a turma, a qual vale a pena aludir:

1
Graduada em Letras (Português/Inglês) pela UERJ. Mestra em Letras pela UERJ. Doutoranda em
Estudos de Linguagem pela UFF.

127
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

E no entanto, não aconteceu nada de milagroso. O mérito do professor é quase


nenhum nesse caso. É que o prazer de ler sempre esteve bem perto, sequestrado
num desses sótãos adolescentes por um medo secreto: o medo (muito, muito an-
tigo) de não compreender.
Eles tinham simplesmente esquecido o que era um livro, aquilo que ele tinha a
oferecer. Tinham se esquecido, por exemplo, que um romance conta antes de tudo
uma história. (PENNAC, 2003, p. 113)

Mais uma vez, enfatizo a importância da escuta. Não obstante, cabe


salientar que não é algo passivo; requer intencionalidade de quem ouve. Sendo
assim, implica em um dialogismo, visto que aquele que escuta constrói signifi-
cados de uma forma cooperativa (BAJOUR, 2012).
Consoante Bajour (2012), a prática de ouvir é algo que se aprende e
requisita tempo. Nesse sentido, em um primeiro momento, pode parecer algo
desafiador conseguir com que a turma fique em silêncio participando da hist ó-
ria narrada. Decorre daí que é imprescindível todo um trabalho com os gestos,
o corpo, a entonação e, acima de tudo, a alegria em partilhar a história.
Petit (2009; 2010) é outra autora que desenvolve projetos de leitura,
tendo como suporte a oralidade, ou seja, o encantamento através da voz. Ela
também contribuiu deveras para me fazer depreender a inevitabilidade de mu-
dança de postura com o texto em sala de aula.
De acordo com a autora francesa (2010, p. 59):

Por muito tempo se opôs oral e escrita, embora o livro e a voz sejam companhei-
ros, e a biblioteca, em particular seja um ambiente “natural” para a oralidade: é o
lugar de milhares de vozes escondidas nos livros que foram escritos a partir da
voz interior de um autor. Quando lê, cada leitor faz reviver essa voz, que provém
às vezes de muitos séculos atrás. Mas para as pessoas que cresceram longe dos
suportes impressos, alguém tem que emprestar sua voz para que entendam
aquela que o livro carrega.

O trecho acima endossa o entendimento de que quando o texto ganha


voz e a história ouvida não é algo imposto, podemos relembrar a muitos alunos
as experiências que eles já tiveram em suas infâncias de ouvir histórias, seja na
escola ou em casa. E para aqueles que nunca tiveram essa oportunidade, eis a
ocasião para a descoberta do mundo da fantasia e o mergulho na interioridade.
Cabe a nós criarmos um espaço acolhedor em sala de aula, no qual os
educandos se sintam confortáveis para ouvir e expressarem suas impressões
acerca do que ouviram. É um processo envolvente. E, aos poucos, eles se abrem
para dizer como foram tocados. Pode surgir a identificação ou a negação com a
história. Importa, pois, inserir a obra de uma forma natural e atraente, com en-
tusiasmo.

128
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Literatura infantil e contos de fadas

Como mencionei anteriormente, tudo começou com a voz. Antes de


haver pergaminhos, manuscritos, livros ou a internet, havia os contadores de
histórias. Eram pessoas que ao entrar em contato com alguma narrativa, guar-
davam-na em suas memórias, e a recontavam para o seu grupo ou clã. Era pos-
sível que pudessem mudar alguns detalhes, mas o fato era que aquela hist ória
não morria (HUECK, 2016). Permanecia de geração em geração.
Surgidos através da tradição oral, não se sabe ao certo quem foi o pri-
meiro a contar as histórias. Mas, numa concepção sociológica da origem dos
contos (ZILBERMAN, 2003), atribui-se à camada mais pobre da população eu-
ropeia central tal atitude.
Sabemos que o ser humano anseia por narrativas e não é surpresa al-
guma que a arte de contar histórias seja mais antiga do que podemos imaginar.
Segundo Coelho (2012), podemos encontrar mais de uma fonte em comum nas
raízes desses textos populares: a oriental, a latina e a céltico-bretã.
A procedência oriental remonta à Índia, em alguns séculos antes de
Cristo, e o primeiro texto encontrado foi a obra Calila e Dimna, a qual consistia,
na verdade, da junção de três obras indianas sagradas – Vischno Sarna, Mahabha-
rata e Pantschatantra – de teor budista (COELHO, 2012). Com o intuito de tornar
a assimilação dos ensinamentos mais prática, os discípulos de Buda se utiliza-
vam de uma linguagem simbólica (parábolas, contos, fábulas, apólogos, etc.).
Além disso, convém mencionar Sendebar ou O livro dos enganos das mulhe-
res, escrito pelo hindu Sendabad, o qual emite uma percepção negativa da figura
feminina. O enredo consiste na acusação mentirosa de uma madrasta ao filho
do rei, de tentativa de estupro. A trama se desenrola com o príncipe provando
sua inocência e a madrasta morrendo queimada.
Merece atenção As mil e uma noites, a obra mais popular desse cenário ori-
ental. Segundo Coelho (2012), é provável que tenha sido finalizada ao término do
século XV, porém sua popularidade só alcançou o Ocidente em princípio do século
XVIII, devido à tradução de Antoine Galland, em 1704, na época do rei Luís XIV
da França ou, popularmente, o rei Sol.
Em relação à fonte latina, convém salientar que levou bastante tempo
para ser divulgada. Isto, porque houve um período de amálgama cultural, no
qual houve a assimilação da cultura pagã pela cristã, com as adaptações neces-
sárias, para que se pudesse manter o poder religioso.
A fim de explicar melhor esse contexto, parece-me útil retomar o diá-
logo mais uma vez com Coelho (2012, p.43), a qual sinaliza que:

129
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

As fontes latinas (greco-romanas) vão ser descobertas e fundidas com outras du-
rante o longo período da Idade Média – os mil anos que mediaram desde a Queda
do Império Romano (século V) até o Renascimento (século XV), início dos Tem-
pos Modernos. (...) Como em um cadinho de alquimia, foram se fundindo, aque-
cidos pelo fogo espiritualista cristão: a vitalidade rude, a violência instintiva e a
força-trabalho dos bárbaros com os valores civilizadores da Antiguidade Greco-
Romana, cuja cultura havia permanecido nos numerosos escritos, escondidos
nos conventos, que resistiram às invasões bárbaras e foram preservados pelos
primitivos padres da Igreja.

Verifica-se no trecho acima que toda a cultura greco-romana ficou su-


jeita ao poderio da igreja católica, sendo que de forma oculta, nas pessoas dos
padres e monges, que reconheciam o valor desses manuscritos e optaram por
mantê-los guardados, para que não fossem destruídos pela própria Igreja.
De modo geral, nesse período, temos os contos maravilhosos, os quais
simbolizavam a crueldade do mundo feudal: mães que abandonam seus filhos,
o incesto, canibalismo, mortes etc. Dizendo de outro modo, depreendemos que
as histórias nos seus primórdios não eram direcionadas ao público infantil,
visto que eram “representantes de um pensamento e de uma forma de enxergar
a realidade” (HUECK, 2016). Os contos que hoje conhecemos passaram por
uma série de adaptações.
Há que se levar ainda em consideração que na época surge a divulgação
das fábulas de Esopo e de Fedro na língua romance; os livros exemplares, os
quais buscavam transmitir questões morais e as novelas de cavalaria, entre os
séculos XI e XIV.
Já a fonte céltico-bretã remete ao século XII, quando a rainha Alienor,
da Inglaterra, solicita ao monge Wace que traduza do latim para o francês a
obra A História dos Reis de Bretanha, de G. Monmouth, e que tinha por base A His-
tória dos Bretões, de Nennius, século VIII (COELHO, 2012). Daí que aparecem
nas aventuras fadas, a Dama do Lago, o rei Artur, Merlin.
Entretanto, vale enfatizar que de acordo com Coelho (2000), mesmo
que todas as outras fontes sejam relevantes, acredita-se que foi entre os celtas
que apareceram os primeiros contos de fadas. Povo bárbaro, dominado pelos
romanos entre os séculos II a I de nossa era, habitaram a Irlanda, Gálias e Ilhas
Britânicas, sobretudo (COELHO, 2000, p. 175). Suas histórias estavam relacio-
nadas ao além-vida, ao maravilhoso e ao bem-estar com a interioridade.
Dos celtas herdamos a presença de fadas e elementos sobrenaturais
para intervir no destino e histórias famosas como A Bela Adormecida, Rapun-
zel, A Bela e a Fera e Branca de Neve e os Sete Anões (COELHO, 2012, p.85).
No que tange às explicações para a origem dos contos, na compreensão
de Hueck (2016), além da difusão que citei anteriormente, temos também a dos
arquétipos, a qual preconiza que os contos abordam o mesmo conteúdo, em

130
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

partes distintas do mundo. Desse modo, considero que ambas são essenciais
para uma apreensão mais satisfatória do fenômeno.
De acordo com Coelho (2012, p.98), existem diversas possibilidades de
definição do que vem a ser os arquétipos, matéria-prima dos contos, e por se
vincularem ao psiquismo humano, fica difícil estipular um conceito único e
simplificado. Mas, na esfera literária podemos defini-los como “representações
das grandes forças ou impulsos da alma humana”, isto é, são modelos dos com-
portamentos, ideias ou impulsos humanos. Daí a identificação que sentimos
com os temas dos contos.
Também é fundamental sublinhar que a linguagem empregada nos
contos é simbólica, em virtude de indicar uma mediação entre os espaços ima-
ginário e real (COELHO, 2012). Soma-se a isso, em concordância com Bette-
lheim (2017), que o uso desse tipo de linguagem explica-se pelo fato de nunca
haver um conflito direto; é sempre sugestivo.
Antes de prosseguir, é conveniente pôr em relevo o contexto histórico
no qual a literatura infantil ganhou relevância, e dentro dela, os contos. Até o
século XVII, predominava o modelo patriarcal. Era o homem, tido como o chefe
da família, que decidia tudo mediante seus próprios interesses. Não havia a von-
tade individual de um dos membros da família; todos estavam sujeitos aos in-
teresses do patriarca. Ainda assim, já podemos perceber o início do olhar para
a criança, através do surgimento dos primeiros tratados de pedagogia, postula-
dos pelos protestantes, que acreditavam que com uma educação rígida a criança
seria domada (ZILBERMAN, 2003, p.37).
No século XVIII, as mulheres e as crianças possuíam um pouco mais
de liberdade, e valorizou-se a parceria e a união no seio familiar, ao invés de
uma submissão cega devido à hierarquia. Nesse período, a infância passa a ser
vista como uma fase especial.
Desse modo, o conceito de família que temos atualmente é recente.
Data de cerca de 1750, quando houve um declínio das linhagens e iniciou uma
preocupação com as questões afetivas. Surgiu uma valorização da infância e a
preparação da criança burguesa para as suas responsabilidades no futuro. Por
outro lado, o mesmo não ocorria com a criança de família humilde, que tinha
que trabalhar desde cedo.
Soma-se a isso que com a ascensão da burguesia, a leitura passou a ser
sinônimo de civilidade e prestígio. Portanto, a literatura infantil tinha uma fun-
ção pedagógica e normativa: instruir o pequeno leitor os valores e comporta-
mentos esperados naquela sociedade.
No século XIX, isso fica mais evidente ainda com o ensino obrigatório
na Europa e um número maior de crianças tendo acesso à escolarização. No
Brasil, a edição de livros ocorre a partir da implantação da Imprensa Régia, em

131
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

1808, e segue basicamente as mesmas atribuições do modelo europeu, visto que


ele serviu de base (FERES, 2011).
Zilberman (2003) advoga que essa visão inicial da missão formadora
da literatura infantil não a diminui ou a desprestigia, mas que o gênero pode
servir para a desconstrução de ideologias cristalizadas, porque depende da
forma que o professor irá desenvolver a leitura em sala de aula e como se dará a
apropriação do leitor. Dessa maneira:

Ela é necessariamente formadora, mas não educativa no sentido escolar do


termo; e cabe-lhe uma formação especial que, antes de tudo, interrogue a cir-
cunstância social de onde provém o destinatário e seu lugar dentro dela. Nessa
medida, o gênero pode exercer o propósito de ruptura e renovação característico
da arte literária, evitando que a operação de leitura transforme seu beneficiário
num observador passivo dos produtos triviais da indústria cultural (ZILBER-
MAN, 2003, p. 132).

Como se vê na afirmação acima, a literatura infantil é literatura (grifo


meu) e como tal não deve ser reduzida a uma faixa etária específica ou subesti-
mada. Possui seu valor estético e através dela, acredito que leitores ou ouvintes
de diferentes idades podem ser tocados e vivenciar uma experiência literária.
A fantasia ou a fabulação, presente nesse gênero, corresponde a uma
necessidade universal do ser humano (CANDIDO, 2004), propiciando a huma-
nização no sentido de ter um “papel formador da personalidade, mas não se-
gundo as convenções” (CANDIDO, 2004, p.175-176). A literatura nos ajuda a
organizar nossa perspectiva de mundo e reconhecer e/ou exteriorizar nossos
sentimentos. Negar esse direito ao ser humano é um crime.
De acordo com Bettelheim (2017), há casos de pessoas que não tiveram
contato com os contos de fadas e isso repercutiu na formação como ser humano,
considerando que os contos lidam com os processos interiores do indivíduo.
Compartilho as palavras do autor (BETTELHEIM, 2017, p. 74)

Conheci muitos exemplos em que, particularmente no final da adolescência,


anos de crença na magia eram necessários para compensar o fato de a pessoa ter
sido privada dela prematuramente na infância graças à imposição da dura reali-
dade. É como se esses jovens sentissem que agora é a sua última oportunidade
para compensar uma séria deficiência em sua experiência de vida; ou que, por
não terem tido um período de crença na magia, ficarão incapacitados para en-
frentar os rigores da vida adulta.

Em minha experiência em sala de aula, concebo que o postulado pelo


autor é verídico; em sua grande maioria, os aprendizes têm dificuldade em ima-
ginar, sentir ou desenvolver tarefas que precisem pôr em prática a criatividade.
Falta a magia dos contos, que muitos não tiveram em suas infâncias.

132
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Após essa breve contextualização das origens dos contos, gostaria de


realçar sua pertinência e o que eles podem promover nas aulas de língua portu-
guesa. Consoante o psicólogo Bruno Bettelheim (2017, p. 21):

o prazer que experimentamos quando nos permitimos ser sensíveis a um conto


de fadas, o encantamento que sentimos, não vem do significado psicológico de
um conto (embora isso contribua para tal), mas de suas qualidades literárias – o
próprio conto como uma obra de arte. (...) Como sucede com toda grande arte, o
significado mais profundo do conto de fadas será diferente para cada pessoa, e
diferente para a mesma pessoa em vários momentos de sua vida.

Posto isto, fica compreensível porque os contos são universais, haja


vista serem narrativas que expõem conquistas, derrotas, tristezas, alegrias, ou
seja, situações e sentimentos humanos, que independente do tempo ou espaço
em que possam estar inseridos, dialogam com quem os lê ou ouve (HUECK,
2016). Em outros termos, os contos tocam, sensibilizam, seduzem.
Dentre as especificidades dos contos (BETTELHEIM, 2017), cito: as
múltiplas interpretações, o apelo através da imaginação, a humanidade real dos
personagens – eles não são sobre-humanos; a ilustração da natureza dual do ser
humano e a exteriorização dos processos interiores.
Com o objetivo de entender um pouco mais como os contos chegaram
até nós, julgo necessário apresentar os três principais autores desse tipo de nar-
rativa a nível mundial e o contexto no qual estavam inseridos, a fim de que pos-
samos depreender o porquê de haver algumas divergências nas versões de con-
tos que conhecemos.

Autores
Perrault

Figura 1 - Charles Perrault2

Ao falarmos no gênero literatura


infantil, o pioneiro foi Charles Perrault,
o qual compilou a primeira antologia de
contos no século XVII, na França, du-
rante o império do rei Sol. A coletânea se
chamava Contos da Mãe Gansa e foi publi-
cada em 1697 (COELHO, 2012).

2
Charles Perrault, por Penault. Disponível em:< https://www.independent.co.uk/news/people/char-
les-perrault-5-things-you-didnt-know-about-the-french-author-as-google-doodle-marks-his-388th-
a6806986.html>. Acesso em 05/03/2019.

133
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Nascido em 1628, em Paris, e falecido em 1703, Charles Perrault era o


filho caçula de uma família católica da burguesia. Desde jovem, quando tinha
aproximadamente quinze ou dezesseis anos, ocasião em que abandonou os es-
tudos no colégio religioso (devido a uma desavença com um docente), prosse-
guiu os estudos de forma autodidata e, nesse período, teve acesso às obras in-
tegrais de Virgílio e Cícero (SOUZA, 2014).
Desse modo, teve o interesse estimulado pelas questões literárias e de-
fendia a leitura em língua materna, o francês, tendo traduzido o sexto livro da
Eneida, de Virgílio, com o auxílio de seus irmãos. Ademais, participou da Que-
rela dos Antigos e Modernos, que era um movimento do período, no qual os
“Antigos” defendiam a preservação do modelo greco-latino como exclusivo para
a criação literária e os “Modernos”, no qual podemos incluir Perrault, defendia
a superioridade da língua francesa sobre o latim (COELHO, 2012), incenti-
vando à escrita na língua nativa.
Além disso, nessa Querela havia a discussão sobre a inserção dos valo-
res cristãos nas histórias, como sendo superiores aos elementos pagãos, na
perspectiva dos “Modernos”. Por conseguinte, Perrault suprimiu nos contos os
trechos obscenos ou que não condiziam com a moral cristã e ao desfecho de
cada narrativa, expunha através de versos uma moral da história.
Buscou resgatar a literatura folclórica francesa (COELHO, 2012) e
através de seus contos deu voz nos salões franceses às camadas populares, que
os cortesãos desconheciam ou ignoravam. Sendo assim, cabe ressaltar que “as
condições humanas retratadas em muitas das estórias da época, com seus ór-
fãos, madrastas, períodos de fome, fazem dos contos documentos históricos so-
bre a França e outros países de então” (PESSOLATO; BRONZATTO, 2014, p.4).
É interessante observar que o intuito de Perrault não era ser um escri-
tor para o público infantil, até mesmo porque não existia naquela época o con-
ceito de infância; os filhos eram apenas uma forma de dar prosseguimento ao
trono ou à linhagem da família. Essa literatura era “destinada ao prazer das da-
mas e dos cavalheiros das cortes” (COELHO, 2012).
Até hoje se discute a autoria de sua obra, porque Perrault não assinou
as primeiras edições. Em contraparte, o nome de seu filho Pierre Perrault Dar-
mancour é que aparecia na dedicatória à sobrinha do rei e ele é quem solicitou
ao monarca a autorização para a impressão da obra.
Mesmo assim, segundo pesquisas (SOUZA, 2014), Pierre teria apenas
coletado os contos e Charles Perrault feito a lapidação literária. Também há a
hipótese, surgida em finais do século XIX (SOUZA, 2014), de que o escritor teria
se constrangido em ser visto como o autor e atribuído a autoria ao seu filho.

134
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Grimm

Figura 2 - Os irmãos Grimm3


Jacob e Wilhelm Grimm,
mais conhecidos como irmãos
Grimm, nasceram respectivamente
em 1785 e 1786, Hanau, na Alema-
nha. Perderam o pai, um magis-
trado, quando ainda eram crianças.
Desde então, passaram a ter dificul-
dades financeiras, o que os levou a
morar com a tia. Nesse ínterim, cur-
saram o ensino médio e entraram
em contato com diversos documen-
tos históricos e manuscritos de um
professor, o que os proporcionou o
trabalho como bibliotecários (PES-
SOLATO; BRONZATTO, 2014).
Segundo Zilberman (2003), os irmãos Grimm são os responsáveis pela
adaptação dos contos de fadas no século XIX. Levando em conta a ascensão da
burguesia, o início da preocupação com a infância e a formação do pequeno lei-
tor, essas narrativas difundiam os preceitos religiosos e éticos, mas sem deixar
de lado o componente maravilhoso.
Motivados em conhecer e registrar de maneira aprofundada a cultura po-
pular alemã (HUECK, 2016), os irmãos, estudiosos da língua, tinham a intenção
de reafirmar a resistência germânica, em um período que as tropas napoleônicas
ocupavam territórios alemães.
A questão é que não tinha como distinguir o que era francês e o que era
alemão, devido justamente ao fato de não se saber a origem exata das histórias,
por sua natureza oral. Além do mencionado, seus contos também sofrem in-
fluência das histórias italianas de Gianfrancesco Straparola e Giambattista Ba-
sile, bem como do sul da Ásia e do Oriente (HUECK, 2016).
Cabe ainda mencionar que os célebres irmãos realizaram a reunião dos
contos primordialmente mediante pesquisas em bibliotecas e salas de estudo.

3
Imagem por Hermann Blow. Disponível em: <https://davidarioch.com/2016/05/26/o-mundo-sombrio-
dos-irmaos-grimm/https://davidarioch.com/2016/05/26/o-mundo-sombrio-dos-irmaos-grimm/>.
Acesso em 05/03/2019.

135
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Consoante Hueck (2016), a escuta de narrativas se deu apenas através de pou-


cas entrevistas a vizinhos e conhecidos. Destaca-se a contribuição de Dorothea
Viehmann, a qual se estima que tenha colaborado com 40 contos.
Apesar de coletarem os contos, os irmãos souberam imprimir autentici-
dade em suas narrativas. De acordo com Hueck (2016, p.92-94), pode-se notar
como características dos autores a abundância de adjetivos, que serve para ideali-
zar o mundo da fantasia e os detalhes mágicos, buscando trazer o leitor para den-
tro da história.
Vale ressaltar que os Grimm “não alteravam as narrativas e seu contexto”
(PESSOLATO; BRONZATTO, 2004, p.7), mas é relevante sobressair que após
perceberem que tinham conquistado um público infantil tiveram o cuidado de
adaptar as histórias para não escandalizar os pequenos leitores, retirando cenas
sexuais. Consoante Hueck (2016, p.97), a exposição de mutilações, matricídios e
violência, não eram vistas com maus olhos, até mesmo porque a vida naquela época
era severa.

Andersen
Figura 3 - Hans Christian Andersen 4
Nascido em 1805, em Odense, na
Dinamarca, Hans Christian Andersen é re-
putado como o pai da literatura infantil.
Tal reconhecimento advém do fato dele
não se restringir à coleta dos contos, mas
por lançar um novo olhar sobre o gênero,
criando suas próprias histórias e também
pela sensibilidade ao seu leitor, a criança.
Andersen procedeu de uma famí-
lia bastante humilde – pai sapateiro e mãe
lavadeira. Mesmo assim, seu pai valori-
zava a leitura e sempre o contava histórias
de Holberg, La Fontaine e As mil e uma noi-
tes, estimulando a sua imaginação desde pequeno. Em contrapartida, sua mãe lhe
ensinou os princípios religiosos e o temor a Deus, que o escritor infantil levou con-
sigo por toda a sua vida e, inclusive, repercute em sua escrita (OLIVEIRA, 2009).
Devido à extrema pobreza, sua escolarização foi bastante precária.
Quando tinha quatorze anos, o dinamarquês se encaminhou à Copenhagen no in-
tuito de se tornar cantor de ópera ou bailarino, porém sem resultados, levando em

4
Imagem disponível em: < https://www.biography.com/people/hans-christian-andersen-9184146>.
Acesso em 05/03/2019.

136
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

conta que não tinha nem a voz nem a estatura necessária (VAGULA; SOUZA,
2015, p. 321).
No entanto, um cidadão importante, Jonas Colin, um dos membros da
comissão do teatro, decidiu adotá-lo e auxiliar nos seus estudos. A partir de
então, Andersen teve a oportunidade de estudar na escola de gramática em
Slagelse, em 1822.
Não obstante, não conseguiu se adequar às duras pressões, especial-
mente pelo professor Simon Meisling, em razão de dominar a matéria menos
que os outros rapazes, sendo motivo de escárnio entre os colegas e também por-
que o seu interesse era a literatura e a produção de poesias.
Hans terminou seus estudos em Copenhagen em 1827 e no ano seguinte
conseguiu permissão para cursar a universidade, porém não desejou frequentá-la,
uma vez que sua paixão era escrever e optou por se dedicar à carreira de escritor.
Todavia, sua primeira obra, Viagem a pé do canal de Holmen à Ponta Leste de
Amager, não foi bem recepcionada pela crítica da época. Argumentaram que o
escritor não dominava “a norma culta dinamarquesa nem (...) os padrões literá-
rios da época” (VAGULA; SOUZA, 2015, p.322), apresentando uma linguagem
coloquial.
Sua obra O improvisador, um romance publicado em 1835, foi a responsável
por torná-lo reconhecido no cenário europeu. Ainda no mesmo ano compôs seu
primeiro conto destinado ao público infantil, Companheiro de Viagem, e fez uma
compilação de contos denominada Contos de fadas para crianças.
É relevante destacar que a infância desafortunada tornou Hans sensível
ao sofrimento alheio. Por isso, em sua produção literária aqueles que geralmente
são esquecidos pela sociedade tem voz, através da crítica à sociedade, mas tudo
isso é feito de uma maneira sutil.
Merece atenção também a não ocorrência de finais felizes em todas as
histórias. Em várias ocasiões, a morte se faz presente em sua narrativa, em razão
de o autor trazer consigo uma tradição religiosa e crer na soberania divina, como
se a morte fosse o início de uma nova vida. Ademais, a sua experiência triste com
a vida também reflete em sua escrita. Morreu em 1875 e a data de seu nascimento
foi escolhida como o dia internacional da literatura infantil.

Considerações finais

Levando em consideração o que foi abordado, é inegável o papel dos con-


tos de fadas na formação do leitor desde a sua infância. Não obstante, esse gênero
tem o poder de encantar também jovens, adultos e idosos por suas temáticas uni-
versais, capazes de sensibilizar.

137
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Cumpre ainda acrescentar que os autores mencionados (Perrault,


Grimms e Andersen) foram primordiais para a divulgação e consolidação dos con-
tos de fadas. Cada um imprimiu suas características, trazendo seus olhares pecu-
liares em seus contos.
Desse modo, julgo que os contos de fadas devem e podem ser trabalhados
em sala de aula, visto que têm o potencial de alcançar a todos. Por outro lado, é
necessário que se atente para a oralidade e a escuta, tendo em vista que ambas
podem fomentar o gosto pela literatura.
A literatura deve promover a experiência literária. Todavia, nem sem-
pre isso acontece, porque diversas vezes ela é utilizada como pretexto para ou-
tras questões em sala de aula e, em decorrência disso, os educandos sentem
aversão à literatura. Nesse sentido, é preciso resgatar a mágica do encanta-
mento através da leitura. E os contos de fadas podem ser o gênero condutor
nesse mundo da fabulação.

138
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas: O valor da escuta nas práticas de leitura.
São Paulo: Editora Pulo do Gato,2012. Tradução de Alexandre Morales.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro/ São


Paulo: Paz e Terra, 2017.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: _______. Vários escritos. Rio de Ja-
neiro/ São Paulo: Ouro sobre Azul/ Duas Cidades, 2004.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

_________. O conto de fadas: símbolos – mitos – arquétipos. São Paulo: Paulinas,


2012.

FERES, Beatriz. Leitura, fruição e ensino com os meninos de Ziraldo. Niterói:


Editora UFF, 2011.

HUECK, Karin. O lado sombrio dos contos de fadas. São Paulo: Abril, 2016.

OLIVEIRA, Véra Beatriz Medeiros Bertol de. Representação da criança nos con-
tos de Hans Christian Andersen: o desvelar de um paradigma. 150 f. Disserta-
ção (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2009.
Disponível em: <http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/vbmboliveira.pdf> .Acesso
em 02/03/2019.

PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

PESSOLATO, Luciana; BRONZATTO, Maurício. As Transformações dos Con-


tos de Fadas e o Surgimento da Infância. Revista Eletrônica Saberes da Educa-
ção, Volume 5, nº 1, 2014. Disponível em: <http://docs.uninove.br/arte/fac/publica-
coes_pdf/educacao/v5_n1_2014/Luciana.pdf. Acesso em 4/03/2019.

PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora
34, 2009. 2ª edição.

____________. A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34,
2010. 2ª edição. Tradução de Arthur Bueno e Camila Boldrini.

139
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

SOUZA, Bruna Cardozo Brasil de. Charles Perrault e os contos da mamãe gansa.
2014. 1 CD-ROM. Trabalho de conclusão de curso (bacharelado - Letras) - Uni-
versidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Le-
tras (Campus de Araraquara), 2014. Disponível em: <http://hdl.han-
dle.net/11449/124153>. Acesso em 02/03/2019.

VAGULA, Vania Kelen Belão; SOUZA, Renata Junqueira de. A morte na literatura
infantil de Hans Christian Andersen. Caderno Seminal Digital, ano 21, nº23, v.1,
p.320-343. Disponível em: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/cader-
noseminal/article/viewFile/17368/12975>. Acesso em 02/03/2019.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.

140
A ESPERA DO NUNCA MAIS, UMA SAGA AMAZÔNICA:
UM LUGAR DE PULSÃO E DE CÁLCULO NA
CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE NICODEMOS SENA

Iza Reis Gomes Ortiz1


Izabel de Brito Silva Nascimento2
Suélen da Costa Silva3

INTRODUÇÃO

Intitular uma obra é algo bastante complexo, pois será a primeira infor-
mação dada ao leitor. Será a primeira construção e interpretação oferecida, pri-
meiramente, à editora para uma possível publicação, e ao leitor, o terceiro ele-
mento da tríade: produção, publicação e recepção. Umberto Eco no livro Pós-Es-
crito a O nome da Rosa – as origens e o processo de criação do livro mais vendido em
1984, afirma que não se deve oferecer interpretações de sua obra, mas um dos prin-
cipais obstáculos à realização dessa não oferta é de que um romance deve ter um
título. E o título, sendo uma chave interpretativa, segundo Eco, precisa ser muito
bem trabalhado para não oferecer interpretações errôneas ou dizer demais.
Nicodemos Sena lançou A espera do nunca mais – uma saga amazônica, em
1999, o primeiro livro do escritor. Foi publicado pela Editora Cejup que é sedi-
ada em Belém, Estado do Pará. Em 2020, segundo o escritor, será lançada a ter-
ceira edição da obra. Sena ainda não é conhecido no meio acadêmico. A primeira
leitura de A espera do nunca mais leva o leitor a um mundo amazônico perpassado
por questões locais e globais. A linguagem utilizada no romance tece uma rede
de criação entre a tradição cabocla e o desenvolvimento amazônico na década
de 1960. O contexto histórico da narrativa é a ditadura militar em Belém do
Pará. Os personagens se revezam em históricos e imaginários. Dois espaços bem

1
Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM; Mestre em Letras: Linguagem e Identi-
dade pela UFAC; Professora de Língua Portuguesa e Literatura do IFRO; Professora credenciada do
Programa de Mestrado em Estudos Literários da UNIR; Coordenadora Local do DINTER em Educação
UNESP/IFRO; Coordenadora do Grupo de pesquisa ‘Processos de criação na/da Amazônia’.
E-mail: iza.reis@ifro.edu.br
2
Mestranda em Estudos Literários da UNIR; Professora de Língua Portuguesa do Estado de Rondônia;
Especialista em Revisão de Textos pela Fundação Grande Fortaleza.
E-mail: izabepoesia1978@gmail.com
3
Mestranda em Estudos Literários da UNIR; Professora de Língua Portuguesa do Estado de Rondônia;
E-mail: scsigjc@gmail.com
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

delimitados: a cidade de Belém e o interior amazônico. A narrativa conta a his-


tória de uma família que entra em contato com o homem branco por intermédio
de um estrangeiro chamado Estefano. Desse encontro, há perdas e ganhos. Para
o caboclo, mais perdas que ganhos. E no decorrer da trama, o personagem Ge-
deão, um herói em construção, tenta recuperar algo que se perdeu neste contato
com o outro.
O material disponível para uma pesquisa forma um dossiê bastante ex-
tenso, composto por recortes de jornais falando sobre a recepção da obra; uma
caderneta de anotações com observações recolhidas durante a viagem pelo rio
Maró quando do insight do escritor; várias cartas trocadas na época da escrita
e pós lançamento da obra; a terceira parte da narrativa datilografada pelo escri-
tor; a versão enviada à editora para avaliação e possível publicação; além da
primeira e segunda edição publicada.
Para a escrita desse artigo, optamos por trabalhar com as versões do
título da narrativa. A escolha deu-se pelo contexto de significação que as ver-
sões apresentam.

UMBERTO ECO E AS CHAVES DE INTERPRETAÇÃO PARA UM TÍTULO

Umberto Eco, em sua obra Pós-Escrito a O nome da Rosa – as origens e o


processo de criação do livro mais vendido em 1984, disserta sobre o processo
criativo, tratando sobre “O título e o sentido” e explica:

Um narrador não deve oferecer interpretações de sua obra, caso contrário não
teria escrito um romance, que é uma máquina para gerar interpretações. Mas um
dos principais obstáculos à realização desse virtuoso propósito é justamente o
fato de que um romance deve ter um título. Um título infelizmente é uma chave
interpretativa. Ninguém pode furtar-se às sugestões geradas por O vermelho e o
negro ou por Guerra e paz. Os títulos mais respeitosos para com o leitor são os que
se reduzem ao nome do herói epônimo, como David Copperfield ou Robinson
Crusoé, mas até mesmo essa referência ao epônimo pode constituir ingerência
indevida por parte do autor. O Père Goriot centraliza a atenção do leitor sobre a
figura do velho pai, ao passo que o romance é também a epopeia de Rastignac,
ou de Vautrin, vulgo Collin. Talvez fosse preciso ser honestamente desonesto
como Dumas, porque é claro que Os Três Mosqueteiros, na verdade, é a história
do quarto. Mas esses são luxos raros, que o autor talvez possa conceder-se ape-
nas por engano (ECO, 1985, p. 8)

Neste trecho, Eco coloca alguns pontos que, segundo o próprio, preci-
sam ser pensados para a elaboração de um título.
1º. Há uma sugestão de trabalho, de elaboração, de lapidar um título,
de pensar nas consequências, nas possíveis interpretações, mais fáceis ou mais
difíceis;

142
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

2º. Afirma que não se deve oferecer interpretações, ou seja, não pode
induzir o leitor a uma possível visualização da narrativa;
3º O título é uma chave interpretativa;
4º Os títulos mais sugestivos são os que se reduzem ao nome do herói,
mas há um perigo, com o título sendo o nome do herói, poderá ocorrer a cen-
tralização em um personagem e minimizar os outros;
5º Ou ser “desonesto como Dumas”, escrever um título que não seja o
que representa realmente a narrativa.
Por meio destas observações, o teórico afirma que a escolha do título
de um romance requer muito trabalho e reflexões sobre o impacto no leitor. Um
título pode enganar, criar uma expectativa falsa, fazer referências a outras nar-
rativas. Dessa forma, considera-se o título uma chave interpretativa, um ele-
mento essencial no processo de criação e escrita de um romance. E o romancista
justifica esse trabalho de cálculo e de subjetividade:

Meu romance tinha outro título de trabalho, que era A abadia do crime. Aban-
donei-o porque fixaria a atenção do leitor apenas sobre a intriga policial e pode-
ria, injustamente, induzir alguns leitores sem sorte, à cata de histórias cheias de
ação, a lançar-se sobre um livro que os teria enganado. Meu sonho era intitulá-
lo Adso de Melk. Título bastante neutro, já que Adso, afinal de contas, era a voz
narrativa. Mas aqui na Itália os editores não apreciam os nomes próprios, até
mesmo Fermo e Lucia foi reciclado de outra forma e, de resto, existem poucos
exemplos, como Lemmonio Boreo, Rubé ou Metello... Pouquíssimos em relação
às legiões de primas Bete, Barry Lindon, Armance e Tom Jones, que povoam ou-
tras literaturas. (ECO, 1985, p. 8 – 9)

Eco realiza um trabalho matemático, ou seja, calcula as consequências


interpretativas de seu título. Não poderá ser apenas um desejo, pois as editoras
possuem uma influência na finalização da publicação, afinal, visualizam o possí-
vel leitor; mas também precisa ser um título que deixe o leitor pensar, um título
subjetivo, envolvido em algum mistério de sua criação. Continuando com Eco:

A ideia de O nome da rosa veio-me quase por acaso e agradou-me porque a rosa é
uma figura simbólica, tão densa de significados que quase não tem mais nenhum:
rosa mística, e rosa ela viveu o que vivem as rosas, a guerra das duas rosas, uma
rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa, os rosa-cruzes, grato pelas magníficas
rosas, rosa fresca cheia de olor. Isso acabaria despistando o leitor, que não pode-
ria realmente escolher uma interpretação; e ainda que tivesse percebido as pos-
síveis leituras nominalistas do verso final, já teria chegado justamente ao final,
após ter feito as mais variadas escolhas. Um título deve confundir as ideias,
nunca discipliná-las (ECO, 1985, p. 9).

Percebemos, nas palavras de Eco, como o processo de criação de um


título é trabalhoso e requer de seu escritor muita sabedoria para saber dosar a
pulsão e o cálculo. Assim, nos propomos a analisar as mudanças ocorridas no

143
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

título de Nicodemos Sena. Será que o título final A espera do nunca mais – uma saga
amazônica é uma chave interpretativa? Vamos à análise proposta pelo artigo.

ANÁLISE DAS VERSÕES: CÁLCULO E PULSÃO EM ‘A ESPERA DO


NUNCA MAIS – UMA SAGA AMAZÔNICA’

Na capa da Caderneta de anotações, encontramos três versões para o


título da obra:
1. A espera;
2. Uma espera longa demais; e
3. A espera do nunca mais.
Todas as possibilidades escritas por Sena na capa da caderneta são títulos
em que percebemos um desenvolvimento, acréscimos feitos na tentativa de
expressar o que o escritor desejaria.
Abaixo, apresentamos as três versões do título do romance contidas na
capa da Caderneta de anotações.

Figura 1 - Capa da Caderneta de anotações de Nicodemos Sena.

Fonte: próprio autor.

144
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Figura 2 - Manuscrito da Caderneta de anotações de Sena em que aparece a pri-


meira escolha da versão do título do romance.

Fonte: próprio autor.

145
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Figura 3 - Capa do datiloscrito A espera do nunca mais enviado à Editora Cejup


para avaliação.

Fonte: próprio autor.

146
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Figura 4 - Capa da primeira edição pela Editora Cejup em 1999.

Fonte: próprio autor.

Figura 5 - Capa da segunda edição pela Editora Cejup em 2002.

Fonte: próprio autor

147
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Observando o percurso das capas, acompanhamos também as mudan-


ças no título do romance. Na caderneta tínhamos três opções bem sugestivas.
Vamos à análise: a primeira opção de título – A espera – é formada gramatical-
mente por um artigo feminino no singular e o verbo ‘esperar’ substantivado.
Semanticamente, o título traz uma carga de significados para o verbo ‘esperar’:
espera o quê? Quem espera? Por que espera? Sugere-se uma espera demorada. E
ainda é uma espera específica, não se utilizou um artigo indefinido: Uma espera.
São muitas indagações que poderiam ser feitas com esse título. E quando se lê
a obra, há o preenchimento de algumas lacunas: a espera de um passado que
retorne? A espera de um futuro diferente? A espera de achar uma identidade? A
espera dos caboclos amazônicos? A espera de uma Amazônia extrativista? São
suposições cabíveis na relação entre o título e a obra.
O segundo título possível foi – Uma espera longa demais – acréscimos que
mudaram e trouxeram mais informações ao leitor: de artigo definido para um
indefinido: Uma espera X A espera; os acréscimos de um adjetivo – longa – e de
um advérbio – demais. O título evoca um trabalho com o tempo, com algo que
não chega, algo ou alguém que demora a aparecer, a se apresentar. Seria a espera
dos caboclos pelo desenvolvimento? Seria a espera de Gedeão por seu passado?
Seria a espera da Amazônia por ser reconhecida? Sena soube trabalhar a ques-
tão temporal e espacial de forma a nos mostrar como são essas duas forças na
Amazônia. E Sena tenta construir um título que abarque essas questões, ao
mesmo tempo em que deixa o leitor confuso (1º título: A espera), tenta mostrar
alguns caminhos (2º título: Uma espera longa demais).
E a terceira opção de título – A espera do nunca mais. A versão que preva-
leceu na publicação da primeira e segunda edições. Sena volta a usar o artigo
definido e retira o adjetivo ‘longa’ e o advérbio ‘demais’; acrescenta um objeto:
o nunca mais. Nesse título, temos uma oposição: como esperar algo que se nomeia
como ‘nunca mais’? Sena apresenta pela primeira vez um objeto à resposta do
verbo ‘esperar’; mas não é um objeto claro, algo que poderíamos visualizar; há
um enigma, uma bruma nessa espera, algo que não pode ser visualizado, e de-
pendendo da leitura, até depois da obra lida, poderá ficar a dúvida. O que seria
esse ‘nunca mais’? Uma possibilidade de leitura remota, mas possível é relacio-
nar esse ‘nunca mais’ à Terra do nunca do Conto de fadas Peter Pan, onde há
uma Terra denominada ‘Terra do nunca’ onde viviam crianças condenadas a
nunca se tornarem adultas. Uma terra em que não havia tristeza, os problemas
do mundo dos adultos não chegavam até lá.
Após a leitura da obra de Sena, poderíamos construir essa relação com
a Amazônia antes da chegada do homem branco, do colonizador. Uma leitura
possível para quem esperaria a volta de um passado sem o homem branco na

148
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Amazônia. O título nos apresenta uma dualidade: ao mesmo tempo em que


apresenta uma esperança por meio do verbo ‘esperar’ traz também um senti-
mento de tristeza, de desolação com a expressão ‘nunca mais’ – algo que nunca
voltará a ser como antes, algo que não tem retorno. São várias as interpretações
para este título.
Na comparação entre as duas edições publicadas, identifica-se que o
título permaneceu o mesmo, não houve alterações. Apenas a indicação à men-
ção ao Prêmio Lima Barreto Brasil 500 anos que Sena recebeu da União Brasi-
leira de Escritores.
Voltando à análise, há dois títulos bastante neutros e subjetivos: A ES-
PERA e UMA ESPERA LONGA DEMAIS, presente na ideia inicial, na caderneta
de anotações. Títulos que dariam margens a várias intepretações, não há uma ex-
plicação ou direcionamento de leitura. Seriam chaves interpretativas, segundo as
observações de Umberto Eco. Uma espera longa demais - longa para quem? Uma es-
pera de quê ou de quem? E por que muito longa? E será que no final da obra, o que
era esperado chegou? – são indagações que ocorreriam com este título. E o escri-
tor constrói índices de possíveis respostas a esse título no romance:

Gedeão acostumou-se a pensar que um dia Dora voltaria. Então ele a protegeria
no colo e velaria o seu sono, afugentando os espíritos malignos que rondam os
tapiris nas tardes de chuva. Nas noites sem Lua, ficaria até tarde apreciando as
estrelas e, de manhã, ainda impregnado do seu perfume, pescaria o tucunaré mais
bonito, depois assaria, fazendo questão de colocar ele mesmo a comida em sua
boca. No trabalho da roça, sob um sol a pino, protegeria sua cabecinha com um
chapéu que ele mesmo teceria; e, se um dia naufragassem, não hesitaria em mor-
rer por ela. Embora estivesse triste, Gedeão não desesperava, pois a esperança é
como o ar para esses caboclos esquecidos há séculos no grande vale e que se
acostumaram a viver uma longa espera. (SENA, 2002, p. 260-261)

Neste trecho do romance, Sena dá indícios de possíveis respostas à es-


pera do seu título. Numa construção idealista, coloca Gedeão ainda com carac-
terísticas românticas, esperando uma vida ainda baseada no passado, ainda não
contaminada pela cultura do Outro. Uma espera por um amor idealizado com
a possível mocinha da história. E na página 766, Sena continua com essa espera:
“Ele saberia esperar por ela, aliás que a sua vida até ali não passara de uma longa
espera.” (SENA, 2002, p. 766).
Outra espera construída por Sena no romance é relacionada à persona-
gem Diana. Quando Eduardo terá que se ausentar da vila, Diana aparece e os
dois conversam:

- Desculpa-me se te ofendi – disse ele. – Nunca me ofendeste nem nunca vai me


ofender – sussurrou ela. – Sabes por quê? – continuou a cunhantaim – Porque
aprendi a nunca esperar nada de ninguém. Vim aqui pensando deitar esta noite

149
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

contigo, se tu me quisesse. Mas podes não querer; eu não me zango. Podes tam-
bém ir para Santa Irene. Bem que eu queria ir contigo, mas se nunca mais voltares
também não vou chorar. Sabe, a gente aqui nasce e cresce esperando uma coisa
que a gente nem sabe o que é. A gente espera, espera, espera, tanto espera que
acaba morrendo sem sabe que passou a vida esperando. (SENA, 2002, p. 807-808)

Aqui, Diana parece mais realista que Gedeão, pois sabe que a espera pode
não ser boa, ficar esperando algo acontecer pode ser destruído pelo tempo. Temos
respostas opostas a essa espera: a idealista de Gedeão e a fatalista de Diana. Duas
visões de uma espera longa demais. E para finalizar, Sena propõe uma resposta
social a essa espera por intermédio da personagem Dora, uma professora:

Agora entendia o que ele queria dizer. Enquanto mastigava o delicioso beiju que
Matilde fizera para ela, Dora pensou que Tainacã, a estrela grande, dera aos ca-
rajás a semente da mandioca, do milho e de outras plantas que eles não conhe-
ciam. Mas de quê adiantou? Os brancos vieram e roubaram o futuro dos índios.
Ela faria diferente; daria aos tapuios algo que ninguém ia poder tomar. Ensinaria
as crianças tapuias a lerem e escreverem, a se defenderem no mundo hostil que
estava por vir, mas também contaria as histórias antigas que os velhos gostariam
de esquecer, plantando, assim, na mente das crianças, a semente dos sonhos,
para que elas, ao crescerem, não ficassem como seus pais: À ESPERA DO NUNCA
MAIS. (SENA, 2002, p. 870).

Sena nos propõe o futuro como resposta à espera do nunca mais, os


caboclos esperam um futuro que o passado já havia mostrado. Mas como isso é
impossível, pois tudo se transforma e se modifica, não haveria como se viver
mais naquele passado sem lutas, sem guerras, sem a presença do homem branco.
Esse grupo teria que saber conviver com o progresso, com os problemas que o
desenvolvimento trouxe e trará ainda. E a proposta para esta espera foi por
meio da educação, da leitura e da escrita. Uma proposta social por intermédio
de uma personagem feminina e com a profissão de professora.
Fazendo uma análise com base nos dizeres de Umberto Eco, afirma-se
que de início o título de Nicodemos era uma chave interpretativa completa,
pois gerava um campo de interpretações ao leitor. Quando se colocou a expli-
cação (uma saga amazônica), um designativo explicativo, a chave deixou de ser
completa e tornou-se indicadora de apenas uma interpretação. Deixou de ser
uma metáfora geradora para se tornar uma metáfora autoexplicativa.
E se Sena tivesse deixado também apenas A espera do nunca mais, teríamos
uma chave interpretativa – o que seria esse nunca mais? Nelly Novaes Coelho
responde essa pergunta, mas baseada no designativo – uma saga amazônica.

Esse ‘nunca mais’ aponta para o inevitável desaparecimento da Amazônia encan-


tada dos tempos de origem, e que a civilização do progresso, inevitavelmente,
vem destruindo. Uma Amazônia humana/fraterna que, entretanto, jamais desa-
parecerá do nosso imaginário, pois foi transformada em Livro – a saga A espera do
nunca mais. (COELHO, 2013, p. 769)

150
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Observamos que a interpretação deste – nunca mais – se fecha com o


designativo (uma saga amazônica). São suposições sobre as possibilidades de
um título.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Analisando os argumentos acima apresentados, consideramos que o tí-


tulo da versão publicada do romance não se encaixa em uma metáfora geradora
de sentidos, pelo contrário, quando houve a inserção do designativo – uma saga
amazônica – ao título, restringiu-se seu sentido e fecharam-se as possíveis inter-
pretações. Pontuamos também os possíveis sentidos que este título traz no de-
correr da leitura do romance. São indagações necessárias para que o leitor tam-
bém mergulhe nesta espera e construa sua própria resposta. O escritor optou
por uma resposta social, inseriu a educação como possível arma de enfrenta-
mento para os caboclos amazônicos em relação aos problemas que o desenvol-
vimento trará. Não abandonará o passado com as histórias, lendas, mitos e so-
nhos que os constituem, mas acrescentará outros sonhos, outras possibilidades
de enxergar a Amazônia e seus problemas.

151
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

BERGEZ... [et al.] Métodos críticos para a análise literária. Tradução: Olinda Ma-
ria Rodrigues Prata; Revisão da tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Gal-
vão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: Estudos de Teoria e História Literá-


ria. 11ª ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. Tradução: Marina Appen-


zeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

CIRILLO, José; GRANDO, Ângela. (Orgs.) Processo de Criação e Interações – a


crítica genética em debate nas artes, ensino e literatura. Belo Horizonte: C/Arte,
2008

COELHO, Nelly Novaes. Escritores brasileiros do século XX – Um testamento


crítico. Taubaté, São Paulo: Letras Selvagem, 2013.

ECO, Umberto. Pós-Escrito a O nome da Rosa – As origens e o processo de criação


do livro mais vendido em 1984. Tradução de Letizia Zini Antunes e Álvaro Loren-
cini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

FREITAS, Marilene Correa da Silva; NASCIMENTO, Celso Augusto Torres do. A


etnociência e os saberes tradicionais agrícolas na Amazônia. In: Epifanias da Ama-
zônia, relações de poder, trabalho e práticas sociais. Org.: Iraildes Caldas Torres;
Rooney Augusto Vasconcelos Barros; Diogo Gonzaga Torres Neto. 2016.

GUARALDO, Laís. A diversidade de processos nos cadernos de criação. Con-


gresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edi-
ção, 2012

GRÉSILLON, A.; WERNER, Michel. Leçons d’ecriture: Ce que dissent les manu-
scripts. Paris, Lettres Modernes, 1985.

GRÉSILLON, Almuth. Alguns apontamentos sobre a história da crítica genética.


Scielo, São Paulo, v. 5, jan./abr. 1991.

GRÉSILLON, Almuth. Elementos da crítica genética: ler os manuscritos moder-


nos. Cristina de Campos (Trad.). Porto Alegre: UFRGS, 2007.

152
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

GRÉSILLON, Almuth. Devagar: obras. In: Criação em processo – ensaios de crítica


genética. Org: Roberto Zular. São Paulo: Iluminuras, 2002.

LIMA, Simone de Souza. Amazônia babel: línguas, ficção, margens, nomadismos e


resíduos utópicos. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Meditação devaneante entre o rio e a floresta. In:
Arteriais – revista do PPGARTES / ICA / UFPA / Nº 03 / Agosto de 2016.

LOUREIRO, João de Jesus Pães. Obras reunidas: poesia I Cultura Amazônica –


Uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.

LUKÁCS, George. Teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as for-


mas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Ci-
dades: Editora 34, 2000. (Coleção Espírito Crítico)

SARAIVA, Arnaldo. Conversas com escritores brasileiros. Porto: Edição do Con-


gresso Portugal-Brasil, 2000.

SENA, Nicodemos. A espera do nunca mais: uma saga amazônica. 2ª ed. Belém:
Cejup, 2002.

SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003.

SENA, Nicodemos. A mulher, o Homem e o Cão. Taubaté, São Paulo: Letras Sel-
vagem, 2009.

SENA, Nicodemos. As lições da selva e a utopia da língua. In: Jornal O Estado do


Tapajós. Santarém-PA, Brasil, 08/08/2013.

SENA, Nicodemos. Choro por ti, Belterra. Taubaté, São Paulo: LetraSelvagem,
2017.

WILLEMART, Phillipe. Universo da criação literária: Crítica Genética, Crítica


Pós-

153
TRANSGRESSÃO POÉTICA VERBO-VISUAL EM
OS CAÇADORES DE PROSÓDIAS (1994),
DE DURVALINO COUTO

Josivan Antonio do Nascimento1

Este artigo é resultado de uma comunicação oral apresentada no XVI


Congresso Internacional ABRALIC, simpósio Poesia e transgressão (83), coorde-
nado pelo Prof. Dr. Cristiano de Sales (UTFPR) e Prof. Dr. André Cechinel
(UNESC), realizado na Universidade de Brasília (UnB), Brasília-DF, em 2019.
Partindo das discussões promovidas pelo simpósio, neste estudo apresento al-
gumas características que se configuram como processos de transgressão poé-
tica verbo-visual em alguns poemas da obra Os caçadores de prosódias (1994), de
Durvalino Couto Filho, poeta Teresinense aqui referenciado apenas como Dur-
valino Couto. Em 1994 publicou a obra Os caçadores de prosódias através do Pro-
jeto Petrônio Portela da Fundação Cultural do Piauí. Embora existam referên-
cias a Durvalino Couto em artigos sobre o cinema super-8 e a ditadura militar,
a obra apresentada ainda não é tão citada pela crítica acadêmica. Numa entre-
vista concedia a Jaislan Monteiro (2012), Durvalino Couto promete o lança-
mento de um segundo título chamado Big sentido para 2013, mas ainda não foi
publicado. Numa conversa informal com autor em 2019, Durvalino Couto con-
tou-me que o novo projeto continua sendo adiado.
O interesse pela obra Os caçadores de prosódias (1994) justifica-se pelo
fato de Durvalino Couto reconstruir através da poesia e outras composições
textuais a intensidade cultural das experiências de contracultura construídas
com artistas de Teresina entre o final dos anos 1960 e início de 1970, tais como
Arnaldo Albuquerque, Carlos Galvão, Edmar Oliveira, Paulo José Cunha, Tor-
quato Neto entre outros. Em razão da imposição do regime político-militar da
época, os jovens artistas resistiam e confrontavam essas barreiras reinventando
modelos de arte a partir da poesia, música, cinema em super-8 e até nos modos
de vestir, falar e se comportar. De acordo com Durvalino Couto, o rompimento
com tradições e formas de linguagens era usado como ferramenta de recusa dos

1
Doutorando em Letras/Literatura pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) sob orientação do Prof.
Dr. Luizir de Oliveira. Tem interesse na relação entre Literatura, Semiótica e Filosofia. É bolsista CA-
PES e SEDUC-PI liberado para cursar pós-graduação. E-mail: josivnascimento@outlook.com
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ideais impostos pelo governo militar. Dessa forma, os homens deixavam os ca-
belos crescerem e as respectivas namoradas usavam os pelos das axilas grandes.
Qualquer ato contra os padrões da época era considerado uma forma de trans-
gressão: “saíamos de casa, íamos morar em comunidades, as meninas começa-
ram a fazer sexo, a tomar pílula anticoncepcional” (MONTEIRO, 2012, p. 10).
O corpo assumia, nesse aspecto, uma atitude política. Conforme esclarece
Laura Brandão (2013, p. 14) em seu artigo sobre a literatura alternativa na dé-
cada de 1970 no Piauí, essa postura não se alinhava a relações partidárias, mas
“[...] de micropolíticas de resistência cotidianas e fragmentadas, em que o corpo
e a palavra foram as principais armas. Houve, por meio do uso do corpo e das
ações desviantes, uma politização intensa do cotidiano”. Essa luta constante
por liberdade de expressão através do corpo e de atividades rotineiras da vida
privada dos jovens que confrontavam as ideologias do governo possibilitou a
projeção dessa visão ativista sociopolítica em diversas formas de expressão ar-
tística. As obras passaram a assumir a mesma força compulsiva do corpo em
ação nas ruas, nos bares e locais onde havia encontro de artistas com expressões
ideológicas afins.
Esse modo radical de comportamento implica que viver era expressar-
se artisticamente. A vida protagonizava a beleza poética ou cinematográfica
que se podia desfrutar do mundo em ação. Os filmes em super-8 retratam essa
sede de filmar as coisas em fluxo e as pessoas na rua. Na literatura, a poética de
Durvalino Couto expressa esse sentimento de revolta quando elabora poemas
usando símbolos, imagens, manchetes de jornal e espaços vazios a serem pre-
enchidos pelo leitor. Isso pode ser caracterizado como modo de transgressão
poética por possuir traços estéticos que confrontam com os valores tradicionais
da academia naquela época. O autor-metafórico que se cria na obra elimina o
empírico e renasce a cada corpo-experiência e mente-experiência do leitor-em-
pírico e metafórico.2 Entre outros modos de transgressão verbo-visual em poe-
mas diversos em toda a obra, o poema a seguir retrata essa característica na
poética de Durvalino Couto:

2
Em minha tese em andamento desde 2019 sobre epigênse poética em H. Dobal no Programa de Pós-
Graduação em Letras/PPGEL da Universidade Federal do Piauí (UFPI), sob orientação do Prof. Dr.
Luizir de Oliveira, discuto o empírico e o metafórico no âmbito da autoria e do leitor como processo de
corpo- e mente-experiência (e vice-versa) desse modo de epigênese. Uso autor-metafórico no mesmo
sentido de eu poético e autor-empírico para me referir ao autor do texto, mesmo sentido empregado por
Umberto Eco (2005). A mesma regra equivale ao universo do leitor.

156
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Figura 1 — Poema Ternura/Luxúria

(DURVALINO COUTO, 1994, p. 146-147, reprodução fotográfica a partir do livro).

O poema reproduzido na Figura 1 mostra uma transgressão poética re-


velando a semiose da espécie humana a partir da transuasão de símbolos verbo-
visuais que correspondem por chave léxica aos sexos masculino e feminino. 3 A
dicotomia luxúria-ternura para corresponder a masculino-feminino nesta ordem se
imbrica de modo a implicar desse transe verbal os símbolos usados para repre-
sentar ambos os sexos e o processo de cópula da espécie. Essa construção poé-
tica provoca uma transgressão de dois modos: uma no transe verbo-visual e a
outra no âmbito da escolha dos adjetivos ternura e luxúria para representar a
copulação. Sintaticamente, ambos os substantivos são femininos. Se, por um
lado, luxúria ao ser atribuído pelo poema ao sexo masculino simboliza o desejo
e a busca do prazer da carne, ternura é atribuída ao sexo feminino para enfati-
zar uma carga afetuosa que recebe a lascívia do sexo masculino. O jogo de lin-
guagem configura-se, de certo modo, como um registro peculiar do modo de

3
Os conceitos técnicos que uso neste estudo são de origem da semiótica desenvolvida por Charles
Peirce. Para uma leitura básica desses conceitos sugiro a obra Semiótica (2010), de Charles Peirce, lan-
çada pela Editora Perspectiva.

157
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

pensar as relações de afetos e reprodução. Nesse processo o verbo e a imagem


se fundem resultando na gênese do corpo como presença. A iconização da có-
pula é construída a partir de símbolos. Essa estratégia reforça a engenhosidade
linguística do texto ao fazer essa tradução dos símbolos em ícones que, por in-
tersemiose, tornam-se símbolos em processo de cognição. Décio Pignatari, em
seu estudo sobre Semiótica & literatura (2004), demonstra que a poesia atua
como um processo de iconização do simbólico. Isso significa, em outras pala-
vras, que fazer poesia é de certo modo traduzir símbolos em ícones. Essa inter-
semiose acontece a partir do mundo simbólico traduzido em linguagem poética
para desta traduzir-se como imagens daquele. Um fato que deve ser relevado
nessa compostura estético-poética é que o autor-empírico se torna, dessa ma-
neira, autor-metafórico de sua própria obra. Essa atitude aventureira do autor
em busca de mudanças e projetos de vida melhor e livre constitui um modo
marginalizado de fazer arte. Por conseguinte, tal atitude artística cria um modo
de transgressão verbo-visual por conter aspectos inovadores com o verbo pa-
drão em transuasão com símbolos e imagens que um poeta a não ser da elipse
não ousaria usar.
Nesse contexto é relevante destacar que se por um lado o estabeleci-
mento da ordem era a principal conduta do governo, por outro o rompimento
das regras era primordial para a produção poética dos jovens de então e assim
validar as angústias em obsistência com uma liberdade camuflada pelo poder.
O que mais dificultava a expansão dessas ideias de contracultura era o canal de
publicação das obras. O movimento artístico e a publicação das obras de arte
sofriam certas influências de censura por parte governo. Tudo o que fosse con-
tra as ideologias da ditadura era censurado e o autor poderia ser preso, tortu-
rado, exilado ou até mesmo morto. Em função da censura, a publicação das
obras dos jovens artistas que insistiam em produzir contracultura se dava atra-
vés de jornais alternativos criados e editados pelos próprios membros do grupo,
como é o caso do jornal Gramma lançado em 1972. Para Carlos Barbosa (2018),
mesmo vindo a público somente dois números, o jornal Gramma teve bastante
representatividade em Teresina como imprensa subterrânea na época a partir
de um modelo de comunicação desvinculado do jornalismo convencional. A
censura era tão forte que logo após o lançamento da primeira edição os mem-
bros foram chamados a depor na polícia em função de o título coincidir com o
jornal cubano Granma lançado em 1965 (MONTEIRO, 2012). Ainda assim, o
Gramma teve certa repercussão local servindo de ferramenta para exposição de
ideias postas à margem pela censura. Essas atividades fora do círculo editorial
da época caracterizaram uma geração de mimeógrafos. Contudo, como ressalva
Laura Brandão (2013), não se pode homogeneizar os grupos que produziam e

158
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

divulgavam a arte marginal mimeografada. A autora mostra que existia certa


divergência de pensamento entre os artistas da geração mimeógrafo. Nem todos
eles compartilhavam do mesmo modo de pensar a arte, a política e as questões
sociais de contracultura. A partir dessa heterogeneidade ideológica, Laura
Brandão destaca três subgrupos da geração mimeógrafo que foram responsáveis
por produzir e divulgar a arte e a cultura no Piauí durante a década de 1970.
Com destaque para a “ruptura com a forma” e “produção cinematográfica”, o
primeiro destacado é o Grupo Gramma, representado por Durvalino Couto, Edmar
Oliveira e outros. O segundo é o Grupo Corisco que com Cineas Santos, Paulo
Machado e outros editaram o jornal Chapada do Corisco e ajudaram a publicar
vários autores no estado, apesar de deixar vários outros de fora por não se en-
quadrarem na proposta estética do grupo. Por fim, o Grupo dos Inovadores lide-
rado por Elmar Carvalho, Francisco José Ribeiro, Paulo Couto e outros assumi-
ram em Parnaíba o jornal Inovação tendo alguns desses representantes partici-
pado do jornal Linguinha (BRANDÃO, 2013, p. 141).
A partir daí Laura Brandão destaca ainda que a semelhança entre esses
grupos era a ideia de contracultura que se dava como medida de resistência contra
os modelos padronizados. Isso possibilitava a divulgação de materiais que certa-
mente seriam censurados pela ditadura ao controlar os meios convencionais de
publicação. Diante disso, a produção e divulgação das obras eram de certa forma
um modo de transgressão. A ruptura de regras fez com que a linguagem fosse ma-
nuseada de maneira a expressar as angústias desses artistas e, ao mesmo tempo,
combater metaforicamente o regime da época criando alternativas estéticas ino-
vadoras. A aproximação de Torquato Neto do grupo de Durvalino Couto através
de uma entrevista concedida ao Gramma possibilitou uma sincronia maior entre a
produção local e o que estava acontecendo no restante do país, especialmente no
eixo Rio-São Paulo. Para manter-se a par dos eventos de então o jornal impresso e
as visitas de férias dos membros que estudavam fora do Estado eram as principais
ferramentas para troca de informações e experiências.
Esse engajamento político e cultural está presente na obra de Durvalino
Couto a partir de um autor-metafórico modelado por experiências de vida e arte
considerada marginal frente aos valores éticos, morais e estéticos de então. A mar-
ginalidade se dá tanto no modo de empregar novas vertentes de arte em modelos
tradicionais e próprios, como também no desafio de fazer da vida uma aventura
artística ao confrontar valores que freavam as atitudes estéticas propriamente di-
tas. No âmbito antropológico e político, Anderson Silva (2008, p. 28, grifo do au-
tor) esclarece em artigo que o termo marginal refere-se a uma espécie de “[...] sím-
bolo de confrontação social, busca por um padrão de vida divergente ao proposto
pelo status quo”. O autor afirma ainda que essa ruptura fez-se uma metáfora para os

159
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

jovens que faziam poesia e cinema. Anderson Silva pontua acertadamente o fato
de a produção desses artistas marginais terem necessitado criar estratégias pró-
prias para divulgação dessas obras influenciadas por movimentos de contracul-
tura, o que era censurado pelo governo. Os jornais nanicos — como o próprio Dur-
valino Couto chama — e outros de mais relevância foram as ferramentas que faci-
litaram a publicação e circulação das obras. Além disso, as reuniões entre os mem-
bros dos grupos em praças, ruas, bares, festas e até casa de amigos também com-
plementavam esse cenário de publicação e divulgação dos materiais de cunho crí-
tico. No caso dos filmes em super-8, Durvalino Couto revela que, devido à fragili-
dade do material e dificuldade em fazer cópias, a exibição acontecia mesmo na
casa de amigos e em festas. Não se podia contar com a exibição em cinemas
(MONTEIRO, 2012).
Nessa obsistência da arte de contracultura frente aos valores tradicionais
impostos tanto pelo governo, quanto pelo intelectualismo da academia, os poetas
marginais criaram um cenário social, crítico e artístico singular dentro desse mo-
mento histórico no Brasil. Laura Brandão (2013, p. 136) descreve que “para essa
juventude, o lugar da cultura e da poesia não deveria ser os salões nobres da capi-
tal, mas as praças, as ruas e os bares”. O confronto do lugar da poesia entre a rua e
os salões atribui à poesia marginal a vantagem de um horizonte que a poesia en-
clausurada em paredes não consegue abarcar. É essa liberdade que o poeta da
elipse supera frente ao poeta da academia, embora este também contenha certo
ato transgressor mesmo não estando ciente disso. Com a poesia marginal são va-
lorizados os versos livres, a poesia concreta, visual, semiótica e construções poéti-
cas afins. Na poesia tradicional como o soneto, por exemplo, é mais sutil perceber
uma transgressão poética. Ela ocorre quando um poema considerado soneto não
apresenta os mesmos aspectos qualiquantitativos de outro, tais como iconicidade
métrica, rítmica, estrutural, semântica, material, espaço-temporal e assim por di-
ante. Logo, qualquer ruptura desse aspecto qualitativo e quantitativo do poema-
soneto é um modo de transgressão poética. A diferença entre o poeta da academia
e o poeta da elipse é que o primeiro transgride sem engajamento no ato transgre-
dido e não faz a materialidade do verbo dialogar com o próprio verbo manifestado
e contido nela, ao passo que o segundo supera isso. Essa intersemiose enobrece a
poesia marginal e o poeta da elipse, tal como acontece nessas composições de Dur-
valino Couto:

160
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Figura 2 — Rever Figura 3 — Crise Figura 4 — Alívio

(DURVALINO COUTO, 1994,


p. 124-125, fotografia do origi-
(DURVALINO COUTO, 1994, p. nal).
142-143, fotografia do original).
(DURVALINO COUTO,
1994, p. 122, fotografia do
original).

Nas figuras de 2 a 4 Durvalino Couto emprega o diálogo entre o espaço-


tempo do verbo como presença com a própria materialidade da linguagem condi-
cionante do efeito poético. Nos três casos o verbo exige o ato de rever e o desloca-
mento do olhar para apreender o sentido contido nos elementos verbo-visuais.
Carlos Moisés (2007) discute este aspecto do deslocamento do olhar em ensaio
sobre poesia e utopia quando postula que a poesia exige um modo novo de ver as
coisas. Ela mostra as coisas conhecidas por meios que somente uma nova projeção
do olhar consegue dar conta do sentido. É esta metáfora que a transgressão verbal
na figura 2 manifesta. O papel-manteiga atribui ao verbo um efeito de vazio e des-
velamento desse buraco que a obsistência verbo-vazio supõe criar como presença.
Como as folhas são semi-transparentes, ao passar de uma página à outra, é possível
ver opacamente o texto da página que segue. Essa engenhosidade linguística
pondo em diálogo o verbo e a materialidade enriquecem a poesia do poeta da
elipse. Em nível menos dialético para além do verbo, a transuasão na figura 3 releva
somente o verbo quando a obsistência lexical endofórica promove uma crítica à
moeda naquela época. A construção verbo-visual com o símbolo monetário CR$
do Cruzeiro Real (moeda substituída pelo Real (R$) em 1994) atribui ao poema
um efeito poético e, ao mesmo tempo, uma crítica à crise econômica do momento.4
Na figura 3, por seu turno, a transuasão verbo-visual endoexofórica cria uma se-
miose que transcende o limite do verbo e de sua materialidade. Esse efeito é com-
posto a partir do movimento e de recursos morfossintáticos e fonológicos das duas
línguas envolvidas: o português e o inglês. Na parte em inglês a frase I leave you
[Deixo-te] no coração do lado esquerdo faz obsistência com o substantivo Alívio

4
Cf. Os caçadores de prosódias (1994): uma análise semiótica da poesia de Durvalino Couto (2018, disser-
tação), de Josivan Nascimento, para mais detalhes sobre esse tipo de construção verbal em Durvalino
Couto.

161
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

no coração da direita em português. A iconicidade gráfica e fonológica mostra que


no ato de fechar as páginas os dois corações se unem, ao passo que ao abri-las os
corações se partem e assim metaforiza a ideia de partida ou rompimento de laços.
A partida torna-se um alívio. Esse sentido só é manifestado com esse movimento
e com o conhecimento linguístico das palavras em inglês envolvidas. Em minha
dissertação Os caçadores de prosódias (1994): uma análise semiótica da poesia de Dur-
valino Couto (2018), ainda sem entender essa questão como ato transgressivo,
destaco que o coração do lado esquerdo na cor preta com letras brancas simboliza
um peso em confronto com a ideia de leveza iconizado na cor branca do coração à
direita com letras pretas. O resultado é que a composição se torna um poema icô-
nico-diagramático a partir da ideia de movimento que se funde aos recursos de
baixa tecnologia que o papel do livro consegue dispor ao poeta. Neste mesmo âm-
bito é comum encontrar na obra de Durvalino Couto poemas que implicam essa
ideia de movimento e há também casos em que o verbo e o verso parecem trans-
bordar da página e do livro.
Sobre essa transgressão poética com o uso da linguagem, Edwar Castelo
Branco e Fábio Brito (2016) destacam que isso caracteriza a poética de Durvalino
Couto como uma busca por formas experimentais que justificam o título da obra:
“Caçar prosódias, a atitude à qual Durvalino se propõe, é uma tentativa de subver-
ter a linguagem afinada, bem-comportada” (CASTELO BRANCO; BRITO, 2016,
p. 15). O desvio do uso formal da língua culta oferece ao autor-metafórico uma
busca incessante por possibilidades linguísticas que a norma padrão não permite
transgredir. Em torno dessas características, o autor-empírico manifesta um arca-
bouço heterogêneo em formas poéticas e estruturas verbais mais objetivas com o
propósito de cultivar na linguagem um compromisso ideológico em confronto com
os valores sociais, estéticos e políticos que angustiavam os poetas marginais da
década de 1970. A metáfora do poeta da elipse retrata uma figura que age como
sujeito de transgressão. O eu descontenta-se com a estaticidade do corpo e rema-
se a uma foz onde transbordam as subjetividades do autor-metafórico:

IV

Quando nasci,
os boêmios e letrados de academia
ainda chamavam poeta de “príncipe”.
Poeta-príncipe é como garçom que além de servir
puxa uma cadeira e conta piadas. O poeta da elipse
se assusta no país das belas letras,
findas cascatas e gozosas putas.
Ainda bem que as academias enrijecem
e os boêmios padecem da falta de tetas.
(DURVALINO COUTO, 1994, p. 70, grifos do autor).

162
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Nesta estrofe ao descrever poeta da elipse, o autor-metafórico faz uma


alusão irônica à formalidade da academia que não se sustenta sem as coisas que
somente o cotidiano pode oferecer. As engrenagens da vida são necessárias para a
manutenção da engenharia letrada do poeta-príncipe, quiçá uma referência ao for-
malismo parnasiano representado por Olavo Bilac. Ademais, o conceito pode
ainda remeter ao academicismo e ideia de poeta-príncipe no que tange à obra de
Da Costa e Silva, visto que o autor pertenceu à geração que fundou a Academia
Piauiense de Letras (APL), como pode ser observado na história da literatura pi-
auiense de Francisco Moura (2013). De qualquer maneira, a crítica está voltada
para os elementos formais da língua e da poesia. Diante disso, destaco duas carac-
terísticas principais que identificam os modos de transgressão poética na obra de
Durvalino Couto. O primeiro aspecto que enfatizo é a disposição de um autor-
metafórico comprometido com o engajamento político do autor-empírico a partir
da arte. Durvalino Couto expressa em sua obra uma mensagem de afirmação da
cultura local e tece críticas a certa necrofilia cultural por que passa a sociedade na
época (DURVALINO COUTO, 1994). Se a partir de Roland Barthes (2004) ao
discutir sobre a morte do autor entende-se que é nessa morte que a obra se mani-
festa, o Manifesto Pau Baçu crítica a morte do autor e da própria obra.

VIVA A VIDA!
O Brasil há tempos sofre de necrofilia cultural. ELES querem a morte do autor e
da obra, em troca da mercantilização do mito.
VIVA A VIDA! Abaixo a necrofilia cultural. Questão de ordem e de avanço. Ma-
nifesto Pau Baçu (DURVALINO COUTO, 1994, p. 25, grifos do autor).

O engajamento pela defesa da liberdade de criação e expressão artística


marca as reivindicações do Heliotropismo Positivo criado na época. A luta enfa-
tiza questões gerais que descrevem a opressão sofrida pela sociedade dominada
pelo militarismo em meados da segunda metade do século XX e a valorização da
cultura do Piauí. Conforme pontua Laura Brandão (2013), a pressão da ditadura
civil-militar provocou nos jovens artistas uma resistência em ceder aos valores que
seriam contra as aspirações da época. Nesse combate de ideologias o modo de viver
e as obras retratavam modelos alternativos de ver e experienciar o mundo. Os jo-
vens construíam, dessa maneira, uma vida biográfica que se dava de modo artís-
tica. O uso da pílula anticoncepcional por parte das meninas representava mais do
que um ato de rebeldia contra os padrões de família da época: simbolizava o livre
arbítrio da sexualidade feminina. Essa atitude marginal, como poderia ser consi-
derada nesse período, assumia uma visão política que se materializava na arte
como luta por direitos e liberdade de expressão corporal e de pensamento, embora
os excessos fossem prejudiciais, como é o caso do abuso do consumo de drogas,
crimes e vandalismo. Essas questões sociais são abordadas em vários poemas da

163
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

obra de Durvalino Couto. São freqüentes poemas que enfatizam o prazer do corpo,
o uso de drogas e outras questões críticas com palavras obscenas, principalmente
na parte intitulada Fesceninas com poemas de cunho sexual, tal como o soneto a
seguir:

BOCAGE

A de quem falo cavalga fogosa


Os campos relvados de minha terra.
E se à noite entre as pernas ela enterra
O mangalhão onde estremece e goza,

Será por ventura da Mãe-natura?


Ou serei eu, tal qual jovem Romeu,
O tal que a faz dar como nunca deu,
Dotado de tamanha pica-dura?

Não saberei, pois nunca mais resisto


Àquela dama por quem tanto valho.
Se não lhe basta meu palrar benquisto,

Fodo o cuzinho logo após o talho.


E se no escuro a buça inda revisto,
Mais que remonta o peso do caralho.
(DURVALINO COUTO, 1994, p. 58).

O soneto apresenta através de palavras de cunho sexual a liberdade de


prazer almejada pelos jovens da época. De certo modo a publicação de poemas com
esse teor temático era um ato de transgressão aos valores defendidos pala ditadura
militar. A busca pelo prazer do corpo e do bem-estar através de estratégias trans-
gressivas diversas difundiu entre os jovens um movimento que parecia ser a moda
do momento. Ao lado desse comportamento marginal entre os artistas, as influên-
cias externas com a cultura de outros países como referência também pode ter tido
uma participação significativa na disseminação desses valores de contracultura
em vários segmentos da arte e da vida social. A participação inquieta de Durvalino
Couto em diversas esferas culturais assegurou uma obra rica em diversas formas
de composição poética. Devido sua atuação no cinema super-8, teatro, jornalismo,
publicidade e música, seus poemas implicam uma semiose que se estende para
além do próprio signo verbal. Assim, o livro caracteriza-se por uma busca de um
modelo que possa descrever e contar as experiências que tornam seu contexto his-
tórico único e necessário para o enriquecimento da cultural local. A libertação ide-
ológica e social era, nesse contexto, a força-motriz que direcionava as inquietações
artísticas e políticas compartilhadas pelo autor-metafórico. A partir de Edwar
Castelo Branco e Fábio Brito (2016), concebo que a proposta cultural e política de
Durvalino Couto atuou como prática experimental para a afirmação de seu tempo
e da identidade de ser piauiense. Edwar Castelo Branco e Fábio Brito (2016, p. 8)

164
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

avaliam que nesse clamor pelas bases da cultura do Piauí, o manifesto Pau Baçu
também “[...] denuncia o trabalho parasitário da imprensa piauiense e as perdas
comerciais do Estado no campo da agroindústria, teimando em lutar pela retirada
do Piauí de seu estado clássico de atraso [...]” O trecho a seguir sobre o Heliotro-
pismo Positivo de 1981 retrata essa exaltação da cultura piauiense:

Pela valorização imediata do artista piauiense, enfim libertado dos inúteis Olim-
pus do saber e do rebolar das teses. Mais livre ainda do conservadorismo camu-
flado nas RAÍZES, que pinta para amaciar a audácia criadora.
[...]
Pela estética do aqui e agora – A CRUZADA NACIONAL CONTRA A MORTE.
A ação ordinária contra as artimanhas do Direito. A estética do AQUI E AGORA
repercutindo também lá fora.
[...]
Pela tomada imediata do Theatro 4 de Setembro.
Ação e trovoada. Chapada do Corisco. Manifesto Pau Baçu.
(DURVALINO COUTO, 1994, p. 27, grifo do autor).

A luta pela arte e do pensamento livre caracteriza essa transgressão


poética em Durvalino Couto ao fazer crítica de cunho político através do verbo
artístico. O clamor do autor-metafórico por um espaço cultural valida a neces-
sidade de garantir um lugar de expressão reconhecido. Embora o governo do
Estado da época tivesse projeto que concedia a publicação de obras e outros
eventos para valorização da cultura piauiense, era praticamente nula a possibi-
lidade desses poetas marginais terem uma obra aceita devido o rigor da censura
do governo. Isso permite implicar que o governo praticamente publicava so-
mente o que fosse de agrado de sua clientela. As obras dos artistas da elipse, na
linguagem de Durvalino Couto, eram consideradas inferiores. Esse engaja-
mento põe em debate a teoria da literatura e os estudos culturais quanto aos
aspectos estéticos, culturais, éticos, morais e políticos que a obra pode traçar.
Wanderson Lima (2008) declara que o próprio conceito de cultura tem se tor-
nado atualmente uma palavra fundamental para entender a questão política
dentro das discussões em torno da literatura. O conflito tem gerado uma dis-
cussão entre crítica de arte e teoria da literatura ainda sem conclusão:

Sem dúvida, a crítica de arte e a teoria literária nunca conseguiram chegar ao


consenso do que seria qualidade estética, mas isso não é motivo suficiente para
considerarmos inútil a tarefa de sondar o valor de um texto para além de seu
lugar e sua função na produção da cultura. Há que se questionar, antes de qual-
quer coisa, se de fato o estético é repressivo e elitista (LIMA, 2008, p. 125).

Diante desse conflito teórico, será possível pensar que a poesia marginal
tenha criado uma estética própria para fins específicos a partir da ruptura com o
elitismo ou terá sido apenas um despedaçamento de formas já existentes? Con-
cebo que o resultado seja heterogêneo e foi capaz de deslocar as projeções do olhar

165
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

sobre um determinado objeto e modo de fazer poesia. São nessas rupturas que se
percebe o vazamento e a força do transbordamento do que parece está enclausu-
rado. A poesia de Durvalino Couto não resolve esse embate teórico, mas configura
uma pretensão estética que desloca as projeções do olhar sobre um determinado
objeto poético a partir de um eu-metafórico que deseja superar a linguagem para
assim dominar a si mesmo. Daí surgem poemas com uma incessante iconização do
movimento, da fluidez e transbordamento de subjetividade através do domínio da
linguagem com disposição verbo-visual intrigante. Uma poética da inquietude do
eu à deriva de si remando contra a própria foz.
A ideia de movimento, fluidez e desejo de ação muito se deve à grande
influência de Torquato Neto sobre a obra de Durvalino Couto, especialmente
no que tange ao cinema super-8. Torquato Neto foi tão importante para o grupo
Gramma que após o suicídio do poeta, todo o grupo se dispersou e cada membro
foi cuidar da própria vida (MONTEIRO, 2012). Frederico Lima e Francisco
Castro (2014, p. 3) mostram que a partir da figura de Torquato Neto, Durvalino
Couto e o grupo do qual fazia parte mantinham o ideal de “[...] amplificar sua
noção de quebra dos padrões do que se entende por cultura, ao mesmo tempo
em que busca evidenciar modos de vida que não sejam conectados com certo
modelo ideal de comportamento”. A poesia de Durvalino Couto referencia Tor-
quato Neto em diversas passagens da obra. Os poemas tanto parodiam como
também criticam a vida intensa e insana do poeta torto. Desse modo, Durvalino
Couto parte de Torquato Neto para desenvolver uma estética própria para con-
finar na ideia de anjo envergado uma identidade para o verbo. Neste sentido,
paralelo à presença e profecia do anjo torto, “o movimento, a mudança de com-
portamento e a busca pelo destino se fazem necessários para a procura do pró-
prio eu poético” (NASCIMENTO, 2018, p. 144). O desejo de ação contribuiu
para Durvalino Couto o desenvolvimento de poemas usando estratégias anti-
convencionais para afirmar uma estética de contracultura. Desse modo, estão
presentes na obra de Durvalino Couto características que mostram a liberdade
do poeta ao usar poemas ilustrados com imagens, manchetes, texto de prosa-
poética sem pontuação e sem divisão de parágrafos, estrofes emparelhadas e
sobrepostas, números, símbolos e situações correlatas. Além das composições
já citadas nas figuras de 1 a 4, destaco aqui o poema Decálogo do maldito por ter
uma intenção pedagógica de formação literária. O poema consiste em 10 breves
descrições biográficas estereotipadas de 10 autores para serem associadas às 10
imagens de rosto dos respectivos autores na página que segue o decálogo. Por
economia de espaço deixo aqui de seguir as normas da NBR 10520 (2002) e faço
a digitalização das 10 estrofes em duas colunas sem recuo de citação, mas no
livro todas as 10 estrofes aparecem de forma contínua ocupando três páginas:

166
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

DECÁLOGO DO MALDITO na hora da prove dos nove.


Cantar o azeviche, a gíria, o cu
1 - a língua vivíssima.
Andar pelas ruas de Buenos Aires E ainda assim
de taxi parar sempre nos sinais vermelhos.
com os olhos fechados.
Conhecer a palavra 7
como quem alisa um tigre. Caminhar pelo deserto
não em busca de um oásis,
2 mas como quem perfura um poço artesiano
Exigir a experiência da palavra que vá do inferno ao Nada.
exata.
Mesmo sem desatar o nó 8
da Grande Amarra, Driblar uma fera nada amável
lutar com o acaso que mata. chamada Brasil. Fumar General.
E o corpo estiola em grama rara. Voar no Concorde.
Dar adeus na canção, num veleiro.
3 E criar um país que morre junto
Entornar doses e doses (o ar é letal)
de láudano. Discursar com seus haustos de acossado,
na fila do metrô. Prever a praga. nos últimos dias.
E morrer abraçado com os sapatos. 9
Fechar os olhos da filha
4 e morrer em seguida.
Fazer um banqueiro mineiro Tornar-se suspeito à Máquina do Mundo,
financiar utopias no meio do palavrório.
e reencarná-las numa película. Definitivamente agora
Depois morrer de câncer, nada de entrevista!
pois “todas as piadas são possíveis
no Brasil de cada dia.” 10
Bater uma bronha
5 para uma cançonetista inglesa.
Atravessar a nado e correndo Fumar charutos caros na reunião do partido.
uma grande distância. Medir Puxar o revólver
o perímetro da cabeça e apertar o gatilho.
e criar com ternura E expulsar o pentelho com um peido.
em si
uma ave noturna.

6
Sobreviver o coração
ao fuzilamento simulado.
Perceber O SOL entre os matutinos,

167
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Figura 5 — Imagens que completam o decálogo

(DURVALINO COUTO, 1994, p. 41-45, fotografia do original).

O poema Decálogo do maldito acompanhado das imagens ilustrativas na fi-


gura 5 apresenta-se ao leitor como mecanismo de entretenimento que de algum
modo também transfere conhecimento literário. O desafio da leitura parte do
verbo e das imagens que incluem Torquato Neto, Glauber Rocha, Mário Faustino,
Luis Borges e outras referências que influenciaram a escrita de Durvalino Couto.
É preciso conhecer cada autor citado para poder fazer a associação correta entre
cada decálogo e a imagem à qual corresponde. Para não subtrair do livro a proposta
do autor-metafórico do poema prefiro aqui não fazer essa associação e deixo livre
para que o próprio leitor faça esse experimento de leitura verbo-visual.
Diante das formas de transgressão poéticas aqui referenciadas e discu-
tidas até então dentre diversas outras que a obra Os caçadores de prosódias (1994)
possibilita, concluo este trabalho enfatizando que a poesia de Durvalino Couto
desenvolve um eu que se permite fazer parte da linguagem que o expressa. A
expressividade desses jovens serviu como uma reação aos limites de criação,
expressão, pensamento e apreciação crítica impostos pelos militares. O deslo-
camento do olhar sobre o verbo como manifestação poética caracteriza a trans-
gressão poética de Durvalino Couto como criação e inovação que se refaz a cada
olhar. A recomposição do olhar faz-se assim um modo de transgressão da forma

168
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

fixa como crítica desta. É nessa conjuntura que nasce o poeta da elipse, aquele
que fareja o osso raspado pelo mito da academia. A condição de ser e estar apre-
senta uma poesia que se espraia em versos como resultado de uma tortura sin-
tática e estética. A afirmação e defesa da cultura local é também uma afirmação
de si. Quiçá o poeta consiga fugir do contexto, do modelo pronto ou circuns-
tâncias que o angustia, mas não consegue despender-se de si mesmo frente ao
verbo que o possui e despedaça em sílabas sem sentido. Embora desconjugado,
o verbo continua sendo linguagem e o eu não consegue transbordar o limite do
verbo, por ser também verbo:

Figura 6 — Durvalino Couto

(DURVALINO COUTO, 1994, p. 155, fotografia do original).

Finalizo com este poema da figura 6 mostrando que no nome Durvalino


Couto, embora dividido silabicamente, existe um lado de dentro (IN) e outro de
fora (OUT). Contudo, ambos os lados continuam dentro da própria linguagem.
Constrói-se assim uma metáfora para a incapacidade do ser de libertar-se da lin-
guagem: o abrir e fechar dos parênteses simboliza que o ser pode até desconjugar-
se no nome e na forma, mas o despedaçamento continua dentro dos limites do
verbo. Isso mostra que a poesia marginal ensina que o limite do homem acaba
sendo as fronteiras do verbo que o manifesta e constitui a partir da projeção do
olhar que se tem sobre si. O poeta pode até não seguir a regra, mas acaba criando
outra que é a de não seguir a regra. E nesse comboio de não-seguir desloca a não-
regra para uma identidade estética da negação. Faz-se um rompimento do espaço-
tempo da poesia. A negação do verbo é também a negação do homem que não se
desvincula daquele. Eis o paradoxo do poeta da elipse e da poesia marginal.

169
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). NBR 10520:


informação e documentação: citações em documentos. Rio de Janeiro. 2002.

BARBOSA, Carlos. “Prata lindástica facada”: jornalismo experimental juvenil e o


estabelecimento de novos códigos comunicacionais no Piauí. Contraponto. ISSN
2236-6822. Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-
Graduação em História do Brasil/UFPI. Teresina, p. 73-89, v. 7, n. 2, jun./dez, 2018.
Disponível em: <https://ojs.ufpi.br/index.php/contraponto/article/viewFile/8556/
5136> Acesso em: 17 fev. 2020.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Prefácio Leyla Perrone-Moisés; tradução


Mario Laranjeira; revisão de tradução Andréa Stahel M. da Silva. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2004. (Coleção Roland Barthes)

BRANDÃO, Laura. “Os caçadores de prosódias”: literatura alternativa, contracul-


tura e corpo na década de 1970 no Piauí. In: EUGÊNIO, João Kennedy (Org.). His-
tória e vida. Teresina, PI: EDUFPI/PET, 2013, p. 125-148.

CASTELO BRANCO, Edwar; BRITO, Fábio. Caçar e liquidar prosódias em pau-


péria: história e literatura menor entre Torquato Neto e Durvalino Couto Filho.
Fênix.

Revista de História e Estudos Culturais, ISSN: 1807-6971, Minas Gerais-MG, Uni-


versidade Federal de Uberlândia (NEHAC-UFU), p. 1-16, vol. 13, ano XIII, n. 1,
jan.-jun., 2016 Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF37/artigo_2_
secao_livre_Edwar_de_Alencar_Fabio_Leonardo_fenix_jan_jun_2016.pdf> Acesso
em: 17 fev. 2020.

DURVALINO COUTO. Os caçadores de prosódias. Teresina: Projeto Petrônio Portela


/ Fundação Cultural do Piauí, 1994.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução MF; revisão da tradução


e texto final Monica Stabel. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Tópicos)

LIMA, Frederico; CASTRO, Francisco. Linguagem e jornalismo experimental ju-


venil em Teresina nos anos 1970. Fênix. Revista de História e Estudos Culturais,

170
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ISSN 1807-6971, Minas Gerais-MG, Universidade Federal de Uberlândia


(NEHAC-UFU), p. 1-15, vol. 11, ano XI, n. 2, julho-dezembro, 2014. Disponível em:
<http://www.revistafenix.pro.br/PDF34/Artigo_Frederico%20Osanan%20Amo-
rim%20Lima_Francisco%20Jose%20Leandro.pdf> Acesso em: 17 fev. 2020.

LIMA, Wanderson. A virada cultural e a crise dos estudos literários. In: A cor das
letras: revista do departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira
de Santana. Imagens da cultura: linguagens e mediações. ISSNe 2594-9675, ISSN-
L 1415-8973, Feira de Santana: UEFS, p. 121-131, v. 9, n. 1, anual, 2008. Disponível
em: <http://periodicos.uefs.br/index.php/acordasletras/article/view/1544> Acesso
em: 14 mar. 2020.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia & Utopia: sobre a função social da poesia e do poeta.
São Paulo: Escrituras, 2007. (coleção Ensaios Transversais; 35)

MONTEIRO, Jaislan. Entrevista com Durvalino Couto Filho. Revista dEsEnrEdoS.


ISSN 2175-3903, Teresina-PI, ano IV, n. 15, outubro-novembro-dezembro, 2012.
Disponível em: <http://www.desenredos.com.br/entrevista_12.html> Acesso em: 17
fev. 2020.

MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina, PI: EDUFPI, 2013.

NASCIMENTO, Josivan Antonio do. Os caçadores de prosódias (1994): uma análise


semiótica da poesia de Durvalino Couto. 2018. 229f. il. Dissertação (Mestrado
Acadêmico em Letras) – Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Teresina, PI,
2018. Orientador: Prof. Dr. Feliciano José Bezerra Filho

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução José Teixeira Coelho Neto; 4 ed. São
Paulo: Perspectiva, 2010. (Estudos; 46; dirigida por J. Guinsburg)

PIGNATARI, Décio. Semiótica & Literatura. 6 ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

SILVA, Anderson. Antologia poética: a geração marginal e o modernismo de 22.


Ipotesi, Juiz de Fora, p. 37-46, v. 12, n. 2, jul./dez., 2008. Disponível em:
<http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2011/04/4-Antologia-
po%C3%A9tica.pdf> Acesso em: 17 fev. 2020.

XVI CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC: circulação, tramas e sentidos


na literatura, 2019, Universidade de Brasília (UnB), Brasília-DF. Caderno de resumos

171
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de comunicações. Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC);


organizadores Rogério da Silva Lima Ana Maria Amorim Frederico Cabala; ISBN
978-85-86678-31-8. Brasília-DF: ABRALIC, 2019. Disponível em: <http://www.
abralic.org.br/downloads/2019/caderno-resumos-2019.pdf>Acesso em: 14 mar.
2020.

172
FORMAÇÃO LEITORA COM BEBÊS:
A LITERATURA NA CRECHE

Larissa Barbosa dos Santos 1

Introdução

A formação leitora na Educação de bebês, torna-se importante pois re-


centemente, documentos como as DCNEI (BRASIL, 2010) e a Base Nacional
Comum Curricular (2017) refletem sobre as experiências educacionais para as
infâncias atendidas na creche, de modo a esclarecer para toda a sociedade a re-
alização de atividades baseadas nas interações e brincadeiras, tendo em vista a
utilização de linguagens de cunho digital, musical, oral, e escrita, durante as
rotinas da Educação Infantil, sendo que a linguagem literária, por sua vez, tam-
bém aparece nos currículos. Desse modo, se torna pertinente estudar, visibili-
zar, e implementar práticas pedagógicas com o enfoque na formação de leitores
ainda nos primeiros meses de vida, quando a criança apresenta grande sensibi-
lidade às linguagens, inclusive à literária.
O presente artigo adota como metodologia uma pesquisa bibliográfica
(GIL, 2008), tendo o objetivo geral de debater as contribuições da formação
leitora com bebês no contexto da creche. Possuí como objetivos específicos:
discutir a Literatura Infantil enquanto campo de formação leitora em Creches;
investigar as práticas pedagógicas para a formação leitora na creche; e proble-
matizar o livro infantil como instrumento de experiências literárias. Neste es-
tudo adota-se a abordagem qualitativa, pois a pesquisa abrange a discussão de
experiências, significados, e concepções vivenciadas por diferentes sujeitos
(bebês, professores) na perspectiva relacional do trabalho pedagógico mediado
pelas práticas leitoras em creches. Dessa forma, buscou-se responder aos ques-
tionamentos do trabalho, direcionando-se por autores de referência na temá-
tica: Donald Wood Winnicott (1979), Mattos (2013), Altamirano (2014). Além

1
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Email:
slarissa2016@gmail.com
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de documentos da legislação educacional brasileira como as Diretrizes Curri-


culares Nacionais Para a Educação Infantil (BRASIL,2010) e a Base Nacional
Comum Curricular (BRASIL, 2017).

A Literatura e a Educação Infantil

A ascendência da composição de um gênero literário destinado ao pú-


blico infantil, ocorre à medida que a categoria social infância, por sua vez se
consolida. Ela se fortaleceu em meados do século XVIII (ZILBERMAN, 2003)
a partir do auxílio de mais duas instâncias sociais: a família, e a escola. A valo-
rização da infância, conjuntamente com os novos sentimentos, arranjos famili-
ares, e a escola, passaram a ser o centro da socialização e instrução das crianças,
ampliando desse modo os desdobramentos da Literatura Infantil.
O século XVIII teve importância notável no desenvolvimento dos es-
tudos, técnicas, e cuidados com a infância. A Puericultura, por sua vez, centra-
lizou a criança em suas ações e planejamentos; a escola, também sofre reformas
a fim de receber um público, por ora especializado, e que é amparado e visto de
forma afetivamente positiva em seu ambiente original, que tampouco resistiu à
mudanças: a família. De acordo com Àries (1984) esse ambiente familiar du-
rante o século XVIII, está sujeito à incorporação de novos hábitos, uma vez que,
em conformidade com os acontecimentos liberalistas desta época, a burguesia
começa a consolidar práticas de cunho cultural entre adultos, e consequente-
mente à recente categoria social, a infância. Mediante o contexto liberalista,
cresce a importância da instrução infantil, tornando propício a interseção entre
Literatura, infância e Educação.
O crescimento das narrativas para crianças, consolidou-se através da
produção literária existente há muitos séculos, uma vez que, a miscigenação de
mitos, lendas, e contos oriundos de fontes orientais, latinas, e céltico-bretãs da
Antiguidade e Idade Média foram a matéria inicial das temáticas pertencentes
à jovem Literatura Infantil (COELHO, 2012).
Desse modo, a partir da exploração destas heranças culturais, a Lite-
ratura Infantil avançou mais um passo para sua constituição como gênero lite-
rário. O movimento de coleta, organização, e publicação das histórias fantásti-
cas conservadas sobretudo oralmente, foi ação precursora de Perrault, Ander-
sen, os Grimm, e La Fontaine, pois mediante a composição de coletâneas de
várias narrativas maravilhosas, a Literatura para a criança agregou notoriedade,
dessa forma sendo parte dos gêneros literários que permanecem disponíveis à
fruição literária (COELHO, 2012).

174
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A denominada “Literatura Infantil Clássica” resultou da catalogação,


refinamento, e publicação de narrativas dos contos de fadas e maravilhosos, os
quais são expressões literárias de seu tempo pré-capitalista, abrangendo ele-
mentos culturais como a espiritualidade, tradições, e aspectos do psiquismo
humano (emoções, sentimentos) característicos das sociedades em que foram
perpetuados seja pela linguagem oral, ou pela cultura escrita. Nesse sentido, a
primeira coletânea publicada foi Contos da Mãe Gansa, de Charles Perrault, no
século XVII, seguida pelos trabalhos de Jean de La Fontaine, o qual se dedicou
à publicação de várias fábulas. No século seguinte há o eminente sucesso das
histórias coletadas pelos Irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Por fim, deste pri-
meiro ciclo, no século XIX, Hans Christian Andersen completou a composição
da “Literatura Infantil Clássica”, a partir da reunião de muitos contos (COE-
LHO, 2012; ZILBERMAN, 2003).
Nos dias atuais, a Literatura se encontra na Educação de crianças, in-
clusive no currículo de creches e pré-escolas, uma vez que a BNCC (2017) apre-
senta objetivos de aprendizagem e de desenvolvimento às crianças da Educação
Infantil, sendo que estes estão contidos nos campos de experiências. Os campos
de experiências existem a fim de assegurar às crianças os conhecimentos cul-
turais da sociedade: “O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços,
sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação; Espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações” (BRASIL, 2017, p.38-41).
Dentre as inúmeras organizações possíveis aos campos de experiên-
cias, as práticas pedagógicas voltadas à literatura infantil, também contribuem
para a interação dos pequenos, tanto, na pré-escola, que está destinada às cri-
anças de 4 a 5 anos, quanto na creche, com as crianças de 0 a 3 anos de idade,
dentre elas, os bebês.
Barbosa (2010) e a própria BNCC (2017) definem como bebês, a criança
de 0 meses a 18 meses de vida. Assim, embora as crianças acima desta faixa etária
tenham sido por séculos encaradas como inexpressivas, e passivas, os bebês co-
mumente são vistos com as mesmas características negativas, além de mais frá-
geis, e mais dependentes. No entanto, os bebês são sujeitos sociais que já nos
primeiros meses de vida manifestam importantes atividades motoras, e emocio-
nais para os vínculos que estabelecem aos poucos com o mundo. A gestação, pre-
cursora desse contato, prepara o organismo da criança, assim como desencadeia
sentimentos, sobretudo à mãe, a fim de auxiliar na formação deste novo ser hu-
mano. Momentos como a alimentação/amamentação, repouso, e brincadeiras,
são estimulados e vivenciados, pela constância dos cuidados maternos.
Durante as vivências entre professoras e bebês, o trabalho pedagógico
está fundamentado no cuidado e educação. Contudo, nenhum dos dois pode ter
primazia sobre o outro, já que o enfoque nos cuidados inerentes as necessidades

175
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

características dos bebês (alimentação, sono, higiene) não deve ser encarado de
forma mecânica, e tampouco a ênfase em rotinas que promovam a educação
despreze as especificidades dos bebês. Em consonância com estas duas verten-
tes, muitas atividades sociais e culturais são possíveis aos bebês na Educação
Infantil. Portanto, as práticas de formação leitora em creches também são parte
destas iniciais e significativas vivências infantis, afinal “O bebê adora, obvia-
mente, tomar contato com uma nova experiência” (WINNICOTT, 1979, p.93).

Práticas Pedagógicas Para a Formação de Bebês Leitores na Creche

A capacidade dos bebês de serem leitores é comumente questionada,


em razão da histórica concepção clássica de leitura, fazendo-se necessário dis-
cutir a forma diferente, porém possível, em que o bebê pode ter acesso às prá-
ticas de leitura, ainda nos primeiros anos de vida. A formação do leitor no con-
texto da creche, está contida nas atividades de linguagem oral e escrita, as
quais, por sua vez, servem como mediadoras a fim de se trabalhar a Literatura,
no seu aspecto educacional, lúdico e desenvolvimental.
Dessa forma, a leitura e a Literatura mediante as práticas pedagógicas
no berçário, passam a integrar as primeiras experiências sociais, afetivas, e sim-
bólicas dos bebês, pois o conteúdo das narrativas, o manuseio de livros, e os
diálogos proporcionados, permitem que a dimensão relacional aproxime-os das
marcas e signos, que serão necessários às formação escolar e subjetiva das cri-
anças, durante e após a vivência na creche, pois: “os signos só emergem, decidi-
damente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma ou-
tra” (BAKHTIN,2006,p.32). Sendo assim, a formação leitora na creche, en-
quanto trabalho coletivo de crianças e docentes, permite o desenvolvimento in-
cipiente da oralidade e escrita, além de participar das primeiras conquistas li-
terárias dos bebês.
No entanto, trata-se de modos de ler (MATTOS, 2013), que diferem da
canônica decodificação de letras, pontuações, e frases, baseada na alfabetização
vigente nas séries iniciais, pois neste contexto, a leitura seria uma prática si-
lenciosa, e pragmática. De acordo com Dominique Rateau (2014) as represen-
tações hegemônicas do ato de ler estão voltadas à reflexão solitária e erudita de
grupos da elite, compostos por homens, intelectuais e letrados.
O livro ao torna-se um bem financeiramente acessível, chegou ao pro-
letariado, às mulheres, e no século XVIII, às crianças, e suas escolas (SOUZA,
FEBA, 2013; RATEAU, 2014). Porém, os espaços privilegiados de formação lei-
tora, concentraram-se em bibliotecas públicas, escolas e universidades.

176
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Embora as instâncias dedicadas à educação como a família, e a escola,


sejam necessárias ao cultivo e fortalecimento de práticas leitoras, elas não são
as únicas capazes de aproximar os sujeitos da literatura. De acordo com Rateau
(2014, p.23) o acesso à leitura pode se dá em: “[...] centros sociais, centros de
lazer, espaços públicos e parques, [...] abrigos, prisões, hospitais, maternidades,
museus, asilos, zonas de recolhimento para os viajantes...”. Assim como, o tra-
balho de formação leitora pode realizar-se nas creches.
Contudo, na Educação de bebês, ocorrem práticas de leitura que nas-
cem de um encontro mediado pelo adulto em direção à criança. Para esse en-
contro, usam-se materiais, livros, músicas, encenações/dramatizações
(SOUZA, FEBA, 2013). A partir da escuta, mediante a audiência dos bebês, em
rodas, por meio de cantigas, sobretudo, brincadeiras, a leitura torna-se reali-
dade, sendo a palavra falada ou escrita, elo coletivo da Literatura nas práticas
pedagógicas para a formação do leitor. Trata-se de práticas que irão imprimir
desde o berçário “[...] uma experiência literária que alimente nossa vida inte-
rior, a fim de cultivar, em cada ser humano, sua capacidade de sonhar, pensar,
criar... privilegiando a cultura” (RATEAU, 2014, p.24).
As atividades com Literatura Infantil contribuem por sua vez na for-
mação do leitor, em razão de envolver o bebê como “autor da sua própria lin-
guagem” (CASTRO, 2014, p.123), ou seja, agente no processo comunicativo e de
autoconhecimento. As manifestações da criança são múltiplas (afetivas, fisio-
lógicas) sendo que em todas elas, o bebê se comunica, oferecendo à Literatura
Infantil mais uma forma de provocar e desenvolvê-los enquanto leitores no es-
paço da creche.
As diferentes atividades propostas pelo docente incentivam o compor-
tamento leitor em que o: “hábito de leitura melhora a autopercepção da criança
como boa leitora” (TEIXEIRA, 2017, p.26). Assim, proporcionar o encontro li-
terário na creche, permite que em casa ou ao longo da Educação Infantil, rea-
lize-se a contribuição para o amadurecimento da vida leitora da criança, na
construção e autonomia de suas inclinações enquanto leitor.
Durante as práticas pedagógicas com bebês, a voz tanto do docente,
quanto da criança são usadas para a manifestação da Literatura, pois a escuta
de textos, de relatos acerca de ilustrações, ou as rimas cantadas de um poema,
oferecem aos bebês a possibilidade de ler a partir do lugar de ouvintes:

Agora sabemos que as crianças pequenas se interessam pelos livros e pelas his-
tórias de seus nascimentos e que os adultos presentes se encantam com isso. Sa-
bemos, também, que os livros de imagens não são reservados nem às crianças
pequenas, nem às crianças, nem àqueles que não sabem ler... Sabemos, também,
que alguns livros resistem a nós e que é a voz de alguém que, por sua leitura, dele
nos dá o sentido. Sabemos que crianças pequenas nos possibilitam ler, em certas

177
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

imagens, coisas que não havíamos lido. Sabemos, porque lemos, que certos ál-
buns publicados por editores para a infância fazem parte da grande literatura:
obras de artistas que, como todas as obras de arte, alimentam nossos imaginá-
rios, ampliam nosso olhar sobre o mundo, suscitam nossas dúvidas, enriquecem
nossas línguas e falam, com sensibilidade e poesia, da vida, da complexidade do
mundo e das relações humanas. Como toda obra literária, eles não nos dizem o
que devemos pensar, mas nos ajudam a pensar (RATEAU, 2014, p.24).

Desse modo, a formação leitora na creche, se amplia através da escuta,


pois a aproximação entre a criança, e o adulto que narra, conta, interpreta o
texto e/ou imagens, desencadeia a unidade leitor-ouvinte na qual o bebê se fa-
miliariza e a toma como constituinte da rotina lúdica, e agradável da creche.
A leitura também ocorre por meio da visão, uma vez que os sentidos
dos bebês estão abertos aos estímulos visuais de livros, bonecos, e desenhos,
que se revelam nos momentos de exposição e narrativas literárias. Ao apresen-
tar o livro, sua capa, conteúdo, personagens, formas, e cores, o bebê inclina sua
atenção para a prática pedagógica que o docente deseja iniciar. Nesse momento,
o olhar do bebê está inserido no processo de leitura que o professor propôs,
fortalecendo o vínculo afetivo, e literário, oriundo da formação leitora.
Ademais, a criança pequenina fruí da Literatura Infantil, mediante, a
exploração material das narrativas. O corpo do bebê possuí extrema sensibili-
dade ao tato, ao toque, e manuseio de mãos humanas, objetos e brinquedos.
Neste sentido, ler, identificar, e escolher as histórias, personagens, além das
paisagens, com os dedos, boca, pés, ou braços, se configura como especificidade
das práticas leitoras no berçário:

Segurar, por exemplo, um livro (cartonado, de pano, emborrachado, etc) imi-


tando o modo de ler de um adulto, na condição de bebê e/ou criança pequena,
garante a ela a possibilidade da formação de ações mentais. A partir desse tateio
experimental, por meio dos quais ela examina objetos – livros e/ou diferentes
suporte de textos -, compreende sua constituição e a relação entre eles, vai ela-
borando paulatinamente o jogo da leitura, a lembrança das ilustrações, do virar
de páginas etc. A formação dessas ações internas constitui o conteúdo principal
do desenvolvimento mental da criança: são as operações da percepção, da razão,
da imaginação, da memória, da atenção, isto é, são os atos psíquicos que permi-
tem à criança orienta-se no mundo [...] (GIROTTO, SILVEIRA, 2013, p. 25).

Logo, o bebê reconhece a si, os outros, e o mundo, mediante a exploração


sensorial. Esta busca física da criança enaltece a presença de materiais durante as
práticas de leitura, em que objetos culturais, sobretudo os livros e brinquedos po-
dem ser apresentados e manipulados pelos bebês. A relação entre o psicológico,
de cunho interno, e os relacionamentos exteriores com pessoas e objetos, fortalece
o psiquismo do bebê a fim de que a criança possa vir a gerenciar autonomamente
as partes integrantes da sua personalidade, pois o psiquismo em formação vivencia
momentos imaginativos, e lúdicos (BEE, BOYD, 2011; OLIVEIRA, 2008).

178
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Além de evidenciar que movimentos do professor durante os encontros


literários, uma vez reproduzidos pelas crianças, expressam a ideia de que “A
imitação do ato de ler, do gesto à voz, pode ser considerada uma forma de ler
das crianças pequenas” (MATTOS, 2013, p. 134). Os bebês observam, experi-
mentam, e emitem risadas, gritos, ou expressões corporais que sinalizam seu
interesse e bem-estar em razão das práticas de leitura.
A proximidade dos bebês com a Literatura Infantil se torna patente
quando o livro, a leitura, as vozes, toques, e olhares geram ações responsivas
durante a rotina da criança. No momento em que: “O objeto vai tornando-se
familiar para o menino, ele o solicita, interage com o que o livro propõe, sinali-
zando o que o livro lhe provoca” (MATTOS, 2013, p.113) tem-se clareza dos vín-
culos construídos entre as práticas de formação leitora e as crianças, em função
dos sorrisos, balbucios, e toques de iniciativa dos bebês.
A responsividade da criança mediante choro, sorrisos, e inquietação
ajudam o bebê a revelar se o encontro literário foi bem-sucedido. Mattos (2013)
enfatiza que durante a realização de práticas pedagógicas com Literatura In-
fantil em creches, os bebês, manifestam agitação e interesse de forma intensa, e
os comunicam através do soar de palmas, danças, cantarolar de música, passos
em direção ao livro e/ou professoras. Outro aspecto importante, trata-se de res-
peitar o tempo de adaptação e resposta dos bebês às práticas leitoras, pois:

Quando estamos apressados, ou preocupados, não podemos facilitar aconteci-


mentos totais, e o bebê fica mais pobre. Contudo, quando se tem tempo [...] po-
dem-se permitir essas experiências. Os acontecimentos totais habilitam os be-
bês a dominar o tempo. Eles não começam por saber de antemão que quando
alguma coisa está em marcha terá um fim (WINNICOTT, 1979, p.86).

Desse modo, pausas, extensões, ou reduções temporais são realizadas


a fim de o bebê aproveite paulatinamente das experiências literárias no berçá-
rio. A observação acerca do desconforto ou tranquilidade da criança interfere
no temo dedicado à prática. A experiência literária atua de forma a integrar a
exploração lúdica, artística, e motora do brincar, ler, ouvir e narrar.
O bebê ao participar da leitura compartilhada com professoras e seus
pares, interage e produze avanços no seu desenvolvimento global, contribuindo
para que além dos aspectos motor e sensorial, também a imaginação seja desdo-
brada como afirma Vigotsky que (2004, p.207): “[...] o comportamento imagina-
tivo também necessita de desenvolvimento e educação como qualquer outro” .
Sendo assim, reconhecer o trabalho com literatura infantil na perspec-
tiva da formação leitora com bebês, como parte da “sua própria história de lei-
tura” (CADEMARTORI, 2012, p.25) tanto do professor, quanto da criança, ex-

179
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

prime a potencialidade educativa dos desdobramentos da linguagem oral e es-


crita ainda na primeira infância, fortalecendo o elo no qual a Literatura e a lei-
tura, se expandirão por toda a vida, modificando-se conforme a preferência de
cada leitor.

Livro Infantil: Instrumento de Experiências Literárias com Bebês

Grande parte das experiências literárias com bebês são possíveis em


razão da presença do livro infantil em diferentes espaços: em casa, na creche,
em bibliotecas, ou em Bebetecas. Entretanto, os livros para as crianças pequeni-
nas, apresentam propriedades diferentes quando sobrepostos aos livros desti-
nados às crianças acima de 18 meses.
Embora, Maciel (2008) afirme que a faixa etária não seja balizador geral
para a classificação do livro infantil, as editoras enquanto responsáveis pela pro-
dução, e distribuição dos acervos, visibilizam em seus catálogos infantis, livros ca-
tegorizados por idade do destinatário.
Desse modo, as instituições apreciadoras (escolas, família, Estado),
além de analisarem os livros por meio de faixa etária sugerida, também os ava-
liam a partir de seu potencial educativo, e por sua qualidade estética. No campo
educacional uma eminente seleção voltada à formação de leitores, consistiu nos
pareceres organizados pelo Ministério da Educação ao executar o Plano Naci-
onal de Biblioteca da Escola (PNBE).
O Plano Nacional de Biblioteca da Escola instituído em 1997 (PAIVA,
SOARES, 2008), configurou-se como uma importante política de formação do
leitor no Brasil. Mediante o PNBE, acervos foram constituídos em escolas, pré-
escolas, e creches, através dos processos de seleção de títulos, distribuição de
livros para as bibliotecas estudantis, ou entrega direita de obras literárias aos
educandos.
Contudo, a Educação Infantil abordada nesse trabalho, foi somente in-
clusa na distribuição de livros do PNBE em 2008 (PAIVA, SOARES, 2010),
tendo em vista que o Programa teve duração de quase duas décadas. Além de
que a “Educação Infantil, Ensino Fundamental - anos iniciais e Educação de
Jovens e Adultos (EJA) são contemplados nos anos pares, enquanto que o En-
sino Fundamental – anos finais e Ensino Médio nos anos ímpares” (BRANDÃO,
2017, p.2), ou seja, a distribuição de livros ocorreu apenas em 2008, 2010, 2012,
e 2014, sendo somente neste último ano, que a creche teve encaminhamento de
acervos diferenciado da pré-escola (BRANDÃO, 2017, p.6).
Uma vez que o livro infantil, por ser material pedagógico, como tam-
bém objeto cultural de formação estética e cidadã, precisa estar presente nos

180
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ambientes, além de principalmente nas práticas pedagógicas com bebês, a la-


cuna deixada pelo PNBE, também reafirma a incipiente, porém forte necessi-
dade de enfatizar a formação leitora no berçário.
De acordo com Paiva e Soares (2010) o PNBE ofereceu resistências ao
encaminhamento de obras literárias aos bebês, tendo em vista que o número de
matrículas em berçários eram inferiores ao quantitativo de matrículas em pré-
escolas e no próprio Ensino Fundamental. Ademais, as editoras, ressaltam que
são dependentes da compra por parte do Ministério da Educação para produzir
exemplares destinados aos bebês, o que por sua vez, restringe a diversidade de
livros ofertados aos educandos.
Tal limitação quantitativa e qualitativa nos livros para bebês são preju-
diciais. Conforme Altamirano (2014) a oferta de diferentes tipos de livros para
a leitura no berçário, enriquece a formação leitora nos aspectos do desenvolvi-
mento humano, educacional, e cultural, pois ainda que a primeira impressão do
bebê acerca do livro seja interpretada pelos adultos como se tratasse de um
brinquedo inócuo, para a criança é mais um evento experiencial importante,
uma vez que o livro enquanto objeto físico e simbólico, auxilia a criança na
construção de brincadeiras, dos jogos de faz-de-conta e na própria criação e
reforço de laços entre pares, docentes, e familiares.
A linearidade tão presente na Literatura adulta (HUNT, 2015) não está
hegemonicamente nos livros infantis, sobretudo nos livros-ilustrados e pop-up
destinados aos bebês. No livro infantil, enredos longos, e palavras no sentido
literal, não são adotados em demasia. Há na realidade onomatopeias, histórias
curtas, personagens com características fantásticas, até mesmo oníricas.
Assim, a estrutura narrativa do livro infantil, extrapola as páginas e se
manifesta em capas coloridas; ilustrações bi ou tridimensionais 2, nas quais ob-
jetos e seres (animados ou inanimados) tanto do mundo adulto, quanto do âm-
bito imaginativo da criança, são retratos por bonecos, miniaturas, em diversos
materiais (plástico, papéis, tecidos) com os quais, as crianças se habituam.
Contudo, os livros para bebês não são indiscriminados. Segundo Alta-
mirano (2014) há 3 (três) possibilidades 3 de classificar os livros a comporem
um acervo literário para crianças pequenas. São elas: livros informativos, livros
literarios e libros-álbum.

2
Imagens, textos, e/ou capas tridimensionais são características marcantes dos livros pop-up (livros
projetados para ter suas partes ou sua totalidade em 3 (três) dimensões.
3
Altamirano (2014, p. 43) deixa muito claro em seu texto que não expõe categorias universais para a
classificação do livro infantil. De acordo com ela: “La calidad es un concepto complejo y polisémico de
modo que no me comprometeré con una definición única, propongo, en cambio, describir algunos ras-
gos a partir de intentar caracterizar tres amplios géneros de libros que deben conformar estas biblio-
tecas infantil diversas: informativos, literarios y álbum”.

181
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Os livros informativos tratam de temas pertinentes às primeiras noções


de tempo, lugares, pessoas; eles substantivam e definem todos os seres e objetos
existentes, ou seja, dão nome, sentido, e funções a esses elementos. Os livros
literarios têm a ocupação de contar uma história. Nesses exemplares há muitas
correspondências com as histórias clássicas da Literatura Infantil (fábulas,
contos), possuindo introdução, clímax e conclusão. Os livros álbum abarcam
uma composição de imagens com ou sem texto. Elas trabalham em sequências,
estimulando a observação do leitor (ALTAMIRANO, 2014).
Todos os 3 (três) tipos de livros possuem imagens. Entretanto, os li-
vros informativos e literarios, não precisam obrigatoriamente de imagens, dife-
rente dos livros álbum, os quais nasceram como uma coleção de fotografias as
quais os bebês eram expostos (RATEAU, 2014). Altamirano (2014, p. 39) ainda
ressalta que independente de qual for a categoria do livro infantil:

Los buenos libros cuentan, explican, narran, proponen, buscan la mejor manera
de comunicarse con sus lectores. El contenido del texto y la forma de organizarlo
son centrales en un buen libro. Un buen libro para niños es un libro bien escrito,
inteligentemente planeado y desarrollado; bellamente diseñado, sensiblemente
ilustrado. Los buenos libros para los más pequeños son literarios pero también
son libros informativos.

Os livros infantis para bebês, nessa perspectiva, requerem esmero e habi-


lidade na produção, e manuseio, a fim de que eles revelem seu caráter literário e
simbólico, em razão de o bebê dessa forma, ter mais uma oportunidade de explorar
o mundo de modo sensível. Desse modo, o livro infantil permite ao bebê o acesso
à texturas, cores, designers, além da aproximação com narrativas que abordem sua
sociedade, família, e apresente muitas nuances ficcionais à criança.
Ao elaborar o acervo literário com a ajuda dos adultos e também crianças,
dá-se continuidade ao trabalho de mediação na/pela formação literária com bebês.
Durante esse processo:

“O mediador planeja e propõe situações de interação dos bebês com os livros,


auxiliando-os na exploração das possibilidades ofertadas pela literatura, ine-
rente à sua natureza estética e objetal e na ampliação da significação do seu en-
torno” (RAMOS, PINTO, GIROTTO, 2018, p. 109).

O professor novamente realiza em sua prática pedagógica com bebês, a


mediação durante o encontro entre crianças, livros, e a Literatura. Trata-se de per-

182
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

mitir que o acesso às obras literárias, desdobre-se na interação da Palavra do Coti-


diano com a Palavra Literária4 (ESCOUTO, 2013). A palavra, escrita, oralizada, dra-
matizada, implícita nas metáforas dos poemas, ritmada nas canções e trava-lín-
guas, ou ilustrada em imagens e desenhos, se encontra com a criança, se torna
parte da sua linguagem, constitui sua vida de leitor.
Colomer (2016, p. 109, grifos nossos) propõe recomendações para a me-
diação literária na Educação Infantil: “criar um ambiente povoado de livros; dar
espaço para a voz: narrar, cantar, recitar e ler; dar tempo para olhar, ler e compar-
tilhar; ampliar a leitura para outras atividades; programar o tempo das atividades”.
De acordo com a autora, a ênfase na oralidade e na formação leitora, per-
mite que os livros sejam apreciados pelas crianças tendo em vista a diversidade de
recursos discursivos que o livro guarda em suas páginas: letras de músicas; rimas;
trava-línguas, entre outros. O professor ao mediar a leitura, lê em voz alta, com-
partilha impressões, comenta ideias, apresenta elementos do cotidiano, da imagi-
nação, e incita o bebê a compor a seu modo e inteligibilidade, sua própria trajetória
leitora (COLOMER, 2016).
Outra temática enfocada por Colomer (2016) aborda o tempo na media-
ção do leitor literário em creches. Para ela, a criança precisa de períodos suficien-
temente longos ou curtos a fim de imergir em seu relacionamento com os livros. A
inconstância temporal, refere-se às características da atenção nesta idade, pois os
bebês rapidamente descobrem outros interesses que podem se sobrepor à leitura
(WINNICOTT, 1983). Neste aspecto, o professor observa, alonga ou diminui a
atividade, sempre com o bebê enquanto seu referencial.
Também são pertinentes os encadeamentos de atividades durante a me-
diação leitora (COLOMER, 2016). A Educação Infantil em seu currículo, além de
trabalhar com as interações e brincadeiras, desenvolve sua prática pedagógica a
partir das linguagens da criança. Consequentemente, a interação livro-bebê leitor,
intercala outras linguagens, permitindo ao professor a elaboração de atividades
simultâneas, ou isoladas, que subsidiem a formação leitora dos bebês. Tais ativi-
dades resultam em produções da criança (desenhos, cartazes, bonecos) e em ex-
periências sensíveis a sua vida leitora, pois o professor pode acrescentar à media-
ção, metodologias, ambientações, que favoreçam o conforto, diversão, e aprendi-
zagem dos bebês:

4
A interação da Palavra do Cotidiano com a Palavra Literária foi objeto de estudo de Nivea Escouto
(2013) em sua dissertação de mestrado: ESCOUTO, Nivea Barros. A formação do leitor- literário na
Educação Infantil: A Interação da Palavra da Vida Cotidiana com a Palavra Literária. 2013. 196 p. Dis-
sertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal
de Santa Catarina, Florianópolis, 2013

183
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Além da escolha do título e da organização da proposta lúdica para efetivar a


mediação do livro, o espaço onde se efetivou a vivência com os bebês foi organi-
zado previamente: a área externa da escola. Tapetes foram colocados no chão e
imagens figurativas de animais da história, assim como asas de borboletas pen-
duradas nas árvores, constituíram a ambientação planejada. Ademais, três exem-
plares do livro foram escondidos, configuraram um momento de jogo como uma
caça ao tesouro. Encontrá-los após a leitura também efetivaria o objetivo de des-
pertar o interesse e a curiosidade dos pequenos em manuseá-los (RAMOS,
PINTO, GIROTTO, 2018, p. 112).

Ramos, Pinto e Girotto (2018) em sua pesquisa sobre mediação com li-
vros e bebês, ressaltam a composição material (Que livro usar, quantos exempla-
res levar para as crianças), metodológica (Quais etapas serão desenvolvidas com
os bebês durante a mediação literária) e espacial (Que parte da creche servirá com
ambiente para as atividades) necessárias em uma das etapas do projeto para a for-
mação leitora no berçário. Desse modo, a Literatura manifesta-se no currículo, e
na prática pedagógica, a partir da articulação proposta pelo professor.
Quanto aos ajustes de tempo na rotina das crianças, Colomer (2016)
afirma a importância da organização das atividades, e do espaço. Segundo ela,
o tempo e o espaço representam eminentes categorias na mediação com livros.
A duração, e frequência das práticas leitoras influenciam a construção e auto-
percepção do bebê leitor. Assim como, o espaço reforça ou ameniza a imersão
nos encantos da Literatura.
Portanto, o livro infantil na Educação de bebês, reúne narrativas escri-
tas, orais, visuais, e táteis, além de congregar a observação, o planejamento, o
currículo, os materiais, metodologias, e espaços, a fim de compor ambientes,
práticas, e experiências nas quais a criança coletiva e autonomamente explore
sua vida de leitora.

Considerações Finais

Infere-se, portanto, que a formação leitora com bebês na creche apre-


senta como contribuições a possibilidade de alcance dos objetivos propostos
para a educação de bebês, sobretudo aqueles relativos ao desenvolvimento so-
cial e cognitivo; e reforço ao caráter educacional das instituições voltadas aos
bebês, uma vez que rompe com práticas de caráter assistencialista, ao abordar
a cultura, e fruição, da linguagem literária.
Dessa forma, a Literatura enquanto campo de formação leitora na Edu-
cação Infantil, também revela importantes desdobramentos ao promover o
acesso a experiências de formação do leitor que congreguem os diversos senti-

184
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

dos e produções humanas a partir da palavra, do texto, imagens, e diálogos en-


tre bebês, seus pares e suas professoras durante as atividades realizadas na cre-
che.
Além de se constatar que as práticas pedagógicas para a formação lei-
tora na creche estão profundamente relacionadas ao planejamento docente, à lu-
dicidade, ao psiquismo em desenvolvimento dos bebês, em consonância com as
demais práticas de higiene, alimentação, e repouso, integrantes da ênfase do pro-
cesso de cuidado na infância.
Depreende-se por fim, que o livro infantil como instrumento de experiências
literárias ocupa uma posição importante na formação leitora de bebês, ao ter ca-
racterísticas próprias, assim como, representar um eminente símbolo de cultura,
criatividade e educação na sociedade e nos espaços da creche.

185
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

ALTAMIRANO, Alma Carrasco. Escuelas y construcción de acervos: libros de ca-


lidad para la primera infância. In: BRASIL. Seminário Internacional Literatura na
Educação Infantil: acervos, espaços e mediações. Belo Horizonte, maio, 2014. p.39-
58.

ÀRIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC Edi-
tora, 1984.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem.12. ed. São Paulo: HUCI-


TEC, 2006.

BARBOSA, Maria Carmem. Especificidades da ação pedagógica com os bebês.


Anais do I Seminário Nacional: Currículo em movimento. Belo Horizonte, nov,
2010.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. MEC, 2017.

BRASIL. Resolução n° 5, de 17 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curricula-


res Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 2010. Disponível em:
http://ndi.ufsc.br/files/2012/02/Diretrizes-Curriculares-para-a-E-I.pdf . Acesso
em: 12 maio de 2018.

BRANDÃO, Claúdia Leite. Programa Nacional Biblioteca da Escola: mudança,


permanência, e extinção. Anais do XIII Congresso Nacional de Educação –
EDUCERE, 2017. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&source=
web&rct=j&url=https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/26530_14096.pd
f&ved=2ahUKEwjj27nh4pToAhXCB9QKHeI0DGIQFjAAegQIARAB&usg=A
OvVaw1wfnIr12If-W2cGTMHV3c1. Acesso em: 12 mar 2020.

BEE, Helen; BOYD, Denise. A criança em desenvolvimento. 12. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2011.

CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e gran-


des. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

CASTRO, Marilene Costa de. Desenvolvimento da linguagem do zero aos três


anos. In: CAIRUGA, Rosana Rego (Org.). Bebês na escola: observação, sensibi-
lidade, e experiências essenciais. Porto Alegre: Mediação, 2014. p.121-151.

186
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

COELHO, Nelly N. O conto de fadas: símbolos-mitos-arquétipos. 4. ed. São Paulo:


Paulinas, 2012.

COLOMER, Teresa. As crianças e os livros. In: BRASIL. Ministério da Educa-


ção, Secretaria de Educação Básica. Crianças como leitoras e autoras . Brasília :
MEC /SEB, 2016. p.97-127.

ESCOUTO, Nivea Barros. A formação do leitor literário na Educação Infantil: A


Interação da Palavra da Vida Cotidiana com a Palavra Literária. 2013. 196 p. Dis-
sertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo :
Atlas, 2008.

GIROTTO, Cyntia G. G. Simões; SILVEIRA, Roberta Caetano da. A relação dos


pequeninos com a literatura infantil: de ouvintes a leitores. In: SOUZA, Renata
Junqueira de; FEBA, Berta Lúcia Tagliari (Org.). Ações para a formação do leitor
literário: da teoria à prática. Assis, São Paulo: Storbem Gráfica e Editora, 2013.
p.19-42.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil . São Paulo: Cosac Naify, 2015.

MATTOS, Maria Nazareth de Souza Salutto de. Leitura Literária na creche: o livro
entre olhar, corpo e voz. 2013. 199 p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pro-
grama de Pós- Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.

MACIEL, Francisca Izabel Pereira. O PNBE e o Ceale: de como semear leituras. In:
PAIVA, Aparecida; SOARES, Magda. Literatura Infantil: Políticas e Concepções.
São Paulo: Autêntica, 2010.

OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos de.(Org.). Creches: Crianças, faz de conta &
cia. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

PAIVA, Aparecida; SOARES, Magda. Literatura Infantil: Políticas e Concepções.


São Paulo: Autêntica, 2010.

187
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

RAMOS, Flávia Brocchetto; PINTO, Marcela Lais Allgayer; GIROTTO, Cyntia


Graziella Guizelim Simões. Interações de bebês com o livro literário. Poiésis, Santa
Catarina, v.12, n. Especial, p. 106-117, Jun/Dez 2018. Disponível em:
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Poiesis/index. Acesso em: 12
dez 2019.

RATEAU, Dominique. Ler com as crianças pequenas. In: BRASIL. Seminário In-
ternacional Literatura na Educação Infantil: acervos, espaços e mediações. Belo
Horizonte, maio, 2014.

SOUZA, Renata Junqueira de; FEBA, Berta Lúcia Tagliari (Org.). Ações para a for-
mação do leitor literário: da teoria à prática. Assis, São Paulo: Storbem Gráfica e
Editora, 2013. p.19-42.

TEIXEIRA, Clarissa Gondim (Org.). Impacto da leitura feita pelo adulto para o
desenvolvimento da criança na primeira infância. São Paulo : Fundação Itaú Social,
2017.

VIGOTSKY, L. S. Psicologia Pedagógica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

WINNICOTT, Donald Wood. A criança e o seu mundo. 5. ed. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1979.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. São Paulo: Global,
2003

188
A POESIA NA SALA DE AULA:
ENTRE VERSOS E RITMOS COM PAULO LEMINSKI

Letícia Queiroz de Carvalho1

Introdução

O gênero lírico em suas múltiplas possibilidades estilístico-semânticas,


apresenta-se como caminho potente para as atividades de leitura na educação bá-
sica, um contexto em que a formação dos leitores tem suscitado uma profusão de
estudos e pesquisas em razão da ainda tímida inserção da leitura poética na sala
de aula, para além de situações utilitárias.
Embora os livros didáticos de Língua Portuguesa tragam, em muitas
ocorrências de textos literários, o poema como gênero discursivo recorrente
para a realização de atividades de linguagem, notamos ainda uma despotencia-
lização clara do texto lírico, ao ser utilizado como “pretexto”2 para atividades
gramaticais ou formalistas, no que tange a sua estrutura e aos aspectos mera-
mente técnicos do lirismo.
Diante de práticas de leitura no contexto da educação básica , nas quais
ainda se priorizam os textos narrativos e em razão das possibilidades semântico-
interpretativas presentes na poética do autor curitibano Paulo Leminski, busca-
mos neste texto estabelecer alguns pontos de contato entre a poesia leminskiana
e as dicções de alguns, dentre muitos poetas, com os quais travou diálogo, de modo
a evidenciar as práticas de leitura de poesia na escola, alinhadas às questões ati-
nentes à formação do leitor literário em uma perspectiva cultural ampla, ao cote-
jarmos os versos desse poeta e as concepções de alguns autores representativos do
campo da educação literária.
Desse modo, a porosidade da poesia leminskiana materializada pelos diá-
logos intertextuais a que se propôs, bem como o caráter metapoético das suas pro-
duções, o qual imprime um tom reflexivo aos seus poemas, serão a base para a

1
Doutora em Educação e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito
Santo.Professora efetiva do Instituto Federal do Espírito santo – Campus Vitória. Orienta dissertações
na área de Literatura e Educação.
2
A esse respeito a professora Marisa Lajolo discutiu algumas concepções relativas ao “uso” dos textos
literários de forma pedagogizante ou formalista.em seu texto LAJOLO, Marisa. “O texto não é pre-
texto. Será que não é mesmo?” In: ZILBERMAN, Regina; RÕSING, Tania (Org.). Escola e leitura: velha
crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. p. 99-112.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

compreensão dos seus textos nos processos de formação de leitores na educação


básica, destacando-se os recursos de linguagem e os traços estilísticos do lirismo
que dialogarão com os leitores e os textos.
Para que possamos situar o poeta curitibano no cenário da leitura na sala
de aula e pensarmos possibilidades dialógicas entre o seu texto e a formação de
leitores na escola básica, buscaremos, primeiramente, uma interlocução com a sua
história, as suas produções e o seu tempo.

Leminski na sala de aula: um encontro poético

Paulo Leminski3 ficou conhecido no cenário cultural brasileiro como o po-


eta marginal de Curitiba. Sua dicção peculiar como poeta, compositor, ensaísta,
tradutor e romancista imprimiu ao estilo literário dos anos 60 a 80 uma predispo-
sição ao diálogo com linguagens diversificadas e autores de diferentes matrizes
teóricas, de modo a deixar um legado poético que influenciou muitos dos seus pa-
res a sua época, mas também reverbera ainda hoje em produções ficcionais de va-
riados gêneros da literatura.
Ao final dos anos 80, já bastante debilitado pelo álcool, Leminski nos
deixa fisicamente, mas permanece presente em seu conjunto de produções lite-
rárias marcadas pela perspectiva transgressora e contracultural, bem como pe-
las marcas da pluralidade de tendências estético-literárias que o constituíram
como poeta.
Nas entrelinhas da poesia reflexiva de Paulo Leminski, deparamo-nos com
a postura dialógica do autor, cujos versos ecoam não apenas as vozes do seu
tempo, mas também a palavra de seus predecessores e, principalmente, os valores,
as crenças, medos e esperanças com as quais viveu.
No texto leminskiano a dimensão relacional da escrita torna-se evidente,
como em “Distâncias mínimas” (LEMINSKI, 1995, p.20), que materializa em sua
forma o cruzamento entre obras e homens:

um texto morcego se
guia por ecos
um texto texto cego um eco
anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede volta
verde verde verde
com mim com com consigo ouvir é

3
Toninho Vaz, jornalista e amigo do poeta, escreveu a biografia O bandido que sabia latim, lançado em
2001, pela editora Record, no qual resgata a multifacetada estrada literária do poeta, bem como situa-
ções inusitadas da sua biografia. Vale a leitura.

190
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?

O “texto morcego” necessita dos ecos, das ressonâncias de outros tex-


tos para se guiar no processo da escrita. Os versos de Leminski mimetizam o
ecoar das vozes ao repetirem gramaticalmente palavras ou fragmentos delas,
criando múltiplos sentidos no poema: “eco anti anti anti antigo”, pode sugerir
um movimento dialético, uma conciliaçăo dos contrastes a partir da oposiçăo
entre o prefixo “anti” com valor negativo e o signo “antigo”, ou seja, resgatamos
o passado também quando o negamos. Por meio da repetiçăo sonora, “com mim
com com consigo”. ou no verso “ou se me the te sigo”, a sujeiio lirico potencia-
liza a dúvida, a incerteza de qual caminho seguir. Até que ponto o cruzamento
entre os textos auxiliará a compor sua poética?
No contexto das práticas de leitura, o diálogo entre textos instaura,
para além das aproximações temáticas e estruturais, uma interlocução entre
várias vozes sociais constituídas em uma materialidade histórica e social, uma
vez que que a palavra compõe o tecido dialógico da própria vida, na medida em
que - nas diversas comunicações verbais das quais participamos - interroga-
mos, ouvimos, concordamos, discordamos e trazemos para o diálogo nosso
corpo, nossa alma e nossa concepção do mundo (BAKHTIN, 2000).
O gênero lírico traz em seus traços estilísticos essa potência para a
compreensão da palavra nessa perspectiva transformadora, porque em alta vol-
tagem lírica pode nos fazer conhecer outros mundos, a nós revelados pelas ten-
sões e contradições próprias do signo poético.

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de trans-


formar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício es-
piritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria
outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à
terra natal (PAZ,1982, p.15).

Quando Leminski busca um diálogo poético com diferentes autores,


em diferentes períodos literários e históricos, destaca também nesse percurso
intertextual as relações entre autores, épocas, produções culturais e leitores,
ancoradas em situações concretas e históricas em que se dão as interações so-
ciais (CARVALHO, 2018).
É no diálogo, portanto, em uma dimensão discursiva, que a leitura po-
derá se constituir um elemento de construção e reconstrução da realidade; que
a alteridade poderá emergir nas trocas verbais como o principal caminho para
a constituição de um sujeito que cria, pensa e se completa em suas relações so-
ciais; que os ritmos, versos e sons próprios do texto lírico apresentarão possi-
bilidades e visões infinitas do homem e da existência.

191
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Muitos poemas de Paulo Leminski, além de reconhecerem a necessi-


dade da relaçäo entre textos em uma perspectiva mais geral, redimensionam
concretamente a poesia de grandes autores brasileiros e estrangeiros - seja por
uma aproximação temática, seja por um aspecto formal, seja por um resgate
paródico de obras canônicas. A titulo de rápida ilustraçâo, vejamos alguns
exemplos.
A Pasárgada- de Manuel Bandeira, onde “a existência é uma aventura”, “é
outra civilização”, o lugar das possibilidades, o sonho, parece ressoar nestes
versos de Leminski (1983, p. 27):

existe um planeta
perdido numa dobra
do sistema solar

aí é făcil confundir sorrir com chorar

dificil é distinguir
esse planeta de sonhar

Se para o sujeito poético dos versos de Manuel Bandeira “Pasárgada”


era o lugar no qual todos os desejos eram plenamente realizados, nos versos de
Leminski a fusão entre a vida e o sonho parece ser o desejo maior: uma existên-
cia em um mundo que incorpore a capacidade de sonhar no cotidiano das pes-
soas, que faça da vida um caminhar mais leve, sem, contudo, negar as contradi-
ções presentes em nossa vida de relação.
Paulo Leminski e Manuel Bandeira, poetas de tempos e gerações dis-
tintas provocam em sua lírica uma reflexão sobre a vida como matéria de poesia,
sobre as possibilidades dialógicas entre o texto lírico e as questões que per-
meiam o cotidiano da leitura. Na cena pedagógica, assegurar o direito à leitura
de poemas na sala de aula é, acima de tudo, permitir aos leitores em formação o
contato com textos que possibilitem uma “(...) uma convivência mais sensível
com o outro, consigo mesmo, com os fatos do cotidiano, com a vida e com a
linguagem.” (PINHEIRO, 2018, p. 123).
Em meio a outras relações intertextuais presentes na lírica leminski-
ana, outro interessante diálogo se anuncia quando o poeta curitibano aproxima
o tempo nos versos de Vinícius de Moraes, em seu “Poética”‘ ( De manhã escureço’
De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De noite ardo/(...) Nasço amanhã/ Ando onde há
espaço/ -Meu tempo é quando”), com o seu poema “Profissão de febre” (LE-
MINSKI, 1995, p. 26):

192
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço(...)

Quando retomou os versos de Vinícius de Moraes, Leminski imprimiu


a sua dicção peculiar, além de remeter-nos, ironicamente, à lírica parnasiana de
Olavo Bilac, em seu poema “Profissão de fé”, no qual o sujeito lírica convida o
leitor a uma reflexão sobre o ofício poético, em uma perspectiva formalista mais
rigorosa. Cabe aqui destacar que, no processo de leitura de poesia na sala de
aula, segundo Pinheiro (2018), o professor ou mediador de tal prática, deverá
buscar, como condição indispensável para uma interlocução potente, o reco-
nhecimento do universo cultural dos seus alunos, seja por meio de escolhas co-
letivas de textos poéticos, seja pela predisposição ao diálogo com outras lin-
guagens artísticas que extrapolam o texto verbal, de modo a aproximar ainda
mais os leitores da cena cultural em sua amplitude.
Leminski (1995, p.30) também revisita Gonçalves Dias, poeta emble-
mátaico da primeira geração romântica, parodiando nos versos de “Diversona-
gens suspensas” versos da “Cançâo do exílio”, um dos poemas do romantismo
brasileiro mais reverenciados e glosados em nossa literatura:

(...) Onde estarâ meu verso


Em algum lugar de um Iugar,
onde o avesso do inverso começa a ver e ficar.
Não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.

Se no texto de Gonçalves Dias o sujeito poético não admite a morte


antes do regresso à pátria - “(...) nào permita Deus que eu morra/sem que volte
para lá” - em Leminski a pessoa poética deseja manter viva a habilidade de fazer
versos, criar poesia, esta sim, é a sua pátria, o seu lugar. Não são apenas poemas
materialmente tecidos que dialogam. São projetos poéticos distintos que se en-
contram em contextos de produção também diferenciados, destacando, pois, a
importância do signo poético em sua materialidade também social e ideológica.
Enquanto o poeta romântico exaltava o Brasil em um momento histó-
rico-social em que a consolidação política de um país recém independente so-
licitava essa imagem enaltecida aos olhos do mundo, o poeta curitibano, mais

193
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de um século após, imprimia em seus versos a necessidade da consolidação de


um projeto poético que ampliasse o ofício da poesia também para a singulari-
dade e a liberdade da criação pela escrita.
Tais aproximações e distanciamentos podem ser destacadas na sala de
aula, ampliando o repertório cultural dos alunos. Quando parodia textos canôni-
cos do romantismo brasileiro, o poeta estabelece um jogo interiextual no qual não
tenciona destruir o passado, mas, como esclarece Hutcheon (1991, p. 164-165),

(...) a ironia realmente assinala a diferença em relação ao passado, mas a imitação


intertextual atua ao mesmo tempo no sentido de afirmar — textual e hermeneu-
ticamente ‘ínculo com o passado. (...) A paródia não é a destruição do passado;
na verdade, parodiar é sacralizar o passado e qucstioná-lo ao mesmo tempo. E,
mais uma vez, esse é o paradoxo pós-moderno.

O paradoxo pós-moderno apresentado por Linda Hutcheon não parece


ter sido desconhecido pelo lirismo da modernidade, cujo vínculo com a tradição
era exatamente de sacralização e questionamento. Embora a autora analise a
relação intertextual no contexto da pós-modernidade, nada impede que faça-
mos esse alinhavo teórico entre sua argumentação e a poética leminskiana, uma
vez que a lírica do autor também afirma o vínculo entre passado e presente
quando dialoga com textos e autores canônicos.
Certas afinidades com a poesia cabralina também estão presentes na
produção poética leminskiana. Os dois autores possuíam idéias bastante seme-
lhantes no que concerne ao trabalho de lingua gem por meio da materialidade do
signo poético e remetem-nos a uma experiência concreta ao lermos seus poemas.
Apenas para elucidar essa convergência com Cabral, em meio a tantas
outras que permeiam os versos de Leminski, podemos aproximar os autores a
partir do aspecto substancial de sua Iírica que traz para o núcleo do poema a
concretude dos nomes, a materialidade do signo em seu aspecto sonoro, semân-
tico e gráfico, dispensando, portanto, elementos acessórios no processo de
composição.
Em sua “Antiode (contra a poesia dita profunda)”, João Cabral de Melo
Neto (1954, p.334) desconstrói e reconstrói o signo “flor” e traz para o universo
poético a palavra “fezes”, em uma construção metalingüística que se po deria
comparar, talvez, com “Aço em flor” de Leminski (1996, p. 48). Em Cabral temos
os versos:

Poesia te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

gerando cogumelos

194
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

(raros, frágeis, cogu-


melos) no úmido
calor de nossa boca.

Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de flor, flor


não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro.)

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas(...).

Em Paulo Leminski, os nomes concretos “flor”, “faca” e “fera” assu-


mem máxima importância semântica e sonora no texto poético, pelo traba-
lho realizado pelo poeta com a linguagem, explorando a materialidade des-
sas palavras nos versos:

Quem nunca viu


que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz..

Tanto em Leminski quanco em Cabral, a composição poética se ca-


racteriza pelo despojamento, e traz para o universo Iírico temas e palavras
consideradas “antiliricas” em um contexto de exaltação beletrista da poesia,
no qual os dois poetas faziam questão de não figurar.
Especificidades à parte na lírica desses poetas, nâo podemos negar
a convergência entre a dicçâo cabralina e a dicçâo leminskiana no tocante

195
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ao aspecto construtivo do poema e à valorização do signo poético em sua


materialidade.
Em alguns momentos, a questão da relação entre os textos surge
rios poemas de Leminski a partir da recorrência de algumas ideias e imagens.
Urna dessas metáforas é a da página branca a representar a soma de todos os
textos, assim cono o branco no arco-íris é a soma de todas as cores. Ao utili-
zar a imagem do branco da página, Leminski (1995, p.29) paradoxalmente
sugere a cor de todos os textos que subjazem ao ato da escrita.

Lugar onde se faz


O que já foi feito,
branco da página,
soma de todos os textos(...)

Nenhum a página
Jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
Ártica, significa.
Nunca houve isso,
Uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.

Nesses versos, o branco da pàgina é o resultado da fusão de todos os


textos que se interpenetram no processo de criação textual, assim como a mis-
tura de todas as cores resulta no branco do arco-íris. A página em branco que
nunca houve é a própria literatura que nunca existiu sem essa convergência de
vozes que ressoam nas obras literárias — sejam narrativas, líricas ou dramáticas.
O contraste das páginas pálidas, aparentemente vazias, que gritam de
tanto, revela a impossibilidade do texto virgem, sem nenhuma influência ou
marca, no âmbito de produção literária. São essas páginas em branco que espe-
ram ser invadidas pelas palavras, povoadas por frases alheias, afinal o escriba,
por elas — as palavras — “trocou a vida/ dias luzes madrugadas/ hoje/ quando
volta pra casal página em branco e em brasa/ asa lá se vai/ dá de cara com nada/
com tudo dentro/ sai”(LEMINSKI, 1990, p. 71).
Haroldo de Campos, em “O arco-íris branco de Goethe”, registra a im-
pressão que um arco-íris sem raios coloridos — raro fenômeno meteorológico
— provocou no autor alemão, em 1814, quando revisitava sua cidade natal,
Frankfurt. Reproduzindo as palavras de Goethe (“O arco é branco, sem dúvida,
mas é, no entanto, um arco celeste. Se teus cabelos são brancos, não obstante,
tu amarás”), o ensaio de Campos (1990, p. 19) enfatiza a metáfora do branco
como irradiação criadora:

196
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

À promessa de nova juventude do arco-íris branco, entrevisto na manhã neblinosa


do verão de 1814, revelou-se um efeito de factividade. À sua branca radiação, a vida
sub-togou-se em texto, virou figura de palavras, saciou, com o dom abundantc do
p‹aema, a hiância da pagina vazia (...)”

Para Goethe, a visão do arco-íris branco transformou-se, no dizer de


Campos, em efeito de vivificação textual, possibilitando a criação de vários tex-
tos após o acontecido. Talvez possamos transpor a imagem desse branco, ou
ausência de cor, para a poesia autorreferencial de Leminski. Nos textos do cu-
ritibano, a palidez ou o branco da página sugerem a intertextualidade como
“própria condição de legibilidade da literatura.”
O ensino de leitura, em muitos dos seus desdobramentos, ignora tais
nuances do texto poético, seja por destacar seus aspectos formais em detri-
mento do seu caráter polissêmico e plural, perdendo de vista nas práticas lite-
rárias o grande potencial reflexivo em termos linguísticos e semânticos, o que
faz desse gênero literário um importante recurso para a experiência estética
dos alunos.

Tecendo novos diálogos e novas discussões

A poesia de Paulo Leminski, que se deixa atravessar por palavras, tex-


tos, temas e recursos dos mais variados códigos de expressão, abriga em seus
versos a intertextualidade como meta, comportamento que constitui uma es-
pécie de programa poético, tal qual os versos abaixo (LEMINSKI, 1983, p. 61):

(...) não quis a prosa


apenas a idéia
uma idéia de prosa em esperta de trova um gozo
uma gosma

uma poesia porosa”

O desejo de criar uma dicção própria a partir do contato com as mais


variadas vertentes poéticas e culturais do seu tempo transformaria o trabalho de
análise intertextual da obra de Leminski em um campo infinito de relações e pro-
curas, jà que o poeta não dialogou apenas com os textos clássicos da literatura
brasileira e mundial, Mas também incorporou em seu ofício poético elementos
de outros códigos expressivos, como a música, fotografia, propaganda e pintura,
o que exigiria uma análise interseiniótica de sua produção.
Sem ir tão longe em nossa análise, queremos sobretudo lembrar que a
leitura da produção poética de Paulo Leminski é também a leitura dos poetas
predecessores e as matrizes líricas que o antecederam e com as quais se consti-

197
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

tuiu, é reconhecer na sua poesia sua memória de leitor, suas afinídades com au-
tores e textos, a sua paradoxal relação de angústia e reverência em direção aos
poetas anteriores.
No universo da sala de aula, essas interlocuções entre a produção de
Paulo Leminski e outros poetas representativos da nossa cena literária poderão
provocar múltiplas possibilidades de leitura de poesia, se compreendermos o
texto poético como a manifestação da linguagem em sua carga expressiva alta-
mente significativa e conectada à nossa cultura e à vida social.
Ler poesia, pois, é provocar encontros entre tempos, histórias e cenários
inscritos socialmente e materializados em alta voltagem de expressividade que
é apresentada a nós, leitores, pela habilidade do poeta ao lidar com os recursos
da linguagem lírica. Pinheiro (2018) destaca que a desvalorização da poesia na
escola é um dos fatores que desencadeia a crise na leitura, uma vez que o gênero
lírico não é compreendido em sua essência, com a valorização que merece.
A resistência à leitura da poesia em sala de aula, ocorra, talvez, pelo tom
pragmático com que os textos poéticos são apresentados aos alunos em meio a
metodologias também impróprias no contexto do lirismo. Por isso mesmo, a me-
diação das práticas leitoras de poesia na escola precisa considerar vozes poéticas
que também emergem em gêneros literários híbridos, nas letras das canções, nas
narrativas cuja linguagem transborda lirismo tal qual nos poemas.
Um percurso de leitura entre os versos, ritmos e sons de Paulo Le-
minski poderá ser um caminho possível e instigante para novos encontros com
o texto ficcional e com as potencialidades do signo poético na formação de no-
vos leitores em todo e qualquer espaço potencialmente educativo, principal-
mente por trazer em seus versos, ritmos e sons uma predisposição ao diálogo
com outros autores, outros projetos poéticas e outras linguagens.

198
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

RE FERÊNCIAS

BANDEIRA, Manuel. “Vou-me embora pra Pasàrgada”. In:. Melhores poemas: seleção
de Francisco de Assis Barbosa.São Paulo: Global, 2000. p.88.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000

CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

CARVALHO, Letícia Queiroz de. Dialogismo e literatura: contribuições para a


formação do leitor crítico na educação básica. Percursos Linguísticos (UFES), v. 8, p.
77-90, 2018.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Tradução de Ri cardo Cruz. Rio de


Janeiro: Imago Ed., 1991.

LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos.São Paulo: Brasiliense, 1983.

_____. Distraídos venceremos. São Paulo: 1995.

MELO NETO, João Cabral de. Antiode. In: Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Orfeu,
1954. P.334

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2018.

199
CRENÇAS SOBRE ENSINAR-APRENDER A SER
PROFESSOR DE LÍNGUA ESTRANGEIRA:
REPRESENTAÇÕES DE GRADUANDOS E FORMADORES

Luciana Kinoshita1

PRIMEIRAS PALAVRAS

O tema em investigação são crenças de diferentes agentes envolvidos


no processo de ensino-aprendizagem (EA) de inglês como língua estrangeira
(LE) na formação inicial de professores desse idioma no Ensino Superior pú-
blico de uma cidade no interior do Sudoeste do estado do Pará (Marabá), e a
influência que elas podem exercer sobre como se dá esse processo em um curso
de licenciatura em Letras Inglês.
Decidimos estudar o referido assunto devido à evidente demonstração
de falta de competência linguístico-comunicativa no uso da LE de grande parte
dos alunos de Letras Inglês (sejam eles calouros ou concluintes) de uma uni-
versidade federal, cujo campus sede está localizado no município referido, ao
utilizar a LE de sua habilitação. Isso foi evidenciado a partir de nossa própria
experiência como docente da graduação em questão, também por parte dos
próprios alunos de diferentes turmas que foram participantes de uma pesquisa
em que tiveram oportunidade de relatar suas histórias de EA por meio de nar-
rativas. O pouco desenvolvimento da competência linguístico-comunicativa
em LE durante a formação inicial tem levado às escolas da rede pública esses
sujeitos que atuam/ atuarão como professores que não dominam a língua que
ensinam, influenciando diretamente também o EA de inglês como LE na Edu-
cação Básica da região.
Nosso objetivo foi compreender crenças de graduandos e formadores
sobre o EA de inglês como LE durante a formação inicial de professores de in-
glês para a Educação Básica e, a partir dessa compreensão, chegar a representa-
ções sobre o processo de ensinar-aprender o idioma na região e instituição es-
tudada, o que pode nos levar a abrir perspectivas para aplicações e caminhos

1
Professora do curso de Letras Inglês da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e
doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

para a formação de professores e eficiência no EA como parte do processo de


formação crítica do profissional em questão.
Organizamos o presente capítulo em cinco partes. A primeira é uma
seção introdutória onde explanamos, em linhas gerais, do que se trata a inves-
tigação desenvolvida. Logo após, trazemos o referencial teórico base do estudo.
Em seguida, temos uma parte metodológica com aspectos básicos que envolvem
o tipo de pesquisa científica, como abordagem, natureza, objetivos e procedi-
mentos utilizados. Na próxima seção há a análise de alguns dos dados produ-
zidos. E, por fim, as considerações finais.

PALAVRAS DE OUTROS AUTORES

Crença não é um conceito novo, nem mesmo específico da Linguística


Aplicada. Várias áreas como Antropologia, Sociologia, Psicologia, Educação
(BARCELOS, 2004), Direito, Ciência Política e Economia (PAJARES, 1992)
também estudam a respeito. Com base nesses estudos, construímos nossa pró-
pria concepção de crenças. Para Kinoshita (2018, p. 74):

[...] crenças são representações que envolvidos no EA de idiomas possuem sobre


o processo de EA uma nova língua ou sobre outros fatores2 que possam influen-
ciar nele positiva ou negativamente. Representações que podem ser comparti-
lhadas, mantidas, construídas e reconstruídas entre/pelos indivíduos ao longo
da vida, mesmo antes do início do transcurso de EA e/ou após o término dele.

Em nosso conceito, crenças são representações que podem ser compar-


tilhadas, mantidas, construídas e reconstruídas entre/pelos indivíduos ao longo
da vida. A dinâmica de compartilhar, manter, construir e reconstruir implica
em mudança. Crenças podem então ser modificadas e, segundo Richards, Gallo
e Renandya (2001), a sua transformação deve ser considerada uma dimensão
principal na vida profissional dos professores, cuja formação precisa ter como
base a necessidade de proporcionar mudanças nelas. Contudo, nem sempre, o
mudar a crença acarreta também modificar a prática, por conseguinte, pois,
como sugere Barcelos (2007, p. 129), isso pode acontecer em duas acepções:

(a) uma consciência do que se faz, seguida de uma ressignificação ou reafirmação


da crença e da prática atual. Nesse caso, a mudança não necessariamente signi-
fica sempre fazer algo novo ou diferente, mas envolver-se na reflexão e conscien-
tização de como compreendemos o que fazemos; e (b) acomodação da crença e
mudança de comportamento ou da ação. Na verdade, creio que temos um pro-

2
Estariam aqui incluídas questões como estereótipos, contexto social, cultura etc.

202
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

cesso contínuo de mudança que vai desde a assunção do que somos e acredita-
mos (o que alguns chamam de consciência ou contemplação) até a mudança efe-
tiva da prática, em que a reflexão na ação é importante.

Kalaja (2015) categoriza as crenças em dois grupos: ensino de LE no


passado e ensino de LE no futuro. Apesar de, na nomenclatura, somente o en-
sino ser mencionado, ao explanar cada um dos tipos, ela esclarece que está se
referindo ao processo de EA como um todo, onde, em um deles, “um discurso é
usado para recordar o ensino e a aprendizagem de língua estrangeira como foi
experimentado no passado, o outro para o ensino de língua estrangeira como
previsto no futuro próximo [...]”3 (ibidem, p. 142, tradução nossa). Logo, devido
à flexibilidade da proposta e à proximidade da investigação dela com a nossa,
optamos por, inicialmente, buscar agrupar os nossos dados do mesmo modo,
porém fazendo algumas adaptações. A primeira delas é ajustar a terminologia à
nossa investigação e passar a usar:
a) Crença passada;
b) Crença futura.
A segunda é acrescentar mais uma categoria:
c) Crença presente.
Reconhecemos que “[...] as crenças estão inter-relacionadas com o
meio em que o professor vive e fazem parte de sua experiência” (PERINE, 2012,
p. 371) e, no que concerne o processo de EA idiomas, conforme Barcelos (2004),
em âmbito nacional, a partir da década de 90, os estudos ganharam cada vez
mais espaço e tem como marcos teóricos iniciais Leffa (1991), Almeida Filho
(2010) e Barcelos (1995).
Para Almeida Filho (2010), o professor de LE precisa de quatro com-
petências para ensiná-la: implícita, linguístico-comunicativa, teórico-aplicada
e profissional. Competências são “saberes e habilidades em várias composições”
(ALMEIDA FILHO, 2001, p. 20). Apesar de haver quatro, dedicamos este es-
paço a tratar apenas sobre a segunda delas (não em ordem de importância), pois
nela está o recorte de nossa pesquisa, que contempla ainda a implícita, na me-
dida em que também exploramos as crenças.
Abrahão (2015, p. 39) sugere que existe a necessidade de “possibilitar o
desenvolvimento da competência linguístico-comunicativa do professor de lín-
guas, para que ele possa atuar de forma independente de um determinado método,
prescrito por um livro didático”. Logo, o professor de LE precisa desenvolver esta

3
Texto original: “One discourse is used for recollecting foreign language teaching and learning as experienced in the
past, the other for foreign language teaching as envisioned in the near future [...]”. (KALAJA, 2015, p. 142)

203
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

competência4 ainda durante a sua formação docente inicial, ou como poderia en-
sinar aquilo que não sabe? Chomsky foi um dos pioneiros a discutir o que é ser
linguístico-comunicativamente competente em um idioma. Ele propôs a dicoto-
mia competência e desempenho, onde o último seria o uso real da língua e a pri-
meira, “[...] a gramática que representa a competência do falante”5 (idem, 1964, p.
37, tradução nossa). Ele, por sua vez, apoiava-se na dicotomia de Saussure de lín-
gua vs fala.
De acordo com Hymes (1972), o sujeito comunicativamente competente
é aquele que sabe quando falar, quando não, além de sobre o que falar, com quem,
onde, de qual maneira, integrando tudo isso a atitudes, valores e motivações em
relação à língua, seus aspectos e usos.
Hoje sabemos que a concepção que temos de língua é determinante para
definir o que entendemos como ser competente no uso de uma. Em nosso estudo,
concordamos com a visão de que as “[…] línguas dos sujeitos são constituídas pelo
conhecimento permanente que eles carregam de uma situação de fala para outra”6
(SMITH, 2006, p. 941, tradução nossa).
Nos cursos de formação inicial de professores de inglês, “[...] espera-se
dos alunos que se matriculam no bacharelado ou na licenciatura em Inglês uma
certa proficiência nessa língua, tomando-se por pressuposto que eles deveriam já
ter alcançado o nível básico no ensino básico” (PAIVA, 2009, p. 7). Contudo, o que
vemos na realidade do cenário brasileiro é bastante diferente:

O inglês é tratado como uma disciplina complementar dentro da grade horária


escolar. Geralmente possui a menor carga horária e frequentemente as aulas são
substituídas por outras atividades escolares. Muitos atores (coordenadores, ges-
tores públicos e até alunos) consideram que aprender inglês é um “luxo”, dis-
tante da realidade das populações mais vulneráveis. (PLANO DCE, 2015, p. 37)

A consequência do que acontece na Educação Básica é refletida no Ensino


Superior e, nos cursos de Letras com habilitação em inglês, não poderia ser dife-
rente. “[...] A maioria dos alunos é admitida em uma graduação de ensino de lín-
guas no Brasil sem saber muito bem o idioma; Eles, portanto, se identificam mais
como aprendizes de línguas do que como potenciais professores de línguas”7

4
Sem desmerecer ou diminuir a importância das demais competências. A ênfase cabe aqui no sentido
de não fugir do tema proposto para a seção.
5
Texto original: “[...] the grammar that represents the speaker’s competence”. (CHOMSKY, 1964, p. 37)
6
Texto original: “[…] individuals’ languages are constituted by the standing knowledge they carry from one speech
situation to another”. (SMITH, 2006, p. 941)
7
Texto original: “[...] most students are admitted onto a language teaching degree in Brazil without knowing the lan-
guage very well; they therefore identify themselves more as language learners than as prospective language teachers”.
(BARCELOS, 2015, p. 74)

204
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

(BARCELOS, 2015, p. 74, tradução nossa). Isto é evidente em ambos os níveis de


ensino, haja vista que:

O domínio de uma língua estrangeira não é uma competência que possa ser dis-
farçada. Podemos fingir sentimentos que não temos e até fazer de conta que com-
preendemos o que nos dizem, mas ninguém pode fingir que fala inglês ou espa-
nhol. A expressão natural do enunciado na língua estrangeira pressupõe anos de
estudo e dedicação, resultado de um conhecimento autêntico que não se adquire
de um dia para outro. (LEFFA, 2011, p. 16)

Em nossa compreensão, é conhecendo os sujeitos envolvidos no processo


da formação inicial que podemos encontrar respostas e, se necessário, propor e
ajudá-los a seguir caminhos diversos dos que estão no momento. E, para conhecê-
los, é preciso dar voz a eles. Vemos o nosso estudo como uma possibilidade de dar
espaço para que seus discursos sejam ouvidos, que eles todos sejam, desde o ca-
louro (que ainda dá os seus primeiros passos no Ensino Superior), até os conclu-
intes (que já se preparam para deixá-lo ou seguir adiante na pós-graduação), pas-
sando também pelos professores do curso.
Ainda que, como constatado por Barcelos (2015) e Madeira (2008), as
crenças, por vezes, não condigam com a realidade de como o processo de ensinar-
aprender o idioma acontece, o interesse em descobri-las e explorá-las junto com
eles precisa continuar, pois:

Acredita-se que as crenças têm duas funções ao aprender a ensinar. A primeira


diz respeito às teorias construtivistas da aprendizagem que sugerem que os alu-
nos tragam crenças para um programa de formação de professores que influen-
ciam fortemente o que e como aprendem. A segunda função diz respeito às cren-
ças como foco de mudança no processo de educação.8 (RICHARDSON, 1996, p.
107, tradução nossa)

Enxergar a importância das crenças como também parte do processo


de mudança na formação desvia, de certa maneira, parte da responsabilidade
que, comumente, é atribuída apenas aos formadores.

COMO MANUSEAMOS AS PALAVRAS DE NOSSOS SUJEITOS

Quanto à abordagem, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa com


quantificação de argumentos, quando necessário e possível. A opção em usar a
qualitativa justifica-se pela sua subjetividade característica que precisa prevalecer

8
Texto original: “Beliefs are thought to have two functions in learning to teach. The first relates to the constructivist
theories of learning that suggest that students bring beliefs to a teacher education program that strongly influence what
and how they learn. The second function relates to beliefs as the focus of change in the process of education.” (RI-
CHARDSON, 1996, p. 107)

205
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

durante a produção e análise das crenças. De acordo com Pajares (1992), crenças
não podem ser observadas ou medidas de forma direta, mas apenas inferidas a
partir do que as pessoas dizem, pretendem e fazem. Elas são aspectos da realidade
que não podem ser quantificados, exatamente aqueles dos quais a pesquisa
qualitativa se ocupa, em geral. Acreditamos ainda que alguns dados produzidos
em nossa investigação9 precisaram igualmente de tratamento quantitativo, na
forma de quantificação de argumentos que nos ajuda a trabalhar com dados
numéricos e percentuais de características pessoais para a construção do perfil
dos sujeitos e contextos em análise que, por sua vez, servem para melhor
compreender crenças de cada grupo e indivíduo.
Nossa proposta é fazer uma investigação de natureza básica e aplicada,
pois construímos e geramos conhecimentos para aplicação prática, voltados à
solução de problemas específicos que envolvem interesses locais, como os do
contexto investigado em pesquisas anteriores (SILVA, 2013a e 2013b; PAVAN,
2012; LIMA, 2011, BARCELOS, 1995; ALMEIDA FILHO, 2010) apontam que o
EA de LE não está acontecendo de forma suficientemente adequada na rede pú-
blica de ensino.
A partir do objetivo traçado para a investigação em questão, podemos
dizer que desenvolvemos uma pesquisa exploratória e descritiva. Assim, explo-
ramos nossos dados para “proporcionar visão geral, de tipo aproximativo”
(GIL, 2008, p. 27) e descrevemo-los visando à “obtenção de informações sobre
um fenômeno ou sobre determinada população e à descrição de suas caracte-
rísticas; também se referem ao estabelecimento de relações entre variáveis ”
(LEAL, 2011, p. 32), como uma maneira de interpretá-los. Segundo Barcelos
(2001, p. 86), “estudos interpretativos podem levar a uma compreensão mais
aprofundada sobre as crenças”. Dessa forma, interpretamos qualitativa e quan-
titativamente os dados para tentar melhor compreender a inter-relação entre
as representações dos sujeitos e sua influência no desenvolvimento da compe-
tência linguístico-comunicativa em LE durante a formação profissional inicial.
A respeito dos procedimentos, qualquer trabalho científico precisa co-
meçar com uma pesquisa bibliográfica para que o pesquisador possa conhecer
estudos anteriores sobre o assunto e saber a respeito das diversas posições
acerca do seu problema de investigação. Logo, iniciamos um levantamento bi-
bliográfico, que também perpassa todo o processo de construção do estudo,
para então desenvolver uma pesquisa de campo com os sujeitos participantes.
Já os dados produzidos em campo, por meio de questionários, grupos focais e
entrevistas, foram analisados utilizando a análise de conteúdo.

9
Por exemplo, dados demográficos dos sujeitos.

206
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Nossos questionários tinham perguntas abertas e fechadas em que os su-


jeitos são levados a discorrer sobre suas crenças em relação ao processo de EA do
inglês como LE na Educação Básica e nos cursos de formação de professores do
Ensino Superior no que tange à competência linguístico-comunicativa descrita
por Almeida Filho (2010). Eles foram respondidos por todos os participantes.
As entrevistas foram semi-estruturadas e individuais apenas com os
formadores. A entrevista, quando não totalmente estruturada, é uma forma de
produzir dados de maneira qualitativa que usamos em associação ao questionário
(essencialmente quantitativo).
Optamos por utilizar o grupo focal com o restante dos sujeitos (gradu-
andos). Ele nos pareceu ideal porque “[...] difere da entrevista individual por
basear-se na interação entre as pessoas para obter os dados necessários à pes-
quisa” (TRAD, 2009, p. 780), e é exatamente o que gostaríamos que acontecesse
durante o segundo contato com os alunos, para que, a partir da(s) discus-
são(ões) em grupo, as representações deles sobre o tema em investigação fos-
sem construídas ou mesmo modificadas, para que assim fosse também possível
estudar as crenças criadas dentro da interação entre eles e não mais individu-
almente, como no momento da aplicação dos questionários.
Elegemos a análise de conteúdo para estudar os dados produzidos no
presente estudo. Nós a consideramos uma técnica de pesquisa científica que
pode ser usada para tratar, qualitativa e/ou quantitativamente, vários tipos di-
ferentes de dados, a fim de identificar padrões, temas ou predisposições nas
comunicações humanas, reconhecendo características específicas de seu con-
teúdo, como significados, contextos e intenções.

PALAVRAS DE NOSSOS SUJEITOS EM ANÁLISE

Em virtude do uso de vários instrumentos de produção de dados, a


quantidade de informações geradas foi abundante, consequentemente, os par-
ticipantes expressaram inúmeras crenças. Reconhecemos a relevância de todas,
mas analisá-las em sua totalidade, uma a uma, iria além do objetivo proposto
para o presente estudo e extrapolaria os limites de espaço que temos aqui. Por-
tanto, optamos por compor o capítulo somente com alguns exemplos de cren-
ças de cada tipo/categoria e escolhemos trabalhar aquelas que consideramos
mais favoráveis para alcançar o nosso objetivo de pesquisa.

207
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Crenças passadas

No quadro posposto apresentamos algumas das crenças que nossos su-


jeitos tinham, em algum momento no passado, e, pelos mais diversos motivos, hoje
já não fazem mais parte de suas representações.
Quadro 1 – Crenças passadas de calouros, concluintes e formadores
Calouros Concluintes Formadores

- Inexistência de aulas de in- - Exigência de teste/prova de profici- - Exigência de


glês no curso; ência como pré-requisito para cursar teste/prova de proficiên-
a graduação; cia como pré-requisito
- Exigência de teste/prova para cursar a graduação;
de proficiência como pré-re- - Imposição do uso do inglês nas au-
quisito para cursar a gradu- las; - Grande quantidade de
ação; disciplinas ofertadas no
- Qualidade/adequabilidade das “dis- curso.
- Conscientização em rela- ciplinas de prática de ensino”.
ção a necessidades especiais.

Todos possuem uma crença passada em comum: ‘exigência de


teste/prova de proficiência como pré-requisito para cursar a graduação’;
Podemos considerar um fato positivo que todos tenham deixado de
crer na necessidade de exigir competência linguístico-comunicativa prévia de
candidatos que, em sua maioria, esperam um dia alcançar um nível proficiente
mais alto e enxergam, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Uni-
fesspa) e no curso de Letras com habilitação em LE, possibilidade e oportuni-
dade de aprender mais.
Um aspecto interessante sobre a mudança, em outras palavras, conscien-
tização, é que ela aconteceu rapidamente (período entre a aplicação do questioná-
rio e a realização dos grupos focais e entrevista). Cremos ser um indício de que a
mudança ou o desejo de mudar, em geral, nasceria primeiro entre as pessoas en-
volvidas. Daí a importância de consultas públicas e plebiscitos na esfera legisla-
tiva, para que as leis reflitam e atendam às necessidades da população, em detri-
mento de interesses, meramente, políticos.

Crenças presentes

A seguir trazemos o quadro que expõe algumas das crenças presentes dos
investigados. Aquelas que durante os momentos de produção de dados eles ti-
nham como verdade:

208
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Quadro 2 – Crenças presentes de calouros, concluintes e formadores


Calouros Concluintes Formadores

- Insatisfação com aspectos - Aulas de inglês no curso exis- - Aulas de inglês no curso exis-
do curso de Letras Inglês da tem, mas não são ofertadas de tem, mas elas são um problema;
Unifesspa; maneira apropriada;
- Aulas de inglês no curso são
- Satisfação com aspectos - Aulas de inglês no curso são insuficientes;
do curso de Letras Inglês da insuficientes;
Unifesspa; - Bom professor de LE tem qua-
- Bom professor de LE tem duas tro competências;
- Parte da formação de pro- competências;
fessores de inglês pela Uni- - Bons e maus professores são
fesspa é deficiente; - Parte da formação de profes- formados na Unifesspa;
sores de inglês pela Unifesspa é
- Diversos aspectos do curso deficiente; - Diversos aspectos do curso de
de Letras Inglês da Uni- Letras Inglês da Unifesspa po-
fesspa podem melhorar. - Diversos aspectos do curso de dem melhorar.
Letras Inglês da Unifesspa po-
dem melhorar.

Concluintes e formadores têm uma crença presente igual: “aulas de inglês


no curso são insuficientes”. Enquanto os calouros indicam possuí-la ao dar suges-
tões acerca do assunto.
Os alunos mais novos não chegam a afirmar exatamente a mesma coisa,
usando iguais palavras, mas remetem à ideia ao expressarem sua “insatisfação com
aspectos do curso de Letras Inglês da Unifesspa” quando, entre outras coisas, re-
comendam:
• Ensino do inglês “especificamente/ realmente/ de verdade” no curso;
• Inclusão/criação de disciplina para aprendizagem do idioma;
• Mais disciplinas voltadas para o EA do idioma.
Fica, então, explícito que sujeitos diretamente envolvidos (alunos e pro-
fessores) no processo de EA do idioma não estão satisfeitos com como ele está
acontecendo no momento.
Quanto às aulas, aumentar a sua quantidade na tentativa de remediar a
situação, na opinião de alunos e professores, não seria eficaz:
• Concluintes: “aulas de inglês no curso existem, mas não são ofertadas
de maneira apropriada”;
• Formadores: “aulas de inglês no curso existem, mas elas são um problema”.
Até mesmo os calouros, grupo com menos experiência e conhecimento
teórico, pensam que: o “ensino do inglês [não é] ‘especificamente/ realmente/ de
verdade’ no curso”.
Crenças futuras

209
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Adiante temos algumas das crenças futuras de nossa população-amostra.


Entre elas há tanto representações construídas a partir do que a sociedade e/ou
família espera deles, quanto expectativas a respeito de seu desenvolvimento social,
acadêmico e propósitos universitários.

Quadro 3 – Crenças futuras de calouros, concluintes e formadores


Calouros Concluintes Formadores

- (Não) Cremos que inter- - Trabalharia como profes- - Teremos mais disciplinas de en-
venção divina determina a sor de inglês dadas algumas sino/aprendizagem;
qualidade da atuação pro- condições;
fissional no futuro; - Queremos que os alunos aprendam
- Acredito que fatores ex- inglês para ensinar inglês;
- Quero que meus alunos se ternos podem desmotivar o
apaixonem pelo idioma; professor; - Ministraremos mais disciplinas to-
talmente em inglês.
- Temos professores na fa- - Tenho professores na fa-
mília que nos motivam a ser mília que me motivam a ser - Queremos (continuar a) ser pro-
professores; professora. fessores universitários;

- Não desejamos ser profes- - Queremos ser também - Pretendemos continuar estu-
sores da Educação Básica; professores; dando;

- Não vou desistir, porque - Pretendemos fazer mes- - Buscaremos melhorar nosso inglês
muitos esperam que eu de- trado (e doutorado); não apenas como aprendizes não
sista; nativos;
- Buscaremos melhorar
- Queremos ser professores nosso inglês; - Desejamos que a Unifesspa faça
e muito mais; mais pela nossa formação no futuro.
- Desejamos que a Uni-
- Pretendemos continuar fesspa faça mais pela forma- - Não teremos mais disciplinas blo-
estudando (no Ensino Su- ção dos próximos alunos; cadas;
perior);
- Precisamos continuar - Formaremos professores melhores
- Buscaremos melhorar aprendendo depois da gra- nas próximas turmas;
nosso inglês de várias ma- duação;
neiras; - (Como formadores) podemos e de-
- Vamos ser professores de vemos contribuir para melhorar a
- Desejamos que a Uni- escola pública em último Educação Básica;
fesspa faça mais pela nossa caso.
formação no futuro. - Precisamos contratar mais profes-
sores.

As expectativas referentes a terceiros estão divididas: de um lado alunos


(calouros e concluintes) e do outro, professores, onde cada parte almeja algo dis-
tinto para o futuro:

210
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

• Calouros e concluintes: influência familiar em seus sonhos e preocupa-


ção com a motivação de seus futuros alunos e deles mesmos como pro-
fessores;
• Professores: ideia fixa de que mais aulas, mais contato com a LE, mais
obrigações e comprometimento são a solução.
Quando as expectativas dos envolvidos não estão alinhadas, nada pode
ser resolvido. Se cada lado seguir as suas crenças, uns (formadores) vão se esforçar
para oferecer algo que não é o que a outra parte (alunos) acredita que funciona. O
resultado mais provável é que ambos se frustrem por não terem suas expectativas
atendidas.
Dois pontos nos chamam atenção nas crenças futuras sobre seu próprio
desenvolvimento:
• Vontade de (continuar a) ser professor de inglês;
• Desejo de estudar a língua.

Ambos são crenças futuras de nossos grupos de sujeitos. A primeira


está em concordância com a expectativa de expandir ainda mais o inglês na
Educação Básica e, para tanto, mais profissionais capacitados para lecionar,
nesse nível de ensino, serão necessários para atender à crescente demanda, o
que corrobora com outra expectativa dos docentes: “precisamos contratar mais
professores”.
Sobre a segunda, diríamos que já há planejamento e implementação de
mais políticas públicas para que o desejo de estudar a língua seja atendido. O
problema é que a forma como isto está sendo feito não corresponde às expecta-
tivas dos formadores, cuja proficiência, em geral, é mais alta e necessitam de es-
tratégias diferentes de aprendizagem. Daí a crença: “buscaremos melhorar nosso
inglês não apenas como aprendizes não nativos”. Maneiras que vão além de ofer-
tar aulas, material didático e testes de proficiência gratuitos. De acordo com os
professores participantes, eles querem e reconhecem que precisam continuar
aprendendo o idioma por toda a vida, mas não da forma como está acontecendo.

ÚLTIMAS PALAVRAS

Ao final da pesquisa, concluímos que os sujeitos investigados possuem


crenças diversas, sendo que nem todas elas estão em consonância entre os gru-
pos de participantes. Isto se aplica a todos os envolvidos no processo de EA de
inglês que acontece no curso de formação docente inicial da Unifesspa que par-
ticiparam da pesquisa: calouros, concluintes, formadores e agentes governa-
mentais.

211
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Necessidades e expectativas de aprendizagem da LE, particularmente,


de graduandos, não estão sendo atendidas, o que está levando muitos deles à
frustração e desmotivação quanto à sua própria construção de conhecimento.
Em decorrência disto, vários demonstram estar insatisfeitos com o EA de LE e,
em geral, responsabilizam a universidade, o curso e/ou seus professores por não
estarem assimilando o idioma tanto quanto pretendiam.
Na representação da maioria dos calouros, cabe a outrem a responsa-
bilidade pelo desenvolvimento da sua competência linguístico-comunicativa,
sendo papel do outro levá-los a alcançar a proficiência desejada. Nas crenças
dos concluintes, eles, por vezes, demonstram ser conscientes de sua parte no
processo de EA da LE, mas, frequentemente, a imputação de culpa ao outro
transparece em seus discursos.
Em contrapartida, prevalece, para o corpo docente do curso, a crença
de que os graduandos menos proficientes o são por terem fracassado na Educa-
ção Básica, no que concerne à aprendizagem de um idioma estrangeiro e que
continua a se repetir comportamentos e resultados semelhantes no Ensino Su-
perior, consequentemente, não aprendendo a língua, mais uma vez.
Os professores acreditam que a não aprendizagem da língua vem ocor-
rendo no curso por várias razões: heterogeneidade de níveis de proficiência,
grade curricular inadequada, Plano Pedagógico do Curso (PPC) não apropri-
ado, escassez e alta rotatividade de professores etc. Novamente, aspectos ex-
ternos a eles predominam como justificativa para um problema que têm a ex-
pectativa de solucionar em breve.
Encerramos o estudo enfatizando que conhecer as necessidades do ou-
tro por meio de suas crenças é fundamental para o sucesso de qualquer processo
de EA, seja de um novo idioma ou de formação de professores, que vemos como
algo que pode ser ensinado e, consequentemente, aprendido. O ideal é estar a
par de suas próprias crenças (como aluno ou professor) para assim poder me-
lhor compreender as representações e necessidades do outro.

212
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

ABRAHÃO, M.H.V. Algumas reflexões sobre a abordagem comunicativa, o pós-


método e a prática docente. EntreLínguas, Araraquara, v. 1, n. 1, p. 25-41, jan./jun.
2015.

ALMEIDA FILHO, J.C.P. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. 6ª ed. Campi-


nas; Pontes, 2010.

______. O ensino de línguas no Brasil de 1978: e agora? Revista brasileira de linguística


aplicada, Belo Horizonte, v. 1, nº 1, p. 15-29, 2001.

BARCELOS, A.M.F. Student teachers’ beliefs and motivation, and the shaping of
their professional identities. In: KALAJA, P. et al. Beliefs, agency and identity in foreign
language learning and teaching. Macmillan; Palgrave, 2015. p. 71-96.

______. Reflexões acerca da mudança de crenças sobre ensino e aprendizagem de


línguas. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 7, n. 2, p. 109-138, 2007.

______. Crenças sobre aprendizagem de línguas, lingüística aplicada e ensino de


línguas. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 7, n. 1, p. 123-156, 2004.

______. Metodologia de pesquisa das crenças sobre a aprendizagem de línguas: es-


tado da arte. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 1, n. 1, p. 71-92, 2001.

______. A cultura de aprender língua estrangeira (inglês) de alunos de Letras. 1995. 199 f. Dis-
sertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Lingua-
gem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. 1995.

CHOMSKY, N. The development of grammar in child language. Discussion: mono-


graphs of the Society for Research in Child Development, v. 29, n. 1, p. 35-42, 1964.

GIL, A.C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. São Paulo; Atlas, 2008

HYMES, D.H. On communicative competence. In: PRIDE, J.B.; HOLMES, J. (eds.).


Sociolinguistics: selected readings. Harmondsworth; Penguin, 1972, p. 269-293.

213
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

KALAJA, P. ‘Dreaming is believing’: the teaching of foreign languages as envi-


sioned by student teachers. In: KALAJA, P. et al. Beliefs, agency and identity in foreign
language learning and teaching. Macmillan; Palgrave, 2015. p. 124-146.

KINOSHITA, L. Crenças e expectativas sobre ensinar/aprender a ser professor de língua es-


trangeira (Representações de graduandos, formadores e agentes governamentais: o
caso da formação docente inicial na Unifesspa). 2018. 774 f. Tese (Doutorado em
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

LEAL, E.J.M. Produção acadêmico-científica: a pesquisa e o ensaio. Cadernos de en-


sino: formação continuada e ensino superior, ano 7, n. 9, Itajaí; Universidade do
Vale do Itajaí, 2011.

LEFFA, J.V. Criação de bodes, carnavalização e cumplicidade: considerações so-


bre o fracasso da LE na escola pública. In: LIMA, D. C. (Org.). Inglês em escolas pú-
blicas não funciona? Uma questão, múltiplos olhares. São Paulo; Parábola, 2011. p. 15-
32.

______. A look at student’s concept of language learning. Trabalhos de Linguística Apli-


cada, Campinas, SP, v. 17, p. 57-66, jan./ jul. 1991.

LIMA, D. C. Inglês na escola pública não funciona? Uma questão de múltiplos olhares.
São Paulo; Parábola Editorial, 2011.

MADEIRA, F. Alguns comentários sobre o papel das crenças de alunos e profes-


sores no processo de aprendizagem de um novo idioma. Letras & Letras, Uberlân-
dia, n. 24, v. 1, p. 49-57, jan./jun. 2008.

PAIVA, V.L.M.O. Caos, complexidade e aquisição de segunda língua. In: PAIVA,


V.L.M.O.; NASCIMENTO, M. (Orgs.). Sistemas adaptativos complexos: lingua(gem)
e aprendizagem. Belo Horizonte; Faculdade de Letras da UFMG, 2009, p. 187-203.

PAJARES, M. F. Teachers’ beliefs and educational research: cleaning up a messy


construct. Review of Educational Research, v. 62, n. 3, p. 307-332, 1992.

PAVAN, C.A.G. Por inteiro e por extenso: o processo real de formação inicial de pro-
fessores de línguas. 2012. 163 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) –
Instituto de Letras, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, 2012.

214
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

PERINE, C.M. Linguística Aplicada: crenças e o desafio de formar professores de


línguas. Domínios de lingu@agem: revista eletrônica de Linguística, v. 6, n. 1, p. 364-
392, 2012.

PLANO DCE. O ensino de inglês na educação pública brasileira: elaborado com exclusi-
vidade para o British Council pelo Instituto de Pesquisas Plano CDE. 1ª ed. São
Paulo; British Council, 2015.

RICHARDS, J.C.; GALLO, P.B.; RENANDYA, W.A. Exploring teachers` beliefs


and the processes of change. PAC Journal, v. 1, n. 1, p. 41-58, 2001.

RICHARDSON, V. The role of attitudes and beliefs in learning to teach. In:


SIKULA, J. (Ed.). Handbook of research on teacher education. 2a ed. Macmillan; New
York, 1996. p. 102-119.

SILVA, L.K. Ensinar/Aprender a ser professor de ILE: (mudanças de) crenças de profes-
sores e alunos sobre o processo. 2013. Relatório final de projeto de pesquisa – Fa-
culdade de Estudos da Linguagem – FAEL, Universidade Federal do Pará – UFPA,
Campus de Marabá – CAMAR, Marabá, 2013a.

_____. Crenças sobre formação de professores de Língua Estrangeira na Amazônia.


In: SEMANA PAN-AMAZÔNICA DA UNIFESSPA: Entrelugares, Culturas e Sa-
beres, 2., 2013, Marabá. Anais... Marabá: Instituto de Letras, Linguística e Artes da
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, 2013b.

SMITH, B.C. What I know when I know a language. In: LEPORE, E.; SMITH, B.C.
(eds.). The Oxford handbook of philosophy of language. Oxford; Oxford University Press,
2006, p. 941–82.

TRAD, L.A.B. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em


experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v.
19, n. 3, p. 777-796, 2009.

215
O MUNDO DO SÉCULO XIX NA NARRATIVA DE JÚLIO VERNE:
REFLEXÕES SOBRE MODERNIDADE E ALTERIDADE1

Marcus Pierre de Carvalho Baptista2

Considerações Iniciais

O que é a História? Quais seus métodos? Quais seus objetivos? Será que é
possível inferir como esta deve ser trabalhada? A partir destes questionamentos
pode-se pensar como a escrita da História sofreu transformações ao longo dos sé-
culos, configurando-se de acordo com o seu tempo e lugar social de produção, ou
seja, o contexto histórico terá uma influência preponderante na construção histo-
riográfica de uma determinada sociedade. Sobre isso Certeau (2011, p. 57) afirma
o seguinte diz:

O livro ou o artigo de história é, ao mesmo tempo, um resultado e um sintoma


do grupo que funciona como um laboratório. Como o veículo saído de uma fá-
brica, o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação
específica e coletiva do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à
ressurgência de uma “realidade” passada. É o produto de um lugar.

Em sua perspectiva, então, a História ou a escrita desta é o produto de


seu tempo e de seu lugar social. Ela estará, portanto, vinculada ao seu local de pro-
dução, refletindo os anseios e as dúvidas produzidas em sua determinada época e
sociedade.
Nesse sentido, a História, assim como diversas outras áreas do conheci-
mento, é uma ciência que se repaginou e transformou-se ao longo do tempo e do
espaço. Seus métodos e objetivos dependerão do contexto o qual esta encontra-se
inserida.
Se, de acordo com Burke (2011), no momento de sua insurgência en-
quanto ciência no século XIX havia uma preocupação com a História dos grandes
homens, com uma necessidade se tentar apresentar o que “realmente aconteceu”,

1
Texto desenvolvido enquanto componente do processo avaliativo da disciplina História Contempo-
rânea I do Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), 2015.1
e publicado originalmente nos anais do II Encontro Nacional de Ficção, Discurso e Memória em Tere-
sina em 2015 pela EDUFPI, tendo sofrido algumas alterações para a publicação nesta obra.
2
Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí em 2016, Especialista em História Sócio-
Cultural pela Faculdade do Médio Parnaíba em 2017, Mestre em História do Brasil pela Universidade
Federal do Piauí em 2019. Atualmente é professor substituto na Universidade Estadual do Maranhão
no campus de Caxias – CESC/UEMA.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

com uma busca pela imparcialidade do historiador, ao longo do século XX, per-
cebe-se uma transformação nesta escrita, novos métodos e perspectivas surgem,
permitindo ao historiador diferentes possibilidades de estudo.
Essas modificações que surgem dentro do conhecimento histórico no sé-
culo XX possibilitam uma nova perspectiva historiográfica, a chamada História
Cultural. Em seu olhar, tudo passa a ser História, tudo se torna passível de ser
estudado pela ciência histórica, aspectos das sociedades antes ignorados pelos
historiadores tornam-se objetos de estudo. A História Cultural, na perspectiva
trabalhada aqui se refere, então, a toda “historiografia que se tem voltado para o
estudo da dimensão cultural de uma determinada sociedade historicamente loca-
lizada” (BARROS, 2009, p.56). O texto literário sendo um, entre tantos elementos
produzidos culturalmente e historicamente, passível, então, de tornar-se objeto
de estudo da História.
De acordo com Pesavento (2005), há o destaque para o encontro entre a
História e a Literatura, ou seja, os textos literários transformam-se em fontes para
o historiador, que passa a percebê-los enquanto uma representação da sociedade
de seu tempo acerca de um determinado tema.
Nesta perspectiva, “o que conta para o historiador não é o tempo da
narrativa, mas sim o da escrita” (PESAVENTO, 2005, p.83), ou seja, a análise
produzida pelo historiador deve ser feita a partir do tempo no qual o lit erato e
a obra encontram-se inseridos e do lugar social o qual este escreve. Assim, “a
literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo
pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que gui-
avam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos” (PESAVENTO, 2005,
p.82) e é papel do historiador analisar estes elementos para uma possível com-
preensão, dentre muitas, de um fragmento de uma referida sociedade em um
determinado tempo e espaço.
É a partir deste olhar que o objetivo deste capítulo consistiu na análise
da perspectiva europeia sobre o mundo no século XIX a partir da narrativa de Júlio
Verne3 através das obras “A Volta ao Mundo em 80 Dias”4 e “Vinte Mil Léguas

3
Nascido no ano de 1828 na França e falecido em 1905, segundo Mourão (2005) Júlio Verne foi um dos
romancistas franceses mais traduzidos nos últimos séculos. Sua imaginação, capacidade de pensar um
mundo novo, de expor os sonhos e desejos do momento em que viveu, aliado a pesquisa científica,
preocupação com a ciência e exatidão desta marcou sua escrita e a produção de suas obras consa-
grando-o enquanto um visionário. Escreveu dezenas de obras, nas quais tratou de temas diversos rela-
cionados a conjuntura que o atravessou na época, ou seja, a vida moderna e as transformações decor-
rentes como: Exploração, Urbanismo, Geologia, Paleontologia, Construção Naval, Marinha, Astronáu-
tica, Mundo submarino, Eletricidade, Geografia, Transportes, Astronomia, dentre outros, além de tra-
tar também sobre diferentes paisagens ao redor do mundo.
4
Publicado originalmente na França em 1872 a história gira em torno de Phileas Fogg e seu recém-
contratado empregado Passepartout buscando circular o globo em apenas 80 dias em função de uma
aposta feita entre Phileas Fogg e os membros do Reform Club na Inglaterra acerca desta possibilidade.

218
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Submarinas”5. Pretende-se focar as relações de alteridade estabelecidas entre


europeus e outros povos, além de como a experiência da modernidade6 apresenta-
se em sua escrita.

Enquanto isso, um detetive da Scotland Yard segue ambos, tendo em vista que na mesma época um
ladrão havia roubado o banco da Inglaterra e Phileas Fogg se enquadrava na vaga descrição do ladrão.
O itinerário original da viagem seria de Londres até o canal de Suez no Egito, de lá para Mumbai e
depois Calcutá na Índia, após isso iriam para Hong Kong e de lá para Yokohama no Japão, depois disso
atravessariam o Oceano Pacífico para São Francisco nos Estados Unidos e iriam da Costa Oeste até a
Costa Leste norte-americana chegando em Nova Iorque, por fim, iriam de Nova Iorque até Londres. Ao
longo da história e, em função de diversos percalços, o itinerário termina não sendo seguido a risca,
mas, no geral, a viagem seria e foi realizada na narrativa literária a partir das malhas ferroviárias exis-
tentes e da possibilidade de viagens por mar através de embarcações movidas a vapor, isto é, através
dos aparatos modernos e, no caso em questão, da redução das distâncias e facilidade no transporte de
cargas e pessoas neste mundo moderno. Ao término da viagem Fogg acreditava ter perdido a aposta e,
portanto, viveria na pobreza, visto que havia gasto sua fortuna pessoal para empreender a viagem. No
entanto, Passepartout o alerta que o dia em que estavam em Londres não era 22 de dezembro, mas sim
21 de dezembro, visto que como haviam viajado rumo ao Leste passaram-se 80 dias para ambos, mas
para as pessoas que viviam em Londres apenas 79 dias. Segundo Mourão (2005) percebe-se nesta obra
a preocupação de Verne com a Geografia, reflexo de sua participação da Sociedade de Geografia de
Paris, “[...]além de chamar atenção para a questão do paradoxo dos circunavegadores, assumiu indire-
tamente uma posição a favor de Greenwich como o futuro Meridiano Zero, como seria adotado, em
1884, na cidade de Washington.” (MOURÃO, 2005, p. 10-11)
5
Publicado originalmente na França em 1869 (MOURÃO, 2005) a história trata, especialmente, sobre
as aventuras do submarino Nautilus e seu capitão, Nemo, através do olhar do professor Pierre Aronnax,
capturado após uma expedição para destruir um monstro marinho que havia sido visto por embarca-
ções de diversas nacionalidades e considerado enquanto uma baleia gigante. Ao encontrar o suposto
monstro alguns dos tripulantes enviados para destruí-lo, entre eles Aronnax e Ned Land, terminam
caindo no oceano pacífico e sendo capturados pelo “monstro” que, na realidade, tratava-se do Nautilus,
um submarino moderno movido a eletricidade e comandado pelo capitão Nemo, personagem que pos-
suía desejos ambíguos visto que, ao mesmo tempo em que desejava adquirir mais conhecimentos cien-
tíficos almejava se vingar da civilização terrestre. A obra não deixa claro a nacionalidade de Nemo in-
dicando apenas que trata-se de alguém que viria de alguma das localidades conquistadas por alguma
nação imperialista. Além disso, a narrativa traz diversas aventuras vividas através do olhar de Aronnax
em várias partes do mundo, algumas reais, como a Antártida, e outras fictícias, como o Reino Perdido
de Atlantis, além do encontro com o Outro, no caso, povos nativos de regiões que aparentavam não
manter contato com outras sociedades, bem como momentos de mergulho pelas profundidades do oce-
ano. Ao término da obra Aronnax e Ned Land conseguem fugir do Nautilus e o paradeiro final do sub-
marino do Capitão Nemo termina desconhecido.
6
Compreendemos a modernidade tendo em vista a perspectiva de Berman (1986) o qual aponta esta
enquanto uma experiência que toma forma a partir do momento em que o sujeito começa a refletir
sobre as maneiras como o processo de modernização provoca modificações no espaço que este encon-
tra-se inserido, bem como em sua percepção de tempo. Segundo o autor, podemos dividir a moderni-
dade em três momentos históricos: do começo do século XVI até o final do século XVIII, quando os
sujeitos começando a vivenciar o ser moderno e a vida moderna, sem, no entanto, entender com exati-
dão o significado disto; do fim do século XVIII até o final do século XIX, assinalado pelas grandes re-
voluções, tem-se a perspectiva de estar vivendo em uma conjuntura de mudanças político-sociais, bem
como pessoais, além de ainda se ter a percepção do significado de viver em um mundo que ainda não
se configura enquanto moderno. Esse sentimento de estar vivendo em dois mundos distintos e opostos
é o que provoca a geração das ideias do modernismo e da modernização; o terceiro momento, por sua
vez, tem como marco inicial a virada para o século XX quando o mundo, quase em sua totalidade, é
afetado pelo processo de modernização e, enquanto isso, o modernismo, percebido enquanto uma nova
onda cultural, influencia significativamente a arte e o imaginário social. A modernidade, desta forma,
remete-se, ao aglomerado de experiências compartilhadas nas diferentes temporalidades e espaços por
um sujeito e por outros. Ser moderno neste momento significa viver em um espaço contraditório, que

219
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Os referenciais teórico-metodológicos utilizados na elaboração deste tra-


balho foram, principalmente, Hobsbawm (1981), Berman (1986) e Reis (2006) no
intuito de compreender o contexto vivenciado por Júlio Verne, isto é, o período
oitocentista, bem como a experiência da modernidade influenciou e transformou
o cotidiano dos sujeitos nesta época. Empregamos também Todorov (2010), Hall
(2015), Woodward (2014) e Said (2011) com o propósito de perceber as relações
estabelecidas entre o “Eu” e o “Outro”, de Alteridade, através da narrativa literária
e de que forma isto reflete um ideário europeu sobre essa Outridade no século XIX,
buscando, assim estabelecer um diálogo entre sua narrativa ficcional e como estes
elementos, a modernidade e a alteridade, se fazem presentes, refletindo sobre
como Júlio Verne vivenciou essa experiência moderna e como percebia o Outro.

O Mundo no século XIX: Um diálogo entre a História e a Literatura.

Como era o mundo no século XIX? Diversas são as formas de perceber um


determinado elemento, no caso em questão uma perspectiva de mundo de certa
época. É possível analisar diferentes contextos a partir de documentos, relatos,
registros, bem como da literatura produzida durante o período. Como já traba-
lhado, os textos literários dizem muito sobre a conjuntura na qual foram escritos.
Como pensar, então, este mundo na visão de Júlio Verne?

ao mesmo tempo pode ser o responsável por alegrias, inovações, crescimento, transformação dos ele-
mentos ao redor dos indivíduos, e também por trazer a destruição ou levar ao fim tudo que o sujeito
conhece, sabe, possui e é. A modernidade, então, pode ser percebida enquanto um elemento que pro-
moveria a unificação dos seres humanos, pondo fim as diferenças, como questões religiosas, fronteiras,
nacionalidades, mas similarmente provocando a desunião e fragmentação. É uma unificação contradi-
tória que coloca todos em um espaço de conflitos e constantes transformações. Não obstante isso, mui-
tos elementos influenciam e simbolizam a experiência da modernidade, como: as inovações tecnológi-
cas, a transformação e produção de novos espaços em decorrência destas; novas formas de poder, além
de mudanças nas maneiras de se viver; crescimento demográfico; urbanização; aparecimento meios de
comunicação massificados que possibilitam uma aproximação maior entre os diferentes sujeitos e so-
ciedades; Estados-Nação mais poderosos; movimentos sociais organizados; um capitalismo internaci-
onal que detém mais influência. Deve-se ter considerar também que essa ampliação da experiência
moderna a nível um nível mundial é acompanhado de um fracionamento dos sujeitos que vivenciam
esse “ser moderno”, tendo em vista que as experiências são distintas, com cada um utilizando de uma
linguagem e codificações diferentes. No período oitocentista, a modernidade pode ser definida por ele-
mentos que indicarão o compasso no qual esta experiência encontra-se possibilitando sua identifica-
ção. Elementos como a transformação e o surgimento de novas paisagens decorrentes deste moderno
a exemplo das ferrovias, fábricas, engenhos a vapor, zonas industriais, ampliação da urbanização, dos
novos mecanismos de comunicação, como o telégrafo, telefone, movimentos sociais que criticam esse
processo de modernização enquanto uma coerção das classes abastadas perante as classes menos fa-
vorecidas e uma interdependência cada vez maior entre o mercado internacional. Os sujeitos que vivem
neste momento, isto é, os modernistas, sentem-se atormentados, ao tempo que esta experiência tam-
bém os deixa fascinados.

220
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A partir da análise da escrita de Verne (2006), bem como pelo diálogo


com outros autores pode-se inferir acerca de certos aspectos do contexto no qual
este vivia.
Primeiramente, tomando como referência Hobsbawm (1981) o mundo do
final do século XVIII e começo do século XIX era “ao mesmo tempo menor e muito
maior que o nosso” (HOBSBAWM, 1981, p.23). Isto é, tratava-se de um mundo que
ainda não se conhecia totalmente, por isso a perspectiva de ser maior do que a
contemporaneidade, bem como tinha-se a percepção de ser menor, tendo em vista
que viajar não era muito comum, algo que se transforma e amplia, principalmente,
a partir do século XIX e das inovações nos transportes. Dessa forma, o desconhe-
cimento destes espaços que compunham o globo por parte das sociedades produ-
zia uma ideia de que este era maior do que o que ele realmente era.
Além disso, as formas de comunicação, apesar de serem mais desenvolvi-
das que a dos séculos passados, não se comparavam com as que foram praticadas
durante o século XIX e XX. Pode-se perceber esse avanço nas comunicações ao
observamos o seguinte trecho da obra “Volta ao mundo em 80 dias”:

Phileas Fogg, deixando Londres, nem fazia idéia, sem dúvida, da grande reper-
cussão que sua partida iria provocar. A notícia da aposta espalhou-se a princípio
no Reform Club, e produziu uma verdadeira comoção entre os membros do res-
peitável círculo. Depois, do club, esta comoção passou para os jornais, por inter-
médio dos reporters, e dos jornais ao público de Londres e de todo o Reino Unido
(VERNE, 2006, p. 83).

Nota-se, então, a rapidez com a qual a notícia da empreitada de Phileas


Fogg espalhou-se pelo Reino Unido, fruto do contexto da época, da evolução nos
meios de comunicação em razão da conjuntura do mundo oitocentista.
É importante ressaltar isto porque a partir da narrativa presente em Júlio
Verne percebe-se a transformação do mundo no século XIX apontada por Hobs-
bawm (1981) como fruto da dupla revolução, responsáveis por moldar a sociedade
ocidental. Em “Volta ao Mundo em 80 dias” nota-se claramente o papel que a Re-
volução Industrial teve nesta época moderna, no auge do imperialismo europeu.
Tomemos como exemplo o seguinte trecho:

[...] - Eu sustento, disse Andrew Stuart, que as probabilidades são a favor do


ladrão, que não pode deixar de ser um homem muito astuto!
– Ora, vamos! respondeu Ralph, não há mais um só país que ele possa se refugiar.
– Por exemplo!
– Para onde quer que ele vá?
– Não sei, respondeu Andrew Stuart, mas, afinal, a terra é bastante vasta.
– Era outrora... disse à meia voz Phileas Fogg. [...]
– Como, outrora! A terra diminuiu, por acaso?
– Sem dúvida, respondeu Gauthier Ralph. Sou da opinião de Mr. Fogg. A terra
diminuiu, pois a percorremos agora dez vezes mais depressa do que há cem anos.

221
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

E é isto o que, no caso de que nos ocupamos, tornará as buscas mais rápidas. [...]
(VERNE, 2006, p. 58 – 59)

No fragmento destacado Phileas Fogg e seus colegas do Reform Club dis-


cutiam sobre um assalto recente que havia ocorrido no Banco da Inglaterra e sobre
as possibilidades de fuga do ladrão. Neste momento é possível observar a trans-
formação que havia ocorrido no mundo do século XIX 7. Se no século anterior o
mundo era considerado “maior” por ser menos conhecido e pela dificuldade em
viajar, no século XIX esta situação muda radicalmente por conta da Revolução In-
dustrial e do avanço das ferrovias. Observando o trecho a seguir de “Volta ao
Mundo em 80 dias” pode-se inferir a influência que a Revolução Industrial teve na
ampliação da globalização da Terra:

[...] – É preciso confessar, senhor Ralph, retomou, que achou um modo engra-
çado de dizer que a terra diminuiu. Porque atualmente se faz sua volta em três
meses...
– Em oitenta dias apenas, disse Phileas Fogg.
– Com efeito, senhores, acrescentou John Sullivan, oitenta dias, desde que a se-
ção entre Rothal e Alaabad foi aberta sobre o “Great-Indian peninsular railway”[...]
(VERNE, 2006, p. 60)

No segmento observa-se, então, como a Revolução Industrial, particular-


mente a experiência da modernidade e o processo de modernização dos espaços
provocou transformações em partes do mundo no século XIX. Não apenas encur-
tou as distâncias, mas possibilitou o surgimento de um novo imaginário para a
época, principalmente com o desenvolvimento das ferrovias. Sobre isto Hobs-
bawm (1981, p. 61) nos diz:

Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação


quanto a ferrovia, como testemunha o fato de ter sido o único produto da indus-
trialização do século XIX totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita
e popular.

Nesse sentido, as estradas de ferro foram um dos aspectos mais marcan-


tes desta nova conjuntura. Elas simbolizavam a inovação tecnológica, a experiên-
cia da modernidade tomando forma, “[...] o próprio símbolo do triunfo do homem
pela tecnologia.” (HOBSBAWM, 1981, p.61).

7
No entanto, deve-se apontar que de acordo com Baptista (2019) esta “transformação” ocorreu de ma-
neira diferente levando em conta os contextos particulares de cada localidade influenciada por esta
experiência da modernidade, com alguns espaços sofrendo mais influência deste processo de moder-
nização, sendo estes, geralmente, aqueles próximos a portos e ferrovias, a exemplo dos ambientes per-
corridos por Phileas Fogg no decorrer de “Volta ao Mundo em 80 dias”.

222
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Dessa forma as estradas de ferro tiveram uma importância significativa


no referido século e a escrita de Verne (2006) torna isso perceptível. É, principal-
mente, através das estradas de ferro que o mundo havia “reduzido” de tamanho. É
através dela e das embarcações a vapor, outra inovação que aparece neste con-
texto, que se torna possível fazer a “volta ao mundo” tão rapidamente.
No entanto, não foi apenas em “Volta ao mundo em 80 dias” que o con-
texto vivido por Júlio Verne influenciou sua escrita. Quando pensamos também
em “20 mil léguas submarinas” percebe-se como a conjuntura da época se faz
presente em sua escrita.
No caso de “20 mil léguas submarinas” não serão as ferrovias ou mesmo
os vapores os representantes da experiência da modernidade presentes no sé-
culo XIX, mas sim o Nautilus. Pode-se inferir isso a partir da descrição da em-
barcação do Capitão Nemo e do seguinte trecho da obra: “Este navio é uma
obra-prima da indústria moderna e eu lamentaria perder a oportunidade de ob-
servá-lo à vontade” (VERNE, 2013, p.43).
A partir da fala do Professor Aronnax percebe-se como a emblemática
embarcação do Capitão Nemo será a grande representante nessa obra acerca da
importância que a Revolução Industrial teve ao longo do século XIX. No caso
em questão, como os avanços tecnológicos permearam o imaginário do europeu
da época, tanto em um viés positivo, muitas vezes de encantamento, mas tam-
bém provocado o medo perante o desconhecido, o Nautilus sendo percebido
das duas formas.
À medida em que o submarino se torna um produto deste encanta-
mento possível a partir da experiência da modernidade, também provoca o
medo naqueles que o desconheciam. No início de “20 mil léguas submarinas”,
antes de Aronnax conhecer o Nautilus, este toma conhecimento de sua existên-
cia a partir do encontro da embarcação do Capitão Nemo com vapores de várias
nacionalidades diferentes, tido por estas e pela população enquanto um mons-
tro marinho.

Em 1866, um acontecimento estranho abalou a opinião pública do mundo. Nos


mares estava sendo encontrado um ser estranho, enorme, que parecia ter lumi-
nosidade própria e se locomovia mais rápido do que uma baleia. Comerciantes,
capitães de navios, armadores e governantes estavam seriamente preocupados,
já que os relatos de quem via tal objeto, ou ser, coincidiam nos mínimos detalhes,
de forma que era incontestável a sua existência. Ele fora visto por dois vapores,
o “Governador Higginson” e o “Cristobal Colon”, numa diferença de três dias,
numa distância de setecentas léguas marítimas. O que equivale a dizer que a ve-
locidade em que se locomovia era surpreendente. O mesmo ocorreu semanas de-
pois, quando o “Helvetia” e o “Shannon” avistaram o tal ser, numa distância de
mil léguas. Nessa ocasião, ambos puderam calcular seu comprimento: beirava os
106 metros! No início do ano seguinte, o “Moravian” bateu em um rochedo não
registrado em qualquer mapa de navegação e, se não fosse a qualidade de seu
casco, teria sido tragado pelas águas, com seus 237 passageiros. Assim aconteceu

223
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

com o “Escócia”, que não bateu, mas foi atingido por um objeto cortante, que
provocou entrada de água e muito pânico entre os passageiros. O navio chegou
ao seu destino três dias atrasado. Os engenheiros que fizeram a inspeção no
rombo encontraram um corte na chapa metálica, em formato de triângulo isós-
celes. Todos esses acontecimentos e mais o último episódio tornaram as comu-
nicações entre os continentes muito perigosas e levaram o público a exigir o fim
do terrível monstro, que habitava as profundezas dos oceanos e passara a ser o
suposto responsável por todos os acidentes marítimos. (VERNE, 2013, p. 7-8)

É interessante como a população, ao invés de considerar o suposto


monstro marinho capaz de produzir iluminação própria enquanto um produto
da humanidade, ou seja, um aparato moderno ainda desconhecido por esta, ime-
diatamente tem medo deste, percebendo-o enquanto uma ameaça, um monstro
marinho que precisava ser eliminado. A partir deste trecho podemos indicar a
percepção de Júlio Verne acerca de como as pessoas comuns vivenciavam esta
modernidade, apontando as diversas formas como este aparato moderno estava
presente no imaginário humano, tanto de maneira positiva, mas também de ma-
neira negativa, no caso em questão, através do medo do desconhecido, no sen-
timento de viver em um mundo “[...] no qual tudo que é sólido desmancha no
ar.” (BERMAN, 1986, p. 8)
Neste sentido, outro aspecto a ser destacado em “20 mil léguas subma-
rinas” é a dúvida que o oceano ainda produz no homem do século XIX. Consi-
derando que “os conhecimentos humanos sobre o fundo do mar tenham perma-
necido insignificantes até a metade do século XX” (HOBSBAWM, 1981, p. 23)
a embarcação do Capitão Nemo e suas aventuras pelas profundidades oceâni-
cas representam a vontade e a necessidade do homem moderno, este homem
presente na figura do Professor Aronnax de conhecer o mundo e, também, de
conquistá-lo. O Capitão Nemo, por sua vez, pode ser percebido enquanto a an-
títese de Aronnax, representando a contradição deste homem marcado pela ex-
periência da modernidade e por este imaginário. Segundo Mourão (2005, p. 5)

[...] é um herói feito de paradoxo, onde coabita um egoísmo cego com a rejeição
total do interesse pessoal. Como Hatteras, sua obra constitui um sonho apaixo-
nado, preocupado em conquistar um conhecimento útil ao bem coletivo. Na rea-
lidade, é a imagem do autor: Nemo é introvertido e um grande pensador. Homem
de ação, Nemo constitui por seu imenso ideal pouco comum um aventureiro dife-
rente de todos. Esses dois heróis de Jules Verne se parecem por sua audácia, te-
meridade, convicção racional e obstinada. Enquanto o capitão conduziu a sua
energia súperhumana para a loucura, o capitão Nemo permaneceu prudente-
mente como se houvesse conservado a lição do predecessor. Procurou livremente
o universo que lhe é permitido descobrir – um território infinito que ele insere nos
seus conhecimentos – para uma epopéia inédita, estimulada por uma razão dire-
cionada para o combate entre o bem e o mal. É, na realidade, um terrorista paci-
fista. Esse personagem é uma síntese do homem do seu tempo, cujas novas formas
morais estavam em construção. É um homem que aspira a uma sociedade de cida-
dãos responsáveis pela razão, mas cuja razão é ainda precária e frágil.

224
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Percebe-se, então, na escrita de Julio Verne a influência que a Revolu-


ção Industrial, particularmente a experiência da modernidade, e a ciência tive-
ram em suas obras e no contexto do século XIX. “O olhar científico do século
XIX significou a radicalização da confiança no projeto moderno” (REIS, 2006,
p.39) e a partir deste projeto o historiador, o homem do século XIX “pode dife-
renciar povos inferiores e povos superiores, povos mais e menos livres, povos
mais avançados e mais atrasados” (REIS, 2006, p. 39).
A modernidade, nesse sentido, para Reis (2006), levou o homem às
Grandes Guerras e culminou na conquista quase que absoluta do mundo pelos
europeus, principalmente Inglaterra e França. Dessa maneira, “o completo do-
mínio político e militar do mundo pela Europa viria a ser o produto da era da
dupla revolução” (HOBSBAWM, 1981, p.41). Said (2011, p.40) também corro-
bora com essa perspectiva ao afirmar que “esse século foi o apogeu da ‘ascensão
do Ocidente’, e o poderio ocidental possibilitou aos centros metropolitanos im-
periais a aquisição e acumulação de territórios e súditos a uma escala verdadei-
ramente assombrosa.”
Este processo resultou na submissão e absorção do mundo aos grandes
impérios ocidentais (SAID, 2011) e isto, por sua vez, trouxe à tona novamente a
questão sobre alteridade, acerca da visão do conquistador sobre o Outro, algo
que não escapou a escrita e perspectiva de contemporâneos ao momento, a
exemplo de Júlio Verne e é este aspecto que será trabalhado em seguida a partir
também de sua narrativa.

Alteridade e Modernidade: perspectivas de uma relação.

De que maneira, então, essa Alteridade toma forma no século XIX,


principalmente considerando a narrativa de Júlio Verne? Primeiramente é pre-
ciso apontar que as relações de Alteridade se materializam sempre que culturas
diferentes se encontram, e que, de acordo com Todorov (2010) a compreensão
desta Outridade ou deste Outro só é possível a partir da percepção de que ali
trata-se de um igual e, ao mesmo tempo, diferente. Deve-se destacar também
que, segundo Todorov (2010), talvez o maior exemplo desse tipo de relação, ou
seja, o encontro que possivelmente provocou maior estranheza foi o ocorrido
entre o europeu e o americano no final do século XV e início do século XVI.
Contudo, estas relações de Alteridade continuaram a existir nos sécu-
los seguintes e durante o século XIX, no auge do imperialismo europeu, quando
boa parte do mundo da época esteve em seu domínio percebe-se novamente

225
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

essas questões inseridas dentro dos grandes impérios ocidentais. Sobre isso
Said (2011, p. 43) diz que:

Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aqui-


sição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideoló-
gicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram
pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação: o vo-
cabulário da cultura oitocentista clássica está repleto de palavras e conceitos
como “raças servis” ou “inferiores, “povos subordinados”, “dependência”, “ex-
pansão” e “autoridade”. E as ideias sobre a cultura eram explicitadas, reforçadas,
criticadas ou rejeitadas a partir das experiências imperiais.

A partir do trecho pode-se inferir a relação existente entre o europeu


e o habitante do mundo conquistado pelo primeiro. O projeto de modernidade,
como dito anteriormente, criou as condições necessárias para a conquista do
mundo pela Europa, bem como a imposição cultural da mesma sobre aqueles
que foram subordinados ao seu poder. É esta a Alteridade que ocorreu durante
o período oitocentista, no auge do imperialismo europeu, entre os habitantes
dos Grandes Impérios Ocidentais e as populações que foram submetidas ao seu
poder e a sua cultura.
Sendo assim, nota-se esse contexto, essas relações de Alteridade entre
o europeu e o habitante do mundo conquistado na escrita de Júlio Verne, prin-
cipalmente na obra “Volta ao mundo em 80 dias”. A perspectiva do europeu so-
bre a cultura destes povos é abordada na narrativa do autor, apontando o pen-
samento de que a cultura europeia é superior, ideia reforçada pela modernidade.
Ao considerar a obra “Volta ao mundo em 80 dias” podemos perceber esta
perspectiva de superioridade frente a cultura do conquistado em um momento o
qual Phileas Fogg e Passepartout encontram-se atravessando a Índia e presenciam
um ritual na região a qual se encontravam. O ritual em questão praticaria o sacri-
fício de uma mulher, de uma vida humana, voluntariamente, em nome da deusa
Shiva, deusa do amor e da morte na cultura indiana. Ao compreender o que estava
acontecendo o seguinte diálogo ocorre:

– Como! retomou Mr. Fogg, sem que sua voz traísse a menor emoção, estes cos-
tumes bárbaros subsistem na Índia e os ingleses não puderam destruí-los?
– Na maior parte da Índia, respondeu Sir Francis Cromarty, esses sacrifícios já
não acontecem mais, mas não temos nenhuma influência nas regiões selvagens,
e principalmente aqui no território do Bundelkund. Toda a vertente setentrional
dos Víndias é teatro de assassinatos e pilhagens incessantes (VERNE, 2006, p.
225 – 226).

A partir deste diálogo aponta-se a perspectiva do europeu sobre o Outro,


sendo perceptível o pensamento da superioridade do europeu sobre a cultura do
Outro. Vale destacar que não se encontra em discussão aqui a moralidade do ato
de tirar uma vida, mas sim o olhar do europeu sobre uma cultura diferente da sua.

226
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Nesse sentido, a partir do momento que Phileas Fogg e Sir Francis Cromarty to-
mam a cultura nativa como “bárbara” e “selvagem” estão contrapondo-a a sua pró-
pria cultura, ou seja, à medida que o Outro é visto desta maneira significa dizer
que o europeu é o civilizado.
Não é apenas em “Volta ao mundo em 80 dias” que percebemos essa rela-
ção estabelecida entre o europeu oitocentista com o Outro. Em certo momento
durante a obra “20 mil léguas submarinas” o Professor Aronnax pede permissão
ao Capitão Nemo para ir à terra firme e caçar com seus companheiros. Nemo con-
cede a vontade de Aronnax e atraca o Nautilus em uma ilha próximo à Papua-Nova
Guiné conforme se verifica no trecho:

Levantamo-nos os três, de espingardas em punho, prontos para responder a


qualquer ataque.
– Serão macacos? – perguntou Ned Land.
– Mais ou menos – respondeu Conselho. – São selvagens.
– Corramos para o bote! – apressei-os, dirigindo-me para o mar.
De fato, era forçoso que fugíssemos, porque uns vinte indígenas, armados de ar-
cos e fundas, surgiam na orla de uma mata à direita de onde estávamos, a cerca
de cem passos. Aproximavam-se sem correr, mas demonstrando hostilidade, ati-
rando suas pedras e flechas contra nós. Chegamos em dois minutos à beira do
mar. Carregar o bote com as nossas provisões da caçada, empurrá-lo para a água
e montar os remos, foi uma questão de segundos. Ainda não tínhamos avançado
dez metros e já uma centena de selvagens, gritando e gesticulando, entrava na
água (VERNE, 2013, p. 72-73).

A partir do segmento pode-se perceber como de maneira análoga a “Volta


ao Mundo em 80 Dias” o nativo de outras regiões é encarado novamente como sel-
vagem, contrapondo-se mais uma vez ao “europeu civilizado” representado por
Aronnax e seus companheiros.
Desta maneira nota-se o olhar do europeu sobre o Outro a partir da nar-
rativa de Júlio Verne e como este corrobora com o projeto de modernidade e im-
perialismo vigente na época, que colocava o europeu enquanto superior e civili-
zado, em detrimento dos povos que acabam por serem submetidos a eles.
Contudo, ao se pensar a Alteridade neste contexto e na narrativa de Júlio
Verne, ao considerarmos sua obra “20 mil léguas submarinas” existe a presença de
uma figura emblemática e curiosa: o Capitão Nemo.
Por que, então, o capitão Nemo marca esta questão da Alteridade em “20
mil léguas submarinas” e, particularmente, o próprio imaginário de Júlio Verne
sobre o contexto em que vivia? O Capitão Nemo, ao mesmo tempo em que ele é
fruto do imperialismo europeu, visto que sua origem está ligada a algum povo que
foi subordinado aos impérios europeus, ele também constrói o Nautilus, uma em-
barcação que reflete o projeto de modernidade europeu, muito provavelmente a
partir dos conhecimentos adquiridos por ele ao estudar na Europa. Refere-se, en-

227
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

tão, a percepção de Júlio Verne acerca não apenas dos benefícios trazidos pela ex-
periência da modernidade, mas também dos problemas que esta pode causar,
tendo em vista que ao tempo que possibilita o desenvolvimento científico do
mundo, a exemplo da construção do Nautilus, é responsável também pela morte
da família de Nemo e conquista de sua terra natal por uma potência estrangeira.
Essa questão presente na figura de Nemo abre possibilidades para diver-
sos debates ou questionamentos ao longo da obra. Temos como exemplo o trecho
a seguir que retrata a reação de Nemo quando o Professor Aronnax o informa dos
“selvagens” que estariam atacando-os após a sua caçada e de seu grupo. Nemo diz
o seguinte:

– Ah! É o professor – falou, voltando-se para mim. – Então fez boa caçada? – Sim,
capitão, mas infelizmente trouxemos um bando de bípedes cuja presença me pa-
rece muito inquietante.
– Selvagens – adivinhou ele e comentou num tom irônico. – O senhor admira-se
de ter encontrado selvagens nesta região? Onde é que não há selvagens, profes-
sor? Aliás, os daqui serão piores do que aqueles que o senhor não considera como
tais? (VERNE, 2013, p. 73)

A partir da análise do trecho percebe-se o questionamento de Nemo


acerca destes “selvagens”. Ele compara-os aos europeus, àqueles que o Professor
Aronnax considera como civilizados. Nemo, de uma forma sutil, critica os Gran-
des Impérios Ocidentais, a civilização ocidental, da qual o Professor Aronnax e
seus companheiros fazem parte.
Nemo representa, então, o resultado do imperialismo europeu sobre o
mundo e isto reflete em seus pontos de vista. É perceptível isto ao considerarmos
os seguintes trechos, primeiramente quando Nemo conhece Aronnax e seus com-
panheiros e em outro momento quando Nemo revela onde teria se formado en-
quanto engenheiro:

– Sr. Aronnax – replicou ele com vivacidade. – Não sou aquilo a que chama um
homem civilizado! Rompi com toda a sociedade por motivos que só eu posso
apreciar. Portanto, não obedeço as suas regras e convido-o a que nunca as evoque
em minha presença! Estas palavras foram ditas pausadamente. Um raio de cólera
e de desprezo iluminou os seus olhos e eu adivinhei em sua vida um passado
extraordinário. Não só se tinha colocado à margem das leis humanas, como se
tornara independente, livre na mais rigorosa acepção da palavra, fora de qual-
quer ataque (VERNE, 2013, p. 32 – 33).

E, em outra situação, Nemo revela onde teria estudado: “– Sim, professor.


Estudei em Londres, Paris e Nova Iorque no tempo em que era habitante dos con-
tinentes da terra” (VERNE, 2013, p.41). A partir destes dois segmentos pode-se
inferir que, muito provavelmente, Nemo pertencia a algum povo que foi subordi-
nado pelos europeus e isso influenciou significativamente seu processo de identi-

228
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ficação. O momento que isso fica realmente claro se dá num trecho o qual o Nauti-
lus é atacado por uma embarcação moderna dos Impérios Ocidentais. Neste mo-
mento temos a seguinte fala de Nemo: “– Eu sou o direito, eu sou a justiça! Sou o
oprimido e ali está o opressor! Foi por causa dele que vi morrer tudo que eu amava
e venerava: pátria, mulher, filhos, pai e mãe! Tudo o que odeio está ali. Cale-se e
desça!” (VERNE, 2013, p.209). Nemo confirma, mesmo sem dizer a nação a qual
pertencia, sua origem, é a consequência, de fato, da opressão e do imperialismo das
Nações Ocidentais sobre o resto do mundo.
A Alteridade e, principalmente, a experiência da modernidade, seus as-
pectos positivos e negativos, então, estão representados na figura de Nemo a partir
do momento em que ao mesmo tempo em que este é um reflexo deste imperialismo
europeu é também aquele que dá seguimento ao projeto de modernidade que levou
a legitimação destes impérios ocidentais8. Nautilus, afinal de contas, muito prova-
velmente foi construído a partir do conhecimento adquirido por Nemo em sua na-
ção de origem e naquelas que a conquistaram e simboliza o imaginário do homem
moderno nesta época marcada por esta modernidade. Representa, então, o imagi-
nário do europeu acerca dos avanços tecnológicos, fruto da influência da Revolu-
ção Industrial no mundo ao longo do século XIX, bem como o seu medo acerca das
transformações decorrentes a partir desta.

Considerações Finais

A Literatura constitui-se em um espelho da sociedade da época, apresen-


tando questões, discussões e mesmo imaginários produzidos durante o contexto
da tessitura da obra, tornando-se uma das possíveis fontes às quais o historiador
pode se apropriar na construção de sua narrativa e na tentativa de compreender
um determinado contexto.
Desta forma, torna-se possível discutir e analisar uma determinada época
através de um diálogo entre a ficção literária e o conhecimento histórico produ-
zido sobre determinada conjuntura.
No caso em questão, a escrita de Júlio Verne possibilitou a reflexão
acerca de como a experiência da modernidade marcou o imaginário da humani-
dade, particularmente do europeu no período oitocentista, com ênfase para a

8
É preciso ressaltar que a Identidade, de acordo com Woodward (2014) e Hall (2015), é construída a
partir da Diferença, ou seja, o sujeito só reconhece a si na medida em que percebe a existência de um
“Outro” que não é igual ao “Eu”, o que implica que as afirmações de Identidade só são capazes de pro-
duzir sentidos na medida em que também se tornam afirmações de Diferença. Estas Identidades, por
sua vez, são marcadas e transformadas pelo “Outro”, no sentido de que ao se constituir uma relação
com a Alteridade, tem-se o surgimento de novas identidades, o que é o caso do Capitão Nemo, fruto
desta nova identidade produzida pelo imperialismo ocidental.

229
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

transformação nos meios de transporte e comunicação, o surgimento de novos


aparatos modernos, o fascínio provocado por estes, bem como o medo do en-
contro ao desconhecido.
Além disso provocou a reflexão acerca de novas Identidades e novas
formas de se perceber o Outro através das relações de Alteridade estab elecidas
entre os impérios ocidentais e os grupos que terminaram sendo submetidos a
estes, com o Capitão Nemo representando simbolicamente este olhar de Júlio
Verne para os efeitos que esta modernidade produzia naquele momento sobre
o “Eu” e sobre o “Outro”.
Por fim, por meio de novos olhares de acordo com a época na qual se es-
creve, novas possibilidades podem e devem surgir ao se trabalhar com documentos
históricos. A História, afinal de contas, parte de questionamentos feitos no pre-
sente para problematizar o passado. Deste modo, a análise da perspectiva do eu-
ropeu oitocentista sobre o mundo a partir da narrativa de Júlio Verne torna-se
uma questão ainda pertinente para a contemporaneidade, tendo em vista a repre-
sentação de um imaginário, de uma modernidade e Alteridade que se fazem pre-
sentes até hoje, gerando problemas e contradições entre as nações e os povos que
a compõem que, tal qual europeus e ameríndios no final do século XV, ainda não
conseguem compreender a Outridade9

9
Um exemplo destas questões na contemporaneidade refere-se à situação posta na Europa frente aos
imigrantes do Oriente Médio decorrentes, principalmente, da crise de refugiados da Síria que teve iní-
cio em 2011. Cria-se a “[...] ideia de uma identidade europeia, por exemplo, defendida por partidos po-
líticos de extrema-direita [...] como uma reação à suposta ameaça do “Outro”. Esse “Outro” muito fre-
quentemente se refere a trabalhadores da África do Norte (Marrocos, Tunísia e Argélia), os quais são
representados como uma ameaça cuja origem estaria no seu suposto fundamentalismo islâmico.”
(WOODWARD, 2014, p.24-25).

230
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. 6.


ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

BAPTISTA, Marcus Pierre de Carvalho. Amarras e desamarras: cotidiano e moder-


nização em Amarração no litoral do Piauí (1880 – 1930). 2019. 161 f. Dissertação
(Mestrado em História do Brasil) – Programa de Pós-Graduação em História do
Brasil, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2019.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da moderni-


dade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: ______ (org.).
A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 2011. p. 7-38.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro:


Lamparina, 2015.

HOBSBAWM, Eric John Ernest. A Era das revoluções: Europa 1789 – 1848. 3. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Cem anos da morte de Júlio Verne. Porto
Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2005. Disponível
em: https://www.ihgrgs.org.br/artigos/contibuicoes/Ro-
naldo%20R.%20de%20F.%20Mour%C3%A3o%20-
%20Cem%20Anos%20da%20Morte%20de%20Julio%20Verne.pdf. Acesso em:

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Correntes, campos temáticos e fonte: uma aventura


na história. In: ______. História e história cultural. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2005. p. 69-98.

REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e


verdade. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

SAID, Edward Wadie. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.

231
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 4. ed. São


Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

VERNE, Júlio. 20 mil léguas submarinas. Versão para e-book: livros.univer-


sia.com, 2013. Disponível em: http://livros.universia.com.br/2013/07/24/baixe-gra-
tis-o-livro-vinte-mil-leguas-submarinas-de-julio-verne/. Acesso em: 20. março.
2015.

VERNE, Júlio. A volta ao mundo em 80 dias. Tradução de Teotônio Simões. Versão


para e-book: ebooksBrasil.com, 2006. Disponível em http://www3.univer-
sia.com.br/conteudo/literatura/A_volta_ao_mundo_em_80_dias_de_ju-
lio_verne.pdf. Acesso em: 20. março. 2015.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e con-


ceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva
dos estudos culturais. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p.7-72.

232
A MEMÓRIA AFRO-AMERICANA EM
NARRATIVE OF THE LIFE OF FREDERICK DOUGLASS,
DE FREDERICK DOUGLASS

Nilson Macêdo Mendes Junior 1

INTRODUÇÃO

Frederick Douglas, escritor afro-americano, descreve em Narrative of the


life of Frederick Douglas, an American slave, written by himself (1845)2 sua traje-
tória de vida desde suas primeiras memórias infantis que ele julga serem de seus
seis ou sete anos de idade, já que ele não sabia sua data de nascimento exata, até o
momento em que ele consegue escapar para o norte dos Estados Unidos, mais es-
pecificamente em New Bedford, Massachussetts, levando consigo sua esposa
Anna Murray. Ele resolve assistir uma convenção abolicionista em outubro de 1841
em Nantucket Island. Onde foi convidado a discursar na referida reunião. Ele co-
nheceu nela a William Lloyd Garrison, o qual o incentiva a continuar discursando
contra a escravidão nos Estados Unidos.
Depois do ocorrido, ele torna-se palestrante da Massachusetts Anti-Slavery
3
Society , trabalho que o tornaria mundialmente conhecido. Em seguida, ele abriu e
publicou seu próprio jornal abolicionista The North Star4, e como jornalista dele co-
briu a primeira convenção pelos direitos das mulheres em Seneca Falls, em 1848.
Ficou também mundialmente conhecido pela sua infatigável luta por todos os ti-
pos de liberdades a que um ser humano possa ter direito, defendeu o direito dos
trabalhadores, das mulheres, por justiça e obviamente pela liberdade dos seus ir-
mãos de cativeiro.
Conheceu Abraham Lincoln no final da vida e se tornou seu conselheiro.
Ingressou dessa forma na vida política, por meio desse ingresso no meio político

1
Professor Assistente Externo da Universidade Federal do Piauí – UFPI lotado no Centro de Educação
Aberta e à Distância – CEAD. Professor EBTT Efetivo do Instituto Federal do Piauí – IFPI lotado no
Campus Campo Maior. Mestre em Letras/UFPI e Doutorando em Letras/UFPE. E-mail: nilsonmen-
des@ufpi.edu.br.
2
Chamar-se-á a obra de Narrative of the life of Frederick Douglass a partir deste ponto do artigo.
3
Sociedade Abolicionista de Massachusetts (tradução livre nossa)
4
A Estrela do Norte (tradução livre nossa)
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

torna-se servidor do governo federal estadunidense, exerceu diversos cargos na


esfera pública, sendo o último deles o de Cônsul Geral para a República do Haiti.
A intenção deste trabalho é demonstrar como em sua narrativa autobio-
gráfica Narrative of the life of Frederick Douglass, a memória exerce um papel funda-
mental nas culturas afro-americanas para construir a identidade do indivíduo.
Quer-se demonstrar com isso que sua escrita é baseada na oralidade da
cosmovisão africana que depende tanto da memória individual quanto da coletiva,
e no seu uso como artifício para a reconstrução e ressignificação das identidades
deslocadas e em diáspora dos negros das américas (HALL, 2003; 2013).
Tal fato decorre ainda do uso de estratégias narrativas deslizantes, prin-
cipalmente a narrativa oral dos povos africanos, a afirmação de suas adversidades
de vida, das violências físicas e psíquicas sofridas tanto por ele quanto por seus
irmãos de cativeiro, e da negação de sua condição humana e de seus descendentes
nas Américas pelo branco europeu.
Será mantida uma conversação com os vários teóricos, entre eles: Appiah
(1997), Bentham (2008), Bergson (1999), Bhabha (2013), Deleuze e Guattari
(2000), Douglass (1973), Fanon (1967), Ferreira (2010), Ferreira & Mendes Junior
(2013), Glissant (2005), Halbwachs (1990), Hall (2003), Lacan (2002), Mendes
Junior (2019), Le Goff (2003), Walter (2009; 2013) etc.; com a intenção de susten-
tar as afirmações apresentadas aqui neste trabalho.
O trabalho objetiva discutir as memórias da infância escravizada do au-
tor, de como ele descreve como as crianças negras: se vestiam, comiam, dormiam,
sua entrada no mundo do trabalho, mas principalmente, as agruras de não poder
decidir seu próprio destino, além de a reboque, descrever a situação de outros es-
cravizados ao seu redor.
As categorias descritas no parágrafo anterior, e que descrevem nossos ob-
jetivos, servem de fundamento para desenvolver a ideia de como construir mne-
monicamente as identidades cruzadas, deslocadas e híbridas dos personagens da
obra de Douglass. Ele mesmo tendo sido o ator da sua própria identidade compó-
sita, fruto de sua fragmentação identitária fomentada pela tentativa de coisifica-
ção de seu sujeito negro pelo branco. Ou como Stuart Hall (2003) afirma, os sujei-
tos já não são mais os mesmo desde o iluminismo, não existe mais o sujeito único
e centrado, com sua identidade definida desde o berço. Mas sim, um sujeito des-
locado pelas novas ideias de marxismo, pelo feminismo, teoria queer, e por outras
teorias dos estudos culturais.

234
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

DESENVOLVIMENTO

Na primeira parte da narrativa, Frederick Douglas descreve sua vida


como criança negra, provavelmente filho de seu senhor Aaron Anthony, gerente
das fazendas do político estadunidense Edward Lloyd, argumenta ainda que se a
forma como se produz mais escravizados para o eito nas plantation continuar, logo,
a escravização baseada nas escrituras perderá sua eficácia, pois, a maioria dos ne-
gros escravizados seriam filhos de seus próprios senhores com as escravizadas es-
tupradas por eles, insinua ele. Ele anula desta forma a alegação de que os africanos
são amaldiçoados por serem descendentes diretos de Ham, Cam, ou em português
Cão, derrogando sobre estes a maldição de Cam (forma que eu escolho) (DOU-
GLASS, 1973).
Ele descreve também o açoitamento de sua tia Hester por Thomas Auld,
herdade por ele de sua esposa Lucretia, por ter sido encontrada na companhia de
um negro do Coronel Edward Lloyd chamado de Lloyd’s Ned, que ele supõe que ela
amava. Insinuando assim, que a motivação para a sangrenta punição sofrida por sua
tia, a primeira que ele testemunhou na sua vida de escravizado, teria sido o motivo
dos ciúmes de seu senhor em relação a sua escravizada (DOUGLASS, 1973).
Pode-se inferir nos dois relatos a crucialidade da memória individual do
autor, porém, essa mesma é construída através das reminiscências coletivas de seu
povo. Pois, de acordo com Halbwachs (1990), a narrativa de um homem está im-
bricada pelas narrativas de outros homens que vieram antes dele, por exemplo,
quando se visita um monumento estão presentes não somente nossas memórias e
histórias pessoais, leva-se consigo as memórias e histórias ouvidas, lidas ou adqui-
ridas oralmente de outras pessoas sobre o monumento, e assim, por analogia pode-
se afirmar que a memória relatada por Douglass carrega as memórias de seu povo.
Douglass denuncia dessa forma nas duas passagens as condições abjetas
de vida de um escravizado no sul de seu país àquela época. Ele não está relatando
somente suas memórias, mas, aproveita o ensejo de estar escrevendo sobre si
mesmo, ao mesmo tempo que inclui nas suas memórias todos os relatos mnemô-
nicos ouvidos por ele durante sua vida. Podemos citar a seguinte passagem do ar-
tigo de Elio Ferreira (2010, p. 119) que escreve “A memória autobiográfica e cole-
tiva é um dos trunfos da poesia e da ficção negra contemporânea”. Na página se-
guinte, ele ajunta “A memória é o leitmotiv da narrativa negra, mas memórias e lem-
branças nunca poderão ser reconstituídas na sua íntegra” (FERREIRA, 2010, p.
120). Bergson (1999, p.12) ainda complementa

Evoco, comparo minhas lembranças; lembro que por toda parte, no mundo or-
ganizado, julguei ver essa mesma sensibilidade surgir no momento preciso em
que a natureza [...] indica a espécie, através da sensação, os perigos gerais [...]

235
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

E partindo destes conceitos de memória bergsoniana e dos fragmentos de


reminiscências contadas sobre nós por nossos próprios familiares podemos reco-
brar, ainda que parcialmente, as narrativas coletivas de nossos ancestrais negros e
podermos assim reconstruir nossas identidades ancestrais negras. Porém, Glis-
sant afirma (2005), as identidades culturais recriadas nas Américas têm uma ca-
racterística “crioula” (aspas do autor), ou usando um termo emprestado de De-
leuze & Guatari (2000), são identidades de rizoma, pois, serão compostas após o
toque de diversas culturas que se relacionam e não sufocam umas às outras.

I was born in Tuckahoe, near Hillsborough, and about twelve miles from Easton,
in Talbot county, Maryland. I have no accurate knowledge of my age, never hav-
ing seen any authentic record containing it. By far the larger part of the slaves
know as little of their ages as horses know of theirs, and it is the wish of most
masters within my knowledge to keep their slaves thus ignorant. I do not re-
member to have ever met a slave who could tell of his birthday. They seldom
come nearer to it than planting-time, harvest-time, cherry-time, spring-time, or
fall-time. (DOUGLASS, 1973, p. 19) 5

Retomando o início do livro, na primeira página do capítulo 1 para ser


exato. Pode-se ver claramente que uma das situações mais revoltantes para os es-
cravizados e para Douglass era não poder dizer exatamente suas idades, algo que
os equiparava aos animais de carga da fazenda, e igual a eles, os escravizados só
podiam estimar suas idades.
As imagens cerebrais geradas por esse fato não refletem no seu corpo e
nem o incita a agir para ter lembranças nas instâncias do seu sistema nervoso, ner-
vos e cérebro, do fato essencial na vida de qualquer ser humano, pois, nem o seu
aniversário ou de qualquer outro escravizado tem uma data precisa, como ele
mesmo enfatiza no final do excerto ao usar o verbo lembrar na negativa (eu não
me recordo) para expressar a falta de capacidade dele ou de qualquer um dos seus
colegas em precisar suas datas de nascimento, isso é o que Bhabha (2013) chama
de alienação colonial da pessoa, é uma forma de negar a individualidade, decretar
o fim da pessoa.
Ao denunciar desde o começo a negação do direito de saber a data de seu
aniversário, a mais básica informação acerca de si mesmo de um ser humano, mas,

5
Nasci em Tuckahoe, perto de Hillsborough, cerca de 10 milhas de distância de Easton, no município
de Talbot, Maryland. Eu não sei a minha idade precisa, nunca tendo visto qualquer registro autêntico
que a contenha. De longe, a maior parte dos escravos sabe tão pouco de suas idades assim como os
cavalos não sabem as deles, e é o desejo da maioria dos senhores que conheço manter seus escravos
ignorantes. Eu não me recordo de jamais ter conhecido um escravo que soubesse quando era seu ani-
versário. (tradução livre nossa)

236
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

que nos separa dos animais, o autor nos coloca a par da sua primeira memória, ou
falta dela, que será seguida de muitas outras.
Essa subtração de memórias irá gerar no seu sujeito uma crise de identi-
dades, causando assim uma ruptura na sua condição psicológica humana. Pois,
apesar de sofrer ataques físicos, na maioria das vezes, o negro era coagido psicolo-
gicamente a barrar seu inconsciente de tal forma que parecia que só existia aquilo
que o seu senhor desejava. O seu desejo não gera demanda, pois, ele vive quase que
totalmente para satisfazer os desejos de seu senhor branco (LACAN, 2002).
Os laços familiares eram intencionalmente borrados nas psiques dos ne-
gros, eles eram apartados das mães antes de completarem um ano de vida. O que
servia na opinião de Douglass para prejudicar qualquer desenvolvimento de afei-
ção e sentimentos da criança para com sua mãe (DOUGLASS, 1973).
Ele descreve sua relação com sua mãe como algo frio e sem sentimentos.
E era sempre uma situação incômoda as horas que eles tinham para ficar juntos.
Sua mãe viajava por uma longa distância sem a autorização do seu senhor branco,
e visto que viajava a pé durante a noite para vê-lo, ele escreve que só a encontrou
umas quatro vezes e que durante tais encontros a comunicação foi mínima. E que
ao acordar ela já tinha partido, já que o trabalho no eito começava muito cedo e a
viagem de volta era longa. Ela temia que dessem por sua falta na chamada matinal
da fazenda em que trabalhava e cuja a pena seria o açoite (DOUGLASS, 1973).

Esta experiência de desenraizamento e expropriação, que é um dos mais impor-


tantes denominadores ligando diferentes nações e culturas étnicas através das
Américas, envolve tanto o desarraigamento espacial e psicológico de lugar lín-
gua, identidade, tradição, ethos e cosmovisão quanto a resistência a estas formas
de subalternação (neo)colonial. (WALTER, 2009, p. 145)

O argumento de Roland Walter (2009) serve para fundamentar teorica-


mente as denúncias feitas por Douglass de desumanização no tratamento dado aos
escravizados em toda Maryland por seus senhores. Fica patente que a separação
dos filhos das mães em tão tenra idade era um ato planejado para gerar desenrai-
zamento e a expropriação dos sentimentos da relação mãe-filho, e assim retirar
qualquer referencial de memória afetiva entre as partes envolvidas nesta relação.
Isto gera relações despidas de sentimentos e de laços familiares entre as
pessoas da comunidade negra, pois, não há lembranças afetivas suficientes para
estabelecer as conexões parentais e ou familiares, afinal, as separações eram situ-
ações naturalizadas para os escravizados. E como era papel da mãe repassar ao
filho as memórias afetivas de pertencimento, e era também dela a responsabilidade
de através do relacionamento com seu filho garantir-lhe um desenvolvimento psi-
cológico saudável, já que a mãe era quem deveria ensinar ao filho as tradições de
seu povo, a língua, os comportamentos e a visão de mundo, fato que não acontecia

237
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

com as crianças negras. Esse embotamento, pode-se assim chamar, causa no indi-
viduo uma crise de identidade. Para Walter (2009, p. 147) “a identidade cultural,
individual e coletiva, reflete e refrata esta fragmentação e alienação de diversas
formas. Sendo a cultura um efeito mnemônico produzido por relações hierárqui-
cas entre espaços e grupos/comunidades, [...]”.

[...] as perturbações da memória, que, ao lado da amnésia, se podem manifestar


também no nível da linguagem na afasia, devem, em numerosos casos, esclarecer-
se também à luz das ciências sociais. [...], a amnésia é não só uma perturbação
no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos graves da presença da
personalidade, [...] a falta ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória co-
letiva nos povos e nas nações, que pode determinar perturbações graves da iden-
tidade coletiva. (LE GOFF, 2003. p. 421)

A amnésia e a afasia às quais Le Goff (2003) se refere acima leva o sujeito


ao que Bhabha (2013) chama de entre-lugar e Walter (2013) de limen. Situação de
não saber a que mundo você pertence, pois, sua identidade foi rasurada por causa
da “alteridade do Eu inscrita no palimpsesto perverso da identidade colonial.”
(BHABHA, 2013, p. 83). Fanon (1967) também descreve nos seus escritos esse ata-
que feito de fora pelo Outro imaginado na alteridade eurocêntrica estereotipada
da identidade negra.

Eu tinha que olhar o homem branco nos olhos. Um peso desconhecido me opri-
mia. No mundo branco o homem de cor encontra dificuldades no desenvolvi-
mento de seu esquema corporal... Eu era atacado por tantãs, canibalismo, defici-
ência intelectual, fetichismo, deficiências raciais [...] O que mais me restava se-
não uma amputação, uma excisão, uma hemorragia que me manchava todo o
corpo de sangue negro. (FANON, 1967, p. 110-112)

A memória de não ser considerado digno, de não poder possuir uma iden-
tidade cultural civilizada, e por assim dizer humana, era o resultado da rasura, do
apagamento de sua cultura e da alteridade do sujeito negro. Tudo que parte dele,
de seu corpo à sua espiritualidade, é considerado inferior em relação ao homem
branco.
Douglass parte deste pressuposto para evocar a memória individual do
Outro e da violência as quais ele relaciona a sua infância, e partir da qual ele co-
meça a construir sua nova identidade dentro da narrativa, e que ele prefere expan-
dir para toda a comunidade da plantation, ela é a do dia em que as provisões men-
sais eram entregues aos escravizados de ambos os sexos, ele escreve,

Here, too, the slaves of all the other farms received their monthly allowance of
food, and their yearly clothing. The men and women slaves received, as their
monthly allowance of food, eight pounds of pork, or its equivalent in fish, and

238
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

one bushel of corn meal. Their yearly clothing consisted of two coarse linen
shirts, one pair of linen trousers, like the shirts, one jacket, one pair of trousers
for winter, made of coarse negro cloth, one pair of stockings, and one pair of
shoes; the whole of which could not have cost more than seven dollars.
(DOUGLASS, 1973, p. 10) 6

Ele continua a descrever na mesma página como as provisões eram dadas


às crianças que não trabalhavam ainda, “The children unable to work in the field
had neither shoes, stockings, jackets, nor trousers, given to them; their clothing
consisted of two coarse linen shirts per year (DOUGLASS, 1973, p. 10)”. E especifi-
camente descreve os maus tratos físicos e psicológicos aos quais as crianças eram
submetidas na hora de dormir, especialmente no inverno, por não receberem
calças, meias e sapatos, momento no qual seus pés congelavam até rachar de uma
tal forma que em seus pés surgiam gretas nas quais se podia colocar uma caneta
(DOUGLASS, 1973). Continua no mesmo trecho a narrar as condições insalubres
de habitação dos escravizados, tais como: a falta de cama para dormir, a falta de
divisão de cômodos, o local onde dormiam juntos homens, mulheres e crianças, e
denuncia também a jornada de trabalho excessiva.
Ele nos revela ser o griot moderno da narrativa identitária de sua co-
munidade, o escritor que se identifica e deseja cristalizar na linguagem escrita
as literaturas orais de seu povo (LE GOFF, 2003). Ele retoma a sua nova iden-
tidade junto com as agruras dos seus irmãos, ele assume a identidade afro-ame-
ricana estadunidense do sofrimento via memórias de infância. Sua memória co-
letiva o auxilia a ressignificar a identidade rasurada pela experiência da alteri-
dade colonizadora, e que

Os fragmentos dos relatos textuais de Douglass, citados acima, impõem à narra-


tiva um caráter autobiográfico que se constrói a partir do espaço coletivo ou da
relação em grupo, evocando as experiências vivenciadas pelo próprio autor,
quando, na condição de cativo, observara cenas de espancamento e violência
contra seus parceiros de escravidão, cujos episódios são reconstruídos através
da escrita de testemunho do autor negro. (SOUSA & MENDES JUNIOR, 2013,
p. 118)

Ele continua a descrever esses espaços de espancamento e violência no


terceiro capítulo. Ele o inicia com a descrição de um pomar de propriedade e uso
exclusivo do Coronel Lloyd, e que era expressamente proibido aos escravos. Ele

6
Aqui, também, os escravos de todas as outras fazendas recebiam a sua provisão mensal de alimentos, e
as suas roupas anuais. Os homens e as mulheres escravizadas recebiam, como provisão mensal de ali-
mentos oito libras de carne de porco, ou seu equivalente em peixe, e um alqueire de farinha de milho.
Suas roupas anuais consistiam em duas camisas de linho grosseiro, um par de calças de linho, como as
camisas, uma jaqueta, um par de calças para o inverno, feitas de pano negro grosso, um par de meias e
um par de sapatos; O conjunto ao todo não devia ter custado mais que sete dólares. (tradução livre nossa)

239
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

continha uma grande variedade de frutas, as quais os famintos escravizados ten-


tavam roubar. E quase sempre eles eram pegos e como consequência de suas faltas
seguiam-se as penas, que em geral era o açoitamento. Em uma página posterior,
Douglass narra a instabilidade psicológica a que um escravizado era constante-
mente submetido, pois, devia estar sempre atento por não saber exatamente
quando cometia uma falta ou não, ele usa como exemplo pai e filho responsáveis
pela estrebaria do coronel, simplesmente nomeados jovem e velho Barney.
(DOUGLASS, 1973).

This establishment was under the care of two slaves—old Barney and young
Barney—father and son. To attend to this establishment was their sole work.
But it was by no means an easy employment; for in nothing was Colonel Lloyd
more particular than in the management of his horses. The slightest inattention
to these was unpardonable, and was visited upon those, under whose care they
were placed, with the severest punishment; no excuse could shield them, if the
colonel only suspected any want of attention to his horses—a supposition
which he frequently indulged, and one which, of course, made the office of old
and young Barney a very trying one. They never knew when they were safe from
punishment. They were frequently whipped when least deserving,[…] (DOU-
GLASS, 1973, p. 18)7

Essa modalidade de controle social usada pelos senhores de escraviza-


dos dos Estados Unidos foi descrita posteriormente como controle panóptico
(BENTHAM, 2008). Ele consiste em fazer que a pessoa a ser controlada ima-
gine estar sempre em observação, o que faria com que ela não se atrevesse a
fazer algo que poderia ser errado, e que essa ação teria como resultado um corpo
pacificado pela noção de estar sempre vigiado. A escravização do Sul dos Esta-
dos Unidos se baseava nesse controle direto, no convívio direto entre senhores,
gerentes ou feitores de plantations, nesse artifício de fazer com que os negros
se sentissem sempre vigiados.
Douglass se põe a descrever no capítulo cinco a forma como acontecia a
pacificação dos corpos negros através da incerteza de estarem certos ou errados,
que essa era uma forma de tratamento desumana por reduzir os escravizados a
condição de simples animais. Nele é descrito a maneira na qual as crianças eram
alimentadas iguais aos porcos. Uma tentativa de reduzi-las a categoria de coisa ou

7
O estabelecimento estava sob os cuidados de dois escravos, o jovem e o velho Barney - pai e filho.
Atender a este estabelecimento era o seu único trabalho. Mas não era de modo algum um emprego fácil,
pois em nada era o coronel Lloyd mais atento do que na gestão de seus cavalos. A menor desatenção a
estes era imperdoável, e visitas eram feitas àqueles, sob cujos cuidados eles eram colocados, com puni-
ções muito severas, e nenhuma desculpa poderia protegê-los, se o coronel apenas suspeitasse que havia
qualquer falta de atenção para com os seus cavalos - a suposição de que ele frequentemente acarinhava,
e uma que é claro fazia do ofício do jovem e velho Barney muito difícil. Eles nunca sabiam quando
estavam a salvo da punição. Eles eram frequentemente chicoteados quando menos mereciam, [...] (tra-
dução livre nossa)

240
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

res desde a mais tenra infância, um treinamento de subjugação e pacificação de


seus corpos e vontades, um treinamento físico e psicológico.
A comida, que Douglass chama de mush, palavra inglesa que descreve
uma substância com consistência de polpa, e que era possivelmente um mingau
grosseiro de milho, é colocada em uma bandeja de madeira a qual é jogada no
chão para que os meninos e as meninas sem qualquer utensílio próprio para
comer como garfos ou colheres a disputem como animais. Ele narra que alguns
comem com pedaços de telha, outros com conchas, ou até mesmo com as mãos,
e ainda acrescenta que aqueles que eram mais fortes conseguiam melhores lu-
gares e se alimentavam melhor (DOUGLASS, 1973).
Ele segue as descrições de suas memórias baseadas em eventos degra-
dantes e seu intuito é claramente denunciar os maus tratos. Douglass nos relata
em outra parte da narrativa das suas memórias autobiográficas seu retorno à
plantation depois de passar uma temporada com seus novos senhores, Hugh e
Sophie Auld. Nesta passagem, ele nos descreve as diferenças entre um escravo
da plantation e o da cidade, o primeiro teria menos liberdade e trabalharia mais,
mas, isso não quer dizer que o segundo teria uma vida melhor, pois, ele descreve
a situação de duas crianças escravizadas de uma vizinha que são constante-
mente açoitadas e encontram-se visivelmente desnutridas pela fome continua
a que são submetidas.
Porém, retomando o tema, Douglass nos relata a degradante situação de
ser mandado de volta à plantation para segundo suas palavras ser incluído no rol de
propriedades de seu senhor Aaron Anthony, e ele emenda que não há pior situação
para um negro do que não saber qual é o seu destino, já que a decisão está fora de
suas mãos. Ele está ao sabor da boa sorte de ser herdado por um dos membros da
família considerado como “bom” (aspas minhas) nas suas palavras.

We were all ranked together at the valuation. Men and women, old and young,
married and single, were ranked with horses, sheep, and swine. There were
horses and men, cattle and women, pigs and children, all holding the same rank
in the scale of being, and were all subjected to the same narrow examination.
Silvery-headed age and sprightly youth, maids and matrons, had to undergo the
same indelicate inspection. At this moment, I saw more clearly than ever the
brutalizing effects of slavery upon both slave and slaveholder. (DOUGLASS,
1973, p. 47-48)8

8
Estávamos todos juntos na classificação da avaliação. Homens e mulheres, velhos e jovens, solteiros e
casados, éramos classificadas na mesma categoria dos cavalos, ovelhas e porcos. Havia cavalos e ho-
mens, gado e mulheres, porcos e crianças, todos possuíam o mesmo grau na escala dos seres, e todos
eram submetidos ao mesmo rigoroso exame. Pessoas de cabeça branca e jovens alegres, empregadas
domésticas e mães de família, tinham que se submeter a mesma inspeção indelicada. Neste momento,
eu vi mais claramente do que nunca os efeitos brutais que a escravidão exerce sobre ambos escraviza-
dos e senhor de escravizados. (tradução livre nossa)

241
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Ao dar voz ao autor até essa parte do trabalho, a intenção foi a de poder
deixar o subalterno falar, narrar suas angústias e a sua falta de poder para se fazer
ouvir com tanta gente falando por ele, essa ideia é defendida pela socióloga Gayatri
Spivak (2014) no seu texto Pode o subalterno falar? Deixar a memória e a voz da-
queles que foram explorados economicamente, vilipendiados física e psicologica-
mente, coisificados pela ideologia hegemônica do colonizador eurocêntrico ser ou-
vida, e assim visibilizar a nova identidade cultural assumida por eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de exemplificar que através da tentativa de privação da memória bioló-


gica, da amnésia, e de tentar barrar suas memórias com o intuito de psicologica-
mente desumanizar o negro, elas mesmo assim subsistem, e de forma inversa do
que se pode considerar normal, elas criam uma identificação nova que as leva a
criar uma identidade cultural compósita, híbrida ou crioula. Essa memória passa
pelas reminiscências das violências sofridas, o que resulta no estabelecimento de
um grupo pautado e identificado com o sofrimento, com a tentativa de desuma-
nização executada pelos brancos e que acontece com a perda de todas as suas
liberdades, física e de poder decidir e escolher os destinos de sua vida. (MENDES
JUNIOR, 2019, p. 131-132)

Pode-se ainda deduzir a partir destas questões que envolvem o conceito


de memória e sua importância para construção das representações identitárias dos
autores afro-americanos estadunidenses, desde a primeira poeta Phillis Wheatley
até chegarmos à prosa autobiográfica de Frederick Douglass, que eles desde o iní-
cio decidiram mostrar a capacidade do negro em produzir literatura.
O intuito desses escritores era produzir uma “arte literária” (aspas mi-
nhas) que fugisse aos padrões eurocêntricos, produzir textos que lhes dessem voz
e poder para gritar contra o racismo, discutindo precisamente as questões raciais
e a escravização atlântica à qual foram submetidos até meados do sec. XIX, e
mesmo após sua emancipação, fatos que reverberam até os dias de hoje. Questões
que os tornam cidadãos de segunda classe até os dias atuais, mesmo com o movi-
mento social pelos direitos civis dos negros liderados pelo Pastor Martin Luther
King Jr e a NAACP9 em meados da década de 60 (APPIAH, 1997), ainda há muito
o que fazer para mudar a vida dos negros estadunidenses.
Finalizando nossas considerações acerca do assunto, se pode deduzir que
o processo de construção de uma nova identidade cultural compósita dos afro-
americanos estadunidenses perpassa por três vieses teóricos muito claros.

9
Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor em português.

242
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Primeiro, a interface entre memória e sujeito descentrado em diáspora do


afro-americano estadunidense. Sua luta para compor sua nova referência identitá-
ria a partir do encontro de várias culturas atávicas em um processo dinâmico de
ressignificação cultural compósita, nas palavras de Glissant (2006), na forma de
uma cultura, nação e identidade crioula.
Segundo, a importância da memória e da recusa da amnésia imposta pelo
branco na escrita de suas narrativas, mantendo a estrutura oral dos antepassados,
porém como griots modernos, preferem a palavra escrita para se empoderar e dar
voz ao subalterno.
Terceiro e último aspecto, construir sua identidade de cidadão afro-ame-
ricano estadunidense através da purgação catártica da verbalização de suas dores,
seus sofrimentos e racismos sofridos durante a escravização e após sua emancipa-
ção. Poder gritar suas identidades reunidas sob o signo da violência. Assim, Dou-
glass se constrói como escritor afro-americano, essa é sua identidade individual
afro-americana construída por sua memória coletiva.

243
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa do meu pai: a África na filosofia da cultura.


Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BENTHAM, Jeremy. O panóptico. 2 ed. Belo Horizonte: Autentica, 2008.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o es-
pírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Marins Fontes, 1999.

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 2013.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia,


vol. 1. Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,
2000.

FANON, Frantz. Black skin, white masks. New York: Grove Press, 1967.

FERREIRA, Elio. O curso da memória autobiográfica e coletiva na poesia afro-


brasileira de Solano Trindade. In: DOS SANTOS, Derivaldo et al (org). Trama de
um cego labirinto: ensaios de literatura e sociedade. João Pessoa: Ideia, 2010.

FERREIRA, Elio & MENDES JUNIOR, N. M. Afro-americanidade em Cruz e


Souza e Frederick Douglass: uma perspectiva identitária. In: MENDES, Algemira
de Macedo et al (org). Literatura, história e cultura afro-brasileira e africana: me-
mória, identidade, ensino e construções literárias, vol 2. Teresina: EdUFPI/FU-
ESPI, 2013.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de


Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: EdUFJF, 2005.

HALL, Stuart. A Identidade cultural na Pós-Modernidade. Tradução de Tomaz


Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaff-


ter. São Paulo: Vértice, 1990.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Porto Alegre:


Publicação não comercial de circulação interna da Associação Psicanalítica de
Porto Alegre, 2002.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: EdUnicamp, 2003.

MENDES JUNIOR, N. M. Memória, identidade e nacionalismo étnico e cívico em


Narrative of the life of Frederick Douglass, an American slave, written by himself.

244
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

In: DE SOUSA, Ivan Vale (org.). Laços e desenlaces na literatura. Ponta Grossa:
Atena, 2019.

SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014.

WALTER, Roland. Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Amé-


ricas. Recife: Coleção e Letras, 2009.

WALTER, Roland. Toni Morrison: dupla escrita e memória negra. In: FERREIRA,
Elio & BEZERRA FILHO, F. J. (org). Literatura, história e cultura afro-brasileira
e africana: memória, identidade, ensino e construções literárias, vol 1. Teresina:
EdUFPI/FUESPI, 2013.

245
UMA GEOGRAFIA DAS “TERRAS DO SEM FIM”: A NATUREZA DO SUL
DA BAHIA, A FORMAÇÃO DE SUA REGIÃO CACAUEIRA E AS
CRÍTICAS DE JORGE AMADO À SOCIEDADE DO CACAU

Paulo Fernando Meliani 1

Introdução

É possível conhecer uma região geográfica, sua natureza e formação


histórica, por meio da leitura de uma obra não acadêmica? Em um romance des-
pretensioso desse objetivo? Uma busca de conhecimento sobre a geografia re-
gional do sul da Bahia há de considerar alguns dos romances de Jorge Amado,
verdadeiras ficções de fundo histórico como “Terras do sem fim”, publicado
pela primeira vez em 1943. Até a época na qual Jorge escreveu seus romances,
chamado “ciclo do cacau” do autor (RIBEIRO, 2001), que ocorreu nos anos 1930
e 1940, praticamente inexistiam obras específicas e de referência sobre a geo-
grafia regional da chamada “zona cacaueira” do sul da Bahia.
De fato, foi neste mesmo período que, em 1937, o historiador João da
Silva Campos publicou “Crônicas da Capitania de São Jorge dos Ilhéus”, que é
considerado o primeiro estudo com maior rigor metodológico sobre o sul da
Bahia (CAMPOS, 1981). Silva Campos pesquisou cartas jesuíticas, relatórios de
autoridades e clérigos, bem como memoriais de viajantes que passaram pela an-
tiga Capitania (depois Comarca) de Ilhéus, ou seja, Campos consultou teste-
munhos acerca da região de influência da então Vila de São Jorge dos Ilhéus,
que foi elevada à categoria de cidade e sede do município de Ilhéus, em 1881.
Segundo Dias (2007, p. 12), as impressões de religiosos, autoridades e viajantes
deram a tônica ao equivocado quadro geral de estagnação econômica traçado
por Silva Campos, a respeito do desenvolvimento da Capitania e posterior Co-
marca de Ilhéus até o século 19, ou seja, de antes do período cacaueiro propria-
mente dito 2.

1
Geógrafo. Professor Adjunto da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Licenciado,
Bacharel, Mestre e Doutor em Geografia. E-mail: paulomeliani@gmail.com
2
A partir da documentação que consultou, Silva Campos (1981) apresentou números da população e
informações sobre as atividades agrícolas, identificou a origem de vilas e aldeias (e sua evolução ou
desaparecimento) e apontou os caminhos fluviais, marítimos e terrestres por onde seguiam as popula-
ções e os produtos de seu trabalho, notadamente do período anterior à formação regional cacaueira.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A introdução do cacau nas cercanias de Ilhéus, em meados do século


18, a expansão de sua lavoura ao longo do século 19 e, sobretudo, o período de
seu apogeu comercial, ocorrido nas primeiras décadas do século 20, transfor-
mou as cercanias de Ilhéus na maior zona produtora e exportadora mundial do
fruto por décadas. De acordo com Guimarães (2001), o documento mais antigo
que aborda a presença do cacau na região é de 1789, uma monografia intitulada
“Ensaio de descrição física e econômica da Comarca dos Ilhéus da América”, da autoria de
Manoel Ferreira da Câmara. Segundo a autora, o ensaio de Ferreira da Câmara
revela que a cacauicultura foi introduzida na Comarca por iniciativa da Coroa
portuguesa, ao que tudo indica pela rainha Dona Maria I que, por meio de carta
régia datada de 1780, ofertou graciosamente sementes de cacau aos moradores
da Vila de Ilhéus, garantindo-lhes um preço mínimo pela arroba do produto a
ser colhido, conforme já se procedia na comercialização do açúcar e do fumo.
Neste ensaio de Ferreira da Câmara há informações a respeito da situ-
ação geográfica, dos limites, da extensão da superfície, da configuração do ter-
reno, do ar em geral, dos rios, das vilas e matas, entre outras (VARELA, 2007,
p. 158). Para Guimarães (2001), Câmara certamente deve ter desempenhado as
funções de “naturalista peregrino” (viajante), porque reporta-se com minúcias
à repercussão do projeto colonial de implantação da lavoura cacaueira em
Ilhéus na sua monografia3. Os naturalistas do período colonial, como Ferreira
da Câmara, eram exclusivamente súditos da Coroa portuguesa e, segundo Leite
(1995, p. 08), deveriam observar o estado das povoações e indagar sobre sua
história, religião, costumes, artes, economia, comércio, alimentos, medicina, in-
dumentária, habitações, armas, guerras, funerais, etc., e fazer reflexões conve-
nientes sobre como tirar alguma utilidade dos vastos sertões do Brasil de então.
Durante a maior parte do período colonial, houve restrições à perma-
nência e circulação de estrangeiros na colônia, contudo, após a transferência da
família real para o Brasil, em 1808, a Coroa portuguesa permitiu o comércio e o
acesso de visitantes das “nações amigas”. Com isso, além dos uns poucos agri-
cultores de origem germânica, que se dirigiram para as cercanias de Ilhéus, al-
guns naturalistas viajantes, também germânicos, passaram pela Comarca e, de
forma sintética, pontual e quase sempre eurocêntrica, relataram aspectos da

3
A localização dos rios e das baías foi o objeto que mais recebeu atenção de Ferreira da Câmara, que
revelou-se assim como um naturalista pragmático em sua procura por boas enseadas e portos para a
entrada e saída de embarcações. Câmara argumentou que os habitantes de Ilhéus só cultivavam e co-
mercializavam a mandioca e o arroz, e que não empreendiam em novas lavouras, mesmo as de espécies
já cultivadas na Comarca, como a do cacau. Apesar dos incentivos concedidos, a grande maioria dos
lavradores locais continuou direcionada para o tradicional cultivo do açúcar e de produtos de subsis-
tência, como o arroz e a mandioca, à exceção do Engenho do Acarahy, cujo proprietário, quatro anos
após a chegada daquelas primeiras sementes, já estava com uma roça de cacau bem formada com mais
de seiscentos pés vingados (CÂMARA, 1789, p. 13 citado por GUIMARÃES, 2001, p. 1061).

248
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

natureza e da sociedade local do início do século 19, como o príncipe Maximili-


ano Wied-Neuwied em 1815, os cientistas Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Phil-
lip von Martius em 1818 e o botânico Ludwig Riedel em 1821 4.
Ao contrário de Câmara, que passou anos em Ilhéus antes de publicar
sua monografia de 1789, os naturalistas germânicos ficaram pouco tempo e não
andaram por toda a Comarca. De acordo com Dias (2007, p. 30), Maximiliano
percorreu apenas o sul da Comarca e a vila de Ilhéus e não conheceu o norte do
rio de Contas, enquanto Spix e Von Martius apenas passaram pelo norte da
Comarca e permaneceram em Ilhéus apenas por três semanas. Deste início do
século 19, as mais sistemáticas e extensas informações são as apresentadas no
livro “Corografia Brazilica” de Manuel Ayres de Casal. Trata-se de um compêndio
descritivo que inaugurou a edição de livros no Brasil, em 1817. Nele consta uma
sumária descrição da sucessão donatária, de aspectos do relevo, geologia, fito-
logia, zoologia (onde incluiu os indígenas), rios e lagos, portos, ilhas e descrição
das vilas da outrora Comarca de Ilhéus 5.
Apesar de sua importância histórica, Corografia Brazilica é um compên-
dio geral, que traz breves e sintéticas descrições das diversas vilas de todo o
Brasil de então, ou seja, não se trata de uma obra de referência geográfica regi-
onal específica, assim como os ensaios de Câmara, os relatos dos viajantes na-
turalistas e mesmo o estudo pioneiro de Silva Campos. Tampouco estas obras
tratam do período da formação regional propriamente dito que, segundo Diniz
e Duarte (1983, p. 37), corresponde as três primeiras décadas do século 20,
quando uma sociedade se organizou em torno do sistema produtivo cacaueiro,
definindo estruturas políticas e ideológicas de reprodução social, justamente a

4
Em seu diário de viagem, segundo Guimarães (2001), Maximiliano descreveu aspectos da Vila de São
Jorge dos Ilhéus e assinalou que comércio de Ilhéus com a cidade de Salvador era muito incipiente, a base
de exportações de arroz e madeira, e que a produção de açúcar, ao contrário do que vira no Recôncavo, era
feita em pequenos estabelecimentos, por meio de “engenhocas”. Já Spix e Martius, diz a autora, enfatiza-
ram um certo contraste entre a exuberância da natureza, cuja riqueza lhes parecera incalculável, com a
debilidade dos recursos humanos existentes, considerados por eles indolentes em função de sua proce-
dência indígena. Por sua vez, conta Guimarães, o botânico Riedel mostrou-se “deslumbrado” com a flo-
resta (onde andou, coletou e descreveu espécies vegetais), “surpreso” com a nudez dos índios “camacãs”
que trabalhavam nas roças e no corte de madeiras seculares, como o jacarandá, bem como “estranhamento”
com a cultura afro-brasileira, ao presenciar o canto e a dança em uma festa de Pentecostes.
5
Dedicado à D. João VI, que trouxe consigo a Imprensa Régia quando da transferência da Corte por-
tuguesa para o Brasil, Corografia Brazilica foi publicado em dois volumes que trazem à relação de cada
Província brasileira de então e, para cada uma, referências às vilas nela existentes, com breves descri-
ções de elementos geográficos (naturais, da formação espacial, das “gentes” e das produções).

249
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

época vivenciada por Jorge Amado em sua infância, adolescência e primeiros


anos de vida adulta6.
Estimulada pelas condições naturais propícias à lavoura existentes
nesta porção do litoral baiano e, principalmente, pelo interesse do mercado in-
ternacional da época, a zona cacaueira do sul da Bahia consolidou-se como re-
gião na primeira metade do século 20. Segundo Guerreiro de Freitas (2011), a
historiografia considera o período que vai de 1890 a 1940 como os anos de im-
plantação da monocultura, embora se acredite que as terras mais aptas para a
plantação do cacaueiro já teriam sido ocupadas até 1920. Obras de cunho his-
tórico-geográfico sobre a zona do cacau da Bahia, e de seu período de formação
regional propriamente dito, só começaram a ser publicadas nos anos 1950, como
os livros “Zona do Cacau” (1955) e “Problemas de Geografia Urbana na Zona
Cacaueira Baiana” (1956), ambos do renomado geógrafo baiano Milton Santos.
Por isso, em função dessa escassez de conhecimento sistematizado do
período, as representações da natureza e do processo de formação regional pre-
sentes em “Terras do sem fim”, e em outros romances do denominado “ciclo do
cacau” de Jorge Amado, ao seu modo, são pioneiras para o conhecimento histó-
rico e geográfico da região cacaueira do sul da Bahia se considerarmos a época
de sua criação. As aqui selecionadas, identificadas, literalmente citadas e inter-
pretadas representações geográficas presentes em “Terras do Sem Fim”, são
apenas uma pequena amostra do conteúdo educativo e das possibilidades didá-
tico-pedagógicas advindas da Literatura brasileira.
Na escola, a leitura de livros não didáticos, como os romances, obvia-
mente contribui à compreensão do conteúdo previsto nas disciplinas de Lín-
guas e Literatura, mas são também importantes meios de se aplicar a “interdis-
ciplinaridade”, uma orientação didática que prega a integração das disciplinas
no processo de ensino-aprendizagem. A interpretação de textos, por exemplo,
é objetivo da Língua Portuguesa, enquanto o reconhecimento do estilo e da te-
mática literária é objetivo da Literatura. Outras disciplinas, como a Geografia
e a História, podem buscar representações específicas em uma obra não-ficcio-
nal, mas também em ficções de fundo histórico, como as que apresentamos e
interpretamos neste artigo.
Fora da escola, a leitura de ficções de fundo histórico permite ampliar o
horizonte geográfico de quem as lê, já que, além da trama presente na narrativa,

6
Nascido na região em 1912, provavelmente na fazenda “Auricídia”, à época pertencente ao município
de Ilhéus, Jorge Amado foi registrado em Ferradas, um distrito do atual município de Itabuna. Filho
mais velho do “coronel” João Amado de Faria e de Eulália Leal, o menino Jorge Amado cresceu exata-
mente no período de formação da região que se tornou, na primeira metade do século 20, a maior pro-
dutora e exportadora mundial de cacau, situação que se estendeu até meados dos anos 1980, quando a
lavoura cacaueira do Sul da Bahia iniciou seu processo de decadência econômica.

250
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

existe um cenário de fundo que é o espaço vivido pelos personagens. Algo que, no
caso das obras de Jorge Amado, é o espaço de vida de todos nós mesmos, dos bra-
sileiros. Uma interpretação das representações geográficas de “Terras do Sem
Fim”, nos ajuda a conhecer a natureza do Sul da Bahia e, sobretudo, compreender
como ocorreu a formação histórico-geográfica da região cacaueira baiana.
Por meio de uma análise textual, buscamos conhecer, nas linhas do ro-
mance, um pouco do espaço geográfico regional de então, justamente a época
na qual a região se formou. Dispersas por toda a obra, representações geográfi-
cas são notáveis, desde as que se referem à natureza, ao meio natural propria-
mente dito do Sul da Bahia, até às econômicas e culturais de uma sociedade que
se formava em torno da lavoura e do pujante comércio do cacau. Naqueles tem-
pos, conta Ribeiro (2001, p. 11), a expansão da lavoura cacaueira produziu a
acumulação de um relevante excedente econômico, que permitiu a formação e
a manutenção de partidos políticos, entre os quais dividia-se o eleitorado em
facções até certo ponto inconciliáveis. Nas primeiras décadas do século 20,
conta Ribeiro (2001), o município de Ilhéus era um “reduto por excelência dos co-
ronéis”, cujo poder privado ocupava os espaços deixados pelo Estado 7.
A percepção que as elites cacaueiras de então tinham de si mesmas, e
os argumentos políticos desenvolvidos para sua fundamentação, dominaram o
discurso sobre como ocorreu o processo de formação regional. Para Ribeiro
(2001, p. 109), a difusão do discurso das elites cacaueiras deu origem a uma ver-
são mítica da história da região, de exaltação de um grupo de fazendeiros de
origem humilde, proprietários de vastas plantações, que tornaram-se na época
nos novos ricos da sociedade baiana 8. Este discurso enfatizava que estes fazen-
deiros, considerados camponeses bem-sucedidos, fruto do próprio esforço, fo-
ram os responsáveis pelo progresso advindo da expansão da fronteira agrícola
regional de então. A partir do momento em que acumulou capital suficiente,

7
“Como maior produtor de cacau do Brasil, o município [de Ilhéus], enriquecido, teve a luta por seu domínio político
e econômico intensificada, dividindo a classe dominante em um profundo facciosismo. A luta entre as facções da burgue-
sia local fez com que grupos antagônicos de cunho familiar se aglutinassem nos partidos políticos existentes: conserva-
dores e liberais, no Império, e, depois, federalistas e constitucionalistas, na República Velha” (RIBEIRO, 2001, p. 15).
8
“Esse grupo era formado pelos descendentes dos colonos europeus chegados nas primeiras décadas do século XIX e os
mais prósperos migrantes nordestinos, em sua maioria sergipanos, vindos a partir da segunda metade do século XIX.
Esses homens eram, ao final do século XIX, proprietários de prósperas fazendas de médio porte e de casas comerciais na
zona rural. Apesar de não terem sido escravos, a maior parte desses fazendeiros tinha origem humilde e não possuía edu-
cação formal nem o refinamento social da elite açucareira do Recôncavo” (RIBEIRO, 2001, p. 109).

251
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

este grupo de fazendeiros utilizou o poder econômico para controlar a política


de Ilhéus e se tornar a elite política e social local 9.
É neste contexto histórico-político que, em “Terras do Sem Fim”, Jorge
Amado narra as lutas pelas terras da “mata de Sequeiro Grande” (uma área que
hoje é território do atual município de Itajuípe), travadas por dois grandes fazen-
deiros de cacau da região. Afortunados, os fazendeiros da época conquistaram sua
riqueza quase sempre por meio do desbravamento pioneiro das florestas, num pro-
cesso muitas vezes acompanhado de violência, roubo de terras e injustiça social.
Toda a trama do romance gira em torno da disputa entre os coronéis Horácio Sil-
veira e Sinhô Badaró pelo domínio das matas de Sequeiro Grande, na época ainda
não exploradas para a lavoura cacaueira.
Em síntese, os três primeiros capítulos de “Terras do sem fim”, intitula-
dos respectivamente como “O navio”, “A mata” e “Gestação de cidades”, apresen-
tam os personagens e os cenários do romance, e contextualizam a disputa pelas
matas de Sequeiro Grande. De um lado, a família de Sinhô Badaró, coronel situa-
cionista da cidade de Ilhéus, que tradicionalmente contava com o apoio dos pode-
res executivo e judiciário. De outro lado, o coronel Horácio Silveira, um fazendeiro
de origem humilde, possuidor de grandes extensões de terras, considerado homem
de coragem e determinação, que vivia em sua fazenda e, segundo boatos que cor-
riam na cidade de Ilhéus, tinha um pacto com o diabo. Ambos teriam expandido
suas terras por meios ilegais, como “caxixes” (fraudes cartoriais), pilhagens
(roubo de terras) e até assassinatos de famílias inteiras, com o objetivo de anexar
roças e fazendas menores aos seus domínios.
O quarto e quinto capítulos (“O mar” e “A luta”, respectivamente), de ma-
neira geral, narram os conflitos entre as facções rivais, que só terminaram com to-
mada da casa-grande da fazenda dos Badaró, conferindo a Horácio a vitória nas
disputas, inclusive com a posse de Sequeiro Grande, a mata que serviu de pretexto
para o confronto direto entre eles. O sexto e último capítulo (“O progresso”) trata
da resolução da estória, ou seja, a vitória de Horácio que coincide com uma revira-
volta na política local, desencadeada por mudanças ocorridas na política nacional
e estadual, e que serviram para absolver Horácio de acusações de crimes por ele
cometidos antes dos conflitos.

9
“A maioria [dos fazendeiros deste grupo] passa a deixar de residir nas fazendas e a construir palacetes na cidade que,
ao lado dos túmulos monumentais, eram um dos símbolos urbanos mais visíveis do poder dos antigos coronéis do cacau.
O mobiliário das casas e as vestimentas da família eram importados diretamente do Rio de Janeiro e da Europa. Suas
filhas são matriculadas no convento das ursulinas francesas, no alto da Piedade, e os filhos são enviados para as mais famosas
escolas e faculdades de Salvador e do Rio de Janeiro” (RIBEIRO, 2001, p. 110).

252
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Neste artigo, primeiro apresento algumas das representações da natureza


e da formação regional cacaueira por meio de citações diretas de fragmentos reti-
rados principalmente, mas não só, dos capítulos “A mata” e “Gestação de cidades”,
interpretando-os e contextualizando-os em relação ao conhecimento histórico e
geográfico regional contemporâneo. Por fim, apresento algumas representações da
crítica social que Jorge Amado faz à sociedade cacaueira da época, notadamente
sua contraposição ao discurso dominante dos novos ricos como promotores do
progresso e suas denúncias acerca da exploração do trabalho dos imigrantes nor-
destinos da região.

Representações da natureza do Sul da Bahia

A natureza considerada um “meio natural”, no sentido biológico-ecoló-


gico, ecossistêmico, no qual elementos bióticos e abióticos se inter-relacionam,
está representada em “Terras do Sem Fim”, principalmente no capítulo intitulado
“A Mata”. Jorge Amado, logo no início do capítulo, faz referências à “floresta”, ou
seja, ao ecossistema florestal do bioma “Mata Atlântica”, que ainda apresenta im-
portantes remanescentes no Sul da Bahia. Logo no primeiro parágrafo do capítulo,
ele descreve a dimensão do território que a floresta tropical atlântica ocupava e,
metaforicamente, a formação primária que provavelmente a floresta possuía no
início do século 20:

A mata dormia o seu sono jamais interrompido. Sobre elas passavam os dias e as noites, bri-
lhava o sol do verão, caíam as chuvas de inverno. Os troncos eram centenários, um eterno verde
se sucedia pelo monte afora, invadindo a planície, se perdendo no infinito. Era como um mar
nunca explorado, cerrado no seu mistério. A mata era como uma virgem cuja carne nunca ti-
vesse sentido a chama do desejo. E como uma virgem era linda, radiosa e moça apesar das ár-
vores centenárias. Misteriosa como a carne de mulher ainda não possuída. E agora era dese-
jada também (AMADO, 2008, p. 37).

Uma floresta primária se caracteriza por apresentar expressão máxima e


grande diversidade biológica, sendo os efeitos das ações antrópicas mínimos, a
ponto de não afetarem significativamente suas características originais de estru-
tura e diversidade. Possui fisionomia arbórea dominante, com árvores de mais de
12 metros de altura média, que formam um dossel fechado e uniforme, por sobre o
qual apresentam-se árvores emergentes, ou seja, determinadas espécies se sobres-
saem em relação ao conjunto florestal, como os jequitibás (Cariniana spp.) que, de
acordo com Sambuich (2009a, p. 38), nas florestas úmidas do sul da Bahia, podem
superar os 30 metros de altura. Segundo Sambuich (2009b, pp. 19-20), a Mata
Atlântica do sul da Bahia se destaca por sua elevada riqueza biológica e alto grau

253
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de endemismo, tendo sido encontradas nesta região mais de 450 espécies de árvo-
res e cipós lenhosos em um hectare de floresta amostrado, uma das maiores diver-
sidades de espécies arbóreas por área do mundo.
A Mata Atlântica do sul da Bahia permaneceu como uma das mais con-
servadas do Brasil até a primeira metade do século 20, quando um rápido e in-
tenso processo de desmatamento ocorreu devido à expansão do cultivo do ca-
cau. Segundo Dean (1996, p. 263), no sul da Bahia foi aberta uma nova frente do
sistema de plantation, quando o cacau, transferido da região amazônica, encontrou so-
los adequados e os produtores locais conquistaram uma cota considerável do mercado
norte-americano. “Na metade da década de 30, cerca de mil km2 devem ter sido convertidos na zona
do piemonte centrada em Ilhéus” (DEAN, 1996, p. 263).
Grande parte das roças foi implantada no sistema conhecido como “ca-
bruca”, no qual a floresta é raleada, ou seja, tem seu sub-bosque retirado para que
o cacau possa ser plantado por debaixo das árvores maiores, que lhes sombreiam.

Esta forma de derrubada foi um pouco mais benigna que a praticada na zona do café [no Su-
deste do Brasil]. Em muitas fazendas [do sul da Bahia], deixava-se de pé certo número de
árvores da floresta primária que propiciavam condições de crescimento semelhantes às de seu
hábitat nativo [do cacau], de patamar inferior. Esse sistema, chamado cabroca, aumentava
a vida produtiva dos pés de cacau e pode ter reduzido o perigo de pestes e parasitas (DEAN,
1996, p. 263) 10.

Além da fisionomia das florestas do Sul da Bahia, Jorge Amado des-


creve com simplicidade alguns de seus elementos estruturais, como a “serapi-
lheira”, que é uma camada superficial composta de folhas secas em decomposi-
ção, que recobre o solo da floresta, e as “trepadeiras”, plantas que necessitam
do suporte das árvores para crescerem eretas em direção ao sol.

Voavam sobre as árvores as andorinhas de verão. E os bandos de macacos numa doida corrida
de galho em galho, morro abaixo, morro acima. Piavam os corujões para a lua amarela nas
noites calmas. (...) Cobras de inúmeras espécies deslizavam entre as folhas secas sem fazer ru-
ído, onças miavam seu espantoso miado nas noites de cio. (...) A mata dormia. As grandes ár-
vores seculares, os cipós que se emaranhavam, a lama e os espinhos defendiam seu sono
(AMADO, 2008, p. 37).

10
Contudo, afirma Dean (1996, p. 263), este processo não foi acompanhado de um regime de trabalho mais
brando do que o da zona do café implantada no Sudeste do país. Embora houvesse muitas propriedades de
pequeno e médio porte, a maior parte da safra era produzida em grandes fazendas, onde quase todos os tra-
balhadores eram imigrantes sazonais, porque o cacau não exigia trato durante o ano inteiro. Recrutados de
um Nordeste empobrecido, estes imigrantes eram submetidos à condições de vida miseráveis, raramente vol-
tavam para a mesma fazenda e era escassa a poupança que levavam de volta à suas terras natais.

254
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Interessantes em “Terras do sem fim” são também as representações do


clima da região, em especial à abundância das chuvas, elemento climático funda-
mental à existência da Mata Atlântica e à frutificação do cacau. Por diversas vezes,
Jorge Amado refere-se ao inverno como o período de chuvas na região, por vezes,
bastante intensas:

A noite vinha chegando e trazia nuvens negras com ela, chuvas pesadas de junho. (AMADO,
2008, p. 37)

A chuva de junho cai sobre eles [os trabalhadores contratados para derrubar a mata
para o plantio das roças de cacau], encharcando as roupas, fazendo-os tremer”
(AMADO, 2008, p. 40).

“As chuvas longas do inverno eram pesadas, a água cantava nos telhados, escorria pelos vidros
da janela. O vento do mar sacudia as árvores do quintal derrubando as folhas e os frutos verdes
(AMADO, 2008, p. 213).

E passaram as chuvas de inverno e chegaram os dias quentes de verão (...) E terminaram os dias
cálidos do verão e voltaram as chuvas longas do inverno, amadurecendo os frutos dos cacauei-
ros, iluminando de ouro as roças fechadas de sombra (AMADO, 2008, p. 234).

Apesar de não ser a estação do ano que apresenta os maiores índices


pluviométricos, o inverno é a estação que apresenta o maior número de horas
de chuva na região cacaueira da Bahia. As referências que Jorge Amado faz as
chuvas de junho como “pesadas”, estão associadas à Frente Polar Atlântica que,
ao avançar mais profundamente sobre o Brasil no inverno, provoca instabilida-
des convectivas nesta porção do litoral baiano.
Segundo Nunes, Ramos e Dillinger (1981), o litoral sul baiano encon-
tra-se sob domínio de um clima tropical quente e úmido a superúmido, que
abrange uma faixa longitudinal litorânea com cerca de vinte quilômetros de
largura nesta porção da costa baiana. De acordo com Gonçalves e Pereira
(1981), esta faixa climática, que abarca toda a zona cacaueira do Estado da Ba-
hia, tem como característica marcante à alta umidade, com médias pluviomé-
tricas anuais que superam os 2.000 milímetros, sem a ocorrência de uma esta-
ção seca típica.
Na região, ocorrem elevadas temperaturas médias anuais, entre 24° e
25° C, e baixas amplitudes térmicas anuais, com variações ao redor de 7°a 8° C
(CEPLAC, 1975). A aproximada posição geográfica em relação à linha do Equa-
dor, submete forte radiação à região, em virtude da incidência pouco inclinada
dos raios solares durante todo o ano. Tal posição também se relaciona com o
baixo gradiente térmico verificado na faixa costeira pois, nas baixas latitudes,
não apenas as médias anuais são elevadas, mas as de qualquer mês (NIMER,
1979). Entretanto, segundo este mesmo autor, a influência dos ventos alísios

255
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

provoca um efeito moderador no litoral sul baiano, tornando-o menos quente


em relação à média regional, que varia entre 26° e 28° C.

Representações da formação regional cacaueira

A ideia de “natureza transformada” nos remete ao conceito geral de


“espaço geográfico”, aquele produzido pela ação humana que transforma o meio
natural. O processo de transformação do meio natural da região cacaueira da
Bahia é, em parte, descrito em “Terras do Sem Fim”, quando Jorge Amado narra
a derrubada da floresta e a origem de fazendas e povoados.

[Jeremias, um dos personagens] Viu os homens brancos chegarem para perto da mata,
assistiu a outras matas serem derrubadas, viu os índios fugirem para mais longe, assistiu ao
nascimento dos primeiros pés de cacau, viu como se formavam as primeiras fazendas”
(AMADO, 2008, p. 105).

Os processos culturais de derrubada da mata e de implantação das ro-


ças são parcialmente descritos no romance, nas referências ao uso de instru-
mentos (machados, foices e serrotes) e do fogo para a derrubada e a queima da
floresta, bem como para o plantio do cacau e dos gêneros alimentícios que ga-
rantiriam a sobrevivência dos trabalhadores até a frutificação dos cacaueiros:

Os machados e os facões começaram a cair num ruído monótono sobre a mata, perturbando
seu sono” (...). Derrubaram a mata, queimaram-na, plantaram cacau e, entre o cacau, a man-
dioca, o milho de que iam viver os três anos de espera até que os cacaueiros crescessem
(AMADO, 2008, p. 42).

Nos momentos de maior expansão geográfica, a lavoura cacaueira


avançou não somente pelas áreas de florestas não exploradas da região, mas
também por sobre outros usos da terra, como as roças de café e, por vezes, até
suprimiu cultivos tradicionais do período colonial, como é o caso da cana-de-
açúcar:

Quando os homens iniciaram no Rio-do-Braço a plantação da nova lavoura, ninguém pensava


que ela ia terminar com os engenhos de açúcar, os alambiques de cachaça e as roças de café que
existiam em redor do Rio-do-Braço, de Banco-da-Vitória, de Água-Branca, os três povoados
da beira do rio Cachoeira que ia dar no porto de Ilhéus (AMADO, 2008, p. 117).

A introdução do cacau (Theobroma cacao) na região sul da Bahia


aconteceu na primeira metade do século 18, quando sementes trazidas do Pará
foram plantadas nas margens do rio Pardo, no território da então Capitania de
Ilhéus, hoje do município de Canavieiras. Das margens do rio Pardo, segundo
Virgens Filho et al (1993), o cacau foi levado em 1752 para a sede da Capitania

256
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

(Ilhéus) e, por volta de 1799, segundo Campos (apud MELLO e SILVA et al,
1987), sua difusão já alcançara a vila da Barra do Rio de Contas, a atual cidade
de Itacaré, que é o distrito-sede do município de mesmo nome, localizado no
norte da região cacaueira.
Foi a partir das vilas coloniais litorâneas, como Ilhéus e Barra do Rio
de Contas que, ao longo do século 19, se interiorizou a lavoura cacaueira e, por
conseguinte, o povoamento que deu origem a outras vilas, como Tabocas (atual
cidade de Itabuna), situada às margens do rio Cachoeira, numa posição de en-
cruzilhada que tornou Itabuna o entreposto comercial cacaueiro mais impor-
tante do interior da região. Em “Terras do Sem Fim”, Jorge Amado conta origem
de Tabocas, o núcleo original de Itabuna, como também do povoado de Ferra-
das, que ainda mantém esse nome como sede de um distrito do município de
Itabuna e, de quebra, de outros tantos povoados que, surgidos nessa época, tor-
naram-se em cidades da região.

Mas o cacau não só liquidou os alambiques, os pequenos engenhos e as roças de café, como an-
dou mata adentro. E no seu caminho nasceram as casas do povoado de Tabocas e mais longe as
casas do povoado de Ferradas, quando os homens de Horácio haviam conquistado a mata da
margem esquerda do rio [Cachoeira]. Ferradas foi durante algum tempo o povoado mais dis-
tante de Ilhéus. Dali partiam os conquistadores de novas terras. Por vezes, rompendo a mata,
chegavam viajantes de Itapira, da Barra do Rio de Contas [atual Itacaré], que era o outro lado
das terras do cacau (AMADO, 2008, p. 118).

Ferradas nascera em torno do armazém de cacau que Horácio fizera construir ali. Ele preci-
sava de um depósito onde juntar o cacau já seco das suas diversas fazendas. Ao lado do arma-
zém foram surgindo casas, em pouco tempo se abriu uma rua na lama, dois ou três becos a cor-
taram, chegaram as primeiras prostitutas e os primeiros comerciantes. Um sírio abriu uma
venda, dois barbeiros se estabeleceram vindos de Tabocas, passou a haver feira aos sábados.
Horácio mandava abater dois bois para vender a carne. Tropeiros, que vinham conduzindo
tropa de cacau seco das fazendas mais distantes, pernoitavam em Ferradas, os burros vigiados por
causa dos ladrões de cacau (AMADO, 2008, p. 119).

Outros dois povoados, hoje cidades, citados pelo autor de “Terras do


Sem Fim”, Pirangi (atual Itajuípe) e Guaraci (atual Coaraci), surgiram da im-
plantação da lavoura cacaueira nas terras das matas de Sequeiro Grande que,
no romance, é o pretexto dos conflitos entre os Badaró e Horácio Silveira. Atu-
almente, o território onde se localizavam estas terras, que despertaram a cobiça
dos coronéis do romance, tem a mesma denominação, Sequeiro Grande, um dis-
trito do atual município de Itajuípe:

Ferradas foi um centro de comércio, pequeno e movimentado. Iria parar seu crescimento com
a conquista da mata de Sequeiro Grande, nos limites da qual nasceria o povoado de Pirangi
[atual Itajuípe], uma cidade feita em dois anos. E ano depois, com o andar rápido da lavoura
do cacau, nasceria Baforé, já no caminho do sertão, que logo trocaria seu nome pelo mais eufô-
nico de Guaraci [atual Coaraci] (AMADO, 1943, p. 135).

257
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Entre as muitas representações geográficas do romance, identificamos


algumas interessantes na perspectiva da Geografia Urbana que, entre outras
abordagens, propõe o estudo da “função urbana” e da “planta urbana” das cida-
des. A função de “pouso de tropas” e de “entreposto comercial” do povoado de
Tabocas foi essencial para a urbanização originária da atual cidade de Itabuna,
onde a distribuição aleatória das ruas do núcleo original ainda caracteriza a
planta do centro da cidade:

Com seus longos chicotes que estalavam ao tocar o solo, os tropeiros atravessavam as ruas
enlameadas de Tabocas. Gritavam para os burros não entrarem pelos becos e pelas ruas que se
abriam (AMADO, 2008, p. 123).

Primeiro não teve nome, quatro ou cinco casas apenas à margem do rio. Depois foi o povoado
de Tabocas, as casas se construindo uma atrás das outras, as ruas se abrindo sem simetria ao
passo das tropas de burros que traziam cacau seco (AMADO, 2008, p. 124).

Em Tabocas se levantavam casas de tijolos e também casas de pedra e cal, com telhados, ver-
melhos, com janelas de vidro. Uma parte da rua central tinha sido calçada de pedras. É verdade
que as outras ruas eram um puro lamaçal, revolvido diariamente pelas patas dos burros que
chegavam de toda a zona do cacau, carregados com sacos de quatro arrobas (AMADO,
2008, p. 124).

No romance, encontram-se também referências ao “sítio urbano” e a


“posição urbana” da cidade de Ilhéus, antiga vila colonial do século 16, e da ci-
dade de Itabuna, fundada em 1910 no contexto da formação regional cacaueira.
De acordo com George (1983), “sítio urbano” é o quadro topográfico no qual a
cidade se enraizou, ao menos em suas origens, enquanto “posição urbana” é a
localização da cidade em função de fatos naturais suscetíveis, no passado e no
presente, de influir em seu desenvolvimento que, por sua vez, está vinculado às
possibilidades de expansão e de relacionamento com outras cidades e regiões.
Na escala local, a descrição do sítio urbano de Ilhéus, de onde primeiro
se irradiou a lavoura cacaueira, é feita com detalhes, quando, por exemplo, Jorge
Amado descreve o quadro topográfico da Vila de São Jorge dos Ilhéus:

Ilhéus nascera sobre ilhas, o corpo maior da cidade numa ponta de terra, apertado entre dois
morros. Ilhéus subira por esses dois morros – o do Unhão e o da Conquista – e invadira tam-
bém as ilhas vizinhas. Numa delas ficava o arrabalde do Pontal onde a gente rica da cidade
tinha suas casas de veraneio (AMADO, 2008, p. 171).

A cidade de Ilhéus se distribui basicamente paralela ao mar, ocupando


tanto as áreas de relevo mais elevado, como os morros e outeiros, quanto as
planícies formadas pelo mar, pelos rios ou pela ação destes dois agentes, ou seja,
planícies fluviomarinhas situadas nas desembocaduras dos rios Cachoeira e Al-

258
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

mada. Estas características do sítio urbano de Ilhéus foram importantes na for-


mação da cidade, desde tempos coloniais, seja para a defesa dos colonos portu-
gueses, seja para o desenvolvimento do comércio estabelecido nas áreas baixas
da cidade.
Por sua vez, na escala regional, quando narra a origem do povoado de
Tabocas (a atual cidade Itabuna), Jorge Amado descreve a implantação das ruas
e casas do povoado de Tabocas, destacando sua posição urbana de “ponta-de-
trilhos”, que intensificou sua função de entreposto comercial, promoveu o de-
senvolvimento urbano e a expansão regional da lavoura cacaueira, quando a es-
trada de ferro ali chegou.

A estrada de ferro avançou de Ilhéus até ali [até Tabocas] e, em torno dela, nasceram novas
casas. E eis que não eram só casas de barro batido, sem pintura, de janelas de tábuas, casas
levantadas às pressas, casas mais para pousos que mesmo para moradia como as de Ferradas,
Palestina e Mutuns (AMADO, 2008, p. 124).

As ruas se abriam em armazéns onde o cacau era depositado. Algumas casas exportadoras já
tinham filial em Tabocas e ali compravam o cacau aos fazendeiros. E, se bem não tivesse sido
ainda instalada uma filial do Banco do Brasil, havia um representante bancário que evitava a
muitos coronéis fazerem a viagem de trem a Ilhéus para depositar e retirar dinheiro (...). Do outro
lado do rio já se levantavam várias casas e começava-se a falar em construir uma ponte que ligasse
os dois pedaços da cidade. Os habitantes de Tabocas tinham uma grande reivindicação: que o po-
voado fosse elevado à categoria de cidade e fosse sede de governo e de justiça, com seu prefeito, seu
juiz, seu promotor, seu delegado de polícia. Alguém já propusera até o nome que devia ter o novo
município e a cidade: Itabuna, que em língua guarani quer dizer ‘pedra preta’. Era uma homena-
gem às grandes pedras que surgiam nas margens e no meio do rio e sobre as quais as lavadeiras
passavam o dia no seu trabalho (AMADO, 2008, p. 142).

A proximidade geográfica (cerca de 30 quilômetros), e a complemen-


taridade de funções urbanas que existe entre Ilhéus e Itabuna, fazem com que
os estudos de Geografia Urbana as considerem como uma única cidade, como
um eixo polarizador da região, um polo urbano duplo, constituído por ambas
as cidades. A posição de contato entre meios de circulação diferentes, marítimo
e terrestre (o mar e o continente), desempenhada por Ilhéus, foi essencial à in-
teriorização e ao comércio do cacau com o exterior. Por sua vez, a posição de
“encruzilhada” do antigo povoado de Tabocas, outra típica posição de contato,
entre regiões diferentes, também foi historicamente importante para a expan-
são da lavoura e ao processo de urbanização e de formação regional.

O criticismo de Jorge Amado à sociedade do cacau

Tão importantes quanto as interpretações das representações da natu-


reza, e da formação regional presentes em “Terras do sem fim”, são as críticas

259
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

implícitas de Jorge Amado à sociedade do cacau, de modo especial o contra-


ponto que, no romance, o autor faz ao discurso dominante que enaltece os co-
ronéis como os promotores do progresso regional. Em termos linguísticos, é
possível identificar as concepções ideológicas hegemônicas do período e as que
apontam as suas contradições. As narrativas, na verdade os textos em geral, são
produtos de uma visão de mundo, obviamente vinculada à subjetividade do au-
tor, mas que reflete também o contexto social à que se refere.
Aos coronéis da sociedade do cacau interessava um discurso hegemô-
nico que enaltecia os “desbravadores”, os ditos “progressistas” que levaram
Ilhéus a um lugar de destaque no cenário nacional 11. A crítica que Jorge Amado
faz ao discurso dos antigos coronéis do cacau, de promotores do progresso re-
gional, bem como suas práticas sociais e culturais carregadas da herança escra-
vista do país, está representada nos romances do ciclo do cacau. Jorge Amado
faz parte dessa elite cacaueira considerada promotora do progresso regional,
haja vista que ele é oriundo de uma família de imigrantes sergipanos que enri-
queceu com a produção e o comércio do cacau, legitimando de certo modo o seu
lugar de fala neste seu contexto de análise crítica.
Segundo Morinaka (2018, p. 429), em “Terras do sem fim”, Jorge
Amado descreve relacionamentos e apresenta diálogos entre personagens que
evidenciam heranças de nosso passado escravista. No final do primeiro capítulo
(O navio), uma fala do Capitão para seu Imediato, refere-se ao fato do navio,
que levava passageiros de Salvador a Ilhéus, ser um espaço onde fazendeiros
recrutavam a mão-de-obra imigrante que viajava na 3ª classe. Como a maioria
dos passageiros desta 3ª classe era composta por homens negros, o Capitão, em
sua fala, associa a embarcação aos antigos navios negreiros:

Por fim o comandante falou:


— Por vezes me sinto como um comandante de um daqueles navios negreiros do tempo da es-
cravidão...
Como o imediato não respondesse, ele explicou:
— Daqueles que em vez de mercadoria traziam negros pra serem escravos... (AMADO,
2008, p. 36).

O jovem Jorge Amado (tinha 31 anos quando publicou “Terras do sem


fim”), assumido comunista quando escreveu os romances do ciclo do cacau, era
crítico do capitalismo selvagem que se praticava na zona do cacau, especial-
mente acerca das precárias condições de trabalho impostas nas fazendas. No

11
Segundo Dias (2017, p. 17), havia um desprezo pelo período precedente ao cacau, que tinha a função
de apagar da memória coletiva o violento processo de tomada de terras, muitas delas consideradas de-
volutas, apesar de se constituírem em antigas posses ou áreas correspondentes aos muitos aldeamentos
indígenas que se formaram desde o século 16 na então Capitania de Ilhéus.

260
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

romance, Jorge Amado denuncia a expropriação de pequenos lavradores e con-


trapõe-se ao discurso oficial, revelando que os membros da elite cacaueira nada
tinham de progressistas, muito pelo contrário, pois a sociedade por eles criada
foi resultado de segregação social, exploração do trabalho e clientelismo polí-
tico. Para Jorge, os fazendeiros exploravam a mão-de-obra, submetiam os tra-
balhadores à situações de extrema pobreza, escravizando-os por endivida-
mento nos armazéns das fazendas. Por diversas vezes, por meio de descrições
da situação e de diálogos entre trabalhadores, Jorge Amado denuncia o endivi-
damento a que eram submetidos os trabalhadores:

Ali por aquele trabalho todo eram dois mil e quinhentos réis por dia, empregados inteiramente
no armazém da fazenda, um saldo miserável no fim do mês, quando havia saldo (AMADO,
2008, p. 78).

— Amanhã cedo o empregado do armazém chama por tu para fazer o “saco” da semana. Tu
não tem instrumento pro trabalho, tem que comprar. Tu compra uma foice e machado, tu com-
pra um facão, tu compra uma enxada… E isso tudo vai ficar por uns cem mil-réis. Depois tu
compra farinha, carne, cachaça, café pra semana toda. Tu vai gastar uns dez mil-réis pra co-
mida. No fim da semana tu tem quinze mil-réis ganho do trabalho.
— O cearense fez as contas, seis dias a dois e quinhentos, e concordou. — Teu saldo é de cinco
mil-réis, mas tu não recebe, fica lá pra ir descontando a dívida dos instrumentos… Tu leva um
ano pra pagar os cem mil-réis sem ver nunca um tostão.
(...) O cearense tinha ficado emudecido, olhava o morto. Falou, por fim: — Cem mil-réis por
um facão, uma foice e uma enxada? Foi o velho quem explicou:
— Em Ilhéus tu tira um facão Jacaré por doze mil-réis. No armazém das fazendas tu não tira
por menos de vinte e cinco… (AMADO, 2008, p. 88).

Segundo Freitas (2009, p. 109), formou-se na região uma estrutura so-


cial hierarquizada, dividida entre os grandes produtores e comerciantes de ca-
cau, que detinham a hegemonia política, e os trabalhadores rurais assalariados,
segregados enquanto força de trabalho explorado, que se ocupava em diversas
funções: barcaceiros, tropeiros, cabos de turma, tiradores, cortadores, além de
administradores e gerentes. No meio desta hierarquização, completa Freitas
(2009, p. 109), estavam detentores de pequenas posses de terras, de pequenas
unidades de produção familiar destinadas à subsistência, chamados de “bura-
reiros”, que constantemente estavam submetidos à expropriação por parte da
oligarquia rural, muitas vezes por meio de fraudes cartoriais e violência.
De acordo com Morinaka (2018, p. 430), as heranças do passado escra-
vista não se apresentam somente no plano econômico em “Terras do sem fim”,
mas também nas relações sociais. Nesse aspecto, destacam-se as diferenças de
tratamento existentes entre dois personagens: Don’Ana (filha de Sinhô Badaró)
e Raimunda, filha de Risoleta, a cozinheira da casa-grande da fazenda. As duas
nasceram no mesmo dia e foram amamentadas pela mesma mulher, ou seja, Ri-
soleta foi a ama-de-leite e a mãe de criação de Don’Ana. Ninguém sabia de fato

261
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

quem era o pai de Raimunda, contudo, como era mulata de cabelo quase liso,
havia o boato de que seria filha de Marcelino Badaró, o pai de Sinhô Badaró, ou
seja, Raimunda seria irmã mais nova, mas não assumida, de Sinhô. As meninas
cresceram juntas e foram batizadas no mesmo dia, contudo, Don’Ana foi cer-
cada de carinho e atenção enquanto “Raimunda ganhava as sobras desse carinho”
(AMADO, 2008, p. 80).

Dona Filomena tirou Raimunda da cozinha, a trouxe em definitivo para dentro da casa-
grande. E protegeu sempre a mulatinha enquanto viveu. Depois, quando a esposa de Sinhô mor-
reu tísica, ficaram os padrinhos, Sinhô e Don’Ana, mas aos poucos Raimunda foi tendo uma
vida igual às das demais crias da casa: lavar, remendar roupa, buscar água no rio, fazer os
doces. Só que nas festas Don’Ana lhe regalava um corte de fazenda para um vestido melhor e
Sinhô lhe dava um par de sapatos e um pouco de dinheiro. Ela não tinha ordenado, para que pre-
cisava ela de dinheiro se tinha de um tudo na casa dos Badarós? (AMADO, 2008, p. 81).

Aclamado pela crítica como nenhum outro romance do autor fora an-
tes, “Terras do sem-fim” foi o nono livro publicado por Jorge Amado e, segundo
Rayol (2012, p. 12), marca a evolução da narrativa do autor até aquele momento,
como também delineia seu aprimoramento futuro. Em “Terras do sem-fim”, e
em “São Jorge dos Ilhéus” publicado no ano seguinte (1944), há uma mudança
na composição narrativa usada por Jorge Amado: da composição do herói, como
em “Jubiabá” (1935), para a composição da sociedade, notadamente a que se
estruturou em torno do cacau no sul da Bahia.
Rayol (2012) cita alguns críticos que enalteceram “Terras do sem fim”,
como Oswald de Andrade, para quem o romance, fundado na história econô-
mica, é ajustado à natureza poética de Jorge Amado:

... [com] aquele desfilar heroico de capangas e sicários, de advogados e coronéis, de senhoras
românticas e mulheres de má vida, no drama da conquista da mata pelos primeiros latifundi-
ários baianos. (...) Toda essa gente realiza, no Brasil do cacau, o primeiro avanço da civilização
e da economia. E na economia, na história econômica da terra, é que se prende a ficção para lhe
dar peso, estrutura e verdade (ANDRADE, 1961, p. 166 citado por RAYOL, 2012, p. 12).

A leitura de “Terras do Sem Fim” é uma experiência tão rica de signifi-


cados, e em tantos campos do conhecimento, que propor uma interpretação de
texto com base em uma análise geográfica regional é uma redução analítica
deste romance tão importante da literatura brasileira e universal. Gilberto
Freyre, citado por Rayol (2012, p. 12), rejeita a ideia de regionalismo, tão recor-
rente quando se comenta a obra do autor baiano, argumentando que Jorge
Amado mostra quão universal é sua obra, ao nos colocar “em contato com um
grande drama brasileiro, americano, humano e não apenas baiano, que é o da conquista de
terras” no romance, onde o cacau dá um “sabor local sem comprometer-lhe a universa-
lidade de sentido”.

262
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Traduzidos para dezenas de línguas, e publicados em diversos países,


os romances de Jorge Amado são denúncias sociais da desumana existência do
povo brasileiro, que sensibilizam e despertam uma universal consciência social
de quem os lê, portanto, indo muito além da relação que possamos estabelecer
com a Geografia ou com qualquer outra disciplina escolar ou acadêmica.

263
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Jorge. Terras do Sem Fim. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2008.

AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010.

CAMPOS, João da Silva. Crônicas da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Rio de
Janeiro, RJ: Conselho Federal de Cultura, 1981.

CASAL, Manuel Ayres de. ‘Corografia Brazilica ou Relação historico-geografica


do Reino do Brazil’. Tomo 1. Rio de Janeiro, RJ: Impressão Régia, 1817. 342 p.

CEPLAC. Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira. Diagnóstico Sócio-


econômico da Região Cacaueira – Reconhecimento Climatológico (Volume 4).
Ilhéus, Bahia: CEPLAC/IICA (Instituto Interamericano de Ciências Agrícolas),
1975.

DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira.


São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1996. 491 p.

DIAS, Marcelo Henrique. Economia, sociedade e paisagens da capitania e comarca


de Ilhéus no período colonial. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-
Graduação em História Niterói, RJ: Universidade Federal Fluminense (UFF),
2007.

DINIZ, José Alexandre Filizola; DUARTE, Aluísio Capdeville. A região cacaueira


da Bahia. Recife, PE: Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SU-
DENE) / Universidade Federal de Sergipe (UFS), 1983, 298 p.

FREITAS, Hingryd Inácio de. A questão (da reforma) agrária e a política de de-
senvolvimento territorial rural no litoral sul da Bahia. Dissertação de Mestrado em
Geografia. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia, 2009. 227 p.

GEORGE, Pierre. Geografia urbana. Tradução de Grupo de Estudos Franceses de In-


terpretação e Tradução. São Paulo, SP: DIFEL – Difusão Editorial S. A., 1983, 236 p.

GONÇALVES, Ronaldo do Nascimento; PEREIRA, Regina Francisca. Climatologia


em Uso potencial da Terra. Projeto RADAMBRASIL. Folha SD. 24 Salvador: Geologia,
Geomorfologia, Pedologia, Vegetação e Uso potencial da terra. RJ: Ministério das
Minas e Energia, 1981. pp. 582-620.

264
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

GUERREIRO de FREITAS, Antônio Fernando. A formação da região cacaueira baiana


ou das amêndoas douradas e o seu doce/amargo chocolate. Anais do Simpósio Internacio-
nal “Cacau e Chocolate: Percursos entre Produtores e Consumidores”. Salvador,
BA: Goethe-Institut, 2011.

GUIMARÃES, L. M. P. Memórias partilhadas: os relatos dos viajantes oitocentistas e a ideia


de civilização do cacau. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VIII (suple-
mento), 2001. pp. 1059-70.

MELLO e SILVA, S.; LEÃO, S.; SILVA, B. Urbanização e metropolização no Estado


da Bahia – Evolução e dinâmica. Salvador, BA: Centro Editorial e Didática da
UFBA, 1989.

MOREIRA LEITE, Miriam L. Naturalistas viajantes. História, Ciências, Saúde -


Manguinhos. Volume I, número 2: 7-19, nov 1994 – fev 1995

MORINAKA, Eliza Mitiyo. Terras do sem fim e The violent land: uma história de aventura
e crítica social. Caderno Letras UFF. Volume 29, n. 57. Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 2018. pp.415-435

NIMER, Edmon. Climatologia do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: IBGE, 1979. 421 p.

NUNES, Bernardo Thadeu de Almeida; RAMOS, Vera Lúcia de Sousa;


DILLINGER, Ana Maria Simões. Geomorfologia. Projeto RADAMBRASIL. Folha
SD. 24 Salvador: Geologia, Geomorfologia, Pedologia, Vegetação e Uso potencial
da terra. RJ: Ministério das Minas e Energia, 1981. pp. 183-276.

RAYOL, Luciana de Moraes. Don’Ana Badaró, mulher de terra e chuva. Revista do Ins-
tituto de Ciências Humanas. Volume 7, número 7. Belo Horizonte, MG: PUC Mi-
nas, jan-jul de 2012. pp. 11-22.

RIBEIRO, André Luís Rosa. Família, poder e mito: o município de São Jorge de
Ilhéus (1880 - 1912). Ilhéus: Editus, 2001. 168p.:il.

SAMBUICHI, Helena Rosa. Ecologia das árvores nativas. In: Nossas árvores: conser-
vação, uso e manejo de árvores nativas no sul da Bahia. SAMBUICHI, Regina He-
lena Rosa; MIELKE, Marcelo Schramm; PEREIRA Carlos Eduardo (Org.). Ilhéus,
BA: Editus, 2009a.

265
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

SAMBUICHI, Helena Rosa. A mata atlântica, biodiversidade e conservação. In: Nossas


árvores: conservação, uso e manejo de árvores nativas no sul da Bahia. SAMBUI-
CHI, Regina Helena Rosa; MIELKE, Marcelo Schramm; PEREIRA Carlos Edu-
ardo (Org.). Ilhéus, BA: Editus, 2009b.

SANTOS, Milton. Zona do Cacau – Introdução ao Estudo Geográfico. 2ª ed. São


Paulo, SP: Companhia Editora Nacional, 1957. 125 p.

SANTOS, Milton. Problemas de Geografia Urbana na Zona cacaueira Baiana. Ba-


hia, 1956 (mimeografado), 25 p. e um mapa.

VARELA, Alex Gonçalves. A trajetória do ilustrado Manuel Ferreira da Câmara em sua “fase
europeia” (1783-1800). Revista Tempo. Número 23. Niterói, RJ: Universidade Federal
Fluminense, 2007. pp. 150-175.

VIRGENS FILHO, A. de C. et. al. A CEPLAC e a crise da lavoura cacaueira. Fórum


Setorial do Cacau. Ilhéus, Bahia: CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da La-
voura Cacaueira), 1993.

266
LITERATURA E SOCIEDADE:
O TEXTO LITERÁRIO E O ENSINO.

Orniane Guimarães Bahia 1


Dirlenvalder do Nascimento Loyolla 2
Eliane Pereira Machado Soares 3
INTRODUÇÃO
Muitos são os estudos que tratam da importância da leitura desde os
primeiros anos da Educação Básica. No entanto, apesar dos esforços para fazer
da leitura uma prática constante nos ambientes educativos, o que se percebe é
uma incompreensão de como se trabalhar a leitura, de modo a promover a for-
mação de leitores proficientes, capazes de mobilizar diversos conhecimentos
no processo de leitura e compreensão textual. Nesse cenário, chama-nos a aten-
ção o uso do texto literário, pois o professor, ao desconhecer sua finalidade,
adota práticas de leitura não condizentes com a natureza da leitura literária.
Neste artigo, pretende-se refletir teoricamente acerca da ideia de que
o texto literário deve ser abordado na perspectiva de educação estética apre-
sentada e discutida por Liev Semionovich Vigotski, na obra intitulada Psicologia
Pedagógica (2003). O objetivo é o contribuir para a superação, no ensino, o uso
do texto literário estritamente como forma de fornecer educação moral aos edu-
candos, ou para outros fins pedagógicos, como, por exemplo, a aprendizagem
de conceitos ortográficos e gramaticais, nas aulas de Língua Portuguesa, ou
para a ampliação de conhecimento cognitivo em outras disciplinas, e ainda ape-
nas como entretenimento.
Assim, abordam-se neste ensaio os dois aspectos que têm constituído,
ou melhor, se resumido às práticas de leitura literária no âmbito escolar. O pri-
meiro refere-se à educação estética para fins de construção de valores morais.
O segundo diz respeito ao uso pedagógico dos textos literários para o desen-
volvimento de habilidades e conhecimento nas diversas disciplinas que com-
põem o currículo escolar, tais como o aprendizado de aspectos notacionais e
gramaticais.

1
Mestranda em Letras pela UNIFESSPA (Universidade do Sul e Sudeste do Pará).
2
Doutor em Literatura e Práticas Sociais pela UNB (Universidade de Brasília).
3
Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Como aporte teórico buscaram-se os estudos de autores que discorrem


sobre: o conceito de literatura, como Wellek; Warren (2013); a relação literatura
e sociedade,em Antonio Candido (2010);a educação estética, em Vigotski (2003)
e os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1997) que abordam as
contribuições do texto literário para o ensino. Ao final, apresentam-se algumas
das contribuições do texto literário para o ensino, com o objetivo de suscitar a
necessidade de se refletir sobre as práticas de leitura literária desenvolvidas nos
espaços educacionais e assim contribuir para o desenvolvimento e aprendizagem
do educando e o fortalecimento da literatura no contexto escolar.

O CONCEITO, NATUREZA E FUNÇÃO DA LITERATURA

Para adentrarmos as discussões acerca da compreensão da relação li-


teratura, sociedade e ensino, apresenta-se aqui a definição de literatura na visão
de alguns teóricos. Não se pretende aqui discutir tais visões, mas isso se torna
relevante, uma vez que a forma como a literatura foi sendo entendida pode ter
influenciado nos modos como o texto literário tem sido abordado nas salas de
aula. Além disso, compreender a natureza e função da literatura poderá forne-
cer subsídios para revisão das práticas de ensino da literatura na escola e assim
“afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em re-
lação aos textos literários” (BRASIL, 1997, p. 30).
Em seus estudos, Wellek e Warren (2003, p. 12) apresentam algumas
definições atribuídas à literatura ao longo da história. A primeira delas é a lite-
ratura entendida como tudo o que é impresso cujo campo de atuação abrange
todas as áreas da sociedade, ou seja, não se restringe “às belas-letras ou mesmo
a registros impressos e manuscritos na nossa tentativa de compreender um pe-
ríodo ou civilização”. O que remete à concepção dicionarizada de “biografia so-
bre determinado assunto”, como por exemplo, a literatura médica.
A segunda definição é marcada pelo julgamento do valor estético da
obra, pela presença de grandes livros que podem ser definidos como “notáveis
pela forma ou expressão literária” (WELLEK; WARREN, 2003, p. 12), sendo
este um critério para definir ou não se determinada obra se enquadra como li-
teratura. Na terceira concepção apresentada pelos autores, tem-se a literatura
como uso da linguagem de maneira sistemática que se distingue das demais lin-
guagens, científica ou coloquial, por sua natureza conotativa e que também não
se reduz à forma escrita ou impressa, mas também à forma oral.
Quanto à natureza da literatura, esta é marcada pelo caráter ficcional,
imaginário e de verossimilhança, que embora pareça real, não o é. Como afirma
Wellek e Warren (2013, p. 18) “o ‘eu’ do poeta é um ‘eu’ ficcional, dramático.

268
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Um personagem de romance difere de uma figura histórica ou de uma figura na


vida real”. É nesse sentindo que os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Por-
tuguesa definem a literatura:

A literatura não é cópia do real, nem puro exercício de linguagem, tampouco


mera fantasia que se asilou dos sentidos do mundo e da história dos homens. Se
tomada como uma maneira particular de compor o conhecimento, é necessário
reconhecer que sua relação com o real é indireta. Ou seja, o plano da realidade
pode ser apropriado e transgredido pelo plano do imaginário como uma instân-
cia concretamente formulada pela mediação dos signos verbais (ou mesmo não-
verbais conforme algumas manifestações da poesia contemporânea). (BRASIL,
1997, p. 29)

No que se refere à função da obra literária, no que se relaciona à sua


natureza, observa-se que ao longo da história, ela apresenta diversas faces inter-
ligadas às definições atribuídas à literatura em cada período. Servindo de instru-
mento para edificar a sociedade, de deleite e instrução. Na compreensão horaci-
ana, a natureza e a função da literatura pautavam-se na fórmula dulce et utile, ou
seja, agradar e instruir, uma condição para uma obra ser considerada arte. Uma
visão impregnada pelo conceito alegórico, em que, no discurso, o artista dispõe
das palavras de uma forma que expressem algo diferente do que foi dito.
Por último apresenta-se também a definição de literatura proposta por
Antonio Candido (2010, p. 147) que, ao delimitar a relação entre literatura na
evolução de uma comunidade, conceitua literatura como sendo coletiva, uma
vez que “requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a ima-
gem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar
e de um momento, para chegar a uma comunicação”. Tal visão apresenta a lite-
ratura em uma dimensão de interação entre linguagem-sociedade-arte no con-
texto de produção da obra literária.
Neste trabalho, a proposta de uso do texto literário como forma de
contribuir para o ensino, repousa sobre a natureza e função de literatura como
fonte séria de prazer, que instiga o homem a mobilizar sentimentos, sensações
na leitura e interpretação dos textos, de modo a refletir sobre sua realidade. As
reflexões teóricas aqui propostas fundamentam-se na terceira concepção de li-
teratura discutida pelos autores Wellek e Warren (2003), pois são discussões
que se assemelham aos estudos de Vigotski (2003) acerca da forma como a pe-
dagogia tem tratado a educação estética, sendo estes pertinentes à relação que
se pretende estabelecer entre literatura, sociedade e ensino. Por sua vez, tais
estudos, também contribuem para as reflexões teóricas que direcionem as prá-
ticas escolares de leitura literária, conforme orientam os Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Portuguesa (1997) e que ainda são norteadores das práticas de

269
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ensino de literatura, considerando que a BNCC ainda se encontra em fase de


estudos e implementação em muitas redes de ensino no país.

A RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE

Ao discorrer sobre a literatura e a vida social, Antonio Candido (2010),


embora tenha dado preferência para a análise da relação meio e obra, das in-
fluências desta primeira sobre a segunda, chama-nos a atenção para a necessi-
dade de refletirmos também acerca da influência da obra de arte sobre o meio,
sugerindo assim a possibilidade de uma interpretação dialógica. Nesse sentido,
traz à discussão, neste trabalho, a relação entre literatura e sociedade na pers-
pectiva de uma relação mútua e de dupla influência, dentro do contexto educa-
tivo nas escolas, de modo a compreender como essa relação pode contribuir no
processo de ensino.
Vale ressaltar que, nesse contexto de compreensão da relação dialógica
que se estabelece entre a obra de arte e a sociedade, é importante entender que
tal relação não diz respeito ao entendimento da arte como expressão de um
povo e muito menos como espaço que se debruça sobre os problemas sociais.
Segundo Candido (2010, p. 29), estas duas percepções acerca da arte e socie-
dade são “duas respostas tradicionais, ainda fecundas conforme o caso, que de-
vem, todavia ser afastadas numa investigação” que se dispõe a indagar sobre as
influências do meio sobre a obra, bem como da obra sobre o meio, pois, como o
próprio autor afirma “dizer que a arte exprime a sociedade constitui hoje ver-
dadeiro truísmo”(CANDIDO, 2010, p. 29).
No século XVIII o conceito de arte como expressão da sociedade foi
apresentado por alguns filósofos, tendo sido considerado algo novo. Acredita-se
que o primeiro esboço sistemático e verdadeiro sobre a relação entre a literatura
e a vida social foi formulado na França por Madame de Staël, ao defini-la como
produto social que exprime as condições de cada civilização em que ocorre.
(CANDIDO, 2010, p. 29). No que concerne à arte como social, tem-se como ten-
dência a atividade de análise dos aspectos sociais ligados a questões morais e
políticas, como exemplo, o estudo de Tolstói apresentado por Candido que
“julga sem apelo as obras que não lhe parecem transmitir uma mensagem moral
adequada ao anarquismo místico de sua velhice” (CANDIDO, 2010, p. 30).
Estas duas tendências introduzem uma noção do caráter social da arte
à medida que, numa perspectiva dialética, a produção artística sofre a ação do
meio e por meio da obra expressa problemas sociais; e age sobre o meio ao ins-
tigar o indivíduo a refletir sobre a forma como compreende o contexto social.

270
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Essa noção é aprofundada quando Candido (2010) traz, para o âmbito das dis-
cussões acerca da relação sociedade e arte, os três elementos fundamentais no
ato comunicativo – autor, obra e público – com vista ao aprofundamento e me-
lhor compreensão da influência que o meio exerce sobre a obra.
No tocante ao primeiro elemento, o autor, tem-se a sociedade defi-
nindo a sua posição e o seu papel de artista, ou seja, este vai sendo constituindo
a partir das necessidades do meio; o segundo elemento, a obra, é moldada pelas
mãos do artista, materializada em conteúdo e forma, é constituída a partir dos
valores sociais e ideologias e formas de comunicação disponibilizadas pela so-
ciedade; e por último o terceiro elemento, o público, que sofre, muitas vezes de
maneira inconsciente, influência de valores, gostos, tendências já definidos pela
sociedade na qual está inserido, pois como afirma Candido (2010, p. 46)
“mesmo quando pensamos ser nós mesmos, somos público, pertencemos a uma
massa cujas reações obedecem a condicionantes do momento e do meio”.
Com base no exposto, à medida que se explica cada um dos elementos
do ato comunicativo, as influências da sociedade sobre a obra de arte vão sendo
desveladas, reforçando também a ideia de que tais influências são recíprocas,
ou seja, que a arte também exerce influência sobre o meio social. Trata-se, por-
tanto, da compreensão da existência de uma movimentação dialética entre li-
teratura e sociedade, que relacionada ao ensino nas escolas pode fornecer im-
portantes contribuições para o uso do texto literário em sala de aula.

LITERATURA E ENSINO

Conforme apresentado acima, sobre a relação que se estabelece entre


literatura e sociedade, traz-se para a discussão a relação literatura e ensino,
uma vez que a escola, embora tenha tentado cumprir com o seu papel de pro-
mover um ensino que seja capaz de contribuir para a formação de leitores pro-
ficientes, ainda apresenta um longo caminho a ser trilhado no que diz respeito
à prática de leitura, principalmente do texto literário, nas salas de aulas.
Ao se voltar para o texto literário, a questão é ainda mais complexa,
uma vez que a utilização deste, ainda está intimamente ligada ao ensinamento
de valores morais ao educando ou com a finalidade pedagógica voltada para o
aprendizado de conteúdos das diversas áreas de conhecimento, não sendo tam-
bém raro encontrar, em sala de aula, a literatura como forma de entretenimento
para os alunos. Tais atitudes merecem nossa reflexão teórica, já que podem tra-
zer prejuízos à formação pessoal e social do educando.

271
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Moral e arte são termos que se interligam, uma vez que o texto literá-
rio, como por exemplo, as fábulas, geralmente apresenta caráter moral e de ins-
trução a quem lê, no entanto, quando se trata de literatura e ensino, o olhar
sobre a obra de arte deve superar e não se restringir apenas à compreensão de
uma “moral da história”.Infeliz e erroneamente, ao longo da história da huma-
nidade e da educação, criou-se a ideia de que os textos literários, especialmente
aqueles voltados para o público infantil, deveriam instigar o leitor a identificar
uma moral na história e a refletir sobre ela. Tal ideia, portanto, precisa ser ana-
lisada e modificada dentro dos ambientes educacionais.

Em geral, supõe-se que uma obra de arte possui um efeito moral, bom ou ruim,
porém direto e, quando as impressões estéticas são avaliadas, sobretudo na in-
fância e na juventude, tende-se a valorizar esse impulso moral que emerge de
todas as coisas. As bibliotecas infantis são formadas para que as crianças ex-
traiam dos livros exemplos morais que lhes sirvam de lição; assim, a tediosa mo-
ral convencional e as falsas lições se transformam no estilo essencial da insincera
literatura infantil. (VIGOTSKI, 2003, p. 225)

Ao restringir o uso do texto do literário apenas ao âmbito dos valores


morais, a escola, além de subestimar a capacidade do educando, limita-o ao con-
tato apenas com produções literárias que Vigotski (2003, p. 225) denomina de
“poesia de absurdos e díspares”. Ainda no que concerne à relação arte e moral,
os estudos vigotskianos também apresentam outro aspecto que merece discus-
são e preocupação dos ambientes escolares: trata-se do efeito moral contrário
ao impregnado na história.
Se o processo de interpretação o texto do literário fosse pautado em
teorias estruturalistas e na teoria de Chomsky, em que não há lugar para os
sujeitos da linguagem, uma vez que pregavam um modelo de comunicação ideal
“locutor-ouvinte ideal”, poderia se afirmar que, na relação discursiva entre
texto e aluno, os valores morais impregnados na obra pelo autor permaneceriam
os mesmos ao serem interpretados pelo sujeito. No entanto, ao considerarmos
a relação dialógica, já aqui mencionada, entre literatura e a sociedade, e que
envolve a capacidade de se trabalhar com elementos extrínsecos e intrínsecos,
o professor não pode assegurar que a interpretação da moral que a criança faz
seja a mesma que a história sugere. Há de se considerar também que na relação
autor-texto-leitor, existe o que Vigotski denomina de “psique” que, segundo o
autor, é fator determinante para a compreensão da obra.

Na fabula [de Krilov] A cigarra e a formiga, a simpatia das crianças foi provocada
pela despreocupada e poética cigarra que cantava durante todo o verão, e a res-
ponsável e tediosa formiga lhes pareceu odiosa; na opinião delas, toda a fábula
tinha a ver com a obtusa e arrogante avareza da formiga. Os resultados esperados
não foram alcançados de novo e, em vez de inspirar nas crianças respeito pela

272
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

diligência e pelo trabalho, a fábula lhes inculcou a alegria e a beleza de uma vida
fácil e despreocupada. (VIGOTSKI, 2003, p. 226)

Quanto à utilização do texto literário para fins pedagógicos, observa-


se a literatura a serviço da ampliação de conhecimentos cognitivos dos educan-
dos, nas disciplinas das mais diferentes áreas de conhecimento. É comum a pre-
sença da arte nas aulas de História como fonte de informações acerca do con-
texto social de algum período histórico. Trata-se de uma atividade em que o
texto literário serve de base para estudo e compreensão da sociedade, esque-
cendo-se da natureza da vivência estética. “Esse critério baseia-se na falsa no-
ção de que a literatura constitui uma espécie de cópia da realidade”. (VIGO-
TSKI, 2003, p. 228)
A utilização de obras literárias para compreender uma comunidade ou
determinado grupo social, bem como para identificar problemas sociais de um
povo em uma determinada época, embora tenham demonstrado alguma contri-
buição no processo de ensino e aprendizagem de fatos históricos, não devem
ser uma recomendação ao professor, pois “quando se estuda a sociedade con-
forme as imagens literárias, sempre se assimilam formas falsas e distorcidas,
porque a obra de arte nunca reflete a realidade em toda a sua plenitude e em
toda a sua verdade”. (VIGOTSKI, 2003, p. 228)
No que se refere ainda ao emprego da obra de arte para o desenvolvi-
mento da cognição do educando, poderíamos citar como exemplo, a exploração,
no texto literário, de palavras e significados, interpretação de elementos explí-
citos no texto, tais como o nome do autor, personagens, moral da história e até
mesmo o aprendizado de regras gramaticais. Tem-se aqui um caminho inverso
à proposta de ensino estabelecida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Lín-
gua Portuguesa (1997), quanto à literatura em sala de aula.

A questão do ensino da literatura ou da leitura literária envolve, portanto, esse


exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositi-
vas que matizam um tipo particular de escrita. Com isso, é possível afastar uma
série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos
literários, ou seja, tratá-los como expedientes para servir ao ensino das boas ma-
neiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos gramaticais,
das receitas desgastadas do “prazer do texto”, etc. Postos de forma descontex-
tualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de lei-
tores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a ex-
tensão e a profundidade das construções literárias. (BRASIL, 1997, p. 30)

Por último, têm-se nas escolas a utilização do texto literário para des-
contração e divertimento, sendo então tais momentos definidos como momen-
tos de leitura-deleite. Trata-se de uma atividade que não valoriza as especifici-
dades do texto literário e que remete o ensino da literatura à função de arte
como brincadeira. Nesse contexto, as leituras são rápidas, de textos curtos, haja

273
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

vista não se reconhecer a capacidade do aluno em interpretar e compreender a


leitura. Assim, não oportuniza à criança a possibilidade de reconhecer na obra
a natureza da vivência estética que envolve discutir a especificidades do texto
literário, sua forma de escrita e singularidades. Ao tratar o texto literário como
brincadeira e entretenimento a escola não faz “justiça nem ao cuidado, à perícia
e planejamento do artista nem à seriedade e importância do poema”
(WELLEEK; WARREN, 2003, p. 24)

AS CONTRIBUIÇÕES DO TEXTO LITERÁRIO PARA O ENSINO

As concepções de linguagem que norteiam o ensino da língua materna


se pautam nos conceitos de interação e comunicação, com vistas a contribuir
para o desenvolvimento do educando em todos os seus aspectos. Entretanto,
ainda se percebe um ensino pautado em concepções cujas habilidades espera-
das, muitas vezes, restringem-se à mera interpretação de informações explíci-
tas no texto, desconsiderando, portanto, a capacidade de imaginação e subjeti-
vidade do leitor frente ao texto literário.
Como já explanado nesse texto, a literatura “é quase sempre empre-
gada como um pretexto para o ensino de conteúdos programáticos e destituída
da sua dimensão estética” (BAPTISTA, 2016, p. 88), ou apenas como mais uma
das atividades que compõem a rotina permanente a ser cumprida diariamente,
sendo utilizada em momentos de leitura-deleite, dentro de uma relação de pro-
fessor-leitor e aluno-ouvinte, ou seja, reduzindo o ato da linguagem ao “feito de
um ‘locutor-ouvinte ideal’ e de um processo simétrico entre aquele que o pro-
duz e aquele que o recebe e o decodifica” (CHARAUDEAU, 2001, p. 27); com
isso, desconsiderando a essência do texto literário e as infinitas possibilidades
e contribuições que este pode oferecer a professores e alunos. No tocante a este
assunto, Vigotski afirma:

Entre esses dois pontos extremos situa-se uma série de critérios moderados so-
bre o papel da estética na vida infantil, a maioria dos quais tende a reduzir o
significado da estética ao entretenimento e ao gozo. Embora alguns valorizem o
sentido sério e profundo da vivência estética, quase nunca se fala da educação
estética como um fim em si mesmo, mas apenas como um meio para obter resul-
tados pedagógicos, alheios a estética. Essa estética a serviço da pedagogia sem-
pre realiza funções alheias e, de acordo com a ideia de alguns pedagogos, deve
servir de meio para a educação do conhecimento, do sentimento ou da vontade
moral. (VIGOTSKI, 2003, p. 225)

É nesse contexto que se propõe a utilização do texto literário em sala


como uma forma de fortalecer a formação de comunidades leitoras nas escolas,

274
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

bem como contribuir para superação de práticas de leitura enraizadas no coti-


diano. Aquelas nas quais o texto literário desempenha funções alheias à sua na-
tureza literária, servindo como recursos para ensinamentos morais ou com fi-
nalidade pedagógica de aprendizagem de conceitos ortográficos e gramaticais
ou sendo fonte para abordagem de problemas e temáticas sociais.A este res-
peito, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1997), ao discor-
rerem sobre a leitura em sala de aula, afirmam que:

É importante que o trabalho com o texto literário esteja incorporado às práticas


cotidianas da sala de aula, visto tratar-se de uma forma específica de conheci-
mento. Essa variável de constituição da experiência humana possui proprieda-
des compositivas que devem ser mostradas, discutidas e consideradas quando se
trata de ler as diferentes manifestações colocadas sob a rubrica geral de texto
literário. (BRASIL, 1997, p. 29)

Assim, a partir do conceito e função de literatura apresentado por


Wellek e Warren (2003), das discussões acerca da educação estética, propos-
tas por Vigotski (2003), bem como dos PCNS (1997) de Língua Portuguesa e de
alguns estudiosos que discutem a importância da leitura literária no contexto
escolar, apresentam-se aqui algumas das contribuições que o trabalho com o
texto literário, em sala de aula, pode oferecer aos sujeitos do processo de en-
sino-aprendizagem.
Uma das contribuições do texto literário para o ensino se dá à medida
que o professor repensa sua prática e vê na leitura literária uma atividade im-
portante a ser desenvolvida pelas crianças. Esse tipo de leitura que Baptista et
al (2016, p. 90) definem como “leitura da linguagem verbal utilizada de forma
artística, ou a leitura estética da palavra” só pode ocorrer à medida em que a
criança seja um sujeito ativo. Por meio da leitura literária a criança se posiciona
como sujeito leitor para compreender e expressar-se de maneira singular.

Dentre todas as formas de leitura a serem postas em prática entre docentes e


crianças nas instituições educacionais, a leitura literária tem um espaço irrefu-
tável, pois é nessa forma de leitura que o sujeito leitor tem seu lugar mais desta-
cado. A leitura literária, que é a leitura da linguagem verbal utilizada de forma
artística, ou a leitura estética da palavra, somente pode se produzir se o trabalho
do leitor for o de sujeito ativo, que busca a compreensão do texto de forma par-
ticular, singular, sua própria. Nessa leitura, destaca-se o lugar do sujeito leitor
que, após compreender ativamente, é capaz de expressar essa sua compreensão
particular, o que permite que também possamos definir a leitura literária como
uma forma de socialização importante. Por meio de um trabalho com a lingua-
gem, compreende-se e se expressa essa compreensão em interações com o outro,
o que produz efeitos específicos não apenas sobre os sujeitos aprendizes, como
também sobre a própria linguagem. Depois de momentos reflexivos sobre a lin-
guagem, esta não será a mesma. É no trabalho de sujeitos leitores sobre sua com-
preensão e de sujeitos reflexivos sobre sua expressão que a língua vai se mo-
dificando. (BAPTISTA et al 2016, p. 90)

275
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

No que se refere à leitura e interpretação de textos no contexto escolar,


a leitura literária nas salas de aula possibilitará um ensino em que a crianças
possam ultrapassar o campo da decodificação de palavras, frases e textos, bem
como o da compreensão do significado do texto por meio da busca de informa-
ções explícitas na estrutura textual. A leitura literária possibilita ao educando
uma interpretação que se sobrepõe a decodificação e compreensão, pois o ins-
tiga a estabelecer relação com o seu conhecimento de mundo e a produzir novos
sentidos, posto que a leitura literária permite uma interpretação nos campos
semântico e discursivo.
Analisando os dados estatísticos apresentado pelo Observatório do
Plano Nacional de Educação (PNE), Meta 5, que diz respeito à leitura e escrita
nos três primeiros anos do Ensino Fundamental Séries Iniciais, tem-se em nú-
meros este caminho a ser trilhado pela educação brasileira. Com relação à apren-
dizagem em leitura, até 2016, 45,3% de alunos do 3º ano EF estavam com apren-
dizagem adequada, já na escrita o percentual de 33,9% das crianças do 3º ano EF
ainda não apresentavam aprendizagem adequada. Trata-se de um cenário edu-
cacional em que a literatura poderá oferecer importantes contribuições, uma vez
que a leitura de textos literários possibilitará um ensino em que o aluno não se
limite apenas ao campo da codificação e decodificação das palavras.

Quando são lidas histórias ou notícias de jornal para crianças que ainda não sa-
bem ler e escrever convencionalmente, ensina-se a elas como são organizados,
na escrita, estes dois gêneros: desde o vocabulário adequado a cada um, até os
recursos coesivos que lhes são característicos. Um aluno que produz um texto,
ditando-o para que outro escreva, produz um texto escrito, isto é, um texto cuja
forma é escrita ainda que a via seja oral. Como o autor grego, o produtor do texto
é aquele que cria o discurso, independentemente de grafá-lo ou não. Essa dife-
renciação é que torna possível uma pedagogia de transmissão oral para ensinar
a linguagem que se usa para escrever. (BRASIL, 1997, p. 28)

O texto literário pode também fornecer a professores e alunos a possi-


bilidade de superar a noção de educação estética visando apenas ensinamento
de valores morais, superando tais ensinamentos para o campo da representação
estética dos sentimentos. Esta é uma possibilidade de trabalhar nas salas de
aula a expressão dos sentimentos, sejam eles sentimentos bons ou ruins, por
meio da literatura. “Se a literatura trata da experiência humana, então ela re-
presentará esteticamente sentimentos nem sempre traduzíveis. Aí está a sua
arte”. (BAPTISTA et al, 2016, p. 99)
Outra contribuição que a literatura em sala de aula pode oferecer para
as crianças é a possibilidade de se desenvolver a escrita por meio da leitura pra-
zerosa de textos cuja linguagem, muitas vezes, privilegie a norma culta. Do
mesmo modo, em que, na leitura literária, a criança se torna sujeito leitor ativo,
assim ocorre na produção escrita fundamentada na leitura de textos literários,

276
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

o sujeito assume o papel de sujeito escritor no processo de ensino e aprendiza-


gem. Dado que o texto literário sugere a possibilidade de a criança ver a escrita
também como algo prazeroso, em que ela pode refletir e modificar a realidade.
Araújo (2016, p. 51) diz que o estudo da literatura “é capaz de transformar o
indivíduo em um sujeito ativo, responsável pela sua aprendizagem, que sabe
compreender o contexto em que vive e modificá-lo de acordo com a sua neces-
sidade”.

277
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Luzia Anália de. O texto literário como ferramenta para a aprendizagem da es-
crita. 2016. 148f. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras – Profletras/CN) –
Centro de Ensino Superior do Seridó, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2016.

BAPTISTA, Mônica Correia; BARRETO, Angela Rabelo; CORSINO, Patrícia; NE-


VES, Vanessa Ferraz Almeida; NUNES, Maria Fernanda Rezende. Leitura literária
entre professoras e crianças. In.: Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Básica. Ser docente na educação infantil: entre o ensinar e o aprender. Brasília: MEC/SEB,
2016.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: lín-


gua portuguesa / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: 1997.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In.: MARI, H. et alii.
Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise
do Discursos – FALE/UFMG, 2001. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/
padrao_cms/documentos/nucleos/nad/CHARAUDEAU%20-%20Uma%20Teo-
ria%20dos%20sujeitos%20da%20Linguagem.pdf> Acesso em 01 de maio de 2019.

HOUAISS, Instituto Antônio. Minidicionário Houaiss de Língua Portuguesa. 2. ed. Rio


de Janeiro: Objetiva, 2004.

PNE, Plano Nacional de Educação. Meta 5 – Alfabetização. Observatório do PNE.


Disponível em: http://www.observatoriodopne.org.br/indicadores/metas Acesso
em: 12 de junho de 2019.

VIGOTSKI, Liev Semionovich. Psicologia pedagógica.Trad. Claudia Schilling. Porto


Alegre: Artmed, 2003.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos lite-
rários. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

278
PERCURSO HISTÓRICO DOS CURSOS DE LETRAS NO BRASIL
E OS MODELOS DE UNIVERSIDADES

Osalda Maria Pessoa1

Introdução

Para Fonseca (2013) “as políticas públicas são ações voltadas ao bem-
estar social, não são neutras nem consensuais, mas arenas de disputas” (p. 39).
Não são estáticas, são conjunturais, descontínuas, sendo que sempre haverá
uma estreita relação entre a política pública desenvolvida no Brasil e seu res-
pectivo subsistema político. Pensando nesta estreita relação, as políticas públi-
cas para o ensino de Letras no Brasil, têm seguido o bojo do subsistema político
vigente como se discorrerá durante este trabalho. Ainda é preciso repensar fi-
nanciamentos e projetos sociais que atendam às condições reais de acesso e
permanência dos estudantes nas IES públicas, a fim de se alcançar uma educa-
ção e uma sociedade mais inclusiva para todos. Os órgãos de fomento às pes-
quisas (Bancos, Fundações, ONGs) recomendam em seus projetos que o mo-
delo de “universidade de pesquisa” não é viável para países em desenvolvimento
como o Brasil e sugerem em seu lugar a criação das chamadas “universidades de
ensino”. Ademais, neste novo formato, a demanda deveria, majoritariamente,
ser suprimida por instituições particulares (modelo profissional de gestão),
privatizando o sonho de toda uma geração que não dispõem de recursos para
custear as mensalidades de uma educação superior pública.
A seguir, abordar-se-á o histórico de criação dos cursos de Letras no Brasil e o
surgimento dos modelos de universidades, articulando-se os contextos históricos
que orientam as concepções de universidades existentes no Brasil, para que se
possa caracterizar o tipo de gestão universitária que predomina no nosso país e na
UESPI, atualmente, com base em Souza e Soares (2013), dentre outro/as auto-
res/as. Para tanto, serão desenvolvidos os seguintes tópicos: i) caracterização do
modelo centralizador e patrimonialista de gestão: da Colônia à República; ii) re-
lato da criação dos primeiros Cursos de Letras no Brasil: as FFCL nos moldes na-

1
Mestra em Ciências da Educação do Instituto Pedagógico Latino-Americano Y Caribeño de Havana
– Cuba; Doutora em Ciências da Educação da Universidad Internacional Tres Fronteras – Asunción -
PY; Doutoranda da Universidad Internacional Iberoamericana do México.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

poleônico e humboldtiano e iii) as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Lín-


guas, visando a cumprir com os objetivos propostos para estes estudos. Este Dos-
siê foi realizado através de consultas a bibliografias, análises de documentos,
como: Projeto de Desenvolvimento Institucional – PDI (2012-2016), Projeto Peda-
gógico do Curso de Letras Português (2012-2015), Leis, Decretos e Diretrizes Cur-
riculares dos Cursos de Línguas, em uma abordagem quali-quantitativa. Foi apli-
cada uma entrevista estruturada ao Reitor e Pró-Reitores da UESPI sobre os mo-
delos de universidades.
Como contribuição coloca-se que os modelos obsoletos de gestão tendem
a uniformizar tendências, paradigmas. Como exemplo deste modelo destaca-se o
franco-napoleônico, que se caracteriza por uma organização não universitária,
profissionalizante, centrado em cursos e faculdades, visando à formação de buro-
cratas para o desempenho das funções do Estado. Este modelo de gestão tecnicista
(taylorista) centra-se na concepção de Universidade com base na transmissão do
saber acumulado pela humanidade e que tem como premissa a neutralidade da
ciência e a dissociação entre ensino, pesquisa e extensão, como atividades incom-
patíveis entre si.

Caracterização do modelo centralizador e patrimonialista de gestão:


da Colônia à República

Somente após três séculos de domínio português foram criadas as pri-


meiras escolas para a preparação de profissionais do ensino superior no Brasil.
Desde o modelo centralizador, patriarcal de gestão das IES - da Colônia à Re-
pública, o processo de ensino e aprendizagem dos Cursos de Letras do país
sempre apresentou lacunas, mesmo havendo financiamento, o problema residiu
sempre na forma de gestão, que herdamos da estrutura de poder patrimonia-
lista do Estado Português, desde o colonialismo (XV) até os anos 80 do século
XX sob a égide dos capitais econômico, simbólico e cultural, propostos por
Bourdieau & Passeron (1989). A problemática da centralização e descentrali-
zação refere-se à formulação de políticas educacionais, à organização do sis-
tema educacional como um todo, ao desenho curricular, “à administração da
educação, incluindo o seu sistema de pessoal, de remuneração e da responsabi-
lidade de prover infraestrutura” (SANDER, 1988, p. 54)
A rigor, a estrutura centralizadora, patrimonialista e institucional da Colônia
foi reforçada em 1808 (século XIX), perpassando a República, dentro de um pro-
cesso maior de centralização do poder. Este pensamento também repercutiu na
elaboração e execução das políticas educacionais da época, no currículo e no en-
sino das primeiras Letras no Brasil. Para Azevedo (2010, p. 15) “as políticas públi-

280
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

cas representam a materialidade da intervenção do Estado”. Assim, a política edu-


cacional é parte de uma totalidade maior, que deve ser pensada em sua articulação
com o planejamento mais global que a sociedade constrói, sendo realizada através
da ação do Estado. Desta forma, são as políticas públicas que dão materialidade e
visibilidade ao Estado, quando o Estado entra em ação. A falta de intersetoriali-
dade e cooperação nas IES faz com que os Planos e Programas sejam pontuais e
fragmentários, não apresentando soluções e avanços significativos na área de ges-
tão educacional.
O que se entende é que não há política pública neutra, logo encontra-
remos ideologias, valores e perspectivas teóricas que podem completar-se ou
antagonizar-se. Em se tratando de forças antagônicas, concorrenciais, os soció-
logos franceses Bourdieux & Passeron (1989, p. 16) na obra Eléments pour une
théorie de la violence symbolique abordaram a teoria dos campos. “O campo é estru-
turado a partir das relações de poder, distribuídas entre posições dominantes e
posições dominadas, de acordo com os capitais econômico, simbólico e cultural
dos agentes e instituições”
A maioria da população brasileira à época era formada por intelectuais
da Colônia e do Império, vindos de Portugal, logo no Brasil ainda não se possuía
capital simbólico, capital cultural e capital econômico, para impormos a defi-
nição de um mundo social conforme nossos interesses. A organização social do
trabalho de acordo com a classe dominante fazia com que a Casa do Senhor de
Engenho de Açúcar fosse o centro de todas as atenções do poder. A autoridade
exercida sobre a Casa e o feudo não era um poder de ordem privada, mas de
ordem pública e política.
A comunidade política na Colônia e Império conduzia e comandava no
consensus, visão homogênea de poder, sem forças concorrenciais supervisionava os
negócios, como negócios privados seus, sendo que na origem eram negócios públi-
cos; o monarca ostentava símbolos do poder que eram símbolos do poder público
porque não havia separação nítida entre público e privado e não se tinha como
fazer uma forte oposição nos campos simbólico e cultural, visando à ruptura do
poder vigente; na verdade, as classes antagônicas e as forças concorrenciais esta-
vam em processo de formação, a exemplo neste período, no Brasil, vivia-se a lite-
ratura de viajantes, os tratados sobre a natureza das terras brasílicas, uma litera-
tura ainda de cunho lusitanizante, sob os auspícios da visão durkheimiana.
No Brasil Colônia, os jovens eram enviados para estudar nas universi-
dades europeias, principalmente em Coimbra, Portugal. Em 1808, com a che-
gada da Corte Portuguesa no Brasil, registrou-se a criação das primeiras escolas
isoladas de educação superior, concebidas à luz do modelo napoleônico, centrado

281
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

em cursos e faculdades, estruturadas de forma independente e não propria-


mente a partir de uma concepção de universidade. Para Trindade (1998, p. 112)
“o modelo centralizador do ponto de vista administrativo, era um importante
mecanismo para formar os profissionais necessários à burocracia do Estado ”,
que também servia como um instrumento para disseminar as doutrinas vigen-
tes. Em sua organização administrativa, tratava-se de um modelo de universi-
dade fragmentado, centrado no ensino. Teixeira (1999, p. 83) relata “que a Es-
panha criou universidades em suas Colônias – eram 27 ao tempo da Indepen-
dência”, com o objetivo de formar profissionais indispensáveis ao processo de
expansão de suas possessões, enquanto Portugal quase não permitiu o ensino
superior em terras brasileiras.
Segundo Teixeira (1989, p. 45), “o Brasil nasceu sob a influência de
uma classe intelectual que trazia consigo, além da paixão pelas Letras, o pres-
tígio do poder e da influência”. Embora o país não tivesse formalmente uma
Universidade, para todos os efeitos ela existiu com os Colégios dos padres je-
suítas e com os estudos menores em Letras: Gramática, Retórica, Poesia, Latim,
Grego e Hebraico, com predominância do Latim como língua de cultura, estu-
dos estes que eram continuados na Universidade de Coimbra até o começo do
século XIX, direcionados aos filhos dos dirigentes da Colônia e do Império, que
objetivavam construir o capital cultural da classe dominante.
Na modernidade, instaurou-se uma nova ordem, a separação entre Es-
tado (nobreza) x burguesia industrial. Aconteceu uma relação de oposição entre
sociedade civil (burguesia) e o Estado (nobreza). Para Bourdieux & Passeron
(1989, p. 10) as produções simbólicas como instrumentos de dominação “cum-
prem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da
dominação de uma classe sobre a outra”. Neste sentido, a implantação do en-
sino superior no Brasil e dos primeiros cursos demorou acontecer diante de ta-
manha centralização do poder e da legitimação da classe dominante.
Cabe destacar que o Brasil nunca teve um modelo próprio de Universi-
dade, valendo-se sempre de exemplos e de experiências dos países centrais, po-
dendo-se constatar, nos dias atuais, uma superposição de modelos de gestão en-
tre as IES públicas e privadas, sendo que o primeiro Bacharelado em Letras no
Brasil foi inaugurado no Colégio Pedro II, em 1837. Na década de 1940 (século
XX), a pressão pela expansão do ensino já era extremamente forte. O Bachare-
lado em Letras do Colégio Pedro II durava três anos, seguido de um ano de Di-
dática para a Licenciatura (título profissional do Magistério). O curso de Letras
era dividido em três modalidades: Letras Clássicas, de onde vinha o Português
como objeto de habilitação; Letras Neolatinas e Letras Anglo-Germânicas.
De acordo com os estudos de Campos (2010) e Cunha (2012) somente
em 1920, tardiamente, foi criada a Universidade do Rio de Janeiro pelo Decreto

282
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Federal nº 14.343, de 07 de setembro de 1920, no governo de Epitácio Pessoa, a


primeira do país, sendo que reuniu uma confederação de escolas: Medicina, Di-
reito, Odontologia, Engenharias, porque ainda não existiam universidades com
marco regulatório definido.
De acordo com Anastasiou (2011, p. 125) “esses cursos concebidos sob
a ótica da ciência positivista delimitavam, rigidamente, os campos do conheci-
mento, apresentavam-se desintegrados e independentes”. Até hoje, este modelo
de inspiração napoleônica influencia as universidades brasileiras em relação à
oferta de Cursos e Programas. A Universidade de São Paulo – USP - criada pelo
decreto nº 19.851 de 04 de abril de 1934, foi a primeira a ser organizada conforme
as normas do Estatuto das Universidades Brasileiras, que instituia o regime
universitário e seus fins.
De acordo com o que propõe Romanelli (2005, p. 108), autor do refe-
rido Estatuto, no Art. 1º, os fins do ensino universitário eram: “estimular a in-
vestigação científica em quaisquer domínios dos conhecimentos humanos; ha-
bilitar para o preparo técnico e científico superior; concorrer, enfim pela edu-
cação do indivíduo e da coletividade e pelo aproveitamento de todas as ativida-
des universitárias”. Neste mesmo Estatuto afirmava-se que era obrigatório pelo
menos três dos seguintes cursos para a constituição de uma Universidade: Di-
reito, Medicina, Educação, Ciências e Letras.

Relato da criação dos primeiros Cursos de Letras no Brasil: as FFCL nos


moldes napoleônico e humboldtiano

A partir de 1808 foram criadas Escolas isoladas de educação superior,


concebidas à luz do modelo napoleônico, centrado em cursos e faculdades inde-
pendentes e não propriamente com base na concepção de uma universidade le-
gitimamente estruturada. Neste tópico, pretende-se informar da criação dos
primeiros Cursos de Letras no Brasil nas FFCL, nos moldes napoleônico e hum-
boldtiano. Para Trindade (1998, p 112) “o modelo centralizador do ponto de
vista administrativo, era um importante mecanismo para formar os profissio-
nais necessários à burocracia do Estado sem focar a pesquisa e a extensão nas
IES”. Foram criados os cursos de Medicina no Hospital Militar do Rio de Ja-
neiro em 05 de novembro de 1808 e o de Engenharia em 04 de dezembro do
mesmo ano na Academia Real Militar. Em 1920, tardiamente, foi criada a Uni-
versidade do Rio de Janeiro pelo Decreto Federal nº 14.343, de 07 de setembro
de 1920, a primeira do país.

283
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A Universidade de São Paulo – USP somente foi criada em 1934 pelo


decreto nº 19.851 de 04 de abril. À época, a USP apresentava a novidade de pos-
suir uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) como um “centro
integrado de busca e de crítica do saber, sob a inspiração do modelo germânico
humboldtiano, pautado na concepção da indissociabilidade entre o ensino, pes-
quisa e extensão” (TRINDADE, 1998, p.119). Pimenta e Anastasiou (2012) ca-
racterizam bem este novo modelo emergente de universidade:

“Autonomia ante o Estado e a sociedade civil; busca desinteressada da verdade


como caminho do autodesenvolvimento e autoconsciência; atividade científica
criativa, sem padrões estabelecidos; caráter humanitário da atividade científica;
processo cooperativo entre os docentes e entre estes e os discentes; docência
como atividade livre; associação cooperativa entre professores e alunos sem
forma exterior de controle e organização acadêmica” (p. 151).

Por quase três décadas, de 1934 a 1957, a Faculdade de Filosofia, Ciên-


cias e Letras da USP resistiu a pressões tal qual um estado dentro do Estado.
Desprovido de legítimo poder político este “modelo acabou por ceder a um
aglomerado de escolas, incorporando traços do modelo napoleônico profissio-
nal” (Sguissard, 2004, p.65). Em 1934, torna-se concreto o Projeto da USP, no
governo Vargas, no qual os objetivos foram de desenvolver a cultura filosófica,
científica, literária e artística, isto é, investigações de altos estudos, de cultura
livre e desinteressada. “Desenvolver pesquisas desinteressadas contradizia a
concepção positivista napoleônica, que influenciou a educação brasileira até
então” (D’ AMBRÓSIO, 2010, p. 93).
Já nos anos 50, a USP ocupava um papel de destaque no panorama cul-
tural brasileiro, com as finalidades de preparar trabalhadores intelectuais para
o exercício de altas atividades culturais e docentes para o magistério do ensino
básico e superior. Merecem destaque pelas suas contribuições, outras Faculda-
des de Filosofia, Ciências e Letras que emergiram neste mesmo período no país
como narram Fialho & Fidelis (2008 s./p.), na Revista História do Ensino de Línguas
no Brasil, a saber:
• Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná (26.02.1938), mantida pelos
maristas;
• Pontifícia Universidade Católica de São Paulo–PUC, em 1946;
• Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – 1948;
• Faculdade Católica de Filosofia do Piauí - FAFI - foi criada em 1957 sob os aus-
pícios da Igreja Católica.
A criação da FAFI foi importante porque contribuiu para a fundação da Uni-
versidade Federal do Piauí em 1968, através do Decreto nº 5.528 de 12 de novem-
bro. Rego e Magalhães (1991) explicitam sobre os fins da FAFI:

284
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A faculdade Católica de Filosofia do Piauí instituída pela Sociedade Piauiense de


Cultura, em reunião de 16 de junho de 1957, tem por fins: a) Formar professores
para o curso secundário normal; b) Dar aos estudantes ensejo de se especializa-
rem, conforme suas aptidões individuais; c) Colaborar com institutos oficiais con-
gêneres para difusão da alta cultura intelectual do Brasil e d) Realizar pesquisas
nos vários domínios da cultura que constituem objeto de seu ensino. (p. 37)

Diante deste percurso histórico e dossiê cabe destacar a criação da Uni-


versidade Estadual do Piauí, em 1984, “mantida pela Fundação de Apoio ao Desen-
volvimento da Educação do Estado do Piauí” conforme os dados do Plano de
Desenvolvimento Institucional (PDI, 2012-2016, p. 11), sendo que em 1986 rea-
lizou-se seu primeiro Vestibular com os cursos de Pedagogia, Matemática, Bi-
ologia, Letras Português, Letras Inglês e Administração. Iniciou seus cursos de
Letras Português e Inglês em 1986, respaldada no modelo napoleônico, haja
vista a não obrigatoriedade de apresentar uma estrutura consolidada de ensino,
pesquisa e extensão, ou seja, propriamente de universidade.
Na sequência, apresentam-se as características principais dos mo-
delos de universidade, elaborados por Souza e Soares (2013):

Figura 02: Modelos de universidades no Brasil

Fonte: Sousa e Soares 2013, p. 223. In: Revista GUAL, Florianópolis, v. 6, n. 4, UFSC.

285
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

As autoras concluem que o modelo francês -corrente funcionalista - ne-


gligencia a pesquisa, a primazia é pelo ensino ministrado pelas universidades,
que seriam como aglomerados de Faculdades independentes, academicamente.
Nesta corrente, a universidade seria, sobremaneira, uma instituição de forma-
ção profissional, coletiva, sociopolítica e socioeconômica de controle externo
ditado pelo Mercado e Estado.
A corrente idealista do alemão Humboldt postula uma educação geral vol-
tada para o desenvolvimento do intelecto: ensino e pesquisa como núcleos cen-
trais; liberdade e autonomia acadêmicas para a produção do conhecimento puro e
independente de influências externas.
A corrente americana mescla valores do modelo francês com a característica
da universidade estar fortemente ligada à sociedade (extensão). No Brasil, a inser-
ção deste terceiro elemento do tripé (extensão universitária), só veio ocorrer com
a Reforma Universitária estabelecida pela Lei nº 5.540 de 1968, no seu artigo 20:
“as universidades e as instituições de ensino superior estenderão à comunidade,
na forma de cursos e serviços especiais, as atividades de ensino e os resultados da
pesquisa que lhe são inerentes”. As Universidades através de sua gestão e políticas
têm que concretizar as três funções, organicamente associadas (o que a maioria
não consegue porque demanda infraestrutura e financiamento), além de cumpri-
rem as exigências do corpo docente titulado e contratado em regime de dedicação
exclusiva com produção intelectual qualificada.
Aprofundando as análises sobre a caracterização dos modelos de gestão uni-
versitária no Brasil e na UESPI, os gestores maiores (08 membros, grupo I) foram
inquiridos na Entrevista, na questão 02, a este respeito. Enumerando-se as respos-
tas por ordem de ocorrência (1ª, 2ª e 3ª posição), em que os modelos se aplicam à
UESPI, observaram-se os seguintes resultados pelo Gráfico Nº 01.
Gráfico 01: Modelos de gestão universitária da UESPI na visão dos gestores maiores

1ª POSIÇÃO - MODELO
23,53% FRANCO NAPOLEÔNICO
47,06%
2ª POSIÇÃO - MODELO
29,41% NEOHUMBOLDTIANO

3ª POSIÇÃO MODELO
NEOPROFISSIONAL

Fonte: Entrevista semiestruturada (Questão 02). Elaborada pela Pesquisadora.

286
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O modelo franco-napoleônico que visa formar diplomados focados no ensino,


para promover o desenvolvimento social, ocupa a 1ª posição com 47,06% de 08
(oito) respostas dadas. O modelo neo-humboldthiano que propõe produzir pes-
quisas puras e formar cidadãos comprometidos, mas livres das influências do Estado e do
Mercado, ocupou a 2ª posição com 29,41% das 05 respostas obtidas. O modelo
neoprofissional descrito, anteriormente, centrado nas atividades de extensão, obteve
apenas 04 (quatro) respostas, alcançando 23,53%, dentre as práticas dos mode-
los de gestão. Ainda, sobre a este respeito, no próprio texto do Projeto Pedagó-
gico do Curso de Letras Português (2012) foi encontrada a seguinte afirmação:

Para alterar fortes resquícios da metodologia jesuítica e do modelo organizacio-


nal francês que ainda impede o processo dialético de construção do conheci-
mento, novas regulamentações e experiências positivas, ainda que incipientes,
são disponibilizadas no PPC de Português, como forma de contribuir para o en-
frentamento das dissociações teórico-práticas com respeito à pesquisa como
ponto de partida (p. 10)

Observou-se que a UESPI funciona apoiada no modelo francês, porém


há evidências do modelo alemão ser ampliado e, como consequência, também o
modelo neoprofissional. Para Pimenta e Anastasiou (2012, p. 151) a pesquisa
ocupa dois espaços de atuação: “os Institutos, visando à formação profissional
e os Centros de pesquisa, que seriam regidos por situações essencialmente
opostas ao modelo francês”. Esta separação entre quem faz pesquisa e quem faz
ensino no Brasil ainda perdura, quando se determina que as Universidades e os
Centros Universitários por lei devem realizar o ensino, a pesquisa e extensão,
forçando as Faculdades Isoladas e Integradas e os Institutos Superiores a opção
pelo ensino e extensão.

As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Línguas

A aprovação das Diretrizes dos Cursos de Línguas, através do Parecer nº


292, de 03 de abril, publicado no DOU (2001), de 09/07, Seção 1e, p.50 fez com
que as correntes linguísticas da década de 1980 tomassem fôlego na década de
1990 e começo do século XXI nos currículos de Letras das IES, concebendo a
Universidade não apenas como detentora do conhecimento, mas como instân-
cia voltada para atender às necessidades educativas e tecnológicas da socie-
dade, não podendo ser vista somente como instância reflexa da sociedade e do
mundo do trabalho. Portanto, os Cursos de Letras devem contribuir para o de-
senvolvimento das seguintes competências e habilidades, conforme as Diretri-
zes publicadas no DOU (2001):

287
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

i) domínio do uso da língua portuguesa ou de uma língua estrangeira, nas suas


manifestações orais e escritas, em termos de recepção e produção de textos; ii)
reflexão analítica e crítica sobre a linguagem como fenômeno psicológico, edu-
cacional, social, histórico, cultural, político e ideológico; iii) visão crítica das
perspectivas teóricas adotadas nas investigações linguísticas e literárias, que
fundamentem sua formação profissional. (p. 50)

As Diretrizes firmam-se nas práticas linguísticas que os alunos trazem


ao ingressar nos Cursos de Letras, na inclusão dos saberes necessários ao uso
da linguagem padrão, além do acesso aos conhecimentos para os múltiplos le-
tramentos (linguístico, literário e digital), a fim de constituírem ferramentas
básicas ao desenvolvimento das aptidões linguísticas dos futuros docentes. A
UESPI deve possibilitar através das Diretrizes e dos Projetos Pedagógicos dos
Cursos ofertados em Letras, que seus alunos utilizem a leitura, a escrita e a ora-
lidade com o intuito de se inserirem nos diversos contextos de letramentos crí-
ticos. As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Letras de 2001 (Seção 2e, p.
50) afirmam que os cursos de graduação em Letras deverão ter “estruturas fle-
xíveis que deem prioridade à abordagem centrada no desenvolvimento da au-
tonomia do aluno; promovam a articulação constante entre ensino, pesquisa e
extensão, além de se articular diretamente com a pós-graduação”.

Conclusões

Observa-se que neste percurso histórico dos Cursos de Letras no Bra-


sil, através da criação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, das refor-
mas e dos modelos de gestão universitária implantados, que a apesar do ensino,
pesquisa e preparo para o trabalho constarem em suas bases legais, as univer-
sidades brasileiras vêm perseguindo, desde a sua criação, principalmente obje-
tivos que reforçam a formação profissional que atendem a uma minoria das clas-
ses populares, não consolidando em seus modelos de gestão a tradição de pesquisa.
É importante destacar que a educação superior continua sendo um segmento
voltado para as minorias e se sustenta no bojo do subsistema político vigente,
que fabrica as desigualdades sociais, uma vez que o capital simbólico se volta
para a dominação das classes mais empobrecidas, econômica e culturalmente.
As universidades do século XXI são reflexos dos conflitos que ocorre-
ram em sua estrutura durante todo seu percurso histórico. A Universidade Es-
tadual do Piauí – UESPI surgiu mediante um contexto de crises, massificação
do ensino superior e possibilidades de mudanças visando à formação, para su-
prir o quadro de docentes que iriam e irão atuar na educação básica das escolas
públicas estaduais. A então UESPI, à época de sua fundação, na verdade tinha
estrutura de Faculdade, apenas com as Coordenações de Cursos e somente em

288
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

1991, através de Decreto Federal nº 042 assinado pelo então Presidente Itamar
Franco passou à instituição multicampi e de acordo também com seu atual Es-
tatuto (2005, artigo 16). Com o reconhecimento da maior parte das Licenciatu-
ras e com a criação de Cursos em outras áreas adquiriu status de Universidade
com as Pró-Reitorias de Ensino, Pesquisa, Extensão, Planejamento e Adminis-
tração na Sede e com os Centros e Núcleos instalados no interior do Estado.
Passou por um processo de interiorização e ampliação dos cursos junto ao Mi-
nistério da Educação e Cultura, à sombra do modelo francês, com respingos do
modelo alemão e neoproffisional.
Os atuais gestores maiores devem envidar esforços no sentido de recrutar
recursos humanos altamente qualificados e captar recursos financeiros tanto
nas esferas federal e estadual como das empresas privadas e de doações de pes-
soas jurídicas (Estatuto da UESPI, 2005, artigo V, incisos de I a VII), para co-
locar a UESPI nos patamares de ensino-pesquisa-extensão desejáveis, a fim de
se atender às demandas de seu entorno, em âmbito nacional e internacional,
visando à superação de seus reptos.
Neste contexto, a educação superior pública deve continuar posicionando-se
com maior pertinência social, de maneira que mediante a produção de conheci-
mentos possa articular melhores projetos sociais para o contexto ao qual se deve
como IES e por sua vez merece refletir de maneira propositiva sobre as condições
reais de acesso e permanência para as camadas populares que ocupam um deter-
minado espaço educativo, com o propósito de alcançar uma educação e uma soci-
edade mais inclusiva para todos.

289
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, J. M. L. (2010). Educação como política pública. Campinas, São Paulo,


Brasil: Autores Associados.

BOURDIE, P. & PASSERON (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro, Brasil:


Bertrand Brasil

BRASIL/MEC. Decreto 5.528, de 12 de novembro de 1968. Autoriza o PoderExecuti-


voainstituiraUniversidadeFederal do Piauí e dá outrasprovidências. Disponível em:
www.ufpi/arquivos/File/Lei_5528_2012novembro1968_UFPI.pdf.

BRASIL/MEC. Decreto nº 91.851, de 30 de outubro de 1985. Autorizaofuncionamen-


todoscursosdePedagogia,Ciências,LetraseAdministração do Centro de EnsinoSuperior do Pi-
auí. Disponível em http://br.vlex.com/vid.

BRASIL/MEC. Decreto nº 042, de 25 de fevereiro de 1991. Autoriza o funcionamen-


toda Universidade Estadual do Piauí, na modalidade multicampi. Disponível em:
http://vlex.comvid.

BRASIL. MEC/CNE. Parecer nº 292/2001. Institui asDiretrizesCurricularesdaLicenci-


aturaemLetras. Brasília. http://www.portaldomec.gov.br

CAMPOS, E. S. (2010). História da universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil:


EDUSP.

CUNHA, L. A. (2012). A universidade temporã: o ensino superior da colônia à era


Vargas. São Paulo, Brasil: UNESP.

D’AMBRÓSIO, U. (2010). Uma história concisa da matemática no Brasil. Petró-


polis, Rio de Janeiro, Brasil: Vozes.

FIALHO, D. & FIDELIS, L.L (2008). História do ensino de línguas no Brasil. In


RevistaHELB Vol. 1 (2), Ano 2.

PIMENTA, S. G. & ANASTASIOU, L. das G. C. (2012). Docência do ensino supe-


rior. São Paulo, Brasil: Cortez.

290
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

RÊGO, M.P.N.N & MAGALHÂES, M.S.R. (1991).O curso de Letras da UFPI: Um


fio da FAFI. Teresina, Brasil: EDUFPI.

ROMANELLI, R. (2005). A história da educação no Brasil. Petrópolis, Rio de Ja-


neiro, Brasil: Vozes.

SANDER, B. (1988, janeiro/julho). Centralizaçãoedescentralizaçãonaadministra-


çãodaEducaçãonaAméricaLatina. In RevistaBrasileiradeAdministraçãodaEducação.
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, ANPAE, Brasil, V. 6, (1), 53-64.

SGUISSARD, V. A (2004). Universidade neoprofissional, heterônoma e competi-


tiva. In: Favero, M.L. ; MANCEBO, D. (Orgs). Universidade,políticas e avaliaçãodo-
cente. São Paulo, Brasil: Cortez.

SOUZA, J.A.J. ; LOBO, Â. S. ; SOARES, A. C. (2013). Concepções de universidade


no Brasil: uma análise a partir da missão das universidades públicas federais bra-
sileiras e dos modelos de universidade. In RevistaGestãoUniversitárianaAméricaLa-
tina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, V.6, (4), 216-233. Edição Especial. Dis-
ponível: http://www.gual.ufsc.br

TEIXEIRA, A. (1989). Ensino superior no Brasil: Análise e interpretação de sua


evolução até 1969. Rio de Janeiro, Brasil: Fundação Getúlio Vargas.

TEIXEIRA, A. (1999). Educação no Brasil. Rio de Janeiro, Brasil: UFRJ.

TRINDADE, H. (1998). Universidade em perspectiva: Sociedade, conhecimento e


poder. 21ª Reunião Anual da ANPED, no GT: PolíticadeeducaçãosuperiornoBrasil, Rio
de Janeiro, Caxambu, Brasil, setembro de 1998. Disponível http://www.an-
ped.or.br.

UESPI. Atos Normativos. www.uespi.br/site/page id = 25578.

UESPI. DecretoEstadual nº 8.788, de 29 de outubro de 1992, dispõe sobre o funcio-


namento regular da UESPI. Disponível em: www.uespi.br/site?_id=25578

UESPI. DecretoEstadual nº 11.830, de 29 de julho de 2005. Aprova o Estatuto da UE-


SPI e dá outras providências. Publicado no DOE, Nº 151, p. 04. Disponível em:
www.uespi.be/site?id=25578

291
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

UESPI/MEC. PlanodeDesenvolvimentoInstitucional – PDI (2011-2015). www.uespi.br

UESPI. ProjetoPolítico-PedagógicodoCursodeLetrasPortuguês. Centro de Ciências Hu-


manas e Letras. CCHL. 2012 -2016.

292
A CONSTRUÇÃO DO HERÓI MALANDRO EM
MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS (1854)
SOB A ÓTICA DE ROBERTO DAMATTA (1997)

Raimunda Maria dos Santos 1

Introdução

Este artigo traz à tona a questão da representação da malandragem na


literatura brasileira. Embora já discutido por muitos, ainda vale rever conceitos,
ideias ou sondagens, após releituras do objeto de análise, sobretudo quando esta-
mos falando de obras literárias que por sua natureza não se esvaziam.
Na esteira da literatura memorial brasileira entre meado do século XVIII
e início do século XIX encontramos Memórias de um Sargento de Milícias (1854) de Ma-
nuel Antônio de Almeida. A obra escrita entre 1852 - 1853 e publicada em 1854,
moldada para servir ao folhetim – Jornal Correio Mercantil – de ideologia política
liberalista, apresenta-se ao público em capítulos semanais com autoria anônima
(um brasileiro) e só apareceu o nome do autor na terceira edição (1863), postuma-
mente. Temos às vistas um monumento literário da literatura nacional que repre-
senta, pela primeira vez, pelo menos de que se tem notícias, a figura do malandro
e traz em sua feição, lapsos ou fleches da realidade social do Rio de Janeiro com
alguns fantasmas da organização política e econômica, no que tange à figuras joa-
ninas e ao comércio de escravos, por exemplo. Pelo contexto de produção e certas
indicialidades textuais, ambientamos a narrativa numa sociedade marcada, histo-
ricamente, por um ranço de desorganização sociopolítica e econômica. Isso por-
que já é consensual que se trata de uma realidade social desigual que provoca dis-
cussões sobre os dramas sociais vividos, chegando ao nível da representação de
diversos atores e papéis sociais no campo da literatura. E, com o foco na trajetória
do personagem, proponho neste texto, uma discussão em torno da figura do ma-
landro e a ideologia da malandragem que circula na literatura entre os séculos XIX
e XX. Assim, busco esclarecer a seguinte questão: que traços de Leonardinho são

1
Professora Adjunta do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí –
UFPI, doutoranda em Letras Estudos de Literatura do Programa de Pós – Graduação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Quadriênio 2019-2023
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

característicos da malandragem e como é possível recuperar essa figura de malan-


dro sob a ótica de Roberto DaMatta?
Para responder essa pergunta precisei levantar outros questionamentos,
a saber: a) que ideologias de malandragem circulam na crítica literária do século
XIX/XX? b) que parâmetros DaMatta utiliza para analisar malandragem? c) que
tipo de malandragem e de malandro as Memórias revelam sob a lente de DaMatta?
Vale destacar, a priori, que a ideologia de DaMatta é vocacionada à definição do
herói-malandro em conformidade com a curvatura da sociedade. De certo, o crítico
parte do coletivo para o individual e, assim sendo, hipoteticamente, revela-se um
personagem socialmente caricaturado, paradigmal e reconhecidamente nacional.
Uma figura-mito que, mantém certa coerência a dramas que impulsionam o sujeito
a ocupar o lugar intermediário da ordem/desordem na sociedade. Porém, vale con-
ferir a hipótese, observando como Almeida constrói seus personagens, sobretudo,
Leonardinho – o memorando.
De maneira mais clara, o objetivo amplo nesse estudo é investigar como
se constrói a figura do malandro na obra Memórias de um Sargento de Milícias (1854) de
Manuel Antônio de Almeida, sob a ótica de Roberto DaMatta (1997). Para tanto,
adota-se a metodologia bibliográfica para a realização de análises e discussão teó-
rico-literárias, considerando tanto a teoria de DaMatta, quanto as contribuições
de críticos como Antonio Candido (1970), João Fragoso e Manolo Florentino
(2001), Francisco de Oliveira (2012), dentre outros. A investigação dar-se em três
momentos, a saber: i) identificação de concepções de malandragem discutidas en-
tre os críticos dos séculos XIX e XX; ii) caracterização do triângulo equilátero de
ritos ou dramas que DaMatta constrói como fórmula válida para a definição de
figuras paradigmáticas (heróis) representativas de grupos sociais; iii) identifica-
ção do personagem Leonardinho como o malandro das Memórias e da sociedade re-
presentada por Manoel Antônio de Almeida e, por fim; avaliação da figura do ma-
landro na perspectiva de Roberto DaMatta.

Concepções de malandragem no século XIX/XX e o triângulo de ritos de Da-


Matta (1997)

Antes de buscar qualquer entendimento sobre a representação do malan-


dro na literatura brasileira, importa rememorar diálogos teóricos, ainda que breve
e em linhas gerais, que esclarecem o sentido da malandragem. Portanto, a priori,
tem-se o seguinte questionamento: de que malandragem a Literatura se refere e
com qual sentido circula na crítica brasileira do século XIX/XX?
Sem se distanciar do sentido etmo do termo malandragem e do disposto
em dicionários importa-nos compreender que a palavra está ligada ao sentido de
súcia, abuso de confiança ou vagabundagem. Na literatura a figura do malandro

294
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ganha relevo no século XVII, a partir de Dom Quixote. Miguel de Cervantes constrói
seu personagem do tipo anti-cavalheiro, sujeito errante e, evidencia na literatura
espanhola, a relação entre malandragem e picaresca. A tônica da patifaria social
mostra-se na ficção através de um patife, isto é, personagem malandro. Nesse sen-
tido, a representação da sociedade ocorre num jogo astuto de revelação e emenda-
mento da realidade, considerando que o enredo revela as pessoas de bem e des-
mascara os patifes.
Por volta do século XVIII no Brasil, na mesma pauta da liberdade de mui-
tos escravos está o surgimento de malandragem. No início do século XIX, mais pre-
cisamente, entre 1880 e 1930, a malandragem já era associada à música popular bra-
sileira e ao samba com muita força. Entre 1930 e 1945 esse tipo musical chega a ser,
conforme Tiago de Melo Gomes (2007), “extirpado devido à ação do governo Var-
gas e seu potencial subversivo (p. 181)”. Porém, a literatura, justamente com a pu-
blicação das Memórias de um Sargento de Milícias em 1854, dá sinais marcantes de
representação do malandro brasileiro ou carioca, ponderando-se que Manuel An-
tônio de Almeida tenha representado a realidade urbana do Rio de Janeiro dos tem-
pos do Rei. Pondera-se ainda que, quanto à nacionalidade, o atributo brasileiro
neste estudo é usado mais pela repercussão da representação histórico-social da
obra, pois, bem observado como fez o professor Dr. Guto Leite2 em palestra reali-
zada na UFRGS dia 09/12/2019 no evento Formação da Literatura Brasileira promo-
vida pelo PPGLetras, o brasileiro mais provável é mesmo o próprio autor, já que há
controvérsias envolvendo a terra mátria dos demais personagens das Memórias.
Posto isso, pode-se relativar a conduta do malandro na literatura almedi-
ana à luz da crítica. Antonio Candido (1970), por exemplo, suscita duas dinâmicas
ideológicas intrigantes: primeiro a de tomar o sujeito social lusobrasileiro como
brasileiro, segundo, por tomar a parte pelo todo social, ou seja, considerando a
possibilidade do malandro carioca representar o malandro brasileiro, criando uma
genealogia do malandro.
O sentido de malandro que circula na crítica brasileira do século XX, não
recusa as investigações acerca do caráter de um povo e nação, enfim, reflexões que
envolvem a dinâmica de organização histórica e antropológica da sociedade. E,
como não vejo uma dissociação entre Literatura, História e Sociedade, convém
confrontar as contribuições de alguns críticos, começando pela dialética da ma-
landragem de Antonio Candido (1970). O crítico analisa as Memórias à luz da or-
dem e da desordem social, destacando o movimento dos personagens os quais se
apresentam como tradução do lícito e ilícito da sociedade

2
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e do Programa de Pós-Graduação
em Letras – PPGLetras.

295
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é o outro, porque todos acabam
circulando de um para o outro com uma naturalidade que lembra o modo de for-
mação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil ur-
bano da primeira metade do século 19 (CANDIDO, 1970, p. 82).

Para Candido, antes de constituir-se enquanto documentário, o romance


de Almeida tem caráter extremamente social, por “ser construído segundo o ritmo
geral da sociedade (p. 82)”. O livro sugere uma leitura tanto do ponto de vista da
ordem, quanto da desordem, conferindo, por isso mesmo e ainda pelo arranjo es-
trutural da narrativa, o seu caráter real e ficcional, respectivamente. Nas Memórias,
a malandragem é representada com e na obra, aparecendo por vezes mais ou me-
nos visível entre os grupos sociais que a constituem. São núcleos de personagens
que transitam entre a ordem e a desordem. Como entende Roberto Schwarz
(1987), o romance se balança malandramente e, de fato, Leonardinho – o memo-
rando se movimenta encontrando eco no movimento do próprio livro.
O romance de Manuel Antônio de Almeida ambienta-se em um contexto
histórico de exclusão social projetado pelo regime de dominante/dominado que é,
nas palavras de Fragoso e Florentino (2001, p. 236) “o verdadeiro êxito histórico
desse padrão excludente”. Em outras palavras, há uma persistência das desigual-
dades sociais. Uma sociedade marcada historicamente por tais desigualdades
(poucos com muito e muitos com pouco), por certo apresenta também movimen-
tos, no mínimo, estranhos para não dizer logo malandros de relacionamentos, a
fim de que haja sobrevivência (dos muitos). Isso, porque é próprio da pessoa, bus-
car o seu lugar ao Sol.
Se pensarmos na ordem (núcleo composto pelos que fazem cumprir a Lei)
e na desordem (núcleo composto pelos que não cumprem a Lei), temos então uma
equação perfeita de ordeiro/desordeiro o que se tornaria fácil identificar a malan-
dragem dada pela significação literal do termo. Porém, teríamos uma análise dema-
siada ingênua. Essa não é a lógica da dialética da malandragem de Candido, em vista
da possibilidade potencial de trânsito dos personagens entre os núcleos sociais, so-
bretudo se considerarmos a complexidade comportamental que define a dinâmica
da sociedade heterogênea. O entendimento de Candido é de que se trata de uma
obra construída, como já foi mencionado antes, a partir do ritmo da sociedade da
época e isso já confere crédito à teoria de DaMatta.
Para Francisco de Oliveira (2012), a discussão sobre malandragem passa
também pela questão antropológica como a problemática do caráter nacional con-
forme DaMatta, porém prefere referir-se ao famoso jeitinho brasileiro. Segundo

296
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ele, esse é um “atributo das classes dominantes que transmitiu às classes domina-
das (p. 3)”. Nas Memórias, resta recuperar com cautela a representação de classe
dominante/dominada entre o dito e o não dito3 na tessitura do romance.
A questão é que, para traçar com rigor o perfil do herói – o malandro,
talvez não se possa fazê-lo, tão simploriamente, identificando as duas representa-
ções de classes sociais, a saber: da ordem (basta identificar o personagem Major
Vidigal e seu núcleo, dando o seu jeitão, como defende Francisco de Oliveira, para
disfarçar ou deslocar os problemas sociais?) e da desordem (basta identificar Leo-
nardinho e seu núcleo, dando o seu jeitinho para driblar as dificuldades que a vida
lhe reserva?). Para além disso, retomo a partir desse ponto, as contribuições de
DaMatta numa tentativa de ensaiar a possibilidade de caracterização do malandro
na perspectiva do triângulo equilátero de ritos ou dramas que o antropólogo cons-
trói como fórmula válida para a definição de figuras paradigmáticas (heróis) re-
presentativas de grupos sociais.
Para entender a proposta de caracterização do personagem sob a lente de
DaMatta (1997), importa pontuar o que o antropólogo considerou antes de validá-
la para o propósito de identificação da referida figura. Para ele, convém partir do
drama social por ser este um modo de expressão coletiva e nele se mostram com
regularidade os papeis sociais e os atores. A trajetória de um personagem (o caso
do herói) “segue a mesma curvatura da sociedade que engendra a dramatização (p.
258)”. E, ainda, o drama é representativo da sociedade, obviamente do caráter de
um povo e, nele encontramos “nossos heróis e nossos mitos”. Outra verdade para
DaMatta (1997, p. 260) é que “Brasil, país do futuro e da esperança porque, tal
como seus heróis, é uma sociedade profundamente atada ao passado”. Diante
disso, tem-se que, para o antropólogo, as nossas formas rituais básicas ou de dra-
mas ajustam-se numa fórmula triangular eqüilátera representativa da ideologia
das três raças “o branco colonizador e civilizador, o preto escravo e o índio. Para o
crítico:

Além disso, somos - além da ideologia das três raças que acabamos de apresentar
e que surgem também no triângulo - soldados, fiéis e foliões, nessa equação tri-
angular, complexa e surpreendemente consistente, qual seja: Carnavais = Foliões
= Inversões = Índios (ou marginais) Paradas = Soldados = Brancos (ou superiores)
Profissões = Fiéis = Negros (ou inferiores) (DAMATTA, 1997, p. 262).

Ao propor a fórmula geométrica, DaMatta pressupõe ainda a possibi-


lidade do ponto de vista da leitura do universo social a partir dos três vértices
do triângulo, sob pena de apagamentos de esferas sociais importantes no mo-

3
Refiro-me ao que está subtendido nos enunciados ou pode ser referenciado pelo contexto da obra.
Grifo meu.

297
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

mento da interpretação da sociedade. E, ainda, os três dramas e respectivas ca-


tegorias podem comportar, pela regularidade do drama social, figuras paradig-
máticas (heróis) consideradas: i) para carnavais, a figura do malandro, seres
marginais ou limiares: ii) para paradas, a figura do caxias, da lei e; ii) par a pro-
fissões, a figura do santo, dos romeiros, peregrinos ou renunciadores. Interessa-
nos destacar ainda, que os heróis do tipo carnavalizado são os que denunciam
as tensões sociais por situarem às margens da sociedade brasileira e, de alguma
forma, por afastarem-se do ponto de dominância. São os que se sentem deslo-
cados no entendimento de DaMatta. E, “o malandro é um ser deslocado das re-
gras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por
nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar,
falar e vestir-se” (DAMATTA, 1997, p. 263).
Nesse estudo, pretendo recuperar a figura de Leonardinho e, ante-
vendo seu caráter social pela leitura do romance, aposto numa leitura da reali-
dade representada na obra almediana a partir do vértice da carnavalização, per-
seguindo indícios da malandragem, contudo, faz-se necessário realizar uma
breve ancoragem diante dos demais vértices do triângulo para que não haja des-
vio do continuum da ordem à desordem e, para que seja possível iluminar o campo
das evitações4 dada pela fórmula triangular equilátera proposta por DaMatta.

A figura do malandro almediano: Leonardinho na lente de DaMatta

Com base nas discussões que envolvem a ideologia da malandragem, pro-


pões-se, a partir desse ponto, identificar alguns aspectos presentes na narrativa
almediana que apontem a inscrição de Leonardinho – o memorando das Memórias
de um Sargento de Milícias como o malandro caracterizado por Roberto DaMatta.
Os papéis sociais nas Memórias estão marcados no campo da ordem e da
desordem e os respectivos atores ou agentes nesses papéis transitam para cima
(dominante) e para baixo (dominado), num ou noutro polo como é da própria di-
nâmica social. Contudo, se pudéssemos marcar um aglomerado num determinado
lugar e intervalo de tempo, seria possível fotografar mais vezes os atores em pelo
menos três polos coincidentes com os vértices do triângulo dado por DaMatta. E,
por certo, em cada polo ou vértice poderíamos encontrar em maior ou menor con-
glomerado os agentes sociais caracterizados como o Caxias, o Malandro e o Re-
nunciador. Esse último, com pouca representatividade na obra pelo quase, senão
total, apagamento do papel do escravo. Mas, não que não se possa identificá-lo na

4
De acordo com DaMatta (1997), comporta o campo das evitações a figura do tipo renunciador “aquele
que, por meio de instrumentos diversos e em níveis diferentes, rejeita o mundo social como ele se apre-
senta (p. 265)”

298
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

fatura da obra. Como se ver em Almeida (2012, p. 45), “O navio a que o marujo
pertencia viajava para a Costa e ocupava-se do comércio de negros; era um dos
comboios que traziam fornecimentos para o Valongo, e estava pronto a largar”.
Nessa passagem do romance, o narrador conta que o padrinho de Leonardinho –
o barbeiro conseguiu estranhamente arranjar-se, ou seja, acumular fortuna a partir
de recursos advindo, muito provavelmente, do tráfico de escravos. Por detrás do
“Arranjei-me do compadre (p.44)” há toda uma vida de escravos brutalmente ex-
plorados, que ocupariam o plano da recusa à sociedade, desejando outro plano so-
cial e que na concepção de DaMatta, lutariam para criar outra realidade para si.
No polo/vértice do Caxias e, somente para efeito de ilustração de nossa
fotografia da realidade, conforme representada por Almeida pode-se encontrar,
dentre outros atores o próprio Major Vidigal, reforçando a ordem social (domi-
nância) numa tentativa de mantê-la como ela é como se observa em Almeida (2012,
p. 30), “O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia
respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena
[...]”. Nessa passagem da narrativa, há clara representação da ordem social ou da
Lei, porém cabe ajuizar que, o personagem representativo dessa categoria, em al-
gum momento, movimenta-se para outro vértice pelas curvas que a sociedade lhe
permite fazer, sobretudo pelo papel social que ocupa. Percebe-se isso nas Memórias
quando Vidigal usa seu posto e negocia a seu favor com Maria Arregalada em “As
três em comissão (p.187-191)”. Nesse caso, o Major deixa de trilhar pelos ditames da
Lei e passa para o polo da desordem, lançando mão de artimanha própria do ma-
landro, para conseguir a atenção de sua amada. Vê-se em Almeida (2012, p.193),
“[...] e não só ele aparecia solto e livre, como até elevado ao posto de sargento”.
Vidigal usa seu poder para burlar a Lei e, consequentemente, o que é posto como
ordem social, abonando as ações ilícitas de Leonardinho e conferindo-lhe o título
de Sargento de Milícias.
Do polo/vértice do Renunciador e do Caxias passo, de forma mais demo-
rada, ao que compreende o malandro – o dos Carnavais e, no caso, a recuperação
do personagem Leonardinho das Memórias. Definindo melhor esse vértice do triân-
gulo, DaMatta escreve

Assim, sabemos que os heróis do carnaval, isto é, os tipos que denunciam aquele
período como ‘carnavalesco’ são os marginais de todos os tipos. Seja porque es-
tão situados nos limites do tempo histórico, como os gregos, os romanos e aris-
tocratas de samba, Iamê e cetim; seja porque situados nos pontos extremos das
nossas fronteiras, como as havaianas, as baianas, os chineses e os legionários; seja
porque estão escondidos pelas prisões, pela polícia e por nossa ingenuidade, pois
aqui temos todos os marginais, como se no carnaval a sociedade brasileira
abrisse suas partes internas, seus porões sociais (cf. DaMatta, 1973). Se quiser-
mos reunir todos esses tipos numa só categoria social, sabemos que todos eles
são malandros (DAMATTA, 1997, p. 263).

299
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

DaMatta estende uma longa lista de malandros incluindo grupos que são
tomados, do ponto de vista de um Brasil festivo, carnavalizado ou Brasil do samba,
como sujeitos deslocados das formalidades. Sujeitos fadados à exclusão do mer-
cado de trabalho, pertencente a camadas sociais diferenciadas e estigmatizadas
como avesso ao trabalho inclusive do tipo curioso pelos aspectos físicos (jeito de
andar, falar ou vertir-se). Trata-se de uma figura social heroica oposta à ordem,
justamente porque cria o seu universo a partir das leis do coração e do improviso
- sujeito regido pelos sentimentos. Porém, mesmo não concordando com as con-
venções legais ou como a sociedade está posta em seu desfavor, não se dispõe a
promover mudanças. Ademais, o sujeito da mudança é o do papel de renunciador
que está mesmo disposto a criar outra realidade e não do malandro que se presta
ao drible dos infortúnios sociais para melhor passar a vida.
O problema do malandro, nem é de manter a ordem – o soldado, nem de
criar um mundo melhor para si – o fiel, mas, tão somente sobreviver como é o caso
de Leonardinho. Para compreendermos o determinado apontamento deste perso-
nagem no grupo dos carnavais, precisamos, ainda que breve, entender suas origens
e trajetória no entrecho do romance. A obra de Almeida, como já dito, teve sua
primeira publicação em 1852 e, conforme Taís Gasparetti no texto de apresentação
do romance

A história se passa no Rio de Janeiro, no início do século XIX, após a vinda da


família real para o Brasil, e narra a trajetória de Leonardo, rejeitado pelos pais e
criado pelo padrinho barbeiro. Coberto de mimos, o menino – desde cedo afeito
às diabruras – se torna um rapaz indolente e volúvel, verdadeiro arquétipo do
malandro (GASPARETTI, 2012, p. 10).

Determinado ou não, resguardando-se pelo manto da ironia, da bossa, o


autor das Memórias de um Sargento de Milícias aponta as pistas dos caminhos percor-
ridos por seu personagem central e das adversidades que a vida tem reservado, até
então, aos habitantes – homens livres e pobres - do tempo (e posterior) do Rei. A
história de Leonardinho – o filho é de alguma forma a história de Leonardo Pataca
– o pai e dos demais personagens que driblam a realidade para movimentar-se vida
afora, sempre se desenrolando (voluntariamente ou não, esforçando-se ou não)
dos embaraços que se asseveram em decorrência de uma ordem social dominante
da qual não se tem o desfrute da igualdade.
O enredo do romance estrutura-se na ordem do apadrinhamento5 do co-
meço ao fim. A história de Leonardinho inicia a partir do seu pai, Leonardo Pataca,
que no próprio nome encontramos vestígio de insatisfação da vida que levava, pois

5
Uso esse termo com o sentido figurado próximo ao sentido de “jeitinho brasileiro” ou de favor. Grifo
Meu.

300
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

seu segundo nome (Pataca) lhe foi conferido pelo hábito de contar o mísero di-
nheirinho no final de um mês de serviço como meirinho. Ao que se percebe a tra-
jetória de Leonardinho traz ranços da trajetória do pai

Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua
pátria; aborrecera-se, porém, do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se
sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e
que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo
navio, não sei fazer o que, uma certa Maria da Hortaliça, quitandeira das praças
de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona (ALMEIDA, 2012, p. 14-15).

O contexto social de Leonardo e Leonardinho não se difere. É adverso


e marginal. Espaço e realidade propensos, segundo DaMatta (1997, p. 269),
“desde simples gestos de sagacidade, que, afinal pode ser feito por qualquer
pessoa, até o profissional dos pequenos golpes”. A gradação da malandragem
nas Memórias segue o curso da vida dos personagens e em Leonardinho não
chega “ao ponto mais pesado do gesto francamente desonesto (p. 269)”, justa-
mente, pelo apadrinhamento antes referido. Nascido de uma pisadela como Le-
onardo Pataca destaca ao deixar transpor sua pouca vontade de assumir a res-
ponsabilidade de pai, ele não chega a ser injustiçado ou humilhado no grau mais
elevado, mas exposto a própria sorte é acolhido pelo padrinho, mostra-se
avesso as ordens sociais impostas: trabalho, religião, educação e o que mais lhe
venha a impor amarras, inclusive às mulheres.
A vida de Leonardinho é cheia de contraditórios, desde criança, fa-
zendo dele um herói sem-caráter, pelo menos do ponto de vista da ordem, por-
que para ele, a vida parecia mais leve do que se mostrava. Em Almeida (1854, p.
18) “O menino assistia a toda essa cena com impertubável sangre-frio; enquanto
a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, ele ocupava-se tranquilamente em
rasgar as folhas dos autos [...] e em fazer dela uma grande coleção de cartuchos”,
Leonardinho parece brincar enquanto presencia a cena de violência dos pais. E,
quando se vê açoitado pelo feito com as folhas de documentos importantes do
pai “[...] suportou com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca
quando foi levantado pelas orelhas; mal caiu, ergueu-se [...], e em três pulos es-
tava dentro da loja do padrinho (p. 19)”. Pelo comportamento, logo cedo, o me-
morando é acolhido pela sociedade como endiabrado. Acolhido, porque encon-
tra quase sempre apoio ou pelo menos certa tolerância nos mais diversos espa-
ços sociais que interage, seja na casa dos padrinhos, no grupo de amigos, na
igreja ou outros grupos sociais.
A conduta astuta própria do malandro o faz afastar-se do sofrimento
mais comum para sujeitos marginalizados. A fome, a miséria, a solidão são di-
luídas pelo jogo capcioso, em que de alguma forma, procura se envolver. O jogo

301
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de Leonardinho é o do favor que o livra da condição de abandono ao ser socor-


rido pelo padrinho. No entanto, não há uma deliberação ao drible dos proble-
mas nesse jogo. Em Almeida (2012, p. 19) “O pequeno nada disse, dirigiu apenas
os olhos espantados para defronte, apontando com a mão trêmula [...]”. O as-
tuto menino atina para o papel do padrinho em sua vida quando estava em apu-
ros com o pai. Envolve o barbeiro, a partir daí, num jogo emocional ao ponto de
ser acolhido e a amado, incondicionalmente, alcançando o direito de herdeiro
legítimo, sem maiores esforços ou práticas de ilícitos mais hediondos. Porém,
tudo isso vai acontecendo de forma natural. Ninguém o faz ser astuto, valde-
vino, malandro. É assim, porque é de sua personalidade ou “malsinação (p.143)”.
Na maioria das vezes, Leonardinho anda na contramão da ordem e, de-
sobedece até mesmo ao padrinho, embora tenha ciência do amor que lhe é dis-
pensado e do acobertamento das diabruras que fazia. Os planos de vida do bar-
beiro para o menino o fariam um sujeito de boa conduta do ponto de vista da
ordem historicamente e socialmente vigente. Porém, só “À custa de muito tra-
balho, muitas fadigas e, sobretudo de muita paciência, conseguiu o compadre
que o menino freqüentasse a escola durante dois anos e aprendesse a ler muito
mal e a escrever pior ainda (ALMEIDA, 2012, p. 59).” A predisposição de Leo-
nardinho está muito bem para as brincadeiras e as travessuras na mesma pro-
porção que não está para qualquer que seja o esforço de emendar-se e formar a
conduta esperada.
DaMatta (1997, p. 253) considera que só é possível pensar numa dico-
tomização indivíduo/sociedade quando “a noção de indivíduo passa a ter, junto
com a sociedade, valor e significado sociais. Dessa maneira, o triângulo dado
para a tradução de condutas ou caráter, embora condicione um certo enquadra-
mento do indivíduo a um grupo social pode servir de parâmetros de estudos e
compreensão da dinâmica da formação social e identificação dos papeis sociais.
Aposta, então, na identificação de um perfil de herói social, a partir das carac-
terísticas individuais. Em suma, do coletivo para o individual. A questão é que
Leonardinho é caracterizado como malandro mais pela sua personalidade indi-
vidual (ninguém pode ser ele) que pelo seu caráter social, isto é, caráter alimen-
tado pela sociedade como o caso do malandro Chico-Juca que pela valentia e o
medo causado à sociedade mantém seu status de malandro.

Ser valentão foi algum tempo ofício no Rio de Janeiro [...]. Entre os honestos ci-
dadãos que nisso se ocupavam, havia, na época dessa história, um certo Chico-
Juca, afamadíssimo e temível. Seu verdadeiro nome era Francisco e por isso cha-
mam-no a princípio Chico; porém tendo acontecido que conseguisse ele pelo seu
braço lançar por terra do trono da valentia a um companheiro que era no seu
gênero a maior reputação do tempo, e a quem chamavam Juca, juntaram este
apelido ao seu, como honra pela vitória, e chamaram-no daí em diante Chico-
Juca (ALMEIDA, 2012, p. 69).

302
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Pelo entendido sobre a teoria de DaMatta pode-se relacionar claramente


Chico-Juca na categoria de herói-social. Todavia, cabe destacar que, em certa me-
dida, este se afasta do malandro, considerando o ofício que desempenha ao ponto
de ser visto, no contexto representativo da obra almediana, como cidadão cum-
pridor de um papel na sociedade. Mas, que papel? O da ordem ou desordem? A
meu ver, parece que para sociedade a ordem também poderia ser alinhada não à
questão da justiça absoluta dos homens, mas da justiça relativa. Assim, ordem e
desordem são conceitos que precisam ser relativizados nessa análise.
Se tomarmos sob o ponto de vista do paradigma construído socialmente,
de modo raso6, diferente de Chico-Juca, ainda que não seja um malandro social,
considerando os rituais básicos de dramas da sociedade, Leonardinho apresenta-se
como herói-malandro e popular (mas é possível ser popular e não social? Vale con-
ferir), pois se sustenta por vias de favores, driblando as dificuldades que a vida lhe
reserva. E, pelos favores que o sustentam e a falta de punições que poderia sofrer
em decorrência de suas diabruras e irresponsabilidades aproxima-se de uma figura
mitológica ou folclórica, mais alinhado ao grupo: Macunaíma, Lalino Salãthiel e
João Grilo – heróis sem caráter da literatura brasileira.

Considerações Finais

Em síntese, conforme a fórmula triangular de DaMatta, resguardando seu


caráter relativista, tem-se que o personagem Major Vidigal e seu grupo ou afeitos
à Lei como D. Maria ocupa a posição de destaque no polo/vértice do Caxias, os
escravos e os excluídos da sociedade como o grupo da personagem Vidinha, ocupa
o polo do Renunciador e, Leonardinho ocupa o do Carnaval.
Ressalto, porém, que se trata de um triângulo com movimentos para cima
e para baixo de tal maneira que a malandragem se apresenta de forma bem sofisti-
cada. Cabe ainda destacar que ela, na versão paradigmal de DaMatta, começa e
termina entre os que compõem o grupo dominado, visto que à classe dominante
reserva-se o “Jeitão brasileiro”, conforme Oliveira (2012, p. 6) de obrigar os domi-
nados a driblarem seus problemas sociais. Nesse sentido, entende-se que a bene-
volência do Major Vidigal, perdoando Leonardo e nomeando-o Sargento de Milí-
cia apenas desloca ou disfarça o problema – Leonardinho e sua aversão ao trabalho
do tipo que não se emenda. O caso é que Leonardinho não quer mudar a sociedade,
tampouco muda para ajustar-se ao grupo social ao qual se integra e interage como
fica implícito no último parágrafo das Memórias “Daqui em diante aparece o reverso
da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a de Leonardo-Pataca, e uma enfiada

6
Refiro-me assim para não adentrarmos numa análise maios profundos nos mais diversos campos que
a ciência pode propor até que se esgote a discussão.

303
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui um ponto


final (ALMEIDA, 2012, p. 198)”. Em boa medida, Vidigal (somente interinamente
dominador) também não pretende mudar a sociedade, apenas quer ser visto como
cumpridor da Lei para continuar no seu papel, que por sinal, lhe é conveniente.
Mudar fica a cargo mesmo dos renunciadores.
Analisando os papeis sociais dos personagens com foco em Leonardinho
e sua caracterização enquanto herói-social percebe-se que requer cautela quanto
à ideia de malandro e de malandragem que circula na literatura entre os séculos
XIX e XX. Os traços de Leonardinho são característicos da malandragem e é figura
possível de ser recuperada sob a lente de Roberto DaMatta, desde que seja consi-
derado, certos princípios sociais historicamente construídos e o contexto de con-
cepção da obra almediana.
A narrativa de Almeida, pelo exposto supra, define logo nos primeiros ca-
pítulos às condições favoráveis ao plano de caracterização da malandragem do
personagem central: a) um casal em trânsito de navio vindos de Lisboa para o Bra-
sil que levavam vidas desregradas; b) um filho fruto de um esbarrão e uma pisadela,
isto é, não fazia parte dos planos de vida do casal, tanto que o abandona, logo na
infância; c) o filho definido como endiabrado, astuto e avesso ao trabalho e; d) a
presença da figura do padrinho e da madrinha que endossa, de alguma forma, a
formação da conduta social de Leonardinho pela tática do acobertamento.
Pela análise, percebe-se que o herói-malandro de Almeida integra uma
sociedade vocacionada a aceitação e ao perdão, mas também a pouca disposição
de enfrentamentos enérgicos. Em outras palavras, tudo concorre para a recusa da
ordem, porém, Leonardinho se arranja nos dribles dado pelo acaso e pelo favori-
tismo, fazendo-o ocupar o polo/vértice do herói-malandro paradigmal dado por
DaMatta, sobretudo por encontrar ecos em figuras sociais comuns na sociedade,
se tomamos para ladear ao personagem, a figura do carioca caracterizado pela crí-
tica contundente do samba dos fins do século XIX e do século XX.
Por outro lado, não se pode conceber a ideia de que Leonardinho é figura
construída socialmente nos mesmos paradigmas em que se constrói Chico-Juca,
pois em Leonardinho pesa mais a força de sua personalidade ou sina, pelo menos
no entendimento dos que com ele convivem. E, tanto faz em diabruras e astúcia
que sua malandragem passa a ser vista como parte de sua personalidade e torna-
se figura-mito de um heroísmo à custa de sua malandragem sem violência mais
sangrenta. E, pela recorrência desse tipo de herói sem caráter em outros dramas
sociais tem-se como caricatura reconhecida nacionalmente – o herói-malandro em
liames diferenciados. No entanto, sujeito que tende a ocupar o lugar intermediário
da ordem/desordem na sociedade.

304
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias (1854). 6ª


ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.

CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de


um sargento de milícias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8,
1970.

DAMATTA, Roberto. Carnavais malandros e heróis: para uma sociologia do di-


lema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2001.

GOMES, Tiago de Melo. Gente do samba: malandragem e identidade nacional no


final da Primeira República. In: Topoi - Revista de História, UFRJ, n. 9, 2007.

OLIVEIRA, Francisco de. Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do ca-


ráter brasileiro. Revista Piauí-Tribuna livre da luta de classes. ed. 73. Out./2012.

SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, da dialética da Malandragem


(1979), em Que horas são? São Paulo: Cia das Letras, 1987.

305
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

306
PERCEPÇÕES DE PROFESSORES SOBRE USO DE METODOLOGIAS
ATIVAS PARA A APRENDIZAGEM DE INGLÊS NOS ANOS FINAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL

Raimundo Nonato Sousa 1


Alexandre dos Santos Oliveira 2
Alexandra Mury Martins Farias 3
Christopher Thomas Hall 4

Introdução

Na última década, com a chegada da reforma da educação básica, as


metodologias ativas têm tido um lugar de destaque nas formações de professo-
res. Isso se dá pelo fato de professores estarem em busca de novidades e estra-
tégias capazes de mudar o atual cenário de aulas monótonas para aulas dinâmi-
cas e engajadoras. Essas metodologias são capazes de despertar o interesse e
atenção dos professores ávidos por mudanças radicais em suas práticas, mas
apresentam desafios para a sua implementação o que de alguma forma traz dú-
vidas sobre sua validade neste cenário, levando alguns a achar que se trata ape-
nas de uma febre e que logo passará.
O certo é que, mesmo considerando esses pontos, acreditamos que as me-
todologias ativas se inserem no cenário da reforma como um plus para trazer de

1
Formado em Letras- Inglês com ênfase nas literaturas americanas e inglesas pela Universidade Esta-
dual do Piauí (2001). Possui Especialização em Gestão Pública e Mestrado em Educação pela Univer-
sidade Federal do Piauí (2010 e 2012, respectivamente) e Certificado Internacional em TEFL (Teaching
English as a Foreign Language) pela University of Central Florida, Orlando, USA (2013).
E-mail: nonattosousa@yahoo.com.br
2
Professor da rede pública estadual do Maranhão, do Piauí (Centro Cultural de Línguas Padre Rai-
mundo José) e da faculdade FACID em Teresina. Graduado em letras inglês pela Universidade Esta-
dual do Piauí – UESPI – e especialista em Língua Inglesa pela mesma instituição.
E-mail: - profalex8@gmail.com
3
Professora da rede pública estadual do Maranhão e Piauí e, em Teresina, trabalha atualmente no Cen-
tro Cultural de Línguas Padre Raimundo José. Graduada em letras inglês pela Universidade Estadual
do Piauí – UESPI - e especialista em Língua Inglesa pela Faculdade Internacional Signorelli, participou
de duas edições do Programa de Desenvolvimento para Professores de Inglês (PDPI) nos Estados Uni-
dos promovido pela Fulbright Brasil.
E-mail: alexandramury@hotmail.com
4
Tem formação em Conselheiro em Saúde Ocupacional (2016-2018), Diretor de Desenvolvimento de
Aprendizado (2007-2008) Professor assistente de língua inglesa (2019- presente). Tem certificado de
TEFL e experiência em escolas de idioma (Escola de Idiomas PLB Teresina/PI; Centro de Treinamento
CEFAF). E-mail: kristophpianco@gmail.com
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

alguma maneira esperança e força à pedagogia construtivista, base da reforma que


vem acontecendo no nosso país e que coloca o estudante como centro das ações
de educar. As metodologias ativas se constituem hoje uma fonte de recursos ex-
tremamente útil para professores e estudantes no contexto de ensino e aprendi-
zagem, pois com a reforma do ensino na educação brasileira desde meados da dé-
cada de 90 do século passado e as repetidas referências na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) já integram as formações para professores das diferentes áreas
e componentes do currículo escolar propondo mudanças profundas nas aborda-
gens de ensino utilizadas pelos professores.
Porque está havendo mudanças dessa natureza na prática pedagógica do
professor? Basicamente porque nós vivemos em um momento da história onde o
lugar de aprender não mais é apenas a sala de aula, mas há outros lugares, muitos
deles espaços virtuais, afetando substancialmente as formas como se dão as inte-
rações, o acesso às informações e as formas diferentes de aprender do estudante,
que na maioria das vezes, não se encaixa na forma tradicional de se ensinar utili-
zada há 4 ou 5 gerações passadas. Essa mudança implica, necessariamente, em
adequações na prática dos professores. Estes precisam integrar metodologias que
atendam ao novo cenário que vem se desenhando para possibilitar aprendizagens
que começam na sala de aula e se consolidam em algum espaço e tempo onde o
estudante decide como sendo melhor para si.
As mudanças no campo curricular são fundamentais para que ocorram
alterações na prática dos professores. No entanto, não são garantia que estas ocor-
ram. Todas as vezes que são implementadas alterações substanciais no currículo
de uma etapa da escolaridade, na maioria das vezes, são levados em conta modelos
e práticas pedagógicas considerados ultrapassados e muitas vezes revestidos com
uma camisa de força, que provocam a manutenção desse estado, não contribuindo,
para uma educação de qualidade.
Nas duas últimas décadas (anos 90 e 2000) as pesquisas em educação,
especialmente aquelas que têm procurado mostrar os impactos da implementação
de políticas públicas educacionais na educação básica mostram que ainda existe
um grande abismo entre a teoria e a prática pedagógica dos professores. Então
cabe a pergunta: Por que ainda existe esse distanciamento entre teoria e pratica
quando existe tanta experiência de formação continuada? Com esse novo cons-
truto, os professores começam agora a repensar o seu papel no processo de ensinar
e também a construir um caminho que inclui conhecer melhor como usar e inte-
grar as metodologias ativas, muitas delas baseadas no uso de tecnologias proveni-
entes da web e softwares para atender a um público diferente e com necessidades
variadas.

308
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Breve percurso histórico dos métodos e abordagens de Ensino da


Língua inglesa e a chegada das metodologias ativas

Os métodos e abordagens de ensino de línguas estrangeiras surgiram


atendendo determinadas necessidades de um período e funcionando sob determi-
nados princípios, técnicas e teorias.
Considerado o primeiro método, a gramática-tradução, por exemplo, ti-
nha como foco o ensino e a aprendizagem das línguas clássicas como o Latim e o
Grego. A língua escrita padrão era considerada superior à língua falada e por isso
os textos e toda a literatura produzidos nessas línguas eram bastante valorizados.
O que se pretendia era ler e escrever na língua alvo e, sendo assim, a instrução, feita
em língua materna, era voltada para a organização gramatical desses idiomas.
Com o surgimento e dominação de outras línguas e necessidades reais,
como as produzidas durante o período de guerras nos Estados Unidos, novos mé-
todos foram aparecendo e sempre aparentando ter o papel de negar e/ou substituir
o anterior. Assim surgiram os métodos nos quais o ensino era todo ministrado na
língua alvo com o objetivo de, por meio de repetição, fazer os alunos memorizarem
um diálogo por exemplo. Com a chegada do século XXI outros métodos e aborda-
gens foram sendo desenvolvidos e utilizados, mas sem isso significar que os pio-
neiros caíssem em desuso, eles apenas foram – ou não – modificados, adaptados,
modernizados.
A abordagem comunicativa e o ensino de línguas por meio de tarefas são
exemplos de abordagens vigentes nesse novo século. Hoje, a compreensão mais
geral é que a aprendizagem de uma língua adicional deve desenvolver no aluno a
sua competência comunicativa primeiramente, mas sem deixar de lado também a
sua competência linguística e é por isso que termos como fluency e accurary são tão
comuns quando lemos sobre metodologias de ensino de línguas.
A adaptação e acomodação do novo, naquilo que se refere ao ensino de
línguas, tem sido apontado como o maior desafio do século atual, que é conside-
rado como a era pós método, ou seja, não há um método vigente, mas diferentes
abordagens a serem analisadas e adaptadas à realidade de ensino de cada grupo
envolvido.
É sabido que mudanças não ocorrem de uma hora para outra. Para perce-
bermos isso, basta considerarmos a organização atual da maioria das nossas salas
de aula com os alunos enfileirados e voltados para o professor. Logo percebemos
que não há nada de atual nessa forma de dispor carteiras e alunos. Assim, pequenas
mudanças precisam ser iniciadas se quisermos ser professores do século XXI, pois
o que se apresenta hoje é que, as aulas, diferentemente dos primeiros métodos, não
devem ter o professor no centro da sala como o detentor do conhecimento, fazendo
do aluno apenas um repositor de informações.

309
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Fala-se hoje em Backward Design Process na hora de planejar. Isso significa


que o plano de aula começa pelo aluno e aquilo que ele será capaz de fazer com o
novo conhecimento adquirido. Universal Design for Learning é outro termo bastante
atual significando que devemos criar oportunidades para que todos os alunos te-
nham a possibilidade de aprender, utilizando as diferentes inteligências que eles
possuem. O que se busca hoje é propiciar um estudo ativo através de um ensino
baseado no uso de metodologias ativas que, considerando a Taxonomia de Bloom
(1956) não fique restrito à capacidade de lembrar, compreender e aplicar do aluno,
mas que sejam criadas maneiras de fazer com que ele se torne capaz de analisar,
avaliar e criar enquanto aprende um novo idioma num cenário de aula student-cen-
tered. Em outras palavras, que ele seja capaz de utilizar seu pensamento crítico na
resolução de problemas e na busca por informações que ele necessite para sua
aprendizagem.
Daí a abordagem do ensino de línguas conhecido como Task-Based Lan-
guage Teaching, isto é, o aluno utiliza a língua para alcançar determinado objetivo
enquanto realiza tarefas diversas. Dominar a língua, digamos assim, não é o fim,
mas o começo, pois ela vai intermediar o processo de aprendizagem e esse processo
é a etapa mais importante, etapa esta que será facilitada pela figura do professor,
mas não mais aquela figura central para a qual todos os olhos se voltam, mas um
professor que vai perdendo gradativamente sua visibilidade (LEFFA, 2012) acom-
panhando de um lugar estratégico o seu aluno enquanto este percorre seu caminho
na construção de seu conhecimento.
O termo metodologias ativas não é um conceito novo como alguns têm
colocado e até defendido. Na verdade, o termo tem sua origem nos trabalhos de
John Dewey, educador do século passado que desafiou o paradigma da época, ao
trazer para a agenda do dia o “aprender a fazer, fazendo, o chamado learning by
doing. Para Dewey os estudantes aprendem mais quando estes produzem informa-
ções ao invés de serem recipientes do conhecimento.
Colocando em termos bem simples, uma metodologia ativa é caracteri-
zada quando o professor introduz uma atividade em sala de aula e os alunos são
estimulados a participarem. No entanto, essa atividade deve ser altamente desafi-
adora, mantendo os alunos sempre engajados e motivados, levando estes a busca-
rem informações em diferentes lugares, discutir essas informações com seus pares,
resolver problemas e despertar seu senso crítico sobre aquilo que estão buscando
conhecer.

310
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Metodologias Ativas para desenvolvimento das habilidades integradas em


Língua inglesa

Apresentamos a seguir a atividade Super Challenge, como um exemplo


de atividade em que são empregadas estratégias e princípios das metodologias ati-
vas para o desenvolvimento de diferentes habilidades (speaking, listening, writing e re-
ading) bem como o aprendizado de vocabulário, utilizadas na pesquisa.
3.1 Descrição da aplicação do Super Challenge
O professor prepara diferentes categorias de perguntas relacionadas a di-
ferentes áreas do conhecimento (language / grammar, vocabulary, movies, series,
literature, sports, music etc). Cada categoria deve ter quatro itens com as respec-
tivas pontuações (200, 400, 600 e 800). Há a tendência de o grau de complexidade
das perguntas estarem de acordo com o valor da pontuação. Ou seja, as perguntas
(em tese) mais simples valem menos pontos do que as mais desafiadoras. As per-
guntas podem ficar armazenadas no laptop do professor ou em fichas para o uso
no momento da aplicação da atividade.

Da aplicação

(1) O professor divide a turma em grupos. (2) cada grupo escolhe um re-
presentante (e um nome do grupo) (3) O professor explica as regras da atividade.
(4) O professor escreve os nomes dos grupos no quadro. (5) sorteia-se o primeiro
grupo a jogar. (6) O representante do primeiro grupo escolhe uma categoria de
perguntas e o valor da pontuação. (7) O professor faz a pergunta (previamente
elaborada). (8) O grupo tem 15 segundos (tempo sugerido) para discutir e (o re-
presentante) responder à pergunta escolhida. (9) caso a resposta esteja certa, o
professor anota a pontuação no quadro (embaixo do nome do grupo). (10) caso o
grupo responda errado ou não responda, o grupo perde a pontuação (que também
deve ser anotado no quadro). (11) seguem os demais grupos respondendo até não
haverem mais perguntas. (12) o grupo com maior pontuação vence o jogo.
O Super Challenge é uma atividade que não necessita de grande aparato tec-
nológico. Entretanto, ela fomenta a interação do aluno com o conteúdo de forma
dinâmica e com um perfil motivacional relevante. Além disso, o professor tem a
possibilidade de adequar o grau de dificuldade e a variedade de conteúdos às de-
mandas de suas turmas. Essa atividade pode ser utilizada como sondagem ou
como revisão de assuntos ministrados.
Pode-se, ainda, utilizar de forma democrática os conteúdos apresentados.
Ou seja, muitas das atividades que são aplicadas em sala levam em conta o conte-
údo mais acadêmico do conhecimento. Quando o professor tem a oportunidade de

311
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

levar questões que envolvem música, esportes e filmes ele está dando voz a um
grupo significativo de alunos que, não necessariamente, conhece conteúdos lin-
guísticos com profundidade mas tem a possibilidade de responder questões como
“Name 3 teams of the NBA / Premier League”, “Name 3 English speaking Rock
bands “ ou “What is the name of the show in which the police officer Rick Grimes
is the protagonist? “.
Temos nesses exemplos conteúdos que não estão diretamente ligados ao
currículo mas remetem ao contato com diferentes manifestações artístico-cultu-
rais de países de língua inglesa, algo previsto nas competências específicas de área
(língua inglesa) da BNCC. Essas atividades contemplam demandas suscitadas
pelo ensino contemporâneo de língua estrangeira. Além de proporcionar ao aluno
a possibilidade de praticar habilidades como speaking, listening, reading, writing e o
desenvolvimento do vocabulário, elas favorecem o aprimoramento do trabalho co-
laborativo em equipe, fomentam um ambiente de aprendizagem criativo, possibi-
litam ao aluno variedade e a oportunidade de ter acesso a diferentes formas de
aprendizagem de forma organizada e desafiadora.
Há, entretanto, aspectos que devem ser levados em consideração no mo-
mento da aplicação de tais atividades como, por exemplo, o controle da disciplina
e do tempo, a participação ativa de cada membro das equipes e a inclusão ou es-
colha dos conteúdos de acordo com os objetivos do planejamento. É importante
ressaltar que qualquer um desses aspectos deve ser encarado como fator inerente
aos desafios cotidianos da prática docente e da construção do papel mediador do
professor, nunca como um impeditivo para a adoção e aplicação de novas práticas.
Cabe destacar também que integrar o novo nem sempre é algo fácil. Alguns pro-
fessores podem resistir à chegada do novo, especialmente naquilo que se refere às
crenças que estes têm sobre a eficácia ou não dessas ferramentas.

Caminho rumo a metodologia da pesquisa sobre metodologias ativas

Com a reforma educacional que está em processo de implementação no


Brasil, parece já estão ocorrendo mudanças nas formas como professores acredi-
tam ou não na eficácia do uso das metodologias ativas como sendo capazes de con-
tribuir positivamente para aprendizagem do estudante. Ou seja, as crenças dos
professores sobre ensino e aprendizagem de línguas através do uso das variadas
metodologias ativas, tem crescido bastante nos últimos anos no Brasil e também
no mundo (Bellanca (2009), Larsen-Freeman (2011), Nunan (1999), Ellis (2003),
Conklin e Stix (2009), Baardin (1991).
Orientados pelas perguntas (a) é possível aplicar esta atividade na sua
sala de aula? (b) que dificuldades você teria para aplicar esta atividade? (c) quais
seriam os benefícios desta atividade para seus alunos? procuramos identificar as

312
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

crenças sobre o uso das metodologias ativas como ferramentas capazes de provo-
car a aprendizagem e como estas percepções afetam as práticas pedagógicas, visto
serem as crenças do professor capazes de guiar suas atitudes e expectativas sobre
como os alunos aprendem e obter algum nível de alfabetização (DUFVA, 2003,
ELLIS, 2001, KRAMSCH, 2003).
Essas percepções também contribuem para o desenvolvimento de um
conjunto de abordagens e metodologias que o professor utiliza e que geram algum
impacto sobre o desenvolvimento do docente como um profissional e sobre
mudanças substanciais na sua pratica pedagogica (ERTMER, 2005, JUDSON,
2006). As percepções ainda intervêm em processos variados como a difusão e
assimilação do conhecimento, a construção de identidades pessoais e sociais,
comportamento intra e intergrupal, ações de resistência e de mudança social
(ERTMER, 2005, JUDSON, 2006).
Foi investigado um grupo de professores de escolas públicas da capital
do Piaui que vem recebendo formação continuada no centro de Formação
Antonino Freire nas classes de BNCC e Linguagens, classe de TEFL and Cultural
Studies e workshops para utilização de metodologias ativas. O perfil dos
professores varia de 2 a 10 anos de experiencia em sala de aula com cursos de
aprimoramento nos Estados Unidos, e especializações na area de língua inglesa.
Utilizamos uma metodologia de coleta de dados através de questionário aberto
sobre a utilização de 5 metodologias ativas que integram tecnologias baseadas na
web e outras com uso de low technology, papel e caneta. De posse dos dados quali-
tativos, fez-se análise de conteúdos utilizando a técnica de analise categorial de
Bardin (1997).
A seguir são apresentados os resultados acerca do uso das referidas me-
todologias, Como as percepções e crenças impactam diretamente nas práticas de
sala de aula, a partir da interpretação dos dados é ainda apresentada a relação que
há entre essas percepções acerca do uso das metodologias ativas e a forma como o
professor traduz isso em sua sala de aula.

Metodologia

A pesquisa aqui apresentada é resultado das experiências de professores


formadores com professores de inglês da escola pública, participantes de quatro
cursos de formação continuada oferecidos pelo Centro de Formação do Servidor
Antonino Freire, quais sejam Metodologias Inovadoras no Ensino de Língua In-
glesa, BNCC e Linguagens, curso TEFL and Cultural Studies e o workshop From Paper
to Web Based Technologies realizados entre os anos de 2018 e 2019.

313
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

As atividades formadoras aconteceram no período de março de 2018 a de-


zembro de 2019. Optamos pela pesquisa qualitativa porque esta atende ao objetivo
maior da pesquisa que é, a partir dos dados, discutir como as percepções e crenças
impactam diretamente as práticas de sala de aula e identificar se há uma relação
entre essas percepções acerca do uso das metodologias ativas na forma como o
professor traduz isso na sala de aula.

Participantes

Participaram dessa pesquisa 8 professores de inglês, todos graduados e


com especialização na área, que participaram dos cursos de formação e realizaram
as atividades que categorizamos como metodologias ativas durante permanência
destes nos referidos cursos. O tempo de atuação destes professores varia de 3 a 8
anos de sala de aula, portanto, já tem saberes oriundos de suas práticas e puderam
assim fazer uma reflexão e correlação das experiências que já possuem com os di-
ferentes métodos e inovações que foram apresentadas a eles. 70% deles utilizaram
com leves adaptações as metodologias ativas Four Corner, QR Code Reader, Balloon
Game, Kahoot Game e o Super Challenge.

Instrumento e procedimentos de coleta de dados

Foi elaborado um questionário com uma pergunta para cada metodologia


ativa, que se desdobrava em três outras, sempre seguindo o mesmo formato quais
sejam: (a) é possível aplicar esta atividade na sua sala de aula? (b) que dificuldades
você teria para aplicar esta atividade? (c) quais seriam os benefícios desta ativi-
dade para seus alunos? O questionário foi elaborado a partir da literatura estudada
e dos objetivos da pesquisa. A fim de preservar o anonimato dos participantes,
foram usadas as nomenclaturas para identificação dos sujeitos como PLI1 (profes-
sor de Língua Inglesa 1), PLI2, PLI3, PLI 4 consecutivamente, respeitando assim
os itens de anonimato. De posse das respostas aos questionamentos feitos, os da-
dos foram submetidos a análise de conteúdo, por meio da técnica de análise cate-
gorial, (Bardin, 1991); (Franco, 2003), com o propósito de identificar se há um
equilíbrio entre percepções positivas e negativas acerca do uso das referidas me-
todologias e se é possível a utilização das mesmas em sala de aula.
A análise dos dados levou em consideração os critérios e pressupostos
definidos por Bardin (1977) e Franco (2003) que estão assentados numa concep-
ção crítica e dinâmica da linguagem combinada com os princípios de uma semân-
tica que busca descrever analiticamente a interpretação do sentido que um indi-
víduo ou grupos diferentes atribuem às mensagens verbais ou simbólicas
(FRANCO, 2003).

314
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Os dados foram comparados com a literatura que utilizamos no referen-


cial teórico, quais sejam: Bellanca (2009), Larsen-Freeman (2011), Nunan (1999),
Ellis (2003), Conklin e Stix (2009), entre outros, que são apresentados a seguir.

Resultados e Discussões

A análise dos dados obedeceu à sequência das perguntas do questionário.


São descritas e analisadas as perguntas b e c que tinham o objetivo de captar as
percepções dos professores acerca da utilização das metodologias ativas Four Cor-
ner, QR Code Reader, Balloon Game, Kahoot Game e o Super Challenge.
Ao perguntar (a) é possível aplicar esta atividade na sua sala de aula? Tí-
nhamos o objetivo de verificar o grau de aceitação e crença no potencial da meto-
dologia para a prática do professor, e se estas orientam as expectativas e atitudes
dos professores em relação à referida metodologia. Ao perguntar (b) que dificul-
dades você teria para aplicar esta atividade? estávamos tentando entender como o
professor percebe o potencial do recurso e as condições objetivas de ensinar no
contexto onde atua. E ao perguntar (c) quais seriam os benefícios desta atividade
para seus alunos? tentamos perceber a relação que se estabelece entre as expecta-
tivas do uso da metodologia com o resultado de sua aplicabilidade na vida dos
alunos e da aprendizagem de conteúdos linguísticos e valorativos.

Análise das categorias que emergiram a partir da metodologia ativa Kahoot


Game

A seguir são apresentados os resultados para a pergunta (b) que dificul-


dades você teria para aplicar esta atividade? e (c) quais seriam os benefícios desta
atividade para seus alunos? sobre a metodologia ativa Kahoot Game que precisa de
internet para sua realização
Na tabela 1, 30,3% dos sujeitos que responderam o questionário afirmam
que as dificuldades residem na não disponibilidade de internet ou recursos tecno-
lógicos; 17,6% responderam que a quantidade de alunos, quanto a superlotação de
turmas acima de 45 que muitas vezes dificulta o trabalho; 15,3% declaram que a
escolha de temáticas que se aproximassem dos interesses dos alunos se constitui
em um obstáculo. No entanto, são apresentados pelos sujeitos uma alternativa que
seria a de “ouvir a opinião do estudante” (PLI06).
A Tabela 1, a seguir, detalha as categorias de respostas que expressam o
que os professores afirmam acerca das dificuldades que teriam em aplicar a ativi-
dade de game como o Kahoot Game.

315
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

TABELA 1 - Que dificuldades você teria para aplicar esta atividade?

CATEGORIAS (%)
Uso de internet/data show 30,3
Quantidade de alunos 17,6
Escolha das temáticas 15,3

Fonte: Questionário aplicado aos professores que frequentaram os cursos do CEFAF/UESPI


2018-2019

A fala do sujeito PLI 01 revela suas percepções acerca das dificuldades de


utilização dessas ferramentas. Para o sujeito PLI 11, ser professor é degradante.

As dificuldades de aplicação desta atividade em sala de aula, passa pela mediação com um nú-
mero de alunos muito grande, que chega a 45 por turma; mas com o auxílio de outro professor,
dar para aplicar. Por outro lado, o planejamento deve ser feito minuciosamente, levando-se em
consideração tudo isso. A outra dificuldade, são as escolhas das temáticas, pois o nível de imer-
são aos temas são muitos heterogêneos; mas é possível de adotar e aplicar a atividade. (PLI01).

As colocações “planejamento minucioso” e “escolhas temáticas” podem vir a re-


velar que estes professores têm uma clareza acerca do objetivo e potencial do uso
da metodologia ativa e que seu uso precisa atender certos requisitos para obtenção
de sucesso na aprendizagem do aluno. A categoria “quantidade grande de alunos”
evoca para as condições objetivas de trabalho do professor. O referencial teórico
estudado também tem identificado resultados bastantes próximos sobre as difi-
culdades que professores enfrentam a partir das condições objetivas dadas.

TABELA 2 - Que benefícios você teria para aplicar esta atividade?

CATEGORIAS (%)
Aumento de vocabulário 40,0
Interação em sala de aula 35,0
Entretenimento/ludicidade 25,0
Fonte: Questionário aplicado aos professores que frequentaram os cursos do CEFAF/UESPI 2018-
2019

Quanto à questão que perguntava sobre os benefícios, as categorias iden-


tificadas foram aumento de vocabulário (40,0%), interação em sala de aula
(35,0%) e Entretenimento/ludicidade (25,0%). Essas categorias podem sinalizar,
entre outros aspectos o potencial da atividade introduzida pelo professor de esti-
mular alunos e alunas a participarem, engajarem-se, dessa forma corroborando

316
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

com Bellanca (2009) e Conklin e Stix (2009) sobre o conceito de metodologias


ativas.
Bellanca (2009), Larsen-Freeman (2011), Nunan (1999) tem apontado al-
gumas questões que se colocam entre a escolha de um método e seu uso pelo pro-
fessor. Por um lado, há a necessidade de um planejamento minucioso e que procure
atender as necessidades do aluno, que são bastantes heterogêneas, por outro lado
há os desafios das condições existentes in locus.
Os dados também corroboram com os estudos de Larsen-Freeman (2011),
Nunan (1999), Ellis (2003), Conklin e Stix (2009) naquilo que se refere a métodos
e abordagens como um item inovador na pratica de professores quando estes de-
cidem por utilizar tais metodologias. Os professores, ao manifestarem essas inqui-
etações das dificuldades apresentadas podem revelar seu desejo de utilizar as me-
todologias inovadoras, mas terminam por identificar fatores que impedem sua
plena realização em sala de aula.

Análise das categorias que emergiram a partir das metodologias ativas Four
Corners, Balloon Game, QR Code e Super Challenge

Na questão (c) quais seriam os benefícios do uso destas atividades para


seus alunos todos os sujeitos reportaram o potencial da atividade envolver os alu-
nos e possibilitar a interação de forma bastante engajadora. Nas falas, os professo-
res manifestam diversos graus de interesse pelo uso e falaram acerca dos benéficos
da utilização das atividades em sala de aula. As categorias que mais apareceram
foram “estimula trabalho em equipe” (PLI 05), “ajuda na concentração” (PLI02,
07) e “ajuda a trabalhar Leitura e escrita” (PLI 02, 08). Os percentuais são apre-
sentados a seguir em resposta dada a pergunta.

TABELA 3 – Quais seriam os benefícios do uso destas atividades para seus alunos?

CATEGORIAS (%)
Trabalho em equipe 55,7
Concentração 30,3
Trabalha leitura e escrita 17,0

Fonte: Questionário aplicado aos professores que frequentaram os cursos do CEFAF/UESPI


2018-2019

317
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O sujeito PLI 02 descreve vários benefícios oriundos da utilização das


metodologias ativas e reconhece principalmente o fator de estimular o trabalho
em equipe, relacionar informações e ainda a presença do lúdico como uma referên-
cia a aprender de forma divertida um conteúdo proposto. A fala a seguir revela essa
afirmação:

Seriam vários os benefícios: serviria como estimulador e compartilhador de conhecimento,


através do lúdico; Estímulo ao fortalecimento cultural dos alunos; Novas formas de acesso a
informação, de se relacionar, de se comportar, aprender, trabalhar em grupo, e de se divertir
(PLI02)
O que é bem interessante nessa atividade é que nós (professores) conseguimos encaixar qual-
quer conteúdo e podemos fazer revisões sobre conteúdos já trabalhos e, por consequência, dei-
xar os alunos mais relaxados para as avaliações (PLI 06).
Acredito que a aprendizagem do idioma de forma lúdica além deles perceberem que aprender
um idioma vai além de regras gramaticais e interpretação de texto, envolve conhecer os diver-
sos aspectos culturais de cada país falante da língua inglesa. Costumamos ver os paralelos en-
tre a cultura de tais países e a cultura brasileira bem como o quanto ales estão absorvendo
aspectos culturais da americana através do uso excessivo das cedes sociais como: Facebook,
Instagram, Twitter e agora o TikTok. Ressalto a importância de aulas dinâmicas, pois melhora
o clima da sala, a aula fica mais divertida e eles se surpreendem com o que) aprenderam no final
da atividade (PLI 04).

Entender o que os professores dizem sobre o que essas atividades podem


proporcionar aos alunos coincide com aquilo que Stern e Huber (1997), Dukes
(2005); Arends e Kilcher (2010) retratam em seus estudos quais sejam a necessi-
dade do professor de buscar uma nova alternativa para a sala de aula tradicional,
recusando os métodos centrados no professor para métodos mais centrados no
aluno.

Considerações

As metodologias ativas se constituem em um desafio bastante interes-


sante para professores que tem se colocado como verdadeiros promotores de ações
transformadoras que se realizam na sala de aula. Como sujeitos que desempenham
um papel importante na implementação dessas novas abordagens, estes são con-
vidados a optar pelo novo, que muitas vezes é incerto e traz riscos na sua execução,
mas que no final terminam por contribuir para melhoria da prática desse profes-
sor.
Ao perceber a forma como o professor tenta relatar sua experiência em
implementar essas metodologias ativas em sua sala de aula, o mesmo se percebe
como um agente que precisa desenvolver sua pratica de forma reflexiva, colabora-
tiva, interdisciplinar, motivadora, enfim, de uma forma construtivista.

318
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A reforma implementada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC)


coloca as metodologias ativas como uma ferramenta metodológica e pedagógica
para o treinamento de professores e suas percepções não apenas revelam que é
possível a sua utilização, mas que estas trazem um impacto positivo para suas sa-
las de aula.
As respostas revelam um equilíbrio entre aspectos que oscilam entre que-
rer aplicar sem medo de resultados negativos pelo uso das referidas metodologias
e algumas limitações que são impostas quando se propõe pelo uso da atividade.
As percepções reveladas pelas respostas obtidas, nos levam a pensar que
a implementação e a opção pelas metodologias ativas passam necessariamente
pela disposição do professor de mudar uma pratica ainda enraizada pelos métodos
de ensino tradicionais.

319
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BELLANCA, James. 200+ active learning strategies and projects for engaging stu-
dents’ multiple intelligences. 2nd ed. Cornwin Press, 2009. A SAGE Company

LARSEN-FREEMAN, D., Anderson, M. Techniques and principles in language


teaching. Oxford: Oxford University Press, 2011.

NUNAN, D. Second language teaching and learning. Boston: Heinle & Heinle.
1999.

ELLIS, R. Task-based language learning and teaching. Oxford: Oxford. University


Press, 2003

CONKLIN,Wendy, STIX, Andi. Active Learning Across the Content Areas. Shell
education. Cornwin Press, 2009. A SAGE Company

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1991

ARENDS, R. I. KILCHER, A. Teaching for Student Learning: Becoming an accomplished


teacher. New York, NY: Routledge. Google Scholar, 2010

BERRY, W. Surviving lecture: A pedagogical alternative. College Teaching, 56, 149-


154. Disponivel em < http://dx.doi.org/10.3200/CTCH.56.3.149-153>, 2008.

BONWELL, C. C., EISON, J. A. Active Learning: Creating Excitement in the


Classroom. ASHEERIC. Higher Education Report No. 1, George Washington
University, Washington, DC, 1991.

BROWN, H. D, LEE, H. (2015) Teaching by principles: an interactive approach to


language pedagogy. 4th edition. White Plains, NY: Pearson Education.

DEWEY, J. Democracy and Education: An introduction to the philosophy of edu-


cation. New York, NY: Macmillan. (First published 1916. .1966.

DUKES, C. Best practices for integrating technology into English language in-
struction. 2005. Acessado em 11 de outubro de 2014. Disponível em
http://www.seirtec.org/publications/newswire/vol7.1.pdf

320
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

HARGREAVES, A., FULLAN, M. Professional Capital: Transforming teaching in every


school. New York, NY: Teachers College Press, & Toronto, Canada: Ontario Prin-
cipals’ Council, 2012.

STERN, D., HUBER, G.L. Active Learning for Students and Teachers: Reports
from Eight Countries, OECD and Peter Lang, 1997.

321
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

322
A INFLUÊNCIA DO DESLOCAMENTO DE MIGRAÇÃO SOBRE
A PERFORMATIVIDADE MATERNAL DAS DUAS MULHERES-MÃES
NAS OBRAS DE VIDAS SECAS DE GRACILIANO RAMOS
E AS VINHAS DA IRA DE JOHN STEINBECK

Raphael de Andrade Lima Amorim 1

INTRODUÇÃO

Pretendemos construir uma relação entre os romances Vidas Secas de Gra-


ciliano Ramos e As Vinhas da Ira de John Steinbeck. A possibilidade de comparar as
obras em questão reside, em particular, no fato de ambos os autores serem classi-
ficados como regionalistas, modernistas e comprometidos com a abordagem de
temáticas sociais. Coincidentemente, as narrativas a serem analisadas contam
as estórias de duas famílias que estão fugindo das dificuldades de suas terras de
origem na busca de novas oportunidades em outras regiões de seu próprio país.
A obra brasileira é centrada em uma família retirante da seca do nordeste brasi-
leiro rumo ao sul do país, percurso também percorrido pela família retratada na
obra norte-americana, que migra de Oklahoma para Califórnia impulsionada pelas
tempestades de poeira e principalmente pela Grande Depressão.
Nossa análise das obras de Graciliano e Steinbeck não se deterá na vida
dessas famílias, mas na construção da maternidade das personagens Sinhá Vi-
tória de Vidas Secas e Senhora Joad em As Vinhas da Ira, uma vez que ambas assu-
mem a centralidade do núcleo familiar e performam de um local marginal no
comando da família. Na narrativa de Steinbeck, testemunhamos o enfraqueci-
mento da figura do homem como provedor e a entrega da responsabilidade fi-
nanceira e familiar para Senhora Joad, personagem que assume o papel de guiar
a família durante os caminhos tortuosos. Já em Vidas Secas à personagem de
Sinhá Vitória não foi entregue a responsabilidade de guiar a família, porém ela
conquista espaço narrativo no decorrer da obra por suas necessidades de viver
e fazer com que sua família se mantenha junta e encontre condições melhores.

1
Graduado em Letras Português-Inglês pela Universidade de Pernambuco (UPE), Pós-Graduado em
Língua e Literatura Inglesa pela Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire) e Mestrando em Teoria da Li-
teratura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: raphaandradelima@outlook.com.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Sinhá Vitória, mulher, mãe, nordestina está sempre pensando e articulando as


situações para que a família viva da melhor forma.
As obras de Graciliano Ramos e John Steinbeck convidam, portanto, a
ler a crise provocada pelas variáveis econômicas como elemento capaz de repo-
sicionar a figura maternal na dinâmica familiar e repensar a ideologia patriarcal
na constituição sócio- cultural que afirma e justifica a presença de pré-concei-
tos em nome de uma inferioridade biológica feminina. O exercício que aqui pro-
pomos entra em consonância com as propostas feministas nos estudos literá-
rios que não somente revê, mas questiona como é construída a identidade femi-
nina e em função de quais valores.
O feminismo socialista, por exemplo, avançou ao aliar-se a estratégias
analíticas básicas do marxismo. O objetivo principal das feministas marxistas
foi expandir a categoria do trabalho a fim de definir o que algumas mulheres
faziam até mesmo quando a relação salarial se encontrava dentro do patriar-
cado capitalista. Nessa perspectiva, o trabalho feminino dentro de casa e as ati-
vidades das mulheres como mães passam a ser vistos à luz do conceito marxista
de trabalho (SAFFIOTI, 1976). As feministas marxistas desejam destacar a
questão de classe, junto com a de gênero, como princípios cruciais das produ-
ções literárias.
As teorias feministas interessam-se como teorias capazes de amparar a
exploração do inconsciente e a autonomia do pessoal, caminho que se mostrava
particularmente atrativo para a análise e reconhecimento da opressão da mulher e
por isso torna-se importante analisar as narrativas das personagens apresentadas.
Nos parece interessante abarcar nossa pesquisa em busca de possíveis
papéis de influência do deslocamento de migração sobre a performatividade
maternal nas referidas obras as quais serão analisadas, já que a migração se mos-
tra como temática essencial dentro das narrativas.
Entendemos a Literatura Comparada como uma arte metódica, pela
pesquisa de vínculos de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a
literatura dos outros domínios da expressão, de aproximar os fatos e os textos
literários entre si, distantes ou não no tempo ou no espaço, na condição que
elas façam parte de melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los.

GRACILIANO RAMOS X JOHN STEINBECK - OBRAS MODERNISTAS:


ROMANCES DE CONSCIÊNCIA SOCIAL

A grande onda cultural do modernismo que emergiu gradualmente na


Europa e nos Estados Unidos no início do século 20 expressou o sentido da vida
moderna através da arte como rompimento brusco com o passado e as tradições

324
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

clássicas da civilização ocidental. A vida moderna parecia radicalmente diversa


da tradicional — mais científica, rápida, tecnológica e mecanizada. O moder-
nismo abraçou essas mudanças.
Desde a década de 1890, uma tendência latente de protesto social fluiu
na literatura americana, vertendo no naturalismo de Stephen Crane e Theodore
Dreiser. Os autores socialmente engajados que vieram depois estavam ligados
aos anos 30 em sua preocupação com o bem-estar do cidadão comum e enfoque
em grupos de pessoas — famílias, como em As Vinhas da Ira de Steinbeck; ou
massas urbanas. (VANSPANCKEREN, 1994).
John Steinbeck (1902 - 1968) é hoje mais admirado pela crítica fora dos
Estados Unidos, em grande medida, porque recebeu o Prêmio Nobel de Litera-
tura em 1963 e a fama internacional que o mesmo confere. Em suas obras:

Nós vemos os personagens movidos por forças em si mesmos e na sociedade:


medo, fome, sexo, os desastres da natureza e os males do capitalismo. Crime é
frequentemente o resultado dessas forças. Steinbeck combina uma maneira na-
turalista de ver as coisas com uma profunda simpatia pelas pessoas e pela con-
dição humana. (HIGH, 1993, p. 163).

Seu romance mais conhecido é As Vinhas da Ira, em língua inglesa deno-


mina-se: The Grapes of Wrath (1939), ganhador do Prêmio Pulitzer, que acompa-
nha a labuta de uma família pobre de Oklahoma que perde suas terras na De-
pressão e vai para a Califórnia em busca de trabalho. A família é submetida a
condições de opressão feudais pelos ricos donos de terras. Steinbeck une rea-
lismo a um romantismo primitivo que acha virtude em pobres agricultores pró-
ximos à terra. Sua ficção demonstra a vulnerabilidade dessas pessoas que po-
dem ser expulsas pela seca e as primeiras a sofrer em épocas de instabilidade
política e depressão econômica. (VANSPANCKEREN, p. 76, 1994).
Pensando na obra do escritor brasileiro, segundo Massaud de Moisés
(2012, p. 530), o “Cangaço, misticismo carismático, secas código primitivo de
honra, - eis aspectos contextuais de que arranca a ficção de Graciliano Ramos”.
Entendemos as narrativas literárias de Graciliano Ramos (1892 -1953)
como expressão do imaginário social de determinado contexto histórico, tra-
duzindo-se em importantes recursos para se evocar as experiências do viver,
sobretudo, como interseções entre o sujeito e a realidade, capaz de desconstruir
paradigmas firmados como verdades, não obstante, dissonantes das especifici-
dades que permeiam o corpo social.
Os dois autores tinham um olhar atento para os desdobramentos históri-
cos, sociais e políticos e propusera-se a construir caminhos narrativos interessan-
tes para a literatura de denúncia.

325
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A FUNÇÃO MATERNAL DAS PERSONAGENS SINHÁ VITÓRIA EM


VIDAS SECAS E SENHORA JOAD EM AS VINHAS DA IRA .

É interessante compreender como as obras de Vidas Secas de Graciliano


Ramos e As Vinhas da Ira de John Steinbeck aproxima-se ou se distancia em nu-
ances comparativas que compreendem como foi construída a função maternal
de Sinhá Vitoria e Senhora Joad nas duas obras literárias.
A análise destaca questões da Sinhá Vitória e os desafios de uma mu-
lher nordestina referentes a construção do conceito de gênero ao longo da his-
tória, e, as formas com as quais este tem sido reiterado nas práticas sociais, o
que nos permitiu chegar a conclusões sobre o modo como as mulheres desde
sempre enfrentaram as demandas geradas pela opressão e ao mesmo tempo de-
senvolveram estratégias de resistência, ainda que silenciadas e confinadas ao
espaço doméstico.
A personagem Sinhá Vitória, por meio desses mesmos dispositivos,
conseguiu romper a ordem vigente, tendo em vista a conjuntura cultural na qual
estava inserida, caracterizada pela dominação masculina nas primeiras décadas
do século XX no Brasil. A condição das mulheres segundo Saffioti:

O desenvolvimento da indústria, intensificando pela guerra de 1914-18, que per-


mitiu um aumento de 83,3% da população operária no espaço de 13 anos, fez-se
através de ampla utilização da força de trabalho masculina, baixando, em termos
percentuais, o aproveitamento da mão-de-obra feminina nas atividades secunda-
rias. O rápido crescimento da produção industrial dos anos 30 acentuaria ainda
mais a queda na percentagem de mulheres empregadas nas atividades secunda-
rias. [...] Embora tenha havido uma elevação do número absoluto de mulheres em-
pregadas nos três grandes ramos da economia nacional, o aumento relativo do nú-
mero de homens foi substancialmente maior. (SAFFIOTI, 1976, p. 240).

As relações entre os sexos, nas diferentes sociedades, mostram, sobre-


tudo, dicotomias no exercício dos papéis sociais, pautados, predominante-
mente, a partir de um ponto de vista misógino e patriarcal pelo qual o homem
exerce domínio sobre a mulher.
Apesar da capacidade de resistência, ainda se observa a permanência
desses paradigmas totalizantes ainda na contemporaneidade. Tal perspectiva
exige problematizar os processos históricos.
Assim seria possível discutir as dificuldades e identificar as configura-
ções de práticas desiguais, consolidadas através do tempo histórico e firmado
em narrativas ao longo dos séculos, mesmo após as transformações resultantes
das lutas das mulheres.
Observamos que nossa análise se entende pelo caminho o qual procu-
ramos trilha para encontrar certos pontos da performatividade maternal nas
obras de Ramos e Steinbeck. Vemos que, segundo Beauvoir (2016, p. 279), “É

326
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

pela maternidade que a mulher realiza integralmente seu destino fisiológico; é


a maternidade sua vocação ‘natural’, porquanto todo o seu organismo se acha
voltado para a perpetuação da espécie”.
No entanto, as relações entre mães e filhos passou por inúmeras trans-
formações através dos tempos, da mesma forma, a emancipação feminina. Per-
corremos um longo caminho: de uma visão centrada no corpo e sexualidade à
santidade da figura materna. É importante entender que a cada dia que se passa,
os corpos femininos estão cada vez mais livres e sem a obstinação de promover
a procriação. Atualmente, as mulheres têm uma gama maior de possibilidades.
O aleitamento passou a ser insubstituível a mãe junto acriança. E estes
fatos biológicos passaram a justificar a inatividade profissional da mulher, o que
trouxe consequências negativas para a personalidade feminina. A mulher passa
a representar o papel de mãe. Constrói-se, sutilmente, toda uma ideologia da
importância da presença da mulher na educação de seus filhos. Segundo Saffioti:

A maternidade não pode, pois, ser encarada como uma carga exclusiva das mu-
lheres. Estando a sociedade interessada no nascimento e socialização de novas
gerações como uma condição de sua própria sobrevivência, é ela que deve pagar
pelo menos parte do da maternidade, ou seja, encontrar soluções satisfatórias
para problemas de natureza profissional que a maternidade cria para as mulhe-
res. (SAFFIOTI, 1976, p. 50).

Os cuidados aos menores, antes relegados a uma ama, ou aos irmãos


mais velhos, passam a ser de responsabilidade da mãe. As ideias iluministas refor-
çam o papel de educadora da mulher, ao mesmo tempo em que culpabilizam e in-
timidam aquelas que, por ventura, recusam-se a amamentar ou até mesmo a ter
filhos. Portanto, a ideologia que atribuía à mulher uma função reprodutiva e edu-
cadora, também estava fortemente presente no discurso antiabolicionista.
É natural, portanto, que a maternidade fosse usada como argumento
contra a instituição da escravidão, já que desviava a mulher de sua verdadeira
função. No entanto, na prática, as ideias iluministas pareciam servir apenas aos
senhores, não aos seus escravos. Das mulheres brancas, esposas e filhas de do-
nos de fazenda, esperava-se que casassem, constituíssem família e fossem boas
mães, esposas e filhas. Eram criadas preparando-se para a maternidade e acre-
ditando ser este o seu destino. Por outro lado, das escravas esperava-se que en-
gravidassem o maior número de vezes possíveis, sem se importar se os filhos
eram do mesmo pai, ou não: “Casamento e reprodução pressupunham cumprir
dupla jornada de trabalho e submeter-se a uma dupla sujeição – ao senhor e ao
marido”. (MACHADO, 2018, p. 335).
Após a gravidez, mães e filhos eram geralmente separados. A materni-
dade negra, nesse contexto, é vivenciada de maneira completamente oposta à

327
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

visão iluminista. É uma maternidade vivida na distância e no abandono, se-


gundo Maria Helena Machado, “o papel da maternidade na escravidão, deve-
mos, assim, considerar o fato de que homens e mulheres escravizados experi-
enciavam o sistema a partir de lugares distintos, sendo submetidos a diferentes
níveis de opressão” (2018, p. 335). Por outro lado, como mencionado anterior-
mente, era a mulher negra a responsável, muitas vezes, pelos cuidados aos filhos
de seus senhores. O seu leite e os seus carinhos eram reservados aos filhos de
seus senhores, não aos seus próprios.
Pensando em um contexto das personagens Mulheres-Mães, credita-
mos ser importante observar as performatividades das mães nas obras analisa-
das, já que vemos duas mulheres encarando as dificuldades e necessidad es de
cada família a qual as duas encabeçam.
É necessário entender que as mulheres ainda exercem funções as quais
a supremacia branca, sexista e capitalista pregam em seus discursos. Nós po-
demos ver duas vítimas de um sistema ao qual suas vontades enquanto mulher
são oprimidas e constantemente observadas para que exista uma seguridade de
que elas exerçam “bem” suas funções maternais.

A INFLUÊNCIA DO DESLOCAMENTO DE MIGRAÇÃO SOBRE A


PERFORMATIVIDADE MATERNAL NAS REFERIDAS OBRAS.

Devemos discutir a estrutura narrativa de duas jornadas épicas de duas


mulheres e suas respectivas famílias oriundas de contextos culturais distintos,
mas que partilham da mesma condição de errantes. É importante investigar os
pontos de semelhança e divergências na performatividade do papel maternal de
ambas as personagens retratadas nas histórias mencionadas em função de suas
condições migratórias e conjuntura socioeconômica:

A Questão da imigração passa a ser relacionada, cada vez mais, às crises econô-
micas e conturbações sociais internas de países periféricos, resultantes, em
grande medida, da política externa das nações hegemônicas, e do fenômeno do
pós- colonialismo. A imigração – sua dinâmica, suas causas e consequências eco-
nômicas, políticas e culturais – é, portanto, um dos temas mais discutidos e es-
tudados na contemporaneidades. (PORTO; TORRES, 2010, 225).

Fabiano e sua família eram eternos retirantes. A seca os empurrava cada


vez mais para dentro da caatinga e os formava a caminhar longos percursos sob o
sol ardente. De resto nenhuma posse, a família nada tinha de seu, a não ser, algu-
mas tralhas e utensílios, além de uns poucos farrapos de roupas.
Fabiano, vivia de trabalhar em terras alheias. Eram terras do latifúndio,
herança de antigos senhores de engenhos e ou fazendeiros de gado de tradição

328
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

patriarcal. A paisagem revelava que muitos desses latifúndios estavam deca-


dentes, e outros foram abandonados por não resistirem ao clima de seca, que
matava o gado e a plantação.
Sucessivos episódios nos apresentam cada um dos membros dessa família
e os sofrimentos por eles enfrentados naquela realidade dolorosa. A família era
composta de quatro membros. Fabiano era o pai, sinhá Vitória a mãe, o menino
mais velho e o menino mais novo, seus filhos. A eles estavam agregados ainda os
animais de estimação: a cadela Baleia e o papagaio. Fabiano era um homem serta-
nejo, vaqueiro, sem instrução e moldado pela própria existência. Não obstante, a
limitação discursiva, possuía a consciência da sua condição.
Em Vidas Secas, o autor brasileiro surpreende com a construção da perso-
nagem feminina, que sob o nome de Vitória do Latim Victoria, aquela que vence
encarna uma personalidade de luta pela sobrevivência. Sinhá Vitória, numa socie-
dade machista, era portadora do poder decisório na familiar, pois Fabiano, o seu
marido a considerava detentora do conhecimento que nele era uma falta. Fir-
mando assim, uma fragmentado uma ordem onde o homem é provedor do bem
estar e poder sob a família, pois a condição de gênero de Fabiano divergia da sua
atuação social, tendo em vista que no espaço público ele estava sempre desarticu-
lado, “Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher
tinha miolo” (RAMOS, 2015, p. 94).
Pensando nas experiências da personagem feminina da narrativa de
Steinbeck, nós vemos personagens retratadas em contexto histórico na grande de-
pressão econômica da década de 1930 o qual mudou o papel do sexo masculino na
sociedade americana, bem como do papel feminino, uma vez que as mulheres ame-
ricanas eram obrigadas a ingressar na força de trabalho para melhorar a renda da
família:

O colapso econômico de 1929 destruiu a felicidade, o clima confiante da América


na era dos anos 30, milhões de americanos perderam seus empregos e a nação
entrou em uma grande depressão. Os Estados Unidos estavam entrando em um
novo período de raiva social e autocrítica. Muitos escritores voltaram-se para
um novo tipo de realismo social. Mostrou a luta e as tragédias das pessoas co-
muns. (HIGH, 1993, p. 161).

No início da obra, a senhora Joad não pode expor seus pensamentos li-
vremente, ela tem que esperar para poder falar, mas esse comportamento começa
a mudar, mesmo porque ela é o tipo de mulher que sempre teve sua própria inde-
pendência, embora ela esteja sob um sistema patriarcal e precise se acomodar a
ele. A primeira vez que a mãe Joad é apresentada ao leitor, ela é descrita como:

329
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A velha era corpulenta, mas não gorda; engrossada devido aos muitos filhos e ao
muito trabalho que teve na vida. Trajava um vestido cinzento em que outrora
havia flores estampadas, flores já desbotadas, de modo que as flores eram cin-
zentas. O vestido ia até o tornozelo e os pés fortes, largos, descalços moviam-se
rápida, vivamente no chão. Os cabelos ralos, cor de aço, estavam amarrados à
altura do pescoço, formando um nó largo e bojudo. Os braços grossos, sardentos,
estavam nus até os cotovelos, e as mãos eram polpudas, mas delicadas, como das
meninazinhas gorduchas. (STEINBECK, 2008, p. 91).

Em sua aparência, existem símbolos universais de feminilidade e mater-


nidade. Sua aparência é modelada por ‘parto e trabalho’, a relação da senhora Joad
nos é mostrado sob um olhar o qual vai mudando ao decorrer da narrativa, porque
percebemos mudanças as quais fazem com que essa mulher ganhe a liderança
dessa família.
Desde o início da caracterização da Joad, somos de certa forma familiari-
zados com sua personalidade forte e sua posição discreta de liderança. O lugar dela
é importante. A personagem norte americana ter uma forte relevância no caminhar
da família é afirmado no início do romance, na primeira descrição:

Ela parecia cônscia do papel importante de baluarte da família que desempe-


nhava, parecia saber da importância da posição que ocupava e ninguém lhe pode-
ria jamais disputar. E visto que o velho Tom e as crianças não conheciam doença
ou medo desde que a mãe não os sentisse, ela acabava por não conhecer qualquer
hesitação. E quando algo de alegre, prazenteiro, lhes acontecia, eles primeiro olha-
vam para ela, a fim de ver se ela estava alegre, a mãe estava acostumada a tirar
alegria mesmo das coisas menos alegres (STEINBECK, 2008, p. 91-92).

Ela está ciente de seu poder sobre a família; no entanto, seu senso de
tradição e respeito pela hierarquia impedem sua expressão aberta, exceto
quando necessário. A senhora Joad é simples e complexa, uma líder e uma se-
guidora. Nós temos duas mulheres, tanto a senhora Joad quanto Sinhá Vitoria
cuja ignorância não interfere em sua sabedoria.
O comportamento da Senhora Joad pode parecer contraditório, porque
ela é humilde e segue a hierarquia patriarcal, mas ao mesmo tempo seu discurso
e atitude são de revolta. Na verdade, ela não quebra com a ideia de tradição e
hierarquia, porque esses elementos mantêm o valor da sociedade patriarcal que
valoriza a família. E também porque a tradição patriarcal coloca a mãe em um
pedestal, fazendo da mãe um elemento de união na família, ‘parecia saber que
dependia dela o edifício de sua família; que se ela se mostrasse perturbada ou
tomada pelo desespero, todo esse edifício desmoronaria ao menor sopro de ven-
tos adversos’ (STEINBECK, 2008, p. 92).
No começo da história, a senhora Joad vive em acomodação em ação,
pois obedece às regras patriarcais, embora seu discurso seja sempre forte e deci-
sivo. Suas primeiras palavras refletem sua hospitalidade. Sem saber quem eram

330
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

os companheiros de cerimônia - para seu filho, o jovem Tom Joad estava de volta
da prisão, junto com o ex- pregador Casy - ela está pronta para compartilhar a
pouca comida que restou e pede que eles entrem em sua casa. Os Joads acabaram
de perder suas casas e um pedaço de terra, mas ela é responsável por um senso
de comunidade que refletirá sobre seu comportamento em relação às pessoas.
As palavras da senhora Joad refletem que, na trama, o livre arbítrio tem
um papel importante e, mais tarde, os Joads farão várias escolhas livres para ga-
rantir a sobrevivência do grupo. Foi ela quem fez o grupo decidir levar o ex-prega-
dor com a família para a Califórnia, e sua atitude foi baseada em um senso de com-
partilhamento e comunidade. Sem perceber, o velho Tom Joad consultou a esposa
e deu a ela a oportunidade de falar e decidir o que representa uma evolução em seu
comportamento. No entanto, ele não esperava o tom poderoso de sua opinião. Os
homens da família parecem perceber a importância da mãe.
Na narrativa brasileira, percebe-se de antemão quão bem calculado foi a
escolha do nome Sinhá Vitoria pelo autor, principalmente ao combiná-lo com o
pronome de tratamento Sinhá, usado, normalmente, para nomear mulheres, casa-
das, das classes menos abastadas no sertão nordestino. O pronome consistia numa
forma respeitosa de tratamento, e na variação de Sinhá, termo inicialmente empre-
gado na sociedade escravagista para se referir mulheres da classe dominante.
Sendo assim, através do nome, sinhá Vitória evoca, ao mesmo tempo, a condição
social da personagem como também o poder por ela exercido naquele contexto.
Sinhá Vitória permite que o sertão seja apresentado pelo olhar de uma
mulher. A personagem feminina poderia configurar um ser frágil, entregue as
contingências daquele contexto, pois Sinhá Vitória vivia em más condições com
a família. Essas duas Mulheres/Mães eram retirantes de destino incerto que pe-
regrinavam nas terras, acompanhando suas famílias. No entanto, observamos
mulheres persistentes, movidas por sonhos: “Sinhá Vitoria desejava uma cama
real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da Bolandeira” (RAMOS, 2015,
p. 46) já a Senhora Joad queria “uma casinha branca rodeada de pés de laran-
jeira. Ela viu um quadro assim numa folhinha” (STEINBECK, 2008, p. 186).
A capacidade de sonhar, oportunizava lhes adentrar no universo do ima-
ginável, além disso, tornava possível vislumbrar mecanismos para a realização dos
seus desejos. Os sonhos alagavam-lhes os espaços fazendo-a movesse no sentido
da superar as limitações em que vivia e das convenções que lhes eram impostas.
As personagens acreditavam em poder encontrar meios para transformar a vida de
suas famílias. Para Vitória literalmente o sonho era o limite. Possuidora de uma
lucidez incomum, especialmente no que se referia a julgar o mundo e as pessoas.
Sempre dizia a coisa certa. Mas, por vezes, abandonava-se a imaginar outras for-
mas de viver.

331
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Para a vida ser boa, só faltava Sinhá Vitória uma cama igual de seu To-
más da bolandeira. “Suspirou, pensando na cama de varas em que dormia” (RA-
MOS, 2008, p. 81). Este sonho possuía uma dimensão muito maior na vida de
sinhá Vitória. Ao mesmo tempo em que era um pretexto para a personagem não
perder de vista os seus objetivos, consistia também, numa metáfora de todas as
mudanças que ela pensava em realizar.
A personagem situada no início do século XX, na região Nordeste do Bra-
sil, e consequentemente não possuía uma consciência de luta, mostra-se uma mu-
lher valente e altera a ordem dominante. Consequentemente, ao se posicionar
questionando a sua realidade, anuncia o seu lugar de fala contra toda a trajetória
de silenciamento imposto às mulheres. Segundo Zinani:

Na década de 60 do século XX, o feminismo, efetivamente, assume o caráter de


força política e social. A partir de então, abrange um amplo espectro, discutindo
a opressão feminina, originária do regime patriarcal, reivindicando igualdade nas
oportunidades de educação, de emprego e remuneração, de autonomia corporal,
entre outros aspectos. (ZINANI, 2015, p. 412).

Fabiano aceitava os cálculos da companheira. Entretanto, ao questionar


as contas diante do patrão, recebeu dele uma ameaça de despejo, pois vivia a cul-
tivar terras de latifúndio na luta pela sobrevivência. Sentindo-se acuado e sem ver
solução, negligenciou a inteligência de Sinhá Vitória, acatando os cálculos feitos
pelo dono da fazenda. Embora, tivesse ciência de que, com isso, tornava-se cada
vez mais endividado e sob o jugo daquele senhor. Continuaria trabalhando como
escravo sem ter lucro algum. O fato de saber que Sinhá Vitória estava certa gerou
em seu interior grande conflito. Fabiano não dispunha de formas para enfrentar o
patrão:

Sinhá Vitória fazia contas direito: sentava-se na cozinha, consultava montes de


sementes de várias espécies, correspondendo a mil-réis, tostões e vinténs. E acer-
tava. As contas do patrão eram diferentes, arranjadas a tinta e contra o vaqueiro,
mas Fabiano sabia que elas estavam erradas e o patrão queria enganá-lo. Enga-
nava [...] Mas as contas de sinhá Vitoria deviam ser exatas. Pobre sinhá Vitória.
(RAMOS, 2015, p. 114).

Silenciou, também, a esposa, que ainda assim, contrariando o falocen-


trismo, era a porta-voz da família, pois era ela quem melhor articulava a linguagem.
Fabiano dependia da opinião da esposa para tomar qualquer decisão, era
nela que ele pensava, ao enfrentar todas as dificuldades, “Sinhá Vitoria tinha razão;
era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano arregalava os olhos e desejava
continuar a admirá-la” (RAMOS, 2015, p. 115). Precisava consultar sinhá Vitória,

332
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

combinar a viagem, explicar-se, convencer-se de que não praticara injustiça ma-


tando a cachorra. Necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados.
A companheira sempre tinha uma solução, uma resposta para suas inqui-
etações, atribuía sinhá Vitória a autoridade que por imposição dos valores e deve-
ria ser exercida por ele, na condição de homem da família.
Na citada narrativa de Graciliano Ramos observa-se a quebra do discurso
tradicional através da personagem feminina. Esta assume a fala e exprime em lin-
guagem a alocução cujo marido, na posição de dominante, não consegue dizer. A
competência discursiva de sinhá Vitória rompe com as de supremacia masculina,
que por muito tempo, foram certificadas através da ciência e da religião. Tais con-
ceitos, consolidados nas práticas sociais excludentes, determinaram como verda-
deiras a sujeito e a invisibilidade das mulheres, enquanto sujeitos da história.
No romance Vidas secas, essas construções discursivas revelam as meras
fragmentações realizadas pela personagem sinhá Vitória que interpela os códigos
dominantes do seu tempo, e, intervém, ao seu modo, na ordem masculina. Por con-
seguinte, a personagem feminina comporta-se: transgredindo normas, assumindo
a posição de líder e mobilizando o seu grupo familiar.
Vale observar também o caráter transgressor da escrita de Graciliano, no
que se refere as normas do seu tempo. Época está, na qual a voz dominante era
masculina, entretanto, o autor da competência discursiva a uma personagem fe-
minina.
Em sua obra, Steinbeck também analisa os conflitos, as necessidades e o
medo das mulheres brancas analfabetas, marcadas pela mais terrível perda que
uma mulher pode sofrer: a perda de seus filhos. Steinbeck afirma que as mulheres
podem mudar melhor que os homens, por isso vivem prontas para enfrentar os
perigos da vida. Através dessa atitude o escritor quebra a sombra da misoginia.

333
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura comparada é uma arte metódica, pela pesquisa de vínculos


de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a literatura dos outros
domínios da expressão, de aproximar os fatos e os textos literários entre si, dis-
tantes ou não no tempo ou no espaço, na condição que elas façam parte de melhor
descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los.
Pode-se considerar um texto como uma espécie de objeto único, que se
transforma em documentos que são incomparáveis, mas que podem ser analisados
de acordo com características similares conforme a construção de certos aspectos
das obras, em virtude de similaridades que conversam entre si e que não necessa-
riamente dforam escritos em um mesmo período ou por um mesmo autor.
O autor brasileiro descreve as paisagens do nordeste, porém enfatizando
os problemas que ali se encontram. Alguns de seus romances mostram um perfil
psicológico e sócio-político que nos incita a uma visão crítica dos rumos que a
sociedade moderna vem tomando. A análise psicológica que o autor faz de seus
personagens parte do regional para o universal, mostrando o homem comum que
convive com classes superiores e autoritárias que, ao invés de amenizarem, aumen-
tam seus problemas. Existem personagens problemáticos, que não aceitam o
mundo que os reprime e acabam por não aceitar a si mesmo, numa briga interna
que só compete com a opressão e a dor da realidade que castiga.
O nordeste com todo o seu drama social é o palco desse conflito em Vidas
Secas (2015): a seca que muitas vezes leva a uma partida forçada, a desigualdade
social preocupante, a fatalidade e a eterna guerra contra a hostilidade e a severi-
dade da natureza, contrastando com o mundo psicológico de cada personagem,
que às vezes se mostra sonhador e utópico.
Já se foi abordado aqui sobre a necessidade dessa análise, porém dei-
xemos bem claro a importância dessas obras darem suas contribuições para a
literatura comparada e quanto elas tornam-se tão relevantes para esses estudos
comparativos, seja pelas estórias, pelas personagens mães, questões religiosas
entre outros aspectos os quais venham a aparecer nas narrativas estudadas.
A história dessas famílias de retirantes que caminham sem rumo à pro-
cura de melhores condições de sobrevivência, de preferência longe da miséria.
Sendo os autores escritores preocupados com a realidade social de seus tempos.
Os autores demonstram as mulheres judiadas pela vida sofrida, com muita inteli-
gência e uma vontade enorme de vencer as dificuldades, mas com a fraqueza física
causada pelo tempo, que resistia a uma vida desgraçada pelas necessidades delas
e de suas respectivas famílias.

334
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Na leitura de Vidas Secas do autor brasileiro Graciliano Ramos, percebe-


mos que a narrativa tem uma história com pontos de semelhança com a obra de As
Vinhas da Ira do autor norte-americano, estes que foram dois grandes autores do
modernismo no século XX. Por mais que as obras apresentem semelhanças o nosso
foco foi analisar comparativamente as representações femininas das duas mulhe-
res-mães nas obras.
As mulheres mesmo em obras distintas partilham de sentimentos
muito próximos, os traumas, as angústias, e as crises vividas pelas mães nas
obras. Os dois autores mostram duas personagens muito fortes e que se sobres-
saem dentro de suas respectivas narrativas “Cabe-nos acrescentar que, repeti-
doras de um discurso alheio, essas heroínas são, também, curiosamente, criatu-
ras criadas por autores masculinos que falam por elas” (BRANDÃO; BRANCO
2004, p. 50).
Aos homens a sociedade reserva lugar privilegiado e o espaço público; ao
mesmo tempo em que as mulheres estavam destinadas à esfera do privado e, con-
sequentemente, a tudo o que concerne ao doméstico, a casa, o lar. Na metade do
século XX, havia uma infelicidade diante da vida, do cotidiano das mulheres. O
discurso estava articulado a cunho político-social comprometido com o resgate de
vozes que foram silenciadas.
Analisar essas duas personagens foi importante, porque as personagens
são fundamentais para o contexto o qual estão inseridas, e seus personagens den-
tro de uma análise comparada conversam muito bem por apresentarem caracte-
rísticas tão cruciais dentro de suas obras e da representatividade a qual elas estão
postas.
A importância dessas narrativas arremete-se a importância social a qual
esses dois autores procuram retratar e denunciar, mas suas personagens vão muito
mais além do que está dentro das obras, um exemplo revelador das potencialida-
des através de outros expedientes como a superioridade intelectual.
Compreendemos que a literatura comparada e a crítica literária feminista
são ferramentas chaves de nossa análise, depois falamos sobre as obras e como se
relacionam e o que estamos analisando a partir delas, e abordamos as representa-
ções femininas e as teorias as quais serão utilizadas para esses estudos.

335
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida, volume 2. Tra-


dução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BRANCO, Lucia Castelo e BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio


de Janeiro: Lamparina editora, 2004.

HIGH, Peter B. Na outline of American literature – history and criticism.


New York: Longman, 1993.

MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. 2018. Mulher, corpo e materni-


dade. In: Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes (Org.). Dicionário da escravidão e
liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 334-340.

MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. – 29. Ed. Ver.
Ampl. – São Paulo: Cutrix, 2012.

PORTO, Maria Bernadette. TORRES, Sonia. Literaturas Migrantes. In: FI-


GUEIREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e cultura. 2° Edição. Niterói:
EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF, 2010. p. 341- 365.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. – Ed. Revista. Rio de Janeiro: Record, 2015.
SAFFIOTI, Heleith Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e
realidade. Petrópolis, Vozes, 1976.
STEINBECK, John. As Vinhas da Ira. Tradução de Herbert Caro e Ernesto Vi-
nhais. Rio De Janeiro: Record, 2008.
VANSPANCKEREN, Kathryn. Perfil da Literatura Americana: Edição Revi-
sada. Estados Unidos da America: Publicado pelo Departamento de Estado dos
Estados Unidos da América, 1994.
ZINANI, Cecil Jeanine Albert. 2015. Feminismo e Literatura: apontamentos
sobre crítica feminista. In: João Sedycias (Org.). Repesando a teoria literária
contemporânea. Recife: Editora UFPE, p. 407-434.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: A construção da Identi-


dade feminina. Brasil: Educs, 2013.

336
A MUDEZ DO SUJEITO COLONIZADO EM FOE, DE J M COETZEE:
A METÁFORA DA SUBORDINAÇÃO E DA RESISTÊNCIA

Rosa Áurea Ferreira da Silva 1

INTRODUÇÃO

Jonh Maxsuel Coetzee, escritor sul africano, insere-se em um contexto


em que a escrita de obras pós-coloniais surpreende pela capacidade de articular
discussões variadas sobre problemas sociais vivenciados pelos povos coloniza-
dos, não apenas no contexto de seu país, mas também de outras nações africa-
nas. As características da obra de Coetzee coadunam-se com a situação presen-
ciada pelo autor em um período crítico na África do Sul, a saber, o Aparthaid,
regime caracterizado pela segregação dos negros e um forte preconceito racial
que “mutilou” as vozes de milhares de homens e mulheres negras, atribuindo-
lhes uma forte pressão social e violação de direitos.
Nascido em 1940, Coetzee escreveu mais de vinte obras, muitas delas
concedendo-lhe vários prêmios, dentre estes, o Prêmio Nobel de Literatura em
2003, dado ao autor pela singular escrita do romance Foe, publicado em 1986.
Neste, o autor faz uma reinterpretação de obras consagradas do cânone euro-
peu, metaforizando uma reescrita, cuja interpretação acontece por vias diferen-
tes das obras canonizadas, focalizando uma visão diferenciada e sob uma ótica
divergente, valorizando o colonizado e as várias faces da colonização.
Das obras em que o romance Foe faz uma releitura destaca-se a conhe-
cida narrativa de viagem do escritor Daniel Defoe, Robinson Crusoé. Foe, conside-
rado um romance metaficcional, conduz para suas páginas um personagem es-
critor, o sr. Daniel Foe, como uma alusão ao nome do escritor inglês. A releitura
direciona o leitor a uma reinterpretação dessa narrativa de viagem por apresen-
tar um escravo negro africano com o mesmo nome, Sexta-Feira, além do náu-
frago Cruso (referência explícita ao personagem Robinson Crusoé), a ilha, den-
tre outros aspectos. Por ser a narrativa Robinson Crusoé uma reescritura de A

1
Graduada em Letras Português pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI); Especialista em Estu-
dos Literários pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI); Mestre em Letras pela Universidade Fe-
deral do Piauí (UFPI); Professora de Língua Portuguesa da SEDUC-MA.
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

tempestade, entende-se a estreita ligação entre esta peça e o romance Foe. Con-
forme Bonicci (1998) a reescrita constitui-se como uma das estratégias usadas
pelo escritor pós-colonial para subverter o discurso dominante da colonização.
Com uma narrativa que diverge das outras de viagens, tendo em vista que estas
são narradas basicamente por narradores masculinos, Foe transcende estes li-
mites introduzindo na narrativa uma voz feminina questionadora, a da náu-
fraga Susan Barton. Esta, saindo da Bahia e navegando em busca de sua filha
perdida, é vítima de um amotinado, juntamente com o capitão do navio, de
quem é amante. Susan é colocada em um barco com o capitão já morto, rema
com bravura até chegar em terra firme. Já sem forças, a narradora é salva por
Sexta-Feira, que a leva ao encontro do náufrago Cruso, um inglês que habita a
ilha há 15 (quinze) anos.
Através da narrativa e reflexões feitas por Susan Barton, o autor em-
preende questionamentos sobre as narrativas de viagens produzidas por auto-
res canônicos, assim como as questões relativas à ideia de verdade, o que para
Alfredo Bosi é algo que singulariza a literatura. Para o teórico “A literatura, com
ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, con-
siderado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais
exigente” (BOSI, 1996, p. 27).
Embora não seja esse o foco do trabalho, é importante frisar que estas
reflexões são importantes no sentido de visibilizar as possibilidades de leitura da
obra, que apesar de dar maior ênfase à questão do silenciamento da fala dos escra-
vizados africanos, através do personagem Sexta-Feira, também se apresenta com
um universo possível de entendimento no entrecruzamento de vozes que se espa-
lham para além das páginas ficcionais.
Além de disso, o questionamento do cânone europeu faz pensar sobre
uma postura crítica do escritor, o que torna Foe um romance lido sob uma ótica
pós-colonial ao denunciar a opressão do sujeito colonizado, contrariando as for-
mas eurocêntricas de visões “privilegiadas”, o que Inocência Mata debate no texto
Para uma geocrítica do eurocentrismo, quando reflete sobre a condição das literaturas
ditas “periféricas” e o seu consumo, o que para a estudiosa “apenas o ensino de
outras literaturas e a sua inscrição no mapa das ‘literaturas consumidas’ podem re-
verter a dimensão eurocêntrica da instituição canônica [...]” (MATA, 2012, p. 135)
De cunho metaficcional, a narrativa de Foe visualiza a figura do persona-
gem Sr. Foe, uma alusão ao autor de Robinson Crusoé, Daniel Defoe. Aquele é des-
crito na narrativa como um eficiente escritor que reescreve histórias de várias pes-
soas que o procuram para relatar suas aventuras.

338
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

A noção de verdade é discutida quando Susan Barton o procura ao chegar


à Inglaterra, depois de resgatada da ilha junto com Sexta-Feira. A personagem ins-
tiga ao escritor para que ele narre as aventuras que ela viveu na ilha, assim como a
história de Cruso e Sexta-Feira. O Sr. Foe considera a narrativa interessante, po-
rém incita a Susan para que ela o deixe colocar um pouco de inspiração em seu
relato, ou seja, maquiar a história com aventuras não vividas, a fim de tornar o livro
mais vendável e apreciado do público leitor. Susan recusa a oferta por não achar
interessante que sua história seja deturpada em nome de uma suposta história
digna de aceitação. Assim, continua a insistir com o escritor para que ele narre sua
história com a veracidade dos acontecimentos, porém esbarra em um problema
que perpassa toda a reflexão da narrativa, uma vez que a náufraga não dispõe de
todos os fatos que gostaria que fossem colocados no papel, já que desconhece a
história de Sexta-Feira e os sofrimentos vividos por este, decorrentes da mutilação
de sua língua quando ainda era pequeno: “Talvez quisessem impedir que ele algum
dia contasse sua história: quem ele era, onde ficava sua casa, em que circunstâncias
foi pego. Talvez eles cortassem a língua de todo canibal que pegavam, como cas-
tigo. Como poderemos saber a verdade?” (COETZEE, 2016, p. 23).
Não é sem razão que Coetzee empreende todos estes questionamentos,
visto que, no decorrer da narrativa, a narradora vai aprofundando suas reflexões e
indagando-se sobre a verdadeira identidade de Sexta-Feira e a verdade sobre a cas-
tração de sua língua. Considera-se de suma importância essa metáfora, pois per-
passa toda a narrativa e nela se centra o cerne do discurso sobre o emudecimento
do sujeito colonizado. Através da mutilação do personagem africano, a narrativa
dá margens para se pensar sobre as diversas formas de agressão e barbarismos por
que passaram os povos colonizados:

“Fiquei olhando perplexa. ‘Quem cortou a língua dele?’


“Os negreiros.’
“‘Os negreiros cortaram a língua dele e o venderam como escravo? Os traficantes
de escravos da África? Mas com certeza ele não passava de uma criança quando
foi pego. Por que cortariam a língua de uma criança?’ (COETZEE, 2016, p. 23).

Outrossim, as alusões ao entendimento do que seja a verdade, dar mar-


gem para se compreender criticamente as diversas narrativas sobre os colonizados
africanos, muitas vezes descritas sob a ótica do colonizador. Este é, quase sempre,
retratado com características positivas, detentor do saber, da capacidade de per-
suasão e trabalhador, em detrimentos da falta de humanidade do colonizado, sem-
pre visto como bestial, de traços rústicos, desprendido de “civilização”, o que se
percebe na fala de Susan Barton, mulher branca, europeia: “Até então eu havia
achado Sexta-Feira uma criatura sombria e dado a ele uma atenção não muito

339
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

maior do que a que eu teria dado a qualquer escravo doméstico no Brasil” (COET-
ZEE, 2016, p. 24). Apesar dos questionamentos positivos sobre as atrocidades co-
metidas contra Sexta-Feria, que percorrem a narrativa por meio de Susan Barton,
esta assume, de certa forma, o caráter conferido ao colonizador, que vê o coloni-
zado de forma diferente, não civilizado.
As metáforas da castração do colonizado são entendidas como uma forma
de calar a voz do negro africano, a fim de sujeitá-lo aos mandos e desmandos da
colonização. Apesar disso, compreende-se também que o autor visibiliza algumas
formas de subversão empreendidas pelos povos colonizados. Na narrativa, isso é
percebido nas características do personagem Sexta-Feira, quando este se recusa a
aprender os costumes e a linguagem escrita do colonizador. É nesse sentido que
se discutirá, na próxima seção, as metáforas da castração e mudez do colonizado,
bem como algumas formas de resistência à colonização.

CASTRAÇÃO E RESISTÊNCIA: A DUPLA FACE DA COLONIZAÇÃO

No romance Foe, Coetzee, dentre as várias formas de evidenciar as fa-


ces da colonização, retrata a língua como um fator primordial de identidade.
Assim, desenha o personagem sem voz, sem direto à fala. Nesse aspecto se en-
tende a importância da linguagem como um meio de comunicação e expressão.
A mudez do personagem Sexta Feira, decorrente da mutilação de sua
língua, é percebida como uma metáfora do autoritarismo e barbarismo do colo-
nizador, que por meios, algumas vezes, escusos, infligia normas rígidas a serem
seguidas pelo colonizado. Imprimindo os costumes, a religião e as diversas for-
mas de tornar o sujeito “civilizado”, o colonizador com sua suposta superiori-
dade calava a voz do colonizado.
Entretanto, se por um lado há a falta de voz do colonizado infligida
pelo colonizador, há também uma resistência desse sujeito ao se recusar a
aprender uma língua que não é a sua. Essa resistência metaforiza, por conse-
guinte, a luta diária do colonizado em não se dobrar aos desmandos do coloni-
zador. Algo que se percebe com as lutas por libertação, assim como a recusa de
usar uma língua ensinada com um único propósito de exercer o domínio do ou-
tro colonizado. Nesse sentido, se percebe que, enquanto em A tempestade, Cali-
ban aprende a linguagem do colonizador e a usa como uma forma revoltosa de
maldizer, em Foe essa resistência acontece de forma diferente, a saber, a recusa
em aprender a língua, o que destoa da obra de Daniel Defoe, em que se percebe
um escravo subserviente a seu senhor.

A metáfora da mutilação da língua

340
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O romance Foe, dentre as possíveis interpretações que se pode apreen-


der, está a problemática da castração da língua do africano Sexta-feira. Ainda
pequeno este teve sua língua cortada por aqueles que o tomaram como escravo.
Assim, o personagem nunca pôde se comunicar usando a linguagem falada. Essa
discussão percorre toda a narrativa, a partir do momento em que Susan Barton
questiona a falta da fala de Sexta-Feira, sendo revelado por Cruso que o escravo
tivera sua língua cortada quando ainda criança. Tal fato leva a narradora a in-
dagar-se em todo momento sobre o autor de tal atrocidade, chegando a descon-
fiar do atual senhor de Sexta-Feira.
Ainda que não seja evidenciado na narrativa o autor da castração, o que
se deve compreender é que esse fato em Foe revela as atrocidades sofridas pelos
negros escravizados, sendo possível uma interpretação relativa às graves for-
mas de opressão da colonização. Com efeito, a língua, considerada um aspecto
identitário muito forte de uma nação, era uma das primeiras fontes culturais a
serem castradas, sob a forte suposição de ser considerada inferior à língua do
colonizador. Alfredo Bosi afirma que “Aculturar um povo se traduziria, afinal,
em sujeitá-lo, ou no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo
padrão tido como superior” (BOSI, 1992, p. 16). Assim sendo, aculturar linguis-
ticamente um povo significa a sustentação da ideia de que existem línguas pa-
drões que detêm uma suposta “superioridade” em relação a outras, acentuando
a “inferioridade” das línguas autóctones do colonizado.
Segundo Memmi (2007), o colonizador geralmente utiliza formas de
desqualificação do colonizado. O teórico afirma que esse mecanismo “consiste
primeiramente em uma série de negações. O colonizado não é isto, não é aquilo.
Jamais é considerado positivamente; se o é, a qualidade concedida está ligada a
uma falta psicológica ou ética” (MEMMI, 2007, p. 122).
Em A tempestade se observa que Próspero utilizou-se do poder que a lin-
guagem tem para convencer Caliban a mostrar-lhe todos os mistérios e encan-
tos da ilha. Por meio da linguagem, o colonizador pôde ludibriar, alavancando
todos os artifícios de convencimento que a mesma proporciona.

Caliban: Está na hora do meu jantar. Esta ilha é minha; herdei-a de Sicorax, a
minha mãe. Roubaste-ma; adulavas-me, quando aqui chegaste; fazias-me carí-
cias e me davas água com bagas, como me ensinaste o nome da luz grande e da
pequena, que de dia e de noite sempre queimam. Naquele tempo, tinha-te ami-
zade, mostrei-te as fontes frescas e as salgadas, onde era a terra fértil, onde esté-
ril... (SHAKESPEARE, 2000, p. 28).

Em Robinson Crusoé, o náufrago inglês também ensina ao seu criado a


linguagem, a fim de que o mesmo permaneça subserviente e aprenda alguns
preceitos que lhe são ensinados: “Depois, ensinei-lhe as palavras sim e não, para

341
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

que pudesse responder-me, certamente, a propósito disto ou daquilo” (DEFOE,


2000, p. 58). A língua inglesa, costumes, religião, obediência servil, também são
alguns dos ensinamentos transmitidos a Sexta-Feira pelo protagonista narra-
dor: “Ensinou-lhe os costumes e a como se portar como ‘civilizado’: Num ins-
tante, fiz com que perdesse o gosto canibalesco, dando-lhe a provar da minha
comida e, em seguida, fazendo com que visse quão terrível era alimentar-se de
carne humana” (DEFOE, 2000, p. 59).
Considerando os pressupostos de Spivak (2010) sobre o subalterno,
consubstanciados pela própria indagação do título do seu ensaio Pode o subal-
terno falar?, entende-se na figura de Sexta Feira em Foe uma completa falta de
voz, de fala. O personagem, de fato, não consegue falar e nunca conseguirá, já
que não tem língua. Esta metáfora alude a uma completa castração da fala do
colonizado, além de evidenciar a suposta superioridade da língua do europeu
em detrimento da “inferioridade” da língua do colonizado africano. A mutilação
é uma metáfora alegorizada pelo autor para discutir as diversas formas de
agressão por que passaram os povos colonizados. Estes foram impedidos de
usar as línguas autóctones para se comunicar, sendo-lhes imposta outra língua
como forma de manter um diálogo nada amistoso por parte do colonizador. Isso
é perceptível na fala de Susan Barton, reconhecendo que um dos propósitos de
ensinar a língua é para fazer valer a vontade do colonizador:

Digo a mim mesma que converso com Sexta-Feira para educá-lo, para que saia
do escuro e do silêncio. Mas será verdade? Há momentos em que a benevolência
me abandona e uso palavras apenas como meio mais curto para sujeitá-lo à mi-
nha vontade. Nestes momentos, entendo por que Cruso preferiu não perturbar
a sua mudez (COETZEE, 2016, p. 56).

Destarte, a mutilação impediu o personagem africano de articular os


desejos e motivações por meio da linguagem, transformando-o em um “não hu-
mano”, uma vez que a fala é um traço que distingue os seres racionais dos não
racionais como afirma Silva: “Sendo a fala traço distintivo dos seres racionais,
o emudecido Sexta-Feira é excluído por Susan da categoria dos humanos”
(SILVA, 2000, p. 240).
Sabe-se que a língua é uma das formas identitárias mais prementes, ca-
paz de desarticular as teias do discurso colonial. Destarte, é uma das armas mais
poderosas utilizadas pelo colonialismo no intuito de infligir normas e convencer
o sujeito colonizado. Em Foe, em vez de imprimir outra língua ao colonizado, há
a mutilação, o que também é feito para manter o colonizado sob domínio.

Ora, quando Cruso me disse que os traficantes de escravos tinham por hábito
cortar a língua de seus prisioneiros para torná-los mais tratáveis, confesso que
me perguntei se ele não estaria usando uma imagem, por delicadeza: se a língua

342
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

perdida poderia significar não apenas ela mesma, mas uma mutilação mais atroz;
se por escravo mudo eu devia entender um escravo emasculado (COETZEE,
2016, p. 107).

Ou seja, não apenas um escravo mudo no sentido literal do termo por lhe
faltar a capacidade de articular palavras de qualquer língua, causada pela desti-
tuição do membro que confere aos seres humanos a prerrogativa para tal ato. An-
tes disso, é um ser destituído da possibilidade de reinvindicação, materializada
por meio do discurso. Nesse sentido, o termo emasculado o destitui do privilégio
de ser considerado um homem, o que o transforma em um “não humano”.
A tradição linguística que pontua a superioridade de algumas línguas tem
sido alvo de intensos debates no campo das literaturas pós-coloniais. Segundo
Mariani (2008, p. 74) “um processo colonizador, enquanto acontecimento, não
existe sem línguas”, o que a estudiosa pontua como colonização linguística, que se
desencadeia no bojo do acontecimento linguístico.
Mariani afirma ainda que:

No processo colonizador, circulam essas imagens sobre as línguas, sobre essas


línguas constitutivas de povos culturalmente distintos que se defrontam em con-
dições de produção tais que uma dessas línguas, chamada de língua colonizadora,
visa impor-se sobre a(s) outra(s) colonizada(s) (MARIANI, 2008, p. 74).

Essa colonização linguística aconteceu em todo e qualquer processo co-


lonizador, pois como já mencionado, é um dos seus aspectos fundantes, tendo em
vista que, através da língua, a facilidade de manter o domínio se tornaria maior e
mais profícua.
No romance Foe, essa problemática se desenha de forma diferente, apre-
sentada por meio da metáfora de castração da língua, como afirma Tomas Bonicci:
“A língua cortada do personagem Friday no romance Foe (1986), de J. M. Coetzee,
é o símbolo do colonizado mudo por ato voluntário do colonizador” (BONICCI,
1998, p. 14). Como afirma Spivak (2010), é um subalterno no sentido literal do
termo, que não tem voz, não tem fala e que não pode ser representado, nem repre-
sentar a si mesmo. O discurso hegemônico europeu, concebido no romance por
Cruso, Susan Barton e o sr. Foe, não conseguem representar ou narrar a história
de Sexta-Feira, tendo em vista que este é impossibilitado da fala. Nesse caso, nem
Sexta-Feira ou qualquer dos três podem contar a história de crueldades vivida
pelo personagem negro.
Todavia, se para Fanon (2008, p. 33), “Falar é estar em condições de em-
pregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobre-
tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”, nesse caso, para
Sexta-Feira, isso é inexistente. Este não tem que suportar o peso da civilização
europeia através da linguagem escrita, muito menos da fala, já que lhe foi subtraída

343
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

esta capacidade por meio da castração da língua. Assim, configura-se como uma
resistência do sujeito colonizado o fato de não querer aprender a língua inglesa.

A resistência do colonizado: outras formas de linguagem

No romance a narradora Susan Barton, personagem náufraga, é apresen-


tada no romance com as características claras da mulher branca europeia, que es-
tranha os ritos e costumes dos povos que não foram ensinados conforme os ditos
da “civilização”. Isso é evidenciado quando a personagem chega na ilha e entra em
contato com Sexta-Feira e Cruso. Tudo o que ela vê parece-lhe estranho: a forma
como Cruso se porta, o fato deste não se importar com sua situação precária de
náufrago, em não querer deixar a ilha.
A estranheza de Susan Barton também é acrescentada ao fato de ela não
reconhecer a ilha como um lugar bonito, aprazível. Ao contrário disso, tudo lhe
parece esquisito, uma vez que a ilha não é apresentada como um lugar que foi, de
fato, explorado e modificado pelas mãos do colonizador, algo que difere das nar-
rativas de viagens, a exemplo de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. A ilha de Foe
apresenta-se, aos olhos da narradora, como um lugar parado, onde nada acontece
como se observa no seguinte trecho:

Para leitores versados em narrativas de viagens, as palavras ilha deserta podem


invocar um lugar de areia macia e árvores frondosas onde correm regatos para
saciar a sede do náufrago e onde frutas maduras caem das árvores em suas mãos
e onde nada mais é exigido dele senão cochilar dias inteiros até surgir um navio
que o leve para casa. Mas a ilha que alcancei depois do naufrágio era um lugar
bem diferente: um grande morro rochoso com topo achatado, que subia íngreme
do mar em todos os lados, menos um, pontilhado por arbustos pardos que nunca
floriam e nunca perdiam as folhas (COETZEE, 2016, p. 9).

É com esta visão colonizadora que Susan Barton também questiona a


Cruso o porquê de não ter ensinado a língua inglesa a Sexta-Feira sob a alegação
do convívio harmonioso que a linguagem proporciona por meio do diálogo:

O senhor fala como se a língua fosse uma das perdições da vida, como o dinheiro
ou a varíola, eu disse. No entanto, não teria aliviado sua solidão se Sexta-Feira
dominasse o inglês? O senhor e ele poderiam ter experimentado, todos esses
anos, os prazeres da conversação; o senhor poderia ter passado a ele algumas das
bênçãos da civilização e feito dele um homem melhor. Que benefício existe numa
vida de silêncio? (COETZEE, 2016, p. 22).

344
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

O que se observa da fala da narradora é que a mesma deixa subentendido


a pretensão de evidenciar a superioridade da cultura europeia, ao afirmar que o
personagem mudo deveria ter aprendido “as bênçãos da civilização”, como se o
mesmo fosse destituído de cultura ou linguagem peculiar.
Consoante Khapoya (2015), o processo colonizador europeu em África
pautou-se em inúmeras razões, que se estendem desde a satisfação de ser uma po-
tência grandiosa, da mão de obra, das vantagens geopolíticas, à questão cultural.
Para o autor “A razão cultural da colonização estava profundamente enraizada no
etnocentrismo e na arrogância cultural dos povos europeus, que viam alguém di-
ferente como sendo culturalmente inferior” (KHAPOYA, 2015, p. 148). O estudi-
oso afirma que, dentre as potências europeias, a Inglaterra foi a que mais segregou
os povos africanos colonizados por esse país. As escolas, os transportes, as resi-
dências, tudo era devidamente separado, ou seja, de um lado os ingleses, de outro,
os africanos, sendo a estes reservados os piores espaços. Conforme o autor: “De má
vontade, os britânicos permitiram a um africano rico comprar uma casa numa área
predominantemente branca, ou viajar num compartimento de primeira classe...”
(KHAPOYA, 2015, p. 152).
Carregando consigo a concepção de cultura superior, a inglesa Susan Bar-
ton, ao chegar à Inglaterra, inicia um processo de tentativa de ensino da língua
inglesa à Sexta-Feira. Em princípio por meio de palavras faladas, para que ele gra-
vasse na mente no intuito repetir depois, ainda que com língua mutilada: “En-
quanto ele trabalha, ensino a ele os nomes das coisas. Ergo uma colher e digo ‘co-
lher, Sexta-Feira!’ e ponho a colher em sua mão” (COETZEE, 2016, p. 53). Com as
tentativas de ensinar a fala frustradas, a narradora empreende a tarefa de ensinar-
lhe a escrever:

Desenhei um navio com as velas enfunadas e fiz com que escrevesse ship, e em
seguida comecei a lhe ensinar África. A África eu representei como uma fileira de
palmeiras e um leão vagando entre elas. Será que minha África era a África cuja
lembrança Sexta-Feira trazia dentro de si? Eu duvidava. Mesmo assim, escrevi
Á-f-r-i-c-a e o guiei para formar letras (COETZEE, 2016, p. 131).

Susan tentou se aproximar ao máximo da realidade do criado mudo, tra-


zendo à memória o nome de sua terra natal para conduzi-lo à escrita, a fim de que
esta pudesse levá-lo à fala. No entanto, o que se observa no romance é uma resis-
tência do personagem africano a qualquer empreitada que se aproxime da cultura
europeia.
Bosi afirma que o conceito de resistência é antes ético do que estético.
Para o autor “O seu sentido mais profundo apela para a força da vontade que re-
siste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia”
(BOSI, 1996, p. 11). Nessa perspectiva, a resistência flui do interior do sujeito, que

345
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

se apresenta como uma vontade de fugir àquilo que lhe oprime, transformando-se
em uma força transgressora que o conduz à tentativa de superação a toda e quais-
quer formas de opressão.
Analisando a respeito da caça às bruxas do novo mundo, Federici (2004)
afirma que este acontecimento não foi suficiente para barrar a resistência dos co-
lonizados. Conforme a autora, o que movimentou os povos colonizados a reagirem
conta a dominação foi exatamente o fato de suas aldeias e nações terem sido to-
mados à força pelo colonizador. A reação do colonizado apresentou-se em forma
de revolta que, segundo ela, “permitiu a estes últimos subverter este plano, e con-
tra a destruição de seu universo social e físico, criar uma nova realidade histórica”
(SILVA, 2004, p. 399).
Várias foram as formas de resistência dos homens e mulheres coloniza-
dos, que partiram de um simples gesto de revolta até as guerras por libertação.
Boahen (2010) assinala que, depois de muitas derrotas e enfrentamentos, em me-
ados do século XX, iniciou-se um processo de reação dos africanos contra a colo-
nização. Segundo Boahen: “Em resumo, praticamente todos os tipos de sociedade
africana resistiram, e a resistência manifestou‑se em quase todas as regiões de pe-
netração europeia” (BOAHEN, 2010 p. 54).
Porém, antes das lutas armadas que se notabilizaram como uma resistên-
cia feroz ao colonialismo europeu, o colonizado resistia e reagia a sua maneira con-
tra os abusos do colonizador. Em Foe, Sexta-Feira, personagem emblemático, re-
cusa-se veementemente a aprender a língua inglesa que Susan Barton e o Sr. Foe
tentam lhe ensinar. Sobre as atitudes do personagem Silva (2000) assinala que
“Quando requisitado a entregar a lousa Barton, Sexta-Feira leva três dedos à boca,
umedece-os e apaga a lousa em clara evidência da vontade própria do eu que Bar-
ton considera inexistente” (SILVA, 2000, p. 244).
A recusa do personagem se faz, primeiramente através do silêncio que
oferece às empreitadas de tais tentativas, o que confere ao personagem uma capa-
cidade de subversão muito forte. A identidade de negro africano se apresenta
muito resistente no personagem, o que caracteriza uma presença marcante de sua
personalidade apreendida desde os primeiros anos de vida, evidenciando a forte
presença da cultura negra africana em sua memória.
Nesse sentido, a resistência do personagem é marcada pela evocação de
outras formas de linguagem. Dentre estas, Sexta-Feira se utiliza do silêncio como
uma forma de resistência, como argumenta Silva: “Silencioso ou silenciado, Sexta-
Feira é sem dúvida o guardião de um silêncio significante...” (SILVA, 2000, p. 245).
Esta forma de apresentação, assinalada na narrativa pelos momentos em que o per-
sonagem recua e se conserva “amuado” pelos cantos, confere a Sexta-Feira um ca-
ráter insubmisso.

346
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

E agora, como se eu já não tivesse problemas suficientes, Sexta-Feira caiu em um


de seus amuos. Amuo era a palavra que Cruso usava quando, em razão, Sexta-
Feira abandonava suas ferramentas e desaparecia para algum canto escondido
da ilha, para voltar depois de um dia e retomar suas tarefas como se nada tivesse
acontecido (COETZEE, 2016, p. 72).

Sexta-Feira age como se protestasse contra algo, como se se recusasse a


pertencer a um mundo que não é dele, como uma autoafirmação, corroborando o
que pontua Memmi sobre o sujeito colonizado: “A autoafirmação do colonizado,
nascida de um protesto, continua a se definir em relação a ele. Em plena revolta o
colonizado continua a pensar, a sentir, e a viver contra e, portanto, em relação ao
colonizador e à colonização” (MEMMI, 2007, p. 180).
Com efeito, o silêncio constitui-se em uma forma visível de insubmissão,
que confere uma força significativa de subversão, ao passo em apresenta um per-
sonagem escravizado alheio à cultura do branco europeu, tratando-a com desdém,
como se tivesse repetindo para si mesmo o peso e a força de sua cultura enraizada
em suas entranhas. É assim que se nota a movimentação do corpo, evidenciada na
música e na dança, como se estivesse evocando um passado que parece vivo em
sua memória, resistindo aos apelos da colonização.
A música e a dança são, de fato, rituais incorporados nas práticas africa-
nas desde os tempos mais remotos. De acordo com Silva: “A música africana en-
contra-se radicalmente imersa no universo da cultura. Trata-se de um sinal distin-
tivo, pois geralmente as sonoridades musicais informam que algo de diferente
ocorre na vida ordinária” (SILVA, 2013, p. 6). Nesse aspecto, é que se observa que
os movimentos do corpo de Sexta-Feira, visualizados por meio da dança, é algo
que parece enraizado em sua memória, que faz parte da cultura com a qual viven-
ciou no inicio de sua vida. É uma demonstração de que suas lembranças estão vivas
e, na presença de Susan Barton, ratifica, de forma racional ou não, essa memória
africana, parecendo evocar um sentimento de comunidade muito forte.
Outrossim, a forma como o personagem se movimenta diante de Susan
Barton confere um caráter transcendente, como se o corpo, em sua leveza, deixasse
o plano terrestre e evocasse outros tempos, outros lugares:

Nas garras da dança, ele não é ele mesmo. Fica além do alcance humano. Chamo
seu nome e sou ignorada. Estendo a mão e sou afastada. O tempo todo enquanto
dança ele produz um som cantarolante na garganta, mais grave que sua voz
usual; às vezes, parece estar cantando (COETZEE, 2016, p. 84).

Nesse sentido, é visível em Sexta-Feira outras características que deno-


tam resistência que se desenham por meio de outras formas de linguagem. O
corpo, nesse contexto, ganha sentido substancial na narrativa, o que contraria as
percepções de Susan Barton sobre a insignificância do personagem negro. Como

347
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

assinala Souza e Santos (2016), o corpo negro cria estratégias de resistência diante
de um cenário que lhe oprime.
Depois que Sexta-Feira encontrou seus mantos e peruca e as tomou como sua
vestimenta, passava dias inteiros girando, dançando, cantando, à maneira dele.
O que não contei foi que ao dançar ele não usava nada além dos mantos e da
peruca. Quando parado, ficava coberto até os tornozelos; mas, quando girava os
se erguiam em volta dele, de tal forma que se poderia supor que o propósito da
dança era mostrar a sua nudez por baixo (COETZEE, 2016, p. 107).

O personagem negro desafia os pensamentos racionais de Susan Barton.


Esta fica pasma ao ver que Sexta-Feira se alheia da realidade trágica que os dois
vivenciam naquele momento na Inglaterra. Com efeito, é o que o personagem pode
fazer nesse momento, em que dribla a aflição e passa a evocar outras épocas que,
na conclusão preconceituosa da narradora sobre as origens africanas, seriam os
tempos em que era bem pequeno ainda na África. “Estremeço ao ver Sexta-Feira
dançar na cozinha, com seus olhos fechados e seus pensamentos bem longe, não
na ilha, pode ter certeza, não nos prazeres de cavar e carregar, mas antes, quando
era um selvagem entre selvagens” (COETZEE, 2016, p. 86).
Sexta-Feira parece resistir àquele lugar ao qual o seu corpo não pertence.
Essa linguagem usada por ele denota uma expressividade transgressora às normas,
à ideia de estar na Inglaterra, ao lugar, às pessoas a sua volta, que embora haja uma
convivência, parecem-lhe estranhas. Os apelos de Susan Barton para devolver-lhe
a “lucidez” esvaem-se nos silêncios e na resistência produzidos pelo negro: “...ele
não pareceu sentir meu toque mais do que sentiria o de uma mosca; do que concluí
que ele estava num transe de possessão e sua alma mais na África do que em Ne-
winton” (COETZEE, 2016, p. 89).
Embora os esforços de Susan Barton tenham sido feitos até a exaustão,
Sexta-Feira resistiu à aprendizagem da fala e da escrita, o que levou a narradora à
seguinte conclusão:

Seria possível alguém, por mais embrutecido que fosse por uma vida inteira de
muda servidão, ser estúpido como Sexta-Feira parecia ser? Poderia ser que em
algum lugar lá dentro dele ele estivesse rindo de meus esforços para levá-lo mais
perto de um estado de fala? Estendi a mão e peguei seu queixo, virei seu rosto
para mim. Os olhos se abriram. Em algum lugar nos recessos mais profundos da-
quelas pupilas pretas havia uma faísca de zombaria? (COETZEE, 2016, p. 131).

Assim sendo, os esforços da narradora se esvaíram na resistência, silenci-


osa ou evocada através da música e da dança, em uma clara demonstração de alhei-
amento, ou talvez zombaria, ao universo vivido naquele momento distante de sua
terra natal. A resistência de Sexta-Feira confronta-se, portanto, com a vontade de

348
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

Susan Barton em querer ensinar-lhe a língua e em fazer o negro africano curvar-se


aos ditames da civilização inglesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A metáfora da castração da língua de forma literal em Foe pode ser inter-


pretada, como apresentada no presente trabalho, como uma forma de calar o su-
jeito colonizado, a fim de que o mesmo se torne subserviente e subalternizado e,
de certa forma, mantenha uma obediência servil ao colonizador, sendo que este
tem a prerrogativa de determinar o que deve ou não ser feito pelo colonizado.
Entretanto, no romance de Coetzee, Sexta-feira não fala, não tem língua,
mas se percebe uma revolta exteriorizada por meio da música alta na flauta, a re-
cusa em aprender a língua escrita, fica amuado nos cantos. Apesar de trabalhar
sem reclamar, Sexta-Feira parece externar uma certa revolta por causa da situação
que lhe foi infligida ainda pequeno, a começar pela mutilação de sua língua. A fala
foi-lhe subtraída a fim de torná-lo subordinado aos seus senhores, no intuito de o
mesmo não revidar utilizando a linguagem. Todavia, o negro resiste e afirma sua
identidade africana utilizando outras formas de linguagem.
Sabe-se que a música e a dança é uma marca identitária muito forte nos
povos africanos. Através desses recursos, os povos colonizados e escravizados evo-
cavam os prazeres da terra natal, como uma evasão temporária da opressão por
que passavam nos seus países sob o domínio colonial, assim como nas nações para
onde eram enviados como escravizados. A música e a dança, portanto, são dese-
nhados como fortes marcas de resistência africana em períodos de colonização. Se
lhe eram exigidos que aprendessem os costumes, as crenças, a língua do coloniza-
dor, por outro lado, não se desligava de suas raízes e de seus costumes, manifes-
tando sempre que podiam os rituais de seus ancestrais. É assim que se vislumbra
as raízes africanas no personagem Sexta-Feira, manifestadas através da música e
da dança, como uma marca visível de resistência à colonização.
A resistência de Sexta-Feira é tão flagrantemente forte que Susan conclui
ser impossível tal empresa de ensinar a língua ao criado: “Todos os meus esforços
para conduzir Sexta-Feira à fala, ou conduzir a fala a Sexta-Feira, falharam, eu
disse. “Ele só se expressa em música e dança, que estão para a fala como gritos e
berros para as palavras” (COETZEE, 2016, p. 128).

349
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BOAHEN, Albert Adu. História geral da África, VII: África sob dominação colo-
nial, 1880, 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.

BONNICI, Thomas. Introdução aos estudos das literaturas pós-coloniais. Mime-


ses. Maringá, v. 19, n. 1, p. 07-23, dez 1998. Disponível em: <https://se-
cure.usc.br/static/biblioteca/mimesis/mimesis_v19_n1_1998_art_01.pdf>. Acesso
em: 26/set/2014.

BOSI. Alfredo. Dialética da colonização. 3 ed. São Paulo: Companhia das letras,
1992.

_____________ Narrativa e resistência. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-


manas – USP: Itinerários, Araraquara, São Paulo, nº 10, p 11-27, 1996. Disponível
em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/viewFile/2577/2207>.
Acesso em: 20 de nov. 2018

COETZEE, J. M. Foe. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das
letras, 2016.

DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. Virtualbooks, 2000. Disponível em:


<https://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/pdf/00855.pdf>. Acesso em: 05 de
jun. 2019.

FEDERICI, Sílvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tra-


dução: Coletivo Sicorax. Rio de Janeiro: Editora Elefante, 2004.

KHAPOYA. Vincent B. A experiência Africana. Tradução: Noéli Correia de Melo


Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015.

MARIANI, Bethania. Políticas de colonização linguística. Revista de pós-gradua-


ção em letras. Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, n. 27, p. 73-82.
Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11900/7322>.
Acesso em: 01 de jul. 2019.

MATA, Inocência. Para uma geocrítica do eurocentrismo. In: FONSECA, Maria de


Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. (org.). África: dinâmicas culturais e
literárias. Belo Horizonte: PUC Minas, 2012.

350
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Tra-


dução: Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.

SHAKESPEARE, Willian. A Tempestade. Tradução de Ridendo Castigat Mores.


São Paulo: EbooksBrasil, 2000.

SILVA, Denise Almeida. Silêncio e resistência em Foe, de J. M. coetzee. In: PETER-


SON Michel; ANTONIO, Ignacio. (org). As armas do texto: a literatura e resistên-
cia na literatura. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2000.

SILVA, José Carlos Gomes da. Culturas africanas e culturas afro-brasileiras: uma
abordagem antropológica através da música. UNIFESP. São Paulo, jul de 2013.
Disponível em: <http://www2.unifesp.br/proex/novo/santoamaro/docs/cul-
tura_afro_brasileira/culturas_africanas_e_afro-brasileira.pdf>. Acesso em: 05 de jul.
de 2019.

SOUSA, Julianna Rosa de; SANTOS, Lau. Experiências e estéticas afro-diaspóri-


cas: o corpo, a dança e o canto como procedimentos de criação de Ijo Alapini. Re-
vista Antropolítica, n. 40, p. 105-127, Niterói, 2016.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? .Tradução: Sandra Regina


Goulart Almeida. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

351
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

352
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

ÍNDICE REMISSIVO

Análise de Discurso, 120, 122, 133 Leminski, 203, 204, 205, 206, 208,
Borges, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 209, 210, 211, 212, 213
20, 36, 181 língua estrangeira, 216, 218, 220,
Bukowski, 43, 46, 53, 54, 55, 56, 57, 229, 230, 304, 329
58, 59 linguagem, 22, 25, 28, 32, 33, 38, 40,
Camus, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 55, 57 53, 71, 74, 80, 90, 93, 98, 99, 101,
cenário político, 119, 127, 128 103, 104, 105, 106, 109, 110, 118,
colonialismo, 76, 241, 297, 345, 362, 119, 120, 121, 122, 123, 125, 138,
365 140, 147, 151, 170, 171, 173, 174,
contos, 9, 31, 77, 89, 95, 102, 104, 177, 178, 181, 182, 186, 189, 190,
107, 108, 109, 111, 116, 138, 139, 191, 194, 197, 199, 200, 201, 204,
140, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 207, 210, 213,235, 274, 275, 283,
148, 149, 150, 188, 196 284, 288, 291, 292, 293, 294, 295,
cultura estrangeira, 76, 79 305, 331, 349, 359, 360, 361, 363,
dança, 21, 22, 24, 27, 28, 29, 30, 31, 364, 366, 367, 368
32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 68, linguagens, 21, 22, 24, 25, 27, 30, 33,
79, 251, 366, 367, 368, 369, 371 167, 184, 186, 198, 204, 208, 214,
Educação Básica, 201, 216, 219, 222, 284
226, 227, 228, 282, 295 Linguística, 7, 89, 120, 121, 122, 217,
ensino-aprendizagem, 216, 252, 292 229, 230, 231, 282
estética, 31, 40, 61, 63, 76, 77, 84, 86, literatura, 9, 10, 11, 14, 19, 32, 43, 46,
87, 101, 114, 171, 177, 178, 179, 182, 53, 60, 66, 79, 80, 83, 84, 86, 89,
183, 194, 195, 197, 212, 282, 283, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98,
285, 289, 290, 291, 292, 293 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105,
experiências educacionais, 186 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113,
ficção, 75, 81, 82, 84, 92, 97, 99, 115, 114, 116, 117, 118, 140, 141, 143,
135, 164, 246, 264, 271, 312, 341, 144, 146, 147, 148, 149, 150, 163,
357 167, 170, 175, 177, 183, 185, 189,
filosofia, 7, 43, 44, 200, 232, 280 191, 192, 194, 197, 200, 201, 202,
formação leitora, 186, 190, 191, 192, 204, 208, 211, 212, 213, 215, 233,
193, 194, 195, 197, 198, 199 236, 248, 265, 278, 280, 281, 283,
função formativa, 92 284, 286, 287, 288, 289, 290, 291,
gênero literário, 90, 91, 188, 212 292, 293, 294, 295, 298, 310, 311,
Glauber Rocha, 75, 76, 77, 78, 79, 81, 312, 320, 321, 326, 331, 332, 340,
82, 83, 84, 85, 86, 87, 181 341, 342, 351, 352, 354, 357, 371
Inglês, 119, 135, 216, 219, 225, 230, literatura infantil, 89, 90, 91, 92, 93,
302, 324, 339 94, 95, 99, 100, 102, 103, 104, 105,
106, 107, 108, 111, 112, 116, 117, 118,

353
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

140, 141, 143, 146, 148, 150, 189, práxis, 21, 22, 27, 28, 100
194, 201, 202, 288 preconceito, 10, 12, 14, 15, 16, 17, 33,
Literatura Infantil, 113, 186, 188, 191, 130, 356
192, 193, 196, 202 público infantil, 95, 104, 105, 107,
mitologia, 9, 13, 44 110, 139, 144, 146, 147, 188, 288
mulher, 9, 46, 68, 119, 120, 124, 125, regime político-militar, 166
126, 127, 128, 129, 130, 131, 133, relações intertextuais, 9, 207
164, 241, 244, 255, 264, 267, 339, Riverão Sussuarana, 75, 76, 79, 82, 83,
340, 342, 343, 344, 345, 346, 85, 87
348, 350, 354, 355, 358, 363 Roda Griô, 21, 22, 26, 27, 29, 30, 38
Nelson Rodrigues, 60, 71 sala de ensaio, 60, 61
Orwell, 42, 43, 48, 49, 50, 51, 53 Sartre, 42, 43, 47
poema, 167, 169, 172, 173, 179, 181, teatro, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 67, 68,
182, 191, 203, 205, 207, 208, 209, 69, 71, 72, 73, 74, 123, 147, 176,
210, 211, 290 242
Poesia, 166, 184, 210, 215, 299 vilanização, 9, 12, 15
prática política, 119

354
LITERATURA, LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

355

Você também pode gostar