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praiavermelha
REITOR
Carlos Antônio Levi da Conceição
PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E
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Débora Foguel
VICE-DIRETOR
Prof. Dr. Marcelo Braz
COORDENADORA DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU
Profª Drª Sara Granemann
COORDENADOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
LATO SENSU
Prof. Dr. Luís Acosta
E-mail: praiavermelha@ess.ufrj.br
praiavermelha
issn 1414-9184
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Maria Lúcia Carvalho Silva (PUC-SP) Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social - Vol. 22, nº 1 (2012) –
Maria Lucia Martinelli (PUC-SP)
Maria Lúcia Weneck Vianna (UFRJ) Michael Lowy Rio de Janeiro: UFRJ. Escola de Serviço Social. Coordenação
(EHESS-França) de Pós-Graduação, 2011. Semestral
Monica Dimartino (Universidad de La Republica de
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Neli Aparecida de Mello (USP)
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Base Minerva UFRJ
Revista On line - ISSN-1984-669X
Sumário
EStudos de gênero
Editorial
Andrea Moraes Alves 7
As políticas de combate ao turismo sexual: uma análise interseccional entre raça, gênero e classe
Ana Paula da Silva 101
Editorial
É com imensa satisfação que apresentamos autora aborda especialmente a presença mascu-
o volume 22/1 da Revista Praia Vermelha – Es- lina como acompanhante e os dilemas decor-
tudos de Política e Teoria Social. Neste volume rentes dessa presença.
encontramos um panorama da produção acadê- O artigo apresentado por Izabel Solysko vi-
mica sobre gênero na área do Serviço Social e sita o relevante debate acerca do “feminicídio”
das Ciências Sociais. como conceito fundamental para se pensar a
Os estudos de gênero no campo do Serviço violência de gênero. Em seguida, temos o arti-
Social constituem parte fundamental da traje- go de Ana Paula Uziel et al. sobre o que estu-
tória contemporânea da profissão. Alguns dos dantes universitários do Rio de Janeiro pensam
artigos aqui reunidos refletem as preocupações a respeito da homossexualidade, dos direitos ci-
da atual geração de assistentes sociais acerca do vis para casais do mesmo sexo e da homofobia.
valor e da pertinência de gênero como catego- Os autores acreditam que os espaços educacio-
ria de análise e como campo de interesse aca- nais são importantes para o desenvolvimento
dêmico e de intervenção. Além dos assistentes de práticas transformadoras das relações de gê-
sociais que assinam os artigos, também estão nero. Também retratando a questão do precon-
presentes textos de autores(as) das Ciências ceito em ambientes universitários, o artigo de
Sociais cujos objetos de estudo são importan- Márcia Tavares e Lohanna Santos revela as re-
tes para o Serviço Social. Como o(a) leitor(a) lações cotidianas de uma aluna transexual. Sua
poderá comprovar, os artigos tratam de temas experiência nos ajuda a relativizar concepções
caros ao Serviço Social, como violência de gê- sobre corpo, gênero e sexualidade.
nero, violência sexual e maternidade. Por outro O texto de Kátia Mello e Ana Carolina dos
lado, contamos com contribuições que abarcam Santos investiga as estratégias adotadas por
novos objetos de interesse, como: transexuali- casais homoafetivos para viabilizar direitos ci-
dade, homoafetividade e corpo. vis. Essa pesquisa possibilita a reflexão sobre o
O primeiro artigo, de Patrícia Farias e tema da igualdade de direitos na sociedade con-
Ludmila Cavalcanti, toma como ponto de aná- temporânea. Ana Paula da Silva problematiza
lise a compreensão de profissionais de saúde o discurso sobre o combate ao turismo sexual
que atuam na rede pública da cidade do Rio e os usos dos corpos femininos, destacando a
de Janeiro a respeito da violência sexual. As estigmatização de determinados segmentos de
autoras indicam a necessidade urgente de de- mulheres. Daniele do Val também segue o ar-
senvolvimento de ações capacitadoras que bus- gumento da estigmatização ao debruçar-se so-
quem garantir, nos serviços públicos de saúde, bre o espinhoso tema da “destituição do poder
os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. familiar”.
O recorte da pesquisa também permite avaliar Os artigos de Murilo Mota e o de Luciana
o impacto que a dimensão religiosa exerce so- Zucco trazem interessantes reflexões sobre as
bre a atuação dos profissionais de saúde. Ainda formas como os corpos de homens e de mulhe-
no âmbito dos serviços de saúde, o artigo de res são significados em diferentes contextos.
Gabriela Mota investiga as percepções de ges- Para concluir este volume, temos dois artigos
tantes, acompanhantes e profissionais acerca que tratam da relação entre gênero e políti-
do “direito ao acompanhante” no pré-natal. A cas públicas sob diferentes perspectivas. Lilia
Pougy discute, sobretudo, a importância da Revista Praia Vermelha leitura obrigatória para
formação profissional do assistente social para quem deseja discutir a riqueza e a comple
lidar com a perspectiva de gênero e Dayse de xidade das relações de gênero na sociedade
Paula Marques aborda a adoção, por organiza- contemporânea.
ções empresariais, de políticas de inclusão de
mulheres, de etnias historicamente discrimina- Praia Vermelha (RJ)
das e deficientes aos postos de trabalho. Andrea Moraes Alves
A pluralidade de enfoques e interesses é Editora
o elemento que torna o presente volume da
ARTIGO
Resumo: Pretende-se, no presente artigo, apresentar uma análise sobre a interface entre sexualidade e a execução das
políticas de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Este esforço é efetuado a partir do cotejo de duas
experiências de pesquisa realizadas sobre o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Paism) e sobre a Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Pnaism) no âmbito das maternidades do município do Rio de Janeiro.
Os resultados apontam para uma versão recorrente de sexualidade entre os profissionais, que privilegia a narrativa mais
tradicionalista a respeito dos papéis de homens e mulheres nesses contextos. Na direção de uma resposta mais efetiva
na atenção às mulheres e seus direitos sexuais e reprodutivos, colocam-se os seguintes desafios: uma ampliação do
debate e da formação sobre políticas públicas com recorte de gênero entre os profissionais de saúde, focalizando, em
específico, questões referentes à sexualidade e sobre o papel da religiosidade neste âmbito.
Palavras-chave: sexualidade; violência sexual; crença religiosa; direitos sexuais e reprodutivos; profissionais de saúde.
Abstract: The purpose of this article is to analyze the interface between sexuality and the management of public poli-
cies for women, regarding sexual and reproductive rights. This effort is developped by collating two researches which
focuses were the Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Paism) and the Política Nacional de Atenção Inte-
gral à Saúde da Mulher (Pnaism). Both studies were acompplished in maternity hospitals at the city of Rio de Janeiro.
The results pointed out that a recurrent version of sexuality among healthcare professionals emphasizes a tradicionalist
narrative of what is the role of men and women in theses contexts. For a more effectiveness in the public policies on
sexual and reproductive rights, it is suggested to enlarge the discussion and the education on public policies regarding
gender issues, especifically those which deals with sexuality, and to encourage the debate about religiousness in this
context.
Keywords: sexuality; sexual violence; religious beliefs; sexual and reproductive rights; healthcare professionals.
seu papel de marco referencial destas políticas. Antes, porém, cabe complementar o quadro
É nesse contexto que se desenvolve a segunda teórico referencial das duas pesquisas, explici-
pesquisa2 a ser discutida neste artigo. tando a noção de violência sexual que será tra-
Ambas as pesquisas também têm como balhada, assim como o que está se considerando
referência teórica o diálogo profícuo entre os como sistema de crenças religiosas. Assim, a
conceitos de representação social e o de sen- violência sexual contra a mulher é considerada
so comum. O primeiro diz respeito aos saberes uma forma de relação social intersubjetiva, em
práticos e aos conteúdos simbólicos que per- que ocorre o controle e a subordinação da sexua-
passam determinado grupo social e se encon- lidade da mulher, incorporados como constituti-
tram introjetados em seus indivíduos como algo vos das regras que normatizam a prática sexual.
anterior, habitual e, desta forma, naturalizado O ato sexual passa, então, a ser concebido
como certezas, não necessariamente conscien- como uma forma de dominação, criando expec-
tes; tais saberes e conteúdos estão estrutural- tativas diferenciadas em matéria de sexualida-
mente ligados às posições que tais indivíduos de. Ao relacionar sexualidade e poder, a violên-
e grupos ocupam no interior de uma sociedade cia sexual reveste-se de práticas aparentemente
(Bourdieu, 1989; Minayo, 1994). simétricas de significações sociais muito diver-
Já o senso comum, segundo Geertz (1997), sas para os homens e para as mulheres. Nesta,
seria o próprio sistema cultural, as concepções como em outras definições (Bourdieu, 1999;
e práticas por ele orientadas, de um determina- Drezett, 2000; Estebanez, 1991; Winters, 2000),
do grupo social; como características deste, o a violência sexual é referida a relações sexuais
autor lista sua “naturalidade”, sua “praticabili- não consentidas no domínio do corpo e da se-
dade”, sua “leveza”, sua ausência de método e xualidade, especialmente a feminina, e envolve
sua acessibilidade. Desta forma, as coisas são geralmente o uso da força e/ou da ameaça.
como são pois está inscrito em sua natureza as- Tal como a violência sexual, os sistemas de
sim ser. A busca pelo aspecto prático das ações crença religiosa adquirem sua conformação e
formata o que é a praticabilidade de que fala materialidade a partir das representações e prá-
Geertz em relação ao senso comum, enquanto ticas sociais mais amplas, o contexto cultural
que a leveza é a característica simples com que e sócio-histórico do qual fazem parte e que or-
são apresentadas as suas interpretações sobre o ganizam as relações entre homens e mulheres
que seja a “realidade”. O aspecto não sistemá- nas diversas sociedades. Entretanto, cabe dizer,
tico, idiossincrático, é também assinalado, de acompanhando Geertz (1989), que a religião
forma que o pensamento se expresse através de estabelece a ligação entre o estilo de vida in-
aforismos, metáforas, piadas, lembranças, de dividual e a ordem do transcendente, entre o
uma maneira não comprometida com métodos cotidiano e a organização geral das coisas, por-
ou procedimentos racionais e/ou científicos. tanto, entre a vivência e a experiência pessoais
Sua acessibilidade também se afirma por meio e a visão de mundo de determinada sociedade,
de sua apresentação, passível de apreensão por entrelaçando-as inexoravelmente.
qualquer pessoa de uma dada sociedade, sem A frutífera interlocução entre os trabalhos
necessidade de qualquer expertise ou conheci- é espelhada, também, na escolha metodológica
mento prévio. similar – a triangulação de métodos e técnicas,
É neste quadro que podemos entender os por intermédio das abordagens quantitativa e
dois recortes efetuados nas pesquisas a serem qualitativa na coleta de dados e na análise do
cotejadas; tanto as concepções, como os saberes material. Este tipo de metodologia é capaz de
práticos sobre a violência sexual, quanto a orien- promover o diálogo entre questões objetivas e
tação religiosa, terão desdobramentos nas esfe- subjetivas. O instrumento adotado na coleta foi
ras da execução das políticas sexuais e reprodu- o questionário com perguntas abertas e fecha-
tivas que valem a pena examinar mais de perto. das, e uma entrevista do tipo semiestruturada,
baseada em roteiro, ambos aplicados aos pro- acaba por diluir a abrangência e a polissemia
fissionais de saúde. O roteiro utilizado nas en- do termo sofrimento causado pela violência se-
trevistas teve uma função orientadora de modo xual. Como afirma uma entrevistada,
a garantir maior flexibilidade e liberdade no
discurso como também assegurar a abordagem Eu acho que violência sexual é qualquer
de todos os temas considerados essenciais. Am- tipo de agressão física, moral que se faça
bas as pesquisas tiveram como amostra os pro- contra alguém. Não só agressão física.
fissionais de saúde no contexto das maternida- Acho que as palavras também agridem
des3, considerando que são atores estratégicos e são muito piores, porque uma vez que
na execução da política pública. No presente foram ditas, magoou e magoou, por mais
artigo, focalizaremos apenas a dimensão qua- que você peça desculpas, foi dito. Então
litativa das pesquisas, trabalhando, portanto, é claro que a agressão física dói, deixa
as entrevistas em profundidade e a observação marcas, mas a agressão não física tam-
participante realizada junto aos profissionais. bém dói tanto ou mais do que a física.
Cumpre notar que a entrada no campo foi
facilitada pela parceria estabelecida com a Se- Esta perspectiva minimiza o papel diferen-
cretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do ciado que a violência sexual assume no con-
Rio de Janeiro (SMSDC/RJ), considerando que junto das violências de gênero, tanto pelo seu
essas unidades também são campos de estágio maior ocultamento em relação às demais mo-
para formação profissional da Escola de Ser- dalidades quanto pelo sofrimento causado no
viço Social (ESS) da Universidade Federal do terreno específico da sexualidade.
Rio de Janeiro (UFRJ). No mesmo sentido, a minimização do con-
texto da interação afetivo-sexual em que ocor-
Representações sobre sexualidade e violên- reu a violência e, no mesmo diapasão, da im-
cia sexual portância da dimensão da sexualidade na vida
dos indivíduos, também está presente na pró-
As concepções dos profissionais sobre se- pria designação de VVS – vítima de violência
xualidade e sobre condutas adequadas e não sexual – dada pelos profissionais às usuárias
adequadas neste campo norteiam suas percep- que buscam os serviços com este tipo de de-
ções acerca das situações de violência sexual manda. Este fenômeno que vem ocorrendo
e dos homens e mulheres nelas envolvidas. É nas unidades de saúde, ainda que aponte para
nesta direção que podemos compreender me- uma incorporação da violência sexual no aten-
lhor os núcleos de sentido articulados através dimento, pode operar sua redução a uma mera
de suas falas nas entrevistas realizadas. entidade, um “tipo de doente”, passível de re-
A noção de sofrimento, associada à dor e ceber tratamento tópico e ocasional, colocando
doença, é acionada para explicar as dimensões em segundo plano a dimensão sistêmica e cul-
implicadas na percepção da violência sexual. tural associada a esta situação.
Assim, o sofrimento, como um entendimento Um segundo núcleo de sentido se refere ao
da violência sexual, faz parte de uma leitura distúrbio do comportamento. Muitos profissio-
biomédica que reconhece a violência sexual nais concebem a sexualidade masculina como um
como uma experiência corporal feminina, po- imperativo biológico. E, também, acrescentam
dendo ser compreendida através de signos e circunstâncias em que esse imperativo se torna
sintomas passíveis de diagnóstico e tratamento. peremptório para os homens, cuja insatisfação
No âmbito dos serviços de saúde, o reco- acarretaria consequências nefastas como irrita-
nhecimento dos danos causados pela violência ção e nervosismo. Na fala dos entrevistados, este
sexual é fundamental à orientação das condutas. sentido é atribuído ao agressor: “Eu acredito (...)
Todavia, o modelo explicativo medicalizante primeiro, que realmente tenha algum distúrbio
de comportamento, até mesmo de infância, de de autonomia aparece nas falas dos profissio-
vida sexual; sem contar que a pessoa pode estar nais de saúde ao se referirem à não permissão
ou drogada ou alcoolizada (...) uma pessoa que do ato sexual pela mulher, de modo especial
seja muito perturbada mesmo”. nos discursos femininos e dos(as) profissionais
Tal perspectiva reafirma a concepção da considerados(as) unidos(as).
sexualidade masculina como único lugar de As explicações da violência sexual, comuns
iniciativa e da naturalização do apoderamento e contraditórias, presentes nos discursos dos
sexual e social do corpo feminino. A concepção profissionais de saúde referem-se aos seguin-
que reforça a assimetria na esfera da sexuali- tes núcleos de sentido: (a) relações de gênero,
dade promove a inibição do desejo feminino. (b) violência urbana, e (c) imputação à mulher.
Além disso, a visão da sexualidade masculina Tais explicações revelam representações so-
como necessidade e impulso biológico instinti- ciais que reproduzem noções tradicionalmente
vo, aplicada à sexualidade feminina, legitima a androcêntricas e apresentam potencial revela-
dominação, o controle e a violência sexual co- dor e transformador de relações assimétricas
metida nas relações conjugais. (Minayo, 1994).
Os profissionais de saúde, ao explicitarem O primeiro eixo das explicações da violên-
sua visão da violência sexual como distúrbio cia sexual contra a mulher é atribuído às rela-
de comportamento, mostram que compartilham ções de gênero:
a ideia que relaciona virilidade e agressividade
na relação entre homem e mulher. Como afirma Tem a violência daquela que aceita ter a
Machado (1998), “o imaginário da ‘sexualida- relação sexual e sabe por que está tendo,
de feminina como aquela que se esquiva para se e tem a violência daquele camarada por-
oferecer’ parece ser a contraparte do imaginá- que casou; porque quando a gente assina
rio da ‘sexualidade masculina como aquela que aquele documento, poucas pessoas têm
tem a iniciativa e que se apodera unilateralmen- acesso que é um documento muito gran-
te do corpo do outro’” (p. 235). de que a gente aceita ali, que a gente tem
A persistência da ideia de que a sexuali- que ter o consenso de ter relação sexual,
dade é moldada por forças internas, sobre as é como se a mulher se desse inteiramen-
quais não existem controles por serem naturais te para o homem. E pouca gente tem in-
e a compreensão da violência sexual cometida formações que aquilo ali não é uma cer-
contra a mulher, neste núcleo de sentido, pas- tidão de casamento, que aquilo ali são
sam, também, pelo entendimento de um padrão vários decretos que a gente assina.
de normalidade no campo da sexualidade. An-
coradas na tradição dualista sobre a construção A naturalização das relações de gênero apa-
social da identidade de gênero e da sexualidade, rece como explicação central da violência se-
essas representações separam o corpo da mente xual contra a mulher nas falas dos profissionais
e enfatizam os aspectos biológicos da sexuali- de saúde, especialmente das médicas e enfer-
dade em detrimento de sua culturalidade. meiras que se reconhecem como capacitadas na
O terceiro, e último núcleo de sentido, diz área da violência. Em diferentes ocasiões, nos
respeito à relação sexual forçada, em que a per- discursos das entrevistadas, as profissionais se
cepção sobre o consentimento assume uma di- reconhecem como inseridas no mesmo contexto
mensão significativa nas falas dos profissionais que produz a violência sexual contra as mulhe-
de saúde, por ser um dos elementos que estru- res, além de relatarem experiências violentas.
turam a definição de violência sexual no campo A vivência e o discurso sobre a sexualidade
dos direitos sexuais e reprodutivos, o ato prati- se constroem a partir das relações de gênero, ao
cado contra a vontade ou consentimento. Esta mesmo tempo em que está sempre dialogando
importância do não consentimento e da perda com estas relações, seja para mantê-las como
estão, seja para transformá-las. A sexualidade contra a mulher a imputação a ela própria: “E
é uma vivência que tem como sede primeira o passa também pela falta de posição da mulher,
corpo. A cultura, conforme Heilborn (1999), de se proteger. Em ter um comportamento em
é responsável pela transformação dos corpos que ela requeira esse respeito. Logicamen-
em entidades sexuadas e socializadas, por in- te isso passa por respeitar a si mesma, porque
termédio de redes de significados que abarcam quando ela não se dá ao respeito, ela favorece
categorizações de gênero, de orientação sexual que ela seja desrespeitada”.
e de escolha de parceiros. “Valores e práticas As ideias associadas a esse núcleo de sentido
sociais modelam, orientam e esculpem desejos mostraram que a mulher é vista como sedutora,
e modos de viver a sexualidade, dando origem pecadora, responsável pela atração sexual do
a carreiras sexuais/amorosas” (Heilborn, 1999, homem, ou seja, potencialmente ativa, a qual,
p. 40), expressas nos discursos sociais. por uma lógica contraditória, sempre pode ser
As relações que medeiam as práticas da se- culpada pelos ataques sexuais de que se torna
xualidade são criações culturais que têm origem vítima. Tais entendimentos são reforçados pela
na tradição clássica judaico-cristã. O discurso definição do sexo como elemento situado na es-
religioso admite a prática sexual no casamen- fera privada, território especialmente feminino:
to heterossexual, com o objetivo de procriação,
estabelecendo a obrigatoriedade de ambos os (...) muitas vezes, as pacientes nos vêm
cônjuges estarem disponíveis para o ato sexual. encaminhadas como tendo sofrido uma
Nesse discurso está presente, além da subor- violência, quer dizer, no lugar de vítimas
dinação feminina, a valorização da função re- e elas não são vítimas, teve ali um con-
produtora e a valorização da capacidade sexual sentimento, um comprometimento em
masculina. Do mesmo modo, o deslocamento que a coisa escapou e aconteceu. E, mui-
do discurso sobre a sexualidade para o saber tas vezes, elas vêm mesmo numa posição
científico conservou sua finalidade reprodutiva. de ter precisado fazer um empréstimo
Outro eixo, sobre o qual se configuram as forçado do corpo, em nome da vida.
explicações dos profissionais sobre a violên-
cia sexual contra a mulher, é a violência urba- Numa leitura androcêntrica, a autonomia
na, cujas ideias associadas são agressão/crime acaba por gerar comportamentos femininos es-
e problema social. Neste núcleo de sentido, a tranhos. O castigo aparece como uma alterna-
violência sexual seria uma decorrência da vio- tiva de controle da sexualidade, recolocando a
lência em geral ocorrida na sociedade. Ou, em mulher no seu espaço de origem, ou seja, no
outras palavras, a violência sexual seria uma âmbito privado; quando esta não se resigna a se
decorrência do clima violento que impera no circunscrever a ele, acaba por ser merecedora
espaço urbano. Nas falas de vários entrevista- das agressões que a vitimam. A família, nesse
dos também está presente a ideia associada de contexto, assume uma responsabilidade no con-
problema social referida aos fatores socioeco- trole da liberdade sexual e da emancipação fe-
nômicos como pobreza e desemprego, vistos minina, vistas como causas da violência sexual.
como geradores da violência sexual. Neste O profissional de saúde, constantemente, é
eixo, ocorre um deslocamento da violência se- chamado a normatizar as relações sexuais na
xual do espaço privado para o espaço público, gravidez. Esse controle é exercido por meio de
num contexto urbano de desigualdade social permissões, proibições, orientações sobre posi-
(Chesnais, 1999), que confere uma maior le- ções mais adequadas e, até mesmo, frequência
gitimidade às vítimas, uma vez que a violação do ato sexual.
aparece como inevitável.
Os profissionais de saúde incluem no reper- É possível e, inclusive, muitas vezes,
tório das explicações sobre a violência sexual a gestante pergunta, quando se fala do
ato sexual na relação, a gente fala que da maternidade na articulação que se estabele-
não é perigoso, que é saudável, a não ser ce entre a condição orgânica feminina e condi-
que o médico diga o contrário, e sem- ção social de gênero, chama a atenção para a
pre há uma ou outra que pergunta ‘e se o incerteza e para a fragilidade do amor materno,
médico disser que não pode e o homem sujeito à variabilidade histórica e às condições
insistir?’, o que dá uma brecha para se materiais em que vivem as mães.
imaginar que poderá haver. Os profissionais de saúde ao associarem
violência sexual e gravidez se veem diante de
Sabe-se que a mulher que sofre violência de um dilema que também é colocado às mulheres
qualquer tipo durante a gravidez inicia, de ma- que procuram os serviços: como reconhecer e
neira geral, o pré-natal tardiamente, o que difi- prevenir um fenômeno que atenta contra a vida,
culta a prevenção das diferentes intercorrências contra a integridade, contra a identidade e con-
e torna o parto um evento de alto risco. A ade- tra a saúde da mulher, sob o véu da hegemônica
são tardia ao pré-natal, portanto, encobre, mui- exaltação do mito do amor materno?
tas vezes, a violência sexual perpetrada contra Esta abordagem acerca do processo de ma-
a mulher, levando os profissionais a se aterem ternidade privilegia o inquérito em torno de
às condições físicas do organismo materno e a sinais e sintomas de possíveis intercorrências
desconsiderarem esse importante fator de risco na gravidez, solicitação de exames, prescrições
gestacional. Quando os profissionais identifi- de medicamentos e de orientações de condutas
cam a violência sexual associada à gravidez, sobre o corpo, além de encaminhamentos para
nem sempre conseguem adotar uma abordagem serviços de referência na própria unidade. A
que focalize os múltiplos aspectos da sexuali- abordagem acerca da sexualidade feminina res-
dade feminina. Ao focalizar a atenção na gravi- tringe-se apenas a perguntar se a gravidez foi
dez numa perspectiva patologizante, por conta planejada e se a mulher vem mantendo relações
da ocorrência desse tipo de violência, deixam sexuais. Desta forma, a problemática da sexua-
de considerar todos os âmbitos da vida da mu- lidade feminina é reduzida ao desejo de ser mãe
lher, desde o seu corpo até a autopercepção, as e às práticas sexuais mantidas durante a gravi-
relações com as mulheres e com os homens, os dez, inviabilizando, portanto, a identificação de
valores femininos, a sedução, as formas de con- potenciais situações de conflitos e de violência
tato sexual, o prazer feminino, entre outros. sexual. Essa abordagem é concluída com o exa-
A crítica trazida por Badinter (1985) à teoria me clínico da paciente, em geral, atendo-se, ex-
psicanalítica serve para ampliar a compreensão clusivamente, ao exame gineco-obstétrico.
do significado da violência sexual associada à A relação estabelecida com a paciente não
gravidez. Ao preconizar a existência de um ins- estimula a participação feminina, em alguns ca-
tinto materno, a psicanálise procede à descrição sos, pois desconsidera relatos sobre a sexualida-
das atitudes e da vivência da “boa mãe”, “nor- de, muitas vezes encoberto por uma linguagem
malmente devotada”, capaz de se preocupar técnica, ainda que detalhada. Esta dificuldade
com o filho, excluindo qualquer outro interes- em lidar com as questões advindas da sexua-
se. Cria-se, assim, uma relação de causalidade lidade feminina, e, portanto, com as questões
entre o potencial biológico da mulher de gerar de gênero, faz com que o profissional reduza o
filhos e o cuidado na criação das crianças como impacto da sua ação. Não se trata de culpabili-
atividade feminina. Há uma idealização do pa- zá-lo, mas de convocá-lo a entrar no mérito dos
pel da mulher como mãe, elemento definidor da complicadores que o fenômeno da violência se-
sua identidade. xual aporta para sua prática profissional.
Essa perspectiva nega as intermediações da Os profissionais das maternidades estuda-
cultura e das condições objetivas e subjetivas das expressam claramente o apoio às ações dos
vivenciadas. Badinter (1985), ao situar o tema núcleos de atendimento às mulheres vítimas de
violência sexual, variando o nível de informa- Nas sociedades complexas, temos visto, ao
ção sobre o seu funcionamento de acordo com longo dos últimos séculos, este fenômeno asso-
a inserção profissional. ciar-se enfaticamente ao controle das interações
afetivo-sexuais das mulheres, e do regramento,
(...) a questão da violência sexual veio em contrapartida, também do comportamento e
completamente de cima para baixo da distribuição de atribuições do masculino e
igualzinho a uma bigorna, ninguém que- do feminino. No contexto latino-americano, e
ria, nós nunca pensamos nisso, pegamos mais especificamente no caso brasileiro, diver-
algum caso, discutimos alguma coisa, sos estudos já apontaram a atuação normativa
mas sempre com uma angústia horrível e das religiões católica e protestante no campo
querendo encaminhar. Então, veio a se- dos comportamentos sexuais.
cretaria e designou que nós iríamos fazer Costa (1999), por exemplo, analisando
parte. Então, fomos e ainda somos trei- a Igreja Católica desde o período colonial,
nados, e começamos a dar de cara com considera-a a instituição que construiu, qua-
os casos. E o que aconteceu? Passamos se com exclusividade, o ideário social que
por uma fase horrível de ‘não aguento se pretendia: português e cristão. Também
isso, não quero isso’, mas foi muito rá- afirma Stolcke (2007) que os impérios por-
pida, qualquer problema que a gente en- tuguês e espanhol, conjugados à Igreja Cató-
frenta na vida é assim, mas um fortalece lica, normatizavam o comportamento sexual
o outro, aí é que está a importância da e reprodutivo das mulheres brancas e não
gente ser sensibilizado e trabalhar em brancas em relação aos homens, com o intui-
grupo. E hoje a gente tem uma vontade to declarado de assegurar a continuidade da
muito grande de continuar no trabalho família patriarcal e da dinâmica da distribui-
e desenvolver ele melhor, porque cada ção de bens por herança. O sucesso deste pro-
caso é um caso e traz uma demanda e a jeto envolveu estratégias tanto no plano do
gente vai expandindo os tentáculos. discurso cotidiano como, ainda, em práticas
que excluíam as mulheres de outros papéis e
Desse modo, pode-se afirmar que os signi- espaços que não aqueles determinados pela
ficados socialmente aprendidos e ressignifica- vida familiar. Nesse sentido, a Igreja garan-
dos pelos profissionais de saúde conformam, tiu, a partir da descendência controlada, o es-
de certo modo, os discursos mais tradicionais tabelecimento da sociedade familiar colonial.
sobre o exercício da sexualidade, traduzindo-os Enfim, a hegemonia da Igreja Católica no
em práticas que, por vezes, estão em conflito Brasil, desde a chegada dos portugueses no sé-
com as diretrizes do próprio programa que fa- culo XVI, reflete-se na sua marcante influên-
zem cumprir. cia nas esferas política, social e, sobretudo, na
codificação e normatização da esfera moral –
Sistemas de crenças e sexualidade: um breve particularmente da moral sexual. No entanto, a
histórico partir dos anos 1970, a Igreja Católica, apesar
de manter sua condição de religião preponde-
Historicamente, um dos instrumentos aces- rante, passou a se defrontar com a concorrência
sados com mais frequência para pensar e lidar de igrejas pentecostais que crescem em número
com as questões referentes à sexualidade hu- de denominações e adeptos, muitos dos quais
mana tem sido a religião. Organizar e classi- originalmente católicos (Citeli, 2005).
ficar procedimentos adequados e não adequa- No campo do protestantismo, cumpre lem-
dos neste campo tem sido tarefa recorrente dos brar que, na origem, a Reforma incidia direta-
sistemas de crenças dos mais variados grupos mente contra o que considerava os “excessos”
sociais. permitidos pelo catolicismo. Como frisa Weber
(1996), por exemplo, a ética protestante osten- até os procedimentos ligados à dor e à doen-
tava a “seriedade”, a “vida regrada” pelo tra- ça. Foi-se construindo, portanto, uma clivagem
balho, o autocontrole e a obediência estrita às entre sistemas de crença religiosa e profissões
normas sagradas como símbolos de uma nova relacionadas à saúde (Simões Neto, 2005).
concepção de vida. Assim, como lembra Burke A institucionalização das profissões de
(1995), também as preocupações dos reforma- médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psi-
dores da Igreja Católica incidiam sobre a neces- cólogos, organizando-as em campos de conhe-
sidade de combater uma moralidade tida como cimento científico e de trabalho assalariado,
frouxa, lasciva e pagã, o que foi se acentuando e dotando-as de teorias e conceitos próprios,
ao longo do século XVIII, quando, de acordo correspondeu, no Brasil, à separação oficial
com Thompson (1987), passa a haver uma im- entre as igrejas e o Estado, já na Constituição
posição de disciplina moral e social aos traba- de 1890. Entretanto, observa-se um acentuado
lhadores, coibindo suas manifestações festivas, grau de influência em determinadas decisões
tanto quanto regulamentando o comportamento governamentais, especialmente aquelas relati-
sexual recomendado moralmente. Desta manei- vas aos direitos sexuais e reprodutivos. Ou seja,
ra, a sexualidade e seus códigos de conduta es- o Estado, apesar da sua natureza laica, tem-se
tão no centro da disputa religiosa que se estabe- mostrado sensível às igrejas e permeável ao
lece ao longo do período da reforma protestante discurso religioso. Nota-se, assim, que este mo-
e da reação da Igreja Católica. vimento de separação entre ciência e religião,
Os sistemas de crenças religiosas também longe de significar um afastamento de fato, per-
estão intimamente ligados, tradicionalmente, manece como uma tensão.
às questões do adoecimento, do cuidado e da Como já foi dito acima, desconsiderar a
cura. O mito de origem das profissões ligadas influência religiosa e assumir que a laicização
à saúde repousa na religião. Assim, aqueles é um esforço já consolidado são atitudes que
que curavam, cuidavam e se encarregavam de merecem uma segunda análise, pois parece que
prescrever os procedimentos necessários à ma- o vínculo entre doença, cura e religião, particu-
nutenção do bem-estar, nas sociedades simples, larmente em se tratando das políticas relativas à
eram os mesmos investidos de poderes sobre- sexualidade das mulheres, permanece e se atua-
naturais, cosmológicos. Eram, enfim, os líderes liza para além do que é dito e estabelecido por
espirituais de seus povos, indivíduos responsá- Estados, gestores e políticas públicas.
veis pela mediação entre seres divinos e huma- Nesta linha de raciocínio, é interessante ob-
nos. Desta perspectiva, adoecer era, de alguma servar que a luta por autonomia feminina neste
forma, fragilizar, ameaçar ou romper a ligação campo sempre esteve relacionada, para o bem e
entre a comunidade e o cosmos. Neste proces- para o mal, à discussão e à tensão com a função
so, os cuidadores, ao se responsabilizarem pela que a religião desempenhava na constituição de
cura e cuidados dos enfermos, eram também os papéis de gênero, entendidos como uma relação
responsáveis pela manutenção da saúde e bem de diferenças sexuais construídas culturalmente
-estar de toda a comunidade. e hierarquizadas socialmente.
A modernidade traz em seu bojo a crença na Analisando a história do feminismo na
racionalidade humana, e o desapego em relação América Latina durante os anos 1970, Franco
à ideia de que da ligação com o divino depende- (1992, 2005) frisa que, para além da própria
ria, exclusivamente, o destino humano na Ter- crise financeira e das políticas neoliberais, um
ra. Esta nova perspectiva, que teria na ciência fator preponderante para os movimentos so-
seu ícone máximo, também leva a um gradativo ciais de mulheres foi o papel central das dita-
rompimento entre saúde, bem-estar e religião. duras militares em ressignificar a ligação entre
Com o aumento da divisão social do trabalho, a conservadorismo moral e religião nestes paí-
especialização e a profissionalização chegaram ses. Ao torturarem e fazerem “desaparecer”
religiosos, além de crianças e mulheres, os go- anos 1990, indivíduos destas expressões reli-
vernos militares fazem surgir movimentos so- giosas passam a voltar sua atenção e ter mais
ciais tais como o das mães da Praça de Maio, assertividade quando se trata de elaboração de
na Argentina. Como frisa a autora, ao se unirem políticas, em particular, na área da saúde. Vol-
e reivindicarem em silêncio informações sobre taremos a este assunto mais adiante.
seus filhos no centro da polis, criam um “espa-
ço de Antígona”, onde os direitos de parentesco Sexualidade, religião e saúde
se sobrepõem ao discurso de um Estado dita-
torial. Nesta dinâmica, um apoio importantíssi- Um eixo da discussão entre sexualidade,
mo, sem dúvida, foi conseguido junto a setores gênero, saúde e religião renasce quando os mo-
menos conservadores dentre líderes católicos e vimentos de mulheres demandam por políticas
protestantes. específicas de garantia de seus direitos sexuais
O apoio destes setores religiosos e a confi- e reprodutivos, nos anos 1980. Entendido como
guração destes movimentos de mulheres-mães uma estratégia política, o conceito de direitos
no cenário político no enfrentamento da ditadu- reprodutivos teve um forte caráter de contesta-
ra militar durante os anos 1960/1970, em todo o ção do modelo autoritário de saúde da mulher,
continente latino-americano, se por um lado ga- estando diretamente relacionada aos direitos ao
rantiu a sobrevivência e a persistência de mui- aborto seguro e legal, à igualdade entre os gê-
tos militantes na luta, por outro foi constituin- neros, no que diz respeito às responsabilidades
te da feição das militâncias nestes territórios. contraceptivas e reprodutivas, ao acesso à in-
Franco cita, por exemplo, o caso nicaraguen- formação e aos meios para o controle da própria
se em que questões ligadas ao uso de métodos fecundidade, e à liberdade sexual e reprodutiva
contraceptivos e ao aborto, terminaram por soar sem discriminação, coerção ou violência. En-
mais débeis no momento de elaboração de po- tretanto, observa-se uma ausência de sistemati-
líticas para a área4. Neste sentido, a valorização zação reflexiva sobre a interseção entre o cam-
do papel de mãe colocou o pensamento sobre po da saúde sexual e reprodutiva e a religião,
políticas de direitos sexuais e reprodutivos já especialmente com foco nos serviços de saúde.
sob determinado viés. É de se pensar se no Bra- Natividade & Oliveira (2004), abordan-
sil não pode ter ocorrido o mesmo. do algumas tendências recentes nos discursos
Outras religiões, como o candomblé, no en- evangélico e católico sobre homossexualidade,
tanto, reservaram ao longo da história papéis apontam que há uma vasta bibliografia no cam-
mais ativos e autônomos, no campo da sexua- po da antropologia da religião, que se empenha
lidade feminina, embora sempre abranjam a em salientar o impacto da adesão religiosa ao
constituição de regras a respeito. Entretanto, o pentecostalismo na esfera das relações de gê-
próprio percurso destas religiões no Brasil con- nero.
figurou seu acesso bastante limitado ao plane- Duarte (2007) explica que ocorre um cons-
jamento e gestão de políticas públicas. Afinal, tante fluxo nos estudos de religião, ora mais
desde que africanos aportaram massivamente próximo do centro das questões que nos apre-
ao Brasil, na condição de escravos, crenças de sentam a instituição e a experiência religiosas,
matriz africana passaram por um período de ora nas fronteiras que desenham com as demais
marginalização social e, em seguida, de repres- temáticas de pesquisa social. Os fenômenos da
são e proibição pura e simples (cf., por exem- saúde, da reprodução e da sexualidade com-
plo, os estudos de Landes (2002) ainda nos anos põem, de maneira mais imediata, a dimensão
1930, sobre os papéis femininos e masculinos “moral” da definição dos sujeitos sociais e
nos terreiros de candomblé em Salvador, e de acarretam, inevitavelmente, uma indagação so-
Birman, 1995, sobre gênero e homossexualida- bre as relações entre o ethos familiar e o ethos
de nos terreiros do Rio de Janeiro). Apenas nos religioso.
Citeli (2005) faz uma extensa revisão crí- maneira, de um lado, ela serve, e é considerada
tica sobre sexualidade e direitos sexuais no válida, em momentos-chave, particularmente
Brasil (1990-2002) onde dedica um capítulo naqueles ligados à perda, luto e aflição desme-
ao tema das religiões e sexualidade. A au- dida por parte das usuárias (aborto espontâneo,
tora apresenta diferentes pesquisas que, em morte de parentes/marido, doenças graves, des-
sua maioria, abordam os comportamentos se- coberta de esterilidade). Nesses momentos os
xuais sobre dois campos: a Igreja Católica e profissionais inclusive praticam atos religiosos
as Pentecostais. junto às usuárias e suas famílias, especialmente
Os direitos sexuais e reprodutivos no cam- oração em conjunto e doação de imagens (san-
po da saúde apontam desafios no campo da po- tinhos) e outros objetos sagrados – expressões
lítica de saúde, especialmente no âmbito dos materiais da devoção (Menezes, 2011).
serviços. O discurso religioso aparece na litera- Neste sentido, assim como no caso das per-
tura referida como uma variável relevante que cepções sobre violência sexual, a categoria so-
conforma a atuação dos profissionais de saúde frimento adquire grande significado. Aqui, ela
em relação ao aborto. Todavia, questões como aciona uma espécie de permissão para que as
sexualidade, gravidez, parto, puerpério, alei- crenças religiosas sejam reconhecidas como
tamento materno, contracepção, esterilização, parte da conexão entre usuárias e profissionais.
doenças sexualmente transmissíveis, repro- Desenvolvendo este ponto, parece que, em mo-
dução assistida, violência sexual, climatério, mentos dolorosos para aquelas mulheres que
câncer de mama e cervico-uterino são questões buscam os serviços, há uma tácita aceitação de
cruciais em que se pode visualizar o efeito de que é preciso ir além do aspecto físico e medi-
orientações religiosas na prática profissional camentoso das “doenças”. Neste quadro, a dua-
dos agentes de saúde. lidade entre “corpo” e “alma/mente” estabele-
De acordo com as entrevistas realizadas na cida pelo saber médico ocidental é transcendida
fase qualitativa do segundo estudo, a opinião através do recurso a uma ordem cósmica/espi-
geral é que a crença religiosa perpassa, como ritual. Lembrando Geertz (1989), “como pro-
assunto e como prática, o cotidiano dos mem- blema religioso, o problema do sofrimento é,
bros da equipe. A maioria dos entrevistados, in- paradoxalmente, não como evitar o sofrimento,
clusive, professa alguma crença. Entretanto, a mas como sofrer, como fazer da dor física, da
relação entre religião e trabalho é alvo de curio- perda pessoal, da derrota frente ao mundo ou da
sidade e tensão; assim, alguns profissionais re- impotente contemplação da agonia alheia algo
ligiosos se esforçam para afastar a discussão do tolerável, suportável” (p. 119).
tema, ou, como diz um deles, “tento não trazer É interessante notar, ainda, que a prática re-
minha religião para o trabalho”. Outros, sem ligiosa com as usuárias para mitigar o sofrimen-
religião, constatam que os colegas adeptos de to ocorre com profissionais de todas as crenças.
alguma crença discorrem constantemente entre Figas, pinturas de santos, terços, orações escri-
si sobre religião durante a jornada profissional; tas, crucifixos, pequenas publicações religio-
nestas horas, optam pelo silêncio e pelo afasta- sas, neste contexto, tornam real a invocação da
mento, como estratégias para tentar não “criar conexão com o transcendente, materializando a
clima” na equipe. Desta forma, a não discussão ligação entre os seres humanos ali posicionados
aberta a respeito propicia um esgarçamento da e a perspectiva ordenada do mundo propiciada
união entre os profissionais. pela religião. São provas do esforço de quem
Entre aquela maioria que crê em alguma cuida e da busca de quem é cuidado e, ao mes-
religião, uma das primeiras afirmações que se mo tempo, da conexão entre ambos.
pode fazer a respeito da correlação entre cren- Esta inclusão na mesma ordem transcen-
ça religiosa e prática profissional diz respeito à dente, porém, também é significada como uma
sua representação de forma ambivalente: desta adesão a determinada visão de mundo e a certa
etiqueta sexual proposta por cada crença. Neste Entretanto, os entrevistados comentam recor-
sentido, oferecer um santinho ou outro artigo rentemente que a solicitação, certas entradas
religioso a uma pessoa em sofrimento é forne- e permanências de lideranças religiosas não
cer uma espécie de “senha de entrada” à rede de são demandadas pelas usuárias, nem por seus
relações, indivíduos, ideias e práticas que cons- familiares, tampouco são discutidas ou condu-
titui cada religião. zidas pelos gestores, seguindo trâmites que se
Só que há uma diferença crucial entre esta pautam muito mais por iniciativas individuais
oferta e esta aceitação e outros processos de e esporádicas de alguns profissionais. E, como
simbolização ocorridos em espaços como igre- se viu no exemplo acima, é preciso verificar de
jas, templos ou mesmo no espaço público: a quem parte a iniciativa.
situação em que ambos os indivíduos se en- A circulação de grupos e líderes religiosos
contram. Assim, imagina-se que numa unidade também é relatada pelos profissionais em uma
de saúde a usuária se encontre fragilizada físi- situação específica: a do aborto previsto em lei.
ca e moralmente, e tenha ido buscar um saber É um momento vivido como crítico por toda
científico, profissional, para auxiliá-la na crise. a unidade, e as falas recorrem às histórias de
Neste instante vulnerável, vê-se às voltas com intervenções destes grupos e líderes para im-
o fornecimento de um símbolo sagrado, não pedirem a realização dos procedimentos. En-
necessariamente de sua religião em particular, tretanto, ao contrário das situações acima, em
mas que lhe é oferecido pelo profissional que que o sofrimento permite a ação religiosa, este
dela trata. Não se trata, assim, de uma ida ao momento é experienciado como o auge da ten-
templo em busca de conforto e do estabeleci- são mencionada antes, e de um impasse entre
mento, ali, de uma relação religiosa; tampouco, o que determina o procedimento profissional e
é o mesmo que, ao andar na rua, se deparar com a visão de mundo expressa na crença religiosa.
alguém que “prega” determinada mensagem, Deste ponto de vista, o recurso à religião não é
ou distribui objetos, e poder escolher como agir considerado válido pelos profissionais.
diante disso. Num hospital as opções são mais Segundo um entrevistado, “a gente não
reduzidas. pode levar pro trabalho a nossa crença, não é
Talvez uma situação de campo possa aju- o lugar”. Esta é uma decisão, contudo, que pa-
dar a compreender o que está em jogo. Numa rece ser tomada informalmente, passando pelo
sala de emergência de um hospital, uma mulher crivo da decisão individual de cada profissio-
de uns 40 anos, deitada numa maca, conversa- nal5. Foram narrados exemplos de equipes que,
va com uma outra, de cerca de 20 anos, ao seu quando ocorre a necessidade de interromper
lado. De repente, a paciente se cala, fecha os a gravidez com amparo da lei, se eximem da
olhos, parecendo desmaiar. A mais nova, assus- ação e delegam a responsabilidade a um único
tada, sacode-a e a chama. A mulher, entreden- profissional - aquele que “não tem problema de
tes, avisa: “calma, tô bem. É que tem um pastor religião”, que passa a ser conhecido no meio
que vem aqui todo dia, e ele tá aqui agora, ele como o executor deste tipo de procedimento.
vem rezar a gente, e eu não tô afim. Se ele che- Sem dúvida não se deve esquecer que a Consti-
gar, diz que eu tô dormindo”. tuição de 1988, em seu Capítulo I - sobre Direi-
É importante observar que o direito à as- tos Individuais e Coletivos, Artigo 5, parágrafo
sistência religiosa é garantido àqueles cida- VIII, estabelece a chamada “objeção de cons-
dãos que se encontram em situação de inter- ciência”, afirmando que “ninguém será priva-
nação coletiva desde a Constituição de 1988, do de direitos por motivo de crença religiosa
em seu artigo 5, inciso VII; esta disposição foi ou de convicção filosófica ou política, salvo se
regulamentada, citando expressamente a assis- as invocar para se eximir de obrigação legal a
tência religiosa em hospitais da rede pública, todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
através da Lei 9.982, de 14 de julho de 2000. alternativa, prevista em lei”.
ARTIGO
Resumo: O artigo problematiza as percepções das gestantes, dos acompanhantes e dos profissionais de saúde acerca do
direito ao acompanhante no pré-natal de uma unidade pública de saúde do Rio de Janeiro, partindo do pressuposto de
que a informação sobre o mesmo é pouco conhecida pela população, assim como, pouco socializada pelos profissionais.
Os marcos teóricos que nortearam o estudo assentaram-se na percepção de que a Lei do Acompanhante traduz um direi-
to, o qual articula-se ao campo dos direitos sexuais e reprodutivos, objeto de intensa luta do movimento feminista. Junto
a este debate torna-se fundamental desenvolver a análise de gênero, a qual repercute diretamente nas possibilidades e
limites para assegurar, na prática, o direito ao acompanhante. Um achado do trabalho foi a presença, no grupo entrevis-
tado, de uma maioria de homens acompanhantes, o que favoreceu a problematização do papel destes, não apenas como
ajudantes das mulheres, mas como sujeitos na saúde reprodutiva.
Palavras-chave: pré-natal e parto; direito ao acompanhante; lei de acompanhante; direitos sexuais e reprodutivos;
gênero.
Abstract: The article puts into question the perceptions of the pregnants, the companions and the professionals of
health concerning the right to accompanying in the prenatal one of a public unit of health of Rio de Janeiro, leaving of
the estimated one that this information little is known by the population, as well as, socialized for the professionals. The
theoretical landmarks that had guided the study are based in the perception of that the Law of the accompanying trans-
lates a right, which articulate it the field of the sexual and reproductive rights object of intense fight of the movement
feminist. Next to this debate one becomes basic to develop the gender analysis, which directly reverberates in the pos-
sibilities and limits of if assuring in the practical right to Accompanying. A finding of the work field was the presence,
in the interviewed group, of majority of accompanying men, what it favored the questioning of this study that men are
not only women’s helpers but also subjects in reproductive health.
Keywords: prenatal and childbirth; right to accompanying; law of accompanying; sexual and reproductive rights;
gender.
Os estudos de gênero e sua relação com a se exerce sempre num contexto de inter-
discussão do direito ao acompanhante no pré- dependência e num sistema de relações.
natal e parto auxiliam na reflexão sobre o prota- A autonomia também é um conceito que
gonismo dos sujeitos envolvidos nesse período, exprime certo grau de relatividade: so-
visto que a reprodução, de acordo com os pa- mos mais, ou menos, autônomos; pode-
péis sociais hegemônicos é, ainda, considerada mos ser autônomos em relação a umas
a função principal da mulher. A presença do coisas e não o ser em relação a outras.
acompanhante na assistência à gestante surge A autonomia é, por isso, uma maneira
como um direito com repercussões explícitas de gerir, orientar, as diversas dependên-
para as relações de gênero, sendo uma demanda cias em que os indivíduos e os grupos se
levantada pelas lutas feministas na saúde. encontram no seu meio biológico e so-
Nesse sentido, se faz fundamental proble- cial, de acordo com as suas próprias leis
matizar, além dos estudos de gênero, também (Barroso apud Costa, 2011, p. 72).
a temática dos direitos sexuais e reprodutivos,
pois a discussão do acompanhante no pré-natal Costa (2011) ressalta, em seu estudo sobre
e parto fundamenta-se nas concepções oriundas as mulheres vivendo com HIV/Aids, que a res-
desse campo. Sendo assim, amplia-se a concep- trição da autonomia feminina pode gerar um
ção como direito, bem como a participação da contexto de vulnerabilidades, o que impossibi-
sociedade na sua efetivação, propiciando capa- lita o indivíduo de fazer escolhas próprias:
cidade de autonomia e livre escolha da mulher
para decidir sobre seu próprio corpo, assim (...) o conceito de autonomia é de fun-
como a respeito da presença ou não do acompa- damental importância, uma vez que, no
nhante no pré-natal e parto. caso das mulheres, historicamente, seus
Os direitos sexuais e reprodutivos são con- direitos foram restringidos devido às di-
ceitos relativamente recentes que possuem ferenças socialmente construídas. O que
como marco a Conferência Internacional de comprometeu significativamente sua
População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e participação na esfera pública, e conse-
a IV Conferência Mundial das Mulheres (Pe- quentemente, o exercício da sua cidada-
quim, 1995). A efetivação do campo dos direi- nia e autonomia. (...) Nessa perspectiva,
tos sexuais e reprodutivos foi fundamental para entendemos que a capacidade de esco-
que, hoje, seja possível abordar a questão da Lei lher, diminuída pelas condições socioe-
do Acompanhante no pré-natal e parto na pers- conômicas dos sujeitos, pode restringir
pectiva do direito, ampliando a possibilidadede o exercício da autonomia, bem como le-
decisão e escolha dos sujeitos envolvidos nesse var as mulheres a contextos de vulnera-
processo. bilidade social (Costa, 2011, p. 32).
Desse modo, um conceito chave deste deba-
te diz respeito à ideia de autonomia, a qual, do Desse modo, se as conferências internacio-
nosso ponto de vista, deve ser considerada nos nais da Organização das Nações Unidas – ONU
seus aspectos sociais, econômicos e culturais. trazem avanços para o conceito de direitos se-
A autonomia é um conceito liberal, sendo um xuais e reprodutivos não mais na perspectiva do
direito humano fundamental, mas nem sempre controle, mas sim como direito humano, a au-
é exercida por todos os grupos sociais do mes- tonomia surge como conceito emblemático da
mo modo: mudança de mentalidade que se quer instaurar.
Nessa direção, a Conferência do Cairo
A autonomia é um conceito relacional (1994) levanta o debate sobre a importância da
(somos sempre autônomos de alguém melhoria das condições de vida da mulher com
ou de alguma coisa) pelo que a sua ação vista a impulsionar o seu maior protagonismo.
O autor apresenta e problematiza o discurso vi- masculino não sancionadas pela matriz
timário que tem como base a questão do papel hegemônica (Oliveira, 1998, p. 14).
social masculino, ou seja, aquilo que caracte-
riza o que é determinado ao homem dentro de O referido autor destaca, também, a impor-
uma sociedade. tância de se levar em consideração na análise
Nesse sentido, exercer esse papel social cria sobre masculinidade, o impacto da classe so-
expectativas a serem cumpridas e muitas das ve- cial, bem como a importância de estudos sobre
zes isto impossibilita a real satisfação de algu- masculinidades no segmento desfavorecido
mas necessidades. O homem fica em constante da sociedade. “Normalmente quando se fala
conflito sobre o que a sociedade determina e o no ‘novo homem’ os autores que o aclamam
que deseja para si. Está posto o argumento da referem-se a indivíduos de classe média que
psicologização. Dentro desse discurso vitimá- têm mais opções e status do que os de posição
rio é preciso, também, levar em consideração a social menos privilegiada” (Oliveira, 1998,
dinâmica capitalista e a manutenção do status p. 20). Assim, “sem pesquisas sobre a masculi-
quo, trazendo a questão da dominação masculi- nidade dos segmentos mais desfavorecidos, não
na frente às outras minorias. se pode falar em algo como o ‘novo homem’ ou
O homem sempre foi visto como um ele- o ‘novo pai’, a não ser que se explicitem os li-
mento externo da reprodução e, no caso do di- mites deste tipo de postulação e se restrinja seu
reito ao acompanhante, isto se traduz na ideia alcance, sem nunca generalizá-lo como novo
de que ele deve estar ao lado da mulher para tipo emergente” (p. 20).
atender às suas necessidades na condição de Em contraste com o discurso vitimário apre-
ajudante. Nesse sentido, essa área tem se con- senta-se o discurso crítico que tem como obje-
figurado como um campo de poder feminino, tivo:
visto que, a gestação ocorre dentro do corpo da
mulher. Entretanto, em alguns momentos, o ho- (...) verificar como as abordagens da
mem será questionado sobre a sua participação masculinidade podem acrescentar da-
na dinâmica do pré-natal e do parto, problema- dos novos às relações de gênero que o
tizando o seu protagonismo nesse período. feminismo até aqui não aventou, ou se o
A partir dos papéis sociais está posta a ideia fez, assim procedeu destacando alguns
da existência de uma masculinidade hegemôni- aspectos e negligenciando outros (sina
ca, na qual, traçando um paralelo com a questão de qualquer análise, mesmo as mais
do acompanhante no pré-natal e parto, aquele laboriosas e empenhadas). Os estudos
homem que possui uma vivência diferente de feministas focalizam, naturalmente, a
masculinidade e que deseje estar presente nesse problemática das mulheres em primei-
momento, estará contrariando a matriz hegemô- ro plano, e ainda que teorizem acerca
nica, podendo até mesmo sofrer discriminação de aspectos da masculinidade esta não é
e sanções sociais: uma referência inevitavelmente primor-
dial (Oliveira, 1998, p. 11).
(...) a masculinidade hegemônica repre-
senta a estrutura de poder das relações Apesar dessas dificuldades, as análises de
sexuais, buscando excluir qualquer gênero no campo da saúde têm enfatizado a im-
variação de comportamento masculi- portância da apreensão dos homens nesse con-
no que não se adeque a seus preceitos. texto. Sendo assim, a discussão das relações de
Nesta empreitada subjaz um processo de gênero se faz fundamental para aproximação e
luta contínuo que envolve mobilização, análise da problemática levantada. Nesse senti-
marginalização, contestação, resistência do, é imprescindível “(...) desenvolver políticas
e subordinação das modalidades de ser de inclusão dos parceiros (quando existam e
assim desejem ele e sua parceira) na assistên- maternidade e paternidade, como por exemplo,
cia pré e pós-natal, a exemplo de outros países, do papel do pai participante no processo
como forma de desconstruir o viés de gênero gestacional, assim como o da mulher que prioriza
que pressupõe serem as mulheres as únicas cui- ter filhos depois da estabilidade financeira.
dadoras dos bebês” (Diniz, 2009, p. 323). Tais modelos podem ter repercussões variadas
A presença do homem na concepção é vista de acordo com o contexto histórico e com os
como importante para que ele exerça melhor a marcadores sociais de classe, etnia, religião,
sua paternidade, desconstruindo a ideia de que idade etc. Connell apud Moore (2000) aborda
a reprodução é uma função exclusivamente fe- que existe “uma pluralidade de feminilidades e
minina: masculinidades dentro do mesmo contexto so-
cial (...)” (p. 29). O que também irá refletir na
A participação do homem em diferentes variabilidade de experiências sobre a sexuali-
programas institucionais e no acompa- dade e reprodução, proporcionando uma visão
nhamento da mulher em todo o processo mais dinâmica do gênero.
de reprodução, entre eles o parto, favo- Enfim, é importante notar como a existên-
rece o rompimento dos estereótipos que cia da categoria de análise gênero é fundamen-
reforçam o papel da mulher como úni- tal para o entendimento e a problematização da
ca responsável pela função reprodutiva. inserção de mulheres e homens na sociedade,
Durante o acompanhamento do parto, o com destaque para a discussão da reprodução e
homem pode obter informações sobre os papéis de cada sujeito envolvido nesse pro-
como se tornar mais capacitado para as- cesso.
sumir as responsabilidades inerentes à
paternidade (Hoga et al., 2007, p. 80). Breve histórico da Lei do Acompanhante
porém, não é praticado de forma regular e sis- pré-natal. O que se observa é uma maior dis-
temática em todas as instituições nacionais. cussão sobre o acesso do acompanhante à ma-
Pelo contrário, poucos serviços aderiram a esta ternidade e não desde o pré-natal:
prática e continuam não respeitando a lei e as Na obstetrícia, constata-se a ênfase dada à
diretrizes governamentais relacionadas a esse humanização no parto, não sendo conferida a
direito (Hoga et al., 2007, p. 79). mesma importância às demais etapas do pro-
Alguns estudos e manuais técnicos de saú- cesso de nascimento. Sabe-se que o cuidado hu-
de apontam os benefícios de se ter um acompa- manizado no pré-natal é o primeiro passo para
nhante no parto, garantindo assim a integralida- um nascimento saudável, sendo fundamental
de e a humanização do atendimento, e indicam, para diminuição da morbimortalidade materna
ainda, que essa informação seja oferecida desde e fetal, preparação para maternidade e paterni-
o início do pré-natal: dade, aquisição de autonomia e vivência segura
do processo de nascimento (compreendido des-
É importante acolher o(a) acompanhan- de a pré-concepção até o pós-parto) (Zampieri
te de escolha da mulher, não oferecendo e Erdmann, 2010, p. 3).
obstáculos à sua participação no pré-na- Uma questão importante para a participação
tal, no trabalho de parto, parto e pós-par- do homem no pré-natal é o papel das institui-
to. O benefício da presença do(a) acom- ções e dos profissionais, convidando os mes-
panhante já foi comprovado. Vários mos para as atividades oferecidas nos serviços.
estudos científicos, nacionais e interna- No entanto, o que se observa é que a própria
cionais, evidenciaram que as gestantes organização do atendimento de saúde segrega
que tiveram a presença de acompanhan- e limita a sua inserção, como é ressaltado no
tes se sentiram mais seguras e confiantes seguinte estudo:
durante o parto. Foram reduzidos o uso
de medicações para alívio da dor, a du- (...) um estudo realizado com futuros
ração do trabalho de parto e o número de pais que se encontravam em alguns ser-
cesáreas. Além disso, alguns estudos su- viços de saúde acompanhando as gestan-
gerem a possibilidade de outros efeitos, tes à consulta de pré-natal e que perma-
como a redução dos casos de depressão neciam na sala de espera aguardando-a,
pós-parto (Manual pré-natal e puerpério, apenas um não demonstrou interesse em
2006, p. 15). acompanhá-la na consulta. Todos os ou-
tros manifestaram o desejo de estar pre-
No cotidiano do atendimento no pré-natal é sente, participando ativamente na gesta-
possível observar o desconhecimento da Lei do ção. Apesar disso, ainda permaneciam
Acompanhante na sua integralidade por parte não sendo convidados pelos programas
dos usuários, acompanhantes e familiares, sen- que atendem as gestantes, não fazendo
do fundamental a função da instituição como parte da rotina de suas atividades (Oli-
socializadora dessa informação junto à popula- veira et al., 2009, p. 76).
ção usuária dos serviços de saúde. Diniz (2009)
chama a atenção para o pré-natal como com- A abordagem ao acompanhante no pré-natal
ponente na construção desse direito, “é urgen- é um dos primeiros caminhos para que esse di-
te investir recursos para promover e monitorar reito também seja efetivado no espaço do parto.
o cumprimento desta legislação, e disseminar Esse é um trabalho que envolve todos os atores
a informação às mulheres sobre seus direitos, responsáveis em torno do objeto saúde, assim
como parte da rotina do pré-natal” (p. 323). En- como implica ter claro que essa discussão en-
tretanto, pouco se problematiza qual é o lugar volve saberes e práticas variadas, num contex-
da socialização da Lei do Acompanhante no to de embate intenso em torno da questão da
pode ser desejada pelo homem e a importância filhos e que acha importante estar junto com a
da experiência do acompanhante no parto, tal companheira participando das atividades da gra-
como é expresso por Y: “Gostaria de acompa- videz. O usuário não sabia do direito ao acom-
nhar o parto, pois posso dar força, fazer carinho panhante no pré-natal e parto, mas sempre veio
e incentivar. Além disso, o lado emocional é com a esposa. Nas gestações anteriores não pode
muito bonito”. acompanhar o parto, mas afirma que estando
As gestantes relatam como positivo ter al- agora informado sobre seu direito de presença
guém as acompanhando no parto, pois traz nesse momento vai participar, exigir seus direi-
mais segurança e diminui o medo, assim como tos, pois também ele é parte desse processo.
algumas apontam a utilidade de ter um acompa- As gestantes entrevistadas ressaltaram a
nhante, principalmente, se for um parto cesárea. importância da presença do acompanhante no
Duas entrevistadas afirmaram que é importante, pré-natal por diferentes fatores, alguns se re-
pois têm receio de deixar as crianças sozinhas, lacionam com aqueles aspectos já destacados
sem alguém de confiança, caso seja necessário, por eles, como por exemplo, a questão da segu-
dentro da maternidade. rança, o medo de estar sozinha e se sentir mal
É importante ressaltar nessas falas a na rua; porém outras apontam que não tinham
questão da utilidade do acompanhante, será que conhecimento desse direito. Uma gestante des-
realmente este é o seu papel? Operando, assim, tacou que muitos não comparecem ao pré-natal,
como “ajudante” e não como protagonista pois a linguagem dos profissionais de saúde não
desse momento. Que lugar realmente ele ocupa é muito acessível para a população usuária.
na esfera da reprodução? Tal fala evidencia que é fundamental uma
Quando indagados de que modo poderiam maior instrumentalização dos profissionais no
contribuir estando presentes no atendimento sentido de melhorar o atendimento e acolhi-
pré-natal, foi possível observar uma gama de mento da população, fazendo com que o pré-
percepções sobre a questão, mas em sua maio- -natal também seja um local de protagonismo
ria mencionam o carinho, a atenção, a paciên- e participação do acompanhante. O que denota
cia, ajudando nas atividades que as mulheres que a esfera da reprodução também é um lugar
não podem fazer, indo aos atendimentos. Uma de circulação de poder, pois sofre um intenso
acompanhante, mãe da gestante, e outro, o com- processo de medicalização e hospitalização do
panheiro, afirmaram que poderiam contribuir processo do parto, bem como de monopólio do
participando, solicitando ao médico informações saber dos especialistas em detrimento da vivên-
complementares e se orientando sobre a saúde cia dos sujeitos (Tornquist, 2003, p. 420), o que
da gestante. Um entrevistado falou da sua contri- irá, de certo modo, questionar a legitimidade do
buição como apoio financeiro. Ou seja, mediante direito ao acompanhante no parto e pré-natal.
as falas, poucos entendem a sua inserção no pré- Uma gestante, por exemplo, destacou que é
natal como protagonistas, mas sim, como uma mais legítima a presença do acompanhante no
ferramenta importante de ajuda e apoio para a parto do que no pré-natal, ressaltando que “no
gestante. O centro da reprodução continua sendo pré-natal não precisa, mas no parto sim”. Isto
a mulher e, de certo modo, o homem não se sen- pode ser reforçado com a observação de que o
te pertencendo a esse lugar, se restringindo, na contexto do pré-natal é pouco explorado e in-
maioria das vezes, à sala de espera. cluído na dinâmica dos estudos da reprodução,
Da amostra pesquisada somente um compa- tendo uma maior discussão científica a presen-
nheiro se aproximou do entendimento do pré-na- ça do acompanhante no parto.
tal como sendo também o seu espaço legítimo, De acordo com Arendt (1983), a era moder-
visto que ele também é parte integrante desse na possibilitou que a discussão sobre a repro-
processo. O entrevistado ressalta que sempre dução, antes relegada à esfera do privado, pu-
veio às consultas de pré-natal de todos os seus desse ascender à esfera social e política sendo
ARTIGO
Resumo: O artigo trata da expressão letal da violência de gênero contra as mulheres, conceituada como feminicídio
para politizar e visibilizar o fenômeno. Em pesquisa, através de exame de processos criminais, foram analisados todos
os homicídios de mulheres ocorridos em 2007 e 2008, em Cuiabá/MT. Foi identificado que mais da metade dos cri-
mes foi praticada por homens conhecidos das vítimas, inclusive cônjuges e pais de seus filhos. O objetivo deste texto
é apresentar a importância do debate sobre os feminicídios a partir da discussão das principais características destes
crimes, enfatizando a violência de gênero como propulsora dos mesmos. O tempo de relacionamento entre as partes,
por exemplo, não é determinante, mas sim a violência presente nesta relação. A premeditação e a crueldade com que se
praticaram os crimes chamam atenção. O estudo foi construído a partir de um referencial que compreende como estru-
turais as desigualdades a que homens e mulheres estão submetidos.
Abstract: The article presents the lethal expression of gender violence against women, femicide conceptualized as to
make visible the killings. In research that examined criminal cases were analyzed all homicides of women occurred
in 2007 and 2008 in Cuiabá/MT. It was identified that more than half of the crimes were committed by men known to
the victims, including spouses and parents of their children. The aim of this paper is to present the importance of the
debate on feminicide. It begins with a discussion of the main characteristics of crimes and shows that gender violence
is a primary cause. The time relationship between the parties is not decisive for the crime. The violence present in this
relationship is crucial. It premeditation and cruelty with which the crimes practiced draws attention. The study was
designed with a theoretical framework defining inequalities which subjects men and women are structural.
e as respostas emitidas pelo Estado são, tam- para as transformações necessárias no horizonte
bém, produto desta estrutura e não poderia estar de relações sociais livres de violência.
dissociada da reprodução da violência.
O artigo foi construído com vistas a privi- A investigação: caminhar em campos minados
legiar um dos três bancos de dados construídos
pela pesquisa, onde foram examinados 32 casos É necessário interrogar a realidade, fazer
de feminicídios. A primeira parte apresenta as perguntas sobre o que se passa no cotidiano,
diferentes etapas da investigação: problema ini- para poder avançar na compreensão e nas ações
cial, marco teórico e metodologia escolhida – necessárias. No caso do fenômeno estudado,
se nomeia tal parte como “campo minado”, pois para que seja possível uma vida onde os direi-
desde a busca dos dados até sua análise sempre tos humanos se efetivem. As perguntas iniciais
existem numerosos riscos, seja de não obter o foram: o que é um feminicídio?; quantos são
que se espera até criar equívocos na leitura da os feminicídios?; como o sistema de justiça res-
realidade, não obstante a necessidade de seguir, ponde a tais crimes?
apesar dos riscos. A segunda parte apresenta a Hoje, é possível falar de “teorias feminis-
informação correspondente às vítimas e indi- tas”, assim como de uma “epistemologia femi-
ciados, e as principais características dos cri- nista”, inclusive pensando em uma metodologia
mes, colocando em relevo que a violência entre que parte das mulheres como sujeito epistêmi-
as partes, nos casos analisados, pode constituir co privilegiado, opondo-se ao androcentrismo
a essência do fenômeno. historicamente estrutural na produção do co-
Dos 32 casos analisados, foram escolhidos nhecimento científico em um mundo orientado
seis para serem apresentados na íntegra – resu- por uma política patriarcal. Reconhece-se que
midamente – para ilustrar e referendar o debate. o conceito feminicídio somente foi possível
Sua eleição não foi aleatória, senão por repre- pelo desenvolvimento de uma epistemologia
sentarem casos emblemáticos e que trouxeram feminista e, em consequência, toda rejeição ao
à pesquisadora tamanho incômodo, seja pela termo é também expressão da resistência à pro-
crueldade daquele que vitimou uma adolescen- dução de um conhecimento feito por mulheres e
te grávida de sete meses; seja pela covardia do para mulheres (Maffia, 2007; Blazquez, 2008).
que assassinou sua esposa, em casa, com um O termo femicide para designar assassina-
tiro nas costas; seja pelo homicídio seguido de tos sexistas e misóginos praticados contra as
suicídio num contexto de 28 anos de casamen- mulheres se tornou conhecido a partir de Dia-
to; seja o que ocorreu como resposta a uma mu- na Russell1, com uma publicação em 1992, nos
lher que ajudou sua amiga. Estados Unidos. A tradução para o espanhol se
De cada um deles emergem questões e senti- deu de maneira dupla – femicidio e feminici-
mentos que não se pode ocultar. A pesquisa cien- dio. No México e na Guatemala, por exemplo,
tífica prescinde um rigor metodológico que não é mais comum o uso de feminicídio. Na Costa
abre espaço para juízos de valor, todavia, desde Rica, El Salvador, Chile e Argentina é usado fe-
uma epistemologia feminista, se faz a crítica de micidio. No Brasil, um debate frutífero ainda é
uma produção de saber que nunca será neutra e ausente e é possível verificar o uso indistinto
neste sentido, cada dado apresentado, cada histó- dos termos2. Com exceção de Almeida (1998) e
ria narrada, parte de algum lugar, de um saber e Segato (2005), não existe um diálogo com o de-
de uma sensação situadas nesta realidade. bate internacional, tampouco produções que se
O conhecimento sempre é limitado e apro- apropriem dos conceitos, para além destas au-
ximado. A expectativa é produzir um debate a toras. Mesmo nos espaços acadêmicos feminis-
partir de um tema que gera mal-estar em todos tas, a noção não alcançou um intenso diálogo3.
que dele se acercam, e que seja capaz de pro- É importante saber que a noção é utiliza-
duzir indignação e reflexão a fim de contribuir da para designar assassinatos de mulheres que
representam a expressão letal da violência de de abuso verbal e físico (…) sempre que
gênero e é uma alternativa ao tipo criminal estas formas de terrorismo resultem na
“homicídio”. Dizer femicídio ou feminicídio é morte são feminicídios (Russell, 2006a,
tratar de um fenômeno cuja causa não está iso- p. 56) [tradução livre].
lada de uma estrutura social e, portanto, o termo
tem uma dimensão teórico-política. Para Mo- Para Russell e Lagarde, a estrutura social
rales (2008), pouco importa falar femicídio ou possibilita numerosas práticas feminicidas. O
femincídio desde que o problema seja resolvi- conceito de feminicídio4 inclui “formas enco-
do. Lagarde (2006) também enfatiza que não é bertas de assassinar as mulheres, permitindo
produtivo que as autoras sejam separadas, entre sua morte por atitudes ou via instituições so-
que as que usam femicídio e as que usam femi- ciais misóginas” (Russell, 2006b, p. 85) [tradu-
nicídio. Muito mais que uma diferença semânti- ção livre]. A morte é a expressão de múltiplas
ca, a análise das produções que tratam do tema violências vivenciadas ao longo da vida.
permite identificar tendências e, sobretudo, ob- A violência de gênero somente pode ser
servar que cada autora enfatiza especificidades compreendida no marco de um sistema patriar-
diferentes. cal. De acordo com Saffioti (2004), a noção de
O conceito femicide, traduzido por Marcela patriarcado foi utilizada nos anos 1970 com a in-
Lagarde como feminicídio respeitou as concep- tenção política de denunciar a dominação mas-
ções originais e incluiu que a tradutora – antro- culina e, apesar dos avanços na luta feminista,
póloga mexicana e teórica feminista – não gos- o sistema não foi destruído; pelo contrário, se
taria que o termo fosse simplesmente utilizado mantém como “um regime de dominação-ex-
como feminização do tipo criminal homicídio ploração das mulheres pelos homens” (p. 44),
(Lagarde, 2006b). Isso não se deu nos países onde não é necessária a figura do patriarca para
que fizeram a tradução direta do inglês e o tra- que a estrutura funcione, pois qualquer pessoa
duziram como femicídio. Usarei feminicídio pode acioná-lo. Neste sistema, a violência só
concordando com Lagarde (Gomes, 2012). pode sustentar-se num cenário de desigualda-
Para Diana Russell, feminicídio é “o assas- des de gênero (Almeida, 2007). É afirmar que
sinato de pessoas do sexo feminino por pessoas tal violência de gênero se estrutura a partir de
do sexo masculino, devido à sua condição de uma organização hegemônica de gênero onde
pessoa do sexo feminino” (Russell, 2006, p. 42) existe um padrão ideal de comportamento que
[tradução livre]. Esta autora defende que nem não deve ser questionado, e onde uma deter-
todo assassinato de mulheres é um feminicídio, minada noção de “masculino” tem privilégios
e que apesar de ser difícil distingui-los, a per- sobre outra, “feminina”. Esta violência não está
gunta básica é “houve sexismo no crime?”, ou isolada na realidade social, mas “integra o con-
seja, a condição de gênero influenciou para que junto das desigualdades sociais estruturais, que
aquela mulher fosse morta? Se a resposta for se expressam no marco do processo de produ-
sim, evidentemente estamos diante de um fe- ção e reprodução das relações fundamentais – de
minicídio. classe, raça e gênero” (Almeida, 2007, p. 27).
O feminicídio envolve o assassinato e a mu- Ou seja, o patriarcado possibilita a existência
tilação, o assassinato e a violação da violência de gênero e os feminicídios são a
expressão mais dramática e letal. Côrrea (1981)
(…) chamar feminicídio assassinato mi- afirma que “a morte é apenas a última e mais
sógino elimina a ambiguidade dos ter- dramática maneira desta violência” (p. 8).
mos assexuados de homicídio e assassi- Assim, em meio a numerosas críticas5 ao
nato. O feminicídio é o extremo de um conceito de patriarcado, se argumenta que é
continuum de terror antifeminino que uma chave analítica para compreender a si-
inclui uma grande quantidade de formas tuação de violência e de violações a que estão
subordinadas as mulheres em todo o mundo, públicos que ainda são escassos em muitos
na medida em que o sistema patriarcal permi- bairros. Esta migração10 está confirmada pelos
te uma série de vulnerabilidades por meio das dados do IBGE (Brasil, 2009) que indicam que
desigualdades, que se manifestam na divisão 42,5% da população residente em Mato Grosso
sexual do trabalho, no mercado de trabalho e é migrante.
na família, onde geralmente, as mulheres são Neste lugar, conhecido nacionalmente por
prejudicadas6. Os feminicídios são, nesta pers- ser uma zona de forte produção agropecuária, e
pectiva, a expressão letal de um continuum de com desenvolvimento tecnológico em curso, a
violência contra as mulheres (Russell, 2006a). taxa de homicídio em 2006 (um ano antes dos
A morte violenta de mulheres por homicí- dados desta investigação) colocou o estado en-
dios é ainda invisibilizada frente aos casos cujas tre os dez mais violentos do país (Waiselfisz,
vítimas são homens. A proporção de homicí- 2008).
dios femininos não ultrapassa os 12%, enquan- A investigação se deu em algumas institui-
to os homicídios masculinos sempre estão entre ções com a finalidade de obter o maior número
acima dos 85% de todos os casos (Waiselfisz, de informação possível sobre vítima e indicia-
2012). Todavia, os movimentos de mulheres do, bem como o andamento dos autos criminais.
e as teóricas feministas vêm denunciando que Os dados apresentados são uma compilação do
muitos destes casos de homicídios femininos material coletado, construído e analisado em: 1)
têm o gênero como fator estruturante para ocor- Delegacia Especializada de Homicídios; 2) Jui-
rência das mortes, o que as torna distintas dos zado Especial Criminal (JECrim); 3) Varas Es-
casos masculinos. Não existem dados oficiais pecializadas de Violência Doméstica e Familiar
reconhecendo feminicídios no país7. contra a Mulher; 4) Vara do Tribunal do Júri. As
A partir deste referencial de patriarcado- informações apresentadas fazem referência a
violência de gênero-feminicídio, se buscou em todos os homicídios considerados feminicídios
algumas instituições públicas conhecer as esta- ocorridos em 2007 e 2008 em toda a região me-
tísticas de feminicídios e como estes casos es- tropolitana de Cuiabá11.
tavam sendo resolvidos pelo sistema de justiça A primeira noção de campo de investigação
criminal. A pesquisa observou cada caso de ho- é a de um espaço no qual esta se leva a cabo. No
micídio com vítima mulher ocorrido em 2007 e entanto, o campo é muito mais que isso. O cam-
2008 para identificar quais eram casos de femi- po pode ser entendido também como um campo
nicídios (ver apresentação no próximo item). O de produção social, um espaço de relações obje-
lugar escolhido para a investigação foi Cuiabá8, tivas. “Compreender a gênesis do campo social
capital de Mato Grosso. Supõe-se que as polí- (...) é explicar, tornar necessário, subtrair ao ab-
ticas públicas contribuem para a efetivação dos surdo do arbitrário e do não motivado os atos
direitos humanos e, neste sentido, conhecer as dos produtores e das obras por eles produzidas”
respostas públicas e políticas frente aos crimes (Bourdieu, 2009, p. 69). A explicação de femi-
onde os mecanismos para contribuir com a pro- nicídio e dos processos criminais produzidos, a
teção das mulheres estavam em funcionamento, punibilidade sobre eles, foram estudados pelo
pareceu frutífero para a análise. campo da judicialização. Este campo envolve
A população da região metropolitana de numerosas complexidades. Desde o acesso dos
Cuiabá alcança cerca de 800 mil pessoas. dados até a falta de sistematização dos mesmos.
Conforme informações do próprio governo9, a Blay (2008) informa o “silêncio dos dados” e
região recebeu um fluxo de migrantes nas dé- indica a dificuldade da busca dos materiais.
cadas dos anos 1970 e 1980, o que gerou um A ausência de dados qualitativos não se re-
crescimento populacional cuja localização, em duz à realidade das mulheres, principalmente
especial, teve lugar nas zonas periféricas da ci- na área da criminalidade. “No Brasil, as bases
dade, demandando investimento nos serviços de dados criminais são pouco analisadas e as
informações que existem, pouco divulgadas. existem homens e mulheres genéricas, assim,
Esses fatores impedem a compreensão ampla quando se apresentam os casos estudados não
dos fenômenos” (Moraes, 2005, p. 1). Assim, é para generalizá-los ou reduzir as pessoas aos
as informações apresentadas colocam em rele- dados. O que se busca são as semelhanças e as
vo a ausência e a omissão de uma política que recorrências para identificar elementos estru-
objetiva expor a realidade. turais que garantem que sujeitos com histórias
e vivências tão distintas sejam envolvidos em
Investigação do sujeito múltiplo práticas letais.
Em 53 casos de homicídios que ocorreram
Um dos desafios das ciências sociais na na região metropolitana de Cuiabá em 2007 e
contemporaneidade é situar o sujeito, ou seja, 2008, 32 foram considerados feminicídios12. A
compreendê-lo em suas distintas construções idade da vítima e do indiciado são muito dis-
de identidade, simbólicas e materiais. Saffioti tintas e não há um grupo etário predominante.
(2004) afirma que existe um nó que constitui As mulheres tinham entre 13 e 68 anos – três
a sociedade, do qual faz parte a classe, a raça vítimas tinham menos de 18 anos e a metade,
e o gênero e não é possível entender esta reali- 16 delas, tinha até 30 anos. Entre os homens in-
dade na investigação sem considerar estas ca- diciados, as idades variaram entre 18 e 72 anos,
racterísticas às quais pertencemos. Não é pos- sendo apenas um menor de idade e no total,
sível fugir disso, assim como da geração, da quatro jovens – com até 24 anos. O que se pode
orientação sexual, das práticas religiosas e de confirmar é que os homens que mantinham al-
outras vivências que constroem os sujeitos e os guma relação afetiva com as vítimas eram sem-
fazem experimentar o mundo em meio ao siste- pre mais velhos que elas.
ma capitalista e patriarcal, que é essencialmente A “cor” dos sujeitos, que pode remeter à sua
sexista e racista. “raça”, é um item de investigação difícil de se
Os indicadores sociais nacionais apresen- organizar, porque além de estar frequentemente
tam de que maneira as desigualdades de gênero ausente (até mesmo nos exames de corpo de de-
estruturam os lugares sociais. A maior escola lito não constavam os dados pessoais comple-
ridade das mulheres e o maior acesso às carrei- tos dos envolvidos), seu registro pode ser muito
ras de nível superior não impedem que elas es- subjetivo. As pessoas dos casos estudados fo-
tejam dentro das maiores taxas de desemprego ram em sua maioria consideradas pardas – 23
ou tenham menores participações nos cargos de vítimas e um indiciado. Entre as vítimas havia
chefia. A jornada extensiva de trabalho ainda se também seis brancas, duas negras e uma não foi
mantém na vida de muitas mulheres; em rela- possível identificar. Para os indiciados, quatro
ção às tarefas domésticas as mulheres gastam negros e três brancos. Esses dados se relacio-
muito mais horas do seu cotidiano do que os nam com a característica da população na re-
homens. Os dados do IBGE na Síntese dos In- gião, que é essencialmente “parda” e, portanto,
dicadores Sociais de 2009 a 2012 apontam esta não se trata de dizer que os “pardos” estão mais
informação. envolvidos em crimes senão que são a maioria
Os avanços conquistados pelas mulheres da população.
ainda não se traduziram em autonomia e dig- Os dados sobre escolaridade e ocupação são
nidade em suas vidas porque as permanências os que menos aparecem nos autos criminais.
conservadoras e misóginas são numerosas. É Recuperar a vida dos sujeitos, em especial das
necessário reconhecer que os papéis de gêne- vítimas, soa como pouco importante na política
ro não contribuem para melhores condições de segurança pública, desconsiderando assim
de vida dos homens e das mulheres e este é o as numerosas vulnerabilidades a que as pes-
cenário em que viviam e conviviam os sujei- soas estão submetidas ao longo de suas vidas,
tos envolvidos nos casos de feminicídios. Não que passam pelo não acesso a educação e a um
trabalho digno. Para as vítimas, é importan- e patologizar os casos, mas para questionar e
te indicar que, das informações existentes (14 seguir denunciando uma estrutura social que
mulheres), todas estavam trabalhando ou estu- legitima e reproduz relações afetivas tão vio-
dando. É um ponto relevante porque confirma lentas. O não reconhecimento dos direitos das
também que a ocupação e a escolaridade da ví- mulheres, a vulnerabilização de mais da metade
tima não impedem que vivenciem a violência. da população, a discriminação pelo fato de ser
Para os indiciados (12 casos em que havia este mulher contribuem para práticas feminicidas.
dado), nove estavam trabalhando, dois estavam “O feminicídio é o extremo de um contínuo
desempregados e um se declarou “sem ocu- de terror antifeminino que inclui uma grande
pação”. No item escolaridade, para as vítimas quantidade de formas de abuso verbal e físico”
havia 12 casos com informação e para os indi- (Russell, 2006a, p. 56).
ciados, 21. Todas as vítimas tinham pelo menos O próximo item apresentará o tipo de rela-
a educação básica sendo que cinco haviam ter- ção mantida entre vítima e acusado, nos casos
minado o ensino médio e/ou já cursavam nível analisados, e a violência como elemento funda-
superior. Dos indiciados, 11 não tinham sequer mental nestes cenários feminicidas.
a educação básica ou eram analfabetos e nove
tinham, pelo menos, a educação básica. Apenas Trajetórias plurais e o feminicídio como pro-
três terminaram o ensino médio e/ou já cursa- duto final de uma vida com violência
vam nível superior.
O conhecimento possível de se apreender dos Nesta pesquisa, a relação entre a vítima e o
processos é muito pequeno – escolaridade e ocu- acusado de todos os casos que foram conside-
pação no mercado de trabalho, são dados muito rados feminicídios era pelo menos de “conheci-
escassos – e por isso não é possível fazer consis- dos”. Dos 32 feminicídios, 26 podem ser con-
tentes inferências. Aparentemente, os indiciados siderados “feminicídios íntimos”14 porque havia
têm pouca escolaridade e desempenhavam algu- algum elemento de intimidade entre eles; 11
ma ocupação, ainda que de baixa remuneração. eram cônjuges, dez ex-cônjuges, três amantes,
Mas não é possível afirmar que estes homens são dois noivos e seis eram pessoas que se conhe-
mais violentos, senão que a violência se expressa ciam. O conceito de feminicídio íntimo é utili
em todas as classes sociais, mas em uma popula- zado para desarticular as definições de crimes ou
ção empobrecida, a violência é mais um elemen- homicídios de mulheres por violência doméstica,
to de vulnerabilização. Além disso, as classes violência intrafamiliar ou crime passional. Com
mais favorecidas podem acessar estratégias que estes termos se invisibiliza o sexo da vítima e do
as protejam da violência antes que se chegue à autor do crime e se oculta também o uso inten-
sua expressão letal, o que não impede que muitas cional da violência por parte do homem para pôr
mulheres ricas sejam vitimadas (Almeida, 1998; fim à vida de meninas e mulheres (Monárrez,
Saffioti, 2004). 2006, p. 362) [tradução livre].
De que maneira os aspectos abordados inte- Dos feminicídios íntimos, o tempo da re-
ragem com as situações que favorecem a prática lação entre as partes variou muito, desde três
de feminicídios? Qual a relação existente entre meses até 28 anos e é possível observar a exis-
os indicadores socioeconômicos que apontam tência de casais que estavam juntos e outros
para uma sociedade extremamente desigual? separados à época do crime. Foi possível reco-
O Brasil não é um país pobre, mas apresenta nhecer nas histórias que, em 20 casos, a vítima
situações de injustiça e alta proporção de uma tentava romper a relação com seu agressor e,
população em situação de pobreza13. A análise em 14 casos, havia filhos e filhas entre o casal.
dos casos revela que a violência nas relações Esses dados permitem inferir que o tipo da
anteriores ao feminicídio é um dado para ser relação – formal ou não, assim como o tempo
observado, não para individualizar as situações da relação e a existência de filhos e filhas entre
as partes, não são determinantes para que o cri- cenário, de dados muito recentes, revela a am-
me ocorra ou não. O que chama a atenção nas plitude da violência familiar contra as mulheres.
histórias é a presença da violência. Em 24 dos Se é que existem outras vivências de violência e
32 casos de feminicídios observados, foi identi- contextos de assassinato de mulheres – e segu-
ficada violência entre vítima e acusado antes do ramente há – é necessário que sejam revelados
crime e em oito casos, a vítima chegou a fazer e analisados. O papel das mulheres no tráfico de
um boletim de ocorrência policial contra aquele drogas, o drama do tráfico de mulheres e outras
que veio a assassiná-la. situações que a noção de “violência feminicida”
Em oito casos a premeditação do crime foi podem contribuir para a análise. É importante se-
visível, em outros, não foi possível verificar. O guir observando as taxas de mortalidade materna
fato de que o autor projetou o crime confronta e de morte por aborto inseguro, por exemplo.
a argumentação de que a situação ocorreu de No caso dos assassinatos, uma análise ini-
maneira inesperada, produto da “violenta emo- cial mostra que os feminicídios íntimos predo-
ção” – motivo de diminuição da pena de acor- minam e que chamá-los assim é uma primeira
do com o código penal brasileiro. Quando há possibilidade para visibilizar e politizar o fenô-
evidências de que o acusado planejou a morte meno retirando a noção de “crime passional”.
da vítima, inclusive, tendo ameaçado-a, é um De acordo com Martínez (2010),
equívoco sustentar esta argumentação.
Em relação ao local do crime é notável que No caso do vocabulário de feminicídio,
quase metade das vítimas foi assassinada den- as estratégias das quais falamos (re)poli-
tro de sua própria casa. Foram 15 dos 32 casos tizam o debate mais além de uma mera
nesta situação. Rua, hotel/motel, lixão da ci- concorrência jurídica. Esta (re)politiza-
dade e lugar de trabalho da vítima foram ou- ção decorre da força da comoção do con-
tros locais onde os corpos foram encontrados. ceito que introduz a análise de como se
A casa segue sendo o lugar mais perigoso e de produz a divisão sexual do trabalho ao
maior vulnerabilidade para a mulher. Ainda que seria um debate meramente jurídico
que faltem investigações nacionais que possam (...) a eficácia do vocabulário feminicídio
identificar a realidade das mortes por assassina- para o debate com perspectiva de gênero
tos no Brasil, o Mapa da Violência de 2012, no tem a ver com procedimentos analíticos
Caderno Mulher, contemplou o dado relação -históricos de interpretação (Martínez,
vítima/agressor, mas não informou dados para 2010, p. 106) [tradução livre].
as mortes e sim para os atendimentos hospitala-
res, os quais totalizaram quase 40 mil casos em Estou convencida que é necessário nomear
2011 (Wailselfisz, 2012). o fenômeno no Brasil. Apesar da afirmação de
Os pais são os principais responsáveis pe- Pasinato (2011), que a “classificação dos ho-
los incidentes violentos até os 14 anos de idade micídios de mulheres como femicídio não con-
das vítimas. Nas idades iniciais, até os 4 anos, tribuirá para o conhecimento e a compreensão
a responsabilidade é das mães. Desde os 10 sobre eles” (p. 242), acredito no contrario: é
anos predomina a figura paterna. Este papel importante seguir com o debate e com o conhe-
paterno vai sendo substituído progressivamen- cimento sobre cada contexto, reconhecendo as
te pelo cônjuge e/ou namorado, que predomina particularidades do território brasileiro. Como
sensivelmente dos 20 até os 59 anos. Dos 60 “suspeita” para futuras pesquisas, é possível
em diante, são os filhos que assumem o lugar comentar que possivelmente no Rio de Janeiro
predominante nesta violência contra a mulher se encontre um maior número de mulheres as-
(Waiselfisz, 2012, p. 15). sassinadas no âmbito do tráfico de drogas e da
Estes dados reforçam a maneira violenta prostituição. Em Recife, o tráfico de mulheres
na qual ainda se estruturam as famílias, cujo pode estar exterminando mais mulheres que os
vestibular em outros estados. Rompeu seu na- a vítima para o motel e, friamente, mantido
moro pelo excesso de ciúme do companheiro. relações sexuais com ela pela última vez e as-
Após duas semanas do rompimento, em uma sim, eliminado covardemente sua vida (...)”
das inúmeras vezes em que o ex-namorado a (Relatório de inquérito policial - caso 18 -
procurou, foi com ele ao motel e após mante- 2008).
rem relação sexual foi esfaqueada. Danevimar Lovenil tinha 51 anos e estava casada há
tinha 23 anos, era vendedora e morava com cerca de 20 com Nilson, 55 anos. O casal tinha
seu namorado há dez meses. Decidiu terminar uma filha em comum e residia na mesma casa,
o relacionamento também pelo ciúme do com- mas estava separado há três anos. Em setem-
panheiro. Vizinhos contaram que ele a proibia bro de 2006, Lovenil denunciou o esposo por
de estender roupas na varanda de sua casa ou ameaça. Aproximadamente um mês depois foi
atender serviços à porta, como entrega de água. realizada uma audiência de conciliação e o ca-
Foi torturada, mutilada tendo cortes por todo sal foi encaminhado ao Núcleo Psicossocial do
corpo e por fim esganada. Seu companheiro ti- JECrim de Cuiabá. Lovenil foi encaminhada à
nha ensino superior e estudava para provas de psicoterapia e convidada a participar do grupo
concursos públicos. Segundo depoimento dos de mulheres, ao qual compareceu em algumas
pais das vítimas e dos agressores, eles eram reuniões. Nilson foi encaminhado ao grupo de
homens responsáveis, com uma conduta que homens17 e esteve presente nas seis reuniões
jamais possibilitaria imaginar desfechos como exigidas. Embora o “autor dos fatos”, Nilson,
estes – ambos tinham inserção formal no mer- houvesse cumprido o que foi acordado em au-
cado de trabalho. Os dois agressores afirmaram diência, o relatório ao juiz responsável pelo
em seus depoimentos que gostavam muito das caso não foi encaminhado na época adequada,
respectivas vítimas, e que estavam arrependi- bem como o devido acompanhamento ao casal
dos. O agressor de Danevimar chegou a afirmar não foi realizado, em virtude do excessivo nú-
que teve um surto no momento da briga que mero de procedimentos pelos quais as profis-
culminou na morte da namorada e que de nada sionais, assistentes sociais e psicólogas do Nú-
se lembrava. O recurso ao argumento da “per- cleo, deveriam responder. Quase um ano após
da da razão”, do “ato impensado” é socialmen- este procedimento judicial, em setembro de
te aceito com muita facilidade, pois é comum 2007, a equipe do Nups foi surpreendida com
acreditar que, em determinados momentos, as a notícia de que Nilson havia assassinado Lo-
pessoas de fato “perdem a razão”. Propõe-se venil e cometido suicídio. No procedimento do
aqui uma leitura alternativa, partilhando a tese casal, a data do relatório do Nups é posterior à
de Rouanet (1987) da razão louca e não da falta data da morte de ambos, o que revela a falta de
de razão. acompanhamento das situações sob a responsa-
Neste sentido, a razão é louca, não é sábia bilidade do Juizado.
– contraponto do autor, mas continua sendo
razão. Esta compreensão despatologiza e re- (...) O autor dos fatos foi acompanha-
dimensiona o lugar comum, por exemplo, da do pela equipe do Nups desde a data da
expressão “perder a cabeça” em referência a audiência preliminar, devido às amea-
um impulso, a uma ação não premeditada. É ças que fazia à vítima por não aceitar a
possível verificar que, mesmo nos casos em separação (...) cumpriu a medida parti-
que os agressores usam este tipo de argumen- cipando de todas as reuniões realiza-
to, a premeditação foi constatada. O relatório das (...) declarou que não houve mais
do inquérito policial que seguiu ao fórum no nenhum atrito entre as partes, que ele
caso de Clariane indicou que o rapaz vinha está aguardando o final destas reuniões
ameaçando a vítima “(...) assim sendo, não é para pedir decisão judicial junto à esfe-
difícil que o acusado tenha premeditado levar ra competente. Foi orientado a procurar
É dizer que o Estado pode responder, pontual- noção ideal de família se desmorona quando
mente, frente à violência contra as mulheres, se observam os casos de feminicídios, encon-
mas não pode transformar sua estrutura patriar- trados nesta pesquisa e 5) finalmente, o espaço
cal – e por sua vez, misógina –, não podendo onde as desigualdades se expressam com recor-
tratar de sua expressão letal. rência é a casa – a dimensão socialmente en-
Existem ferramentas teórico-políticas para tendida como espaço de afeto e proteção para
evidenciar o problema. “O medo de falar sobre seus integrantes é, na realidade, aquela onde há
feminicídio é o medo de usar um vocabulário opressão e violência. É dentro de casa que mui-
eficaz que bem pode ser utilizado para entender tas mulheres são assassinadas.
o que é que passa com os crimes que compro- Estes argumentos não são novos, e não
metem as mulheres” (Villegas, 2010, p. 62). Si- estão restritos a uma realidade específica – a
gamos com as perguntas e com a possibilidade cuiabana. Apenas reafirmam que apesar das
de conhecer e nomear a realidade. “O conheci- mudanças ocorridas – nas relações entre ho-
mento histórico é, por sua natureza, provisório mens e mulheres, nas expectativas sociais para
e incompleto” (Thompson, 1978, p. 49) os gêneros, e de maneira mais específica, nos
avanços gerados pela modernidade, com as
Conclusão conquistas feministas como o acesso ao voto, o
direito à participação política, o acesso à educa-
A proposta deste artigo foi apresentar infor- ção, a liberação sexual, a inserção no mercado
mações sobre feminicídios ocorridos na região de trabalho – produtos das lutas históricas e res-
metropolitana de Cuiabá nos anos de 2007 e postas cujo objetivo era melhorar as condições
2008, a partir de levantamento inédito feito nos de vida das mulheres – ainda a violência está
processos criminais de todos os homicídios de presente na experiência de vida das mulheres. A
mulheres ocorridos neste período. Este estudo violência de gênero – produto de uma estrutu-
gera considerações sem chegar a conclusões ra desigual, de uma sociedade patriarcal – tem
definitivas, mas aproximadas, que reafirmam uma expressão letal, que vitimiza com a morte
tendências e permanências históricas: 1) os fe- milhares de mulheres.
minicídios predominam entre os homicídios de Ainda que este artigo não tenha ousado tra-
mulheres, ou seja, a causa de morte de mulheres tar da relação entre a intervenção profissional
por homicídio é produto da violência de gênero do Serviço Social e os casos de feminicídios,
– esta tem uma expressão letal para as mulhe- considera-se essencial que o debate sobre a ex-
res; 2) as relações violentas podem ser fatais e pressão letal da violência de gênero ocupe espa-
no caso dos feminicídios, o são. As relações afe- ço privilegiado no interior da profissão.
tivas também podem ser fatais, principalmente, A liberdade e a cidadania são construções
aquelas produzidas e reproduzidas nos conflitos coletivas. A partir de concepções teóricas que
resolvidos de maneira violenta; 3) não é a idade compreendem a realidade como contraditória
dos sujeitos ou o tempo da relação entre eles que e dinâmica, é possível analisar o contexto em
protege ou motiva a prática dos feminicídios – que ocorrem os feminicídios. Este conceito,
as histórias e características pessoais de vítima produto do desenvolvimento da epistemologia
e acusado confirmam que a relação desigual, feminista, possibilita avançar no conhecimento
hierárquica, onde existem lugares e papéis de e análise dos fatos.
gênero perversamente determinados, aparece
como elemento que contribui para o exercício Referências bibliográficas
da violência e sua letalidade; 4) a existência de
filhos e filhas entre o casal, o fato de que sejam ALMEIDA, S. S. de. Femicídio: algemas invi-
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1
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Unam, 2006a. Livro publicado nos EUA em politics of woman killing (1992) se difundiu
1992. em todo mundo. Todavia, a autora demons-
tra que o termo femicide já estava presente
_______; HARMES, R. Feminicidio. Una
na literatura e em dicionários ingleses antes
perspectiva global. Diversidad Feminista. Ceii-
do século XIX. Ver Russell, 2006b.
ch, Unam, 2006b. 2
O primeiro livro publicado sobre o tema no
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de segundo Estado: a escritura nos corpos das de femicídio. “Femicídio e as mortes de
mulheres de Ciudad Juarez”, in: Revista Es- mulheres no Brasil” (Pasinato, 2011). Já
tudos Feministas, Ano 13, v. 2, Florianópolis, a socióloga Maria Dolores de Brito Mota,
mai-ago. 2005. publicou seu livro sobre assassinatos de
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria – ou um mulheres no Ceará, intitulando-o como
planetário de erros, uma crítica ao pensamen- Feminino e Feminicídio: estudos sobre re-
to de Althusser. Rio de Janeiro, Zahar Editores, lações de gênero, violência, feminilidade
1978. e cultura (2010). Na imprensa também o
VILLEGAS, A. Feminicidio en Morelos: una uso é indistinto e se verifica ora femicídio,
genealogia de su discurso. In: MARTÍNEZ, A. ora feminicídio, para tratar do mesmo fe-
M. (coord). Feminicidio: actas de denuncia y nômeno. Ver por ex.: <http://exame.abril.
ARTIGO
Resumo: Este artigo é fruto de uma pesquisa quantitativa realizada com estudantes de diversos cursos de graduação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, dos campi da cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de investigar o que
pensavam a respeito da homossexualidade. Iniciamos com questões sobre o termo e, em seguida, perguntamos sobre a
concessão de direitos civis para casais do mesmo sexo. Outra temática tratada foi a homofobia. Estar cursando o início
ou o fim do curso não fez diferença a respeito do que pensam sobre esses temas, tampouco, a área da graduação. O
gênero dos entrevistados parece diferenciar as opiniões a respeito de alguns dos aspectos pesquisados relacionados à
sociabilidade.
Abstract: This article derives from a quantitative research with grad students from different carriers in the University of
the State of Rio de Janeiro, in the campi in Rio de Janeiro city, aiming at investigating their thoughts on homosexuality.
They were initially questioned about the term itself and later about the granting of civil rights to same-sex couples. Ho-
mophobia was also an issue in the interviews. Being in the first of last year of grad school does not make a difference,
neither the area of studies. The gender of the students seems to be the main factor differentiating the opinions on the
polled subjects related to sociability.
o mercado e a academia nas discussões sobre alunos de graduação de todos os cursos do cam-
a homossexualidade e sobre a homofobia. Em pus Maracanã e das unidades isoladas da cidade
suas pesquisas na plataforma Lattes do CNPq, do Rio de Janeiro e entrevistamos alguns alu-
os autores afirmam que, em 2006, já apare- nos. Neste texto, vamos trabalhar apenas com
ciam 1.420 pesquisadores trabalhando com os dados dos questionários, inclusive, com as
temáticas referentes a “homoerotismo”, “ho- questões abertas.
mossexualidade”, “gay”, “lésbica” e “queer”, O intenso processo de elaboração dos ques-
o que aponta para o crescimento do interesse tionários e sua aplicação-piloto foram etapas
por esta temática entre a população acadêmica. fundamentais e nos renderam bons momentos
O presente artigo parte desta aposta: de de discussão e aprendizagem em pesquisa. No
que, a qualquer tempo, é possível discutir so- decorrer desta, encontramos dificuldades de
bre sexualidade na formação profissional de todos os tipos: desde a não liberação de alguns
qualquer área, acreditando que a universidade institutos e faculdades para a entrada em sala
pode ser um lócus importante de transforma- de aula com intuito de aplicarmos os questio-
ção das relações de gênero e da compreensão nários, até a dificuldade de encontrar os alunos
que se tem sobre a diversidade sexual. Nos em salas que, pelo menos nos quadros disponi-
arriscamos a dizer que é no enlace destes mo- bilizados nas paredes, seriam de determinados
vimentos de quebra de preconceito e promo- períodos que fariam parte do recorte que esco-
ção de cidadania LGBT que gostaríamos que lhemos. Nosso alvo eram alunos do início e do
nossa pesquisa fosse aproveitada. final dos cursos.
Este texto, após apresentação da opção A pesquisa teve um total de 712 questio-
metodológica, aborda três temáticas em diá- nários aplicados, sendo 320 homens, 382 mu-
logo: uma introdutória, a qual dá respaldo à lheres e 10 não revelaram seu sexo. Foram 476
discussão, que são as definições de homos- em alunos de segundo período e 236 em alu-
sexualidade e homofobia; outra sobre a pers- nos dos últimos períodos dos seguintes cursos:
pectiva dos direitos civis conquistados pela Educação, Artes, Engenharia, Letras, Ciências
população LGBT ou neste movimento de Sociais, História, Ciências Atuariais, Adminis-
conquista e, por último, questões ligadas à tração, Geologia, Contabilidade, Psicologia,
convivência e visibilidade no espaço público. Comunicação, Economia, Direito, Química,
Desenho Indústrial, Oceanografia, Geografia,
Trajetória metodológica Estatística, Odontologia, Medicina, Física e
Enfermagem. Dentre os entrevistados, 93,3%
A pesquisa teve início em 2009. Além de se declararam heterossexuais, 1,8% gays, 6%
buscar os sentidos que os alunos da univer- lésbicas, 3% transexuais, 2% bissexuais e 5,7%
sidade construíam para homossexualidade, outros ou não responderam. Com relação à reli-
visávamos saber de que forma esta temática gião, 35,2% se disseram católicos, 18,4% evan-
atravessava o cotidiano deles, suas opiniões gélicos, 8,3% espíritas5, 5,3% outros e 32,8%
sobre direitos civis para gays e lésbicas e não responderam ou não tinham religião.
como percebiam a interferência da passagem Para análise das perguntas quantitativas,
pela universidade na formação e possível al- formatamos um banco de dados no progra-
teração de suas convicções sobre o tema. ma EpiData, onde digitamos as informações,
Inicialmente, realizamos em nosso grupo de analisadas posteriormente a partir de filtros e
estudos discussões sobre textos de autores cen- cruzamentos feitos no programa de análise de
trais para os estudos sobre homossexualidade; dados SPSS.
a pesquisa teve um formato quali-quantitativa,
iniciado com levantamento bibliográfico exten- Homossexualidade e homofobia: tentativas
sivo. Em seguida, aplicamos questionários aos de definição
Outros e outras estudantes externaram seus (Borillo, 2009), vem se difundindo, ampliando
julgamentos: sua abrangência e sofrendo ressignificações no
âmbito social.
• Algo normal que não deve ser encarado No entanto, para melhor compreender este
com preconceito (M - 2p - Desenho In- conceito é preciso vislumbrar os diferentes mo-
dústrial - católico); dos de percebê-lo, bem como a inter-relação
• Falta de respeito com a vida (F - 2p - com outros fenômenos sociais e políticos que
Ciências Contábeis - católica); o alimentam ou são, por ele alimentados (Jun-
• Não sou a favor da homossexualidade queira, 2009, p. 368). Porém, o que se entende
pois não acredito que existe amor carnal por homofobia? Quais engrenagens sociais nu-
entre pessoas do mesmo sexo (F - 2p – trem suas raízes? Como práticas homofóbicas
Odontologia - evangélica); se configuram e se camuflam nas entrelinhas de
• Algo que ainda precisa ser entendido do discursos? A que se vincula o silêncio que en-
ponto de vista ético, moral e discutido volve o tema? Deste modo,
e não apenas estabelecido como errado
(M - 2p – Letras - católico); (...) no cerne desse tratamento discri-
• Desvio de conduta (M - 2p – Direito - minatório, a homofobia tem um papel
agnóstico); importante, dado que é uma forma de
• Uma anomalia da natureza (M - 2p – inferiorização, consequência direta da
Economia - ateu); hierarquização das sexualidades, que
• Como uma doença psicológica, onde há confere à heterossexualidade um status
métodos de tratamentos (M - 2p – Eco- superior e natural. Enquanto a heteros-
nomia - cristão). sexualidade é definida pelo dicionário
como a sexualidade (considerada nor-
Das definições variadas não pudemos con- mal) do heterossexual, e este, como
cluir a respeito da influência da área de conheci- aquele que experimenta uma atração se-
mento e do tempo decorrido no curso, no tipo de xual (considerada normal) pelos indiví-
concepção dos alunos sobre homossexualismo. duos do sexo oposto, a homossexualida-
Tampouco o sexo/gênero fez diferença. No en- de, por sua vez, encontra-se desprovida
tanto, é importante salientar que falar sobre ho- dessa normalidade. Nos dicionários de
mossexualidade continua despertando posições sinônimos, a palavra “heterossexuali-
contrárias ou a favor, como se fosse uma pesqui- dade” nem sequer aparece; por outro
sa de opinião pública. Também, chama a atenção lado, androgamia, androfilia, homofilia,
a busca por explicações para a homossexualida- inversão, pederastia, pedofilia, socra-
de, mesmo quando o pedido foi de definição. É tismo, uranismo, androfobia, lesbianis-
na centralidade da sexualidade na vida dos su- mo, safismo e tribadismo são propostos
jeitos, por se tratar de cada um e da população, como equivalentes ao termo “homosse-
conceito tão claramente explicitado por Foucault xualidade”. E, se o dicionário considera
(1988), que parece se ancorar esse debruçar-se que um heterossexual é simplesmente o
sempre da mesma forma sobre a sexualidade. Da oposto de um homossexual, são muitos
mesma forma porque busca motivos, explica- os vocábulos que apresenta para desig-
ções, reforça caminhos já traçados. nar esse último: gay, homófilo, pederas-
ta, enculé, bicha-louca, homo, bichona,
Homofobia e educação bichinha, afeminado, bicha-velha, mari-
cona, invertido, sodomita, travesti, tra-
O termo homofobia, a partir de seu pri- veco, lésbica, gomorreia, tríbade, sapa-
meiro uso, em 1971, nos Estados Unidos tão, bi, gilete (Borillo, 2009, p. 17).
• Agredir pessoas que tem orientação se- • Medo de virar homossexual, inseguran-
xual diferente da sua (7p - Administra- ça (2p - Comunicação).
ção);
• Medo de pessoas homossexuais (2p - Ou aproveita para julgá-la:
Administração);
• Pessoas que não se relacionam com ho- • Uma forma errada de protesto (2p - Ad-
mossexuais (2p - Comunicação); ministração);
• É a não aceitação irrestrita das diferen- • Julgamento desnecessário sobre a vida
ças e o medo do diferente (2p - Geogra- de alguém que leva à agressão física (2p
fia); - Medicina).
• Fobia= medo. Evitar/ não gostar de pes-
soas homossexuais (2p - Geografia); Essas duas definições sugerem uma confu-
• Medo de criar qualquer relação com pes- são com o termo homossexualidade, embora
soas do mesmo sexo (2p - Economia); não seja possível fazer esta afirmação:
• Pessoas que não gostam de pessoas do
mesmo sexo (6p - Comunicação); • Gostar de pessoas do mesmo sexo (6p -
• Rejeição a pessoas homossexuais (2p - Comunicação);
Física); • É uma doença (2p - Direito).
• Não gostar de igual (9p - Química);
• Medo a homem, receio a esta espécie E duas outras definições chamam a atenção:
(2p- Química);
• Medo ou receio de conviver com pes- • Medo de declarar sua opção sexual; nes-
soas do mesmo sexo (2p - Engenharia); se caso gay (2p - Economia);
• Prática de discriminar ou agir com vio- • Prática que tenta tornar a vida normal,
lência contra os homossexuais (8p - sem gays (6p - Geologia).
Ciências Sociais);
• Intolerância (8p - História); Ainda que não tenhamos nos debruçado so-
• Preconceito extremo contra os homos- bre a percepção que alunos e alunas possuem
sexuais (2p - Pedagogia). do preconceito do outro ou de seu próprio, os
dados da pesquisa da Fundação Perseu Abra-
Algumas definições vão claramente para o mo, de 2009, sobre Diversidade sexual no Bra-
âmbito religioso: sil e Homofobia (Venturi, 2009) revelam uma
dificuldade de nos percebermos preconceituo-
• Aversão a homossexuais. OBS: Na Bí- sos, ainda que o reconhecimento da homofobia
blia temos textos que condenam a práti- seja constatado.
ca da homossexualidade. Levítico18:18, Indagados sobre a existência ou não de
por exemplo. Mas Deus ama a todos; preconceito contra as pessoas LGBT no Bra-
conviver com isto é ser educado, res- sil, quase a totalidade das pessoas entrevista-
peitoso e digno de estar no mesmo am- das respondeu afirmativamente: acreditam que
biente que qualquer pessoa possa estar. existe preconceito contra travestis 93% (para
Agora se vai ou não para o inferno só 73% muito, para 16% um pouco), contra transe-
Deus sabe; teria de perguntar pra Deus a xuais 91% (respectivamente 71% e 17%), con-
opinião Dele (7p - Engenharia). tra gays 92% (70% e 18%), contra lésbicas 92%
(69% e 20%) e, tão frequente, mas um pouco
Uma pessoa arrisca uma perspectiva que menos intenso, 90% acham que no Brasil há
talvez tente explicar a existência da homofobia: preconceito contra bissexuais (para 64% mui-
to, para 22% um pouco). Mas perguntados se
são preconceituosos, apenas 29% admitiram ter perguntamos se os estudantes acreditavam que
preconceito contra travestis (e só 12% muito), havia cursos mais e menos preconceituosos:
28% contra transexuais (11% muito), 27% con- 23,3% responderam que sim; 24,7 disseram que
tra lésbicas e bissexuais (10% muito para am- não e o restante ou disse que não sabia, 48,5%,
bos) e 26% contra gays (9% muito). ou não respondeu, 3,5%. Quando pedimos para
Dados desta mesma pesquisa (Venturi, 2009) que especificassem as grandes áreas do que
revelam que o preconceito se reduz com o au- julgavam os mais preconceituosos, a maioria
mento da escolaridade, o que reforça nossa ideia elegeu “os de exatas” e “os de humanas” como
sobre a importância de tematizar essas questões os menos preconceituosos, em especial, os se-
na universidade. É necessário questionar qual a guintes cursos: Psicologia, História, Letras e
função desta e sua contribuição na produção e Pedagogia.
reprodução de práticas que reforçam ou descons-
troem o preconceito e a violência que ele carrega. Direitos e sociabilidade: o cotidiano e seus
Quando questionados se o tema geral “ho- percalços
mossexualidade” deveria ser tratado em sala
de aula, 49,8% responderam que sim e 43.5% Reflexão sobre os direitos
disseram que “não”, sendo 16,3% católicos e
10,3% protestantes. O que pode significar este Atualmente, intensificou-se o debate em
equilíbrio entre os que acham que deve ser tra- torno das garantias de direitos para a população
tado e os que não? Não se trata de um assunto LGBT e do combate à homofobia. Embora se
estritamente acadêmico? A universidade não cruzem, dois têm sido os caminhos que preten-
deve se posicionar em relação a essa temática? dem acabar com a construção de cidadania de
Os esclarecimentos devem vir da vida cotidiana segunda classe para parte da população: um é o
extramuros universitários? PL 122, que criminaliza a homofobia, tornando
Tentando entender um pouco mais sobre mo- clara a discriminação em função da orientação
mentos em que é possível identificar a temática sexual ou da identidade de gênero considerada
da homossexualidade, mais ou menos explicita- como transgressora da heteronormatividade, e
da, ou ainda perceber a homofobia entranhada o outro, são as conquistas, até o momento, pro-
em nossas práticas, perguntamos aos estudantes venientes do judiciário, prioritariamente, de
se tinham presenciado algum ato homofóbico direitos relacionados à filiação, bens patrimo-
no ambiente universitário, durante o trote, com niais, reconhecimento de conjugalidade.
qualquer dos estudantes ou ainda com aqueles A população LGBT vive, cotidianamente,
que demonstravam trejeitos homossexuais ou situações de violência em função de sua orien-
contra os sujeitos que eram declaradamente as- tação sexual e identidade de gênero, simples-
sumidos como gays, lésbicas, travestis ou tran- mente porque parte da sociedade identifica, se-
sexuais – visto que sabemos que as brincadeiras melhante ao que ocorre em casos de racismo,
com muita frequência têm um viés bastante se- que esta parte das suas existências deve ser
xualizado e reproduzem estereótipos de gênero, condenada. Ou seja, seu gênero e/ou sua orien-
desqualificando o que não é reconhecido como tação sexual, considerados desviantes, parecem
heterossexual. No entanto, apenas 17,4% res- motivos suficientes para a expulsão da condi-
ponderam que sim, há práticas homofóbicas nas ção de cidadania da qual deveriam gozar todos
brincadeiras do trote e 73,3% responderam que os cidadãos.
não. A brincadeira sobre a sexualidade, o jocoso
dirigido à homossexualidade talvez esteja tão na- A diferença entre os direitos e o seu gozo
turalizado que não seja perceptível. efetivo não é o único paradoxo: o outro é
Na diversidade da universidade, ficamos o contraste entre a violência relatada e a
curiosos sobre diferenças entre os cursos e fraqueza que parecem diante dela, tanto
em termos de direitos defendidos (de be- tem de direitos humanos e direitos constitucio-
neficiar-se de um seguro e não ser despe- nais fundamentais. Neste sentido, alguns dos
dido de um trabalho, por exemplo), bem desdobramentos dessa regência do direito à se-
como dos danos que não são protegidas xualidade baseado nos princípios fundamentais
por direitos (discriminação pré-contra- garantidos na Constituição Federal como da
tual; o recurso a operações perigosas igualdade e da liberdade seriam:
nos travestis) no contexto dos crimes de
ódio. Às vezes de maneira expressa, qua- Direito à liberdade sexual; direito à au-
se sempre de forma velada, o discurso de tonomia sexual, à integridade sexual e
direitos tem sentido como o desmentido à segurança do corpo sexual; direito à
da violência, sem importar sua gravida- privacidade sexual; direito ao prazer se-
de (...) enquanto a vida cotidiana aceita xual; direito à expressão sexual; direito
a sorte das vítimas da limpeza social, à associação sexual; direito às escolhas
especialmente quando são travestis ou reprodutivas livres e responsáveis; direi-
homossexuais, o discurso dos direitos re- to à informação sexual livre de discrimi-
clama a humanidade de cada morto, sua nações – estes são alguns dos desdobra-
dignidade materializada em pequenas vi- mentos mais importantes dos princípios
tórias como o seguro, as pensões, o traba- fundamentais da igualdade e da liberda-
lho (Lemaitre, 2009, p. 85-86). de que regem um direito da sexualidade
(Raupp, 2003, p. 17).
Dar visibilidade ao debate em torno de di-
reitos, tanto de sua promoção, quando da garan- Todos esses direitos e outros precisam ser
tia de não violação, tem sido um desafio coti- garantidos em lei e exercidos no cotidiano, o
diano, inclusive pelos motivos expressos nesta que é atravessado pela compreensão que as pes-
citação. soas tem sobre sexualidade e gênero, por isso
Um ponto de partida tem sido, com Raupp é tão importante inundar os espaços sociais os
(2003), pensar a partir da perspectiva da sexua- mais variados com esclarecimentos e debates.
lidade como integrante dos direitos humanos. Portanto, alterar atitudes, comportamentos e
entendimentos passa por processos punitivos
Democracia, cidadania, direitos huma- mas sobretudo, educativos.
nos e direitos sexuais, [são] bases a partir Para apurar o que estudantes conheciam
das quais será proposto um modelo de- sobre os direitos de gays e lésbicas relativos a
mocrático de compreensão dos direitos direitos civis, além de perguntar se conheciam
sexuais, que denomino direito democrá- alguma lei ou decisão judicial sobre o tema,
tico da sexualidade. (...) Desenvolver a enumeramos alguns direitos e pedimos que dis-
ideia de direitos sexuais na perspectiva sessem se eram contrários ou favoráveis. Não
dos direitos humanos aponta para a pos- houve uma diferença significativa de gênero
sibilidade do livre exercício responsável em questões como herança, partilha de bens,
da sexualidade, criando as bases para adoção, casamento. Quando se posicionavam,
uma regulação jurídica que supere as a favor ou contra, homens e mulheres, apresen-
tradicionais abordagens repressivas que tavam um mesmo modo de pensar: quando as
caracterizam as intervenções jurídicas questões eram voltadas aos direitos civis como
nesses domínios (Raupp, 2003, p. 3). herança, plano de saúde, direito a ficar no país,
havia uma aceitação maior, porém, quando as
Para Raupp (2003), é preciso que se garan- questões se remetiam à constituição familiar,
ta um direito à sexualidade que se reflita e se a resistência era maior e posições contrárias
constitua a partir da compreensão que hoje se apareciam. Tanto para casais gays, quanto para
casais de lésbicas. Este dado nos mostra como, sociedade ainda se manifesta contrária à visibi-
ainda, é preciso avançar nas discussões sobre o lidade das relações não heterossexuais, muitas
tema a fim de desconstruir uma série de pres- vezes de forma explícita e violenta, e outras de
supostos e estereótipos sobre dano à saúde das formas mais sutis. Essa perspectiva social faz
crianças, risco de violência sexual, entre outros, com que nem sempre a demonstração pública
que são atribuídos, por exemplo, à parentalida- de vínculos afetivos e/ou sexuais por parte de
de gay e lésbica (Uziel et al., 2006). pessoas que se interessam por outras de mesmo
No que tange aos direitos, nossos achados sexo seja evidente, o que é um cerceamento da
sobre a união estável entre homossexuais se livre circulação, garantida, inclusive, na Cons-
aproximam dos dados levantados pela pesqui- tituição Federal.
sa Ibope (2011). De acordo com esta pesquisa, Quando perguntamos, em nossa pesqui-
a aprovação de união estável entre homosse- sa, sobre a formação de vínculos de amizade
xuais obteve 52% a favor do público feminino com homossexuais, descobrimos que, quando
e 63% contra do público masculino. Em nos- questionados se a orientação sexual do outro
sos estudos, 46,3% dos que concordam com a era relevante para o estabelecimento de ami-
união estável entre casais homossexuais são do zades, 38% dos homens e 49,3% de mulheres
sexo feminino. No entanto, quando nos volta- responderam “não”, formando um total glo-
mos para o publico masculino obtivemos dados bal de 87,3% de pessoas que afirmam não ser
importantes e significativos. Diferentemente da a homossexualidade do outro um critério para
pesquisa Ibope, 35,6% dos homens pesquisa- firmar laços fraternos. Nossos achados cami-
dos, em nosso estudo, concordam com a união nham na mesma direção dos dados obtidos na
estável entre casais homossexuais, contra 8,3% pesquisa Ibope de 2011 onde, diante da ques-
que discordam. tão, “se seu amigo se revelasse homossexual, o
Já a adoção por casais homossexuais teve que você faria?”, 65% dos homens e 80% das
em nossa pesquisa 37,9% de aprovação femini- mulheres responderam que “não afastaria nada”
na e 17,2% de reprovação masculina. Quando (Ibope, 2011). É possível supor que a relação de
relacionamos este item com a religião, encon- amizade estabelecida talvez invisibilize a orien-
tramos que, dentre os que são favoráveis à ado- tação sexual do outro, visto o vínculo ser mais
ção por casal gay, 23,5% são católicos, 5,8% forte. Ou apague a homossexualidade nessa es-
evangélicos, 6,6% espíritas, 4,2% de outras fera da vida. Ou ainda, de fato, não seja algo
religiões e os que não têm religião ou não res- relevante na escolha de amigos.
ponderam a questão formam um percentual de Ainda com o propósito de saber se as pes-
25,2%. Dialogando mais uma vez com os dados soas concebem que seus próximos sejam gays
da Ibope (2011), observa-se que 62% dos ho- e lésbica, se conseguem ir além da suposição
mens foram contra e 51% das mulheres a favor; social da heteronormatividade, perguntamos
e entre as religiões protestantes/evangélicas, quem tinha conhecimento sobre a existência
72% se mostrou contra a adoção, ao passo que de gays e lésbicas na família. Os entrevistados
59% dos que responderam ser de “outras reli- e as entrevistadas indicam haver mais gays do
giões” foram a favor. que lésbicas na família: 11,2% dos homens e
19,2% das mulheres responderam que sim, há
Convivência e sociabilidade gays na família e apenas 5,5% dos homens e
8% das mulheres identificaram lésbicas entre
No questionário havia perguntas sobre con- os familiares. Essa diferença significativa pode
vivência com gays e lésbicas, bem como opi- se dar em função de uma invisibilidade lésbi-
nião sobre manifestações públicas de afeto. ca, fruto de desconhecimento, preconceito, mas
Apesar de todas as mudanças sociais no senti- também estereótipos do homem efeminado e
do do reconhecimento da diversidade sexual, a da maior liberdade que mulheres possuem de
externalizar afeto, o que pode confundir a per- Esses dados certamente contribuem para
cepção sobre o tipo de relação existente. reflexões acerca do posicionamento das re-
Outro tema sobre o qual a pesquisa se debru- ligiões em relação à existência e às manifes-
çou foi o da opinião dos entrevistados acerca da tações públicas e privadas das relações entre
manifestação pública de afeto entre gays sob va- pessoas de mesmo sexo. A influência da reli-
riados formatos. Em relação ao selinho, 22,8% gião é grande em nosso país, tanto em espaços
dos homens e 36,6%, das mulheres foram favo- públicos e de decisão, como vimos anterior-
ráveis. Quando se tratava de beijo, dos 45,6% fa- mente, a respeito da existência de uma banca-
voráveis, 18,9% eram homens e 26,6 % mulhe- da religiosa no Congresso, quanto no cotidia-
res. Ainda que com proporção diferente, também no dos cidadãos.
em relação ao abraço em público as mulheres No entanto, na administração cotidiana
são mais favoráveis: do total global de 81,3%, de suas vidas, as pessoas negociam com seus
33,9% são homens e 47,4%, mulheres. Por fim, credos, como apontou o trabalho de Ribeiro e
sobre andar de mãos dadas, 71,4% foi favorável, Luçan (1995), tendo condutas que, a princípio,
sendo 28,5% de homens e 42,9% de mulheres. negariam sua religiosidade. Talvez por isso seja
Os dados não variaram muito em relação a to- possível encontrar na população, e entre os en-
das essas manifestações em casais de lésbicas. O trevistados, posturas variadas de pessoas que
machismo e o sexismo que nos constitui parece professam uma mesma religião. Quando per-
trazer maiores impedimentos aos homens para guntamos se a religião influenciava sua forma
legitimar e reconhecer direitos básicos de cida- de pensar a homossexualidade: 33,4 dos ho-
dania aos que se interessam e/ou amam pessoas mens e 46,7% das mulheres responderam que
do mesmo sexo. sim. Quando mudamos um pouco a questão,
A correlação entre demonstrações pú- indagando se sua prática religiosa influenciava
blicas de afeto e religião traz dados interes- a visão que tinham sobre homossexualidade,
santes, sobretudo porque as igrejas têm cada 16,9% dos homens e 23,2% das mulheres res-
vez mais se pronunciado sobre estas temáti- ponderam que não.
cas. Dentre os 59,6% dos participantes que Este é um campo rico de estudos que vem
responderam sim para o selinho gay, 20,5% merecendo cada vez mais atenção dos pesqui-
eram de religião católica e 5,2% de religião sadores que acompanham os movimentos so-
evangélica. Sobre selinho entre lésbicas, os ciais de adesão e afastamento das diferentes
valores não variaram muito: dos 65% que religiões6.
responderam sim, 22,4% eram da religião ca-
tólica e 6,2% da evangélica. Em relação ao Considerações finais
item beijo entre casais gays, do total dos fa-
voráveis, 15,2% professavam a fé católica e A Uerj, uma universidade conhecida e re-
3,4%, a evangélica. Em relação às lésbicas: conhecida por seus pesquisadores e centros de
16,7% eram católicas e 4,1% evangélicas. No estudos sobre sexualidade, vanguarda nas pes-
item abraço entre casais gays, do percentual quisas sobre Aids dos anos 1990, pioneira na
de favoráveis, 28,4% eram católicos e 11% concessão de direitos à população LGBT como
evangélicos. Em relação a casais de lésbicas, uso do nome social por pessoas trans, uso do
29,7% católicos e 11,1% evangélicos, per- banheiro feminino para travestis e transexuais7,
centual muito semelhante. E, por fim, o mes- entre outros, defende, com todo aparato de pro-
mo acontece no item “andar de mãos dadas”: fissionais e especialistas na área que possui, a
entre casais gays, o percentual dos favoráveis busca por igualdade e respeito às questões de
foi de 25,6% de católicos e 8% de evangéli- gênero, raça e orientação sexual.
cos. Para casais de lésbicas, os favoráveis são O espaço acadêmico deve ser, por princípio,
27,8% de católicos e 8,9% de evangélicos. um lócus de debate. A universidade precisa se
constituir como um espaço privilegiado de re- na universidade ou nos cursos de forma mais
flexão sobre as diversas questões que envolvem direta, o contato com um universo mais amplo
a cidadania, por isso sugere-se que enfrente, no de conhecimentos altera a percepção das pes-
seu cotidiano, a discussão sobre gênero e se- soas. Neste sentido, é preciso provocar a co-
xualidade, tanto em espaços específicos, desti- munidade acadêmica para que se debruce sobre
nados a essa temática, como em seminários e certos assuntos.
em salas de aula, quanto nas ações cotidianas Pesquisar é fazer novas perguntas, provocar
que vão desde o respeito ao trânsito no espaço cristalizações, visitar certezas. Nessa perspec-
público, como um bom atendimento de sua po- tiva, é preciso discutir um pouco mais sobre
pulação, no que tange às questões de gênero e a resistência das pessoas em considerar como
sexualidade, tema deste trabalho. possíveis as famílias cujos adultos são gays,
Buscamos, com esta pesquisa, não apenas lésbicas e, por que não, travestis e transexuais,
conhecer um pouco da realidade de uma parte no sentido de garantir a todos os integrantes
da universidade em relação ao que pensam so- desses núcleos familiares os mesmos direitos e
bre gênero e sexualidade, mas também contri- deveres de toda a população. Outro ponto a ser
buir para fomentar este debate. Se por um lado perseguido é a diferença significativa de gênero
a universidade é um espaço aberto ao debate, em questões de discriminação relativa à popu-
por outro é atropelada por questões cotidianas lação LGBT. Se em uma série de questões este
que invisibilizam certos temas ou problemáti- item não aparece, no acolhimento às manifesta-
cas. Estamos convencidos da importância de ções de afeto a aceitação feminina é flagrante-
se interpelar as pessoas no cotidiano para que mente maior.
reflitam sobre identidade de gênero, orientação Esta pesquisa, longe de pretender traçar um
sexual, questões que atravessam a vida de todos perfil dos universitários da Uerj em determina-
e são naturalizadas. Esta afirmação baseia-se na do momento, visou pautar o debate. Que esta
observação de campo, visto que muitos dos en- iniciativa seja profícua e a universidade possa
trevistados revelaram estranhamento diante de se constituir como um ambiente mais amplo de
algumas questões propostas pelo questionário, formação social.
pois, segundo eles, ainda não haviam parado
para pensar naquele assunto. Referências bibliográficas
Em relação aos dados e às conclusões a que
chegamos, ficamos surpresos quando percebemos BORILLO, D.; LIONÇO, T.; DINIZ, D. (orgs.)
que uma de nossas hipóteses iniciais, a de que ha- Homofobia & Educação: um desafio ao silên-
veria alguma diferença entre o posicionamento cio. Brasília: LetrasLivres/EdUnB, 2009.
de alunos iniciantes e os que estavam no final da BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo
graduação foi refutada. De forma geral, se posi- e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Ci-
cionaram favorável ou contrariamente diante das vilização Brasileira, 2003.
mesmas questões. Dado corroborado pela afirma- FOUCAULT, M. História da sexualidade I. A
ção de 85,7% das pessoas de que o espaço acadê- vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
mico não influenciou sua visão sobre a temática.
_______. Dits et écrits IV. Paris: Gallimard,
No entanto, se observamos as definições de ho-
1994.
mossexualidade e homofobia, como destacamos
no trabalho, podemos inferir que, fomentando o _______. Os anormais. São Paulo: Martins
preconceito, o desconhecimento é grande. Fontes, 2002.
Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo FRY, P.; MACRAE, E. O que é homossexuali-
(Venturi, 2009), concluiu-se que o preconceito dade? São Paulo: Zahar, 1983.
diminui à medida que a escolaridade aumenta,
logo, mesmo que a temática não seja trabalhada
4
Ver os trabalhos de Roberto Lorea. Uerj.
5
Convém lembrar que muitas pessoas de reli-
giões afro como o candomblé costumam se Filipe Miranda
dizer espíritas para evitar o preconceito. ****
Estudante da graduação em Psicologia da
6
Alguns pesquisadores como Maria Auxilia- Uerj.
dora Campos Machado, Luiz Fernando Dias
Duarte, Marcelo Natividade desenvolvem
Rick Valério
ou desenvolveram estudos sobre religião e
sexualidade.
*****
Estudante da graduação em Psicologia
da Uerj.
7
Ver resolução assinada na época da Confe-
rência Estadual LGBT, em 2008.
Suelen da Silva Sampaio
Anna Paula Uziel
******
Estudante da graduação em Psicologia
da Uerj e estagiária do Centro de Referência
Professora doutora adjunta do Instituto de Psi-
**
e Promoção da Cidadania LGBT/Caxias.
cologia e Coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social da Uerj. Patrícia Stoco
*******
Estudante da graduação em Psicologia
da Uerj.
Amanda Duarte Moura
*
Estudante da graduação em Psicologia da
Uerj e estagiária do Centro de Referência e
Promoção da Cidadania LGBT/Capital.
ARTIGO
Márcia Tavares*
Lohanna Adriana dos Santos**
Resumo: Neste artigo, reunimos a nossa experiência – uma professora e outra ex-aluna de um curso de graduação em
Serviço Social –, para registrar e analisar a discriminação e o preconceito presentes na comunidade acadêmica contra
alunas(os) que desafiam as normas de gênero, mas também para suscitar uma reflexão sobre gênero, corpo, sexualidade
e sua interface com o Serviço Social. Para tanto, resgatamos confrontos, negociações, deslocamentos e continuidades
na relação de uma aluna transexual com seus professores, colegas, com a coordenação do curso e a direção da univer-
sidade.
Abstract: In this article, we bring together our experience – as a teacher and her former student in an undergraduate
degree Program in Social Work –, to record and analyze the discrimination and prejudice at work in the academic
community against students who challenge gender norms, as well as to launch a debate on gender, body, sexuality and
its interface with Social Work. For this purpose, we rescue confrontations, negotiations, shifts and continuities in the
relations of a transsexual student with her teachers, peers, course coordinators and university administration.
Keywords: gender; body; sexuality; social work.
Clarice Lispector
Este quadro naturalista, pintado basicamen- se realize conforme o que “naturalmente” se es-
te com cores e tonalidades essencialistas, ganha pera, embora as questões do sexo se liguem à
outros matizes com o construtivismo cultural. ordem dos prazeres do corpo e dos sentidos e à
Mesmo porque, já em 1871, o conceito antro- ordem do desejo, mas o mundo da subjetivida-
pológico de cultura formulado por Tylor, não de inaugura fronteiras outras de arranjos exis-
só instala hábitos e costumes na dimensão do tenciais e estéticos, muitas vezes, inauditos nos
adquirido, como também focaliza o comporta- espaços costumeiros de realização social dos
mento humano em termos de sua diversidade sujeitos. Como isto se operacionaliza? Segundo
cultural. Portanto, já levanta questões sobre Foucault, na História da Sexualidade (1985),
o relativismo e universalismo das categorias isto aconteceu no Ocidente, especificamente,
culturais. Este viés conceitual, destituído de devido à instauração de uma ciência da sexua-
seus corolários evolucionistas, inspira análises lidade que institui em sua discursividade regras
de sistemas de categorias e imagens coletivas para manter o sexo sob controle, no cenário da
constitutivas da experiência sexual em grupos e época de repressão (século XVII) própria das
culturas diferentes. sociedades chamadas burguesas. Nesta obra de
Estudos clássicos na antropologia já se de- referência, Foucault traça um levantamento dos
bruçaram sobre a análise desses sistemas de discursos produzidos sobre e em torno do sexo,
categorias e imagens, como os desenvolvidos fornecendo desta forma um panorama das rela-
por Bronislaw Malinowski, Emile Durkheim, ções entre prazer-saber-poder, que traz uma ní-
Marcel Mauss, Lévi-Strauss, Margareth Mead, tida manifestação do poder contido nos discur-
Ruth Benedict e Mary Douglas (Franchetto et sos de “verdade”. Uma das consequências deste
al., 1981). A emergência da cultura como aqui- processo de produção e institucionalização dos
lo que torna o homem propriamente humano saberes é o surgimento de uma nova forma de
(Lévi-Strauss, 1976) ou como conjunto de re- inteligibilidade do sujeito (indivíduo), que vem
des de significação (Geertz, 1973), contribui a passar pelo dispositivo da sexualidade quando
para o desenvolvimento da percepção de que essa se torna, ao mesmo tempo, o que permite
toda realidade é socialmente construída, inclu- analisá-lo e o que torna possível constituí-lo.
sive o corpo, o sexo e a sexualidade. A espécie Foucault (1985) localiza estes imperativos
humana é essencialmente dependente da socia- na passagem de uma sexualidade frouxa, em
lização. A sexualidade, nesta perspectiva, está que havia uma tolerância e familiaridade com o
ligada ao comportamento em relação ao sexo, ilícito, para uma sexualidade contida e confis-
portanto, é um termo abstrato que se refere às cada pela família conjugal (século XVIII), na
capacidades associadas ao sexo. Neste sentido, qual teria acontecido uma “explosão discursi-
ela diz respeito a imperativos que estão dis- va” sobre o sexo. As instituições políticas, eco-
postos nos processos de construção social dos nômicas e jurídicas o incitam, de maneira que
corpos e dos sujeitos, se insere no âmbito dos a “confissão” e o “falar” tornam-se apanágio
costumes sexuais. A afetividade e a sexualidade da classificação e especificação dos sujeitos.
passam a ser vistas como dimensões da pessoa Os discursos produzidos no âmbito do poder
e atualizam-se em formas socialmente conven- – relações que perpassam a estrutura social –
cionadas por certa cultura (Heilborn, 1999). concretizam-se em instituições e em técnicas de
Mas por que, então, os enclaves discrimi- dominação nas quais o corpo, a realidade mais
natórios, preconceituosos, excludentes e hie- concreta dos indivíduos, é atingido. O sexo
rárquicos fadaram e ainda fadam milhares de torna-se, então, objeto de verdade, confiscado
sujeitos com condutas sexuais que fogem aos pelo discurso científico e pela “tecnologia do
padrões da heteronormatividade, a viver à mar- sexo”, que constroem um ordenamento daquilo
gem das fronteiras do instituído? É evidente que que se tem confessado e sabido, a título de ins-
há pressões sociais para que nossa sexualidade tituir o que é “normal” e “anormal” em torno
da sexualidade. Desde então, esta passa a ser o culturas. Ela introduziu o termo papéis sexuais
caminho de acesso do indivíduo à sua inteligi- para mostrar que comportamentos masculinos
bilidade e identidade. São os efeitos do sistema e femininos eram construídos e podiam variar
classificatório como quadro de leitura para as de uma cultura para a outra. É célebre o seu en-
condutas, um poder que se institui sobre a vida, saio Sexo e temperamento em três sociedades
que se instaura no domínio de valor e utilidade primitivas. Nestas sociedades, a divisão sexual
que as pessoas possam ter. do trabalho e as estruturas de parentesco eram
Em Microfísica do Poder (1986), Foucault analisadas para “explicar os diferentes papéis
fornece outro elo para se compreender o porquê do gênero nas etnias arapesh, mundugumor e
da destinação das sexualidades dissidentes da he- tchambouli”. Este estudo proporcionou impor-
teronormatividade a lugares obscuros do precon- tante material empírico para questionar a rígi-
ceito e da discriminação, quando, por exemplo, da diferenciação entre personagens femininos
resgata as instâncias de dominação não mais nos e masculinos, documentando culturas em que
espaços jurídicos de legitimação da soberania, homens e mulheres dividiam entre si práticas
mas nas formas de controle pela disciplina, pelo consideradas exclusivamente masculinas no
adestramento em nome de uma crescente utilida- Ocidente (como a guerra) ou outras em que a
de dos indivíduos. Se o poder passa de uma sobe- distribuição das tarefas domésticas eram exata-
rania para uma “disciplina”, os indivíduos e suas mente opostas às ocidentais (Sena, 2004).
identidades passam a ser forjados por ela, que se Assim, o questionamento da divisão tradi-
torna propaladora de normas e facilita o desen- cional dos papéis sexuais entre homens e mu-
volvimento da medicina – medicalização geral do lheres inaugura, no interior das ciências sociais,
comportamento, dos discursos e dos desejos. Nes- um campo de reflexão. O seu ponto de partida
ta arena de forças, os sujeitos se tornam força de é a afirmação da identidade de gênero enquanto
trabalho isenta de força política, cujo corpo é uti- construção social do sexo como dado funda-
lizado não mais pela repressão, mas pelo controle mental. A identidade de gênero aqui é percebida
de suas potencialidades. Deste cenário se com- como uma forma de classificação social. Criada
preende que a sexualidade é uma invenção social no início dos anos 1980, a categoria gênero, no
e uma forma estratégica de exercício do poder. “A seu primeiro uso, está ligada ao feminismo. Era
sexualidade tem tanto a ver com as palavras, as usada para repudiar o determinismo biológico,
imagens, o ritual e a fantasia como com o corpo” mostrando que homem/mulher são categorias
(Weeks, apud Louro, 2010a, p. 26). socialmente construídas. Mesmo assim, cer-
Então, tomar o instituído socialmente como tos cenários continuaram a ser montados para
natural foi uma agrura do imaginário sobre o a tecedura de socializações distintivas entre os
sexo e a sexualidade fundados no determinismo sexos, quando o enxoval e o quarto de meninas
biológico e que cimentou o projeto da ordem ganhavam a cor rosa, representando sua docili-
social moderna. Nesta ordem social, também o dade e delicadeza, enquanto o azul reproduzia
binarismo sexual, dicotomizado nas categorias no enxoval e na decoração do quarto, o caráter
homem/mulher e masculino/feminino, é tido conquistador e indócil dos meninos. Aquela(e)
como determinante dos papéis sexuais assumi- que adotasse comportamentos e atitudes contrá-
dos por homens e mulheres no sentido da cren- rios às normas regulatórias era considerada(o)
ça na reprodução de uma ordem da natureza nos doente ou desajustada(o) e tratada(o) como in-
avatares do masculino e feminino. ferior. Essas normas sociais, tidas como “natu-
A desnaturalização deste suposto social de- rais”, reprimiam a manifestação de outras for-
terminado pelo biológico teve como contribui- mas de ser e de viver o desejo e de satisfazê-lo
ção as pesquisas da antropóloga norte-ameri- isento de culpa (Jesus et al., 2008).
cana Margareth Mead que, na década de 1930, Além disso, cabe lembrar que, no âmbito da
obteve repercussão pelo estudo comparativo de sexualidade, o preconceito social serviu para
ser feminino e masculino. Já uma pes- científicas. O “transexual” seria um dos fenô-
soa transexual desconsidera o fato de ter menos extremos a que estamos assistindo, uma
nascido com um pênis ou com uma va- vez que, como advoga Jean Baudrillard (1990):
gina para afirmar-se, respectivamente,
como mulher ou homem a partir da forte O corpo sexuado está entregue hoje a
convicção que tem de sua identidade de uma espécie de destino artificial. Esse
gênero. (...) As travestis e os/as transe- destino artificial é a transexualidade.
xuais estão na vanguarda da contestação Transexual não no sentido anatômico,
de uma visão rígida das relações de gê- mas no sentido mais geral de travesti-
nero, pois subvertem a ideia binária de do, de jogo de comutação dos signos do
gênero, motivo pelo qual causam tanto sexo, e, por oposição ao jogo anterior
incômodo nos espaços que frequentam. da diferença sexual, de jogo da indife-
(...) Durante muito tempo, os homosse- rença sexual, indiferenciação dos po-
xuais masculinos eram ‘identificados’ los sexuais e indiferença ao sexo como
(muitas vezes até entre eles mesmos) gozo. O sexual tem por objetivo o gozo,
por apresentarem trejeitos considerados o transexual tem por objetivo o artifício,
femininos. Em menor grau, a situação seja ele o de mudar de sexo ou o jogo
inversa também foi vivida pelas lésbi- dos signos vestimentares, morfológicos,
cas. E as travestis e os/as transexuais gestuais, característicos dos travestis.
permaneciam incompreendidas/os e (...) Somos todos transexuais. Assim
eram duramente tratadas/os com despre- como somos mutantes biológicos em
zo, abuso e violência por motivos seme- potência, somos transexuais em potên-
lhantes (Jesus et al., 2008, p. 35-38). cia. E não é questão de biologia. Somos
todos simbolicamente transexuais (Bau-
A sexualidade, tal qual o gênero, é uma drillard, 1990, p. 27-28).
construção histórica e cultural e, como ponde-
ra Giddens (1993), no cenário contemporâneo, Todavia, a presença inconteste da diversida-
também contempla outros arranjos, ou seja, de sexual no cenário social ainda parece con-
exercitada no cerne da individualidade, a se- dicionada à dimensão do exótico, do burlesco.
xualidade ganha autonomia com a emergência Nas instituições que produzem e reproduzem as
das tecnologias reprodutivas que neutralizam normas sociais regulatórias, como por exemplo,
o vínculo entre identidade feminina e papel a família, a igreja, a mídia, a escola formal e
reprodutivo. Em outras palavras, questiona-se a universidade, esses personagens parecem não
a justificativa biológica na qual está calcado o ter lugar.
desempenho sexual que tem como suposto a É o que nos informam os relatos de uma
heterossexualidade compulsória. Consequente- transexual, que afora as tramas conceituais aca-
mente, as diferentes expressões e vivências da dêmicas, aponta-nos itinerários talvez não es-
sexualidade adquirem legitimidade e afirmam- perados no ambiente em que sua trajetória foi
se como posições identitárias. Talvez nem mais tecida. Decerto, não ignoramos que a memória
identitárias, uma vez que o conceito de identi- tem seus caprichos e,
dade sexual é um produto histórico e cultural
específico do Ocidente. Foi no sistema classi- as lembranças pessoais são reconstituídas
ficatório da mentalidade ocidental que se cria- sob as bases de um presente que é social,
ram os termos específicos para designar práti- ou seja, são submetidas a uma seleção;
cas sexuais, com consequentes controles pela esquece-se de determinados aspectos,
disciplina, como bem pontua Foucault (1985), amplia-se outros a embelezar a narra-
através de sua genealogia das discursividades tiva, em consonância com o momento
que nada por ali seria fácil. No entanto, também aproximou, naquele momento surgindo uma
me enchia de forças para ir adiante e não deixar grande amizade.
que o preconceito presente na sociedade e, ao Memória 2 – Meu nome é Márcia, fui pro-
que tudo indicava, reproduzia-se na universida- fessora da universidade onde Lohanna estudou
de, atrapalhasse meus planos. e, lembro de que o “chamego do destino” foi
Dia após dia, a segregação mostrava suas articulado pela coordenadora do curso de Ser-
várias faces. Matriculada em uma sala com viço Social. Eu não conhecia Lohanna, mas le-
mais de 60 alunos, era sozinha. A turma não me cionava a disciplina Seminários Temáticos no
entendia, os professores não sabiam como me campus da capital, cuja discussão estava volta-
tratar, tudo era novo para eles, sofri muito em da para as questões de gênero e étnico-raciais
sala de aula, os mesmos olhares de repulsa e em suas múltiplas intersecções na vida social,
reprovação que recebia fora, na sala pareciam além de coordenar o grupo de estudos sobre gê-
mais intensos, uma vez que se aliavam à exclu- nero. Foi-me solicitado pela coordenação que
são, pois nos momentos de trabalho em grupo, ministrasse um minicurso em um dos campi do
eu não era convidada pelos colegas e, quando interior e, fazendo uso de minha experiência de
as(os) professoras(es) não me incluíam em al- pesquisadora na área de gênero e sexualidade,
gum grupo, fazia sozinha as atividades. de forma sutil e delicada, encontrasse uma solu-
Nos intervalos permanecia na sala de aula; ção para o seguinte problema: no Serviço Social
nos espaços de convivência estudantil não me havia um aluno que se autodenominava transe-
encontrava, era uma pessoa perdida em meio xual – esclareceu que não sabia exatamente o
à multidão de discentes da universidade. Aos que isso significava –, mas o fato preocupante
poucos, fui conhecendo os seus caminhos, per- era que ele usava roupas femininas, solicitava
cebendo pessoas, observando atitudes, procura- que o chamassem pelo nome de Lohanna e rei-
va apoio e proteção, só carecia de alguém que vindicava o uso do banheiro feminino, o que vi-
me entendesse e com quem pudesse dividir mi- nha gerando desconforto e/ou intolerância entre
nhas angústias, sofrimentos e, mais que tudo, as(os) colegas e ameaçava a harmonia reinante
o medo que pairava no coração: ali eu pode- na comunidade acadêmica.
ria a qualquer momento ser alvo de algum tipo O minicurso transformou-se em pales-
de agressão. Em suma, a ordem moral a que se tra, que realizei no espaço de convivência da
apegavam as pessoas e a própria cultura aca- universidade2, e reuniu alunas(os) e professo-
dêmica, contribuíam para me isolar, excluir, ao ras(es) de diferentes cursos. Durante a minha
mesmo tempo em que eram confrontados com fala, foram poucas as pessoas que fizeram inter-
a necessidade de se adaptarem àquele novo ser venções, mas cabe registrar dois momentos: o
que ali estava. Contudo, não somos sozinhas e, primeiro foi quando, após apresentar o conceito
de forma dialética, a universidade, mesmo sem de gênero e discutir como mulheres e homens
eu saber, pensava maneiras de se adaptar à mi- são inventados à semelhança da sociedade e
nha presença ou, pelo menos, de me entender. cultura em que vivem, desde a mais tenra idade,
Nesse sentido, no primeiro evento do qual comportando diferentes arranjos, esclareci que
participei como discente, a 2ª Semana de Ex- a sexualidade também era uma construção his-
tensão, por coincidência ou “chamego” do tórico-social e, portanto, não poderia ser pensa-
destino, a universidade oferecia, pela primeira da no singular. Feito isso, passei a elencar as di-
vez, um minicurso sobre a temática “Gênero e ferentes expressões da sexualidade, ao mesmo
Sexualidade”, ministrado pela professora Már- tempo em que explicava, de forma sucinta, a
cia, do curso de Serviço Social que, na ocasião, distinção entre uma e outra. Lohanna, que esta-
coordenava um grupo de estudos de gênero. va sentada algumas cadeiras adiante, assim que
Logo fiz contato com a docente, que se dispôs mencionei a(o) transexual, olhando-me fixa-
a me orientar e disse me entender, o que nos mente, manifestou-se: – Esta sou eu! Indaguei
seu nome e, diante de todos os olhares voltados de pesquisa para instituições de ensino de nível
para ela, sem vacilar, verbalizou o nome com o fundamental e médio.
qual se identificava e pelo qual gostaria de ser Memória 1 – Em meio às discussões em
chamada na comunidade acadêmica. sala de aula, conversas com professores, dire-
O segundo momento foi ao final da palestra, tores, colegas e demais membros da comunida-
quando me coloquei à disposição para quais- de universitária, fui ganhando confiança e me
quer esclarecimentos e, um dos homens presen- encontrando no curso. Percebia ser o Serviço
tes, que afirmou ser aluno de Serviço Social e Social um meio para dirimir as desigualdades
colega de Lohanna, expressou seu desconforto sociais e combater a discriminação contra as
com a discussão e, mais precisamente, com o pessoas iguais a mim. Um ano passou e, em
relativo convívio com a colega, esclarecendo meados do mês de abril de 2009, o diretor do
que não tinha nada contra homossexuais, “den- campus me convidou, ou melhor, me desafiou a
tro de quatro paredes, tudo bem”, isto é, outras montar um minicurso, no qual eu pudesse falar
expressões da sexualidade podem até existir e sobre diversidade sexual e homofobia e, assim
ser exercidas, desde que às ocultas, ou melhor, o fiz, sendo uma das primeiras alunas a minis-
desde que “não saiam do armário”. Seu depoi- trar um minicurso na 3ª semana de extensão da
mento revelava, naquele momento, que desafiar universidade.
a heterossexualidade compulsória e desestabi- Cabe lembrar que, ao entrar na sala onde se-
lizar a normatividade vigente exigiriam, tanto ria realizado o minicurso, deparei-me com uma
da professora como da aluna, muitas leituras e situação nunca enfrentada: falar sobre gênero e
estudos sobre o tema. diversidade sexual para um grupo misto de 50
Memória 1 – O tempo passava... Com esta universitários de diversas turmas. Tal momen-
mulher me senti acolhida e, com sede de infor- to foi emocionante e marcou a minha forma-
mação, fui solicitando leituras: livros, artigos, ção, pois, de um lado, iniciava precocemente
tudo o quanto pudesse me passar sobre estudos a práxis profissional, procurando responder à
de gênero (especificamente voltados para as sede dos colegas em conhecerem, discutirem
questões LGBTs, os chamados estudos queers, a diversidade sexual e, assim, poderem me en-
ressalva relevante, pois sob a rubrica estão os tender; do outro, eu, pessoa necessitada de es-
estudos feministas, voltados também para mu- paço para falar, para colocar que sou normal e
lheres heterossexuais, negras etc.). As leituras tão igual a todos. Foi muito linda aquela noite,
renderam um projeto de iniciação à pesquisa, perceber a felicidade nos olhos daqueles estu-
que não foi aprovado, mas consegui realizar dantes a cada descoberta ou novidade sobre o
e apresentar como Trabalho de Conclusão de tema, era um combustível que me revigorava e
Curso. fechava algumas feridas.
Memória 2 – Cabe lembrar que foram apre- A discussão fluiu, a cada instante os estu-
sentadas duas versões do projeto, ambas recu- dantes colocavam seus pontos de vista sobre
sadas sob a alegação de que havia problemas de cada questão discutida. No entanto, o momento
ordem metodológica e, embora tivesse alertado que mais me marcou foi ao final da atividade:
Lohanna sobre a possibilidade de isso aconte- ao concluir a apresentação do conteúdo, iniciei
cer, não pude evitar seu desapontamento. Na o debate, esclarecendo que todos poderiam fa-
verdade, sabia que a única incongruência esta- zer suas perguntas, bem como fazer uma avalia-
va no tema. Afinal, como aprovar uma pesquisa ção da noite. Neste momento, diversas dúvidas
sobre a homofobia na universidade, se a inten- foram sanadas, experiências compartilhadas e,
ção era exatamente mascarar o preconceito e para mim, um espaço de desabafo estava ali for-
evitar o confronto direto? Não é à toa, portanto, mado.
que seu projeto só obteve a anuência da coorde- Como toda a história tem que ter um “ápi-
nação do curso após o deslocamento do locus ce”, no final da aula, um rapaz que fazia o curso
de direito me parabenizou por estar superando em que essa curiosidade parecia se estender
barreiras na universidade e, comentou que sou- para a escolha da minha área de pesquisa. Seus
be de mim por outras pessoas, acrescentando olhares desconfiados indagavam: Por que estu-
que os estudantes estranhavam o fato de eu es- dar gênero e sexualidade? Será que ela também
tar ali como acadêmica, muitos saiam de suas não é “normal”, mas “diferente”, “excêntrica”?
salas com falsas desculpas para irem à minha Afinal, conforme destaca Louro:
sala me ver. Nesse sentido, se disse curioso em
conhecer uma pessoa estranha àquele meio, por Uma noção singular de gênero e sexuali-
isso se inscrevera no minicurso e, afirmou que dade vem sustentando currículos e práti-
eu era uma vencedora, pelo fato de ser a pri- cas de nossas escolas. Mesmo que se ad-
meira aluna a ministrar um minicurso na insti- mita que existe muitas formas de viver
tuição. Tal depoimento me emocionou, pois até os gêneros e a sexualidade, é consenso
aquele momento ninguém havia explicitado o que a instituição escolar tem obrigação
quanto os outros me viam como um corpo es- de nortear suas ações por um padrão:
tranho, não imaginava a intensidade com que haveria apenas um modo adequado, le-
me olhavam e nem que muitos me viam como gítimo, normal de masculinidade e de
ameaça. feminilidade e uma única forma sadia e
Memória 2 – Era expectadora tanto dos per- normal de sexualidade, a heterossexua-
calços enfrentados por Lohanna como de avan- lidade; afastar-se desse padrão significa
ços no convívio com os colegas ou professores, buscar o desvio, sair do centro, tornar-se
particularmente, em virtude de sua responsabi- excêntrico (2010b, p. 43-44).
lidade como aluna e das boas notas que obti-
nha nas atividades de avaliação das disciplinas. Memória 1 – O tempo passou e, a cada dia
Lohanna está certa, todos se mostravam ávidos me convencia da profissional em que estava me
para conhecê-la e ouvi-la. Contudo, diferente- tornando, pois a partir da minha primeira in-
mente dela, também acompanhava os bastido- tervenção na universidade, fui convidada pelo
res e ponderava – o interesse não seria moti- diretor do campus para ir a outros eventos e,
vado por sua excentricidade? Era perceptível assim, discutir diversidade. No entanto, isso
o desconforto dos(as) demais professores(as), não significa que o preconceito e discriminação
que agiam de forma ambígua, poucos(as) con- tinham acabado, ao contrário, os olhares e cha-
seguiam chamá-la pelo nome social, ao mesmo cotas continuavam como raios mortais presen-
tempo em que aparentemente aceitavam sua tes em minhas noites. Houve então o tempo em
performance de gênero3 e procuravam incluí-la que ir para a universidade era um martírio, um
em comissões ou convocá-la para ser represen- inferno, pois continuava sendo vista e tratada
tante de turma, junto com outros(as) alunos(as), como um elemento estranho.
mas sempre é bom lembrar, “um elemento in- Continuei a vida acadêmica, conquistei al-
trínseco ao preconceito sexual é a prática do si- guns amigos e, no terceiro período da formação,
lêncio e da dissimulação” (Prado & Machado, quando finalmente pensei estar em paz na co-
2008, p. 25). munidade acadêmica, um representante do setor
Por isso, vez por outra era também chama- jurídico da universidade visitou o campus, man-
da para orientá-las e/ou intermediar diante de dou me chamar na sala da direção e, diante do
determinadas situações, quando, por exemplo, diretor, proibiu-me de usar o banheiro feminino,
as reivindicações da aluna iam de encontro às em virtude das reclamações de algumas alunas,
normas institucionais e aos valores tidos como sob a alegação de haver um “homem” usando
corretos, como por exemplo, o uso do banheiro tal banheiro. Senti-me mal! Ao tentar argumen-
feminino ou vestimentas femininas4. Além dis- tar, o interlocutor me coagiu, dizendo que eu era
so, era questionada sobre sexualidade, ocasiões homem, na minha matrícula constava o sexo
masculino e, por isso, deveria usar o banheiro Memória 2 – Vale registrar que, na época,
masculino como qualquer outro homem. uma das professoras do curso de Serviço So-
Naquele momento, senti-me tal qual um cial exercia o cargo de presidente do Conselho
pedaço de papel e, assim, me perguntei se era Regional de Serviço Social – Cress. Mesmo
uma pessoa ou só um número naquele estabe- assim, não tomou nenhuma providência nem
lecimento. Não bastasse, logo após foi feita deu qualquer orientação à aluna, ignorando os
uma reunião com líderes de sala e, aquele se- princípios norteadores da atuação profissional,
nhor me expôs, ao informar a todos os líderes contidos no Código de Ética Profissional da(o)
que comunicassem em suas salas que eu estava Assistente Social (1993). Tal postura pode ser
proibida de usar o banheiro feminino, sob pena atribuída ao receio de contrariar as normas ins-
de ser advertida, o que me causou constran- titucionais e sofrer represálias, mas indica tam-
gimento e dor. A ida à universidade se tornou bém que, embora as questões de gênero e até
ainda mais difícil para mim, passei noites im- mesmo relativas à sexualidade estejam na pauta
pedida de satisfazer as necessidades biológicas, de revistas, programas televisivos e, cada vez
de 18h30min até as 22h00min, sem poder usar mais sejam discutidas por pesquisadores(as),
o banheiro feminino. Foi uma barra! Era vista inclusive do Serviço Social, as escolas e muitos
como um homem que queria ser mulher, e como de seus professores(as) reiteram o padrão hete-
medida punitiva e correcional, estava proibida ronormativo, repudiam outras sexualidades ou
de usar o banheiro das mulheres. Sofri! Chorei! tentam “corrigi-las” (Silva; Soares, 2010).
Tranquei disciplinas para não ir todas as noites Instigada pelo debate feito em todo o Estado
à universidade... Mas não desisti. e a nível nacional, a universidade incluiu a dis-
A situação chegou aos ouvidos da mídia e cussão sobre a diversidade em um dos eventos
tornou-se pública. Organismos de defesa dos de seu calendário acadêmico. No mesmo ano
direitos humanos como o Centro de Defesa em e período, mais precisamente no final do mês
Direitos Humanos e Combate à Homofobia e o de setembro, a universidade organizou um ci-
Balcão de Direitos procuraram a universidade clo de debates que colocou em cena a discussão
em busca de uma possível solução. No entanto, sobre a sexualidade humana, desta vez, tendo
a universidade não mudou sua posição e o curso como foco o respeito e aceitação da diversida-
de Serviço Social, que deveria, em tese, solida- de, evento que, por três dias, lotou os auditórios
rizar-se e me dar apoio, não se manifestou, o onde foi realizado.
que me entristeceu. Na ocasião, fui convocada para uma reunião
Cheguei, dessa maneira, ao quarto período e, o grupo de estudos de gênero que eu coorde-
e, depois de descobrir que as alunas em questão nava decidiu aceitar a tarefa, com a condição
eram do curso de Serviço Social, decidi tomar de que não houvesse interferências, ficando sob
algumas atitudes. Na aula inaugural do primei- nossa responsabilidade desde a escolha do tema
ro período, organizei um abaixo assinado que à lista de convidados. Como estratégia políti-
pretendia passar com as meninas, com o objeti- ca, elaboramos a programação de forma que a
vo de que me autorizassem o uso do banheiro. homofobia fosse apenas um dos temas a serem
No entanto, ao solicitar a palavra, esta foi nega- discutidos, bem como escolhemos os palestran-
da pela coordenadora do curso, que também me tes entre pesquisadores, militantes, delegados,
proibiu de passar tal documento na sala de aula. assistentes sociais, advogados e representantes
Indignada, ainda assim tomei o espaço e falei de organizações não governamentais de defesa
da minha angústia aos presentes, argumentando dos direitos humanos.
que a coordenadora deveria rasgar seu Código No interior, muitos estudantes se recusaram a
de Ética, pois o curso de Serviço Social daquela participar da mesa sobre homofobia, assim como
universidade não defendia o respeito aos direi- na capital, embora em menor número. Já os par-
tos humanos. ticipantes do evento, ancorados na supremacia da
heteronormatividade – reproduzida pelas insti- Mais doloroso ainda foi ser discriminada
tuições e no imaginário social –, ensaiavam uma por profissionais que deviam me defender. Em
perspectiva de enquadramento para compor uma uma dessas visitas, a assistente social disse que
unicidade, ainda que fictícia: – A senhora não quer não era louca de me colocar para estagiar con-
casar, adotar um filho? Esta foi uma das perguntas sigo, pois os usuários não iriam me aceitar e,
feitas a uma travesti, que acabara de versar sobre além disso, para ela era inadmissível eu “querer
sua trajetória de vida e luta para vencer o precon- ser mulher à força”. Saí desconsolada e decidi-
ceito e discriminação. Diferentemente de Lohan- da a não estagiar, os conceitos aprendidos em
na, que participava ativamente da comissão de or- sala de aula e na literatura do Serviço Social se
ganização do evento em sua cidade, entendíamos contradiziam em minha cabeça e me pergunta-
que se havia presságios de mudança, muitos desa- va: por que na teoria a defesa dos direitos hu-
fios e resistências nos aguardavam mais à frente. manos estava instituída no Código de Ética da
Afinal, conforme alerta Louro: profissão e na prática só se via a indiferença e
o preconceito? Apesar de mais uma vez desa-
Aparentemente se promove uma inver- pontada, como sempre ergui a cabeça e busquei
são, trazendo o marginalizado para o uma solução, terminei fazendo meu estágio
foco das atenções, mas o caráter excep- curricular em projetos de extensão da univer-
cional desse momento pedagógico re- sidade, nos quais trabalhei o Serviço Social na
força, mais uma vez, seu significado de educação.
diferente e de estranho. Ao ocupar, ex- Como forma de alimentar a alma, ingressei
cepcionalmente, o lugar central, a iden- no movimento estudantil de Serviço Social, por
tidade ‘marcada’ continua representada considerá-lo um espaço onde eu poderia modi-
como diferente (2010b, p. 45-46). ficar pensamentos e estereótipos e, assim, fui
convidada a compor uma mesa no 32º Eress –
Memória 1 – Eu estava muito feliz e imagi- Encontro Regional de Estudantes de Serviço
nava que, a partir daquele momento, tudo iria Social –, que aconteceu na Universidade Fede-
mudar e, finalmente, seria respeitada. As coisas ral da Bahia (Ufba), com o tema “A diversidade
não foram como esperava, naquele momento e discriminação nas unidades de formação aca-
começava a batalha para obter a autorização ju- dêmicas – Ufas”, em que também ministrei um
rídica de uso do banheiro feminino, e hoje, nes- minicurso e fui eleita coordenadora da Execu-
sas memórias, noto o quanto o problema mudou tiva Nacional de Estudantes de Serviço Social,
minha vida. Desde a proibição de usá-lo, passei sendo a primeira transexual no cargo, represen-
a lutar para mudar o meu nome social e, após tando a região III, que corresponde aos estados
saber que a alteração de nome não resolvia o da Bahia, Sergipe e Alagoas. A partir daí, par-
problema, decidi agilizar os procedimentos ticipei de diversos eventos do movimento estu-
para a mudança de sexo. Com os respectivos dantil e contribui para a ampliação da discussão
processos em andamento, solicitei à universi- no movimento e criação de mais um eixo de de-
dade, por escrito, o documento relativo à proi- bates: opressões.
bição de utilização do banheiro. Memória 2 – Certamente, seja devido ao seu
Supus que o preconceito e a discriminação poder de argumentação, seja porque os(as) co-
estavam ceifados, mas no quinto período, quan- legas se sentiam constrangidos(as) em cercear a
do tem início o estágio, em que se exercita a sua participação de forma mais ativa, Lohanna
práxis a partir da teoria aprendida nos bancos conseguiu convencê-los(as) a me convidarem –
universitários, todas(os) fomos aos locais de es- na ocasião eu residia em Salvador e trabalhava
tágio, para procurar um(a) assistente social que em uma universidade local – para proferir uma
aceitasse supervisionar nossa prática; fui a três palestra, que intitulei de “Diversidade sexual e
profissionais, mas recebi respostas negativas. o preconceito contra a classe LGBT no espaço
acadêmico”. Porém, uma surpresa me aguarda- chamada pelo nome de registro. Mais uma vez
va: seria uma mesa redonda, a qual eu compar- exposta, revidei, lembrando a ela e aos demais
tilharia com outra professora, e ela havia sido presentes sobre a recomendação do Conselho
excluída. Portanto, o preconceito permanecia, Federal de Serviço Social (Cfess), relativa ao
ainda que os(as) colegas apenas tenham expres- respeito à diversidade, contida no Código de
sado suas restrições para mim, o que terminou Ética da profissão do assistente social, extensi-
por favorecê-la, pois, mesmo a contragosto, nin- va a todos os direitos humanos. Após concluir o
guém teve coragem de se manifestar contrário curso, o Cfess baixou uma portaria autorizando
à sua participação na mesa, as oposições sendo a utilização do nome social de assistentes so-
silenciadas à medida que expunha sua história. ciais travestis e transexuais no exercício da pro-
Memória 1 – O ano passou, o momento de fissão, o que me deixou feliz, pois além de ser
estágio foi proveitoso, passei por dificuldades a primeira transexual assistente social do meu
quanto às práticas, e o grande embate estava na estado, teria o direito de utilizar meu nome no
escrita do relatório final de estágio. Apesar de exercício da profissão.
não ter meu nome social na lista de presença,
tinha conseguido que fosse respeitado em sala Para os próximos capítulos...
de aula, onde todos me chamavam de Lohanna.
Assim, ao redigir o relatório de estágio, utilizei O Código de Ética Profissional do Assis-
o nome com o qual me identifico, o que gerou tente Social (1993), ao assumir um compro-
um conflito e, após diversas discussões, a coor- misso ético-político com os direitos humanos,
denação autorizou o uso do meu nome social no contrapõe-se ao estado de barbárie que assola
relatório de estágio, desde que acompanhado do o cenário social e que tem contribuído para a
nome de registro, situação que consegui rever- banalização da violência, perda de direitos so-
ter no trabalho de conclusão de curso. ciais, crescente individualismo, impessoalidade
No trabalho de conclusão de curso (TCC), e tentativa de homogeneização das subjetivida-
escrevi sobre homofobia na escola. Foi inte- des, que destroem princípios, valores éticos e
ressante reconhecer, em outros alunos, tudo o morais que até bem pouco tempo balizavam as
que passei no ensino médio. Reviver momentos relações sociais.
iguais em espaços e épocas diferentes me fez O Código de Ética abraça os seguintes prin-
perceber que a discriminação e o preconceito cípios: reconhece a liberdade como principal
ainda se expressam da mesma forma na educa- valor ético; defende incondicionalmente os
ção básica, meu objeto de estudo, assim como direitos humanos; luta para a ampliação da ci-
na educação superior. Foi enriquecedor analisar dadania e aprofundamento da democracia e se
falas, posições, conceitos e, assim, poder me re- posiciona em favor da equidade e justiça social.
inventar a partir do estudo da vida de outros que No tocante à defesa da diversidade e luta contra
passaram e/ou passam pelo mesmo que eu. o preconceito, em seus variados aspectos, o Có-
Em meados deste período, a surpresa! Fui digo recomenda:
aprovada como educadora social em concurso – empenho na eliminação de todas as formas
público, enquanto seguia estudos para término de preconceito, incentivando o respeito à diver-
do TCC. Chamada ao Centro de Referência de sidade, à participação de grupos socialmente
Assistência Social (Cras) para uma reunião que discriminados e à discussão das diferenças;
discutiria a lotação dos educadores sociais, eu – opção por um projeto profissional vincu-
solicitei à assistente social responsável pela sua lado ao processo de construção de uma nova or-
condução que me chamasse pelo meu nome so- dem societária, sem dominação-exploração de
cial. Ela elevou o tom de voz, para que todos classe, etnia e gênero;
os presentes pudessem ouvir, dizendo que en- – exercício do Serviço Social sem ser dis-
quanto eu trabalhasse naquele município seria criminado, nem discriminar, por questões de
inserção de classe social, gênero, etnia, religião, às orientações sexuais e identidades de gênero
nacionalidade, opção sexual, idade e condição dos indivíduos com os quais convivemos no
física (Conselho Regional de Serviço Social de dia a dia. A promoção de eventos, atividades
Sergipe, 2004, p. 43). pontuais e esporádicas não são suficientes, pois
Todavia, trazer tais princípios para os com- “não chegam a perturbar o curso ‘normal’ dos
ponentes curriculares e para as atividades pe- programas, nem mesmo servem para desesta-
dagógicas desenvolvidas ao longo do processo bilizar o cânon oficial” (Louro, 2010b, p. 45).
de formação acadêmica não é tão simples ou Portanto, defendemos que nossas matri-
confortável, uma vez que requer abdicar de um zes curriculares devem ser revistas, de forma a
modelo educacional burocrático que, respalda- agregarem no processo de formação profissional
do na lógica cartesiana, oferece-nos uma falsa das(os) assistentes sociais o conhecimento acer-
segurança, na medida em que produz modos de ca das histórias de vida, reivindicações, práticas
pensar e ser lineares, teleológicos e hierárqui- e lutas sociais das minorias, caso estejamos real-
cos (Tavares; Silva, 2010). mente comprometidas(os) com uma perspectiva
Em outras palavras, mesmo que o Código de emancipatória e transformadora. Para finalizar,
Ética traga fundamentos ético-morais, que de- fazemos nossas as palavras de Louro (2010b, p.
vem balizar a intervenção profissional, enuncie 51): “precisamos, enfim, nos voltar para práti-
direitos e responsabilidades das(os) assistentes cas que desestabilizem e desconstruam a natura
sociais, bem como defina penalidades em caso lidade, a universalidade e a unidade do centro e
de infrações, isso não significa que as regras de que reafirmem o caráter construído, movente e
conduta serão cumpridas nem, tampouco, que plural de todas as posições. É possível, então,
esse instrumento legal tenha a capacidade de que a história, o movimento e as mudanças nos
mudar as visões de mundo e referenciais valo- pareçam menos ameaçadoras”.
rativos na dimensão pessoal.
No entanto, sabemos que a realidade é dinâ- Referências bibliográficas
mica, portanto, mudanças são factíveis. Há qua-
se dois anos, o Cfess baixou a resolução n. 615, BAUDRILLARD, J. A transparência do mal:
de 8 de setembro de 2011, que dispõe acerca da ensaios sobre os fenômenos extremos. Campi-
inclusão e uso do nome social da assistente so- nas: Papirus, 1990.
cial travesti e da(o) assistente social transexual CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SO-
em seus respectivos documentos de identidade CIAL. Resolução 615/2011. Disponível em:
profissional, o que evidencia, pelos menos en- <http://www.cfess.org.br/legislacao_resolucao.
tre as(os) representantes da categoria, o esforço php>. Acesso: 15 nov. 2011.
para romper com o silêncio e a complacência CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SO-
que encobertam a violência institucional perpe- CIAL DE SERGIPE. Coletânea de leis. Araca-
trada contra gays, lésbicas, bissexuais, traves- ju: Gráfica J. Andrade, 2004.
tis, transexuais e transgêneros nas escolas, uni-
FOUCAULT, M. História da sexualidade I:
versidades e em seus locais de trabalho.
a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições
Por essa razão, este artigo busca suscitar o
Graal, 1985.
questionamento na academia – entre alunas(os),
professoras(es), supervisoras(es) de prática – e _______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
demais leitoras(es), na tentativa de fomentar a Edições Graal, 6ª ed., 1986.
reflexão e a busca de formas de enfrentamen- FRANCHETTO, B. et al. Perspectivas an-
to das contradições e desigualdades que per- tropológicas da mulher, n. 1. Rio de Janeiro:
meiam a vida social e acadêmica. Para tanto, Zahar, 1981.
é necessário encararmos os (pre)conceitos que,
tantas vezes, tentamos dissimular, com relação
ARTIGO
Resumo: Este artigo trata de alguns dilemas e obstáculos referentes à implementação de demandas por direitos de reco-
nhecimento de união estável e/ou casamento homoafetivo no Rio de Janeiro e sobre as estratégias adotadas por casais
homossexuais diante da esfera normativa na conquista por estes direitos. A pesquisa de campo realizada até o momento
tem apontado que, embora a decisão do STF em 2011 tenha ampliado o conceito de família, não tem viabilizado, na prá-
tica, a realização dos direitos almejados. Além disso, parece promover a desigualdade formal no interior da população
LGBT, impedindo a ampliação e consolidação de princípios igualitários do Estado de direito.
Palavras-chave: casamento homossexual; demanda por reconhecimento de direitos; liberdade de orientação sexual;
união homoafetiva.
Abstract: This article discusses some dilemmas and restraints concerning the implementation of legal recognition’s
demands of same-sex marriage or civil union between same-sex people in Rio de Janeiro. It also discusses the stra-
tegies adopted by gay couples in face of normative sphere for these rights. The field work conducted has shown that,
although the Brazilian Supreme Court in 2011 expanded the concept of family, in practice, it has prevented its plain
concretization. Moreover, it seems to promote formal inequality for LGBT population, preventing the expansion and
consolidation of egalitarian principles of Rule of Law.
Keywords: demands for rights recognition; freedom of sexual orientation; homosexual civil union; same-sex marriage.
o ponto de vista dos movimentos sociais, de- considerado conservador, assim como a Igreja
monstrando a sua heterogeneidade interna Católica, remete a este modelo de família, con-
(Faccini, 2005) e as consequências que tais mo- siderado durante muito tempo como único, a
vimentos trazem para as concepções de família associação com a reprodução; ou seja, a família
e gênero (Butler, 2007 e Uziel e Grossi, 2007). legal é aquela em que associa o casamento à re-
No entanto, pouco se falou ainda sobre o mes- produção. No entanto, a união entre pessoas do
mo, no âmbito dos pressupostos que marcam a mesmo sexo propõe desvincular completamen-
construção do Estado de Direito no Brasil4. Tra- te a sexualidade da reprodução, assim como se-
tar deste tema levanta reflexões a respeito dos para reprodução do ideal de casamento.
dilemas referentes à universalização de direitos Por outro lado, Roudinesco (2003) indaga
e do modelo de cidadania que vem sendo cons- o que estaria acontecendo nos últimos anos,
tituído na sociedade brasileira desde os anos de na sociedade ocidental, para que as minorias
1980. A pesquisa de campo realizada até o mo- que antes eram perseguidas desejassem ser re-
mento tem apontado que, apesar da implanta- conhecidas, não mais para romper com o mo-
ção de regulamentos e legislações constituídas delo nuclear de família, mas sim para reivin-
por princípios igualitários referentes ao reco- dicar igualdade de direitos frente às demandas
nhecimento de uniões homoafetivas e o conse- securitárias e conquistar o reconhecimento do
quente reconhecimento da liberdade de orienta- estatuto de família no seio da sociedade. Numa
ção sexual no Brasil, princípios hierarquizantes questão: porque o desejo de ser reconhecido
que tornam direitos em benefícios permanecem como “família”?
operando no seio da sociedade. No Brasil, a publicação do censo 2010 reve-
lou uma grande modificação das configurações
Entre afetos e demandas por direitos mate- familiares. Segundo Feliz e Zanotti (2012), os
riais: o impacto da ADPF 132/2011 números salientam que 21,6% dos casais he-
terossexuais não têm filhos, as uniões estáveis
Ao longo dos anos a família ocidental tem entre homens e mulheres representam 36,4%,
se caracterizado por novos modelos e, dentre enquanto as uniões consensuais heterossexuais
eles, a legitimação do modelo constituído por representam 30,8%. As uniões homoafetivas
pessoas do mesmo sexo, ao que Maria Berenice entre mulheres configuram 53,8% da população
Dias5– desembargadora aposentada da capital pesquisada e as uniões entre homens 46,2%. Do
do Rio Grande do Sul e ativista em prol do re- total das uniões homoafetivas, 99,6% não são
conhecimento da união homoafetiva no judiciá- formalizadas (IBGE, 2010). Estes dados pare-
rio – nomeia como modelo de família homoafe- cem revelar que, embora em termos jurídicos
tiva. Segundo Dias, o termo homoafetividade, prevaleça a representação da família nuclear
foi criado para designar as uniões entre pessoas como instituição reconhecida para obtenção
do mesmo sexo que buscam o reconhecimento de direitos civis, no cotidiano da vida social a
legal de seu afeto. Embora o afeto não possa realidade é conformada por novos arranjos cuja
ser regulado por leis, assim como não cabe ao pluralidade questiona a universalidade do mo-
campo jurídico regular a afetividade nem de- delo de família no Ocidente.
terminar ou mesmo controlar o sentimento das A partir das entrevistas realizadas com os
pessoas e sua orientação sexual, cabe a reflexão casais que buscaram reconhecer legalmente
de até onde o afeto pode servir de parâmetro suas uniões, observamos o questionamento so-
para as leis (Corrêa, 2005). bre qual ou quais os motivos que os levaram
A família legitimada pela lei constitui-se a buscar tal reconhecimento. A análise desses
como patriarcal, patrimonial indissolúvel e prin- discursos demonstrou que motivos materiais e
cipalmente heterossexual, o que alguns autores afetivos encontram-se entrelaçados, dificultan-
vão chamar de família nuclear. O pensamento do a própria percepção que têm a respeito da
mas por um reconhecimento como uma B - Não sei se vocês acompanharam a re-
família. E se o reconhecimento como solução da ANS, acho que foi em agosto
uma família hoje passa pela instituição do ano passado, foi uma resolução que
formal do casamento, eu acredito que eles obrigavam todos os planos a aceita-
eu queira como qualquer grupo, se isso rem tudo, senão era briga na justiça. Pra
tem que ser uma família, então eu quero incluir parceiros era briga na justiça. A
o casamento com tudo (risos), então eu ANS fez já que o Congresso não tomou
quero esse direito de reconhecimento. uma atitude; o Poder Executivo tem fei-
Porque pra mim o mais importante é eu to o que ele pode, tomando várias ini-
ser reconhecida como uma família, não ciativas, como portarias e normativas e,
como uma família burguesa, que tem pa- ano passado, eles fizeram e compraram
pai, mamãe e os filhinhos, mas sim uma essa briga obrigando os planos (casal
família... Se é o casamento que dá para a formado por duas mulheres – entrevista
sociedade essa certificação de que eu me realizada em outubro de 2011).
constituo como família, então, eu quero
me casar (risos). Não quero só fazer um Isto não se dá sem problemas. Em seu rela-
pacto que vai me dar direitos como se to, o casal sublinha que antes mesmo da decisão
fosse uma relação comercial, porque a do STF na forma da ADPF 132 havia mecanis-
minha relação com ela não é uma rela- mos que permitiam o reconhecimento do tipo
ção comercial. de benefício que se queria acessar. No entanto,
os planos de saúde desvinculados de empresas
A - Nós começamos como? Primeiro a ou organizações trabalhistas não reconheciam
necessidade surgiu de onde? Eu não te- facilmente estas demandas. E isto não é sem ra-
nho plano de saúde, não tinha. Até por- zão. Sem reconhecimento público, a vida civil
que eu defendo a saúde pública, acho do indivíduo não adquire estatuto legal. Este
que a gente tem que melhorar a saúde reconhecimento, por sua vez, é autenticado em
pública (risos), por isso que, por uma cartório. Segundo a oficiala entrevistada,
questão de coerência política, eu man-
tive o foco. Mas agora com mais de 40 A importância de fazer um registro, a im-
anos já começa a pesar no bolso, porque portância de buscar o cartório, porque o
você não tem acesso a saúde pública, cartório é muito mal visto, muitos veem
acabava pagando tudo particular, aí eu como um inimigo da sociedade, quando
falei ‘vou ter que deixar o discurso coe- não é, o cartório é aliado da sociedade,
rente de lado’ (risos). Aí esse era o pro- porque o que a gente fez pela sociedade
blema, a questão do plano de saúde. Mas foi dar essa figura jurídica. A partir do
a resolução da ANS ajudou bastante, se momento que você traz um documento
não a gente teria que entrar na justiça. pra dentro do cartório, você pode dimi-
nuir, evitar inúmeros litígios dentro da
B - Mas nós encontramos dificuldades... justiça, porque o que está acordado, está
acordado, e o que é público, é público,
A - Mas a gente encontrou muitas difi- ninguém pode alegar desconhecimento.
culdades. Então que nós fizemos? Bom, Então a partir do registro você dá publi-
nós precisávamos fazer algum tipo de cidade a sua vontade e ninguém pode
documento, registrar isso para que eu alegar desconhecimento dessa vontade
pudesse ter direito a entrar no plano de (oficiala do Cartório do 6º Ofício de Re-
saúde da B. gistros e Documentos da cidade do Rio
de Janeiro).
por outro lado, pode prestar fiança a terceiros perfil nesta rede social é público, várias pessoas
sem o consentimento do/a seu/a companhei- podem nela se manifestar. Além da fotografia
ro/a. Isto significa que companheiros de uniões do casamento, há uma que registra um beijo
estáveis, diferentemente de companheiros casa- entre ele e o seu parceiro, provocando algumas
dos, não alteram o seu estado civil. reações divergentes – por pessoas que se apre-
Cabe esclarecer que, embora os cartórios sentam como heterossexuais, homossexuais ou
não façam parte da estrutura administrativa do simpatizantes – sobre a maneira como a questão
Poder Judiciário, o seu funcionamento é regu- se apresenta nas representações sociais:
lado por ele. Nesta estrutura quem tem poder
de celebrar a união estável é o juiz de paz. No 1. Como o amor é lindo, e quem criou o
entanto, de acordo com o artigo 770 e seguintes amor foi Deus e tudo que ele faz é lindo
da Consolidação Normativa da Corregedoria do por si só, por isso o amor não tem fron-
Estado do Rio de Janeiro, “os juízes de paz são teiras nem religião nem cor nem raça
agentes honoríficos auxiliares, não integrantes nem credo ou sexo....viva o amor, (nós
da magistratura de carreira, exercentes da fun- também amamos!)
ção pública delegada (...), subordinados à fis- 2. É a coisa mais idiota do mundo. É como
calização, à hierarquia e à disciplina do Poder se Deus se apaixonasse pelo diabo.
Judiciário”. O artigo 772 ainda acrescenta que 3. Essa conduta homossexual, não será
“Em casos excepcionais de falta, ausência ou uma lei que me fará aceitar....!!!! Cada
impedimento do juiz de paz e de seus suplentes, um faz o que quiser da sua vida, mas até
o juiz de direito poderá designar juiz de paz ad aí eu aceitar isso são outros 500!
hoc, pelo prazo improrrogável de 60 dias (...)”.
O reconhecimento de fé pública dado aos seus Os argumentos a favor ou contra a mani-
atos estão, portanto, referenciados por esta nor- festação da união homossexual parecem ser
mativa. Além do juiz de paz, podem celebrar sustentados por diversos valores e motivos ex-
casamentos os pilotos de aeronaves durante voo pressos no espaço público (Kant de Lima, 2001
e comandantes de embarcações, além dos mi- e Cardoso de Oliveira, 2002): podem ser reli-
nistros de fé religiosa. Os cartórios9, no entanto, giosos ou mesmo relacionados à problemática
não estão obrigados legalmente a realizar escri- da reprodução humana. Assim como as repre-
turas de uniões homoafetivas a menos que as sentações sociais elaboradas e expressas pelo
Corregedorias do Poder Judiciário dos Estados cidadão comum, juízes e desembargadores, in-
assim determinem, e isto pode variar de estado vestidos de autoridade legal para reconhecer tal
para estado. Nos casos da sua negação, muitos união, também são movidos por representações
casais podem recorrer às Varas de Registro Pú- semelhantes, que acabam orientando a sua deci-
blico, igualmente regido pelo Código de Orga- são judicial para deferir ou indeferir os pedidos
nização e Divisão Judiciária do estado do Rio formais de reconhecimento de união estável ou
de Janeiro10 ou pela CNGJ, mas somente por sua conversão em casamento civil. A sua for-
via judicial. malização depende da interpretação de cada
A conversão de união estável em casamen- juiz sobre o assunto.
to de pessoas do mesmo sexo vem sendo tra- A conversão de união estável em casamento
tada, portanto, como excepcionalidade e não de um casal de homossexuais no Rio de Janei-
sem conflitos. Em agosto de 2011, Claudio ro se deu no contexto de férias do juiz da 1ª
Nascimento teve a conversão de união está- Vara de Registro Público do Rio de Janeiro, até
vel em casamento, o primeiro casamento civil então, único responsável pelo julgamento dos
homossexual no estado do Rio de Janeiro, e o processos de pedidos de conversão de união es-
terceiro no Brasil, segundo consta da fotografia tável em casamento na cidade. Embora negada
divulgada na rede social Facebook. Como o seu a formalização do processo de casamento civil
em data posterior à decisão do STF, suas cons- advogados, eles esclareceram que, embora a
tantes negações a estes pedidos se baseiam na juíza substituta não tivesse nenhum impedi-
sua percepção de inconstitucionalidade da for- mento legal para julgar e tivesse todos os po-
malização dos “casamentos gays”. No entanto, deres para agir como titular, ela transgrediu a
tal conversão foi somente possível pelo fato prática comum segundo a qual o juiz substituto
de que a juíza substituta, baseada na decisão deve aguardar o titular retornar para tomar deci-
do STF, julgou procedente o pedido. Segundo sões frente a questões polêmicas. Sendo assim,
um dos parceiros que solicitava a conversão, “o do ponto de vista da prática e dos rituais jurídi-
problema brasileiro é que há um atraso, prin- cos, seu posicionamento foi antiético, baseado
cipalmente por causa das bancadas evangéli- em moralidade outra que não a do juiz titular.
cas e por alguns políticos que têm mentalidade Segundo eles, “ela não fez nada de errado do
retrógrada, mas isto está mudando. Já temos ponto de vista jurídico”, mas agir assim só foi
juízes, advogados e promotores que são a fa- possível porque há “espaços vazios” deixados
vor” (Miranda, 2012). Juiz titular anterior, já pelo Direito que, com suas categorias abstratas,
havia, igualmente, autorizado outra conversão permite que cada um atue dentro da possibi
de união estável em casamento civil na cidade lidade de interpretá-las.
do Rio de Janeiro, o primeiro, qual seja, o do É curiosa também a percepção que advoga-
superintendente da Superdir. dos e membros da magistratura revelam sobre
É muito curioso que a juíza substituta na esta juíza, ressaltando que ela seria uma pessoa
1ª Vara de Registro Público no Rio de Janeiro polêmica no campo jurídico carioca, lidando
tenha concedido parecer favorável ao processo asperamente com algumas pessoas, mas que se-
de conversão de união estável em casamento, ria célere nos processos. Em conversa informal
conforme mencionado acima, diferindo radi- com amigos advogados no Rio de Janeiro, uma
calmente do posicionamento ideológico do juiz das falas é muito ilustrativa da notoriedade atri-
titular. Faz parecer que estamos diante de con- buída a esta juíza:
textos em que processos são elaborados aleato-
riamente e do dilema entre o ser e o dever ser, Ela deu a união estável porque ela é uma
ou seja, entre as normas e a prática no sentido juíza louca. Totalmente queimada no TJ/
de Geertz (1997), que permite aos operadores RJ. Uma decisão dessa natureza, jamais
do Direito um vasto espaço de ação e de inter- um juiz substituto daria porque, mal ou
pretação para além da norma em si. Embora tal bem, a orientação do titular é negar as
juíza não tenha transgredido nenhuma lei, ela conversões em casamento. E é meio
parece ter rompido uma certa tradição jurídica que consensual que quando o titular sai,
no campo do Direito, segundo a qual os juízes o substituto só toca o cartório, sem se
substitutos tendem a se alinhar ideologicamente imiscuir nos casos que são polêmicos,
com os juízes titulares e, nos casos polêmicos, enfim... Ela fez isso porque é lunática!
simplesmente tendem a não formalizar decisões E é conhecida como louca! Ela sofre
processuais. constantes representações disciplinares
Ao conceder decisão favorável à conversão de advogados no Conselho da Magistra-
de união estável em casamento a duas pessoas tura (advogada civil que atua na cidade
do mesmo sexo, a sua transgressão é percebida, do Rio de Janeiro).
pelos operadores do Direito, como transgres-
são à ética (Kant de Lima, 1995) que preside o Esta aparente excepcionalidade que flo-
comportamento compartilhado pelos operado- resce da análise dos casos referentes à for-
res no judiciário e não propriamente aos valores malização da união estável ou casamento
morais pertinentes a este tipo de união ou ma- entre pessoas do mesmo sexo tem uma razão
trimônio. Em conversa informal com amigos na sociedade brasileira. Ao analisar o papel
institucional da polícia no Rio de Janeiro, o território nacional. Ainda que não haja estatís-
Kant de Lima (1997) chama atenção para ca- tica sobre os casamentos homossexuais, a Asso-
racterísticas similares no sistema judiciário. ciação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Contrastando com o sistema norte-americano, Travestis e Transexuais (ABGLT) levantou mais
o autor observa que o sistema brasileiro, ao de cem casamentos desta natureza no país, sendo
enfatizar lógicas distintas nos “procedimentos apenas um oficializado no Rio de Janeiro (Mi-
judiciários hierarquizados diferentemente”, es- randa, O Globo on line, 2012). Isto significa que
timula a competição interna sobre a produção a decisão do Supremo também não garantiu que
da verdade jurídica ou, como diz, da “melhor” casais homossexuais pudessem realizar a sua
verdade. Não somente há uma desqualificação conversão em casamento civil sem terem que
progressiva de um sistema sobre o outro, como recorrer à justiça. Isto se dá porque, da perspec-
também se desqualificam reciprocamente os tiva do Direito de Família no Código Civil Bra-
operadores que, na relação com a polícia, se sileiro, não somente a noção de família implica a
rotulam mutuamente de “advogados de porta união civil entre um homem e uma mulher, como
de cadeia”, “advogados de foro”, “advogados também atribui direitos diferenciados a um ou
de júri”, conforme sejam eles especialistas em outro estatuto civil. Enquanto pela união estável,
negociações com a polícia, nos procedimentos. diversos direitos precisam ser julgados proces-
As demandas pelo reconhecimento de união sualmente na justiça, num casamento os parcei-
estável de pessoas do mesmo sexo ou da sua ros adquirem direitos previamente reconhecidos
conversão em casamento civil estão inseridas na e formalizados sem que precisem instaurar pro-
expectativa do processo de mudanças legislati- cessos para tais: uso de sobrenome do cônjuge;
vas e institucionais pelas quais vem passando a inscrição no INSS, assim como no Imposto de
sociedade brasileira, desde a década de 1980, Renda e nos planos de saúde; adoção de crian-
no sentido de implementar e ampliar os princí- ça; pensão alimentícia em casos de separação e
pios de um Estado democrático de direito. No recebimento de herança em caso de falecimento,
entanto, a ambiguidade presente no contexto ju- entre outros.
diciário brasileiro em relação a este tema parece Neste contexto, parece que estamos diante
indicar que são ainda profundos os obstáculos de dois grandes obstáculos. De um lado, assim
para alcançar este ideal. Etnografia sobre a im- como no contexto da implantação da mediação
plantação de medidas consideradas alternativas de conflitos nos tribunais no Rio de Janeiro, pa-
de mediação de conflitos no judiciário demons- rece que a centralidade de um juiz na condução
trou anteriormente que o Estado não conseguiu, destes processos permite a formalização de tais
ainda, diminuir o abismo entre os tribunais e direitos de acordo com os seus próprios valores
a sociedade, nem mesmo promover princípios pessoais; ou seja, se é simpático a estes direitos,
igualitários e democráticos de administração de os processos são deferidos, se não é, os proces-
conflitos da vida pública civil (Mello; Lupetti sos são indeferidos. De outro, estamos diante
Baptista, 2011). Assim como estas iniciativas, da criação de medida legislativa que, em vez de
as demandas por reconhecimento do direito à ampliar direitos, promove a seleção de segmen-
união estável ou casamento civil por pessoas do tos que o obterão e outros que não, dentro da
mesmo sexo esbarram em princípios tradicio- própria população LGBT.
nais do campo jurídico brasileiro, que privilegia A análise elaborada até este momento pa-
a “ordem jurídica sobre a ordem social” (Ibid., rece indicar que o STF ampliou o conceito de
2011). família para além das relações homem e mulher
O assunto ainda é muito polêmico, pois a fim de reconhecer o direito à união estável ho-
apesar do julgamento e da decisão do STF pela moafetiva. No entanto, a decisão do Supremo
união estável homossexual em maio de 2011, não necessariamente normaliza as relações ho-
não ganhou força de regra nos tribunais de todo moafetivas por meio do conceito convencional
de família conforme pode fazer crer. Tal decisão do Parlamento Europeu, desde meados desta
não representa a implantação automática, nem mesma década, recomendar a concessão dos
nacional, da formalização das uniões estáveis mesmos direitos civis que gozam as pessoas he-
entre pessoas do mesmo sexo, nem é automá- terossexuais casadas aos casais homossexuais,
tica a sua conversão em casamento, posto que poucos foram os países europeus que seguiram
as decisões do STF não são vinculantes porque tal recomendação (Uziel e Grossi, op. cit.).
não há sequer súmula a respeito do assunto. Após a epidemia do HIV/Aids em todo o
No mundo do Direito as súmulas representam mundo, o movimento homossexual “reflores-
verbetes que identificam e registram interpre- ce” (Faccini, op. cit.) nos anos 1990, trazendo
tações adotadas por um tribunal a respeito de ao espaço público das grandes cidades militan-
um tema determinado. Estas interpretações po- tes com origens institucionais distintas, que se
dem ser pacíficas ou não e majoritárias ou não. manifestaram em torno da homossexualidade,
Seu objetivo é promover uniformidade de in- contra a intolerância e a homofobia, assim como
terpretação e de decisão por todos os tribunais em prol da ampliação de direitos civis. Uma
e juízes sobre um tema dado. Não há, portanto, das formas de dar visibilidade aos movimentos
no caso aqui observado, a obrigatoriedade de homossexuais se caracterizou pelas paradas
entendimento sobre os processos de escritura- gays, celebrando a variedade de estilos e orien-
ção, seja de união estável, seja de casamento tações sexuais em nossa sociedade. No Rio de
homoafetivo. Cabe destacar, também, que a di- Janeiro, o Grupo Arco-Íris parece ter assumido
visão jurídico-administrativa nacional atribui grande visibilidade não somente pela sua par-
ao Supremo a competência executiva jurídica e ticipação nestas paradas realizadas na cidade,
não a competência de legislar. Portanto, as de- como também pela sua expressão na luta contra
cisões tomadas neste fórum não têm força de a homofobia, pela ampliação de direitos e pelo
lei para determinar critérios constitucionais. E, reconhecimento de sua identidade. O que estas
se o mundo do Direito é amplo e ambíguo, esta manifestações parecem colocar em pauta?
decisão parece ampliar ainda mais este univer- A compreensão das demandas dos movi-
so de ambiguidades e de heterogeneidade de mentos sociais com características identitárias
decisões. remete à discussão de Nancy Fraser (2002 e
Mais uma vez, assistimos na sociedade bra- 2008) a respeito da bidimensionalidade da jus-
sileira medidas que, se não inviabilizam com- tiça social. Diz a autora que nas sociedades
pletamente, promovem a desigualdade formal contemporâneas, não somente as tradicionais
à plena realização de direitos dos cidadãos e à questões de classe, baseadas na estrutura eco-
conquista da tão almejada ampliação e consoli- nômica das sociedades, mas também as cul-
dação de princípios igualitários do Estado de- turais, relacionadas aos valores e hierarquias
mocrático de direito. classificatórias institucionalizadas, devem ser
levadas em consideração quando se pensa nas
Considerações finais demandas por justiça social. Não somente a
redistribuição é o paradigma dos movimentos
A luta pela conquista e ampliação de direitos sociais hoje, como também a reivindicação do
homoafetivos não é isolada, mas uma entre as reconhecimento. Para Fraser (2002 e 2008), a
várias manifestações que emergiram nas socie- realização da justiça implica distribuição justa
dades contemporâneas. De acordo com Butler de bens e recursos e exige o reconhecimento
(2007) as discussões acerca dos direitos ho- recíproco entre os atores sociais. Do ponto de
mossexuais têm ocupado um lugar proeminente vista da política do reconhecimento, quais os
desde os anos 1990 no mundo contemporâneo, paradigmas que sustentam, por sua vez, as de-
remetendo a valores de casamento, parentesco mandas e os conflitos resultantes da interação
e reprodução. A autora argumenta que apesar de homossexuais com instituições do Estado ou
suas intermediárias (ONG, sindicatos, agências ocidentais. Neste cenário, não por acaso, a dé-
multilaterais etc.)? cada de 1980, especialmente a partir da conso-
Outra questão importante, sustentada por lidação da Constituição de 1988, tem assistido,
Butler (2003), refere-se ao impacto que as no Brasil, a uma série de mudanças institucio-
uniões homossexuais impõem às formas tradi- nais, ou propostas de mudanças, que visam im-
cionais de parentesco, em particular à ligação, plementar ou ampliar princípios de um Estado
normalmente aceita, de que parentesco é sinô- democrático de direito. No entanto, estes esfor-
nimo de casamento heterossexual e de laços ços no âmbito da esfera pública (Cardoso de
sanguíneos. Argumenta a autora que Oliveira, 2002), não têm representado a elimi-
nação de conflitos em diversos âmbitos da vida
(...) esses pontos de vista podem se co- social, a exemplo das propostas de reforma do
nectar de diversas maneiras, uma delas judiciário, posto que diversas formas de vio-
consiste em sustentar que a sexualidade lência prosseguem mesmo no âmbito das rela-
deve se prestar às relações reprodutivas ções interpessoais (Amorim, 2002; Sinhoretto,
e que o casamento, que confere estatu- 2008; Mello; Baptista, 2011) nem a inclusão de
to legal à forma da família, ou, antes, é determinados segmentos sociais na comunida-
concebido de modo a dever assegurar de política.
essa instituição, conferindo-lhe esse es- O direito à liberdade de orientação sexual
tatuto legal, deve permanecer como o no contexto de um Estado de Direito, consi-
fulcro que mantém essas instituições em derando várias demandas civis corresponden-
equilíbrio (Butler, 2003, p. 221). tes – inclusão de parceiros como dependentes
nos planos de saúde, na previdência, bem como
O Estado aparece como normalizador e serem detentores de bens e alimentos do com-
detentor dos direitos sobre as relações de pa- panheiro em caso de separação, direito à heran-
rentesco, classificando e discriminando as rela- ça e usufruto de bens em caso de falecimento,
ções afetivas distintas dos casamentos heteros- acompanhamento de parceiros em viagens de
sexuais. Dessa forma, a autora chama atenção trabalho ou instituições hospitalares, o direito
para o fato de que as demandas de uniões civis ao exercício da paternidade/maternidade, ou
de casais homossexuais, autorizadas juridica- seja, à adoção etc., assim como à igualdade –
mente, não representam mais do que uma con- encontram-se no cerne dos conflitos e deman-
cessão do Estado, que, como consequência, se das do movimento LGBT. Como disse o então
reproduz como instância social legítima com coordenador de projetos do Grupo Arco-Íris
direito de dizer o Direito, nos termos de Bour- no Rio de Janeiro, a decisão do STF, embora
dieu (1989). Segundo Butler, as “variações no sendo uma conquista, não resolve totalmente a
parentesco que se afastem de formas diádicas questão da luta pelo direito à cidadania do mo-
de família heterossexual garantidas pelo jura- vimento homossexual brasileiro. Segundo ele,
mento do casamento, além de serem conside- é preciso conquistar a união civil, com todos os
radas perigosas para as crianças, colocam em direitos daí decorrentes, em situação de igual-
risco as leis consideradas naturais e culturais dade com os outros cidadãos heterossexuais; e,
que supostamente amparam a inteligibilidade conforme suas palavras, “a gente quer igualda-
humana” (Butler, 2003, p. 224). de de direitos”.
Na sociedade brasileira, o tema surge no Às indagações de Butler (2003), especial-
contexto de conflitos por reconhecimento iden- mente se as demandas homossexuais pela união
titário de sujeitos coletivos (Mota, 2009), des- estável e casamento representariam o fim da
velando características múltiplas de construção “cultura sexual radical”, poderíamos talvez nos
da cidadania no Brasil e, ao mesmo tempo, im- arriscar a dizer que, com base na pesquisa até
pondo desafios aos paradigmas de democracias então realizada, estas demandas não significam
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MES, L. G.; BARBOSA, L.; DRUMOND, J. al. (org.). Reflexões sobre Segurança Pública e
A. (orgs.). O Brasil não é para principiantes: Justiça Criminal numa perspectiva comparada.
carnavais, malandros e heróis, 20 anos depois. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Hu-
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. manos, 2008.
_______. “Direitos civis, Estado de Direito e “cul- UZIEL, A. P.; GROSSI, M. P. “Parceria civil
tura policial”: a formação policial em questão.” e homoparentalidade: o debate francês.” In:
In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São GROSSI, M. P. et al. Conjugalidades, parenta-
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. lidades e identidades lésbicas, gays e travestis.
_______. Os cruéis modelos jurídicos de con- Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
trole social. In: Insight/Inteligência, abr./mai./
jun. 2004.
Notas
MACHADO, M. D. C.; PICCOLO, F. D. Re-
ligiões e homossexualidades. (Análises Sociais 1
Este artigo é uma versão preliminar de pes-
Contemporâneas). Rio de Janeiro: Editora quisas realizadas no contexto do projeto
FGV, 2010. Liberdade de orientação sexual ou comba-
MELLO, K. S. S.; BAPTISTA, B. L. “Media- te à homofobia: paradigmas em debate na
ção e conciliação no Judiciário: dilemas e sig- administração institucional de conflitos em
nificados”. In: Dilemas: Revista de estudos de processos sociais de reconhecimento, coor-
conflito e controle social, v. 4, n. 1. Rio de Ja- denado por Kátia Sento Sé Mello, em anda-
neiro jan./fev./mar, 2011. mento no âmbito da Escola de Serviço So-
MIRANDA, A. P. M. “Cartório: onde a tradição cial/UFRJ e cadastrado no InEAC-Nufep/
tem registro público.” In: Revista Antropolítica, UFF, INCT ao qual a coordenadora do pro-
n. 8, Niterói, 2000. jeto é associada. Trata-se de uma experiên-
________. “Casamento gay: uma união ainda cia singular de coautoria entre orientador e
difícil no Rio.” O Globo a mais, reportagem pu- aluno de graduação inserido no mencionado
blicada no vespertino para tablet, 22/05/2012. projeto de pesquisa como bolsista de inicia-
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/ ção científica. Além de permitir a formação
casamento-gay-uma-uniao-ainda-dificil-no-rio e socialização de aluno na análise e escri-
-4976208ixzz2I4Cx9qgJ>. ta do andamento da pesquisa, tal iniciativa
visa criar condições de ampliação e conso-
_______. “Casais homossexuais aguardam fé-
lidação do diálogo entre a Antropologia e o
rias de juiz.” O Globo a mais, reportagem pu-
Serviço Social. Uma primeira versão deste
blicada no vespertino para tablet, 24/05/2012.
artigo foi apresentada no III Seminário do
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/
INCT-InEAC-Nufep/UFF, 25 de fevereiro a
casais-homossexuais-aguardam-ferias-de-juiz
1º de março de 2013.
-5016681ixzz2I4CCyXYK>.
2
Facebook é uma rede social na internet, 7
O Grupo Arco-Íris apresenta-se publicamen-
criada por Mark Zuckerberg em fevereiro te como uma organização não governamen-
de 2004, que permite aos usuários cadas- tal, criada a partir do “sonho de um grupo
trados (que declarem ter pelo menos treze de amigos em resposta à epidemia de Aids
anos de idade) criar um perfil pessoal, onde e à discriminação contra lésbicas, gays, bis-
podem compartilhar textos, imagens e víde- sexuais, travestis e transexuais”. Do mesmo
os com outros usuários adicionados como modo, a sua atuação está voltada, segundo o
amigos. Este perfil pode ser público ou não discurso público, para a promoção da auto-
a depender da opção de configuração de pri- estima e cidadania LGBT, “visando à trans-
vacidade da página pessoal feita pelo pró- formação da sociedade por meio de ações
prio usuário. A rede também permite a for- de desenvolvimento organizacional, gestão
mação de grupos de interesse comum entre do conhecimento, mobilização comunitária
os usuários, a exemplo de escola, trabalho, e defesa dos direitos humanos, para o exer-
entre outros. O Facebook também possibi- cício da livre orientação sexual e identidade
lita aos seus usuários a criação de eventos, de gênero” (<http://www.arco-iris.org.br/o-
com data, hora e local definidos, a exemplo grupo/>). Para uma história do movimento
de um convite virtual, enviado somente aos homossexual brasileiro e a inserção do Gru-
amigos selecionados pelo usuário. po Arco-Íris, ver Faccini e Simões (2009).
3
Mantivemos a maneira como a entrevistada 8
Projeto da Organização das Nações Unidas
se apresentou na medida em que sua percep- (ONU), em que empresas em nível mundial
ção sobre a adoção da flexão de gênero aten- se reúnem para defender direitos básicos
de às demandas por reconhecimento. Esta não somente de seus empregados, mas na
flexão foi instituída pela Lei n. 12.605/12, área social como um todo.
sancionada pela presidenta Dilma Rousse- 9
Sobre a consolidação normativa da Correge-
ff em 3 de abril de 2012, que “Determina doria do Estado (CNCGJ), ver: <http://www.
o emprego obrigatório da flexão de gênero tjrj.jus.br/documents/1017893/1038412/
para nomear profissão ou grau em diplo- CNCGJ-Extrajudicial.pdf>.
mas”. 10
Codjerj: <http://www.tj.rj.gov.br/consultas/
4
Publicação recente sobre a percepção das codrj_regimento_tjrj/codrj_regimento_tjrj.
homossexualidades por lideranças religio- jsp>.
sas aborda questões relacionadas à homos-
sexualidade em geral, mas especialmente
Kátia Sento Sé Mello
sobre novas propostas jurídicas (Machado;
Piccolo, 2010).
*
Professora do Departamento de Política So-
cial e Serviço Social Aplicado, do PPGSS e
5
Maria Berenice Dias atualmente é advoga-
pesquisadora do Nusis da ESS/UFRJ; pes-
da que atua no campo do reconhecimento
quisadora associada ao INCT-InEAC/Nu-
dos direitos de família da população LGBT.
fep/UFF e NECVU/IFCS/UFRJ.
Seus artigos sobre o tema podem ser encon-
trados em: <http://www.mbdias.com.br/har-
tigos.aspx?80,14>. Ana Carolina Lima dos Santos
6
Fé pública representa a autoridade de uma **
Aluna do 8º período do curso de Serviço So-
atestação, de um documento por meio do cial e bolsista Pibic/UFRJ no projeto men-
qual o Estado garante a certeza e a veraci- cionado.
dade de um determinado documento. Sobre
isto ver Miranda (2000).
ARTIGO
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar as categorias cor/raça, gênero e classe no bojo das políticas de
combate ao turismo sexual. Entendemos que tais políticas são permeadas de significados sociais em relação ao públi-
co-alvo destas campanhas. O Brasil tornou-se signatário nos anos 2000 daquilo que foi definido como o combate ao
turismo sexual proposto pela a Organização Mundial do Turismo (OMT), que, em linhas gerais define o turista sexual
como aquele cidadão que viaja única e exclusivamente para outro país com o intuito de manter relações sexuais com
mulheres destes países. Ao longo de oito anos de pesquisa em Copacabana, no Rio de Janeiro, e na região central da
cidade de São Paulo, percebemos que as categorias “turista sexual”, e supostamente a “vítima” deste “crime” são bas-
tante fluídas e, em alguns casos, são utilizadas como categorias de acusação. O perfil destes personagens é claramente
definido pelos marcadores sociais da diferença cor/raça, gênero e classe de homens e mulheres que são reconhecidos
como potencialmente propícios ao turismo sexual. A partir de dados de pesquisa analiso estas categorias nos discursos
sobre o turismo sexual.
Palavras-chave: turismo sexual; prostituição; gringos; mulheres brasileiras; marcadores sociais da diferença.
Abstract: The present article seeks to analyze the categories color/race, gender and class in the context of policies that
attempt to combat sex tourism. We understand these policies as permeated with social meanings with regards to the tar-
get audience of their campaigns. In 2000, Brazil became a signatory in 2000 of the International Tourism Organization’s
(ILO) proposal to combat sex tourism, which broadly defines the sex tourist as someone citizen who travels to another
country exclusively for the purpose of having sex with local women. Eight years of research in Copacabana in Rio de
Janeiro and in the downtown São Paulo has demonstrated that “sex tourist” and also the supposed “victims” of this
“crime” are categories that are fairly fluid, often used as accusations independent of their target’s behavior. The profile
of “sex tourists” and “Brazilian women” are clearly demarcated by social markers of difference: color/race, class and,
of course, gender. These markers are used by authorities and by society in general to identify the women and men who
supposedly participate in sex tourism. Using data from my ethnographic research, I analyze the use of these markers in
discourses regarding sexual tourism.
Keywords: sexual tourism; prostitution; gringos; brazilian women; markers of social difference.
Fonte: <http://exame.abril.com.br/brasil/politica/noticias/
jornal-de-pernambuco-publica-propaganda-contra-gays>.
Dentro deste contexto, o que é mais in- governamentais e governamentais que lutam
teressante são os tipos físicos que mais contra essa suposta praga, esses homens apa-
atraem as acusações de turismo sexual. Nos recem, quase inevitavelmente como loiros,
panfletos, livrinhos e cartazes antiturismo altos, bonitos e com olhos azuis. Como mos-
sexual, produzidos pelas organizações não tra a imagem abaixo:
se trata de seus direitos. Esses são rotineiramente enfim, não pode ser visto como um campo à
violados pelos donos das boates, termas, agên- parte das relações socioeconômicas capitalis-
cias de escort e casas noturnas que lucram, direta tas. De fato, Friedrich Engels até faz questão
e indiretamente, com o trabalho sexual e que ex- de equiparar “a cortesã habitual” que “aluga o
traem uma taxa significativa de exploração dos seu corpo por hora” com a trabalhadora assala-
trabalhadores através da utilização de uma série riada, reservando para a esposa engajada num
de mecanismos. Em outras palavras, embora a “matrimônio de conveniência” o rótulo de “es-
cafetinagem, em sua acepção mais brutalmente crava” (Engels, 1982 [1884], p. 20). Sob esta
exploradora4, não pareça ser estruturalmente sig- ótica, não existe razão necessária para entender
nificante na organização econômica da prostitui- a prostituta como menos trabalhadora ou mais
ção urbana (particularmente no Rio de Janeiro), escravizada que qualquer outra operária nas di-
existe uma série de agentes que exploram a pros- versas áreas de serviços.
tituta, no sentido marxista da palavra, através da Enfim, no regime capitalista, a exploração
expropriação dos frutos de seu trabalho. é sinônimo de todo trabalhador e este fenô-
É importante que o leitor entenda que aqui meno não pode ser equiparado com a explo-
não estamos falando da exploração sexual, ar- ração sexual, entendida, para fins do presente
tefato legal plástico e extremamente mal defini- artigo, como situação análoga à escravidão.
do na jurisprudência brasileira que é utilizado, Neste ponto, gostaríamos de explicitar nosso
quase exclusivamente, para reprimir a prosti- entendimento sobre essa especificidade, a fim
tuição. Quando falamos em exploração neste de evitar confusão entre a exploração sexual e
artigo, estamos falando do conceito marxista a exploração, no sentido marxista da palavra:
que estipula que todo trabalho remunerado, no a demasiada maioria de nossas informantes,
capitalismo, envolve a extração da mais-valia. na medida em que se sentem exploradas, se
Neste sentido, a prostituição não é diferente de sentem exploradas economicamente, enquanto
outras ocupações profissionais. Tem sido a po- trabalhadoras, e não enquanto mulheres supos-
sição, entre certa ala de pensadores feministas tamente rebaixadas à condição de escrava ou
e marxistas, que o trabalho sexual é exploração mero objeto inanimado. De fato, é importante
sexual e, portanto, é classificável como sinô- notar neste contexto que as nossas informan-
nimo de tráfico de mulheres e/ou escravidão. tes qualificam as batidas policiais, geralmente
Na visão desses analistas, as únicas coisas que justificadas como medida repressiva da explo-
podem ser compradas e vendidas no comércio ração sexual, como violação de seus direitos e
do sexo são o corpo e a pessoa da mulher. Por- dignidade.
tanto, a exploração sexual é entendida como A posição limiar da prostituição no Brasil
sinônimo de qualquer trabalho sexual e é qua- como trabalho, legalmente reconhecido, porém
lificada como uma mutação da sociedade mo- não regulamentado, e a ilegalidade de lucrar
derna ou, ainda, pós-moderna; uma reificação com a labuta sexual de terceiros (qualificado
da barbárie. Essa posição ignora a realidade do como lenocínio pelo Código Penal brasileiro),
trabalho sexual, como trabalho e a natureza da têm configurado um campo de trabalho sui
venda dos serviços, sejam esses sexuais ou de generis. Em geral, a prostituta é situada nesse
outra natureza, como comércio. campo como “independente”: uma espécie de
Se for verdade, como Marx e Engels afir- pequena burguesa do sexo; alguém que contro-
mam, que os seres humanos “precisam comer, la seu corpo, entendido aqui como o meio chave
beber, se abrigar e se vestir [e], portanto, preci- para a produção do ato sexual. Porém, tal pro-
sam trabalhar” (Engels, 1986, p. 376), é igual- dução implica em uma série de outros insumos
mente verdadeiro que precisam manter relações e meios de produção que, em geral, não são
sexuais e que essas relações também podem ser controlados diretamente pela prostituta e que
vendidas como qualquer outro serviço. Sexo, precisam ser comprados ou alugados por ela. É
justamente aqui – na venda ou aluguel desses contexto, é mister salientar que ainda não en-
insumos – que a maior parte da expropriação do contramos nenhum caso de mulher que ganhe
valor do trabalho da prostituta acontece. menos que um salário mínimo com jornada se-
Em primeiro lugar, a trabalhadora sexual melhante na venda de serviços sexuais, mesmo
precisa de um lugar onde pode encontrar o nos lugares onde o trabalho sexual é mais des-
cliente e negociar os serviços sexuais. Isto não valorizado.
é tão fácil quanto pode aparecer à primeira vis- Em conversas com prostitutas, três ocupa-
ta, pois geralmente necessita a construção e ções femininas emblemáticas foram quase sem-
manutenção de uma região moral – na acepção pre citados pelas mulheres e logo descartados
de Robert Park, uma região em que prevale- como possíveis saídas da prostituição. Essas são
ce um código moral distinto, frequentada por (em ordem crescente de frequência): trabalhos
pessoas que são “dominadas (...) por um gosto, domésticos, a manutenção de uma casa como
paixão, ou interesse enraizado diretamente na esposa e trabalho como caixa de supermercado.
natureza original do indivíduo” (1984 [1925], Esses trabalhos são sempre descritos como dis-
p. 45-48). Essas regiões têm que ser minima- poníveis, mas são desvalorizados, com a prosti-
mente atraentes para os clientes, oferecendo tuição sendo descrita como uma atividade bem
um clima descontraído (geralmente regado a mais lucrativa e até menos desagradável. É bas-
bebidas alcoólicas) e anônimo. Em outras pa- tante comum ouvir agentes políticos engajados
lavras, a prostituta precisa da existência de al- na luta contra a prostituição opinar que “a edu-
gum lugar onde o cliente sabe que vai encontrar cação e a profissionalização das meninas são a
sexo à venda e que vai se sentir à vontade. Tal solução”. Todavia, é mister notar que a tão al-
lugar pode ser virtual (um site na internet, por mejada “profissionalização” teria que criar uma
exemplo, ou uma central telefônica que articu- verdadeira mudança de status socioeconômico,
la clientes e garotas de programa), mas ele há pois o que a maioria de nossas informantes di-
de existir. Sendo a prostituição uma atividade zem necessário para largar a profissão, é um
estigmatizada e muitas vezes reprimida, a exis- salário equivalente àquele que ganha na venda
tência de tais regiões morais implica numa sé- dos serviços sexuais. Isto é dificilmente encon-
rie de negociações constantes com autoridades trado no mundo dos empregos tradicionalmente
e residentes locais o que, por sua vez, implica femininos. Como várias mulheres nos informa-
numa série de gastos. ram, “não deixo de ser puta para ser caixa de
Embora acreditemos que devam existir mu- supermercado. Imagina trabalhar por 50 horas
lheres forçadas a entrar na atividade da prosti- por semana e ganhar um salário mínimo!”.
tuição contra sua vontade, até agora não encon- Na prática, a grande maioria das prostitutas
tramos nenhuma em nosso trabalho de campo. não parece viver muito melhor que as despre
Por que, então, entram e continuam no ramo? zadas donas de casa e caixas de supermercado
Em geral, há uma razão predominante: frente e, de fato, o casamento é uma das principais
às outras opções de trabalho, a prostituição é saídasda prostituição, de acordo com nossas in-
vista como maneira mais eficaz de garantir a formantes. Todavia, muitas mulheres salientam
essas mulheres uma verba suficiente não só que as grandes vantagens da prostituição são sua
para sobreviver, mas para ensaiar uma ascensão flexibilidade em termos de jornada de trabalho e
socioeconômica. Neste contexto, é importante (entre as mais jovens) a possibilidade – remota,
notar que todas as nossas informantes reportam mas sempre presente – de ganhar muito dinheiro
ter acesso a outras oportunidades de emprego com clientes estáveis e/ou ricos. É nossa hipó-
e muitas têm trabalhado com carteira assinada. tese, então, que uma das motivações principais
Contudo, a maioria exercia ocupações que pa- atrás da prostituição é a ambição e não a estrita
gam por volta de um salário mínimo5 por uma necessidade. Entre todas as ocupações tipica-
jornada de mais que 40 horas semanais. Neste mente femininas, somente a prostituição e o
casamento oferecem uma chance para alcançar ralar. Pelo menos [trabalhando] assim, eu
a ascensão social, e neste sentido, a prostituição ganho suficiente para ajudar lá em casa e
tem distinta vantagem: não atrela o futuro da ainda sobra tempo para cuidar da minha
mulher a um indivíduo qualquer. filha. Venho pra cá [a Praça da Repúbli-
De fato, embora muitas prostitutas fossem ca] na sexta à noite, deixando Nina [sua
ou tivessem sido casadas ou ainda estejam bus- filha] em casa com Beto [seu marido]. Aí,
cando casar, o casamento em si é quase nunca trabalho até que ganho uns 150-200 reais
entendido entre nossas informantes como, ne- e volto, geralmente no domingo de ma-
cessariamente, uma saída da prostituição. Em nhã. Fico, então, o resto da semana em
geral, existe uma grande desconfiança da capa- casa enquanto Beto trabalha. Ele sabe o
cidade do homem sustentar uma mulher. Nas que faço e sabe que não é por amor, nem
palavras de Wilma6, mulher de 35 anos de ida- sacanagem. Já falei pra ele: “Eu paro a
de, que trabalha numa boate em Copacabana: hora que você quiser, mas é bom você
poder, então, levar toda essa cambada nas
Homem promete muita coisa, mas geral- costas, porque não vou achar outro traba-
mente não consegue cumprir suas pro- lho que pague tanto quanto esse e que me
messas. Pior: quando você casa com um deixe ficar em casa seis dias por semana.
homem, aí sim ele se acha seu dono. O
que eu faço aqui na rua não é nadinha di- Para Dara, então, a prostituição – longe de
ferente daquilo que fazia em casa, quan- ser uma ameaça para a família – virou a única
do era casada. Ou você acha que trepava maneira através da qual ela podia reproduzir
com meu marido todos os dias porque adequadamente a vida doméstica. Várias das
morria de tesão e amores por ele? Não, nossas informantes casadas têm oferecido afir-
senhor! Era um trabalho, igual a esse mações semelhantes. Como dizia Janice, mu-
aqui. Minto: era um dever. E você não lher de 25 anos, também operante na Praça da
ganha nada por um dever. Aqui sou paga República, “ser esposa e mãe de família, meu
por aquilo que faço, pelo menos. Meu bem? A única maneira que posso fazer isto é
marido nunca me pagou. Aliás, era eu sendo puta. Você acha que poderia cuidar bem
que vivia dando dinheiro para ele. dos meus filhos e meu marido sendo caixa de
supermercado? Mas nem fudendo! Aliás, é isto
Mesmo nos casos onde o relacionamento mesmo: só fudendo.”
com o marido é mais harmonioso, porém, exis- É mister notar neste contexto que, mesmo
te um reconhecimento do fato de que, no atual trabalhos mais bem posicionados em termos de
mercado de trabalho, um salário dificilmente remuneração, muitas vezes, também perdem
sustenta uma família inteira. Como dizia Dara, em termos econômicos para a prostituição. Ja-
prostituta de 40 anos de idade, atuante na pros- nice e Wilma trabalham na base de programas
tituição de rua na Praça da República, no Rio de um real por minuto e, tipicamente, ganham
de Janeiro, 20 reais por programa, sendo que 25 programas
– ou pouco mais que 8 horas de trabalho sexual
Meu marido não consegue cobrir as des- – rendem o equivalente a um salário mínimo.
pesas da casa sozinho.” Ele se rala, mas Vânia, porém, tem 31 anos de idade – 9 anos de
ganha o salário mínimo. O que fazer, prostituição – e trabalha no centro da cidade, nas
então? Já são passados os dias em que o Termas Dado de Quatro7. Ela deixou carreira de
homem ganhava suficiente para a mulher corretora de imóveis para virar prostituta:
ficar em casa, cuidando da criançada.
Talvez era assim nos dias da minha avó, Meu antigo trabalho pagava bem, quan-
mas hoje em dia todo mundo tem que do o dinheiro entrava. As vezes ganhava
até dois mil reais por mês. Mas tinha termas. Deixou, então, o Unicórnio para traba-
períodos em que nada – absolutamente lhar no menos exclusivo Dado de Quatro e ago-
nada – entrava. Aí, uma amiga me falou ra estava se classificando como “velha demais”
sobre o disco Help, em Copa. Lá, eu ga- para trabalhar naquele local também.
nhava 200 reais por programa – que me A carreira de Vânia, então, seguia o rumo
ajudava pra cacete – e ainda poderia tra- de carreira decadente, descrito por Paul G.
balhar como corretora, mas não gostava Cressy na obra clássica da antropologia urbana
porque eu tinha que voltar para o hotel The taxi dance hall (2008 [1932]). De acordo
do cliente e nunca se sabe ... [i.e. o clien- com esse autor, nos ramos ocupacionais que
te poderia ser violento ou recusar pagar]. prezam a beleza, a idade tende a exercer uma
Então, me ofereceram um emprego na pressão decadente na carreira da trabalhadora
Termas Unicórnio. Lá, eu só ganhava individual. Sendo mais velha, num lugar cheio
160 por programa e tinha que trabalhar de moças jovens, a indivídua terá que se es-
todos os dias, mas era bem mais seguro. forçar cada vez mais para conseguir clientes.
Três anos mais tarde eu vim pra cá, pois Existem duas soluções para este dilema: sair do
briguei com o dono da Termas. Agora ramo ou mudar-se para lugar menos exclusivo
estou pensando em largar a sacanagem e para conquistar uma posição mais competitiva
voltar a ser uma corretora, pois já estou com relação às outras trabalhadoras. Cressy
ficando velha demais para ser puta. Só afirmava que o resultado final desse processo
que dessa vez, já tenho meu apartamento era a “redução” da dançarina do taxi dance hall
e carro, tudinho pago pela putaria. Ago- (presumivelmente branca) às casas mais baratas
ra, com base segura, posso aguentar fir- frequentadas por chineses e negros. No contex-
me e forte as épocas de vacas magras. to da prostituição carioca, podemos imaginar
tal processo desembocando, mais cedo ou mais
Vânia também cogitava escrever um livro re- tarde, nos pontos de rua em torno da Central
contando sua vida como trabalhadora sexual nas do Brasil, lugar de prostituição unanimemente
termas do Rio. Seu depoimento é particularmen- indicado por mulheres e clientes, como o mais
te rico, pois nos oferece uma série de informa- barato e perigoso do Rio de Janeiro. Em vez de
ções sobre a lógica econômica da prostituição e seguir carreira adiante, porém, Vânia visava
até de sua configuração como carreira. Formada “recolher suas cartas da mesa” e voltar à sua
com educação universitária e trabalhando numa antiga profissão de corretora, dessa vez finan-
profissão classe média, Vânia inicialmente visa- ceiramente reforçada pelos bens conquistados
va o trabalho sexual freelance na discoteca Help como trabalhadora sexual.
como uma maneira de superar as crises financei- Nem o casamento, nem outros empregos po-
ras periódicas criadas pela natureza economica- dem substituir, necessariamente, a prostituição
mente incerta do ramo imobiliário. Ela largou como meio de ganhar a vida. O caso de Vânia é
a disco e sua carreira como corretora, porém, um caso raro em que uma informante relatou ter
para trabalhar em termas, ganhando menos por deixado um emprego relativamente bem pago
programa mas também lucrando com mais se- para trabalhar no ramo do sexo comercializa-
gurança. Vânia descreve sua saída da Unicórnio do. Todavia, é mister salientar, neste contexto,
como resultado de uma briga com seu chefe, mas que todas as nossas informantes, sem exceção,
é importante salientar que a termas referida é a deixaram outros empregos para a venda dos
mais cara do Rio de Janeiro e emprega somente serviços sexuais (ou, em alguns casos, ainda
mulheres bastante jovens. Neste contexto, é bem combinam a prostituição com outras formas de
provável que os desentendimentos entre nossa trabalho). Sentimo-nos, então, seguras para di-
informante e seu chefe tenham a ver com sua zer que é raro alguém entrar no ramo porque
idade, que era bem avançada para os padrões da não tem acesso a outras formas de trabalho.
Muitas delas com contrato de trabalho, ou- Vale lembrar que Rio e São Paulo são os lu-
tras saíram casadas, muitas delas saem casa- gares mais citados por turistas sexuais anglofa-
das, relativamente envolvidas e vão, não é? lantes autoassumidos nos sites mais populares
E elas aceitam essas propostas porque isso de internet dedicados às viagens internacionais
está aliado à melhoria de vida dessas pes- em busca do sexo, superando em número o to-
soas, à expectativa de futuro, quer seja no tal de relatórios referentes a todas as cidades do
casamento quer seja profissionalmente.9 Nordeste. Neste sentido, um dos objetivos da
pesquisa foi pensar sobre as convergências e as
Este trecho é de quando pesquisávamos o divergências entre as duas maiores cidades do
que o Estado pensava sobre as relações afeti- país e como elas se apresentam para o mercado
vo-sexuais entre mulheres brasileiras e homens sexual internacional no contexto sexscape mais
estrangeiros e fez parte da pesquisa que desen- generalizado do Brasil
volvi na USP, em meu pós-doutorado intitulado Em geral, o apelo ao turismo sexual está
O que a brasileira tem? Estudo sobre “cor” e mais relacionado ao Rio de Janeiro do que a
sexualidade entre mulheres brasileiras e homens São Paulo. Por ser entendido como possuidor
estrangeiros. Tal fala não seria de grande rele- de uma natureza exuberante, praias famosas e
vância se não fosse levado em conta o que sig- vida noturna agitada, o Rio de Janeiro tem pro-
nifica São Paulo em relação ao turismo sexual duzido, no mundo e no Brasil, uma imagem de
internacional, que passo a descrever a seguir. paraíso tropical, particularmente nos aspectos
A cidade de São Paulo, diferentemente das de lazer e das relações sexuais/afetivas, segun-
cidades do Nordeste e o Rio de Janeiro, não tem do Blanchette & Silva (2005). Simplificando,
sido entendida pelo senso comum como região na sexscape global o Rio é visto como destino
que permita a existência de uma cena voltada ao exótico, romântico e sexy, e este “mito” é am-
turismo sexual internacional. Em geral, quando plamente repetido mundo afora, tanto por bra-
se pensa em turismo sexual no Brasil, imaginam- sileiros quanto por estrangeiros12.
se praias, mulatas, a vida tropical exótica e a po- No caso de São Paulo, apesar de ser a maior
breza (Blanchette; Silva, 2010; Piscitelli, 2004). metrópole do país, por contraste, geralmente é as-
Simbolicamente, São Paulo parece contradizer sociada pelo senso comum ao espaço do trabalho
essas imagens, sendo geralmente qualificada por e dos negócios. A pesada indústrialização do esta-
brasileiros e estrangeiros como uma metrópole do de São Paulo ao longo do século XX conferiu
moderna, relativamente rica e – acima de tudo – ao imaginário a noção de uma cidade cinzenta,
não exótica, mas ocidentalizada e europeizada.10 porém, moderna, onde as pessoas correm para
Embora São Paulo simbolize tudo o que seja não perder o primeiro apito da fábrica mais próxi-
moderno no Brasil, por ser brasileira e também ma. Num outro cenário, os estudos da sociologia
internacional, a cidade não escapa de uma es- clássica, conhecida como “Escola de Sociologia
pécie de “cosmopolitismo tropical” que é bas- Paulista”, produziram inúmeros trabalhos sobre
tante explorado pela indústria de turismo. Neste o significado e o processo de indústrialização na
contexto, não é de surpreender que a sexscape11 cidade de São Paulo e suas consequências na vida
de São Paulo apresente semelhanças significa- social paulistana. Tais estudos, de alguma forma,
tivas em relação às outras regiões do Brasil. Ao incrementaram o imaginário da cidade indústriali-
mesmo tempo, a configuração física da cidade zada voltada para o mundo do trabalho.
(massa urbana amorfa e enorme, que carece de Nos últimos anos, porém, o apelo de São
pontos turísticos legíveis para estrangeiros) e Paulo como destino turístico tem sido incen-
sua vocação de destino para o assim chamado tivado, dentro e fora das fronteiras nacionais,
turismo de negócios criam reflexos sui generis através de peças publicitárias que salientam o
na configuração das interações entre sexo co- potencial turístico da cidade. Ao visitar o site
mercial e deslocamentos (inter)nacionais. da Secretaria Estadual de Turismo e Lazer do
Estado de São Paulo,13 nota-se o esforço em negócios que qualquer outra cidade brasileira.
promover a cidade e o estado para além das Consequentemente, é nestes eventos que o nú-
fronteiras dos negócios e do mundo do traba- mero de visitantes estrangeiros e nacionais au-
lho14. No entanto, o carro-chefe de sua propa- menta consideravelmente na cidade.
ganda turística, o turismo de negócios, ainda é o No entanto, a secretária de Direitos Humanos
grande chamariz para visitantes de toda a parte. afirmou que o número de estrangeiros, particular-
Na propaganda oficial o argumento é: mente do “estrangeiro potencialmente aliciador”
à procura, também, de certo tipo de mulher bra-
(...) O estado de São Paulo é o centro sileira (negra e/ou mulata) se concentra na época
financeiro e de negócios do país. Nele do carnaval paulistano, mas, em outro momento
se concentram os principais conglome da entrevista, informou que todo o plantão da se-
rados de serviços e indústrias, de ge- cretaria fica em alerta na época dos ensaios das
ração e oferta de empregos e de mão escolas de samba e durante o período da festa pro-
de obra qualificada. Continua sendo o priamente dito. Quando indaguei sobre as feiras
grande polo das principais oportunida- de negócios que São Paulo abriga durante todo o
des, segmentação de produtos e serviços ano e o número de estrangeiros que estão envol-
e da expansão dos negócios. vidos e se a secretaria tinha algum tipo de política
em relação a isto, a coordenadora me respondeu
Neste contexto, ir a trabalho para São Paulo que, em sua maioria, os estrangeiros são diferen-
significa, para o setor turístico, uma possibilida- tes nestes casos. São raros os casos de “aliciamen-
de de transformar uma atividade que nem sem- to” por parte destes, já que estes são homens de
pre é associada ao lazer em potencial diversão negócios e não estão a passeio, mas no carnaval
(e, consequentemente, aumentar a quantidade “o perfil é outro”, segundo suas próprias palavras.
de dinheiro que o turista deixa na cidade). A Se- Dentro desse contexto, a presunção da Se-
cretaria de Turismo, atenta às possibilidades de cretaria é que o estrangeiro atraído pelo car-
aumentar esse setor, salienta que o viajante de naval é aquele que não está ligado a nenhum
negócios ainda pode desfrutar das outras moda- tipo de compromisso formal na cidade e nem
lidades de vida oferecidas pela cidade, entran- atrelado a alguma corporação e vem ao Brasil,
do nas rotas de turismo histórico, litorâneo, de especificamente desacompanhado, à procura
entretenimento, de aventura, cultural, de saúde, de uma mulher. É possível afirmar, também, a
familiar, esportivo, de compras, gastronômico partir de uma análise mais detalhada do que a
e ecológico. Em conjunto com essa ênfase na responsável por estas políticas coloca, que um
combinação de negócios com turismo – o as- certo tipo de mulher negra e/ou mulata não está
sim chamado turismo de negócios – também é circulando nos eventos de negócios que a cida-
notável que a cidade de São Paulo pareça ga- de de São Paulo sedia (apenas nas escolas de
nhar cada vez mais destaque – tanto internacio- samba) e, portanto, o plantão antitráfico não
nal quanto nacional – como espaço que oferece precisa ser mobilizado nestes momentos indi-
múltiplas opções de lazer sexual. cando então que existe um perfil muito especí-
Após esta breve exposição sobre a tendên- fico de homem estrangeiro e mulher brasileira
cia da imagem da cidade de São Paulo em ter- que o estado paulista está preocupado em ob-
mos turísticos, pode-se afirmar que o foco cen- servar em relação ao tráfico internacional.
tral de sua propaganda, particularmente para Por outro lado, na minha pesquisa fiz um le-
atrair visitantes, não está centrado na época do vantamento para saber em que ocasiões os es-
Carnaval. Um dos marketings é seguramente o trangeiros procuram São Paulo e descobri que a
turismo de negócios. São Paulo, segundo meus grande maioria chega à cidade durante os perío-
levantamentos, concentra o maior numero de dos dos congressos e feiras de negócios à pro-
feiras e congressos relativos ao mundo dos cura “diversões sexuais”. Não encontrei nenhum
relato que explicitasse ser o carnaval o período da cidade e o mais relevante é que um deter-
de maior entrada na cidade paulistana. Este dado minado tipo de par envolvido merece a atenção
é relevante para refletir sobre os símbolos que do Estado (homem estrangeiro sozinho sem ne-
estão sendo operados ao revelar que existe um nhum vínculo institucional formal com o Brasil
perfil de homem estrangeiro e mulher brasilei- e mulher brasileira oriunda das classes popula-
ra que merecem atenção do Estado, particular res negra e/ou mulata).
mente quando se trata da política antitráfico.
Neste sentido, argumento que a Secretaria Políticas de combate ao turismo sexual: pre-
dos Direitos Humanos segue a visão do senso venção ou política “higienista”?
comum na correlação entre sexo, gênero, cor
e classe ao afirmar que as mulheres “negras e Como afirmamos anteriormente, alguns se-
mulatas pobres” são os “produtos de consumo” tores tem, insistentemente, acusado as peças
mais desejáveis no mercado do sexo, e que uma publicitárias da Embratur de formadoras da
suposta superexposição do sexo no Carnaval, exagerada imagem sensual da mulher brasi-
e destas mulheres de biquinis em cartões-pos- leira, além de terem disseminado mundo afo-
tais, é o meio de informação primordial desses ra a certeza de que a permissividade sexual é
estrangeiros sobre as mulheres brasileiras. Ain- aqui praticada, particularmente por aquelas não
da, como a própria coordenadora me informou, brancas. Tais peças foram produzidas entre os
“aceitam essas propostas porque isso está alia- anos 1970/1980 e tinham como principal com-
do à melhoria de vida dessas pessoas, à expec- ponente a divulgação de cenas do carnaval ca-
tativa de futuro, quer seja no casamento, quer rioca em que eram exibidas imagens de mulhe-
seja profissionalmente.” res em trajes sumários e também cenas destas
O que podemos interpretar destas situações de biquínis na praia, além de praias, natureza
é que a brasileira considerada potencialmente e cidades históricas. Esta campanha visava es-
mais vulnerável ao tráfico é advinda das classes timular o turismo internacional para o Brasil e
populares, negra e/ou mulata que, segundo a se- foi veiculada pelas agências de turismo mundo
cretaria, veem sua exposição no carnaval como afora. Alguns setores da sociedade civil, a partir
“uma oportunidade” para aceitar propostas de dos anos 1990 particularmente, com a intensifi-
trabalho ou casamento de homens estrangeiros cação das discussões sobre a questão do tráfico
que chegam desacompanhados, apresentando-se de mulheres e turismo sexual no Brasil passa-
como turistas normais, mas potencialmente ali- ram, então, a apontar estas propagandas como
ciadores, pois estão aqui apenas no período em grandes responsáveis pelo aumento de homens
que, supostamente, estas mulheres aceitariam estrangeiros vindos da Europa e EUA para a
mais facilmente suas propostas do que aquelas prática do turismo sexual e até mesmo tráfico
frequentadoras das feiras e congressos de ne- de mulheres, em situação de maior vulnerabili-
gócios, por exemplo. Neste sentido, a secreta- dade, para prostituição no exterior.
ria opera com uma imagem clássica em que, É importante salientar, de maneira resumi-
o assim entendido par “suspeito”, é um casal da, a necessidade de uma discussão mais ampla
heterocromático e desigual em termos de classe e profunda a respeito das visões estrangeiras
e que, geralmente estas mulheres vêm de con- sobre o Brasil e suas mulheres, para esclarecer
dições precárias em termos de oportunidades se a forma como o turismo sexual e o tráfico
de dinheiro e emprego e enxergam, nos relacio- de mulheres são abordados advêm desses co-
namentos com estes homens a chance de uma merciais. É importante salientar que as imagens
saída para suas vidas. E, por esta razão, elas são gringas sobre o Brasil vão muito além das ima-
mais passíveis de serem enganadas. gens que a Embratur produziu. Em resumo, elas
A partir dessa ótica, o “turismo sexual” é estão relacionadas, em parte, com a história do
entendido como mazela que deve ser “limpa” processo de miscigenação e as teorias do final
do século XIX sobre as hierarquias raciais sur- dança afro, carnaval e uma religiosidade afro
gidas na Europa, e suas apropriações na cons- -brasileira, entendida como exótica e oculta
trução da nação brasileira. pelo olhar euro-americano – todo um arcabou-
Em oito anos de pesquisa em Copacabana e ço cultural, enfim, associado com a celebração
três em São Paulo, não encontramos um turista do corpo, com nossa suposta herança africana,
sequer que tenha citado as propagandas da Em- ou com a noção de práticas exóticas e raras que
bratur como fator que influenciou sua vinda ao são tidas como genuinamente “brasileiras”.
Brasil e nem a visão de que a mulher brasilei- Portanto, é errôneo afirmar que as propa-
ra é mais quente sexualmente porque viu fotos gandas da Embratur, que enfatizaram o corpo
de mulheres de biquínis sumários na praia de brasileiro como atrativo, foram unicamente –
Copacabana. Em geral suas ideias sobre o país ou até primariamente – responsáveis pelo su-
e sua potencialidade “exótica” vêm informa- posto aumento do turismo sexual nas cidades
das de outras fontes construídas, ao longo dos brasileiras (suposição, aliás, afirmada mas nun-
séculos, por viajantes que por aqui passaram, ca quantificada). As razões desta procura se in-
ou pela imagem que o Brasil, ao longo do tem- serem num complexo jogo de fatores que vai
po, tem tentado construir sobre si nos diversos além destas propagandas e possui uma longa
contextos históricos, e apresentada em vários tradição histórica na interação entre brasileiros
filmes e obras de literatura, mundo afora. Um e estrangeiros. No entanto, devemos nos per-
exemplo desta afirmação pode ser constatado guntar como estas imagens foram construídas.
numa fala de nossos entrevistados: “(…) sou- Isto não se resume numa resposta simples em
be do Brasil quando assisti a um documentário que podemos apontar para este ou aquele fator
na National Geographic sobre as praias sel- que propiciou a formação destas imagens, mas
vagens brasileiras. Fiquei encantado e decidi deve nos informar que elas foram construídas
que aquele paraíso, que eu via passar na minha num complexo vínculo de relações entre brasi-
tela: natureza exuberante, vida tranquila e povo leiros e estrangeiros.
igualmente fascinante e exuberante deveria ser A partir dessa ótica, o “turismo sexual” é
desbravado”. entendido como uma mazela social que deve
É interessante notar, neste pequeno trecho ser “limpa” das cidades e o mais relevante é que
da entrevista, que boa parte de nossos interlocu- um determinado tipo de par envolvido merece
tores citam a natureza como uma das primeiras a atenção do Estado no que diz respeito ao con-
imagens que tiveram sobre o Brasil e, em mui- trole e à repressão (homem estrangeiro sozinho
tos casos, associam esta paisagem “exótica” a sem nenhum vínculo institucional formal com
um estilo de vida também “exuberante e exó- o Brasil e mulher brasileira oriunda das clas-
tico” do povo brasileiro. Curiosamente, alguns ses populares negra e/ou mulata). É importante
setores dos movimentos sociais têm cobrado do ressaltar que as políticas de combate ao turismo
Brasil que foque suas propagandas turísticas no sexual e, mesmo, a definição da Organização
potencial da natureza e da cultura como antído- Mundial do Turismo (OMT) não são raciali-
tos ao turismo sexual. No entanto, o que alguns zadas, contudo, quando aplicadas ao contexto
historiadores, como Lilia Schwartz, demons- brasileiro, acabam sendo utilizadas para sanar
tram é que a simbologia da natureza evoca uma questões domésticas. Neste caso, a questão ra-
visão de um paraíso exótico e sexualizado por cial histórica, a relação com estrangeiros e a
si só. E, no registro da cultura, é interessante própria noção do Brasil como nação entram em
notar que o foco – tanto das novas propagan- jogo. Tal visão foi bem explicitada pela a his-
das turísticas supostamente inoculadas contra a toriadora Cristiana Schettni, ao analisar a pros-
promoção do turismo sexual, quanto das falas tituição nas primeiras décadas republicanas no
de nossos entrevistados – evidencia admiração Rio de Janeiro:
para os mesmos fenômenos culturais: capoeira,
(…) A chegada de trabalhadores estran- áreas em que tal comércio existia e todo o seu
geiros e a grande quantidade de trabalha- aparato.
dores negros livres que circulavam pela A ideia da conversão do país à modernidade
cidade eram, aos olhos do jornalista e das implicava num controle dos chamados “inde-
autoridades públicas, parte de um mesmo sejados” na cena urbana do Rio de Janeiro, no
problema – o de controlar uma multidão início do século. Importante, também, na passa-
diversificada que inundava a cidade na- gem acima, é o papel da imprensa na denúncia
quele momento de reorganização das re- e informação dos setores formadores de opinião
lações de trabalho. (…) o qualificativo pública a apoiarem as políticas repressivas do
‘labirinto negro’ foi pertinente para o Rio governo. Podemos afirmar que o atual momen-
de Janeiro ao longo de boa parte do sécu- to é parecido ao que Schettini (2006) descre-
lo XIX, quando a cidade possuía a maior veu: em nome de um projeto de modernização
população escrava urbana das Américas. e da entrada do Brasil no cenário internacional
Como mostrou Sidney Chalhoub, se por como país estratégico vem-se apontando para
um lado a expressão remete ao pânico uma pressão interna no controle dos chamados
permanente que essa concentração urba- grupos “indesejáveis”. Neste sentido, as polí-
na de escravos provocava nas autorida- ticas de combate ao turismo sexual servem a
des públicas, ela também é sugestiva das estes propósitos. Acabam sendo utilizadas para
formas encontradas por essa população resolver problemas internos, como um controle
para ocupar a cidade em suas lutas por de mulheres geralmente não brancas e pobres
liberdade, transformando-a em ‘cidade e homens estrangeiros entendidos como “não
esconderijo’, criando seus próprios ter- normativos”.
ritórios, suas redes de amizade e solida- O mesmo movimento podemos observar em
riedade. […] Ao aplaudir as medidas po- relação aos fechamentos das casas de prostitui-
liciais contra as moradias de prostitutas, ção efetuados pelos governos no Rio de Janeiro
Ferreira da Rosa somava-se a um projeto e São Paulo onde, somente alguns pontos, es-
republicano mais amplo, que procurava tão sendo visados pelo Estado, principalmente
desarticular a memória das lutas e das ex- aqueles que se estabelecem em lugares deca-
periências de solidariedade dos escravos dentes, públicos, ou que se abrigam em venues
e trabalhadores pobres livres nas últimas que são consideradas “irregulares” por estas
décadas da monarquia, numa estratégia cidades e são alvos da constante repressão e,
em que suas habitações coletivas eram al- consequentemente, de seu fechamento, de acor-
vos prioritários. Os novos grupos de tra- do com os levantamentos que fiz ao longo da
balhadores que começavam a criar suas pesquisa.
próprias relações de solidariedade eram É necessário reforçar que o combate ao tu-
incluídospelo jornalista num mesmo re- rismo sexual não está circunscrito a uma cidade
gistro de degeneração, ameaça social e brasileira e esta generalização faz parte de uma
insalubridade (Schettni, 2006, p. 132). tendência de propagandear uma imagem mui-
to comum aos olhos brasileiros e também es-
A longa passagem acima é importante para trangeiros de que existem sujeitos responsáveis
pensarmos sobre alguns aspectos históricos a pelo perigo do “tráfico” nas cidades brasileiras
respeito da prostituição, turismo sexual e o e, que estes, são bastante identificáveis na cena
papel da imprensa e setores políticos. A au- nacional.
tora relata em sua pesquisa que os discursos Com Michel Foucault (2006) e sua teoria
em torno do controle acerca da prostituição sobre o biopoder, podemos pensar o papel his-
estavam imbuídos de um projeto nacional tórico do Estado ao se ver obrigado a produzir
em que era implementada uma “limpeza” das políticas que regulassem uma população que, no
final do século XIX, era vista como potencial- elite e classe média que percebem que determi-
mente degenerável, em função de sua grande nados grupos não devem ter os mesmos direitos
miscigenação e perigosamente afastava-se de e precisam ser vigiados e “disciplinados” pelo
um ideal “branco”, luso-católico. As diversas Estado.
políticas foram pensadas em conjunto com uma Refiro-me à “disciplina” porque, como ou-
série de teorias raciais que, consequentemente, tros autores discutiram em diversos momentos,
foram sendo apropriadas do racismo cientifico o combate ao turismo sexual não tem como ob-
europeu, mas como Schwarz (1996) demons- jetivo principal punir, mas tão somente regular
trou, em O espetáculo das raças, utilizadas de e moralizar sexualmente um determinado tipo
maneira bastante peculiar e específica para re- de casal (homem branco estrangeiro entendido
solver os problemas domésticos nacionais. como forasteiro e mulher negra classe popular)
Dentro deste contexto, é possível afirmar que é entendida, atualmente, como responsável
que os discursos construídos a partir dos movi- pela proliferação dos “vícios” ilegais (como
mentos intelectuais e implementados como po- tráfico de pessoas e outros).
líticas de Estado foram fundamentais na cons- No Brasil, no nível popular, é um termo
tituição de políticas disciplinares e reguladoras acusatório que pode ser aplicado para descrever
do corpo e da sexualidade no Brasil na virada as atividades de qualquer gringo sexualmente
dos séculos XIX-XX, o que produziu formas de ativo e mulheres brasileiras não brancas envol-
controle da população e dos tipos possíveis de vidas. A mídia e as instituições governamentais
cruzamento entre os indivíduos, além de pos- brasileiras, porém, junto com crescente parcela
sibilitar um mapa classificatório e hierárquico das ONGs sustentam que o turismo sexual é si-
dos grupos sociais, legitimando-se a escolha nônimo de abuso sexual de crianças e adoles-
daqueles que escapariam da degeneração e os centes e utiliza esta definição para lançar pro-
que estavam a ela condenados. É bom deixar jetos de intervenção que buscam “higienizar”
claro que, apesar da miscigenação ser vista por determinados ambientes urbanos, removendo
alguns como inevitável já que a população se prostitutas e seus clientes.
misturava, acreditava-se, no caso brasileiro, ser A atual onda de combate ao turismo sexual
possível ao menos controlar e ordenar quais os nas grandes cidades brasileiras têm passado não
tipos permitidos. O par: mulher negra/homem serve para organizar e regular o mercado sexual
branco, neste sentido, fez parte deste imagi- mas, cada vez mais, o transformar em ativida-
nário como ideal da mistura, mas como Laura de ilegal na prática, sendo que prostituição não
Moutinho (2006) apresentou em seu trabalho, é crime pela lei brasileira. De acordo com as
em vários momentos da história, na prática, este práticas efetuadas, se transforma em uma prá-
par foi bastante condenado, particularmente tica ilegal em nome da “proteção” de supostas
quando se interligava a uma determinada classe vítimas. Por outro lado, atrela a prática da pros-
social (no caso das mulheres) e a um tipo de tituição a uma exploração e a deixa distante de
branco (como Giralda Seyferth (1985) demons- ser reconhecida como uma atividade econômi-
trou em diversas ocasiões em seu trabalho sobre ca legítima. E penaliza um determinado grupo
o controle e repressão ao “branco” errado). de mulheres que está em processo de ascensão
A partir do que foi dito, uma das hipóteses a partir dos seus relacionamentos afetivos-se-
que sustento é que a atual política nacional de xuais com homens estrangeiros, colocando-as
combate ao turismo sexual implantada segue, como vitimizadas, potencialmente vulneráveis
em muito, este complexo jogo em que determi- ou dotadas de uma sexualidade lasciva que
nados grupos devem ser “disciplinados”, “or- necessita ser controlada, com objetivo de se
denados” e higienizados no intuito de não pro- produzir uma visão menos nociva do país aos
duzirem uma visão “errada” do Brasil aos olhos olhos estrangeiros. Em nome desta dita “pro-
internacionais e, de certa forma, atender a uma teção” cerceia-se direitos e se retira qualquer
4
Referimo-nos aqui, à visão estereotipada do that their prostitution represents a violation
cafetão (ou cafetina) como indivíduo que of their right to dignity. There is no dignity
possui um “estábulo” de mulheres quase es- in poverty, which denies the person full po-
cravizadas e que se apropria dos frutos do wers of agency. Yet the right to sell one’s la-
trabalho sexual dessas através da violência bor (sexual or otherwise) does not guarantee
física ou através da dependência das mulhe- the restitution of dignity or moral agency”.
res em drogas. Embora tais indivíduos certa- 9
Entrevista realizadoa no início de 2011,
mente existissem no Rio, em mais de cinco com a Secretária de Direitos Humanos em
anos de pesquisa, não encontramos nenhum. São Paulo, coordenadora responsável pelas
5
O salário mínimo no estado do Rio de Janeiro, políticas antitráfico.
em julho de 2009, era R$ 512,67. De acordo 10
Os termos em itálicos representam ou ex-
com o IBGE, a renda mensal média da traba- pressões êmicas, utilizadas por meus entre-
lhadora feminina sem carteira assinada na re- vistados, ou palavras de língua estrangeira.
gião sudeste do Brasil era R$ 334 em 1997. 11
Como mencionado mais acima, este concei-
6
Todos os nomes das nossas informantes fo- to é retirado de Appadurai e segue Brennan,
ram mudados para proteger seu anonimato. que entende a sexscape como o local onde o
7
Quase todos os nomes e endereços específi- fluxo global de transações sexuais e afetivas
cos de pontos de prostituição foram mudados é marcado.
para proteger o anonimato desses lugares. 12
Note-se que esta caracterização não é o úni-
Existem duas exceções a essa regra: a disco- co “mito” que se repete sobre o Rio. Tam-
teca Help e a Vila Mimosa, que são tão bem bém existem mitos referentes ao perigo ur-
conhecidos como lugares de prostituição e bano e à criminalidade, que coexistem com
tão sui generis no mundo do sexo comercial os já referidos.
do Rio de Janeiro que qualquer tentativa de 13
Ver: <http://www.nossoturismopaulista.com.
esconder suas identidades seria malograda. br/>.
8
“Though some of these women and children 14
“Que tenhas teu corpo: uma história social
have been forced into prostitution by a third da prostituição no Rio de Janeiro das pri-
party, it is dull economic compulsion that meiras décadas republicanas.”
drives many of them into sex work, just as
in America (a country with a per capita GDP
of U.S. $21,558), many women and girls Ana Paula da Silva
‘elect’ to prostitute themselves rather than *
Professora visitante de Antropologia do De-
join the 35 percent of the female workfor- partamento de Ciências Sociais (DCS) da
ce earning poverty-level wages. To describe Universidade Federal de Viçosa (UFV).
such individuals as exercising rights of sel-
f-sovereignty seems as spurious as stating
ARTIGO
Resumo: O debate apresentado neste artigo é resultado parcial do que foi desenvolvido na tese de doutoramento da
autora, e pretende fomentar reflexões sobre um paradoxo dos processos de adoção: ao tempo em que resguardam fatores
que asseguram cidadania, pois é um instrumento legítimo de garantia do direito à convivência familiar e comunitária
de crianças e adolescentes cujas famílias foram destituídas de seu poder familiar, também pode violar direitos, como
os atinentes ao exercício da maternagem e dos próprios filhos, pois os afastam da família natural, cujas condições de
cuidado deveriam ser providas pelo poder público.
Palavras-chave: destituição do poder familiar; mulher mãe; adoção; estatuto da criança e do adolescente.
Abstract: The discussion presented in this paper is the partial result of which was developed in the doctoral thesis of
the author, and aims to foster reflections a paradox about the adoption processes: the time factors that protect ensuring
citizenship because it is a legitimate instrument for ensuring the right to family and community life of children and ado-
lescents whose families were deprived of their family power, may also violate rights such as those relating to exercise
and mothering their own children, because away from the family whose natural conditions of care should be provided
by government.
Keywords: dismissal of family power; woman-mother; adoption; statute children and adolescents.
e coerência pelos de ambiguidade, incerteza e Convenção das Nações Unidas pelos Direitos
contradição, mas fundamenta-se na necessida- da Criança. Os novos referenciais legislativos,
de de convivência, interação e trabalho mútuo conforme Rizzini, enfatizam o direito da crian-
entre tais princípios a fim de que o real possa ça em permanecer em um contexto familiar e
ser apreendido. comunitário. Ao poder público cabe a garantia
Com essa leitura, mostra-se a necessária desse direito.
elucidação dos aspectos que configuram o tema Ter garantida sua convivência familiar e
do abandono ou da entrega de um filho para comunitária é, portanto, um direito conquista-
adoção, da institucionalização de crianças, e do recentemente em terras brasileiras. Previs-
do direito à convivência familiar e comunitária. to na Constituição da República Federativa do
Não existe uma relação causal direta, uniforme Brasil de 1988 e no Estatuto da Criança e do
e coerente entre esses temas, pois concorrem, Adolescente, esse direito ganha escopo com a
tal qual Morin (2000) nos alerta, para um fenô- proposta de elaboração do Plano Nacional de
meno complexo. Promoção de Defesa do Direito à Convivência
Familiar e Comunitária (Decreto presidencial
A história para além das manchetes de 19/10/2004, que criou uma comissão in-
tersetorial para sua construção), aprovado em
A violação de direitos da criança e do ado- 2006. A materialização das propostas de ação
lescente é uma prática antiga, mas sua compre- do PNCFC é traduzida, juridicamente, na Lei
ensão como algo que deve ser de responsabili- 12.010/2009. Essa lei trata da defesa da convi-
dade do Estado enfrentar, é bem recente. vência familiar e comunitária, mas não deve ser
O que entendemos por violação de direitos entendida como facilitadora para a adoção de
está amparado num conjunto de diretrizes so- crianças, mas como uma ferramenta importante
ciopolíticas e legais que determinam o que é para a desinstitucionalização delas.
preciso ser feito para que as pessoas, particular- A partir desta nova lei, o Estatuto da Crian-
mente crianças e adolescentes que são sujeitos ça e do Adolescente é alterado em alguns de
em desenvolvimento, tenham sua cidadania ga- seus dispositivos – no que concerne princi-
rantida. Pode-se afirmar que é apenas nos anos palmente à discussão sobre convivência fami-
1990, com a aprovação do Estatuto da Criança e liar - e amplia as estratégias de manutenção
do Adolescente, Lei 8.069/90, que este segmen- de crianças e adolescentes em suas famílias.
to populacional conquista o status de cidadão. O principal objetivo dessa ampliação é im-
Neste contexto, emergem debates e são sis- pedir que crianças e adolescentes tenham nas
tematizadas propostas que materializam a in- instituições de acolhimento uma alternativa
tencionalidade jurídica da proteção integral a naturalizada de cuidado e proteção em substi-
um segmento considerado em pleno desenvol- tuição à família, e acabem por ali permanecer
vimento biopsicossocial, merecedor, portanto tempo superior à superação de um contexto
de atenção prioritária às suas necessidades. emergencial que levou à aplicação desta me-
Os anos 1990 apresentam significativa mu- dida. A medida de acolhimento institucional
dança de paradigma de atendimento à infância (termo substitutivo a abrigamento e assumido
e à adolescência. O Brasil corresponde interna- a partir da Lei 12.010/2009) deve ser aplicada
mente ao debate e às recomendações interna- excepcionalmente e ser provisória, pois o en-
cionais em matéria de proteção infanto-juvenil, tendimento é que o regular desenvolvimento
e se posiciona claramente contrário à institucio- do segmento infanto-juvenil só ocorre quando
nalização (Rizzini, 2007). A autora esclarece há convivência familiar e comunitária, e não
que nos anos 1990 “firma-se uma posição in- com isolamento, privação e segregação.
ternacional claramente oposta à institucionali- Importante destacar que soluções para o en-
zação de crianças”, a partir principalmente da frentamento desse fenômeno são desafiadoras,
já que é preciso identificar o que leva as famílias foram sequer respeitados ou garantidos pelo
a abandonarem, negligenciarem, institucionali- Estado”. Essa autora destaca sua experiência
zarem e “perderem” seus filhos para a adoção. profissional junto às famílias que não tem “con-
Estudos realizados por Fávero (2001) e por dições de suprir o mínimo para sua subsistência
Gueiros (2007), no estado de São Paulo, mos- ou, quiçá, capacidade de enfrentamento para os
tram que as famílias destituídas do poder fami- problemas do cotidiano”.
liar – tanto por imposição da justiça, ou por en- Neste mesmo sentido, Fávero (2001) co-
trega espontânea da criança pela própria família menta sobre a natureza do judiciário, ao qual
– tiveram a situação de pobreza e o não acesso cabe a aplicação da lei e não a execução de
às políticas sociais como motivações diretas ou políticas direcionadas para o enfrentamento da
indiretas para a colocação de seus filhos em fa- questão social. Para a autora a perversidade da
mílias substitutas (adoção). relação reside no fato de que o judiciário é soli-
De acordo com Fávero (2001, p. 28) citado a servir em uma questão que é de ordem
47,03% das crianças entregues ou retiradas de social, não legal, isto é, enfatiza que a situação
suas famílias biológicas e colocadas em ado- está relacionada à questão social e que a solu-
ção tiveram para essa motivação a ausência de ção não deve ser meramente engendrada pela
condições socioeconômicas. A autora destaca, ação jurídica.
porém, que esses motivos foram alegados pelos Como já apontamos, colocar uma criança ou
genitores. Outros motivos para destituição do adolescente em adoção resguarda fatores que
poder familiar, como abandono (31,02%), ne- asseguram seu direito à convivência familiar e
gligência (9,5%) e violência doméstica (5,0%) comunitária, todavia pode também violar outros
apareceram, de acordo também com a pesquisa direitos, como os atinentes ao exercício da ma-
de Fávero, combinados com a falta de recursos ternagem (Chodorow, 1990) de mães pobres. É
econômicos. Dos 201 casos de DPF estudados, preciso nos questionarmos sobre quais as con-
a autora afirma que nenhum se referia a famí- dições que levam mulheres mães a entregarem
lias de classes mais favorecidas, cujo patamar ou abandonarem seus filhos antes de julgá-las.
de condições de vida se encontrava em “níveis A colocação em família substituta através da
médios para cima”. adoção, em certa medida, é também uma forma
Na pesquisa de Gueiros (2007, p. 102) de violação de direitos da criança, pois como
31,3% das famílias que tiveram seus filhos co- destaca Rizzini et al. (2007) afastar a criança
locados em adoção não possuíam qualquer tipo de sua convivência junto à família natural pode
de renda. Ainda, 56,3% dos processos não con- ser ao mesmo tempo proteção e negação de di-
tinham tal informação. A autora supõe assim reitos, pois cabe ao poder público assegurar as
“que a não existência dessa informação pode condições para que as famílias possam cuidar
estar associada à não existência de renda”, o de seus filhos. Para essa autora, “é muito mais
que eleva o percentual de famílias empobreci- fácil apontar as incompetências das famílias do
das nesta realidade a 87,6%. Gueiros, com es- que criticar e acusar o Estado de negligente e
ses dados, reitera o debate sobre a necessidade omisso” (Rizzini et al., 2007, p. 32).
de implementação de “políticas sociais que ofe- Motta (2008) afirma que antes de existirem
reçam, de fato, proteção a essas famílias” (p. crianças abandonadas, existem mães abando-
103). nadas. A autora quer desconstruir, em seu estu-
Alcântara (2010, p. 57) afirma que na sua do, o estigma que mulheres mães carregam ao
realidade de trabalho no Poder Judiciário, den- doarem (entregarem) seus filhos para adoção.
tro de uma Vara da Infância, vê-se o número Ressalta que elas não devem ser consideradas
de “crianças e adolescentes que pertencem às pejorativamente como mães que abandonam,
camadas mais empobrecidas da população e pois elas muitas vezes o fazem por amor, por
advêm de famílias cujos direitos também não ser a única forma de permitirem que seus filhos
e filhas tenham a vida que não puderam ter, se- Janeiro, datada de 21/7/2012, mostra que o ví-
jam cidadãos e cidadãs numa sociedade que lhes cio do crack é responsável por 90% dos pedidos
negou a cidadania. Neste sentido, precisamos de suspensão do poder familiar materno pelo
iluminar uma dimensão ainda pouco explorada, Ministério Público.
aquela que envolve várias mulheres mães que A fragilidade dos vínculos e os desafios
são violentadas com a perda do direito a con- para o enfrentamento da dependência são su-
viverem com seus filhos e filhas, por situações perdimensionados quando o usuário é a mulher
que poderiam ser evitadas se o Estado democrá- mãe, justamente pela cobrança social de amor,
tico de direito fosse efetivamente experimenta- dedicação e proteção integral à prole.
do pelo conjunto de cidadãos brasileiros. Destacamos que a reflexão trazida por
Desta forma, é comum condenarmos moral- Chodorow (1990) sobre maternagem deve elu-
mente as mães que têm seus filhos em acolhi- cidar esse aspecto, posto que ser mãe envol-
mento institucional (abrigos) ou acolhimento ve uma multiplicidade de condições que não
familiar (programa família acolhedora), mas são só a biológica. Ao individualizar o problema
poucos os que conseguem enxergar para além do abandono e a origem do acolhimento es-
desse quadro e identificar que a ausência de tamos moralizando uma questão que é social.
condições de cuidado e proteção aos seus filhos Entender como se dá a negação da cidadania
foi, muitas vezes, provocada pela inexistência dessas mulheres mães, permite reconhecê-las
de possibilidade de exercício de direitos dessas também como vítimas desse sistema, no qual
mães. Contudo, como nos diz Motta (2008, p. as relações humanas são cada vez mais coi-
63) “a falta da maternidade é, frequentemente, sificadas, e não apenas como algozes de seus
encarada como uma falha que envolve a própria filhos e filhas.
identidade da mulher”. A valorização da convivência familiar, por-
O crescente fenômeno da dependência do tanto, deve ser entendida sob a ótica dos dife-
crack é exemplar para essa reflexão, basta aten- rentes atores que a configuram.
tarmos para as crescentes reportagens sobre o
tema. No caso específico de mulheres mães, A destituição do poder familiar
a fissura pelo uso da droga, as crises de absti-
nência nas tentativas de parar com o consumo A avaliação da ocorrência de uma violação
e a existência de um coletivo e de um território dos direitos de uma criança e/ou de um adoles-
próprio para fumar a droga, são apelos facilita- cente não deve desconsiderar o papel omisso ou
dores para sua recaída. A dependência química, frágil do Estado na garantia dos direitos cons-
associada a fatores socioeconômicos e familia- titucionalmente estabelecidos, assim como não
res, retira as condições do exercício da mater- pode reduzir a questão a uma ausência moral ou
nidade de forma responsável e segura, mas isso de incapacidade da família na projeção positiva
não significa que as mulheres mães usuárias de das relações que protejam seus membros.
drogas não tenham o desejo e não tentem ma- De qualquer forma, importante ressaltarmos
ternar seus filhos. que independentemente das motivações para
Na edição do programa Fantástico (TV que as famílias violem os direitos de suas crian-
Globo) de 28/10/2012, várias histórias de mu- ças e adolescentes, existem situações em que a
lheres grávidas e dependentes do crack foram permanência da prole junto à família biológica
apresentadas, assim como o depoimento de um precisa ser interrompida, temporária ou defini-
psiquiatra da Unifesp quanto ao fato de que es- tivamente, o que leva assim à constituição de
sas mulheres “não são mães desnaturadas, mas famílias substitutas.
estão em um nível de sofrimento impensável A convivência familiar como direito funda-
e que não conseguem sair disso”. No mesmo mental exige o estabelecimento de estratégias
sentido, reportagem do jornal O Dia, do Rio de que configurem alternativas à família biológica
quando esta não reúne condições de cuidado e extinção ocorre pela morte dos pais; pela morte
permanência de seus filhos. Através de políti- dos filhos; pela emancipação; pela adoção; pela
cas públicas, ações e medidas extrajudiciais e maioridade; e pela sentença judicial, a partir da
judiciais, esse direito poderá ser assegurado. decretação da perda do poder familiar.
Assim, problematizar o significado da des- O artigo 22 do ECA determina o dever
tituição do poder familiar – ação que extingue dos pais de sustentar os filhos, exercer a guar-
juridicamente a relação de direitos e deveres e da, promover educação e a obrigatoriedade de
a convivência familiar entre pais e filhos – é cumprir determinações judiciais. O desrespeito
portanto, exigência para todo o profissional que a essas determinações implica, pois, a avaliação
trabalha na área. judicial acerca da suspensão e perda do poder
Destituir o poder familiar de uma mãe (e de familiar.
um pai) rompe, legalmente, com a filiação pa- Essa avaliação é assessorada pelo trabalho
rental de pais e filhos, o que está previsto no desenvolvido pelas equipes interprofissionais
Código Civil Brasileiro e no Estatuto da Crian- dos Juizados da Infância, assim como é defi-
ça e do Adolescente (Lei 8.069/90). Tal medida, nida a partir dos relatórios e pareceres desen-
após transitada em julgado, é irreversível, por volvidos pelas equipes interprofissionais das
isso deve ser fundada em elementos e aspectos instituições de atendimento que executam as
que não estejam reduzidos a juízos de valor e medidas protetivas, aplicadas pelo Juiz. Em
indignação ou a uma lógica punitiva da família. ambos os lugares as equipes são compostas por
Conforme o Código Civil (artigo 1.638), a assistentes sociais e psicólogos, mas não há res-
perda do poder familiar ocorre quando os pais trição de inclusão de outros profissionais.
aplicam castigo imoderado aos filhos; quan- Importante destacar que a Constituição de
do o abandonam; praticam atos contrários à Federal do Brasil de 1988 (artigo 226, § 5º e
moral e aos bons costumes; incidem, reitera- artigo 229) e o Código Civil (artigo 1.631) es-
damente, no abuso de sua autoridade; faltam tabelecem igualdade de pai e mãe em relação
aos deveres a eles inerentes. Já a suspensão do ao poder familiar dos filhos. Isto é, ambos têm
poder familiar ocorre como descrito no artigo o dever de cuidado da prole e respondem igual-
1.637 do Código Civil, qual seja, nas situações mente no caso de sua não correspondência. Daí
em que os pais abusam da autoridade parental; a alteração da nomenclatura pátrio poder para
faltam com os deveres a eles inerentes; arruí- poder familiar. Informamos que o poder fami-
nam os bens dos filhos, forem condenados por liar só atinge os filhos menores (0 a 18 anos),
sentença irrecorrível cuja sentença exceda a ou não emancipados, havidos ou não do casa-
dois anos de prisão. mento, desde que reconhecidos, bem como os
Conforme Ferreira (2010) a diferença entre filhos adotivos.
perda e suspensão é que a primeira é irreversí-
vel, já a segunda pode ser retomada. Isto é, a Por quê mulheres mães pobres?
suspensão do poder familiar sempre implicará
em decisão judicial, mas não é definitiva, pois Refletimos sobre a destituição do poder fa-
os pais retomarão o poder familiar caso assim miliar de mulheres mães pobres porque a gran-
seja avaliada a possibilidade. Já a perda do po- de maioria das ações de DPF ocorre no nome
der familiar é decretada em situações avaliadas da genitora e pelo fato do genitor não constar
como mais graves, daí o termo destituição do no registro de nascimento de grande parte das
poder familiar, que gera em definitivo a ruptura crianças que passaram pela medida de acolhi-
da relação filial. mento institucional ou familiar.
Temos ainda um outro efeito legal que in- Conforme pesquisa realizada por Santa Bár-
cide sobre o poder familiar, a sua extinção. bara (2012) na Vara da Infância da Juventude
Conforme o artigo 1.635 do Código Civil, a e do Idoso da Comarca da Capital do Rio de
Janeiro, dos 142 casos de adoções ocorridos A discussão sobre relações de gênero ganha
naquela VIJI, no ano de 2010, em 100 deles a escopo nesse debate, pois, conforme Almeida
família natural aparecia como monoparental fe- (2007) é uma categoria de análise histórica e re-
minina, isto é, a criança, oficialmente, só con- lacional. A autora afirma que apesar de não se
tinha a figura da mãe no seu registro de nasci- constituir como um campo específico de estudos
mento, o que necessariamente leva à ação de
DPF ocorrer apenas no nome da genitora. potencializa a apreensão da comple
Santa Bárbara (2012) com essa mesma xidade das relações sociais, em nível
amostra de pesquisa indicou que 72% dessas mais abstrato – portanto, é uma catego-
mulheres mães vivem ou já viveram nas ruas e ria analítica. Na medida em que as rela-
48% delas têm experiência declarada de institu- ções de gênero apresentam-se como um
cionalização. Em alguns casos, as crianças ado- dos fundamentos da organização da vida
tadas chegam a ser a terceira ou quarta geração social – ao longo da história, vêm sendo
de “população de rua” da família. estruturados lugares sociais sexuados, a
A autora, com esses números, sugere que partir da dicotomia público x privado,
são as mulheres as mais vulneráveis a não reu- produção x reprodução, político x pes-
nirem as condições de cuidado e sustento da soal e, em última análise, vêm sendo es-
prole e situa a destituição do poder familiar no truturadas as desigualdades sociais – são
debate sobre “feminização da pobreza”. também uma categoria histórica (Almei-
A categoria “feminização da pobreza” ganha da, 2007, p. 26).
legitimidade analítica ao se constatar “um pro-
cesso de elevação do índice absoluto ou relativo Assim, torna-se central para o entendimen-
de mulheres ou mulheres chefes de famílias que to das relações familiares e imprescindível para
vivem em condição de pobreza” (Ipea, 2005). as reflexões sobre o lugar ocupado (tradicio-
A feminização da pobreza “é um conceito que nalmente) pelas mulheres no âmbito familiar.
demonstra que ao longo do tempo as mulheres Como uma forma de leitura das relações so-
empobrecem mais que os homens” (Ibid.). ciais, as relações de gênero devem ser entendi-
Dadas as dificuldades que uma mulher pobre das como expressão de relações de poder na, e
enfrenta para criar seus filhos, a tendência pode para a, organização da vida social.
ser a de, conforme Sarti (2008, p. 32), “lançar Como nos expõe Saffioti (1991), gênero é a
mão de soluções temporárias a fim de contornar representação de uma relação social, distribuin-
a situação”. Dentre elas, podemos elencar as em do os indivíduos pelas posições sociocultural-
que a genitora deixa os filhos com o pai, nos ca- mente significativas, que converge para emer-
sos em que o casal não permanece junto; as de gência de um conjunto de representações que
permanência dos filhos com os avós (paternos atribuem significados aos membros de uma so-
ou maternos), ampliando-se a possibilidade para ciedade. O gênero envolve práticas sociais onde
toda rede de família extensa; a colocação das se incluem símbolos, representações, normas e
crianças em instituições de acolhimento, até que valores sociais que as sociedades constroem a
possam reunir condições de tê-las de volta; a en- partir da diferença sexual e que geram um sis-
trega ou abandono dos filhos nos hospitais, con- tema de poder.
selhos tutelares, com terceiros, nas ruas ou nas Para Scott (1990, p. 14) gênero pode ser defi-
próprias instituições de acolhimento. Soluções nido como “um elemento constitutivo das relações
temporárias podem, porém, se tornar soluções sociais fundadas sobre as diferenças percebidas
imperativas e definitivas, como nos casos em entre os sexos, o gênero é um modo primordial de
que ocorre a destituição do poder familiar da dar significado às relações de poder”.
mãe para que os filhos possam ter assegurados A mulher, principalmente em sua existên-
o direito à convivência familiar e comunitária. cia como mãe, simbolicamente é elevada à
condição de ícone da instituição familiar. Mes- Ainda recai sobre as mães o tradicional pa-
mo com tantos rearranjos e mudanças, a socie- pel do cuidado e proteção, e na falta de condi-
dade ainda mantém ideais preestabelecidos em ções de exercerem esse papel, são responsabili-
relação às mulheres e, sem dúvida, o principal zadas e suas dificuldades descontextualizadas e
deles é o da maternidade. Quanto a isso, Ba- deslocadas de um debate macrossocial.
dinter (1985, p. 9) afirma que a dificuldade em A este desafio soma-se a tendência atual em
se questionar o amor materno – logo, a conti- deslocarmos o debate sobre políticas sociais à
nuidade em exigi-lo como incondicional e a matricialidade da família. A necessária atenção
tendência de desqualificar as mulheres que não a esta instituição é revestida de um discurso
o respeitam dessa forma – acontece justamente não compartamentalizador das relações entre os
porque permanece em nosso inconsciente cole- sujeitos de direitos que a configuram, mas, ao
tivo a identificação da mãe com Maria, “símbo- mesmo tempo, desconsidera suas particularida-
lo indefectível do amor oblativo”. des, pois a família é permeada por contradições
Mesmo que na sociedade contemporânea de classe, gênero, cor e idade, por exemplo.
os papéis de homens e mulheres sejam redi- A imposição do papel materno, com confi-
mensionados, à mulher ainda recai a necessi- gurações preestabelecidas sobre o que é cuida-
dade de se dividir entre a responsabilidade de do, amor, proteção etc., é uma forma de poder
cuidadora e, em muitos casos, de provedora. (simbólico) que tanto se apresenta no discurso
É importante pensar que mesmo nas famílias de defesa do direito materno, como também se
em que a mulher aparece como principal pro- mostra nas estratégias discursivas de desquali-
vedora, estas somam responsabilidades, o que ficação da maternidade daquelas mulheres que,
lhes promove a continuidade da opressão em por razões diversas, não correspondem ao pa-
novos moldes. Mesmo que o homem seja cha- pel dito como sendo de sua responsabilidade.
mado cada vez mais a participar do universo Temos assim um Estado que parece consentir
doméstico e familiar, antes entendido como com a negação do direito à convivência fami-
sendo apenas da mulher, a ele ainda cabe um liar entre mães e filhos, quando, na realidade, o
certo “perdão cultural” por não estar presente Estado deveria garantir esse direito.
na vida do filho. No Brasil, apesar de uma concepção de ci-
Ao localizar a impossibilidade de cuidados dadania plena e de valores democráticos arrai-
dos filhos na esfera privada, como incapacidade gados constitucionalmente, tal texto não possui
da família, estamos reiterando a lógica da pato- aplicabilidade, ou seja, seu significado civil,
logização de fenômenos sociais, já que se reduz social e político não são materializados nas re-
problemas de ordem pública à esfera do indivi- lações humanas vividas cotidianamente. Temos
dual e nega-se que os sujeitos são constituídos a manutenção de um Estado como representan-
e constituintes por relações sociais (Morgado, te dos interesses burgueses, e uma concepção
2005). de políticas sociais como estratégia do capital.
Identificar e compreender tais questões nos A Constituição Federal do Brasil de 1988 apre-
leva à desnaturalização das relações sociais, senta um sistema de proteção social inspirado
pois auxilia na ruptura dos determinismos bio- no Welfare State e ancorado nos conceitos de
lógicos, fomenta a crítica às relações hierárqui- seguridade e cidadania social. É apresentado no
cas socialmente construídas, além de proble- Título VIII, intitulado: Da Ordem Social, arti-
matizar como as diferenças são transformadas gos 193 a 232.
em desigualdades. Temos que ter o cuidado na Para fins de nossa análise, abarcamos os Ca-
dissociação entre micro e macroestruturas, pois pítulos II, artigos 182 e 183 e o Capítulo III,
é assim que possibilitamos a dicotomização e Da Política Agrícola e Fundiária e Da Reforma
hierarquização dos fenômenos e o ocultamento Agrária, artigos 184 a 191, contidos no Título
das estruturas que o originam (Morgado, 2005). VII, por entendermos que o direito à moradia
e à terra devem fazer parte da preocupação do divergentes que acometem a organização so-
sistema de proteção social. cial, política e econômica brasileira.
Entendemos que proteção social é um sis- Desta feita, os anos 1990 no Brasil foram
tema que abrange um conjunto de ações pro- vividos na contradição de um Estado demo-
motoras de direitos que visam a garantia do crático de direito, concebido legal e constitu-
bem-estar coletivo e da justiça social, em cionalmente, com uma política neoliberal de
conformidade com o artigo 193 da Constitui- desmonte e minimização do Estado iniciada
ção, que define a ordem social. No campo dos internacionalmente nos anos 1970, apesar de,
direitos sociais, estes estão arrolados no que em âmbito nacional, vermos sua influência nos
foi denominado “tripé” da seguridade social anos 1990.
(artigo 194 da Constituição Federal) formado Para Iamamoto (1998, p. 36) as “repercus-
pela Saúde, Previdência Social e Assistência sões da proposta neoliberal no campo das polí-
Social. ticas sociais são nítidas, tornando-se cada vez
Esse modelo de proteção social inova ao mais focalizadas, mais descentralizadas, mais
sugerir maior responsabilidade pública na sua privatizadas”. Continua a autora dizendo que
regulação, além de ampliar os direitos sociais, a redução do Estado “incide sobre a esfera da
buscar maior igualdade social via políticas do prestação de serviços sociais públicos que ma-
Estado e propor a universalidade do acesso. To- terializam direitos sociais do cidadão, de inte-
davia, Behring e Boschetti (2008) inferem que a resse da coletividade”.
concepção de proteção social que inspirou nos- Caracteriza-se assim um distanciamento do
sa Constituição chegou enfraquecida no Brasil. Estado das ações de garantia do sistema de pro-
Foram quatro décadas de atraso na tentativa de teção social, cujas políticas sociais devem en-
organização de um sistema de proteção social, tão ser acessadas via mercado. Como resultado
nas bases de um Estado de bem-estar, em re- desse afastamento, temos a degradação dos ser-
lação aos países de economia mais avançada. viços públicos e cortes nos gastos sociais.
Ademais, sua organização se deu num contexto
no qual outra configuração do capitalismo in- Moral da história
ternacional ganha escopo, regido pelas ideias
teóricas do neoliberalismo. Ainda temos uma frágil rede de serviços
As ideias neoliberais amplamente difun- que não garante um sistema efetivo de proteção
didas tiveram como primazia a destruição das social às crianças, adolescentes e às suas famí-
estruturas do Welfare State nos países que o ex- lias, o que faz com que seus direitos continuem
perimentaram, e decorre desse desmonte o pa- sendo violados. As ações engendradas com vis-
radoxo vivido pelo Estado brasileiro na década tas à garantia de direitos incidem sobre as famí-
de 1990 entre os campos social e econômico. lias pobres, normatizadas historicamente pela
Daí falarmos de uma inspiração welfariana for- perspectiva do controle social e moral desse
talecida no texto constitucional, mas enfraque- segmento populacional, e não redimensionam,
cida nas estruturas que deveriam garanti-la. de fato, suas condições de vida e exercício de
O produto desta contradição no Brasil gera cidadania.
uma forma de “cidadania de papel”, como pro- Isso afeta a relação e a convivência familiar
blematiza Dimenstein (2005) sobre os desafios de várias crianças e adolescentes, precisando
de implementação do Estatuto da Criança e do a Justiça lançar mão de alternativas protetivas
Adolescente. Ou seja, uma cidadania formal que deveriam ser acionadas como último re-
(por escrito, letrada e oficializada), cuja essên- curso. Um paradoxo, pois ao buscar respeitar
cia teórica promoveria a garantia dos direitos as diretrizes legais que estabelecem o direito
constitucionalmente estabelecidos, mas frá- da criança em crescer no seio de uma família,
gil, pois engessada nos limites dos interesses o poder judiciário precisa retirar a criança do
convívio com sua família natural para incluí-la configuram o não acesso dos sujeitos aos recur-
numa outra, constituída por filiação jurídica, sos socialmente produzidos, assim como, im-
pois o aparato sócio-assistencial não dá conta pedem sua constituição e vivência identitária,
de garantir as necessidades mínimas e viabili- de acordo com seus valores culturais e simbó-
zar a proteção por parte da família biológica. licos. Isso gera preconceito, perseguição, dis-
Até mesmo por não ser tal responsabilidade criminação, desigualdades, além de impedir a
exclusiva da assistência social, o que destaca a mobilidade social, o exercício da cidadania e a
necessidade de se articular as políticas setoriais, valorização de suas potencialidades enquanto
como saúde, educação, habitação. sujeitos. Portanto, a cidadania deveria ser cons-
A nova concepção que ilumina a Política truída e exercida a partir de um conjunto de di-
Nacional de Assistência Social (2004) prevê reitos que envolvem educação, saúde, trabalho,
a instituição familiar como matriz das ações, lazer, assistência social, previdência social etc.,
de acordo com o artigo 226 da Constituição aos quais os acessos garantem condições de
Federal do Brasil, que declara que a “família, vida ao sujeito.
base da sociedade, tem especial proteção do Obviamente, em muitos casos, a adoção
Estado”. A centralidade na família demonstra a aparece como alternativa a ser seguida para a
preocupação em superar a focalização e a seg- garantia dos direito da criança ou do adolescen-
mentação das ações, em prol de uma política de te. Existem mulheres que não desejam ou não
cunho universalista. Temos assim uma política sustentam o exercício da maternagem, e ao se
de assistência social que entende a importância sentirem obrigadas a corresponder a um papel
da articulação com as demais políticas de pro- socialmente imposto, acabam por violar os di-
teção social, tanto as que compõem o tripé da reitos de seus filhos com práticas que determi-
seguridade social – saúde e previdência – como nam a negligência, a violência, o abandono e
qualquer outra política que prime pela garantia a exploração deles. Todavia, neste momento
de direitos. Entretanto, na prática, ainda per- queremos destacar os casos em que há o desejo
cebemos dificuldades de materialização dessa de maternar, mas não existem as condições para
proposta. isso.
O quadro de vulnerabilidade social vivido Santa Bárbara (2012) pondera que crianças
pelas mulheres mães pobres é recorrente nos que têm referências paterna e materna possuem
casos em que o afastamento da prole ocorreu. maior possibilidade de retornarem ao convívio
A PNAS (2004) define que os sujeitos em familiar do que crianças que têm apenas a refe-
vulnerabilidade social são aqueles que apresen- rência materna. Isso ocorre principalmente pelo
tam fragilidade ou perda de vínculos de afeti- fato de, assim, se ampliar a rede familiar e as
vidade, pertencimento e sociabilidade. São os figuras parentais, que podem tanto dar suporte
que vivenciam desvantagem pessoal em decor- aos genitores no cuidado com a criança, quanto
rência de deficiência, sofrem com as múltiplas a própria família extensa pode assumir a guarda
formas de violência, fazem uso de substâncias da mesma. Em sua pesquisa, a autora destaca
psicoativas e são estigmatizados em termos ét- que dos 142 casos de adoções, a figura mater-
nico, cultural e sexual. São aqueles excluídos na aparecia apenas em 100 deles, nos casos de
pela pobreza e do acesso às políticas públicas, reinserções familiares, num total de 244, em
com inserção precária ou sem inserção no mer- 2010; em 135 deles as crianças e adolescentes
cado formal ou informal de trabalho, além da- que retornaram para a convivência da família
queles que vivenciam estratégias alternativas natural ou extensa, têm uma composição de fa-
de sobrevivência que podem representar risco mília com a figura do pai e da mãe.
pessoal e social. Assim, acreditamos que com a organização
Entendemos que vulnerabilidade social de políticas sociais públicas eficazes e voltadas
compreende assim um conjunto de fatores que a uma ação preventiva, muitos casos de adoção
poderiam não ocorrer. Questionamos o fato des- escalonados, desrespeitados; depois como
sas ações garantirem um direito se sobrepondo mães, por terem negado o direito a conviverem
à negação de tantos outros, sem atingir, portan- com seus filhos. Não desconsideramos que,
to, as determinações desse quadro. muitas vezes, essa negação torna-se necessária,
Sobre isso, Mészarós (2004) nos alerta para mas precisamos do máximo de cuidado em não
a inversão das causas em efeitos da questão so- padronizar ações, homogeneizar avaliações,
cial, e indica o quanto nesse sistema capitalista julgar comportamentos e descontextualizar as
apenas mudanças marginais e pequenas são va- histórias.
lidadas, de forma a “acomodar” os problemas. A pesquisa de Santa Bárbara (2012) vai ao
A colocação em família substituta, na modali- encontro dos estudos de Fávero (2001), Gueiros
dade adoção das crianças, aparece assim como (2007) e Motta (2008), que mostram trajetórias
um direito de cidadania paliativo, pois encobre, de abandono, negação da cidadania e invisibi
sob o discurso da convivência familiar, as de- lidade das questões e demandas das famílias cuja
terminações do afastamento da criança de sua prole é afastada de sua convivência. A origem,
família natural (biológica). portanto, da ruptura da relação mães e filhos é
anterior à violação de direitos da crianças.
Considerações finais Autoras como Fávero (2001) e Rizzini
(2000 e 2007) demonstram que houve momen-
As mães que tem seus filhos adotados são, tos na história de atendimento à infância que o
conforme Santa Bárbara, abandono da prole não tinha um recorte de clas-
se tal qual na contemporaneidade. Muitas mães,
(...) mulheres miseráveis, com experiên- sobretudo viúvas e solteiras, poderiam abando-
cia de vida nas ruas e em abrigos, usuá- nar os filhos por dificuldades de subsistência,
rias crônicas de drogas lícitas ou ilícitas, mas havia envolto nesse ato questões referente
muitas com algum tipo de problema men- à honra, à moral, à herança. Para Fávero (2001)
tal, normalmente com vínculos de família no Brasil, no entanto, tem persistido a entrega
esgarçados ou perdidos, portanto sem o ou abandono de crianças por parte das famílias
apoio de familiares, e sem a presença do pobres, o que evidencia sua relação com a ques-
genitor de seus filhos (2012, p. 7). tão social e a condição de classe social.
Gueiros (2007) também nos alerta para a si-
Precisamos defender a adoção como direito tuação de vulnerabilidade social das mulheres
e ter o cuidado de não instrumentalizá-la como mães que consentem na adoção de seus filhos.
política social, isto é, a adoção não deve ser o Uma vulnerabilidade que a autora não define
instituto ao qual o Estado recorre para mini- apenas como de ordem econômica, mas, em
mizar o índice de crianças em instituições sob certa medida, afetiva e emocional. Por isso,
o discurso da garantia de direitos e da incapa para autora, na apreensão do conteúdo e da di-
cidade das famílias. O fato da garantia do di- nâmica das adoções consentidas, deve-se con-
reito da criança e do adolescente à convivência siderar o contexto socioeconômico, cultural e
familiar e comunitária ser prioridade, não en- familiar das mães ou pais que tiveram essa ex-
volve desconsiderar que, em muitos casos, as periência, o que, a nosso ver, é necessário para
mulheres mães que perdem ou entregam seus entendermos qualquer forma de motivação para
filhos para adoção ficam “esquecidas”. E que a decisão pela adoção. A autora analisa que, nos
como cidadãs, sujeitos, portanto, de deveres e casos em que mães e pais entregam os filhos
direitos, requerem também atenção do Estado. para adoção, o descrédito em conseguirem re-
Mulheres mães destituídas do poder fami- definir as possibilidades de cuidado e mante-
liar são duplamente violentadas. Primeiro como rem os filhos junto a si é o que motiva o con-
cidadãs, por terem seus direitos fragilizados, sentimento da adoção. A perspectiva é de que,
com terceiros, eles terão maior possibilidade de É preciso identificar, entender e enfrentar as
inserção e convivência social, e sendo famílias causas e motivações para aplicação da medida
conhecidas, de alguma maneira, a inter-relação protetiva de colocação em família substituta à
entre eles se mantém. infância filha da pobreza de suas mães. Assim,
Da mesma forma, valiosa é a contribuição talvez, direitos não sejam tão explicitamente
de Motta (2008) ao refletir sobre a decisão das escalonados, e possamos diminuir o número
mães em entregarem seus filhos aos cuidados de crianças que, antes mesmo de nascerem, é
de outros. Os efeitos dessa decisão envolvem como se já estivessem condenadas a serem se-
tanto a fragilização emocional da mulher, como paradas de sua mães.
o estigma que passam a carregar como “mães
que abandonam”, pois a associação mulher x Referências bibliográficas
maternidade ainda permanece como natural, o
que reitera o “mito do amor materno”. A auto- ALMEIDA, S. S. Violência de gênero e polí-
ra mostra, ainda, a tendência à compartimenta- ticas públicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
lização dessas mães, devido a uma visão que 2007
faz dessas mulheres sujeitos constituídos por BADINTER. E. Um amor conquistado: o mito
demandas específicas – falta de condições fi- do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fron-
nanceiras, família e atendimento médico, e em teira, 1985.
momentos diferentes – o parto, a entrega, a as- BEHRING, E. R. e BOSCHETTI, I. Política
sinatura de papéis (Motta, 2008, p. 261). Social: fundamentos e história. In: Biblioteca
Já Santa Bárbara (2012) afirma que é pos- básica de Serviço Social; v. 2. São Paulo: Cor-
sível caracterizar a violência por parte do Es- tez, 2008.
tado contra mulheres mães pobres, quando, em
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Ja-
situações que as colocam no limite entre a não
neiro: Bertrand Brasil, 1999.
cidadania e a indigência, retiram de sua convi-
vência os filhos e filhas. BRASIL. Lei 8.069 de 1990, Estatuto da Crian-
Essa autora, a partir do debate sobre o poder ça e do Adolescente. Brasília, 1990.
simbólico, definido por Bourdieu (1999, p. 8) ______. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
como um “poder invisível o qual só pode ser Código Civil. Brasília, 2002.
exercido com a cumplicidade daqueles que não ______. Constituição Federal do Brasil. Brasí-
querem saber que lhe estão sujeitos ou mes- lia, 1988.
mo que o exercem”, infere que a imposição do ______. Lei Ordinária n. 12.010, Nova Lei de
papel materno, com configurações preestabe- Adoção. Brasília, 2009.
lecidas sobre o que é cuidado, amor, proteção
______. Política Nacional de Assistência So-
etc., é uma forma de poder (simbólico). Este se
cial. Brasília: Ministério do Desenvolvimento
apresenta no discurso de defesa do direito ma-
Social e Combate à Fome. Brasília, 2004.
terno, como também se mostra nas estratégias
discursivas de desqualificação da maternidade ______. Plano Nacional de Promoção, Proteção
daquelas mulheres que, por razões diversas, e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes
não correspondem ao papel tido como sendo à Convivência Familiar e Comunitária. Secreta-
de sua responsabilidade, o que expressa, con- ria Especial de Direitos Humanos da Presidên-
forme Bourdieu (1999), os instrumentos de do- cia da República. Brasília, 2006.
minação e naturalização da ordem dominante. CHODOROW, N. Psicanálise da maternidade:
Temos assim um Estado que parece consentir uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de
com a negação do direito à convivência fami- Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990.
liar entre mães e filhos, quando, na realidade, o
Estado deveria garantir esse direito.
ARTIGO
Resumo: Este artigo analisa as dimensões sociais e sexuais relacionadas ao envelhecimento de homens homossexuais
com mais de sessenta anos, de camadas médias e moradores na cidade do Rio de Janeiro. Busca-se alinhavar, a partir
das narrativas dos entrevistados, as reflexões relativas às rupturas, construções e desconstruções que marcam as repre-
sentações simbólicas entre juventude, velhice e o estilo de vida gay. Está em questão a análise sobre a representação
simbólica do corpo envelhecido e as maneiras de se ver e de se perceber no espaço social.
Abstract: This article analyzes the social and sexual dimensions related to the aging of gay men older than sixty years
old, from medium class inhabitants of Rio de Janeiro. The aim is to plot, from the interviewees’ narratives, the reflec-
tions related to the disruptions, constructions and deconstructions which mark the symbolic representations among
youth, old age and gay lifestyle. It is about the analysis on the symbolic representation of the aged body and the new
ways of seeing and noticing oneself in the social space.
certos campos, representa um bem simbólico construção do estilo de vida gay e tecidas algu-
distintivo e imprime estilos de vida caracte- mas considerações finais.
rísticos de um agente. Neste sentido, o corpo
do indivíduo se comunica com a sociedade, O corpo e as imagens de si
com o meio ao seu redor, e expressa o quanto
a sociabilidade inclui relações que envolvem, A partir das narrativas dos entrevistados,
além de critérios de etnicidade, classe e ideo- observa-se que o mito da eterna juventude
logia política, a performance corporal (Gol- exerce influência sobre a percepção da velhi-
denberg, 2010). ce. Essa influência encontra-se mais presente
Esta reflexão sobre o corpo está sendo na vida daqueles que valorizam o status legado
analisada a partir da ótica de Pierre Bourdieu ao corpo na sociedade, no qual o valor da boa
(2008), que o percebe como resultado de um forma física e a manutenção da aparência jovial
habitus, ou seja, um processo de interiorização estão atrelados tanto ao atrativo sexual, quanto
social que dá acesso ao mundo e que emerge aos excessos de bem-estar da saúde, emagreci-
através da linguagem e da interação do indiví- mentos e tudo o mais que possibilite retardar o
duo no espaço social. No corpo se inscrevem avanço do corpo no curso da vida, que eviden-
as marcas da vida e, quando ele envelhece, cia a aparência velha como rugas, obesidade,
expõe aquilo que será compreendido como cabelos brancos, dentes em queda.
mazelas representadas pela idade avançada. A perspectiva de velhice é complexa e mu-
Mas não apenas as modificações corporais são tável por não se dar por inteiro, por chegar pri-
indícios do envelhecimento. Não se trata de meiro pelos olhos dos outros, mesmo para aque-
um acontecimento meramente mecânico, pois les que investem na aparência com o intuito de
cada indivíduo carrega consigo a imagem da não se distanciar do ideal de juventude (Motta,
sociedade em que vive. Evidencia-se que, para 2007). Assim, a imagem do “coroa”3 (um ho-
todo indivíduo, o envelhecimento é processo mem maduro de “boa aparência”) surge na fala
em curso e nele se evidenciam as marcas das de alguns entrevistados como um momento de
distinções e toda uma lógica de poderes, os passagem do corpo jovem para o amadurecido,
quais acionam hierarquias em que se subscre- que guarda seus atrativos, ao mesmo tempo que
vem simbolicamente as ideias de juventude e representa, no imaginário social, um tipo de in-
velhice. divíduo que, mesmo com aparência de mais ve-
O corpo informa todo um conjunto de cos- lho, ainda é atraente e sensual. Está em questão
tumes, tradições, crenças, ou seja, a cultura e um corpo que envelhece e, consequentemente,
sua variação histórica. É nele que se imprime toda uma nova ordem existencial à qual alguns
a lógica do estigma, o objeto potencial de cate- tentam resistir com plásticas, medicamentos e
gorização, classificação e conteúdo, revelador academias. Há evidente luta contra o modelo
daquilo que é valorizado, que se tem e que se ideológico de velhice representado pela feiúra,
é. Deste modo, o corpo gordo, flácido, defi- demência, falta de projetos e fim da vida.
ciente ou velho representa, para cada socieda- Neste sentido, a ideia de “coroa” imprime
de em particular, aspectos que foram salienta- sentido simbólico, apresentando-se como uma
dos pelos entrevistados em suas narrativas e categoria, ao mesmo tempo classificatória e
que focalizam o sentimento de envelhecer. qualitativa. A imagem projetada sobre a catego-
Nas linhas que seguem serão abordadas, no ria “coroa” é a do distanciamento do que repre-
primeiro momento, as questões trazidas pelos senta ser velho, cuja percepção o confina a uma
entrevistados sobre o próprio corpo, os olhares identidade social carregada de estigma. Assim,
sobre si mesmo no contexto dos seus projetos o que representa “coroa” coloca o indivíduo em
de vida; posteriormente, será considerado o en- uma zona intermediária onde o sujeito se per-
velhecimento do corpo relacionando-o com a cebe e pode ser percebido como mais próximo
do universo jovem. Trata-se de uma tomada de na rua. O mundo é opressor com relação
posição subjetivamente estética que constitui, ao velho, a não ser o mundo oriental, que
entre outras tantas, oportunidade de experimen- respeita o velho, mas eu não me compor-
tar ou afirmar o poder que o indivíduo velho to como velho. Eu já estou caminhando
não tem. Ademais, ser “coroa” entra nesse jogo para ser um “coroa”, veja minha idade!
das recusas de se perceber envelhecendo, uma Por isso eu faço academia, quero viver
estratégia que visa impor o sujeito dentro de de- até virar pó! Eu mesmo não gosto de ve-
terminadas disposições fundamentais, ou seja, lho (Eduardo, 60 anos).
de estilo de vida mais ativo, dinâmico e produ-
tivo (Simões, 2004; Alves, 2006). A estética corporal, seja pelo físico ou pela
Segundo Julio Simões (2004), o sentido indumentária, tornou-se um capital simbólico
dado ao “coroa” traz à tona o aspecto de uma em nossa sociedade. A aparência de juventude
juventude prolongada ao mesmo tempo em que expressa status e implica em ganhos na hierar-
se aceita a existência de vantagens trazidas pela quia social. Não se trata apenas de ser jovem,
maturidade. Explicita-se aí um permanente cui- ou seja, não basta ter pouca idade, é preciso
dado para manter os padrões de beleza corporal parecer como tal, estar imerso numa aura de
valorizados pela sociedade, com o objetivo de jovialidade, frescor, alegria e dentro da moda.
continuar sendo objeto de desejo e atenção. Se- Assim, o avançar do curso da vida aciona a
gundo esse autor, ao associar envelhecimento preocupação com a aparência e esta passa a
e velhice, sexualidade e homossexualidade, as ser manipulada como uma maneira de não evi-
variações daquilo que representa ser uma “tia denciar o que representa envelhecer, concebida
velha”, deprimida e solitária, em contraposi- nesta sociedade com alta carga negativa. A ten-
ção ao “coroa” bem-disposto, bem-humorado tativa é manter-se com uma aparência que pos-
e bem-acompanhado são delineadas. Entre os sibilite ganhos sociais e, para isso, é preciso não
entrevistados, Eduardo se destaca pela impor- se distanciar do que representa simbolicamente
tância concedida à aparência física e à saúde, a juventude e ser jovem. A perspectiva do corpo
ressaltando: envelhecendo remete a uma arena que vai além
das referências biológicas, como mencionado
Tenho muita preocupação com o corpo. anteriormente. Trata-se de encarar as mudanças
Faço musculação três vezes por semana. individuais consideradas pouco satisfatórias em
Eu estou com uma médica agora, uma nossa sociedade que considera a velhice como a
endocrinologista e tenho uma caixa de re- demarcação imediata de algo a ser brevemente
médio antienvelhecimento. É hormônio e descartável.
outros para secar gordura da barriga. Eu A pesquisa realizada evidenciou o quanto
já fiz botox na testa. Sempre fui vaido- o envelhecer torna-se um problema a ser miti-
so e a idade tem influência. Mas quem gado por novos fármacos e por toda a sorte de
gosta de coroa gosta de mim. Bom, mais fitness que venha driblar a aparência física e sua
ou menos, porque quem gosta de coroa associação com o amadurecimento. A proble-
gosta de barriga e eu não tenho [risos]. É mática da associação beleza/corpo/juventude
claro que eu tenho amigos descuidadíssi- revelou crises principalmente para aqueles cujo
mos, que saem à rua sem fazer a barba, corpo é estruturante do capital simbólico valo-
saem com roupa meio velha e até furada. rizado no universo da sociabilidade. Assim, a
Eu estou cansado de dizer: meu amigo, a noção mesma de identidade social passa a estar
gente já é velho, agora velho mal arruma- referida a um corpo que necessita ser constan-
do parece mendigo. Jovem mal arrumado temente reconfigurado para a manutenção de
é moda, mas velho não! [risos] Então, eu novas relações sociossexuais. Descrevendo seu
me cuido. Jamais eu sairia mal arrumado corpo, Álvares relatou que:
melhor aceitação social. Ao expressar a separa- maduro. Mas nunca tive dificuldades em
ção entre corpo e mente, os entrevistados bus- ter contato com pessoas para transar, eu
cam algo positivo para a velhice, procurando sempre dei sorte. Então, eu não era uma
valorizar seus projetos e conhecimentos adqui- pessoa feia e isso me fez não me preo-
ridos. cupar com isso (...). Já pensei em fazer
A afirmativa “velhice é um estado de espí- plástica na barriga e no rosto. Eu até fico
rito”, também, corrobora com a dificuldade em surpreso, pois uso muito creme, até as
aceitar o ser humano no seu todo, que enve- pessoas que não me veem há três anos
lhece sem dualidades e divisórias ou comparti- dizem: o que foi que você fez? Fez plás-
mentos, ou seja, diante do corpo com aparência tica? O que vocês faz pra ficar tão jo-
velha tem-se a mente nutrida pela experiência, vem?. E eu fico feliz, porque isso satis-
vitalidade e jovialidade (Blessmann, 2004). E faz o meu ego. Continuo usando os meus
segundo nos relata Ricardo, o envelhecer é um cremes, mas acho que se eu perdesse a
processo que vai sendo sentido a partir de certas barriga ia ficar o máximo (...). Não sou
faltas calcadas pela fragilidade do corpo. feliz com a idade, pois queria ser bem
mais jovem. Eu acho que isso é comum
Tenho muita preocupação com o corpo. entre os gays, pois sofrem com o amadu-
E eu faço pilates justamente pra me man- recimento. De uma certa forma me sinto
ter em forma, porque as pessoas veem o deprimido por ter um corpo mais velho,
físico, o corpo. Agora eu me acho boni- queria que olhassem para mim como se
tinho e que não fui muito diferente das fosse um jovem (Francisco, 72 anos).
pessoas que estão ao meu redor. A gente
vai envelhecendo e vai sentindo falta de Alguns atores acentuam que a sociabilida-
uma série de coisas como beleza, agili- de e as relações gays valorizam o corpo e está
dade, falta uma série de coisas que são nele todo o potencial de atratividade para se
próprias da juventude (Ricardo, 60). ter novos parceiros e, quando esse corpo não
corresponde mais a essa expectativa, é como se
O corpo se apresenta como um território de nada mais restasse. Mas tal aspecto não é ex-
alteridade que ressalta um conjunto de marcas clusivo do indivíduo gay velho pois, mesmo ao
impressas promovidas pelo outro que parece apresentar certas peculiaridades no âmbito do
mediar sua satisfação e autoimagem Deixar de estigma, está envolto, como muitos indivíduos,
sentir-se atraente significa a perda do poder que nos valores e conflitos impostos pela “ditadura
o corpo exerce, principalmente para aqueles do corpo esbelto”.
que supervalorizam o desempenho sexual. Nes-
te caso, a homossociabilidade se expressa qua- O corpo envelhecendo no contexto da cons-
se que exclusivamente pela via da erotização trução do estilo de vida gay
das relações, o que exige performance corporal
para se sentir atraente em determinado circuito Evidencia-se, a partir das narrativas, toda
gay. Francisco, por exemplo, relatou que tem uma violência simbólica ligada ao desempe-
preocupação com o corpo, mas que é muito pre- nho corporal, a autovigilância e a otimização
guiçoso e assinala: da aparência física, como se tudo levasse ao
cumprimento de modos de apresentar-se a si
acho que se eu fosse numa academia mesmo e aos demais. Esse modelo impõe que
me sentiria melhor. Eu acho que o físico o indivíduo se exponha com independência,
para o gay é muito importante. Mais ou responsabilidade, confiabilidade, autoestima e
menos há dez anos atrás deixei de me felicidade, ou seja, com todo o aparato impe-
sentir atraente. Já me sentia um homem rativo de sucesso em relação aos outros. Estar
fora desse contexto é estar fadado à reprovação calcada no aspecto simbólico da estética jovem
ou a sentir-se “deprimido por ter um corpo mais e sua relação com os significados da idade. Fer-
velho e querer que me olhassem como se fosse nando, por exemplo, declarou gostar de seu cor-
um jovem” (Francisco, 72 anos). po, mas que
Segundo Norbert Elias (1993), o corpo
acompanha o processo civilizador e, portanto, Às vezes penso em fazer plástica para
deve possuir boa aparência segundo os valores melhorar o visual estético, o medo é que
de mercado de sua época; trata-se de manter sua a gente vê tantas barbaridades por aí que
trajetória visível no âmbito de uma concepção eu fico até meio receoso. Agora eu uso
coletiva baseada na autodisciplina e na interio- os medicamentos normais, comprimidos
rização das normas vigentes a fim de ser aceito. às vezes, dor de cabeça eu não tenho há
Neste contexto, as representações modernas do muito tempo, mas uma gripe, alguma
corpo estão associadas à máquina, ao caráter coisa que venha, colesterol, tenho que
utilitário, funcional, dócil, manipulado e hábil tomar meu comprimido para colesterol
para o trabalho. Mas o contexto da maturidade para cortar gordura, mas detesto remé-
implica analisar a compreensão de que o cor- dios. Nunca pisei numa academia, meu
po representa uma importante questão de cons- exercício é caminhar, adoro andar. Claro
ciência e adaptação em prol do bem-estar. Már- que agora ando meio preguiçoso e não
cio deixou claro que tem noção das mudanças tenho feito aquilo que normalmente gos-
ao longo da vida ao afirmar que: to de fazer, que é caminhar, não faço re-
gime, como de tudo. (...) Tenho muitas
Quando você tem cinco anos, você pen- preocupações com meu corpo, acho que
sa uma coisa na vida, aos vinte você todos nós devemos zelar pelo nosso cor-
pensa de outro jeito, aos trinta, aos qua- po [risos], mas só que a idade não per-
renta e assim vai. Então, as coisas vão mite, a idade vai chegando, vai deixando
mudando e a vida é muito sábia, porque você flácido, às vezes a barriga começa
se você olhar para o seu passado, você a despontar, mas eu não tenho mais esse
não faz as mesmas coisas que você fa- tipo de vaidade não, eu acho que a gente
zia quando tinha dez anos, você queria tem que viver feliz da maneira que a na-
jogar bola, correr que nem um maluco, tureza propõe (Fernando, 65 anos).
porque você tinha uma energia no cor-
po fora do comum. Hoje em dia eu já Gostar de si mesmo, conhecer os limites
não tenho aquela energia que eu tinha. E do corpo, se exercitar e ter uma boa alimenta-
você vai mudando, a vida vai te levando ção são comportamentos constitutivos de uma
por caminhos que você vai descobrindo aprendizagem e que influem como uma tomada
novos prazeres na vida, novas coisas tão de um estilo de vida no qual os entrevistados
boas que quando você é jovem você vê vão absorvendo e racionalizando sua experiên-
outra coisa na vida e o que manda é a cia. O atual processo de envelhecer lhes ofer-
cabeça. Velhice é um estado de espíri- ta todo um sistema de ação e observação dos
to! É tão bom hoje você ir num teatro, processos corporais, cuja consciência e atenção
ver um bom musical, uma boa peça, sair reflexiva levam o indivíduo à constante obser-
para jantar. E tem coisa mais maravilho- vância sobre si (Giddens, 2002).
sa do que sentar e jantar num restaurante
de rodízio japonês? (Márcio, 65 anos). Eu faço academia três vezes por semana.
Preferiria que meu corpo fosse melhor,
Cada indivíduo produz e reproduz a ima- por exemplo, eu me acho um pouco bar-
gem corporal de si mesmo, cuja referência está rigudo, mas não deixo de tomar a minha
cerveja. O meu médico não me proibiu, presente de maneira mais realista, sem artifí-
porque é um prazer que eu tenho. Cla- cios, o que possibilita perceber e aceitar o corpo
ro que não bebo até cair, mas bebo uma mais adaptado às circunstâncias. As formas do
ou duas latinhas todos os dias. Não tem corpo no envelhecimento podem ser algo insig-
nada que me impossibilite não. Acho que nificante para alguns sujeitos que aprenderam a
hoje, com a idade, sou mais acomodado. não valorizar o que se impõe como estética, mas
Gosto de ficar em casa vendo televisão, a forma “natural” corporal adquirida ao longo
gosto de teatro. Tenho uma alimentação da trajetória. Neste sentido, alguns atores não se
regrada na medida do possível, de vez submetem ao que se expressa como adaptação
em quando eu piso na jaca, mas como corporal para a obtenção de qualidade de vida.
muito legume, como muita salada, dia- Para estes, o importante é ter a alegria de comer
riamente. Então, tem uma coisa assim: o que quiser e gozar da felicidade a partir do
gosto muito de me bronzear e tem uma que o paladar oferta. O estilo de vida desse in-
moça lá na academia, que é nutricionis- divíduo, que abomina a academia de ginástica,
ta, que me perguntou “como você tem expõe outros valores ligados à experiência de
uma cor tão bonita?” Como diariamente vida e a um novo sentido da ideia de ser jovial.
cenoura crua e ralada, brócolis, tomate, Isso implica reconhecer que o estilo de vida ca-
uvas passas pretas (Roberto, 78 anos). racterizado como sedentário é uma possibilida-
de. Para estes, a felicidade é percebida somente
Os sujeitos pesquisados expressam os va- como expressão da total ausência de sofrimento
lores incorporados em suas trajetórias que dão e desprazer vivido em uma academia e ampla-
sentido às suas disposições de camadas médias, mente ofertado por muitas guloseimas, massa e
estão situados em um segmento que lhes possi- batata frita. Mas isso não significa a inexistên-
bilita gozar de mais oportunidades, que inclui, cia de tensão social e crise existencial.
também, o capital econômico para o que se pro-
jeta em termos do viver com qualidade de vida Eu sou sedentário, não gosto de malhar,
na velhice. José, por exemplo, relatou que fez não gosto de andar. Minha doutora sem-
ginástica por dois anos seguidos para manter o pre diz: ‘você tem que andar!’ Eu ando
corpo, todo dia, eu vou ao jornaleiro, à padaria,
mas esse negócio de malhar para ema-
(...) mas parei por outras circunstâncias, grecer, não! [risos] Sou preguiçoso para
minha mãe não andou bem, foi operada, essas coisas. Agora eu nunca tive essa
e parei com tudo, mas pretendo voltar pança aqui não, sempre fui magrinho. É
agora por questão de saúde e não estéti- de natureza que eu era magro, mas com
ca, entendeu? Até porque eu sempre fui a idade você vai engordando mesmo.
magro, eu nunca engordei, tenho uma Eu me vejo lindo e maravilhoso, eu me
forma horrorosa, às vezes me olho no amo. Se eu não me amar quem é que vai
espelho e me acho medonho. Mas fiz me amar? Mas controlo a alimentação?
uma pequena plástica tirei uma bolsa Como muito doce, massa, batata frita,
nos olhos. Eu acho que fisicamente es- coca-cola [risos]. Uma coisa eu gostaria
tou envelhecendo bem, acho que estou de saber: Por que as coisas gostosas são
dentro do meu padrão para os meus ses- proibidas? Doce faz mal, mas não tem
senta e três anos, não posso esperar mais coisa mais gostosa do que doce (Ma-
do que isso (José, 63 anos). noel, 65 anos).
impõe o não reconhecimento de sua identidade. meu ex-cunhado mudaria a idade dele,
No âmbito de suas trajetórias construídas longe que é 66, para 20, e depois ter mais três
da família de origem, e tendo por base sua auto- casamentos [risos], e isso não tem nada
nomia e individualismo, o resultado disso, hoje, de homossexualidade. Mas a juventude
são preocupações voltadas para a necessidade é uma coisa lindíssima, mas eu estou
de cuidados, como ressalta José: satisfeito com a minha vida assim. Por
que você quer ser jovem? O que adianta
Não acho difícil envelhecer, nem me você querer fazer as coisas e o corpo não
incomodo com a minha aparência e a te acompanhar, não corresponder? Mas
minha idade, eu jamais escondi a mi- eu me esforço muito e tem muita gente
nha idade. Quando conheço uma pessoa mais nova que não consegue fazer o que
mais jovem e rola o papo de idade eu faço (Luis, 68 anos).
falo logo a verdade, o que me incomoda
em envelhecer é aquele meu medo que Importa ver, a partir das narrativas, que esse
eu te falei, de ter problema de saúde por corpo velho não se restringiu ao estereótipo re-
conta da minha pressão [hipertensão], lacionado à fraqueza, à doença e à degeneração
entendeu? Meu pai foi uma pessoa que frente ao tempo. Esse aspecto corrobora com a
morreu muito cedo, meu avô morreu necessidade de se realizar novas reflexões sobre
com quarenta anos, tudo com os mes- a velhice masculina que estejam além daquela
mos problemas que eu tenho, é evidente comumente associada à doença, invalidez ou
que hoje está muito mais avançado com capacidade de trabalho funcional. Entretanto,
a medicina, mas tenho certo receio da se, por um lado, os ideais de estética são assu-
morte, justamente disso, me acontecer midos a partir do paradigma do bem-estar físico
alguma coisa, de ficar só, sem ajuda, um e da beleza a altos custos, por outro, incorpora-
gay velho já viu né? (José, 63 anos). ram novas possibilidades de aceitação da dife-
rença e percepção de estilo de vida no âmbito
Para estes sujeitos, o corpo restringe as pos- da velhice.
sibilidades. De um lado, incorpora os valores A dramaticidade a respeito do corpo que
relacionados às limitações no processo de saúde perde a atratividade no jogo da conquista de
e doença e, de outro, instala uma das maneiras novos parceiros, para os indivíduos que man-
de se ver e se perceber no espaço social no qual têm sua sociabilidade direcionada para a busca
se perde atratividade; aspecto valorizado no por experiência sexual, explicita crises existen-
âmbito de sua sociabilidade no curso da vida. ciais. Alguns dos entrevistados percebem-se
Mas a tentativa de não se distanciar do ideal de sendo rejeitados e associam tal aspecto ao fato
juventude leva alguns atores a se submeterem à de serem gays e velhos. A falta de prestígio em
ginástica, ao uso de medicamentos hormonais, detrimento dos valores da estética jovem e do
cremes e, eventualmente, a plástica. Contudo, prazer erótico como definidores de identida-
estão atentos aos exageros e efeitos colaterais. de social resulta no retorno ao recinto do lar,
O significado ideológico do poder de consumo, ao mundo privado, como se voltassem para o
da procura por atratividade sexual e do enfren- “armário”. Mesmo que tais questões não sejam
tamento da representação da idade implicam uma particularidade do gay na velhice, nele se
em adaptações possíveis de cada estilo de vida. acentua, pois contra o sofrimento que pode ad-
Tal aspecto, segundo Luis, não é uma caracte- vir da rejeição no espaço coletivo, a defesa mais
rística exclusiva do gay: imediata é o isolamento voluntário. Há indícios
de que se mantêm distantes das outras pessoas
Mas não é uma questão do homossexual e buscam pela felicidade na quietude. O que
[desejar ser sempre jovem], porque o informam é que uma das maneiras de atuarem
contra esse mundo externo que tanto segrega, é para as relações sexuais humanas. Isso expres-
afastar-se dele. sa o quanto o discurso e as práticas sociais re-
As mudanças que transformaram o curso da fletem o poder da representação do que é ser
vida parecem não oferecer às atuais gerações homem, o que, para os homossexuais, espelha
reflexão política acerca da aceitação da velhice crises por ter que enfrentar a norma heteros-
no âmbito da homossociabilidade. Para os en- sexual como um princípio. Esse contexto da
trevistados, há crises na gestão da experiência construção do gênero masculino, que se gene-
de envelhecer, pois o corpo não possibilita mais ralizou nos afetos e nas percepções individuais,
ser acionado como capital no mercado das in- influenciou seus estilos de vida. Como homens,
terações sociossexuais gays implicando, assim, o enfrentamento e a transgressão a esta lógica
numa carência afetiva, como nos relatos de heterossexista levou-os a apostar na autonomia,
Luis e Márcio: nas práticas sexuais fugazes, na individualida-
de e a manterem suas experiências afetivas de
O homossexual com idade avançada modo clandestino, longe do recinto familiar.
tem mais carência afetiva do que o hete- A intimidade sexual na velhice evidencia
rossexual, muito mais carência afetiva. novos roteiros, mas não se “pendura as chu-
Se ele não souber lidar com isso, entra teiras”, como afirma um dos entrevistados, a
numa depressão total, como você encon- despeito das limitações que o envelhecimento
tra um monte de gente alcoólatra, men- físico impõe ao exercício sexual. Raphael (68
tirosa, pessoas que inventam coisas que anos) chega a indagar: “em que hora começa a
não são a realidade da vida. Isso jamais morte de um homem? Quando ele começa a ter
eu vou querer pra mim, nem que acon- falhas nas ereções, porque a identidade dele é
teça com os meus amigos, mas eu vejo essa”. Apreende-se deste reducionismo o quan-
que acontece (Luis, 68 anos). to o envelhecimento remete a novas situações
corporais nas quais os entrevistados tanto apos-
Eu acho que a vida é muito ingrata com tam a fim de manterem seus desejos e práticas
o ser humano, porque você não consegue homossexuais. De todo modo, a busca por afeto
chegar à sua terceira geração, é muito di- e a valorização da amizade entram neste jogo
fícil, você não consegue. O ser humano com maior evidência e, mesmo diante da fragi-
devia viver mais e viver bem, porque vi- lidade da saúde e da exigência de novas perfor-
ver doente não vale à pena e, para o gay, mances corporais, o que eles informam é que
ser doente é pior (Márcio, 65 anos). a sexualidade ainda se manifesta e revela rein-
venções relacionais.
As narrativas explicitam, também, o quan- Para estes homens, a velhice não trouxe a
to o movimento de aceitação de si esteve per- desistência de projetos e parece guardar para
meado por medo e vergonha, pois, quando não si o tempo perdido por não terem se assumi-
se sentem mais atraentes pelo crivo da idade, do como gays há mais tempo e gozar da pos-
há um deslocamento de estilo para adequar-se sibilidade de amar outro homem sem ter que
melhor às exigências decorrentes da aparência se esconder. Alguns entrevistados ressentem-
madura. se justamente dessa falta de suporte comuni-
tário e político para vivenciar sua sexualidade
Algumas considerações finais em outros domínios além do privado. José (63
anos) é taxativo ao afirmar que, se pudesse vol-
Os entrevistados foram fortemente sociali- tar no tempo, botaria a boca no megafone, ia
zados a partir de mecanismos que naturalizam assumir-se, viver os desejos mais abertamente,
a sexualidade tornando-a um princípio biológi- reforçando a percepção de que o segredo e a in-
co, e a heterossexualidade o único modo aceito visibilidade da experiência homossexual impõe
maneiras de expressar a opressão sentida no que envelhece. Mas o que é próprio do gay que
espaço público vividas por esta geração que, envelhece? Novas dominações são sentidas e
hoje, percebe-se mais aberta às possibilidades expressadas pela linguagem que reabre para se-
de aceitação do estilo de vida gay. Mas o que gregações equacionadas no espaço social pela
traz de tão importante essa necessidade de reve- idade madura. Esse outro de que fala Beauvoir
lar-se, essa recusa em resistir ao confinamento também confere o sentido de decadência e de-
sexual, esse sufocamento pela ocultação quase sengajamento social em razão da condição gay.
permanente do desejo homossexual por parte O olhar dos sujeitos desta pesquisa sobre o
dos entrevistados? De fato, esta geração com- espaço social revela as contradições para goza-
plexificou esse paradigma do “sair do armário”. rem das lições aprendidas ao longo da vida. O
Mas que “armário”? Para estes indivíduos nem envelhecimento, para esses homens, explicita o
havia esse sentido de “sair do armário” como quanto são violentas as segregações distintivas
metáfora para se esconder a homossexualidade, representadas pelo crivo da idade e pela norma
pois, como lembra Marco (69 anos), “naquela heterocêntrica das relações sociais, que invia-
época não se usava isso de se assumir, mas eu bilizam o reconhecimento social da diferença.
não sou tão ingênuo de imaginar que as pessoas
não soubessem”. Neste contexto, também afir- Referências bibliográficas
ma Raphael (68 anos): “nunca entrei no armá-
rio, nunca saí do armário, não converso sobre ALVES, A. M. Mulheres, corpo e performan-
isso, essa é a primeira vez”. ce: a construção de novos sentidos para o enve-
Estes indivíduos se defrontam com a falta lhecimento entre mulheres de camadas médias
desta autonomia, acarretada pelo corpo que en- urbanas. In.: BARROS, M. L. (org.). Família e
velhece. Mas, segundo suas narrativas, a velhi- geração. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.
ce não lhes ofertou nenhum álibi para se tor- BEAUVOIR, S.. A velhice. Rio de Janeiro:
narem vítimas complacentes desse corpo mais Nova Fronteira, 1990.
frágil. Diante da doença, tomam medidas, não
BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do
recusam as exigências prescindíveis para o en-
julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre:
fretamento de certa enfermidade e manutenção
Zouk, 2008.
da boa aparência e qualidade de viver. Todavia,
no rol de suas dificuldades, são práticos ao ex- ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Ja-
plicitarem suas fantasias sexuais e acionarem neiro: Jorge Zahar, 1993. 2 v.
os serviços de garotos de programa, com quem _______. O senso prático. Petrópolis: Vozes,
mantêm relações esporádicas para os momen- 2009.
tos de prazer sem os compromissos de ter que GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio
assumir a regularidade sexual, como indivíduos de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
casados. E, assim, vão mantendo a autonomia GOLDENBERG, M. O corpo como capital:
como podem; situação que tanto prezaram ao gênero, sexualidade e moda na cultural brasi-
longo de suas trajetórias. leira. São Paulo: Estação das Letras e Cores,
Estes homens não se percebem velhos, não 2010.
aceitam a velhice como se fosse um fim dos
MOTTA, A. B. Chegando pra idade. In: BAR-
projetos de vida e, neste sentido, para muitos,
ROS, M. L. (org.) Velhice ou terceira idade?
a alusão à idade é um insulto por identificá-los
Estudos antropológicos sobre identidade, me-
como idosos, pois “uma vez que em nós é o ou-
mória e política. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.
tro que é velho, que a revelação de nossa idade
venha dos outros, não consentimos nisso com SIMÕES, J. A. Homossexualidade masculina
boa vontade” (Beauvoir, 1990, p. 353). Portan- e curso da vida: pensando idades e identida-
to, não se trata de uma questão explícita do gay des sexuais. In: PSICITELLI, A. et al. (org.).
ARTIGO
Resumo: O presente texto trata dos discursos sobre a estética feminina e masculina veiculada pelas revistas Nova e
Men´s Health, e é oriundo da pesquisa intitulada “Sexualidade em discursos: um estudo sobre revistas femininas e
masculinas”. A construção dos dados foi realizada a partir da abordagem qualitativa e sua análise pautada nos critérios
da Análise de Discurso (AD). O corpus é formado pelas capas dos magazines de Nova e Men’s Health, no período de
janeiro de 2007 a janeiro de 2008. Os resultados indicam que a estética difundida pelas revistas é similar, uma vez que
as representações são de corpo magro, sem gorduras e jovem, definido por dietas de emagrecimento, exercícios, cosmé-
ticos e recursos tecnológicos. Contudo, os sentidos dos discursos apresentam particularidades, sendo as terminologias
utilizadas distintas, devido, sobremodo, ao recorte de gênero. Enquanto em Nova beleza é palavra de ordem, em Men´s
Health saúde é tomada como referência para se atingir a estética masculina almejada.
Abstract: The resume analyzes the female and male aesthetic discourses conveyed by the magazines Nova and Men’s
Health. Its came from the research called ‘Sexuality in Discourses: a study about female and male magazines’. The data
were built in a qualitative approach and it was analyzed based on Discourse Analysis Method (DAM). The cover pages
from the magazines Nova and Men’s Health compound the corpus, in the period from 2007 January to 2008 January.
The outcomes show that the aesthetics spread by the magazines are similar, once the representations are slim body, no
fat and young. Diets, exercises, cosmetics and technological resources define it. However, the meanings of the discou-
rses are particular, the terminologies used are distinct, due the gender approach. While in ‘Nova’ beauty is the order
word, in ‘Men’s Health’ health is taken as reference to aim the male aesthetic desired.
discorre com precisão sobre a tendência de das pessoas, por outro, não há uma relação de
busca incessante da tecnociência moderna de causalidade direta, unilateral, entre efeitos e
romper a barreira conferida pela temporalida- objetivos de quem comunica, e entre efeitos e
de humana. As novidades tecnológicas da in- conteúdo da mensagem. O público faz parte do
dústria de cosméticos foram promovidas nas processo comunicativo, ainda que na condição
páginas de Claudia e Mulher dia a dia, e seu de espectador que confere audiência a deter-
consumo enaltecido, subliminarmente, como minadas programações dos meios e, assim, se
possibilidade da autonomia corporal feminina. converte em participante. Dificilmente ele in-
A estética feminina compôs os discursos sobre corpora o que não gera para si um processo de
sexualidade e gênero e foi apresentada como identificação, o que não o mobiliza ou o que
estratégia de conquista e prazer às leitoras. não faz parte de suas necessidades e realidade.
Tais resultados geraram questionamentos Cuche (1999) observa que não há uma mas-
sobre a estética em revistas femininas com sa homogênea de indivíduos, porque estes re-
perfis distintos do pesquisado, e, sobremanei- cebem as mesmas mensagens dos veículos de
ra, em revistas masculinas. Ou seja, sendo a comunicação. As pessoas consomem a progra-
estética elemento basilar para a identidade fe- mação reinterpretando as mensagens segundo
minina (Lipovetsk, 2000), como a estética mas- suas próprias lógicas culturais, pois não são
culina é veiculada em magazines masculinos? consumidores passivos. O estudo de Mattelart
Quais os discursos associados a essa estética? (1999) sobre novelas, ancorado no media stu-
As exigências são diferentes para o público fe- dies feministas, demonstra como o planejamen-
minino e masculino? Os discursos das revistas to dos programas dos meios de comunicação é
promovem uma estética corporal segundo uma construído considerando as expectativas e as
abordagem de gênero? Essas foram algumas rotinas cotidianas dos espectadores. Segundo o
das questões que impulsionaram a pesquisa fi- autor, o consumidor se torna tanto objeto como
nalizada em 2011, intitulada “Sexualidade em sujeito de pesquisas voltadas para identificar
discursos: um estudo sobre revistas femininas estilos de vida, uma vez que elas visam a anali-
e masculinas”, e que nortearam o texto em tela, sar os movimentos, as necessidades e os dese-
evidenciando os sentidos presentes nos discur- jos dos consumidores.
sos sobre a estética feminina e masculina em As revistas, como uma mídia escrita, alcan-
Nova e Men´s Health. çam uma grande parcela da população e per-
Nesse escopo, ao tratar os discursos das re- mitem ampla capacidade de registro nos indi-
vistas sobre estética a linguagem ganha centra- víduos que as consomem. Para Sarti e Moraes
lidade como prática social. Ela organiza a vida (1980), esse tipo de publicação chega a ser lida
em sociedade e é responsável por oferecer sen- por um número de pessoas cinco vezes maior
tido ao mais simples movimento do cotidiano, do que aquele que as compra. Diferentemente
permitindo que as pessoas compartilhem sig- do rádio e da televisão, os magazines veiculam
nificados comuns sobre a realidade. Nota-se suas mensagens em páginas impressas acessa-
a influência da comunicação no cotidiano das das em diversos locais, no momento que seus
pessoas, alterando subjetividades e relações consumidores desejarem.
humanas (Martín‑Barbero, 2003; Thompson, As revistas popularizam produtos de massa,
1998). Igualmente, compreende‑se que essa in- apresentam um cardápio variado de assuntos,
fluência não é absoluta e que seus efeitos de- tratados em inúmeras seções, e se propõem a
pendem de inúmeros fatores, alguns já identi- atualizar os leitores sobre temas variados, prove-
ficados teoricamente e outros, improváveis de nientes de fontes diversificadas. Em função des-
serem previstos. sa natureza, outra característica é a necessidade
Afirma‑se, com isso, que se por um lado há de integrar ao corpo editorial especialistas das
influências dos meios de comunicação na vida áreas das ciências sociais, humanas e de saúde,
visando a complementar o trabalho do profissio- prática discursiva. Sua atenção não se centra na
nal de comunicação. A conjunção de técnicos e comprovação de questões falsas ou verdadei-
de saberes imprime nas reportagens a sensação ras, pois a lógica é expor as perspectivas e os
de reconstruir aspectos da realidade, e institui o processos pelos quais os fatos podem ser vistos,
veredicto do ‘conhecimento científico’. uma vez que os discursos desenham um campo
Logo, as revistas são também formuladoras de efeitos de sentidos, e não apenas um efeito
de mensagens e símbolos instituidores de so- específico.
cialidade (Swain, 2001), bem como difundem O corpus do trabalho compreendeu as capas
representações do feminino e masculino. Em de Nova e Men’s Health publicadas no perío-
função deste potencial, a Plataforma de Ação da do de janeiro de 2007 a janeiro de 2008, tota-
Conferência Mundial sobre a Mulher (CMM, lizando 26 edições. Segundo Caldas‑Coulthard
1995) alerta para a necessidade da promoção de (2005) e Buitoni (1986), as capas se comportam
uma imagem feminina equilibrada e não este- como a embalagem da revista, disponibilizan-
reotipada nos meios de comunicação, sendo tal do o que a revista possui de mais atraente em
recomendação estendida à visão do masculino. seu conteúdo, com vistas a despertar o interesse
Desse modo, a discussão sobre as representa- de possíveis consumidores. Além de atuarem
ções do feminino e do masculino propagadas como grandes letreiros de divulgação do con-
pela mídia e suas avaliações se impõem como teúdo, antecipam as representações do femini-
um tema atual, mas, sobremodo, como uma for- no e do masculino presentes nos magazines.
ma de acompanhar se direitos pactuados pelo As orientações da AD sugerem, igualmente,
Estado brasileiro estão de fato sendo assegura- que os objetos que compõem o corpus de um
das à população. estudo devam conter semelhanças e divergên-
Com base em tais noções teóricas, os dis- cias. A principal semelhança entre os magazi-
cursos sobre a estética feminina e masculina em nes é que ambos se constituem como mídia im-
Nova e Men’s Health foram sistematizados nas pressa. Outra similaridade é serem produtos da
seções: principais resultados e considerações Editora Abril. O público alvo de Nova e Men’s
gerais, a partir de um percurso metodológico. Health possui faixa etária semelhante, entre 20
Disposto na sequencia, este assegurou a organi- e 35 anos, assim como são pertencentes a mes-
zação dos dados, segundo critérios da pesquisa, ma classe social (AB). Por fim, os magazines
e a interlocução com as categorias de análise também possuem valor de venda semelhante
utilizadas, como estética, feminino e masculi- e são disponibilizados de modo acessível nas
no, e revistas, para compreensão dos resultados. bancas de jornais, supermercados, padarias,
além da possibilidade de recebimento mensal
Caminho metodológico em domicílio por assinatura.
No que se refere às diferenças, Nova foi
A construção dos dados foi realizada a partir lançada no ano de 1973, e é uma revista que se
da abordagem qualitativa e sua análise pauta- destina a um público feminino. Possui como te-
da nos critérios da Análise de Discurso (AD) máticas centrais: beleza, moda, carreira profis-
proposta por Orlandi (1999). A AD recomen- sional, relacionamento amoroso e sexo. Segundo
da que no momento da análise a preocupação a Editora Abril, é a revista feminina mais ven-
deva se voltar para o que está implícito e não dida no mundo, sendo esta informação o slogan
apenas para o que está no plano do aparente, do magazine. No Brasil, com tiragem de 339.066
compreendendo a não existência de neutralida- exemplares mensais e um total de 1.459.000 lei-
de nas elaborações textuais. Essa modalidade tores, era a segunda no ranking das revistas fe-
metodológica se volta para a apreensão da per- mininas com maior público consumidor.
cepção sutil, da valorização do dito e do não Men´s Health, por sua vez, foi uma revis-
dito, da entrelinha e do detalhe presentes na ta lançada no mercado brasileiro em 2006. As
Essa entoação está, ainda, nos termos bélicos homens”, lembrando que o homem com saúde
presentes em um número reduzido de capas – vive melhor.
blindado; saque; lutar ou desistir; seguro; ata- Os demais enunciados ganham destaques
cando; arrasar. pelas molduras em que estão inseridos e pe-
Particularmente na edição de janeiro de 2007, las fontes em caixa alta, porém, menores que
a revista faz contraponto a esse discurso aguerrido Men´s Health. Ambos, fontes e molduras, estão
ao utilizar uma terminologia religiosa: “céus, pe- em cores variadas, atuando como recursos para
cados, templos”. Contudo, mantém um tom que despertar o interesse do leitor sobre os assuntos
denota poder de quem o emite, no caso de Nova. ali presentes. Os mesmos se constituem em um
Soma‑se a isso, o estabelecimento de questiona- conjunto de temas que retratam o que a revista
mentos: “no que ele pensa, o que sente quando entende por “saúde dos homens”, sendo os mais
você toca no ‘menino’?; uma vez traidor, sempre preponderantes: fitness; sexo; doença como o
traidor?; homem repara nas gordurinhas?; seu oposto de saúde; nutrição, com ênfase nas dietas
colchão tem garantia?” – e de uma comunicação alimentares para emagrecimento; mulheres; se-
direta com a leitora, através de pronomes: você e dução; esporte; moda. Tal afirmação é sustentada
seu. Ressalta‑se que este conjunto de característi- pelo enunciado “Novas dicas de fitness, nutrição,
cas acaba por personificar a revista. sexo e saúde”, que, intertextualmente, se apre-
Men´s Health, por sua vez, aloca na lateral senta em outras edições. Assim como em Nova,
de todos os exemplares a bandeira brasileira, os temas aparecem, por vezes, quantificados.
seguida do título do magazine, o que indica que Para o magazine, não basta fornecer dicas
a publicação é voltada para o público brasileiro, aos leitores para que eles possam “viver me-
ainda que sua origem seja norte-americana. Na lhor”, é preciso apontar soluções aos problemas
sequência, traz a foto do modelo da capa, com identificados pela revista como aqueles que po-
o site da revista, e, de forma centralizada e em dem interferir no estado de saúde dos homens.
destaque, a chamada principal de cada revista, São elencados como principais problemas: de-
bem como seu número, o mês de edição e o ano. terminados perfis de mulher; sexo não praze-
A chamada principal também tem proje- roso ou abstinência; dificuldades no trabalho;
ção no corpo da capa, sendo a segunda maior alguns sintomas de doença; alimentação ina-
letra depois do título, o que reafirma o espaço dequada, que não instiga o paladar e compro-
e a importância que a revista concede aos te- mete a estética física. Chama a atenção para o
mas que ela trata como centrais. Geralmente, é fato de as dificuldades estarem dispostas em
apresentada do lado esquerdo da capa, em letras chamadas na parte inferior de todas as capas,
tipo grande, e aborda: forma corporal, maneiras minimizando sua importância se comparada
para se obter um físico sem gordura, definido às recomendações. Esta configuração evita de
e trabalhado; sexo, no sentido de direcionar o Men´s Health associar sua imagem a situações
leitor para que ele seja um conhecedor do tema; não desejáveis pelo magazine, ou seja, aquelas
dietas de emagrecimento. às quais se propõe a apresentar soluções.
O slogan do magazine é: “viver melhor é Do mesmo modo que Nova, Men´s Health
fácil”, sempre apresentado na parte superior da se dirige diretamente ao leitor através de prono-
palavra Men’s, escrita em fontes grandes. Este mes como você e seu. E, semelhante ao maga-
sugere subliminarmente a ausência de um es- zine feminino, faz uso de verbos no imperativo:
tilo de vida que favoreça os homens, e indica “transe; saiba; combata; faça; comece; fuja; ga-
modos para torná-lo melhor. Para tanto, é pre- nhe; reforce; malhe; enxugue”. A distinção é de
ciso a aquisição e leitura do conteúdo da revis- que em Men´s Health os verbos sugerem ações
ta, sendo as recomendações qualificadas como intensas. A diferença reside também na fre-
de fácil implementação. O slogan, ainda, se quência das palavras bélicas, comumente pre-
relaciona com o título da revista, “saúde dos sentes em seus enunciados: “combata; táticas
imbatíveis; barriga de aço; blinde; poderosos; Goldenberg (2011) chama a atenção para
detonam; pau neles; jogos”. este fenômeno em sua pesquisa sobre sexo. Ao
Uma particularidade da revista é o emprego questionar as mulheres sobre o que os homens
de enunciados objetivos e práticos. Estes veicu- possuem de mais atraente, a autora identificou
lam uma mensagem direta ao leitor, apesar do que, em primeiro lugar, seria a inteligência, se-
uso recorrente a metáforas, por exemplo: “En- guida do corpo e da beleza. Portanto, mesmo
xugue seus pneus; Germes? pau neles!; Exclu- não se configurando como o fator primordial
sivo! a dieta que derreteu a pança de Ronaldo; na busca por um parceiro, o corpo masculino,
Chega de: refeição pesada/roupa velha/coceira/ “definido; malhado; trabalhado; sarado; sau-
mau humor; Fique livre de: sexo morno/gases/ dável; atlético; bonito e forte”, é considerado
nariz entupido/frieira; Boteco: o cardápio certo relevante no despertar do desejo feminino (Gol-
para evitar o pé na jaca”. Além disso, remetem denberg, 2011).
a uma linguagem que se denominou historica- Em Nova, as modelos de capa são persona-
mente como própria e permitida ao “universo lidades do meio artístico. Das 13 mulheres, 11
masculino”. são brasileiras – seis atrizes, duas modelos, uma
Nota-se que os discursos sobre a estética em apresentadora de programa de TV, uma miss
Nova e Men’s Health são recorrentes, ocupam Brasil e uma ex-participante de reality show –,
espaços de destaques e integram o escopo de e duas são atrizes internacionais. A repercussão
assuntos voltados ao público leitor. Contudo, a do trabalho desenvolvido, naquele momento, na
abordagem linguística do tema e o modo como mídia as projetava na condição de protagonistas
é veiculado responde à construção do feminino das capas. Contudo, nas reportagens, no interior
e masculino na sociedade, sendo constitutivos das edições de Nova, o desempenho profissional
do contexto sócio‑histórico. Nesse sentido, o ficou minimizado se comparado à projeção dada
uso da língua faz referência a como homens e às suas vidas privadas. O sucesso profissional
mulheres são educados e educadas desde a in- alavancou informações sobre o mundo privado
fância a falar, a se comportar e a pensar em si das modelos, que se tornou objeto de discussão
próprios como seres providos de um corpo re- pública e acessível às leitoras. De certo modo, os
ferenciado pelo órgão sexual, segundo uma lei- discursos do periódico reafirmaram as questões
tura essencialista (Loyola, 1999). do ambiente da casa como prioritárias e, mais,
como de atribuição feminina.
A estética em Nova e Men´s Health Diferentemente de Nova, Men´s Health traz
como protagonistas, em 11 capas, homens sem
A estética foi veiculada em todas as 12 ca- projeção e desconhecidos do grande público
pas de 2007 e de janeiro de 2008 das edições brasileiro. No entanto, o mérito de serem mo-
de Nova e de Men’s Health, sendo em ambos os delos tem relação com seus atributos físicos,
magazines, temática presente em mais de um exibidos através do dorso nu, como exemplifi-
enunciado. Lipovetsky (2000) e Wolf (1992), cado a seguir: “A melhor dieta para definir sua
ao tratarem da beleza feminina, afirmam que a barriga (edição de janeiro de 2007), chamada
estética se configura como algo imprescindível disposta ao lado da barriga delineada do mode-
para as mulheres. Contudo, para o primeiro au- lo; “Acabe com pneus! 2 semanas e tchau...”
tor, a última década vem consolidando um pro- (edição de março de 2007), com enunciado sus-
cesso iniciado nos anos 1970, que se caracteriza tentado pela imagem do modelo, que direciona
pela busca da beleza também pelos homens. Se seu olhar e sorriso ao seu abdômen definido,
a beleza antes era um imperativo para o femini- sugerindo felicidade com seu corpo. Destaca-se
no, na sociedade ocidental do século XXI ela se o uso do imperativo para ordenar que o leitor
torna imprescindível igualmente para o mascu- acabe com gorduras abdominais, denominadas
lino (Lipovetsky, 2000). de “pneus”.
A importância que o corpo assume em Men ‘s de todo tipo. As “imperfeições”, a velhice, a di-
Health está, igualmente, representada nos “brin- versidade, os efeitos da natureza sob o corpo
des” destinados aos leitores, conforme o enun- foram conjuradas. Del Priore (2000, p. 87), ao
ciado “pôster grátis!”. A palavra grátis ressalta, abordar o corpo feminino na história brasileira,
ainda, que a maneira como o homem obterá o resume com precisão a atuação dos periódicos,
corpo perfeito é assegurada pela revista, como “além de todas as clivagens econômicas e so-
um “presente”. A edição de aniversário apresen- ciais que existem no Brasil, haveria outra: a da
ta explicitamente essa afirmação ao represen- estética”.
tá-la como uma embalagem de presente, cujo Nessa mesma linha, Goldenberg e Ramos
enunciado está inscrito em uma fita: “Edição de (2002, p. 25) são contundentes:
Aniversário! Guia de Estilo + Superpôster. 283
ideias para ficar bacana no inverno. O manual Devido à mais nova moral, a da ‘boa
completo da dieta saudável”. forma’, a exposição do corpo, em nossos
Utilizando‑se do pensamento de Lypovet- dias, não exige dos indivíduos apenas o
sky (2000), sobre a “cultura do belo sexo”, controle de suas pulsões, mas também o
afirma‑se que a estética feminina e, também, a (auto)controle de sua aparência física.
masculina se tornam na modernidade uma ques- O decoro, que antes parecia se limitar à
tão meritocrática, a qual Nova e Men ́s Health não exposição do corpo nu, se concen-
empenham‑se em divulgar e ensinar. Logo, as tra, agora, na observância das regras de
insuficiências corporais podem ser superadas sua exposição.
por homens e mulheres por um processo de au-
toconstrução, que envolve o desenvolvimento Destaca-se, no entanto, que a rotina cotidia-
de novas condutas para o corpo e um cardápio na acelerada e a falta de tempo livre por parte
de produtos e serviços a serem consumidos. dos sujeitos de modo geral são fatos comuns da
Autores (Caldas‑Coulthard, 2005; Courti- sociedade contemporânea, além de serem um
ne, 1995; Priore, 2000; Sant’anna, 1995) são obstáculo ao alcance da estética veiculada pe-
unânimes em afirmar que o “culto à estética” los magazines. Tal situação é incorporada pe-
retroalimenta a cultura e o mercado de massa. las revistas como uma resposta às demandas de
Porém, seu poder atravessa todas as instâncias homens e mulheres urbanos. Para tanto, Nova e
do corpo social, atingindo dimensões subjetivas Men’s Health “lançam mão”, em suas chama-
e macroeconômicas, ao promover subjetivida- das, de receitas fáceis, rápidas e vinculadas a
des, padrões morais, indústrias tecnológicas e profissionais, o que as tornam respeitáveis, para
argumentos científicos. Sibilia (2002, p. 33) a conquista do físico ideal e, consequentemen-
apreendeu com precisão a dinâmica do sistema te, da saúde.
econômico, que lança e relança “ao mercado, Nesse sentido, os enunciados de Men’s
constantemente, novas formas de subjetividade Health’ recuperam uma linguagem tipicamen-
que serão adquiridas e de imediato descartadas te masculina para fazer referência à eliminação
pelos diversos targets aos quais são dirigidas, “instantânea” de peso e gordura. Parafraseando
alimentando uma espiral de consumo de ‘mo- a expressão fast food, o magazine traz a lógica
dos de ser’ em aceleração crescente”. do fast fitness. Estas são igualmente reafirma-
Como qualquer peça démodé, os corpos das das:
leitoras e dos leitores foram convidados a se
tornarem literalmente afinados com as tendên- • pela exatidão dos números: “9 táticas
cias atuais. Com algumas particularidades, foi imbatíveis para perder peso” (edição de
associado à ausência, isto é, a supressão do que fevereiro de 2007); “pôster grátis comece
é considerado excesso pelas publicações, ou 2007 em forma! Um plano de 21 dias”(e-
seja, sem: barriga, flacidez, estrias e gorduras dição de janeiro de 2007);
• pelo uso de metáforas: “pôster grá- que as mulheres mais bonitas têm maiores
tis barriga de aço”. Neste enunciado o oportunidades na vida; 59% das mulheres con-
termo “barriga de aço” significa uma cordam plenamente que as mais atraentes fisi-
barriga forte e malhada, em formato camente são mais valorizadas pelos homens.
“tanquinho” (edição de abril de 2007); A leitora de posse das indicações de Nova
“ganhe músculos a jato. Simplifique a poderia, então, reconstruir sua autoimagem se-
malhação. Melhore a postura” (edição gundo as noções de belo instituídas e vigentes
de março de 2007); na sociedade. As mudanças podem ser de toda
• pelo uso do interdiscurso: “enxugue ordem, assim como o grau de tecnologia e de
seus pneus! 20 minutos por dia e só”; intervenção a ser utilizado no organismo. As
“acabe com pneus! 2 semanas e tchau...” opções aventadas variaram de um retoque em
(edição de outubro de 2007). A palavra determinada parte do rosto com maquiagem à
pneu, em seu sentido real, significa capa sua transformação pela cirurgia plástica. Sibilia
de borracha que envolve as rodas dos (2002) assinala como, nesse contexto, surge a
veículos automobilísticos, porém, nessa possibilidade do corpo humano ser tratado como
frase significa as gorduras excedentes arcaico em sua antiga configuração biológica.
presentes na barriga do leitor; Beleza feminina: não mais um privilégio da
• pela contradição presente em algumas natureza reservado a um pequeno número de
mensagens, que, simultaneamente, es- mulheres bem‑nascidas. Mediante “trabalho”,
timulam uma estética magra e definida qualquer mulher pode escapar ao infortúnio da
e promovem o consumo de alimentos feiúra. Findas as barreiras aristocráticas e na-
excluídos de uma dieta de redução de turais, na era democrática a beleza feminina é
peso: “seu guia para o verão perfeito! A pensada numa problemática igual à do self‑ma-
comida boa que emagrece. Picanha, ca- de man (Lypovetsky, 2000, p. 162‑163).
marão...tudo fácil e saudável”. Em nossa cultura, assim como em outras, a
beleza feminina se apresenta sempre associada
Nova, assim como Men ́s Health, enaltece a diversos significados, como “prestígio social,
o corpo em forma, porém, como sinônimo de talvez político, ou mesmo como alavanca para
beleza. A estética desejável também se refere uma carreira de sucesso” (Oliveira, 2002, p. 3).
à ausência de gordura de todos os tipos, mas Dessa forma, ela se consolida como um facili-
somam-se a ela características como juventude, tador, o que possibilita que o magazine a utilize
sensualidade, cabelos tratados. Diferentemente como alicerce para promover a estética. As es-
do magazine masculino, que emprega o argu- tratégias são as mesmas utilizadas pelo magazi-
mento da saúde para propor seus conceitos de ne masculino, embora o emprego das palavras
estética, Nova utiliza o argumento da beleza. e a forma como são apresentadas se distingam:
Ao desenvolver uma pesquisa acerca do
entendimento global sobre as mulheres, a Uni- • números: “4 looks de beleza + perfumes
lever (Etcoff, 2004) tratou das perspectivas que atiçam. É provar e se dar bem”;
femininas da beleza emergentes na mídia e • metáfora: “cosméticos salva-vidas que
evidenciou que beleza e aparência física são as- não podem faltar na viagem” (edição de
pectos considerados imperativos pelas mulhe- fevereiro de 2007);
res e recompensados pela sociedade. Os dados • interdiscurso: “corpo dez!”, remete à
demonstraram que 63% das mulheres concor- ideia de corpo perfeito, sendo que a fra-
dam plenamente que a sociedade espera que se exclamativa enfatiza ainda mais esse
elas sejam mais atraentes fisicamente do que a sentido (edição de fevereiro de 2007);
geração anterior à sua, e 60% que realcem sua • facilidade, rapidez e acessibilidade:
atratividade física; 45% concordam plenamente “truques espertos de beleza e a moda
sexy do rio que garantem curvas instan- de ordem, em Men´s Health, saúde é tomada
tâneas” (edição de fevereiro de 2007); como referência para se atingir a estética mas-
“beleza já!”; “a nova pílula antibarriga; culina almejada.
injeção que paralisa as rugas pela meta- Todavia, os sentidos dos enunciados sobre
de do preço” (edição de março de 2007); beleza, em Nova, e saúde, em Men´s Health,
“laser que endurece tudo, pílulas antiru- migram para representações de corpo branco,
gas a 30 reais” (edição de abril de 2007). magro, sem gorduras e jovem. E, em ambas
revistas, a silhueta promovida é produto de
É importante destacar que Nova e Men ́s trabalho e esforços pessoais, embora as exi-
Health’ apresentam similaridades em termos gências para se atingi-la sejam distintas para
de produção de discursos, ao fazerem uso dos as leitoras de Nova e para os leitores de Men´s
mesmos recursos e de conteúdos abordados. Health. Para o magazine feminino, os atributos
Entretanto, cada qual se comunica com suas exigidos à mulher vão para além de um corpo
leitoras e seus leitores a partir de símbolos e magro, incluindo a eliminação das marcas da
terminologias que não rompem com a ideia de idade, principalmente rugas e cabelos brancos,
“universo masculino” e “universo feminino” e da manutenção da sensualidade. Para o ma-
como espaços binários e dicotômicos (Piscitel- gazine masculino, a exigência é de um corpo
li, 2004; Hita, 2002). com músculos definidos e esculpidos, sendo tal
requisito presente de modo reduzido em Nova.
Considerações gerais É consenso na medicina (Poli Neto; Caponi,
2007) que o processo de emagrecimento saudá-
Os resultados indicam que a estética difun- vel requer dieta rigorosa e constante atividade
dida pelas revistas é similar, uma vez que as re- física, porém, de modo muito distinto das su-
presentações são de corpo magro, sem gorduras gestões fast fitness apresentadas em Nova e,
e jovem, definido por dietas de emagrecimento, principalmente, em Men´s Health. Assim sen-
exercícios, cosméticos e recursos tecnológicos. do, a constatação de Wolf (1992) pode ser es-
Contudo, o sentido dos discursos apresentam tendida, na atualidade, também ao público mas-
particularidades, sendo a forma e as terminolo- culino, ou seja, para se atingir um corpo com
gias utilizadas distintas, devido, sobremodo, ao saúde, deve‑se desenvolver o hábito do regime
recorte de gênero. De tais constatações, decor- alimentar, tão presente nas capas de ambos os
rem algumas considerações. magazines.
A primeira refere-se à forma como as cha- Por fim, a ausência de modelos negros em
madas são elaboradas e dispostas nas capas dos ambos os magazines é outro dado a ser conside-
periódicos. Em Men´s Health, mais do que em rado. Com isso, fica evidente um determinado
Nova, os enunciados são escritos no imperati- estereótipo de estética, que reafirma relações
vo, ordenando os leitores a realizarem as ações assimétricas de gênero, raça e etnia. Logo, esta
propostas pelo magazine, de modo direto e com se coloca como um imperativo tanto para ho-
termos que remetem ao universo masculino mens quanto para mulheres, além de se confi-
(Bourdieu, 1996). Diferentemente de Men´s gurar como um facilitador de conquistas pes-
Health, Nova recorre a enunciados com termos soais e sexuais.
sutis para tratar de uma estética desejada, uti-
lizando explicitamente a palavra beleza, que é Referências bibliográficas
comumente disposta em evidência na capa.
Outra consideração, que nesta análise está BOURDIEU, P. Novas reflexões sobre a domi-
associada à forma, são os argumentos utilizados nação masculina. In: LOPES, M. J.; MEYER,
pelos magazines ao abordarem a estética nas D. E.; WALDOW, V. R. (orgs.). Gênero e Saú-
chamadas. Enquanto em Nova, beleza é palavra de. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
Sites consultados:
ARTIGO
Resumo: Neste artigo, pretendo associar os temas das políticas públicas de gênero às profissões implicadas na atenção
integral à mulher, por meio da apresentação dos usos da teoria sobre gênero relacional, em atividades que exercitem o
potencial de conhecer uma realidade presente e operar transformações com base em projetos de intervenção. O painel
de experiências engloba atividades em torno de duas expressões da violência de gênero em áreas da vida cotidiana de
profissionais que comparecem nesse campo: o trabalho no enfrentamento à violência e a sustentabilidade da política
pública para as mulheres. O percurso da exposição envolverá a apresentação da forma como será utilizada a teoria de
gênero – a categoria teórica de gênero e outras mobilizadas para a melhor representação, no plano do pensamento deste
fenômeno social derivado das relações sociais nos processos históricos e o exame de elementos do cenário brasileiro
– lugares de poder e trabalho – e os desafios – teóricos e práticos – no entendimento e enfrentamento do fenômeno da
violência de gênero.
Palavras-chave: direitos humanos; violência de gênero; formação de equipes técnicas; políticas públicas para as mu-
lheres.
Abstract: In this article I intend to involve the public policy issues of gender and the professions involved in integral
care to women, through the presentation of the uses of relational theory of gender in activities that exercise the potential
to meet a present reality and transformations operate on a project basis intervention. The panel experience comprises
activities around two expressions of gender violence in areas of daily living professionals who attend this field: work in
combating violence and sustainability of public policy for women. The route of exposure will involve the submission
of the form will be used as a gender theory - the theoretical category of gender and other mobilized for better repre-
sentation in thought derived from this social phenomenon of social and historical processes and examine matters of
the Brazilian scenario – places of power and work – and challenges – theoretical and practical – in understanding and
coping with the phenomenon of gender violence.
Keywords: human rights; gender violence; teaming techniques; public politics for women.
Scott (1990) já assinalava, em texto precur- dependente e regulada, sendo o contrário uma
sor dos estudos de gênero, a rejeição ao deter- “ilusão jurídica”.
minismo biológico e o caráter relacional. Na As relações de poder são onipresentes na so-
consagrada definição estabelece a conjunção ciedade, quer os sujeitos tenham consciência ou
do conceito nas relações de poder. não, e os lugares de classe, gênero e étnico-racial
ao organizarem as formas de dominação-explo-
(...) o gênero é um elemento constituti- ração, contribuem na sua manutenção.
vo das relações sociais fundadas sobre
as diferenças percebidas entre os sexos, II
e o primeiro modo de dar significado às
relações de poder. (...) O gênero é um Face à diversidade de apropriações e aos
primeiro campo no seio do qual, ou por sentidos variados do conceito de gênero, asso-
meio do qual, o poder é articulado. O ciados às numerosas práticas sociais correspon-
gênero não é o único campo (...) (Scott, dentes, uma ideia que dinamiza o entendimen-
1990, p. 14-15). to desta categoria é a adoção do gênero como
opção epistemológica, na qual se interpenetram
Os conceitos de poder e dominação são duas dimensões fundamentais da práxis: a ativi-
importantes ao entendimento dos fenômenos dade cognoscitiva – que se ocupa em conhecer
sociais engendrados. A elaboração de Fou- uma realidade presente – e a atividade teleoló-
cault (1986) fecunda o entendimento do gênero gica – que diz respeito a uma realidade futura,
como primeiro modo de articular o poder. A re- a ser construída. De acordo com a formulação
levância da formulação foucaultiana reside na de Vázquez (1977), os seres humanos têm uma
volatilidade das posições de poder, o que faz reação de interioridade com suas atividades
uma enorme diferença nas disputas em torno práticas reais e a finalidade, ou a capacidade de
das práticas sociais. As desigualdades sociais construir projetos, funde-se na práxis, na qual
fertilizam as assimetrias de gênero. Ao discutir “toda a práxis é atividade, mas nem toda ativi-
as múltiplas relações de poder que extrapolam dade é práxis” (p. 185).
o edifício jurídico, como forma de entender a A adoção do gênero, como um campo no qual
dinâmica social estabelecida nas lutas sociais o poder é articulado, permite sua conjugação às
que culminaram com um novo modo de pro- demais determinações estruturais – de classe e
dução, o autor apresenta “preocupações meto- étnico-racial –, nas quais comparecem particula-
dológicas”. Captar o poder que, na expressão ridades geracionais e religiosas. Ademais, a op-
menos jurídica, onde produz efeitos reais, se ção epistemológica do conceito, além de obser-
estabelece em rede, passa pelos indivíduos e var essa mediação imanente das relações sociais,
permite análise ascendente, sendo incompatível coloca a necessidade de transformar o quadro
com as relações de soberania, inaugurando uma adverso das desigualdades sociais.
nova economia de poder, o poder disciplinar. Para Almeida (2007, p. 29), “a violência de
Disciplina como forma de ajustar os novos su- gênero é constituída em bases hierarquizadas,
jeitos às exigências da sociedade contraditória, objetivando-se nas relações entre sujeitos que
que firma os princípios da igualdade, liberdade se inserem desigualmente na estrutura familiar
e fraternidade desenraizados das condições ma- e societal”, oferecendo preciosa pista para o
teriais correlatas. entendimento das relações sociais com base na
Já Meszáros (1993, p. 129) chama a atenção perspectiva da totalidade. O societal e o inter-
para a “contradição fundamental entre ‘direitos pessoal são planos constitutivos da vida social
do homem’ e a realidade da sociedade capi- e cada sujeito é forjado no contexto de suas re-
talista, onde se crê que esses direitos estejam lações. Se cada indivíduo é um ser social que
implementados”. De fato, a esfera do direito é corporifica as relações sociais fundamentais,
nos remete ao quadro das desigualdades ante- impunidade de crimes cometidos contra a mu-
riormente citado. lher (Pougy, 2010a). Não obstante seu caráter
As desigualdades de gênero só poderão ser inovador e progressista, assim como a abran-
combatidas no âmbito do enfrentamento das gência com que os tribunais de justiça estaduais
desigualdades sociais, dado que estas fecundam vêm criando Juizados da violência doméstica e
aquelas (Almeida, 2007). familiar contra a mulher, há muito a ser conso-
lidado e ampliado em todos os setores que reve-
IV lam o progresso das mulheres.
ocupação de cargos na estrutura sindical, verifica- Kergoat (1986; 1996) argumentava que pro-
da por meio da inserção de mulheres nas Centrais dução e reprodução são indissociáveis e devem
Sindicais, é modesta: de 715 dirigentes, 151eram ser unificadas porque, do contrário, se ratificaria
mulheres, ou 21,18% (Araújo, 2011, p. 101). a ideia dos papeis sexuais de homens e mulhe-
O crescimento da participação feminina res incontestavelmente vinculados à natureza e à
nos lugares de poder é incontestável, embora biologia. Trata-se, ao invés disso, de construções
ainda insuficiente para o combate às desigual- sociais e a unidade produção-reprodução deve
dades de gênero. Progresso e estagnação pa- ser articulada em termos de relações sociais,
recem faces de um mesmo processo: os car- tendo em vista romper com as explicações bio-
gos de diretoria e assessoria superior (DAS) logizantes das diferenças entre práticas sociais
no Brasil, dados de 2010, são ocupados por masculinas e femininas e interromper o essen-
43,2% de mulheres e 56,8% de homens, o que cialismo dos modelos universais dirigidos aos
representa um enorme avanço, não obstante a sexos, posto que os mesmos prescindem da me-
concentração da diferença entre os sexos gra- diação histórica e da confirmação de que “as re-
vitar entre oito e quase dez pontos percentuais lações sociais repousam em princípio e antes de
para os homens nos três primeiros cargos e a tudo em uma relação hierárquica entre os sexos”
diferença crescer para 23, 48 e 54 pontos per- (1996, p. 21). Trata-se de considerar as relações
centuais para os cargos de maior prestigio e sociais de sexo como uma relação de poder.
remuneração (Dieese, 2011, p. 229). Além da articulação proposta em termos de
A distribuição de eleitas/os para o Senado é relações sociais, Kergoat (1986) adverte que “...
de 14,8% senadoras e 85,2% de senadores nas é fácil resvalar entre campos teóricos (produção e
eleições de 2002, de 2006 e 2010 (Ibid, p. 230). reprodução) e os lugares concretos onde a divisão
A repartição na Câmara Federal para o mesmo social do trabalho (entre classes, entre sexos) se
período tem variação pequena nas eleições de opera (a fábrica, a família)” (p. 81-82.), ou seja, é
2002 e 2006 (Ibid, p. 231). Em que pese a elei- preciso introduzir a contradição no centro da aná-
ção presidencial ter tido duas candidaturas de lise, “as relações sociais de sexos e as relações de
mulheres – a própria Dilma Rousseff, eleita, e classe, relações que chamaremos respectivamen-
Mariana Silva –, nos demais níveis eleitorais do te de opressão e exploração” (p. 83). Essa é uma
Executivo e do Legislativo, o padrão é quase confusão bastante comum nos estudos de gênero:
sofrível (Araújo, 2011, p. 91). reduzir as condições masculina e feminina aos pa-
A digressão sobre algumas faces dos pa- péis e funções hegemônicas, isto é, misturar cam-
radoxos de gênero servem para corroborar a pos teóricos e lugares concretos, na base do bina-
necessária vinculação dos estudos de gênero rismo fertilizado pela lógica da oposição simples.
à sociedade. A forma contraditória com que as Para a autora, o conceito das relações sociais de
desigualdades sociais atingem homens e mu- sexo permite ter “uma visão sexuada dos funda-
lheres é o cerne da questão a ser decifrada. mentos e da organização da sociedade” (1996, p.
Evidentemente que as polarizações podem 20), cuja base material são as práticas sociais, que
ser inócuas, é necessário entender os processos revelam uma divisão sexual do trabalho, conceito
sociais nos e pelos quais as contradições atin- conexo e indissociável do primeiro, que “está no
gem homens e mulheres. No debate sobre as centro (no coração) do poder que os homens exer-
relações de gênero, o trabalho e a família são cem sobre as mulheres”.
elementos essenciais a serem deslindados, uma Pensar o trabalho doméstico é tarefa parci-
vez que dinamizam práticas sociais. moniosamente realizada se contrastado com a
variedade de suas expressões, dado que expe-
Trabalho rimentá-lo, seja na produção ou no consumo,
faz parte da vida cotidiana de homens e mulhe-
res. O trabalho doméstico adquire visibilidade
pela ausência, isto é, quando o funcionamento médio das mulheres que ocupam a mesma posi-
do lar sofreu prejuízo, por exemplo, a comida ção que homens é menor e a discrepância entre
queimou, a roupa foi mal lavada e manchou ou o rendimento de homens e mulheres varia favo-
a casa não está limpa. Os (as) usuários(as) do ravelmente para estes. De acordo com os dados
“serviço” não remunerado dirigem suas queixas compilados em 2009 pelo Dieese, o rendimento
à responsável: a dona de casa, ou sua preposta, médio dos homens foi de R$ 962,00 e das mu-
que as recepciona, na maioria das vezes. Não lheres foi de R$ 544,00 (p. 105). Mesmo em
obstante o progresso das mulheres nas últimas ocupações precárias, situação em que há uma
décadas, no que se refere à inserção no mercado inserção maior de mulheres, a remuneração é
de trabalho formal na base de ocupação remune- desigual (IBGE, 2009).
rada, as desigualdades persistem: o rendimento
Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres
1.118 885 620 573 640 511 404 298 1.130 802
Tabela própria com base no Gráfico 9.7 da PNAD 2008.
Dito de outra forma, o rendimento médio das Ela destaca, ademais, a enorme contribuição
mulheres é sempre menor que o dos homens, invisível à renda nacional por meio do tempo
até mesmo na posição da ocupação de menor gasto por homens e mulheres em atividades
prestígio, trabalhador doméstico sem cartei- mercantis e não mercantis. Não obstante, para o
ra. Estudiosas da área das relações de gênero IBGE, a população envolvida com os afazeres
e trabalho vêm argumentando, há décadas, que domésticos está incluída como população eco-
o trabalho não remunerado é majoritariamente nomicamente inativa6.
feminino. De acordo com os dados da PNAD, Na teia complexa do trabalho feminino,
no Brasil, a média de horas semanais gastas pe- Bruschini (2007) chama a atenção para a apa-
las mulheres com afazeres domésticos é de 20,9 rente facilidade que o avanço tecnológico traz
horas contra 9,2 despendidas pelos homens. no equacionamento dos afazeres domésticos.
A ampla conceituação de afazeres domésticos Na verdade há uma sobrecarga de trabalho,
e os índices encontrados servem para ratificar sendo que o trabalho doméstico não é conside-
a tese de que o trabalho doméstico é trabalho rado como tal, mesmo com as políticas sociais
não remunerado e não mais inatividade eco- abrangentes e dirigidas ao favorecimento de
nômica (Bruschinni, 2007, p. 21). A definição condições de ingresso e permanência no mer-
abrangente do trabalho doméstico, examinada cado de trabalho, como creches e escolas de ho-
por esta autora, coloca em evidência a extensão rário integral.
da jornada de trabalho das mulheres: “Trabalho A taxa de frequência à creche de crianças
doméstico é categoria ampla e engloba ‘um le- de 0 a 6 anos que vivem com as mães chefes de
que extremamente heterogêneo de tarefas, se- família, segundo o rendimento médio mensal
jam elas manuais, como limpar a casa, lavar...; revela: a) o modesto recurso ao equipamento
sejam não manuais como cuidar dos filhos, dos para o grupo de 0 a 3 anos, b) o aumento da
idosos e dos doentes, administrar a casa e o co- frequência das crianças cuja renda familiar é
tidiano doméstico e familiar ...” (p. 22). maior (gráfico 6.3, IBGE, PNAD, 2008).
O déficit de vagas na rede pública para o construção de uma sociedade democrática, onde a
segmento da pré-escola assim como o horário cidadania de todos e todas só será possível sem as
parcial de funcionamento são obstáculos à in- desigualdades sociais. O trabalho feminino, não
serção das mulheres em atividades exteriores obstante a maior titulação das mulheres tem remu-
à gestão do lar. Se levarmos em consideração neração menor e menor prestigio nas ocupações.
o crescimento de mulheres chefes de família No senso comum, o trabalho como ajuda tem
formada por casais e com filhos, o cenário é efeitos bastante divergentes e curiosos. As mu-
desafiador para cada um dos sujeitos nele im- lheres com trabalho remunerado formal, ou não,
plicados: em 1993, eram 301 mil famílias e em “ajudam” no orçamento familiar, até quando têm
2007, 3,6 milhões de famílias (Ipea, 2011). remuneração superior. Já os homens que partici-
Com efeito, o contraste das amplas conceitua- pam da gestão das atividades domésticas ajudam
ções de afazeres domésticos, trabalho e família e suas esposas, as verdadeiras “donas de casa”. As
os dados, dinamiza o entendimento consagrado hierarquias sexuais manifestam-se diversamente
há décadas de que a família está na base da do- nos lugares de gênero.
minação das mulheres. O aspecto distintivo entre A centralidade do trabalho na vida moderna
afazeres domésticos e trabalho está na remunera- parece ter um desdobramento nefasto para as
ção, de acordo com a conceituação. Entretanto, na mulheres que agregam atividades com modesto
conceituação de trabalho, o IBGE prevê: usufruto do esforço empreendido. A interface do
trabalho feminino, que associa trabalho na pro-
... ocupação sem remuneração na produ- dução e na reprodução, combinada com sua con-
ção de bens e serviços, desenvolvida du- dição da mulher como chefe de família, ou pes-
rante pelo menos uma hora na semana: soa de referência, com filhos, traz implicações
em ajuda a membro da unidade domi- contundentes na vida cotidiana destas, ademais
ciliar que tem trabalho como emprega- do impacto no campo das políticas públicas e do
do na produção de bens primários (...), sistema de justiça.
conta própria ou empregador; em ajuda Debert e Gregori (2008) discutem o desloca-
à instituição religiosa, beneficente ou de mento do sentido atribuído à mulher e à família,
cooperativismo; ou como aprendiz ou sublinhando o fortalecimento da defesa da fa-
estagiário (IBGE, 2009). mília, uma instituição que se sobrepõe à sanida-
de de seus membros, em detrimento da defesa
O que, salvo melhor juízo, atribui à ativida- da mulher, no campo das políticas sociais e no
de o sentido de ajuda para determinados tipos acesso à justiça: “Esse retorno da família como
de empregados. A dedicação aos afazeres do- a instituição privilegiada para garantir a boa so-
mésticos7 de homens e mulheres também revela ciedade tem ganhado força, o que preocupa so-
desigualdade, não obstante as mulheres terem bremaneira quando a questão de gênero, justiça e
maior nível de escolaridade. Ora, o quadro de- democracia estão em pauta. Vale a pena discutir
monstrativo de Bruschini, Lombardi, Mercado como a defesa da família se combina com as ilu-
e Ricoldi (2011, p. 153) revela que o tempo to- sões da liberdade de escolha” (Debert; Gregori,
tal gasto em atividades de produção e reprodu- 2008, p. 173-174).
ção é de 62,7 horas semanais para as mulheres e Com efeito, o numero total de beneficiárias/
57,2 horas semanais para os homens, sendo em os do Programa Bolsa Família é de 49.614.506,
afazeres domésticos, 20,6 horas semanais para dos quais 22.532.133 são homens e 27.082.373
as mulheres e 9,6 horas para os homens. mulheres (Dieese, 2011). Em todas as regiões do
Essa é uma questão de gênero que funda- Brasil as mulheres são beneficiárias em maior
menta a vida social. Identificar as contradições e número, e a distribuição dos recursos obedece à
paradoxos, na base de uma diagnose a partir das seguinte hierarquia: Nordeste, Sudeste, Norte, Sul
práticas sociais de homens e mulheres, é parte da e Centro-Oeste.
Tabela própria, elaborada com base nas informações do Dieese, 2011, p. 118.
patológicos de casais atípicos, no senso comum, em situação de violação dos direitos humanos
nos variados e numerosos atendimentos e na con- (Brasil, 2006). Há serviços diversos que funcio-
cepção filosófica das políticas sociais. A violência nam insulados em suas rotinas, embora exista
é uma expressão particular da violência societária? um enorme esforço de constituição de uma rede
É possível deslindá-la, de modo crítico, a partir integrada facilitadora do enfrentamento e com-
da sociologia, da psicologia e da ciência política? bate da violência contra a mulher.
Como problematizar o fenômeno da violência, Delegacias Especializadas de Atendimento às
utilizando indicadores sociais sob o enfoque teó- Mulheres, Defensorias da Mulher, Juizados e Va-
rico de gênero? De trajetórias pessoais podem ser ras especializadas integram o Sistema de Justiça
extraídos destinos de gênero? Como analisar criti- Criminal, cada qual com atribuições constitucio-
camente o binômio poder e impotência?10 nais, estão subsumidos ao Poder Judiciário. As
Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher
Violência de gênero – Deams –, criadas há quase três décadas, estabe-
leceram um padrão de criminalização da violência
Os lugares sociais dos sujeitos históricos de gênero. Os juizados da violência doméstica e
carecem de revitalização, em especial aqueles familiar contra a mulher, criados a partir de 2006,
que tematizam e intervêm sobre um fenôme- isto é, há sete anos, ou ainda as Varas adaptadas
no de difícil enquadramento teórico e prático, para o cumprimento da Lei Maria da Penha, têm
a violência de gênero. Nos termos de Almeida sido estruturados com o apoio dos Tribunais Esta-
(2007), “Essa violência que insiste em entrar no duais e somam 13 instâncias no estado do Rio de
debate acadêmico depois de ter deixado inúme- Janeiro, de acordo com dados da Secretaria Espe-
ras, diversificadas e profundas marcas nas mu- cial de Políticas para as Mulheres11.
lheres, em escala global, ainda não foi nomina- No escopo da Política Nacional de Enfrenta-
da apropriadamente. Maldita ela é para todos/ mento à Violência contra a Mulher, os Centros
as que a experimentaram e para todas/os que de Referência são equipamentos fundamentais
tentaram enfrentá-la e mediá-la. Maldita ela é para a tentativa de ruptura com a situação de
para todas/os que tentam estudá-la” (p. 23). violação dos direitos humanos. No caso do Rio
de Janeiro, há uma rede confortável de servi-
Política, gestão e ação: construindo a atenção ços: 29 Centros de Referência, 23 organismos
integral governamentais de políticas para mulheres,
dois serviços de atendimento jurídico, nove
A intervenção profissional no fenômeno conselhos municipais e estaduais, 31 Serviços
da violência de gênero torna imprescindível de atendimento à violência sexual, dois servi-
um projeto emanado no campo das políticas ços de atendimento às mulheres lésbicas e qua-
sociais, concertado à Política Nacional de En- tro casas-abrigo12.
frentamento à Violência contra a Mulher e aos A malha de serviços da área de política para
instrumentos correlatos, tais como o Pacto Na- as mulheres, conquanto ampliada na última dé-
cional, a Política Nacional de Assistência So- cada, é modesta para fazer face à demanda de
cial, por meio do Sistema Único de Assistência mulheres vitimizadas. A tática utilizada de acor-
Social e a Proteção Básica e Especial, ademais do com orientação emanada desde a II Conferên-
das políticas de saúde, trabalho e renda, mora- cia Nacional de Políticas para as Mulheres, em
dia, entre outras. 2007, foi a da efetivação da intersetorialidade,
A rede de atendimento especializado cres- na qual diferentes setores compartilham respon-
ceu bastante nas últimas duas décadas. No caso sabilidades e comparecem de modo consorciado
do estado do Rio de Janeiro, há serviços já es- na atenção integral.
tabelecidos que utilizam a metodologia e nor- A propagação dos serviços socioassisten-
matização relativas à atenção integral à mulher ciais, por meio da implantação do Sistema
Único da Assistência Social (Suas) –, veio ao e pode derivar situações de vulnerabilidade e ris-
encontro da enorme lacuna em numerosos mu- co para as mulheres em razão de, pelo menos,
nicípios brasileiros de equipamentos para a dois motivos: 1) as equipes técnicas serem redu-
atenção à mulher. No Brasil há 224 Centros de zidas e não funcionarem em regime de plantão e
Referência para as Mulheres (Crams)13, 7.446 2) o sigilo sobre a localização ser reduzido, dada
Centros de Referência da Assistência Social a contratação de motoristas terceirizados.
(Cras), e 2.175 Centros de Referência Especia- As concepções teórico-filosóficas das po-
lizada em Assistência Social (Creas)14; os dois líticas em tela visam os direitos humanos e o
últimos equipamentos da proteção social bási- direito das mulheres a uma vida sem violência,
ca e especial, que poderiam permitir ampliar o não obstante os focos das políticas dos entes do
exercício da cidadania às mulheres na tentati- Estado e dos poderes. Se a primazia verificada é
va de ruptura com a situação de violência, com a da coordenação da Secretaria de Políticas para
base em concertação com as diretrizes da área as Mulheres, alterar e mesmo redimensionar o
de política para as mulheres, de modo a recep- campo da atenção integral é um desafio experi-
cionar a particularidade da atenção integral à mentado diariamente por todas/os que operam
mulher em situação de violência. no campo das políticas para as mulheres. Os
Dois desafios se impõem: 1) a porta de en- ajustes e concertações para que haja atenção in-
trada dos equipamentos da proteção social é tegral às mulheres devem fortalecer os pontos
única e definida com o foco na família e 2) a em comum, originados no mesmo campo, com
porta de entrada do Centro de Referência para base na avaliação em curso a partir de indicado-
as Mulheres é dirigida às mulheres em situação res sociais consensuados.
de violação dos direitos humanos.
Os abrigos da área da assistência servem à Sustentabilidade de proposta de enfrentamento
população em geral; no caso da política para
as mulheres, os abrigos servem para as mulhe- A constituição de equipes multidisciplinares
res e sua prole até 14 anos, ou o abrigamento para a atenção a mulheres em situação de violên-
“... diz respeito à gama de possibilidades (serviços, cia de gênero foi um dos resultados de experiên-
programas, benefícios) de acolhimento provisório cias pioneiras nos serviços de apoio e acompa-
destinado a mulheres em situação de violência nhamento das vítimas, inicialmente concebidos
(violência doméstica e familiar contra a mulher, para orientação jurídica, ampliados posterior-
tráfico de mulheres etc.) que se encontrem sob mente, também, para a atuação psicossocial.
ameaça e que necessitem de proteção em ambien- A atuação dos Centros de Referências para
te acolhedor e seguro” (Brasil, 2011, p. 16). as Mulheres, serviços fundamentais da política
Em que pese a tendência atual da política de de enfrentamento à violência contra as mulhe-
abrigamento para mulheres estabelecer níveis al- res, transcorridos seis anos de sua uniformização
ternativos de utilização, tais como abrigos para pela Secretaria de Políticas para as Mulheres
famílias e abrigos com base nas necessidades (SPM) e, também, da implantação da Lei Ma-
avaliadas pelas equipes dos Centros de Refe- ria da Penha, engloba os eixos da prevenção, do
rência para mulheres, o Poder Judiciário criou combate, da assistência e da garantia de direitos.
a Central Judiciária de Abrigamento Provisório Isto porque, para além do atendimento pro-
da Mulher Vítima de Violência Doméstica (Ce- priamente dito, essencial para o sucesso da ten-
juvida), com funcionamento contíguo ao plantão tativa de ruptura com a situação de violação
judiciário nos horários em que os serviços de dos direitos humanos, a restauração da cidada-
atendimento estão fechados, apesar de utilizar as nia feminina carece de propostas baseadas em
casas abrigo existentes no município do Rio de uma sociedade alternativa a esta, onde as de-
Janeiro. Este procedimento não foi previsto nas sigualdades sociais potencializam a violência
Diretrizes Nacionais anteriormente mencionadas de gênero. A densidade teórica e política dos
projetos e planos de trabalho devem combinar Outra particularidade dos Centros de Refe-
respostas dirigidas ao ser singular com neces- rência diz respeito à sua dimensão replicadora:
sidades específicas, na base do “aqui e agora”, são espaços formativos de assistentes sociais, ad-
bem como devem projetar um lugar inexistente vogados e psicólogos, entre outros profissionais,
porque ainda não trilhado pela interessada, que que se capacitam no desenvolvimento de ações
possam derivar projeções futuras. Ao mesmo das políticas para as mulheres. A associação com
tempo, deve integrar uma rede em que o campo unidades de ensino de universidades, para tanto,
da atenção possa ser ampliado e fortalecido por é essencial, mas insuficiente. É necessário, ade-
meio de ações consorciadas. mais, difundir os estudos e as práticas na pers-
Acompanhar equipes implicadas com prá- pectiva de gênero com base no entrelaçamento
ticas dessa envergadura, que associam o inter- com entes governamentais e da sociedade civil
pessoal e o societal – a perspectiva da totalida- capazes de dinamizar o progresso da cidadania,
de – às dimensões propositivas e interventivas, em especial, da cidadania feminina.
engloba pelo menos quatro grandes eixos de A Lei Maria da Penha fortaleceu e ampliou
preocupações a serem combinados, com base a inserção qualificada do Estado brasileiro no
na construção dialógica do conhecimento e da enfrentamento da violência de gênero. Para coi-
ação: 1) proposta teórico-política do projeto, o bir e prevenir a violência doméstica e familiar
que engloba recompor o processo histórico, a contra a mulher, associa ações de assistência e
função social, a perspectiva teórica e a ação po- proteção, o que fortalece o campo das políticas
lítica, com base nas origens da formulação da públicas de enfrentamento, nos seus diversos
proposta, no impacto na formação profissional serviços. A transversalidade da dimensão do
e a intervenção formativa na rede; 2) violência gênero nas políticas públicas, conquanto de-
de gênero como categoria teórica (histórica e monstrado formalmente no Plano Nacional
analítica) e implicações políticas das escolhas de Políticas para as Mulheres, em geral, e no
teóricas; 3) Estado e políticas públicas, a par- Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
tir do Sistema Internacional dos Direitos Hu- contra a Mulher, em particular, se depara com
manos – convenção, tratados, tribunais etc. –, o desafio da coordenação de setores diversos,
a formulação de políticas públicas e propostas a propalada intersetorialidade, potencializado
de envolvimento da área de segurança pública pela dimensão continental do Brasil, sobretudo
e justiça criminal. Para tanto, é essencial ver- pela heterogeneidade regional e estadual.
ticalizar o entendimento do Plano Nacional de As experiências em desenvolvimento nos
Políticas para as Mulheres e do Pacto Nacional diversos setores precisam ser inventariadas e
de Enfrentamento da Violência contra a Mu- examinadas: na assistência social, por exemplo,
lher, a Política Nacional de Assistência Social, os centros de referência especial temático para
e a proteção social básica e especial, o sistema as mulheres, assim como a utilização do bene-
único de segurança pública e a judicialização fício eventual, previsto no Suas, para situação
da violência de gênero, e 4) o ensino-aprendi- de vulnerabilidade temporária, ou ainda o en-
zagem da prática multidisciplinar por meio de saio piloto de instalação do Creas Simone de
proposta interdisciplinar envolvendo o serviço Beauvoir no I Juizado da Violência Doméstica
social, a psicologia, o direito e a pedagogia, en- e Familiar contra a Mulher no Rio de Janeiro;
tre outras profissões, com vistas ao aprofunda- nas políticas para as mulheres, a concertação da
mento de conteúdos emergentes na ação, dentre Política Nacional de Abrigamento de Mulheres
os quais exemplifico com os temas da educação em Situação de Violência com alternativas de
popular, psicoterapia breve, Lei Maria da Pe- abrigo; na saúde, nas variadas expressões da
nha: punição/pena x medidas protetivas e edu- violência na vida cotidiana e na justiça crimi-
cação não sexista. nal, a aplicação da Lei Maria da Penha nas dele-
gacias e juizados, o que engloba o arrolamento
das ações dos operadores de direito nas delega- constituição de um quadro permanente de equi-
cias, juizados, ministério público e defensoria. pes técnicas, assim como a manutenção dos
Desta sorte, se é necessário envolver outros serviços – centros especializados de referência
setores na capilarização da atenção às mulheres e casas-abrigo; 4) dinamizar estratégias já pre-
em situação de violência de gênero, com base na vistas na Política Nacional de Assistência So-
direção política da SPM, capacitando seus pro- cial e na Proteção Especial do SUAS, no que
fissionais, é também fundamental criar quadro diz respeito ao provimento das necessidades de
permanente capaz de desenvolver ações políticas mulheres e sua prole em situação de violência
na perspectiva da totalidade. A formação contí- doméstica; 5) afinar a concertação dos poderes
nua das equipes multidisciplinares, sem prejuízo da República no enfrentamento à violência con-
das capacitações profissionais, tem o objetivo tra a mulher e 6) investimento na consolidação
de fortalecer propostas, procedimentos e sujei- de redes de enfrentamento – locais, regionais,
tos vulnerabilizados pelas trocas afetivas que a nacional e internacional – com vistas a coibir e
interação cotidiana com histórias marcadas pela punir a violação de direitos humanos e proteger
violação dos direitos humanos envolve. mulheres vulneráveis.
Isto posto, é necessário pensar no suporte O convite à avaliação do campo ora exami-
para os profissionais que lidam com a restau- nado tem o desafio de estimular perspectivas
ração da cidadania e devem ter direitos assegu- futuras na democracia brasileira, marcada por
rados na forma da constituição de uma carreira, numerosos paradoxos e contradições.
isto é, um quadro permanente, qualificado e
especializado na difícil tarefa de tramar pers- Referências bibliográficas
pectivas futuras – pessoais e societais –, para
que possam vocalizar demandas – como, por ALMEIDA, S. S. Femicídio: algemas (in)visí-
exemplo, jornada de trabalho semanal, folga, veis do público-privado. Rio de Janeiro: Revinter,
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Associar as políticas públicas de gênero e o
_______. Violência de gênero e políticas públi-
Serviço Social, independentemente das profis-
cas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
sões implicadas na atenção integral à mulher,
envolve considerar de imediato os seguintes _______. “A política de direitos humanos no Bra-
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combata as desigualdades sociais nas suas va- In: Revista Praia Vermelha. Estudos de Teoria e
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2011. Disponível em: <http://www.sepm.gov.br/
br/institucional/comissoes/cojem/comissao_en- 9
Para fins de um balanço sobre a Seguridade e
derecos.jsp>. a Assistência, sugiro a leitura de três textos in-
trodutórios: 1) Maria Carmelita Yasbek, Esta-
do e Políticas Sociais; 2) Maria Lucia Teixei-
Notas
ra Werneck Vianna, A nova política social no
Brasil: uma prática acima de qualquer sus-
1
Sistematização inicialmente elaborada em
peita teórica?, ambos de 2008; e 3) Ana Paula
2011, no contexto do relatório final da pesqui-
Ornellas Mauriel, Combate à pobreza e (des)
sa fomentada com recursos do Edital Huma-
proteção social: dilemas teóricos das ‘novas’
nidades 2008, pela Faperj. Serviu, ademais, à
políticas sociais, de 2006.
participação no painel “Experiências de inter-
venção com mulheres que sofrem violência
10
Essas questões organizaram a elaboração do
doméstica”, no I Encontro Internacional sobre livro de Saffioti e Almeida (1995) e oferecem
Violência de Gênero Brasil-Espanha, promo- elementos heurísticos que permitem proble-
vido pela Escola de Magistratura do Estado do matizar um fenômeno social da maior atua-
Rio de Janeiro. lidade, porque onipresente na organização da
sociedade. A partir de pesquisa de campo em
2
Para o debate sobre o processo de produção do
delegacias policiais distritais e especializadas
conhecimento, ver Gohn (1987).
no atendimento à mulher, na qual foram en-
3
Para fins de aprofundamento sobre a inter- trevistados assistentes sociais, policiais civis,
face das relações sociais, em especial as de mulheres vitimadas e autores de violência de
gênero, os direitos humanos e o Serviço So- gênero na relação conjugal, e da revisão críti-
cial, recomendo a análise de Almeida (2004, ca da bibliografia, as autoras apresentam um
2005 e 2007). instigante debate sobre limites e possibilida-
4
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/ des da formulação e implementação de polí-
home/estatistica/pesquisas/pesquisa_resulta- ticas públicas face ao fenômeno da violência
dos.php?id_pesquisa=40> doméstica.
5
Dados extraídos do Anuário Mulheres Bra- 11
Disponível em: <https://sistema3.planalto.
sileiras 2011. Diponível em: <http://www. gov.br//spmu/atendimento/atendimento_mu-
dieese.org.br/anu/anuarioMulheresBrasilei- lher.php?uf=RJ>
ras2011.pdf> , p. 228. 12
Disponível em: <https://sistema3.planalto.
6
De acordo com definição consagrada pelo gov.br//spmu/atendimento/atendimento_mu-
IBGE, a População Economicamente Ati- lher.php?uf=RJ>
va (PEA) inclui ocupados – empregados no 13
Disponível em: <https://sistema3.planalto.
mercado de trabalho ou no informal – e de- gov.br//spmu/atendimento/atendimento_mu-
socupados – à procura de emprego. A Popu- lher.php?uf=TD>
lação Economicamente Inativa (PEI) inclui 14
Disponível em: <http://aplicacoes.mds.gov.
aposentados, asilados, estudantes, as/os que
br/sagi/RIv3/geral/index.php>
vivem de renda e as/os que cuidam de afaze-
res domésticos.
7
Disponível em: <http://www.unifem.org.br/ Lilia Guimarães Pougy
sites/700/710/progresso.pdf> p.154 *
Professora associada da Escola de Serviço
8
Duas referências iniciais: a primeira, a tese de Social da UFRJ; coordenadora do curso de
doutorado de Almeida (1998) e a dissertação de residência multidisciplinar em Políticas de
mestrado de Gomes (2010), seguido de resul- Gênero e Direitos Humanos da UFRJ e Su-
tado de sua pesquisa para a tese de doutorado. pervisora na formação da equipe técnica do
CRMM-CR/Nepp-DH/UFRJ
ARTIGO
Resumo: A ampliação das políticas públicas de gênero e etnia nos últimos anos, no Brasil, é resultado das transforma-
ções que vêm ocorrendo na organização dos Estados no cenário internacional, por meio da Organização das Nações
Unidas (ONU), que protagonizou este processo com o lançamento das Metas do Milênio, no início de 2000. A mudança
significativa no paradigma econômico estabelecido na perspectiva de um “desenvolvimento sustentável” tem impulsio-
nado estas políticas. A associação do produto interno bruto (PIB) com o acesso da população a direitos sociais básicos,
a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, acesso este quantificado no IDH – Índice de Desenvolvimento
Humano – tem provocado inúmeras mudanças nos planos de desenvolvimento econômico em diferentes países, cujo
impacto é percebido no mercado de trabalho e nas medidas que as corporações empresariais têm adotado para se ade-
quar ao novo modelo. Garantir acesso a postos de trabalho a grupos sociais vulneráveis como mulheres, etnias discrimi-
nadas e deficientes tem sido um critério para avaliar o desempenho econômico em um mercado global, assim como para
avaliar formas de gestão governamental, o que tem oportunizado controvérsias e críticas ao modelo de “governança
global”. As inovações exigidas pelo novo modelo implicam na apropriação de conceitos e abordagens analíticas pouco
comuns nas instituições, órgãos governamentais, empresas e diversos organismos mobilizados para a implantação des-
tas políticas, como a das relações de gênero e etnia. O estudo tem por interesse analisar o potencial de mudança destas
políticas no mercado de trabalho e como os mecanismos de formação profissional têm sido atingidos por este processo.
Abstract: The expansion of public policies on gender and ethnicity in recent years, in Brazil, is the result of the trans-
formations occurring in the organization of States in the international , on the world backage through the United Nations
(UN), who started in this process with Millennium Development Goals in early 2000. A significant shift in the economic
paradigm established the goal of a “sustainable development” has driven these policies. The association of gross domes-
tic product (GDP) with the population’s access to basic social rights from the Universal Declaration of Human Rights,
Access quantified in this HDI - Human Development Index – has caused numerous changes in plans for economic deve-
lopment in different countries whose impact is felt in the labor market and the measures that corporations have adopted
to fit the new model. Ensuring access to employment for vulnerable social groups such as women, ethnic discrimination
and disabled has been a criterion for evaluating economic performance in a global market as well as to evaluate forms of
government management, which has provoked controversies and criticisms of the model of “global governance.” The
innovations required by the new model involving the appropriation of concepts and analytical approaches uncommon
in institutions, government agencies, companies and various organizations mobilized for the implementation of these
policies, such as gender relations and ethnicity. The study is analyzing the potential interest of these policies change in
the labor market and how the mechanisms of training have been affected by this process.
não e no rastro do movimento social, recupe- negra, utilizando a ideia de raça como base
ram-se as premissas colocadas pela antropo- para o seu discurso político –, entra em cho-
logia física do século XIX4. Na busca de uma que com estes questionamentos, pois se não faz
abordagem científica mais segura, essa área de sentido sustentar um conceito derrubado pe-
estudos utilizou-se de métodos que garantissem las evidências genéticas5, como sustentar uma
um conhecimento mais objetivo e que demons- identidade a partir destas premissas? Entretanto
trassem as diferenças entre os grupos humanos. é importante assinalar que este não é um pro-
Listou as características físicas de um e outro, blema novo no campo das identidades étnicas,
as diferentes origens histórico-geográficas, no Brasil. Pode-se afirmar que ele se apresenta
mas, principalmente, debruçou-se em desenvol- a partir das teorias da miscigenação como fa-
ver metodologias que dissecassem (literalmen- tor positivo na afirmação do Estado-Nação na
te) sua fisiologia, anatomia etc. relacionando-as sequência histórica Gilberto Freyre-Florestan
com os avanços civilizatórios. Daí começou o Fernandes (1930-1950). Configura-se, a partir
problema... Hierarquizaram estas diferenças do reconhecimento da “mistura de raças” no
com base em uma perspectiva etnocêntrica do território brasileiro como um fato que favore-
homem branco europeu e tornaram o que era ceria positivamente uma identidade nacional,
possivelmente natureza em “poder sobre” a na- em contraponto aos argumentos eugênicos que
tureza de outros homens. a consideravam um obstáculo.
O que vem delineando as fronteiras no deba- A partir do momento em que é abandonada
te contemporâneo, particularmente no Brasil, é a a perspectiva da miscigenação como deteriora-
consistência do conceito de raça e certamente isto ção de um povo, se inicia um novo momento nas
implica em uma abordagem acadêmica e cientí- ciências sociais, a partir do qual se busca afirmar
fica do problema. É possível observar duas posi- uma forma alternativa de ser brasileiro. A rique-
ções bem antagônicas: a) os que se baseiam nele za cultural e a possibilidade única para o exer-
para recuperar o potencial de formação de grupos cício da tolerância na convivência entre grupos
de identidade com consciência da opressão, ob- tão diferenciados favoreceriam uma identidade
jetivando superar a discriminação com práticas multicultural, o que inviabilizaria práticas segre-
de organização no campo político; b) aqueles gacionistas como em outros países. Este foi um
que consideram a própria utilização do conceito ponto de muita controvérsia, a partir do estudo
uma falácia e uma estratégia equivocada para a de Gilberto Freyre, cujo enfoque nos costumes e
superação de práticas discriminatórias no campo cultura tipicamente brasileira recupera assimila-
das relações étnicas, pois a própria incorporação ções em diferentes campos de análise: arte, culi-
do conceito de raça, sem uma avaliação crítica e nária, formas de convivência e relacionamentos
histórica de sua evolução é, por si mesma, discri- inter-raciais. Estas prerrogativas foram consi-
minatória. O fato do conceito de raça ter como deradas uma vantagem para a configuração de
origem as iniciativas da antropologia física que uma democracia de fato “multirracial”, com uma
revelam os desdobramentos etnocêntricos de seus harmoniosa convivência entre as diferentes “ra-
estudos pesa nesta rejeição observada na segun- ças”, conceito utilizado sem os questionamentos
da tendência. Uma série de afirmações científicas apontados anteriormente.
quanto à impossibilidade de uma origem pura na Este pensamento favoreceu um enfoque
combinação genética de grupos populacionais “otimista” quanto à inexistência de discrimi-
coloca a última pedra no túmulo da “identidade nação entre grupos étnicos no Brasil, o que foi
racial”. Fica claro que o problema é de fundamen- contestado por Florestan Fernandes, escolhen-
to teórico, principalmente, quando está em foco a do como objeto de análise a situação dos ne-
formação de identidades. gros em São Paulo. Este autor merece destaque,
O que algumas vertentes do movimento ne- particularmente pelo seu enfoque na educação
gro pretendem – a afirmação de uma identidade como fonte de mensuração de inclusão social
em uma perspectiva sociológica. Florestan Fer- da mobilidade social, por mecanismo de acesso
nandes, em conjunto com Roger Bastide, apre- aos bens e riqueza produzidos pela sociedade
sentou uma série de dados que demonstra que moderna, evidencia um viés “racial” de difícil
a transição de uma sociedade escravocrata de solução no Brasil, principalmente, por ser um
modelo agrário arcaico para uma de molde ur- problema negado.
bano-indústrial foi desfavorável ao negro, em A perspectiva do autor é formulada a partir
comparação com o branco “nativo” e o bran- de uma abordagem econômico-política que deu
co imigrante. Este processo evidencia os limi- um novo rumo ao debate na época, o qual ten-
tes para a inclusão deste grupo populacional, dia a fortalecer o modelo brasileiro como uma
constituído a partir da escravidão no Brasil, na sociedade sem discriminação, de convivência
sociedade moderna de modelo democrático, pacífica e plena entre diferentes grupos étnicos.
onde a educação é um dos principais pilares A partir dali, o reconhecimento do conflito se
para a sua afirmação. O autor demonstrou que fortalece e chega até os dias atuais. Portanto, a
os negros estavam mal colocados no mercado importância de uma reação dos negros ao dis-
de trabalho do tipo urbano-industrial, onde se curso da amabilidade e tolerância foi importan-
inseriam; com muita desvantagem, no sistema te do ponto de vista do autor e evidencia que
educacional; e praticamente ausentes no seu ul- este problema está colocado há muito tempo no
timo nível: o ensino superior. Brasil. O apelo ao conceito de raça foi impor-
O interessante no seu estudo é que, além de tante para o fortalecimento do próprio grupo e
descortinar os véus da discriminação com base denúncia do problema. Mas o seu fundamento
no preconceito, indica a peculiaridade deste em preceitos biológicos fragilizou com o tempo
processo em nossa cultura, com forte influência o argumento e encontra muita resistência nas
da moral católica e marcado pela ambiguida- ciências atualmente.
de. Ao mesmo tempo assinala os movimentos Outro problema que fragiliza mais esta
de resistência dos negros no Brasil. A partir da perspectiva é o debate da luta para a afirmação
contribuição de Florestan Fernandes é possível da identidade indígena e as iniciativas de um
avaliar que este problema não é novo no Bra- movimento próprio para a garantia dos direitos
sil, evidenciando-se desde a década de 1930, desta população, que até há pouco tempo, pelo
quando surgiram os protestos que configuraram nosso ordenamento, era considerado incapaz
o movimento chamado Segunda Abolição. Este juridicamente, não sendo resguardado o seu di-
movimento marca a contradição do discurso vi- reito à cidadania. Neste caso, a contribuição de
gente quanto à cidadania e às instituições demo- Florestan Fernandes não seria de grande impac-
cráticas do ponto de vista do negro brasileiro. to, pois a sua abordagem trata da expectativa de
O autor destaca São Paulo como uma região grupos populacionais de inclusão, no contexto
que merecia ser um relevante campo empírico urbano-indústrial que pressupõe uma integra-
para a sua análise sociológica, tendo em vista a ção a este universo, por meio do mercado de
posição de vanguarda da região na instalação de trabalho, diretamente. Esta não foi claramente
um modelo urbano-indústrial, com forte fluxo uma aspiração dos indígenas no Brasil.
de imigração, cuja característica marcante foi É curioso observar que também no interior
a sua qualificação e formação política na pers- do movimento indígena surgem impasses quanto
pectiva democrática. Portanto, servia, de fato, às formas de “enquadramento” de grupos dife-
como um bom parâmetro para avalizar a poten- renciados entre eles e as iniciativas de cunho téc-
cialidade de o Estado brasileiro assegurar este nico-científico em tipificá-los. São inúmeros os
modelo, o que pressupunha garantir mecanis- grupos étnicos; entretanto, há uma tendência em
mos de inclusão sociais realmente eficientes, de homogeneizá-los, a partir de um fenótipo “tipo
âmbito ampliado. Florestan Fernandes, de certa índio” e com base em modelos do século XIX. O
forma, conclui que a democracia viabilizadora debate sobre a sua identidade étnica estabelece
outros parâmetros, mas de qualquer forma, colo- Acompanhado desta ideia de indivíduo es-
ca um problema do ponto de vista institucional, tavam os valores máximos da liberdade e auto-
baseado numa identidade nacional a ser cons- nomia, preceitos interditados às mulheres, cuja
tituída. Como é ser brasileiro na perspectiva manifestação como indivíduo era praticamen-
da miscigenação e o quanto cada um dos gru- te inexistente. Nesse momento se igualavam
pos assinalados, como partícipes deste quadro, aos escravos. Apesar de sua participação em
contribuiu efetivamente para a sua afirmação e ações que antecederam a Revolução Francesa
como deve ser daqui em diante. Certamente, ain- e ao longo de sua consolidação, empunhando
da não encontramos respostas claras quanto a es- as suas bandeiras, a inclusão das mulheres nes-
tas indagações, mas elas estão na base de muitas ta nova ordem não se verificou. Este processo
ambiguidades expressas pelas políticas públicas implicava em mudanças profundas de valores
que tentam normatizar estas demandas. e impulsionou a sua articulação no combate ao
A principal ambiguidade está relacionada esvaziamento de sua participação no espaço
com o conceito de raça e os seus antecedentes público e político. Portanto, as aspirações de
biológicos. Entretanto, a sua utilização cada emancipação como cidadãs foram frustradas
vez mais, do ponto de vista analítico, cai em pelas barreiras colocadas pelo novo regime que
desuso, é contestado na base explicativa e difi- se restringiu a uma democracia com critérios
cilmente poderá ser utilizado sem contestações androcêntricos e patrimoniais.
imediatas como um recurso para explicações do A partir da evolução do movimento femi-
fenômeno de formação de identidades étnicas. nista, coloca-se no centro deste debate a via-
Não se pode afirmar o mesmo no campo das bilidade da mulher como indivíduo autônomo,
relações de gênero. cuja expressão da vontade deve ser livre. Um
veio inicial desta discussão se abre a partir de
O conceito de sexo e gênero reflexões sobre a natureza de homens e mulhe-
res e a própria antropologia física corroborou
A controvérsia quanto à determinação bio- para uma concepção “científica” sobre estas
lógica na constituição da identidade de gênero diferenças, de modo a reforçar a inferioridade
está na origem de sua própria afirmação en- da mulher em relação ao homem, confirmando
quanto campo temático e tem semelhanças com uma hierarquia com base em avaliações fisioló-
o debate sobre a identidade étnica no que se gicas e anatômicas que desde a filosofia antiga
refere à consolidação de uma ordem democrá- já se delineava. O argumento que fundamenta
tica e à concepção de cidadania. O movimento a hierarquia tem assertivas biológicas, reprodu-
feminista que apresenta o problema e denuncia zindo o que foi observado no debate sobre as
a situação de opressão da mulher na cultura diferenças étnicas.
androcêntrica ocidental, no primeiro momen- A introdução da noção de gênero neste cam-
to, fez apelo às diferenças biológicas entre os po de ação é uma resposta a estas abordagens
homens e as mulheres, resgatando um corpo de cunho biológico, pois ressalta as implica-
próprio, diluído na estrutura masculina de um ções culturais do que se conforma como mas-
corpo idealizado e representado como o padrão culino e feminino em diferentes culturas. É um
e ideal de perfeição da natureza humana – o contraponto para a concepção de sexo, que no
corpo do homem. Entretanto, o que provoca início do movimento feminista foi enfatizado,
este “despertar” das mulheres que se organizam exatamente, pela necessidade de marcar a di-
enquanto grupo de identidade, foram os ideais ferença em relação ao homem e começar pelo
do Iluminismo, que propõe a igualdade do indi- reconhecimento da individualidade da mulher,
víduo, a partir de uma nova ordem a ser garan- a partir do reconhecimento do seu próprio cor-
tida sobre os direitos resguardados pelo modelo po. Instaura-se um movimento permanente e
representativo de governo. ambíguo, pois ao mesmo tempo em que afirma
a diferença em relação ao homem – um corpo daí, considera-se que para compreender o fenô-
próprio com base em uma matriz biológica, rei- meno da hierarquia de gênero e consequentes
vindica a igualdade do ponto de vista social e discriminações é necessário recorrer permanen-
político – igualdade de condições, equiparan- temente à interseção entre a esfera biológica e
do-se ao homem como cidadã. Novamente, sur- cultural para explicar o comportamento de ho-
ge com força neste campo de investigações e mens e mulheres e, principalmente, avaliar ca-
práticas a dicotomia biológico-cultural que ten- pacidades e desempenhos.
siona as ciências sociais desde o início. Algumas vertentes do movimento feminista
O movimento feminista, quando evoluiu mostraram-se insatisfeitas com o rumo destas
para uma discussão sobre relações de gênero observações, argumentando que ignoravam o
em oposição à condição exclusiva da mulher impacto da supremacia masculina na organiza-
– indivíduo do sexo feminino –, estabelecendo ção da sociedade vigente em toda a sua inten-
uma perspectiva relacional quanto ao fenôme- sidade, destacando a evidente vulnerabilidade
no da hierarquia entre homens e mulheres na da condição da mulher. Mantinham, assim,
sociedade ocidental, se afasta da argumentação reivindicações e ações que fortalecessem a sua
biológica quanto a este fenômeno. E, come- autoestima e políticas eficazes de combate à
ça uma intensa disputa no interior do próprio discriminação e à violência contra a mulher,
movimento quanto à matriz explicativa mais considerando que esta seria uma etapa anterior
condizente com a estratégia da luta política a qualquer consideração da condição mascu
que implicava na afirmação da cidadania femi- lina na sociedade. Baseiam a sua avaliação em
nina. O ponto de inflexão colocado por parte situações evidentemente desvantajosas para as
da militância é o que pressupõe a ação política: mulheres, bem marcantes na sociedade con-
estabelecimento de um sujeito com identidade temporânea, como a inserção desigual no mer-
própria, consciente de sua condição e a partir cado de trabalho, a violência contra a mulher,
daí, capaz de resistir à opressão. No caso, nesta as oportunidades educacionais etc. Esta con-
perspectiva inicial do feminismo, o opositor era trovérsia ainda está presente no debate, apesar
o homem, considerado biologicamente superior de existirem algumas iniciativas no sentido de
e preparado para exercer o domínio ou tutelar a favorecer uma desconstrução da mentalidade
mulher, um ser inferior, incapaz de julgamento androcêntrica, dirigida especialmente aos ho-
próprio. mens, no âmbito da própria política pública6.
A introdução do conceito de gênero além Talvez, nessa peculiaridade da elaboração
de relativizar o determinante biológico como do conceito de gênero – o seu aspecto relacio-
uma via de mão única e enfatizar a influência nal, salientando o cultural, mas não eliminando
cultural no comportamento de homens e mulhe- o seu determinante biológico, o sexo, para com-
res tira o foco da condição feminina exclusiva- preender os significados conferidos ao mascu-
mente. O conceito implica em uma perspectiva lino e ao feminino, na sociedade ocidental –,
relacional em que o feminino é estabelecido esteja a principal diferença entre a discrimina-
a partir do que é constituído como masculino ção de gênero e a discriminação étnica. Talvez,
culturalmente e vice-versa. Portanto, coloca em seja aí também que se estabeleça a brecha que
debate a necessidade de agir sobre a condição permite que ainda seja possível argumentar-se
masculina para reverter o quadro androcêntrico com tanta desenvoltura “científica” os determi-
da própria cultura, a partir do momento que es- nantes biológicos das diferenças de aptidões e
tes comportamentos não são determinados pela desempenho entre homens e mulheres, como já
biologia. Entretanto o sexo, na sua dimensão não ocorre, com tanta facilidade, para as carac-
biológica é base de construção simbólica do terísticas étnicas.
que se representa como masculino e feminino Neste campo, o feminino é considerado o
em todos os grupamentos humanos. A partir contraponto do masculino. Para se estabelecer
Nicholson (2000); Louro (1998); Sorj e Heilborn detrimento do enfoque do gênero e uma leitura
(1999). Gênero não é “sinônimo” de sexualidade, biologizante do tema, o que vem sendo inten-
mas as construções relativas às práticas sexuais sivamente questionado. A proposta neste sen-
estão inscritas nas relações de gênero que reve- tido tenderia a reduzir o problema e colaborar
lam símbolos que socialmente vão “conferindo para reforçar a diferença entre meninos e meni-
forma” às diferenças que ilustram o feminino e o nas com base no enfoque biológico, localizado
masculino em culturas diversas. Por sua vez, es- genitalmente e essencializar comportamentos
tas diferenças vão demarcar lugares, influenciar por meio de um discurso naturalizante das di-
atitudes e práticas determinadas, no exercício do ferenças. Se, por um lado, esta citação insinua
prazer sexual definido como feminino e mascu uma crítica à naturalidade do corpo através da
lino, a partir de corpos que “funcionam” de forma afirmação de variações culturais, por outro, ao
diferente, na sua interface com o campo biológi- final do trecho, a sexualidade é reinscrita como
co. Daí surgem termos como passivo e ativo, ro- um invariante histórico, uma entidade natural
mântico e “sexualizado”, demarcando-se territó- que perpassaria todas as culturas ainda que se
rios muito rígidos e identidades muito fechadas manifeste nestas de formas diferentes. Ainda
para homens e mulheres. A estas demarcações se que o documento admita manifestações diver-
opõem algumas correntes de estudos, contrárias sificadas da sexualidade, ele não problematiza
aos enfoques binários (homem/mulher; homos- a categoria sexualidade sob o ponto de vista de
sexual/heterossexual), pois sustentam que estas sua constituição histórica, da mesma forma que
representações que constroem significados para o em relação a outras categorias, como homosse-
masculino e feminino, transitam permanentemen- xualidade e heterossexualidade.
te entre uns e outros sujeitos de sexos diferentes. Apesar das críticas revelarem a importância
O debate neste campo teórico provoca um de uma reflexão com base nos estudos de gê-
questionamento dos lugares, das práticas sociais, nero e o avanço no questionamento do modelo
políticas e econômicas, ampliando a possibilida- binário no trato deste problema, faz-se necessá-
de de ação para indivíduos de ambos os sexos em ria uma análise do fracasso da incorporação dos
várias dimensões da vida cotidiana. Entretanto, temas transversais nos PCNs pela ótica dos pro-
como as mulheres vem, historicamente, se apre- fessores e algumas reflexões mais cuidadosas
sentando numa situação mais vulnerável diante por parte dos pesquisadores do gênero, diante
dos mecanismos de poder instituídos, medidas desta perspectiva. O que tem sido observado no
de apoio à sua autonomia – como as políticas de estudo desenvolvido e, particularmente, na ex-
ação afirmativa, no campo do trabalho e da polí- periência com o material educativo é que tem
tica e, algumas mais timidamente, no campo da sido muito difícil acionar alguns mecanismos
educação – foram aplicadas. Uma das medidas de equidade de gênero na escola por falta de
mais conhecidas no Brasil, apresentadas recen- condições de trabalho e não propriamente de
temente, conforme mencionado antes, foi a pu- interesse dos professores.
blicação dos PCNs, em 2000, cuja parceria com De qualquer forma, entre os pesquisadores, é
a área da educação foi estratégica na abordagem necessária uma releitura da proposta dos PCNs,
do problema do gênero como uma possível po- considerando a realidade precária de muitas es-
lítica afirmativa nesta área, visto que coloca em colas, mesmo nas regiões mais urbanizadas e de-
debate o problema da hierarquização na relação senvolvidas como os grandes centros, quiçá as
entre meninos e meninas, apontando situações regiões mais empobrecidas do país. Os profes-
desfavoráveis para estas últimas e o problema da sores dão aulas em mais de uma escola, têm vín-
autoestima (Silva, 2007). culos empregatícios precários, dividem-se entre
Muitos pesquisadores das relações de gê- turmas numerosas com faixas etárias diferen
nero tendem a rejeitar os PCNs, criticando o ciadas e realidades muito adversas à capacitação
enfoque priorizado – o da sexualidade –, em continuada. Entre as exigências de aprovação
dos alunos com deficiências anteriores, estatís- organização, particularmente, as que estão as-
ticas cansativas a serem concluídas, preparo de sociadas ao mercado de trabalho, perdendo-se
aulas, dramas sociais de muitas famílias que muitas vezes um conjunto de dados importantes
frequentam a escola, com quadros de violência para compreender a trajetória profissional por
doméstica, agressões locais, como discutirem re- sexo, do ponto de vista do gênero, na estrutura
lações equânimes entre homens e mulheres por do emprego.
meio da grade curricular? (Silva, 2007).
Os PCNs também lançaram o debate sobre Desenvolvimento sustentável – o novo viés
o multiculturalismo no Brasil como um tema econômico e seu impacto no debate sobre as
transversal no ensino fundamental. É possível políticas de gênero e etnia
observar uma direção diferenciada destes, em
comparação com as políticas de ação afirmati- Apesar das críticas e ponderações sobre a
va étnico-racial dos últimos anos no país. Os viabilidade do desenvolvimento sustentável no
PCNs, na ocasião de seu lançamento, revela- debate contemporâneo em âmbito nacional e
ram uma preocupação dos gestores em implan- internacional é importante reconhecer um fato:
tar a política relacionada ao multiculturalis- houve alterações significativas no mercado e no
mo por meio de instrumentos educacionais de perfil do consumidor nos últimos 20 anos que
forma descentralizada. Foram consideradas as revelam uma mudança de paradigma, do ponto
diferenças regionais do país que apresenta ca- de vista econômico, que interfere nas formas de
racterísticas étnico-raciais muito diversas nos inserção e captação de mão de obra para o mer-
grupos populacionais, distanciando-se de uma cado de trabalho. A emancipação da mulher ao
tendência registrada nas ações mais recentes longo do século XX, particularmente na cultura
relacionadas às políticas de ação afirmativa ét- ocidental, repercutiu em um quadro funcional
nico-racial que destacou a situação dos negros muito diferenciado em diversas áreas profissio-
no país, por meio da proposta do Estatuto da nais. Tratando-se de uma realidade imersa na
Igualdade Racial. economia de mercado, onde a lógica da pro-
As polêmicas e controvérsias que cercaram dução de bens e serviços tem prevalecido, os-
este documento indicaram o nível de tensão cilando entre o discurso da inclusão social, da
que estas iniciativas institucionais que interfe- ascensão social e da possibilidade de acumular
rem em “demarcações étnicas”, ainda provo- patrimônio em patamares elevados, é necessá-
cam no Brasil. Medidas têm sido propostas de rio considerar algumas controvérsias deste mo-
forma mais explícita na ocupação de vagas no delo para compreender a sua interlocução mais
mercado de trabalho e estas polêmicas estão imediata com as políticas de gênero e etnia.
muito distantes da superação. As formas clas- A partir das iniciativas da ONU, conforme
sificatórias estabelecidas para levantamento de apontado anteriormente, define-se uma agenda
dados referentes a características étnico-raciais internacional que inclui diversos temas: da er-
têm revelado a dificuldade dos gestores em li- radicação da pobreza e meio ambiente à pro-
dar com estas novas ideias e programas, cuja posta de estabelecer uma parceria mundial para
adesão de empresas e organismos privados, o o desenvolvimento (meta 8). Esta meta provoca
Estado brasileiro tem incentivado. As formas o debate sobre o endividamento de países em
classificatórias que integram, definitivamen- condições de IDH muito precário, impondo a
te, a variável sexo entre os levantamentos de necessidade de um compromisso conjunto para
dados e cadastros para elaboração de perfil de realização de acordos que permitam alavancar
empregados sob as diferentes modalidades de as suas economias, o que implica negociações
cruzamento de informações ainda enfrentam di- com credores. Nesta perspectiva, o envolvi-
ficuldades. É muito comum, ainda, a subutiliza- mento de empresas e de instâncias que trata-
ção da informação sobre o sexo do indivíduo na vam dos interesses comerciais internacionais
foi inevitável. Este processo resulta em um dis- impactos ambientais, principalmente, pela afir-
curso que enfatiza a responsabilidade coletiva mação de uma legislação específica que vem
na garantia da justiça social, para o que con- sendo negociada entre países, intermediada
corre o IDH mais equilibrado. Deste ponto de pela ONU. Apesar de inúmeros conflitos e das
vista, essa responsabilidade não se limitaria ao limitações observadas para que estes preceitos
Estado, o que indica mudanças significativas no sejam implantados, conforme evidenciam os úl-
trato das questões sociais. timos embates entre as organizações que defen-
Houve uma “convocação” clara da parti- dem o meio ambiente e o governo brasileiro, as
cipação das empresas e da sociedade civil nas leis ambientais fazem parte, definitivamente, de
ações para fortalecimento da justiça social e um marco regulatório para o desenvolvimento
um afastamento do modelo do Estado de Bem- associado ao desenvolvimento social.
-Estar, que estabelece esta instituição como a Este debate, certamente, está associado à
principal ou única executora de ações que ga- articulação entre PIB, PIB per capita e IDH.
rantam o acesso aos bens essenciais na socie- A mudança na agenda global revela nova for-
dade contemporânea. Segundo esta concepção, ma de compreensão do desenvolvimento que, a
o modelo do “Estado mínimo” transferia para partir das metas estabelecidas, não deve ignorar
a sociedade civil e organismos do campo eco- os índices de desenvolvimento humano que tra-
nômico, a responsabilidade do enfrentamento tam de ações no campo social. É possível per-
da questão social. Esta controvérsia tem lugar ceber que os enfoques quanto a este problema
ainda hoje, quando vários embates surgem nas ainda diferem bastante. Percebe-se uma ava-
tentativas de afirmação das parcerias público- liação especificamente empresarial quanto ao
-privadas (PPPs), em projetos que visam o de- problema da questão social, associada à erradi-
senvolvimento econômico e social, o que vem cação da pobreza, que centra o seu argumento
sendo alvo de regulação permanente, limitan- na geração de empregos, a partir do aumento da
do-se o Estado a uma função fiscalizadora ou produção de bens e serviços e privilegia índices
controladora, restringindo-se a sua ação execu- que estão mais associados à infraestrutura para
tora de políticas sociais. Estes fatos impactaram impulsionar o desempenho econômico e a pro-
nas ações empresariais e no surgimento de inú- dutividade. A partir desta perspectiva enfatiza
meras organizações não governamentais que, a importância da participação do Estado nestes
frequentemente, orientam as suas ações a partir investimentos para viabilizar uma produção
desta agenda internacional com base nas metas sustentada.
do milênio estabelecidas pela ONU. Há uma tendência (quase “natural”) de em-
Outra abordagem é a do desenvolvimen- presários e economistas enfatizarem os precei-
to sustentável, concepção que se distingue do tos econômicos para projetar avanços no desen-
desenvolvimento social, mas vem sendo intrin- volvimento social, destacando a possibilidade
secamente articulado ao mesmo. O desenvolvi- de maior empregabilidade, o que depende de
mento sustentável pressupõe um crescimento investimento em infraestrutura que permita ex-
econômico que não comprometa o meio am- pandir o parque industrial, o que favoreceria o
biente (muito associado ainda à preservação de foco no PIB. Estas medidas levariam, inevita-
riquezas naturais, circunscritas a matérias-pri- velmente, a melhores condições de vida, caso
mas essenciais à sobrevivência humana), o que as políticas de distribuição de renda permitis-
se tornou tema paulatinamente incorporado às sem uma base para consumo que retire a popu-
ações empresariais, principalmente, a partir do lação dos níveis limítrofes quanto à pobreza ex-
lançamento das metas do milênio, constituin- trema e, ao mesmo tempo, “aqueçam o mercado
do-se a sétima meta lançada na agenda global. interno”. O enfoque daqueles que atuam com
Hoje, não é possível propor ações para impul- as políticas sociais mais diretamente tende a
sionar o crescimento econômico sem considerar valorizar as medidas que superem as condições
sub-humanas de existência, valorizando mais o das pessoas a liberdade de saciar a fome, de ob-
IDH, estimulando iniciativas mais diretas so- ter uma nutrição satisfatória ou remédios para
bre a pobreza, o que, frequentemente, favorece doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou
ações vinculadas a políticas de assistência so- morar de modo apropriado, de ter acesso a água
cial. A ação com base em uma articulação per- tratada ou saneamento básico. Em outros casos,
manente entre os índices PIB-IDH ainda está a privação de liberdade vincula-se estreitamen-
em construção e revela o potencial de avanço te à carência de serviços públicos e assistência
da perspectiva de responsabilidade social das social, como por exemplo, a ausência de progra-
empresas e da expansão desta lógica no mer mas epidemiológicos, de um sistema bem pla-
cado de trabalho. nejado de assistência médica e educação ou de
Entretanto, também permite observar as la- instituições eficazes para a manutenção da paz
cunas ainda existentes para que esta associação e da ordem locais. Em outros casos, a violação
seja incorporada definitivamente por todos os da liberdade resulta diretamente de uma negação
agentes envolvidos neste processo, conside- de liberdades políticas e civis por regimes auto-
rando as dificuldades analisadas na formação ritários e de restrições impostas à liberdade de
profissional. Entre as oito metas do milênio participar da vida social, política e econômica da
lançadas na década de 20009, quatro delas estão sociedade (Sen, 2000, p. 18)10.
diretamente vinculadas ao tema gênero, sendo Na perspectiva das oito metas do milênio
que as demais, em suas interfaces e propostas lançadas no começo dos anos 2000, a vulnera-
de ação mais específica nas “forças-tarefas” da bilidade da mulher e de muitos grupos étnicos
ONU fazem menção à importância da inserção discriminados tornaram-se um problema im-
das mulheres no mercado de trabalho de for- portante a ser superado com urgência para efe-
ma digna e do acesso à educação, vinculando o tivar o desenvolvimento de uma região, cujos
problema da pobreza à condição feminina em esforços internacionais se concentrariam na
várias regiões do mundo (Silva, 2007). meta 8 – estabelecer uma parceria mundial para
A inserção destes temas relacionados ao o desenvolvimento. As evidências de maior
projeto – gênero e etnia – surge neste contex- precariedade das condições de vida das mulhe-
to econômico, tendo em vista a iniciativa de res e dos filhos sob a sua guarda, assim como
um organismo internacional como a ONU que, as crescentes denúncias de genocídio em diver-
certamente, teve impacto em muitos países. A sas regiões do planeta, impulsionaram projetos
mudança dos paradigmas econômicos com base e convenções internacionais que propuseram
nestas premissas mais humanitárias revela in- ações de proteção e fortalecimento destes gru-
terlocutores que atuam ou se aproximaram des- pos. Entre os grupos etnicamente discrimina-
tes organismos propondo uma nova forma de dos, em conflitos armados, em cenário de guer-
estruturar a economia global. ra civil, mulheres e crianças são os que sofrem
O desenvolvimento requer que se removam mais intensamente a violência.
as principais fontes de privação da liberdade: Muitos destes projetos tinham como objeti-
pobreza e tirania, carência de oportunidades vo favorecer a sua autonomia econômica, facili
econômicas e destituição social sistemática, ne- tando o acesso à educação, qualificando-os para
gligência dos serviços públicos e intolerância ou a inserção no mercado de trabalho em condições
interferência excessiva de Estados repressivos. A mais competitivas ou oferecendo oportunidades
despeito de aumentos sem precedentes na opu- para desenvolvimento de aptidões que lhes per-
lência global, o mundo atual nega liberdades mitissem ter uma vida digna e ascender econô-
elementares a um grande número de pessoas mica e socialmente. Este processo foi constituí-
– talvez até mesmo a maioria. Às vezes, a au- do, mas se reconhece que muitas culturas ainda
sência de liberdade substantiva relaciona-se di- impedem mulheres de frequentar a escola, apre-
retamente com a pobreza econômica, que rouba sentam um índice acentuado de violência contra
mulheres e crianças do sexo feminino e segre- sentido de prover esses elementos que ele deno-
gam diferentes etnias na organização social. mina como cerceadores da liberdade individual
Neste sentido, as ações sobre estes grupos e que garantem aos indivíduos oportunidades
foram incentivadas pelo organismo internacio- e possibilidade de escolha. É indiscutível que
nal que sistematizou os Objetivos de Desenvol- garantem um mínimo de cidadania em um mun-
vimento do Milênio (ODM) e têm estimulado do onde a existência social, pelo mercado, de-
ações permanentes, de caráter estrutural e que pende da participação dos indivíduos enquanto
favoreçam mudanças definitivas neste cenário. mercadoria. Essa reivindicação nada mais é do
Diversas são as possibilidades de ação e diversos que a reafirmação, talvez esquecida em uma
os projetos executados a partir desta nova lógica fase histórica de neoliberalismo radial, dos
apoiada pela ONU, que tem interferido na lógica próprios direitos humanos – segundo o autor,
das organizações empresariais, cuja preocupação são direitos mais morais do que jurídicos (Sen,
não escapa ao Estado brasileiro, particularmente, 2000) – que pressupõe, no mínimo, a liberdade
quando lança diferentes propostas de políticas do indivíduo como propriedade de si mesmo, o
públicas relacionadas com estas temáticas. direito à propriedade mínima, que lhe garanta,
Do ponto de vista econômico existem di- pelo menos, as condições mínimas para dispor
vergências quanto a esta tendência, embora seja da única coisa que possui, si mesmo, com ca-
reconhecida a importância do deslocamento do pacidade de, quem sabe, encontrar um preço no
PIB para o IDH, em paradigmas de desenvol- mercado para poder tornar-se alguém.
vimento. Algumas escolas econômicas, particu- Mas, por outro lado, quando se vê um autor
larmente, aquelas que sediam uma crítica per- defendendo princípios presos em uma concep-
manente ao modelo capitalista de produção de ção de natureza humana e a uma realidade his-
bens e serviços, consideram que o argumento tórica tão distante, tem-se a impressão de que se
de Sen é frágil diante da lógica desigual “por está diante daquele tipo de ciência que “arruma
natureza” do sistema econômico, que se estru- os fatos sob a forma de um processo absoluta-
tura sobre estas bases. mente lógico, que se inicia a partir de premissas
Ninguém pode ser contra as tradicionais rei- aceitas axiomaticamente, tudo o mais sendo de-
vindicações básicas de saúde, educação, condi- duzido dela; isto é, age com uma coerência que
ções de moradia dignas, dentre outras. Diante não existe em parte alguma no terreno da reali-
da desumanidade natural do capitalismo como dade” (Arendt, 1996, p. 523) (cf. Sawaya, 2004).
o conhecemos, essas são reivindicações míni- A disputa das escolas de pensamento e o
mas para que, pelo menos, as pessoas possam embate de seus modelos de desenvolvimento
existir. Por outro lado, como são elementos bá- permanecem sendo importante considerá-los na
sicos que não são fornecidos naturalmente pelas delimitação do problema a ser investigado no
regras de mercado, é muito clara a necessidade projeto de pesquisa ora apresentado. Entretanto,
do provimento desses elementos básicos para a será destacado o que apresentam em comum: a
existência humana por parte dos Estados ou de valorização da garantia dos direitos fundamen-
organismos internacionais, com recursos oriun- tais na perspectiva dos direitos humanos uni-
dos da acumulação de capital, muitas vezes, re- versais. Não há divergência quanto à exigência
tirados a fórceps de empresas que relutam em destes parâmetros como premissa de qualquer
dar uma parte de seu excedente para isso, e hoje iniciativa de âmbito nacional ou internacional
criticam e fazem lobby político forte para aca- para superar o problema da pobreza e garantir
bar com o Estado de Bem-Estar, muitas vezes, o desenvolvimento econômico desejável em
impedindo os Estados nacionais de atuarem em patamares dignos, na economia global. O que
prol da dignidade social mínima das pessoas. está em discussão, provocando uma nova abor-
Portanto, ninguém em sã consciência pode- dagem quanto às tendências mais recentes na
ria criticar Amartya Sen por suas posições no direção da internacionalização dos mercados, é
o que Sen, criticamente, reconhece como uma radicalmente o resultado de relações econômicas
provável “ocidentalização” da economia e, não, locais e globais (Sen, 2010, p. 28).
exatamente, a sua globalização. Isto evidencia A política pública voltada para a educação
diferenças culturais no estabelecimento do mer- é sempre apontada como uma ação estratégica
cado global que não podem ser ignoradas, a não para o desenvolvimento de um país. Erradicar
ser ao custo de importantes avanços que já fo- o analfabetismo, assim como ampliar o acesso
ram conseguidos até o momento. ao ensino superior tem sido objeto de campa-
Para concluir, a confusão de globalização nhas frequentemente divulgadas e apoiadas
com ocidentalização não é somente a-histórica, em âmbito nacional e internacional e, particu-
como, também, desvia a atenção dos muitos be- larmente, no Brasil. Entretanto, é importante
nefícios potenciais da integração global. A glo- observar como este acesso é vivido se maneira
balização é um processo histórico que ofereceu diferenciada por pessoas do sexo masculino e
no passado uma abundância de oportunidades e feminino e pessoas pertencentes a grupos étni-
recompensas e continua a fazê-lo hoje. A sim- cos discriminados na sociedade, o que revela
ples existência de grandiosos benefícios poten- formas desiguais de vivenciar a cidadania para
ciais é que torna a questão da justiça na divisão homens e mulheres, pessoas de nacionalidades
dos benefícios da globalização tão criticamen- e/ou etnias discriminadas no mesmo território
te importante. O ponto da controvérsia não é nacional. Estes fenômenos têm origem nos pro-
a globalização em si, nem o uso do mercado cessos acionados pelas hierarquias de gênero e
como instituição, mas a desigualdade no equi- étnico-raciais, cuja fundamentação foi exposta
líbrio geral dos arranjos institucionais – que anteriormente. A argumentação busca eviden-
produz uma divisão muito desigual dos bene- ciar a relevância teórico-metodológica do es-
fícios da globalização. A questão não é somen- tudo para a compreensão destas políticas e seu
te se os pobres também ganham alguma coisa potencial de redução das desigualdades sociais.
com a globalização, mas se nela eles participam Não pode, contudo, ignorar alguns impasses
equitativamente e dela recebem oportunidades que têm se estabelecido no campo escolhido
justas (Sen, 2010, p. 31). para análise e um deles é o resultado delas no
Na disputa de modelos econômicos, o papel mercado de trabalho.
do Estado é outro ponto controverso e o âm-
bito de sua atuação tem sido objeto de debate As políticas públicas e os organismos inter-
permanente em todos os fóruns atualmente. Há nacionais no Brasil
um consenso quanto à sua função reguladora
e fiscalizadora, surgindo diferenças quanto ao Uma das “frentes” apoiada pelas políticas
seu alcance ou limite institucional em sistemas públicas no Brasil, foram as ações afirmativas
democráticos e sua responsabilidade como exe- para negros nas universidades brasileiras, objeto
cutor de políticas públicas. de investigação no projeto de pesquisa anterior,
O papel crucial dos mercados não torna as cuja análise é tratada no relatório apresentado.
outras instituições insignificantes, mesmo em Outra iniciativa do Estado brasileiro dirigiu-se
termos dos resultados que a economia de mer- inicialmente às empresas estatais e propôs ações
cado pode produzir. Como tem sido amplamente no interior do mercado de trabalho. É o caso do
demonstrado por estudos empíricos, os resul Programa Pró-equidade de Gênero, lançado em
tados de mercado são massivamente influencia- 2005, tendo repercussões no meio empresarial
dos por políticas públicas em educação, epide- brasileiro e, atualmente, intitulado Programa Pró-
miologia, reforma agrária, estabelecimentos de -Equidade de Gênero e Raça. Outra iniciati-
microcrédito, proteções legais apropriadas etc.; e va, muito debatida ao longo destes anos, foi o
em cada um desses campos, há ainda muito a fa- Estatuto da Igualdade Racial que foi aprovado
zer por meio da ação pública, o que pode alterar como lei em 2010 e estabeleceu uma forma de
classificação por cor, agregando tipos que o em diferentes estratos socioeconômicos. Este
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística processo tem impacto tanto em mulheres de
(IBGE) tem diferenciado como o preto e o pardo, baixa renda como sobre aquelas que pertencem
por exemplo. Este documento também propõe a estratos sociais mais elevados, cuja condição
intervenções no mercado de trabalho. Surgiram socioeconômica permite o acesso ao ensino su-
diferentes organizações que têm como objeto de perior e competem mais qualificadamente no
ação as mulheres e seus filhos, ampliando-se sig- mercado de trabalho.
nificativamente o âmbito de atuação profissional
nas políticas de gênero e etnia, tanto em nível O potencial de ação no campo da educação
nacional como internacional.
Em 2010, foi criada a ONU Mulheres, um A permanência da concentração por sexo em
organismo que concentra as ações para as mu- alguns cursos universitários em oposição a ou-
lheres e meninas de forma mais sistemática, tros, surpreende bastante se considerarmos o pa-
conferindo maior visibilidade para o problema tamar que as políticas de gênero têm alcançado
e o enfrentamento mais eficaz de sua vulnerabi- no país e externamente. Muito pouco tem se de-
lidade. O fenômeno da feminização da pobreza batido sobre este perfil dos graduandos na uni-
é destacado, assim como o da violência contra a versidade. Ignora-se o fato da concentração por
mulher. Muitos projetos são propostos no senti- sexo em cursos específicos impactar no perfil de
do de fortalecer a sua autonomia, e a estratégia empregados de determinada empresa ou institui-
tem sido investir na educação e favorecer a in- ção e, consequentemente, determinar uma lógi-
serção no mercado de trabalho de forma mais ca de gênero na estrutura do trabalho. Este fato
qualificada. O problema tem sido articulado ocorre tanto nas atividades menos qualificadas
às características étnicas que estas mulheres como naquelas que são resultado de uma forma-
apresentam, pois as hierarquias de gênero fre- ção de nível superior. As publicações que tratam
quentemente, estão associadas às hierarquias e deste tema no âmbito da educação são pouco
disputas étnicas de poder. Nesse sentido, o or- incorporadas na formação de professores, assim
ganismo internacional busca uma interlocução como ocorreu com os Parâmetros Curriculares
com instituições governamentais e/ou parceiros Nacionais (PCNs), entre as décadas de 1900 e
nas corporações empresariais para promover a 2000. Talvez algumas dificuldades conceituais
cidadania plena das mulheres. abordadas no início do projeto já tivessem sido
Ao reconhecer o impacto da feminização superadas se este debate fosse considerado mais
da pobreza e seus resultados trágicos em gran- relevante, nestes estágios de formação educacio-
de parte da população mundial, pois a mulher nal, pelos profissionais da área. Essa lacuna fica
ainda assume o encargo de cuidar dos filhos, evidente no âmbito da formação profissional no
particularmente nos primeiros anos de vida, âmbito do ensino superior, onde uma percepção
dedica-se a superar este problema. Portanto, da escolha da carreira por determinações cultu-
grande parte dos recursos e investimentos de rais, relacionadas à condição de gênero, é com-
organismos com as características da ONU, é pletamente subestimada.
alocada em projetos que visem enfrentar a po- Nesse sentido, quando se compara as expec-
breza extrema e garantir um modelo de desen- tativas de desenvolvimento econômico mais re-
volvimento econômico e político que assegure cente, na qual a desigualdade entre os sexos é
as liberdades individuais. Entretanto, o debate considerada um problema a superar, e a situação
sobre as relações de gênero evidenciam que encontrada nos cursos universitários (concen-
os avanços no estabelecimento de uma socie- tração por sexo acentuada em alguns cursos),
dade mais justa e democrática têm encontrado negligenciada como um tema relevante, detec-
a barreira do machismo, do mundo androcen- ta-se um obstáculo a ser reconhecido e enfren-
tricamente organizado, o que atinge mulheres tado mais rapidamente. O fato da implantação
de políticas afirmativas para negros na univer- tem propiciado propostas governamentais para
sidade ter sido realizado com mais visibilidade superar este quadro no mercado de trabalho e,
do que esta discussão anterior, relacionada com inicialmente, nas empresas estatais.
a distribuição por sexo nas carreiras profissio- Foi o caso do Programa Pró-Equidade de Gê-
nais, é outro ponto que estimulou a apresenta- nero em 2005. O Estatuto da Igualdade Racial
ção do presente estudo, pois, antes de enfren- apresenta apoio à políticas de ação afirmativa
tado um problema que surge no mercado de para negros no mercado de trabalho. Conforme
trabalho – a desigualdade por sexo –, introdu- apontado nas considerações sobre o desenvolvi-
ziu-se uma ação sem qualquer articulação com mento econômico, estas medidas são consoantes
o debate anterior. São problemas semelhantes às iniciativas que vêm sendo estimuladas pelos
– a discriminação de pessoas e grupos –, mas organismos internacionais para que os países
conceitualmente diversos. apresentem IDH mais elevado. O Brasil tem
Este fato também dificulta a avaliação de su- acompanhado este ritmo e vem buscando se in-
cesso desta política pública – o das políticas de serir nestas propostas, com iniciativas no campo
ação afirmativa para negros na universidade – no do gênero, assim como no campo das relações
mercado de trabalho, pois, em geral, estas traje- étnico-raciais, com preponderância para a po-
tórias estão associadas à inserção por sexo nas pulação de baixa renda. O projeto tem interesse
carreiras universitárias e aos graus de prestígio em observar como estas trajetórias estão se dan-
conferidos às mesmas no ranking das profissões. do em situações que tendem a “neutralizar” ou
Não considerar estas hierarquias no campo do enfraquecer a determinação socioeconômica no
conhecimento e habilitações técnicas favorece- estabelecimento de hierarquias de gênero e et-
rá avaliações de taxas de sucesso no mercado de nia. A formação profissional favorece esta estra-
trabalho distorcidas, pois deixa de relacionar va- tégia, pois o que fundamenta a estrutura de um
riáveis importantes neste quadro. Caso acrescen- grupo profissional é o conhecimento específico
te-se o problema relacionado às classificações e científico, a princípio, independente de deter-
por cor/raça, analisados anteriormente, a possi- minações por sexo e cor/raça. Entretanto, a di-
bilidade destas distorções se agrava. nâmica do mercado de trabalho revela diferentes
Resolver este problema (o da desigualdade trajetórias por sexo e cor com predominância de
de acesso por sexo e cor) no âmbito do mercado homens brancos em áreas de atuação mais pres-
de trabalho por meio de políticas públicas que tigiadas e com salários mais atraentes.
motivem ou impulsionem instituições e empre-
sas a compor mais equilibradamente os seus Concluindo com mais indagações: o impulso
quadros funcionais, como algumas iniciativas permanente da busca de significados
governamentais vêm procurando fazê-lo, provo-
cam esta análise referente à articulação entre a Com base nestas premissas, e considerando
universidade e o mercado de trabalho. Do ponto o fato de encontrar estas diferenças por sexo e
de vista da formação mais qualificada, quem ad- cor/raça nos cursos universitários, surgiu o inte-
quire um título universitário tem mais chances resse em investigar como o mercado de trabalho
de progredir na carreira profissional e ascender pode resolver as disparidades de sua mão de obra
socialmente. As diferenças de sexo e cor/raça quanto a estas variáveis, se independe de seus
seriam minimizadas, ou inteiramente superadas, mecanismos o perfil do candidato que concor-
por meio de uma série de critérios isentos e com re a determinadas vagas no ensino superior. Isto
base no conhecimento e aptidões que as institui- é, como o mercado de trabalho vai admitir mais
ções de ensino e formação profissional viabili- mulheres e negros em cargos de maior prestígio
zariam. Entretanto, as pesquisas têm indicado se as vagas preenchidas nas universidades ainda
as desigualdades por sexo e cor nas trajetórias revelam concentração por sexo em alguns cur-
profissionais de forma muito acentuada, o que sos, cuja lógica de “honra e distinção” ainda está
ativa? Como resolver o problema da demanda repetem no ambiente de trabalho, sem que esta
dos programas governamentais e organismos in- lógica limitadora de potencialidades seja reco-
ternacionais de maior equidade nas empresas por nhecida ou até mesmo identificada, pois há uma
sexo e cor, se a demanda por cursos universitá- tendência em “naturalizar” estas antecipações de
rios tem revelado uma lógica de distribuição de expectativa por gênero nas empresas. O que está
vagas por sexo e cor? deixando de ser averiguado é se estas expecta-
Por que a pesquisa no âmbito das carreiras tivas “padronizadas” já estão sendo fortalecidas
profissionais de formação de ensino superior? na formação profissional, muitas vezes, diante
Por que elas apontam mais probabilidades de das especializações conduzidas por preceptores
romper com situações de submissão em relações ou professores que, comumente, sem ter muita
que envolvem o gênero e discriminações étnico clareza da sua influência sobre os alunos, repro-
-raciais. Conforme a condução da ONU Mulhe- duzem estereótipos por sexo e cor. Este processo
res, o “empoderamento” das mulheres deve ter tem início na educação de nível fundamental e
como estratégia “o mundo dos negócios”. Ela tem prosseguimento no ensino médio. Os PCNs
se estende desde as mulheres alocadas em ati- foram propostos para reverter este quadro, mas
vidades do setor de construções como pedreiras, não conseguiram ser bem sucedidos, pois sua
eletricistas etc. até as mulheres executivas assu- discussão foi interrompida.
mindo cargos de comando do mais alto nível da O estudo, sobre o qual este texto está basea-
hierarquia empresarial. Certamente, a principal do, pretende abordar o problema do ponto de vis-
diferença entre elas, no caso da trajetória profis- ta do profissional que conclui um curso univer-
sional é a qualificação que apresentam. As mu- sitário e se insere no mercado de trabalho, isto é,
lheres com um número maior de anos de estudo analisar o impacto destas políticas em medidas
e certificação universitária se inserem em me- que, por meio de uma percepção da lógica do
lhores condições de trabalho do que as mulheres gênero e determinações étnico-raciais, impul-
que se habilitarão para atividades menos pres- sionem uma inserção mais vantajosa para gru-
tigiadas. Entretanto, isto não significará que na pos discriminados historicamente na sociedade.
competição com pares masculinos, conseguirão Como desdobramento de estudos anteriores, o
concorrer em igualdade de condições no interior procedimento a ser privilegiado é o da análise de
do mercado de trabalho ou da empresa, mais es- grupos que têm escolaridade de nível superior e a
pecificamente. Este é o ponto controverso que sua inserção no mercado, observando trajetórias
tem sido objeto de discussões nos organismos por sexo e características fenotípicas que reve-
internacionais e tem motivado programas como lem o risco de algum tipo de preconceito por cor
o Pró-Equidade de Gênero nas empresas brasi- no ambiente corporativo empresarial. Portanto,
leiras. Devido às representações sociais associa- será priorizado o levantamento de dados referen-
das ao comportamento de gênero, o investimento tes a grupos que conseguiram concluir um curso
na carreira tem sido a priori considerado secun- universitário de nível superior.
dário para muitas mulheres executivas, por parte
de gerências e gestores que, sequer perguntam Referências bibliográficas
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do sexo masculino, em detrimento até mesmo do sica: “meninas não gostam de suar, meninos
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3
Em 1996, um grupo de trabalho americano Mulheres (SPM), uma ação dirigida aos ho-
e outro israelense descobriram que um gene, mens agressores, nos casos de violência do-
denominado novelty-seeking, o gene da busca méstica, na perspectiva do cumprimento da
pela novidade, codificador de certo receptor Lei 11.340, de 2006, conhecida como a Lei
para dopamina, parece ser o responsável pela Maria da Penha.
atenuação da noção de perigo. (...) Nossos me- 7
Scott (1990, p.15).
dos são, então, perfeitamente compreensíveis, 8
Para existir um negro, não precisa existir um
mas datados. No entanto, o cérebro não é ca- branco ou o mesmo para outras classificações
paz de se acostumar ao cálculo “moderno” e de tons da pele de forma que se estabeleça
abstrato de probalidades. A revista Mente & uma identidade pessoal equilibrada com base
Cérebro publicou os seguintes títulos: “Desde em uma premissa relacional entre dois seres
a infância meninos e meninas comportam-se humanos, a não ser a partir de um pressuposto
de forma diferente”; “Homens e mulheres não relacionado com a tolerância entre diferentes,
só pensam de maneira diversa como separam não para existirem enquanto um “ideal” de
de modo desigual as tarefas cerebrais” e “Tan- identidade conforme um modelo preestabele-
to no homem como na mulher, o estrogênio cido. Existem enquanto seres humanos autô-
influencia diferentes capacidades cognitivas”. nomos, em qualquer região do mundo, a partir
(Revista Mente & Cérebro. Ed. especial, n. 6, do ideal iluminista que fortalece a concepção
2006). de indivíduo.
4
O polêmico trâmite do Estatuto da Igualdade 9
1 - Erradicar a extrema pobreza e a fome; 2
Racial, de autoria do senador Paulo Paim, no - Atingir o ensino básico universal; 3 - Pro-
Brasil, encaminhado pela Secretaria Especial mover a igualdade de gênero e a autonomia
de Política e Promoção da Igualdade Racial das mulheres; 4 - Reduzir a mortalidade in-
(Seppir), do Governo Federal, evidencia a for- fantil; 5 - Melhorar a saúde materna; 6 - Com-
ça destas controvérsias, ainda hoje. bater o HIV/Aids, a malária e outras doenças;
5
É importante lembrar que os pressupostos 7 - Garantir a sustentabilidade ambiental e 8
metodológicos sustentados pela antropologia - Estabelecer uma parceria mundial para o de-
física no século XIX, apesar de persistirem senvolvimento. Disponível em: <http://www.
por muito tempo nas ciências sociais, foram pnud.org.br/odm/. Acesso: 13 mar. 2012.
questionados, ainda na primeira metade do sé- 10
Amartya Sen recebeu o Prêmio Nobel de
culo XX por antropólogos que apontaram as Ciências Econômicas em 1998 e suas ideias
suas limitações e denunciaram o seu etnocen- tem influenciado bastante este debate. As suas
trismo, a começar com Franz Boas. Contem- pesquisas e considerações o levou a proposi-
poraneamente, poderia ser incluído Clifford ção do Índice de Desenvolvimento Humano
Geertz. Portanto, é necessário reconhecer que (IDH) na perspectiva do desenvolvimento
os registros das lacunas destas argumentações econômico, agregando-o às preocupações
não se devem apenas aos avanços da genéti- com o acúmulo do Produto Interno Bruto
ca, mas aos próprios pesquisadores do campo (PIB) dos países.
que destacaram os determinantes culturais na
formação dos próprios estudiosos e a sua in-
fluência na distorção da interpretação dos da- Dayse de Paula Marques da Silva*
dos biológicos (Sodré, 1999). *
Doutora em Sociologia e graduada em Ser-
6
O governo federal lançou um programa de viço Social.
saúde dirigida ao homem, de prevenção do
câncer de próstata e consta no plano nacio-
nal da Secretaria Especial de Políticas para