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Capítulo 6 – Da Dimensão Ambiental

à Ecologização dos Direitos Humanos:


Aportes Jurisprudenciais

Fernanda de Salles Cavedon-Capdeville

6.1 Introdução
A análise sobre o processo de ecologização dos direitos humanos se in-
sere no contexto da obra e de sua reflexão sobre a ecologização do próprio
direito. Parte-se de premissas801 necessárias à compreensão da falsa dicotomia
entre direitos humanos e direito ambiental e a necessidade de reconectar estes
dois sistemas jurídicos a partir do paradigma da justiça ecológica802.
A primeira é a incapacidade dos sistemas jurídicos, e em especial do sis-
tema jurídico-ambiental803 para enfrentar a complexidade e urgência da crise
ecológica. Esta tarefa requer abarcar a multiplicidade de elementos que in-
fluenciam esta crise a partir de uma visão holística e de interconexões. Exi-
ge redimensionar o espaço-tempo dos conflitos (globais, intergeracionais) e

801 As premissas se inspiram nos resultados do Workshop sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente
do Instituto Internacional de Sociologia do Direito de Oñati (2012). GRANT, E.; KOTZÉ, L.J.;
MORROW, K. Human Rights and the Environment: In Search of a New Relationship. Synergies
and Common Themes, Oñati Socio-Legal Series, vol. 3, n. 5, p. 953-965.
802 Adota-se a compreensão de justiça ecológica desenvolvida por DAROS, L. F. no capítulo 2 sobre o tema.
803 Adota-se uma perspectiva sistêmica do direito ambiental para estabelecer sua relação e comunicação
com outros sistemas jurídicos e com seu entorno. É um subsistema social, de caráter axiológico-
teleológico, organizado em torno de princípios estruturantes e com características de ordenação e
unidade. É marcado pela incompletude, modificabilidade e flexibilidade. Não é um sistema aberto,
apresentando traços característicos dos sistemas autopoiéticos, especialmente quanto a sua relação
com o entorno e a possibilidade de influência de fatores externos. Apresenta quatro momentos:
legislativo, judicial, executivo e científico. É sensível à complexidade e às “perturbações” do entorno,
tendo como uma entrada destas informações ao sistema o seu momento judicial. As influências
externas podem alterar o sistema, adequando-o às transformações do entorno, ao mesmo tempo
em que o sistema também influencia a conformação do entorno e de outros sistemas jurídicos
pelas informações juridicizadas que produz. Ver: CAVEDON, F. S. Justicia Ambiental y creación
jurisprudencial del derecho: las aportaciones de la Corte Europea de Derechos Humanos. Alicante:
Universidade de Alicante, 2009. (Tese doutoral).

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

ampliar o círculo dos sujeitos de direito (direitos da natureza), adotando-se


uma abordagem ecossistêmica, o que ultrapassa as possibilidades dos sistemas
jurídicos atuais, marcados pela fragmentação de seus objetos e limitada capa-
cidade de resposta à crise ecológica.
A segunda premissa se refere à fragmentação do direito como conse-
quência da construção de sistemas jurídicos delimitados por objetos espe-
cíficos próprios com reduzido espaço e mecanismos de comunicação entre
eles. Esta comunicação é estratégica e necessária para abarcar a complexidade
dos conflitos jurídicos decorrentes da crise ecológica e apresentar respostas
mais completas. A ecologização dos direitos humanos é uma via para superar
esta fragmentação, estimulando sua capilaridade, porosidade e maleabilidade
como estratégia adaptativa. Um exemplo é a fragmentação do direito ambien-
tal e do direito dos direitos humanos, que se desenvolveram isoladamente e
sem muito diálogo até que os primeiros casos envolvendo violações de direi-
tos humanos relacionadas à fatores ambientais tenham chegado às Cortes ou
que a ONU tenha começado a estabelecer estas conexões. As jurisprudências
apresentadas neste capítulo demonstram os primeiros passos na construção
de uma visão ecológica da relação entre direitos humanos e meio ambiente,
não excludente ou hierárquica.
A terceira premissa indica que os sistemas jurídicos e os conceitos que
os embasam partem da consideração do ser humano titular de direitos acima
e desconectado do seu ambiente. E, por outro lado, um sistema jurídico-am-
biental que, mesmo se propondo à proteção e promoção de um meio ambiente
saudável e equilibrado, não consegue se desvencilhar do paradigma antropo-
centrista e acaba sendo instrumentalizado como meio de exploração da natu-
reza revestida do caráter da legalidade. A ecologização do direito ressignifica
os objetos e os conceitos dos sistemas jurídico, reconhecendo que a integrida-
de do ambiente é pré-requisito para e dignidade humana e que o ser humano
se realiza e realiza direitos dentro de um contexto ambiental804.
A quarta premissa, em consequência, é que uma concepção ecológica
do direito é necessária para superar os limites dos sistemas jurídicos para
responder aos desafios da crise ecológica e reduzir a sua fragmentação. Faz

804 Sobre a jurisprudência ecológica ou “Earth Jurisprudence”, ver: BURDON, P. D. The Earth
Community and Ecological Jurisprudence, Oñati Socio-Legal Series, Vol. 3, N. 5, 2013, pp. 815-837.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

a transposição do ser humano no centro do sistema jurídico para sujeito de


direitos e obrigações inseridos em um contexto ambiental do qual não podem
se dissociar. O paradigma da justiça ecológica contribuiria, no plano jurídico,
a reconectar os seres humanos enquanto sujeitos de direito ao ambiente do
qual são elemento, que por sua vez também alcançaria a condição de sujeito,
reduzindo assim possíveis esquemas hierárquicos, de poder e dominação e re-
forçando bases mais solidárias, horizontais e cooperativas. A ecologização dos
direitos humanos requer transcender o senso mesmo do humano, protegendo
o humano em uma dimensão lato sensu, como parte indissociável de um sis-
tema natural/planetário do qual depende para realizar-se e no qual atua. O
humano que se protege é um sujeito ecológico.
Como quinta premissa, considera-se que a estabilidade do sistema climá-
tico global e a justiça climática são questões atinentes aos direitos humanos,
seja porque o desequilíbrio deste sistema afeta a possibilidade de realização
destes direitos, seja porque a bagagem, o apelo e a força dos direitos humanos,
aliados à sua capacidade de adaptação às condições de vida atuais, os tornam
elementos essenciais no enfrentamento da crise climática.
Partindo destas premissas, foca em duas questões centrais: i) os direi-
tos humanos, produto de um contexto político, histórico e jurídico específico,
distante dos desafios do século XXI, e com forte influência do individualismo
e do antropocentrismo, podem contribuir para o desenvolvimento de um Di-
reito Ecológico? ii) Como as Cortes de direitos humanos alcançaram a con-
dição de garantes de direitos ambientais intergeracionais? Como, partindo de
um dos sistemas jurídicos mais tradicionais, operaram uma verdadeira revo-
lução reinventando os direitos humanos para mantê-los atuais no enfrenta-
mento da crise ecológica e climática? Utilizando exemplos da jurisprudência
das Cortes de direitos humanos e da litigância climática, analisa as razões e as
fases da ecologização dos direitos humanos e qual a sua função em um siste-
ma jurídico e de governança ecologizados.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Parte I – Os Fundamentos da Ecologização


dos Direitos Humanos

6.2 Primeiro passo: reconhecer sinergias


e reforçar vias de comunicação
A realização dos direitos humanos não se dá em um supraespaço isolado
do seu entorno, eles se concretizam em um determinado contexto socioam-
biental. Os titulares destes direitos os exercem enquanto elementos de uma
rede de processos ecológicos. São direitos de seres inseridos em um contexto
ambiental do qual não podem se dissociar. A efetividade do sistema jurídico-
-ambiental, portanto, é essencial para a realização dos direitos humanos. Por
outro lado, os direitos humanos contribuem para o alcance dos fins do sistema
jurídico-ambiental, podendo potencializar, informar e reforçar, promover a
coerência e a legitimidade das políticas e normas ambientais.805 O Conselho
de Direitos Humanos da ONU, referindo-se à mudança climática, considera
que as obrigações, normas e princípios em matéria de direitos humanos po-
dem informar e reforçar a elaboração de políticas climáticas, promovendo sua
coerência, adequação e a sustentabilidade de seus resultados806. Exemplo é a
crescente referência aos direitos humanos em normas e políticas ambientais,
a exemplo do Acordo de Paris sobre o Clima807 e a integração de princípios e
argumentos do direito ambiental pelas Cortes de Direitos Humanos808.

805 Neste sentido ver: UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS.
Analytical study on the relationship between human rights and the environment – Report of the
United Nations High Commissioner for Human Rights. 2011. (UN Doc. A/HRC/19/34).
806 UNITED NATIONS. Human rights and climate change – Resolution Human Rights Council. 2018
(A/HRC/38/L.5).
807 UNFCCC. Paris Agreement. 2015. “Acknowledgingthat climate change is a common concern of
humankind, Parties should, when taking action to address climate change, respect, promote and
consider their respective obligations on human rights, the right to health, the rights of indigenous
peoples, local communities, migrants, children, persons with disabilities and people in vulnerable
situations and the right to development, as well as gender equality, empowerment of women and
intergenerational equity” (Preâmbulo). Grifo nosso.
808 Por exemplo, a utilização do princípio da precaução pela Corte Europeia de Direitos Humanos
no caso Tătar c. Romênia (2009), dispondo que a ausência de certeza, considerando-se os

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Este processo comunicativo enriquece o sistema jurídico-ambiental com


argumentos construídos a partir dos direitos humanos, delineando novas obri-
gações estatais em matéria ambiental, ao mesmo tempo em que traz para o âmbi-
to dos direitos humanos os aportes principiológicos do direito ambiental, como
demonstra a Opinião Consultiva OC–23/17 “Meio Ambiente e Direitos Huma-
nos” da Corte Interamericana de Direitos Humanos809. A Corte IDH reconhece
a interdependência e indivisibilidade entre os direitos humanos e a proteção do
meio ambiente, e a possibilidade de utilizar os princípios, direitos e obrigações
do direito internacional do meio ambiente para determinar as obrigações dos
Estados derivadas da Convenção Americana de Direitos Humanos810.
O processo de construção, reconhecimento e consolidação de um direito
humano ao meio ambiente e do acesso ao nível de qualidade ambiental essencial
à vida em todas as suas formas, pode se aproveitar das conquistas e das possi-
bilidades que oferecem os direitos humanos, especialmente os procedimentais.
Representam um marco jurídico e uma base ética consolidados que formam um
substrato sólido para a fazer face à crise ecológica com uma abordagem pautada
em direitos. Os mecanismos de implementação e controle e a força jurídica e
simbólica dos direitos humanos podem ser aproveitados em prol da proteção do
meio ambiente e como um reforço ao sistema jurídico-ambiental.
Mecanismos de controle do cumprimento de tratados de direitos huma-
nos tem sido operacionalizados como ultima ratio para garantir o cumpri-
mento de obrigações em matéria ambiental, ilustrando o reforço que podem
trazer à efetividade do sistema jurídico-ambiental.811 Também os direitos hu-
manos procedimentais podem ser operados em defesa do meio ambiente e

conhecimentos científicos e técnicos atuais, não justifica que o Estado retarde a adoção de medidas
efetivas e proporcionais de proteção ambiental.
809 CIDH. Medio Ambiente y Derechos Humanos – Opinión Consultiva OC-23/17 de 15 de novembro de
2017 Solicitada pela República da Colômbia
810 Idem, parágrafo 55.
811 A titulo ilustrativo, o reconhecimento de violação ao artigo 6, § 1 da Convenção Europeia de Direitos
Humanos (direito a um processo equitativo), em casos de ausência de cumprimento de decisão
judicial favorável ao meio ambiente, como no caso Bursa Barosu Başkanlığı e outros c. Turquia
(2018) eKirtatos c. Grécia (2003) relativo a decisões do Conselho de Estado anulando autorização
para construir em zona úmida sem execução.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

reforçar políticas ambientais812. O exercício destes direitos é vital para a pro-


teção do meio ambiente813. Com a adoção em 4 de março de 2018 do Acordo
Regional para o Acesso à Informação, a Participação Pública e o Acesso à
Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e Caribe, conhecido como
Acordo de Escazú, a região reconhece por via normativa a dimensão ambien-
tal destes direitos procedimentais na região.
Identificam-se como vias de conexão entre os direitos humanos e o meio
ambiente: i) a dimensão humana da questão ambiental reforçada pela noção
de desenvolvimento sustentável, o ser humano enquanto titular de direitos
inserido em um contexto ambiental e elemento indissociável da comunidade
planetária; ii) o meio ambiente como elemento da dignidade e qualidade de
vida, indispensável à realização dos direitos humanos; iii) os riscos e danos
ambientais impactam a possibilidade de realização dos direitos humanos; iv)
os aportes dos direitos humanos, especialmente os procedimentais, às medi-
das de proteção do meio ambiente e como base ética e fundamento de políti-
cas ambientais ; v) o enriquecimento mútuo dos dois sistemas jurídicos pelo
intercâmbio de princípios, fundamentos e instrumentos.
A crise ecológica é uma questão de direitos humanos porque limita as
possibilidades de sua realização e porque estes direitos são fundamentos para
orientar e reforçar as políticas ambientais, seu marco de proteção fornece me-
canismos e instrumentos postos a serviço do meio ambiente. A comunicação
e enriquecimento mútuo destes dois sistemas jurídicos representa um avanço
na superação da fragmentação dos seus discursos jurídicos e objetos.

812 Sobre o direito de acesso à informação ambiental ver, por exemplo na Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH): Povo Saramaka c. Suriname (2007) e Claude Reyes c. Chile (2006) e
na Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) o caso Guerra c. Itália (1998). Em matéria de
liberdade de expressão, as decisões da CEDH: Steel et Morris c. Reino-Unido (2005); Mamère c.
França (2006); Vides Aizsardzibas Klub c. Letônia (2004). Quanto ao direito de participação, na
CIDH os casos Povo Saramaka c. Suriname (2007) e Povos Kalina e Lokono (2015). E sobre o direito
de associação na CEDH o caso Costel Popa c. Romênia (2016).
813 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Framework Principles on Human Rights and
the Environment: The main human rights obligations relating to the enjoyment of a safe, clean,
healthy and sustainable environment. Report of the Special Rapporteur on Human Rights and the
Environment. (A/HRC/37/59). 2018. p. 6.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

6.3 As razões da ecologização dos Direitos Humanos


Os direitos humanos, originados em um contexto político, histórico e
social, distinto do contexto atual marcado pela emergência da crise ecológica,
de caráter antropocêntrico e individualista, teriam ainda um lugar, uma fun-
ção no processo de reconstrução do jurídico a partir do paradigma da justiça
ecológica? Em que pese sua origem, estes direitos foram sendo reinterpretados
à luz das questões e das necessidades de cada momento histórico. Em tem-
pos de crise ecológica, nada mais coerente do que reinterpretar e, inclusive,
reinventar os direitos humanos atribuindo-lhes esta dimensão ecológica e um
papel central no processo de transformação do direito. Segue uma síntese das
razões que motivam a ecologização dos direitos humanos e que justificam sua
necessidade no desenvolvimento do Direito Ecológico.

6.3.1 O Direito Ambiental falhou


O discurso jurídico-ambiental se tecnicizou e se desenraizou da base so-
cial e das necessidades dos mais vulneráveis, ao se servir de uma linguagem
especializada e despida do apelo e compreensão necessários para motivar o
apoio e engajamento político e social. O aparato jurídico-ambiental não con-
seguiu transpor o paradigma antropocentrista que está na base da relação ca-
ótica dos seres humanos com a natureza.
O direito ambiental, mesmo diante do seu alto nível de desenvolvimento
e complexidade, tem se mostrado incapaz de frear e responder aos problemas
ambientais globais como a mudança climática e os impactos da degradação
do meio ambiente sobre os modos de vida, a saúde e a dignidade dos seres
humanos e não humanos. Neste sentido conclui o Programa das Nações Uni-
das para o Meio Ambiente (PNUMA) em seu relatório Environmental Rule of
Law814 pois, em que pese o desenvolvimento significativo do direito ambiental
nas últimas décadas e dos ganhos havidos, persistem problemas de implemen-
tação que afetam sua efetividade815.

814 UNEP. Environmental Rule of Law – First Global Report. Nairobi : United Nations Environmental
Programme, 2019.
815 Uma análise detalhada do relatório do PNUMA no contexto do Estado de Direito Ecológico pode
ser encontrada no capítulo de LEITE, J. R. M. e SILVEIRA, P. G.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

A incapacidade de transpor os paradigmas antropocêntrico e utilitarista,


ou de superar a fragmentação do seu objeto, que se contrapõe à complexida-
de dos conflitos socioambientais e uma abordagem sistêmica da natureza e
suas funções ecológicas, indicam seus limites frente aos desafios da crise eco-
lógica. O aparato jurídico-ambiental, pelas suas limitações, acaba regulando
em que medida a destruição do patrimônio ambiental pode ser autorizada,
fragmentando a unidade dos ecossistemas e suas inter-relações816. O direito
e as políticas ambientais não são mais capazes de responder aos desafios da
sustentabilidade, a legislação ambiental falhou em proteger a estrutura básica
e a integridade dos ecossistemas da Terra817.
Diante deste cenário, o marco ético, o apelo simbólico e a linguagem
acessível dos direitos humanos, em uma perspectiva ecológica, assumem um
papel central na construção de novos arranjos jurídicos, como o Direito Eco-
lógico818 e o Direito do Sistema Terra que, de acordo com KOTZÉ,819 requer não
somente mudanças transformadoras no direito ambiental. Os direitos huma-
nos deverão igualmente passar por um processo de desenvolvimento progres-
sivo semelhante para promover novos paradigmas do direito820.

6.3.2 Os Direitos Humanos como último recurso


Outros discursos, espaços e instrumentos jurídicos têm sido buscados
como uma espécie de “última esperança” para salvaguardar a integridade
ambiental e humana e a sua interconexão. Um exemplo é a crescente procura

816 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Harmony with Nature – Note by the Secretary-
General. 2016. (A/71/266). §§ 42-43.
817 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Harmony with Nature – Report of the Secretary-
General. 2014. (A/69/322). § 57.
818 Ver o capítulo de LEITE, J. R. M. e SILVEIRA, P. G. sobre a ecologização do Estado de Direito
para uma crítica dos limites do direito ambiental e necessidade de mudança de paradigma para um
direito ecológico. Os autores traçam um paralelo entre o direito tradicional e o direito ecológico a
partir dos seus elementos centrais.
819 KOTZÉ, L. J. ; KIM, R. E. Earth system law: The juridical dimensions of earth system governance.
Earth System Governance Journal,v.1, 2019, pp. 1-11.
820 KOTZÉ e KIM estabelecem um comparativo entre o Direito Ambiental, o Direito Ecológico e o
Direito do Sistema Terra, considerando que o primeiro é centrado nos seres humanos (human-
centred), o segundo na natureza (nature-centred) e o terceiro na Terra em sua integralidade (Earth-
centred). Idem.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

dos sistemas de proteção dos direitos humanos para a solução de conflitos


ambientais através de um esforço argumentativo para reinterpretar os direitos
humanos nesta dimensão ecológica, inclusive face à crise climática821.
Os sistemas de proteção dos direitos humanos, o discurso, o peso simbó-
lico, o conteúdo ético e a força jurídica destes direitos são cada vez mais consi-
derados como estratégia para dar visibilidade, obter reconhecimento e empo-
deramento de grupos vulneráveis aos efeitos da crise ecológica. O objetivo não
é somente proteger direitos, mas utilizar estes direitos como argumento para
proteger o patrimônio ambiental e os valores materiais e imateriais a ele asso-
ciados. Direitos humanos ecologizados são instrumentos de empoderamento
face a injustiças socioambientais e climáticas.
Uma análise da jurisprudência das Cortes europeia e interamericana de
direitos humanos, assim como os recentes casos apresentados ao sistema de di-
reitos humanos da ONU em matéria climática, permite identificar os limites do
sistema jurídico-ambiental, levando a que conflitos ambientais sejam abordados
sob a ótica dos direitos humanos para chegar a uma instância internacional.
Descumprimento de decisões administrativas e judiciais em matéria
ambiental, de normas e parâmetros ambientais, omissão do Estado no con-
trole de atividades poluentes e responsabilização de poluidores, inadequação,
falta de ambição ou ausência de políticas climáticas, falta de espaços e meca-
nismos para garantir o acesso à informação e a participação, degradação de
espaços naturais e de bens ambientais ou mesmo a utilização/deturpação de
instrumentos de proteção ambiental para legitimar atividades degradadoras
e tolher direitos de povos tradicionais. Esta é uma pequena amostra, extraída
da jurisprudência das Cortes de direitos humanos, das razões que levaram
indivíduos e comunidades a buscar nos mecanismos de proteção dos direitos
humanos o último recurso para proteger não só estes direitos, mas alcançar
também a proteção do meio ambiente.
A abordagem pautada nos direitos humanos não é somente uma estraté-
gia válida para proteger os seres humanos e o meio ambiente. É também uma
questão da maneira como esta proteção é alcançada, baseada na não discrimi-

821 A exemplo dos recentes casos envolvendo direitos humanos e mudança climática apresentados aos
órgãos de controle da aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos da ONU: Torres
Strait Islanders c. Austrália (2019) no Comité de Direitos Humanos e Chiara Sacci e outros c.
Argentina, Brasil, França, Alemanha e Turquia (2019) no Comitê dos Direitos da Criança.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

nação, na dignidade e em processos democráticos e participativos. Qualidades


inerentes aos direitos humanos, como sua universalidade, indivisibilidade, ou
a não discriminação no seu reconhecimento e garantia, são essenciais para
uma abordagem ecológica do direito e da resolução de conflitos, especialmen-
te quando transpostos para toda a comunidade planetária.

6.3.3 Os Direitos Humanos são um


dos pilares da governança ecológica
Cabe considerar se os direitos humanos têm alguma função na arquitetu-
ra de um modelo de governança ecologizada, que incorpore uma abordagem
ecossistêmica, que promova a manutenção das funções ecológicas dos ecossis-
temas e a integridade do Sistema Terra e que considere os limites planetários822.
Trata-se de sistemas integrados de governança que conectam diferentes níveis
de decisão e agendas. É também uma questão de transformar o papel das pes-
soas, ao mesmo tempo vetores da crise ecológica e vítimas dos seus efeitos, em
protagonistas das transformações necessárias para restabelecer o equilíbrio e
reconectar humanos e natureza. Weston e Bollier,823 ao proporem um novo pa-
radigma de governança ecológica, consideram os direitos humanos como um
dos seus pilares, pela síntese dos discursos atualmente fragmentados relaciona-
dos ao estado, à economia, ao meio ambiente e aos direitos humanos.
A governança ecológica é pautada em direitos, humanos e da natureza.
Os direitos humanos ecologizados, operacionalizados em conjunto com os
direitos da natureza, são instrumentos de empoderamento no enfrentamento

822 Sobre a governança ecológica ver, por exemplo: WOOLLEY, O. Ecological Governance: Reappraising
Law’s Role in Protecting Ecosystem Functionality. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
JENNINGS, B. Ecological Governance: Toward a New Social Contract with the Earth. Morgantown:
West Virginia University Press, 2016. Pesquisas e produção bibliográfica têm sido realizadas sobre
a governança do Sistema Terra. O Earth System Governance Project é referência, constituindo-se
em uma rede de pesquisa de ciências sociais na área da governança e mudanças ambientais globais.
Para mais informações ver : <https://www.earthsystemgovernance.org>. Um direito adaptado à esta
nova percepção de governança, designado como Direito do Sistema Terra, abordado no item 1.2.1.é
proposto por KOTZÉ, L. J. e KIM, R.Op. cit.
823 WESTON, B. H.; BOLLIER, D. Green Governance: ecological survival, human rights and the law of
the commons. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2013.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

da crise ecológica,824 fornecendo um discurso forte e uma governança social-


mente enraizada. Como expressado em Relatório do Programa Harmony with
Nature da ONU825 “há uma necessidade urgente para a sociedade de substituir
a atual visão de mundo antropocêntrica por um sistema holístico de gover-
nança”, no qual se reconhece que “(...) viver em harmonia com a natureza é
um meio necessário para sustentar o bem-estar humano e os direitos huma-
nos”. A governança ecológica exige integrar direitos da natureza e direitos
humanos, que se esvaziam de seu conteúdo se os ecossistemas que sustentam
a vida não têm reconhecido o direito de existir.

6.3.4 A complementaridade dos Direitos Humanos


e dos Direitos da Natureza826
Os direitos da natureza, a construção de um novo paradigma jurídico e
de uma jurisprudência ecológica tem se desenvolvido no âmbito das Nações
Unidas, especialmente através do citado Programa Hamony with Nature827. O
Programa preconiza o reconhecimento de direitos à natureza, a construção de

824 Para Weston e Bollier as razões pelas quais os direitos humanos geram empoderamento, que
corroboram a sua contribuição na reconstrução dos sistemas e discursos jurídicos seriam: i)
representam valores fundamentais de uma ordem jurídica e moral superior, sua violação gera
uma condenação moral; ii) contribuem para uma melhor distribuição de poder, especialmente
quando vítimas se opõem a grandes poderes políticos ou econômicos, como é o caso dos conflitos
decorrentes da crise ecológica; iii) geram fundamentos legais para expressão e ação política, porque
implicam uma força moral maior do que as obrigações legais comuns; iv) permitem o acesso a
instituições internacionais dedicada à sua promoção e reivindicação; v) o discurso e a estratégia
dos direitos humanos encorajam iniciativas para o alcance das necessidades básicas, incluindo um
ambiente saudável. Idem, pp. 95-97.
825 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Harmony with Nature – Report of the Secretary
General. 2016. (A/71/266). Livre tradução da autora. § 15 “15. In order to forge a balanced and healthy
relationship between human activity and the Earth, there is an urgent need for society to replace the
current anthropocentric worldview with a holistic system of governance, in which humanity plays
a different role in how it perceives and interacts with the natural world. In this new role, humanity
would accept the reality that its well-being is derived from the well-being of the Earth and that living
in harmony with nature is a necessary means to sustaining human well-being and human rights. »
826 Sobre o reconhecimento normativo dos direitos da natureza ver o capítulo de BERROS, M. V. e no
que se refere ao seu reconhecimento jurisprudencial o capítulo de FERNSTEISEIFER, T. e SARLET,
I. W. Também o capítulo de autoria de AYALA, P. A. traz informações referentes à natureza na
jurisprudência comparada.
827 Para mais informações ver: < http://www.harmonywithnatureun.org>.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

um discurso jurídico e de uma jurisprudência não antropocêntricos (Earth ju-


risprudence), e uma visão do mundo centrada na Terra (Earth-centred world-
view), reconhecendo que viver em harmonia com a natureza é necessário para
a realização dos direitos humanos.
O direito a um meio ambiente equilibrado, neste contexto, não é exclusi-
vo dos humanos, como foi reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, ao entender que, como direito autônomo, protege os componentes
do meio ambiente como interesses jurídicos em si mesmos, sem necessidade de
demonstrar certeza ou evidência de risco para as pessoas828. Direitos da nature-
za e direitos humanos não são excludentes, mas complementares, reforçando-se
mutuamente, em uma rede de direitos ambientais comuns. O reconhecimento
e realização de um grupo de direitos reforça e contribui para a proteção dos
demais. Já em 2013 o Secretário-geral da ONU indicava que, conjuntamente
com o direito humano ao meio ambiente, os direitos da natureza devem ser
examinados e implementados mais amplamente para assegurar o bem-estar
coletivo829. Para Chacón, os direitos da natureza complementam e reforçam os
direitos humanos ambientais a partir de uma perspectiva da ética ambiental,
sem que estes dois grupos de direitos se esvaziem ou anulem seus conteúdos830.
Outro ponto de conexão entre estes dois grupos de direitos é a coviolação
de direitos humanos e direitos da natureza em múltiplos casos de conflitos
socioambientais, como indica o Earth Law Center,831 constatando que esta
coviolação de direitos está aumentando, especialmente no Sul Global. Além
da dimensão positiva do reforço mútuo, esta relação tem também este efeito
negativo de coviolação.

828 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva OC 23-17.§ 62.


829 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Harmony with Nature – Report of the Secretary
General. 2013 (A/68/325).
830 CHACÓN, M. P. La revolución de los derechos humanos ambientales y de los derechos de la
naturaleza. Revista Iberoamericana de Derecho Ambiental y Recursos Naturales, v. 1, n. 28, julho de
2018. (publicação eletrônica). Disponível em: <https://uy.ijeditores.com/index.php?option=publica
cion&idpublicacion=19>. Acesso em: 21 jul. 2018.
831 O Earth Law Center conduziu pesquisa em 2015, atualizada em 2016, analisado 200 casos de co-
violação de direitos humanos e direitos da natureza. WILSON, G. ; BENDER, M. ; SHEEHAN, L.
2016 Update : Fighting for our common future – protecting both human rights and nature’s rights.
Earth Law Center, 2016.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Os direitos humanos, mesmo ecologizados, requerem o reforço aportado


pelo reconhecimento dos direitos da natureza, que não anula, exclui ou esva-
zia a função dos direitos humanos em matéria ambiental, mas lhes comple-
menta, fortalece, ressignifica. Para Clavero, os direitos da Mãe Terra “podem
ser o motivo e a peça que faltam para a fundamentação definitiva dos direitos
verdadeiramente humanos”.832 Os direitos humanos e da natureza se reforçam
e, articulados, formam uma base jurídica sólida para a proteção e realização
de uma dignidade ampliada pois, como esclarece Galeano, “os direitos huma-
nos e os direitos da natureza são dois nomes da mesma dignidade”.833

6.3.5 Os Direitos Humanos são a


nova Fênix: direitos em movimento834
Em que pese o momento histórico e os fins para os quais foram estabe-
lecidos, sob bases antropocêntricas, individualistas e colonialistas, os direitos
humanos e os instrumentos que os reconhecem não são estanques. Ao con-
trário, representam ideias, valores e conceitos a serem constantemente rein-
terpretados de acordo com o contexto e necessidades de cada momento, na
atualidade fortemente condicionadas pela crise ecológica. Para a Corte EDH,
a Convenção Europeia de Direitos Humanos é um “instrumento vivo a ser
interpretado à luz das condições de vida atuais”835, que protege direitos con-
cretos e efetivos e não teóricos ou ilusórios836.

832 CLAVERO, Bartolomé. Derechos humanos y derechos de la Madre Tierra. América Latina en
Movimiento, 17 de maio de 2010 (publicação eletrônica). Disponível em: <https://www.alainet.org/
es/active/38216>. Acesso em: 21 jul. 2018. Livre tradução da autora, do original “(...) los derechos de
la Madre Tierra pueden ser el motivo y la pieza que faltan para la fundamentación definitiva de los
derechos verdaderamente humanos.”
833 GALEANO, E. Los Derechos Humanos y los Derechos de la Naturaleza son dos nombres de la
misma dignidad. Página 12, Argentina, 19 de abril de 2010. Disponível em: <https://www.pagina12.
com.ar/diario/contratapa/13-144146-2010-04-19.html>. Acesso em: 21 jul. 2018.
834 Na mitologia grega, a Fênix é uma ave lendária, capaz de renascer de suas próprias cinzas e
atravessar gerações, dotada de força incomum que lhe permitia carregar em suas asas um grande
peso. Representa a capacidade de resiliência e de transformação, de renascimento e imortalidade.
835 CEDH, Tyrer c. Reino Unido (1978).
836 CEDH, Airey c. Irlanda (1979).

247
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Por diversas vias de ecologização, os direitos humanos ganham concre-


tude, atualidade e uma “nova vida” na era do Antropoceno, marcada por uma
crise ecológica sem precedentes que ameaçam a própria existência da comuni-
dade planetária. Para Kotzé, “(...) mesmo se os direitos humanos não fornecem
e não podem fornecer todas as respostas para os desafios do Antropoceno, eles
oferecem um meio familiar à sociedade para iniciar uma revisão ontológica
que permitiria intervenções através das quais mediar com mais eficiência a
interface homem-ambiente”837. Porém, alerta que seria necessário reimaginar
tais direitos a partir da nova realidade, ou, como propõe Hey838, fazer uma
releitura dos instrumentos de direitos humanos no contexto do Antropoceno.
Os direitos humanos têm características especiais de elasticidade (am-
pliação do seu conteúdo), de flexibilidade (adaptação aos desafios e contextos
de cada época) e porosidade (integração de novos valores, enriquecimento a
partir do entorno). Estas características permitem sua adaptação a novas cir-
cunstâncias e necessidades, sem perder sua essência e coerência. Em tempos
de crise ecológica e emergência climática, nada mais coerente do que reinter-
pretar os direitos humanos a partir deste contexto, reconhecendo o seu papel
central na construção de novos arranjos jurídicos e de governança. Seguem
representando uma base ética e um discurso jurídico válido que, articulados
com novas dimensões de direitos ecológicos, podem contribuir para cons-
truir, no âmbito jurídico, esta dimensão ecologizada.

837 KOTZÉ, L. J. Human Rights and the Environment in the Anthropocene. The Anthropocene Review,
v. 1, n. 3, 2014, p. 20. “(...) while human rights do not and cannot provide all the answers to the
challenges of the Anthropocene, they do offer a familiar means to society to commence with
an ontological revisioning that would allow for interventions through which to mediate more
effectively the human–environment interface. This would, however, require some re-imagining of
human rights themselves in the environmental context, and more specifically, in the new reality of
the Anthropocene”. Livre tradução da autora.
838 HEY, H. The Universal Declaration of Human Rights in “The Anthropocene”. AJIL Unbound, v. 112,
2018, pp. 350-354.

248
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

6.4 Direitos Humanos e da Natureza são uma questão de


justiça climática: o direito a um sistema climático seguro
A justiça climática requer uma abordagem da crise climática centrada em
direitos especialmente dos mais vulneráveis, distribuindo os cursos da mudan-
ça climática e gerenciando equitativamente os recursos do planeta.839 Se serve
da agenda de direitos humanos, com o compromisso de promover e proteger
os direitos daqueles que estão na linha de frente da crise climática e que menos
contribuem para ela. A justiça climática também é uma dimensão da justiça
ecológica, que integra a natureza à comunidade dos sujeitos de direito face à cri-
se climática. Esta justiça climática ecologizada tem como exemplo o caso de liti-
gância climática Gerações Futuras c. Colômbia (STC4360–2018) que reconhece
a Floresta Amazônica como sujeito de direito pois os danos à floresta impactam
o sistema climático global, ao mesmo tempo em que a mudança climática afeta
a existência da floresta. Na mesma linha o caso Asociación Civil Por La Justicia
Ambiental e outros c. Entre Ríos, Província de e outros,840 pendente de decisão,
pleiteia o reconhecimento do Delta do Rio Paraná como sujeito de direitos e
ecossistema essencial na mitigação e adaptação à mudança climática.
Para Schlosberg841 a noção de justiça se aplica ao comportamento humano
em relação a todos os seres e como afeta a habilidade dos ecossistemas de cum-
prir sua função ecológica. O impacto das ações humanas sobre as capacidades
dos sistemas ecológicos é uma questão de justiça, que requer considerar em que
medida comprometem projetos de vida de outros seres. A influência das ações
humanas sobre o sistema climático, comprometendo sua função de manuten-
ção do equilíbrio do Sistema Terra, é uma questão de justiça climática.

839 MARY ROBINSON FOUNDATION. Principles of Climate Justice. Disponível em : <http://www.


mrfcj.org/pdf/principles-of-climate-justice.pdf>. Acesso em: 10 de agosto de 2020.
840 Asociación Civil Por La Justicia Ambiental e outros c. Entre Ríos, Província de e outros, Corte Suprema
de Justiça da Argentina, Jul. 2, 2020. Disponível em:<http://blogs2.law.columbia.edu/climate-
change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-documents/2020/20200702_11820_
complaint.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
841 SCHLOSBERG, David. Climate justice and capabilities: a framework for adaptation policy. Ethics &
International Affairs, v. 26, n. 04, 2012. pp. 445-461.

249
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Os direitos humanos têm se destacado no contexto da litigância climáti-


ca, especialmente no Sul Global,842 como um forte argumento para questionar
as ações e omissões dos Estados em matéria climáticas e as consequências para
estes direitos.843 Desde os primeiros casos paradigmáticos de litigância climá-
tica reconhecendo violações de direitos humanos em tribunais nacionais, a
exemplo dos casos Asghar Leghari c. Federação do Paquistão (2015),844Urgen-
da Foundation c. Holanda (2019)845 e Gerações Futuras c. Colômbia (2018),846 o
recurso aos direitos humanos tem se consolidado como uma tendência neste
tipo de litígio.847 São também o caminho para a litigância climática no Sul

842 Sobre a litigância climática no Sul Global e o argumento dos direitos humanos, ver: PEEL, J.; LIN,
J. Transnational Climate Litigation: The Contribution of the Global South. American Journal of
International Law, v. 113, n. 4, 2019, p. 679-726. SETZER, J.; BENJAMIN, L. Climate Litigation in the
Global South: Constraints and Innovations. Transnational Environmental Law, v. 9, n. 1, 2020, p. 77-101.
843 Sobre o argumento dos direitos humanos na litigância climática, ver: PEEL, J. ; OSOFSKY, H. M. A
Rights Turn in Climate Change Litigation ? Transnational Environmental Law, v. 7, n. 1, 2017, p. 37-
67. SAVAREZI, A.; AUZ, J. Climate Change Litigation and Human Rights: Pushing the Boundaries,
Climate Law, v. 9, n. 3, 2019. p. 244-262.
844 Leghari c. Pakistão, WP No. 25501/2015, Suprema Corte de Lahore, Set. 4, 2015. Disponível em:
<http://climatecasechart.com/non-us-case/ashgar-leghari-v-federation-of-pakistan/>. Acesso em:
17 de agosto de 2020.Maiores informações sobre sua importância para o argumento dos direitos
humanos na litigância climática do Sul Global em: BARRITT, E.; SEDITI, B. The Symbolic Value
of Leghari v Federation of Pakistan: Climate Change Adjudication in the Global South. King’s Law
Journal – Environmental Justice in the Anthropocene, v. 30, n. 2, 2019, p. 203-210.
845 Urgenda c.Holanda, Caso n. 200.178.245/01, Corte de Apelação de Haia, Oct. 9, 2018 e Caso n.
19/00135, Suprema Corte da Holanda, Dez. 20, 2020. Disponíveis em: <https://www.urgenda.nl/
en/themas/climate-case/>. Acesso em: 17 de agosto de 2020. Para maiores detalhes sobre o caso ver:
LEIJTEN, I. Human Rights v. Insufficient climate action: the Urgenda case, Netherland Quarterly
of Human Rights, v. 37, n. 2, 2019, p. 112-118. BACKES, C. W.; VAN DER VEEN, G. A. Urgenda: the
Final Judgement of the Dutch Supreme Court. Journal for European Environmental & Planning Law,
v. 17, n. 3, 2020, p. 307-321.
846 Generaciones Futuras v. Minambiente, Caso n. STC4360-2018, Corte Suprema de Justiça, Abr. 5, 2018.
Disponível em: <http://blogs2.law.columbia.edu/climate-change-litigation/wp-content/uploads/
sites/16/non-us-case-documents/2018/20180405_11001-22-03-000-2018-00319-00_decision.pdf>.
Acesso em: 17 de agosto de 2020. Para maiores detalhes sobre o caso ver:ALVARADO, P. A. A.;
RIVAS-RAMÍRES, D. A Milestone in Environmental and Future Generations’ Rights Protection:
Recent Legal Developments Before the Colombian Supreme Court. Journal of Environmental Law,
v. 30, n. 3, 2018, p. 519-526.
847 A Climate Change Litigation Database do Sabin Center for Climate Change Law indica 36 casos
de litigância climática fundados em direitos humanos, decididos ou pendentes de decisão, com
exceção dos Estados Unidos, que podem ser consultados em : <http://climatecasechart.com>.

250
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Global, indicando uma segunda onda de litigância climática848. Os impactos


dessas decisões oriundas de tribunais nacionais não se limitam às normas e
políticas climáticas internas, influenciando a própria governança global do
clima849e reforçando o papel dos direitos humanos neste contexto.
No contexto dos sistemas de proteção de direitos humanos, cabe desta-
car o trabalho precursor da Comissão Nacional de Direitos Humanos das Fi-
lipinas. Em 2015 a Comissão recebeu uma petição de ONGs e cidadãos850 para
que investigasse a responsabilidade dos chamados carbon majors (as maiores
empresas ligadas à exploração de combustíveis fósseis) por violações ou amea-
ças aos direitos humanos em consequência dos impactos da mudança climáti-
ca, especialmente no contexto de desastres, como o Tufão Yolanda que atingiu
o país em 2013. A Comissão estabeleceu então um Inquérito Nacional sobre
a Mudança Climática. Em 9 de dezembro de 2019 a Comissão manifestou
que 47 carbono majors indicados na petição poderiam ser considerados legal
e moralmente responsáveis por violações aos direitos humanos dos filipinos
que resultam da mudança climática. Este caso, além de precursor, é também
paradigmático por mostrar transposição dos limites espaciais dos conflitos e
respostas do direito, e por implicar a responsabilidade de empresas do mundo
inteiro por sua contribuição à desestabilização do sistema climático global e
sua relação com impactos localizados sobre os direitos humanos851.
Esta tendência não se limita ao contexto nacional, o Sistema de Proteção
dos Direitos Humanos da ONU tem se configurado como um novo espaço de

848 RODRÍGUEZ-GARAVITO, C. Human Rights : the Global South’s Route to Climate Litigation.
AJIL Unbound, v. 114, 2020, p. 40-44.
849 PEEL, J.; LIN, J. 2020. Op. cit.
850 Greenpeace Southeast Asia (Philippines), Philippine Rural Reconstruction Movement, Sentro
Ng Mga Nagkakaisa at Progresibong Manggagawa, Dakila, Philippine Alliance of Human Rights
Advocates, hilippine Human Rights Information Center, Mother Earth Foundation, Ecowaste
Coalition, 350.ORG East Asia, Nagkakaisang Ugnayan Ng Mga Magsasaka at Manggagawa As
Niyugan, Asian Peoples’ Movement on Debt & Development, Alliance of Youth Organisations and
Students-Bicol, Philippine Movement for Climate Justice, Nuclear Free Bataan Movement, Von
Hernandez, Fr. Edwin Gariguez, Naderev “Yeb” Saño, Amado Guerrero Saño, Juan Manuel “Kokoi”
Baldo, Lidy Nacpil, Benjamin Aceron, Elma Reyes, Laidy Remando, Richard Lopez, Constancia
Lopez, Lerissa Libao, Gloria Cadiz, Tarcila M. Lerum, Roy N. Basto e Veronica V. Cabe.
851 Os documentos referentes ao caso estão disponíveis em:<https://www.greenpeace.org/philippines/
press/1237/the-climate-change-and-human-rights-petition/>. A Comissão de Direitos Humanos
das Filipinas também forneceinformações sobre o inquéritonacional sobre mudança climática em :
<www.chr.gov.ph/nicc-2/.

251
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

litigância climática. As demandas em matéria climática ante instâncias inter-


nacionais de direitos humanos é um fenômeno recente. O primeiro caso, sub-
metido ao Comitê de Direitos Humanos da ONU em 2015 e com decisão em
2020, Ioane Teitiota c. Nova Zelândia, versa sobre a negativa em reconhecer a
condição de refugiado climático a Ioane Teitiota e sua família, e sua devolução à
Kiribati, seu país de origem, o que configuraria uma violação do direito à vida.
Mesmo sem reconhecer a pretensão de Ioane Teitiota, o Comitê fez história ao
indicar que os efeitos da mudança climática podem expor a violações de direitos
humanos, desencadeando a obrigação de non-refoulement dos Estados onde se
busque proteção, ou seja, os Estados não devem deportar quem enfrenta condi-
ções climáticas que violam o direito à vida em seu país de origem.852 Outro caso
climático foi submetido ao Comitê em 2019, Torres Strait Islanders c. Austrá-
lia853, por membros de comunidade tradicional das ilhas do Estreito de Torres,
cujo território, cultura e sobrevivência estariam ameaçadas pela omissão do go-
verno em adotar medidas de mitigação e adaptação à mudança climática. O Es-
tado estaria descumprindo sua obrigação de proteger os direitos à cultura, à pri-
vacidade, família e domicílio e à vida face aos impactos da mudança climática.
Trata-se do primeiro caso no Comitê de Direitos Humanos alegando violação
destes direitos em consequência da mudança climático e a solicitar mudanças
nas políticas e compromissos climáticos nacionais.
Outros casos relacionando aos direitos humanos de grupos especialmen-
te vulneráveis à mudança climática foram apresentados ao Sistema de Direitos
Humanos da ONU. O caso Chiara Sacchi e outros c. Argentina, Brasil, Fran-
ça, Alemanha e Turquia854 traz a perspectiva da solidariedade intergeracional
no contexto dos direitos humanos, confrontados aos efeitos da crise climática,
considerada como uma crise dos direitos das crianças. A comunicação foi sub-

852 Ioane Teitiota c. Nova Zelândia, comunicação n. 2728/2016, Comitê de Direitos Humanos da ONU,
Jan. 7, 2020. Disponível em: <https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.
aspx?symbolno=CCPR/C/127/D/2728/2016&Lang=en>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
853 Torres Strait Islanders c. Austrália, Comitê de Direitos Humanos da ONU, Maio 13, 2019. Ver:
<https://www.clientearth.org/press/climate-threatened-torres-strait-islanders-bring-human-
rights-claim-against-australia/>.
854 Chiara Sacchi e outros c. Argentina, Brasil, França, Alemanha e Turquia, Comitê para os Direitos
da Criança da ONU, Set. 23, 2019. Disponível em: <https://childrenvsclimatecrisis.org/wp-content/
uploads/2019/09/2019.09.23-CRC-communication-Sacchi-et-al-v.-Argentina-et-al.pdf>. Acesso
em: 17 de agosto de 2020.

252
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

metida ao Comitê para os Direitos da Criança da ONU em 2019 por 16 crianças


de 12 países e segue pendente de decisão. Os peticionários argumentam que as
obrigações que emanam da Convenção Sobre os Direitos da Criança devem ser
interpretadas de acordo com o direito internacional do meio ambiente e das
normas climáticas. Os Estados estariam obrigados a: i) prevenir violações inter-
nas e extraterritoriais previsíveis dos direitos humanos resultantes da mudan-
ça climática; ii) cooperar internacionalmente face à crise climática; iii) aplicar
o princípio da precaução e iv) garantir a justiça intergeracional. Causando e
perpetuando a mudança climática os Estados não estariam tomando medidas
preventivas e precatórias necessárias para respeitar e proteger os direitos à vida,
à saúde e à cultura. A Convenção prevê que os Estados devem limitar o dano
contínuo e futuro a estes direitos, incluindo os danos causados por fatores am-
bientais, como os que resultam da crise climática.
No que se refere aos povos indígenas, merece destaque a petição sobre os
direitos destes povos face aos deslocamentos forçados provocados pela mudança
climática,855 submetida em 2020 a 10 relatores especiais de direitos humanos da
ONU856 por 5 tribos indígenas.857 Consideram que os Estados Unidos da Amé-
rica (EUA) não protegeu seus direitos, pois são vítimas de deslocamento de seus
territórios em consequência dos impactos das alterações do clima. Solicitam aos
relatores especiais que considerem o deslocamento induzido por fatores climáti-
cos como uma crise dos direitos humanos e que façam recomendações aos EUA

855 A íntegra da petição pode ser consultada em: <https://www.uusc.org/wp-content/uploads/2020/01/


Complaint.pdf>.
856 Cecilia Jimenez-Damary, Relatora Especial sobre os Direitos dos Deslocados Internos; Victoria
Lucia Tauli-Corpuz, Relatora Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas; David R. Boyd, Relator
Especial sobre as Obrigações de Direitos Humanos Relacionadas ao Usufruto de um Meio Ambiente
Seguro, Limpo, Saudável e Sustentável; Hilal Elver, Relatora Especial sobre o Direito à Alimentação;
Karima Bennoune, Relatora Especial sobre os Direitos Culturais; Dainius Puras, Relator Especial
sobre o Direito de Toda Pessoa ao Disfrute do Mais Alto Nível Possível de Saúde Física e Mental;
Leilani Farha, Relatora Especial sobre o Direito à Moradia Adequada como Elemento Integrante do
Direito a um Nível de Vida Adequado; Philip Alston, Relator Especial sobre a Extrema Pobreza e
os Direitos Humanos; E. Tendayi Achiume, Relatora Especial sobre asFormas Contemporâneas de
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância; e Léo Heller, Relator
Especial sobre o Direito Humano à Água Potável e o Saneamento.
857 As tribos indígenas de Louisiana são: Isle de Jean Charles Band of Biloxi-Chitimacha-Choctaw
Indians of Louisiana; Pointe-au-Chien Indian Tribe; Grand Caillou/Dulac Band of Biloxi-
Chitimacha-Choctaw Tribe; e Atakapa-Ishak Chawasha Tribe of the Grand Bayou Indian Village.
A comunidade indígena do Alaska é a Aldeia Nativa de Kivalina.

253
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

e aos governos da Louisiana e do Alaska para reconhecer e proteger seus direitos


como povos indígenas vítimas da crise climática.
A crise climática remodela os direitos humanos que, mais uma vez, de-
monstram sua maleabilidade para adequar-se ao maior desafio que a humani-
dade enfrenta no século XXI, até o reconhecimento de uma nova dimensão do
direito ao meio ambiente, o direito a um sistema climático seguro. Estados fo-
ram reconhecidos responsáveis em matéria climática em consequência de suas
obrigações que decorrem dos tratados de direitos humanos. Os que estão na
linha de frente da crise climática, povos indígenas, migrantes climáticos, crian-
ças e jovens, mulheres, estão buscando visibilidade, reconhecimento, empode-
ramento e proteção através dos direitos humanos em jurisdições nacionais e em
organismos internacionais, podendo levar a um movimento de litigância climá-
tica nas cortes de direitos humanos, a exemplo da Corte Europeia de Direitos
Humanos. No dia 3 de setembro de 2020 uma petição foi apresentada à Corte
EDH por quatro crianças e dois jovens de Portugal contra 33 países, solicitando
à Corte que sejam responsabilizados por sua contribuição à crise climática. Os
peticionários alegam a crescente ameaça que as alterações do sistema climático
representam para os seus direitos à vida e ao bem-estar físico e mental e soli-
citam cortes profundos e urgentes nas emissões de CO2. Caso a Corte EDH
receba a petição esta será a primeira oportunidade para que se manifeste em um
caso relacionado ao impacto da mudança climática sobre os direitos humanos,
configurando-se como um espaço de litigância climática858.
Este movimento pode chegar à Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos, a partir do precedente gerado pela decisão do caso Comunidades Indígenas
Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) c. Argentina em 6 de
fevereiro de 2020859. A Corte IDH reconhece pela primeira vez uma violação
ao direito humano ao meio ambiente como direito autônomo, o que abriria a
possibilidade de se pronunciar sobre violações deste direito em consequência
dos impactos da mudança climática. O tema já está presente no Sistema Inte-
ramericano de Direitos Humanos. No seu 173 período de sessões em 2019 a

858 Informações sobre o caso podem ser encontradas na página da Global Legal Action Network, que
está apoiando os peticionários:<https://www.glanlaw.org>. Até o presente momento o caso não
figura no repositório de casos recebidos pela Corte EDH.
859 CORTE IDH. Caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra)
c. Argentina. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 6 de fevereiro de 2020. Série C N. 400.

254
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Comissão Interamericana de Direitos Humanos realizou, a partir de solicitação


de 15 organizações da região,860 uma audiência pública sobre os efeitos da mu-
dança climática sobre os direitos humanos, especialmente dos povos indígenas,
crianças e comunidades rurais861. Integra, ainda, o Plano Estratégico 2017-2021
da Comissão, no intuito de desenvolver diretrizes interamericanas. A Relatoria
Especial sobre os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (RE-
DESCA) tem liderado um processo de trabalho neste sentido862.
O papel dos direitos humanos na promoção da justiça climática se re-
força com os recentes avanços no reconhecimento de um direito a um siste-
ma climático seguro e sustentável, que demonstra a capacidade de renovação
destes direitos para responder aos desafios ambientais, como os que decorrem
da crise climática. Este direito decorre da estreita relação entre a proteção e
realização dos direitos humanos e a garantia de um sistema climático seguro e
sustentável, como argumentado no caso La Rose c. Her Majesty the Queen, re-
lativo aos direitos de crianças e jovens no Canadá863, e no caso Ali c. Paquistão,
também pautado na perspectiva intergeracional da crise climática864.
O reconhecimento do direito a um sistema climático seguro, como di-
mensão do conteúdo substantivo do direito ao meio ambiente, tem avançado
pela via dos casos de litigância climática e pelo trabalho do Relator Especial
da ONU sobre as Obrigações de Direitos Humanos Relacionadas ao Usufruto
de um Meio Ambiente Seguro, Limpo, Saudável e Sustentável. Em seu relató-

860 Fundación Pachamama (Equador), Dejusticia (Colômbia), EarthRights International (regional),


AIDA (regional), FUNDEPS (Argentina), FIMA (Chile), DPLF (regional), IDL (Perú),CELS
(Argentina), Engajamundo (Brasil), AHCC (Honduras), Conectas (Brasil), FARN (Argentina),
CEMDA (México) e La Ruta del Clima (Costa Rica).
861 Um relatório desta audiência foi publicado pelas organizações solicitantes: DIAZ, M. A., et al.
Cambio Climático y los Derechos de Mujeres, Pueblos Indígenas y Comunidades Rurales en las
Américas. Bogotá: Fundação Heinrich Boll, 2020.
862 Informações disponíveis em: <https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2019/248.asp>.
863 La Rose c. Her Majesty the Queen, Corte Federal, Canadá, 2019, pendente de decisão. Disponível
em: <http://blogs2.law.columbia.edu/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-
us-case-documents/2019/20191025_T-1750-19_complaint.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
864 Ali c. Paquistão, Suprema Corte, Paquistão, 2016, pendente de decisão. Disponível em: <http://
blogs2.law.columbia.edu/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-
documents/2016/20160401_Constitutional-Petition-No.-___-I-of-2016_petition-1.pdf>. Acesso
em: 17 de agosto de 2020.

255
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

rio de 2019 sobre o clima seguro865, conclui que este é um dos seis elementos
substantivos do direito ao meio ambiente, informado pelos compromissos que
decorrem da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Cli-
ma, que engaja os Estados a prevenir a interferência antropogênica perigosa
no sistema climático. O relatório reconhece que os Estados têm a obrigação de
não violar e de proteger o direito a um clima seguro. O descumprimento dos
compromissos climáticos internacionais configura uma violação prima facie
das obrigações estatais de direitos humanos.
No contexto da litigância climática, identifica-se o argumento do direito
a um sistema climático seguro como condição para a realização dos demais
direitos das gerações presentes e futuras. Mesmo se alguns casos não obtive-
ram sucesso ou seguem pendentes de decisão, o recurso a este direito repre-
senta um passo importante para a discussão quanto ao seu conteúdo, funda-
mentos e proteção. A título de exemplo, no caso Juliana v. Estados Unidos da
América866 , que discutiu a violação do direito a um sistema climático capaz de
sustentar a vida humana, a Juíza Distrital Ann Aiken afirmou não ter dúvidas
de que este é um direito fundamental867.
O caso Notre Affaire à Tous e Outros c. França (L’affaire du siècle)868, ba-
seia-se no argumento de um princípio jurídico geral que fundamenta o direito
de toda pessoa de viver em um sistema climático preservado. Este princípio,
mesmo não sendo expressamente reconhecido, resulta da consciência jurídica

865 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Report of the Special Rapporteur on the issue of human
rights obligations relating to the enjoyment of a safe, clean, healthy and sustainable environment -
Safe Climate. 2019 ( A/74/161).
866 O caso foi julgado improcedente no Tribunal de Apelação do Nono Circuito dos Estados Unidos em
17 de janeiro de 2020. Ver UNITED STATES COURT OF APPEALS FOR THE NINTH CIRCUIT.
Case n. 18-36082. D.C. n. 6:15-CV-01517-AA. Disponível em: <http://blogs2.law.columbia.
edu/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/case-documents/2020/20200117_
docket-18-36082_opinion.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
867 UNITED STATES DISTRICT COURT FOR THE DISTRICT OF OREGON EUGENE DIVISION.
Opinion and Order Case n. 6:15-cv-01517-TC. Disponível em:<http://blogs2.law.columbia.edu/
climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/case-documents/2016/20161110_docket-
615-cv-1517_opinion-and-order-2.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
868 Notre Affaire à Tous c. França, Tribunal Administrativo de Paris, Dez. 17, 2018, pendente de decisão.
Ver Brief on the legal request submitted to the Administrative Court of Paris on 14 march 2019.
Disponível em: <https://notreaffaireatous.org/wp-content/uploads/2019/05/Brief-juridique-ADS-
EN-1.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.

256
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

de nosso tempo e das exigências do Estado de Direito. Um sistema climático


sustentável é pré-requisito para a realização destes direitos.
O caso Ali c. Paquistão é rico em referência à relação entre a estabilidade
do sistema climático e a proteção dos direitos humanos, argumentando-se
que os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à dignidade, à informação
e igual proteção perante a lei incluem o direito inalienável a um sistema cli-
mático estável. O caso Maria Khan e outros. c. Paquistão e outros869,se baseia
no direito a um sistema climático capaz de sustentar a vida para questionar
a inação do governo quanto ao clima, o que afeta desproporcionalmente as
mulheres e as gerações futuras. O direito a um sistema climático seguro como
dimensão do direito ao meio ambiente é indicado na petição como previa-
mente reconhecido no caso Asghar Leghari c. Paquistão870.
O direito a um sistema climático seguro e sustentável, como elemento
substantivo do direito ao meio ambiente, que por sua vez é direito comum a to-
dos os membros da comunidade planetária, é um avanço para uma abordagem
da crise climática baseada em direitos ecologizados. Verifica-se que os direitos
humanos propiciam discursos e argumentos jurídicos válidos face à crise cli-
mática, trazendo a perspectiva da solidariedade intergeracional e interespécies e
reforçando os argumentos da justiça climática em uma perspectiva ecologizada.

Parte II – As Fases da Ecologização


dos Direitos Humanos

O processo de ecologização dos direitos humanos é gradual, por vezes


inconstante, desenvolvendo-se em fases e por distintas vias. Identificam-se
como etapas de ecologização dos direitos humanos: i) atribuição de uma di-
mensão ambiental a direitos humanos já consolidados; ii) reconhecimento
de direitos ambientais autônomos; iii) os direitos humanos como direitos de
membros da comunidade planetária inseridos em um contexto ambiental do

869 Maria Khan e outros. c. Paquistão e outros, Corte Suprema de Lahore, Fev. 14, 2019. Disponível em:
<http://blogs2.law.columbia.edu/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-
documents/2019/20190214_No.-8960-of-2019_application.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
870 Asghar Leghari c. Paquistão. Op. cit.

257
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

qual não podem ser dissociados; iv) superação de limites de titularidade, tem-
po e espaço, estendendo-se às coletividades, às futuras gerações e abarcando
questões globais para além dos limites de poder e de território; v) desenvolvi-
mento de um sistema de direitos humanos e da natureza, baseado na noção de
uma dignidade ampla e ecologizada.
Pode-se considerar que as duas primeiras etapas foram consolidadas
(com alguns limites no que se refere ao reconhecimento do direito humano
ao meio ambiente) e as demais estão avançando significativamente. A terceira
fase está em vias de consolidação, seja pelas manifestações do sistema de direi-
tos humanos da ONU ou por elementos extraídos da jurisprudência da Corte
IDH sobre povos indígenas e a indissociabilidade entre sua cultura, modos de
vida e existência e o seu entorno natural. A quarta fase conta com o reforço de
casos recentes de litigância climática871quanto à dimensão intergeracional, as-
sim como a transposição do paradigma individualista e dos limites territoriais
na jurisprudência da Corte IDH. A conexão entre direitos humanos e direitos
da natureza tem se intensificado, como demonstra a Opinião Consultiva OC
23–17 da Corte EDH e casos recentes de litigância climática.

6.5 Fase 1 – Interpretação evolutiva dos tratados de


Direitos Humanos: atribuição de uma dimensão
ambiental aos Direitos Humanos
A jurisprudência é constante em reconhecer que os tratados de direitos hu-
manos não são estanques e devem ser interpretados de forma evolutiva, visando
sua adequação às condições de vida atuais, nas quais as questões ambientais têm
papel preponderante. A Corte EDH foi precursora na interpretação evolutiva e ex-
tensiva a fim de atribuir uma dimensão ambiental aos direitos humanos,872 recor-
rendo a subterfúgios interpretativos diante da ausência, nos tratados de direitos

871 Ver, por exemplo, CONVENTION ON ACCESS DO INFORMATION, PUBLIC PARTICIPATION


IN DECISION-MAKING AND ACCESS TO JUSTICE IN ENVIRONMENTAL MATTERS.
Aarhus, Dinamarca, 25 de junho de 1998.
872 Para uma análise da jurisprudência ambiental da Corte Europeia de Direitos Humanos, ver:
CAVEDON, F. S. Justicia ambiental y creación jurisprudencial del Derecho: las aportaciones de la
Corte Europea de Derechos Humanos. Op. cit.

258
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

humanos sobre os quais tem competência, de reconhecimento de um direito ao


meio ambiente. Se a Corte EDH possui uma jurisprudência ambiental consoli-
dada é graças ao seu trabalho interpretativo da Convenção Europeia de Direitos
Humanos (CEDH), adaptando-a às condições atuais de crise ecológica. Utilizan-
do-se de técnicas inovadoras e princípios interpretativos operados em favor do
meio ambiente, desenvolveu uma jurisprudência ambiental que fixa um conjunto
de princípios e obrigações sobre direitos humanos e meio ambiente.873 Se a Corte
EDH não pôde criar e integrar direitos ambientais à CEDH, sua jurisprudência
permitiu ampliar o conteúdo dos direitos reconhecidos.
Esta dinâmica iniciou-se com a admissibilidade de petições de conteú-
do ambiental, até o reconhecimento de um direito humano ao meio ambien-
te, em princípio de forma indireta pela utilização da técnica da proteção por
ricochete, e de maneira explícita a partir do caso Tatar c. Romênia (2009),
reforçado no caso Bacila c. Romênia (2010). Porém, a ecologização da ju-
risprudência da Corte EDH não é linear, oscilando entre criação judicial e
excessivo self restreint. Mesmo depois do caso Tatar e do reconhecimento
da dimensão ambiental de distintos direitos humanos substantivos e proce-
dimentais, a Corte EDH adotou por vezes uma jurisprudência regressiva874,
sem, contudo, desestabilizar sua inquietude sobre a necessidade de assegu-
rar uma proteção concreta e efetiva dos direitos humanos face aos riscos
ambientais, ilustrada por outras tantas decisões.875 No caso Cordella e outros

873 Para uma visão detalhada sobre os princípios de proteção ambiental derivados da jurisprudência
da Corte EDH, ver: COUNCIL OF EUROPE. Manual on human rights and the environment.
Estrasburgo: Council of Europe Publishing, 2012. 2° ed.
874 Como na decisão do caso Ivan Atanasov c. Bulgáriade 7 de dezembro de 2010, no qual a Corte EDH
manifesta que, mesmo se a importância da proteção do meio ambiente é crescente na sociedade atual,
o artigo 8 da Convenção EDH (utilizado ulteriormente para reconhecer um direito ao meio ambiente)
não entra em jogo cada vez que se constata uma deterioração do meio ambiente, visto que nenhum
direito à preservação da natureza figura entre os direitos e liberdades garantidos pela Convenção ou
seus protocolos adicionais. Mais detalhes em NADAUD, S.; MARGUÉNAUD, J. P. Chronique des
arrêts de la Cour européenne des droits de l’homme (2010-2011). Revue Juridique de l’Environnement,
v. 36, n. 4, 2011, p. 563-584. ACorte EDH também foi restritiva em decisões de admissibilidade de
petições com conteúdo ambiental, aplicando uma concepção arcaica do nexo de causalidade, como
exposto em: NADAUD, S.; MARGUÉNAUD, J. P. Chronique des arrêts de la Cour européenne des
droits de l’homme (2015-2016). Revue Juridique de l’Environnement, v. 42, n. 1, 2017, p. 83-93.
875 Sobre este posicionamento e os casos que ilustram a inquietação da Corte EDH ver: NADAUD, S.;
MARGUÉNAUD, J. P. Chronique des arrêts de la Cour européenne des droits de l’homme (2013-
2014). Revue Juridique de l’Environnement, v. 40, n. 1, 2015, p. 84-99.

259
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

c. Itália (2019), a Corte considerou que a prolongação de uma situação de po-


luição ambiental coloca em risco a saúde da população que reside em áreas
de risco, configurando uma violação da CEDH.
A primeira vez que a Corte EDH se pronunciou sobre direitos humanos
e meio ambiente foi no caso Arrondelle c. Reino Unido, nos anos 80, que foi
objeto de acordo, não gerando decisão sobre o seu conteúdo. No caso Powell
e Rayner c. Reino Unido (1990), reconheceu que as perturbações na qualidade
do meio ambiente poderiam afetar a qualidade de vida e provocar violações de
direitos humanos. Porém, decidiu pela não violação do artigo 8 da CEDH. Foi
no caso López Ostra c. Espanha (1994), que pela primeira vez a Corte reconhe-
ce uma violação do direito à proteção da vida privada e familiar e do domicílio
(artigo 8 da CEDH) por razões ambientais, considerando que o gozo efetivo
deste direito implica no direito de viver em um ambiente saudável.
De maneira geral, a Corte EDH se manifestou sobre questões ambientais
quando caracterizada uma ou mais das seguintes situações: i) o gozo e a prote-
ção dos direitos humanos são afetados por condições ambientais desfavoráveis
e riscos ambientais; ii) aqueles que foram afetados por condições ambientais
desfavoráveis ou são expostos a riscos podem utilizar os direitos procedimen-
tais garantidos pela Convenção e iii) o exercício dos direitos garantidos pela
CEDH podem ser limitados por razões ambientais, pois a proteção ambiental
é um objetivo legítimo que justifica uma ingerência nos direitos humanos.
Nestas situações, a Corte EDH manifestou-se sobre uma ampla gama
de questões ambientais da atualidade,876 como os riscos decorrentes de
atividades industriais perigosas e poluição industrial,877 desastres natu-

876 Um repertório da jurisprudência da Corte EDH em matéria ambiental pode ser encontrado em:
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Environment and the European Convention on
Human Rights. 2020 (última atualização em março de 2020). Disponível em: <https://www.echr.
coe.int/Documents/FS_Environment_ENG.pdf>.
877 Por exemplo, nos casos Lopez Ostra c. Espanha (1994), Fadayeva e outros c. Russia (2005), Giacomelli
c. Itália (2006), Tătar c. Romênia (2009), Băcilă c. Romênia (2010), Dubetska e outros c. Ucrânia
(2011), Cordella e outros c. Itália (2019).

260
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

rais e tecnológicos,878 resíduos,879 contaminação por amianto,880 poluição


sonora,881 acesso à informação,882 expressão e associação em torno de ques-
tões ambientais,883 direito de propriedade em relação com o meio ambiente,884
caça,885 dentre outros. Ao abordar estas questões, a Corte mostra a sua atuali-
dade e a pertinência frente aos problemas ambientais e à crise ecológica.
Quanto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, existem três vias
de ecologização possíveis. A primeira seria a aplicação do direito ao meio am-
biente previsto no artigo 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americana
Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Cul-
turais, conhecido como Protocolo de San Salvador.886 Porém, esta via deve
ainda ser desenvolvida, diante dos limites de aplicabilidade do artigo 11, já
que não pode ser diretamente invocado em uma petição de violação de direi-
tos humanos por razões ambientais. Trata-se de um direito reconhecido, mas
que carece de concretização e justiciabilidade887.

878 Em matéria de desastres naturais ver as os casos Budayeva c. Rússia (2008), Koliadenko e outros
c. Rússia (2012) e Özel e outros c. Turquia (2015). Sobre desastres industriais ver principalmente
Öneryildiz c. Turquia(2004) e, indiretamente, Guerra e outros c. Itália (1998).
879 Ver: Brânduse c. Romênia (2009) e Di Sarno e outros c. Itália (2012),
880 Brincat e outros c. Malta (2014)
881 Tráfego ferroviário: Bor c. Hungria (2013). Trafego aéreo: Powell e Ryiner c. Reino Unido (1990),
Hatton e outros c. Reino Unido (2003). TráfegoRodoviário: Deés c. Hungria (2010), Grimkovskaya
c. Hungria (2011). Poluição sonora de atividades de vizinhança, casas noturnas, comércio, etc.:
Moreno Gómez c. Espanha (2004) e Cuenca Zarzoso c. Espanha (2018).
882 Öneryildiz c. Turquia(2004) e Guerra e outros c. Itália (1998).
883 Expressão: Vides Aizsardzïbas Klubs c. Letônia (2004), Steel e Morris c. Reino Unido (2005).
Associação: Costel Popa c. Romênia (2016).
884 Por exemplo: Hamer c. Bélgica (2007), Depalle c. França e Brosset-Tiboulet c. França (2010), Malfatto
e Mieille c. França (2016), Dimitar Yordanov c. Bulgária (2018), Yasar c. Romênia (2019).
885 Chassagnou e outros c. França (1999)
886 Artigo 11 - Direito a um meio ambiente sadio
1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básico
2. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente.
887 O artigo 19 do Protocolo de San Salvador, que estabelece os meios de proteção, prevê em seu
parágrafo 6 que somente os direitos previstos na alínea a do artigo 8 e no artigo 8, quando violados
por ação diretamente imputável a um dos Estados partes, poderiam dar lugar à aplicação do sistema
de petições individuais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

261
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

A partir da Opinião Consultiva OC 23–17888, a Corte estabeleceu uma nova


via de proteção do direito ao meio ambiente através do artigo 26 da Convenção
Americana de Direitos Humanos (CADH)889, considerando que este direito in-
tegra os direitos econômicos, sociais e culturais que requerem desenvolvimento
progressivo. O recurso ao artigo 26 em jurisprudência recente da Corte promo-
veu uma evolução na justiciabilidade destes direitos890, até o primeiro reconhe-
cimento de uma violação do direito ao meio ambiente no caso Comunidades
Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) (2020).
A terceira via é a atribuição de uma dimensão ambiental aos direitos
humanos estabelecidos pela CADH, inclusive interpretando-os a partir do di-
reito ao meio ambiente reconhecido no Protocolo de San Salvador891. A Corte
IDH adota a via da ecologização por ricochete a fim de atribuir uma dimensão
ambiental a direitos humanos no contexto, principalmente, de casos envol-
vendo direitos e modos de vida de povos indígenas e demais comunidades
tradicionais, afetadas por atividades de exploração de recursos naturais.
O primeiro caso no qual a Corte IDH traçou relações entre direitos hu-
manos e meio ambiente é Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni c. Nica-
rágua (2001)892. Se refere ao direito de propriedade comum dos povos tradicio-
nais, com base no artigo 21 da CADH, ameaçado pela falta de demarcação do
território tradicional e pela autorização de exploração florestal sem consulta
à comunidade. Este foi o ponto de partida para a construção de uma juris-
prudência que reinterpretou os direitos à propriedade, à vida, à integridade
física e à participação nos assuntos públicos, fortemente centrada em uma

888 CIDH. Medio Ambiente y Derechos Humanos, Op. cit.


889 Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo
Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como
mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir
progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais
e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos,
reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa
ou por outros meios apropriados.
890 Neste sentido ver os casos Lagos del Campo c. Perú (2017) e Poblete Vilches e outros c. Chile (2018).
891 A utilização do artigo 11 do Protocolo de San Salvador foi utilizado, por exemplo, na decisão do caso
Comunidade Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua c. Paraguai
892 Corte IDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Fundo, Reparações
e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C N. 79.

262
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

visão ecológica da propriedade e dos modos de vida dos povos tradicionais da


América Latina, que exigiam uma ressignificação dos direitos humanos para
responder às especificidades da indissociabilidade da cultura, dos modos de
vida e do território desses povos com o seu elemento ambiental. Utilizando-se
da técnica interpretativa dos conceitos autônomos, faz uma reconceituação da
noção de “bem” que a CADH protege, para adequar ao senso específico que a
propriedade e o território possuem para as comunidades tradicionais.893
Uma noção ampliada de dignidade se reflete na interpretação do direito
à vida (artigo 4 da CADH), entendido como o direito à uma vida digna, que
tem como elemento intrínseco a qualidade ambiental, como no caso Comu-
nidade Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua c. Paraguai (2005)894. O conceito de
dignidade segue em expansão, abarcando inclusive o direito à água, como no
caso Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai (2010)895. A Corte adotou uma in-
terpretação extensiva e evolutiva da CADH, reconhecendo que os tratados de
direitos humanos são instrumentos vivos cuja interpretação deve se adaptar
à evolução dos tempos e às condições de vida atuais.896 Através deste trabalho
de interpretação e da técnica da proteção do meio ambiente por ricochete, a
Corte IDH tem utilizado a via da atribuição de uma dimensão ambiental aos
direitos humanos tradicionais para se ecologizar.
Esta primeira etapa de ecologização dos direitos humanos foi consoli-
dada através da jurisprudência das Cortes europeia e interamericana, que re-
alizam um trabalho interpretativo e de ressignificação dos direitos humanos

893 [149. Dadas las características del presente caso, es menester hacer algunas precisiones respecto
del concepto de propiedad en las comunidades indígenas. Entre los indígenas existe una tradición
comunitaria sobre una forma comunal de la propiedad colectiva de la tierra, en el sentido de que la
pertenencia de ésta no se centra en un individuo sino en el grupo y su comunidad. Los indígenas por
el hecho de su propia existencia tienen derecho a vivir libremente en sus propios territorios; la estrecha
relación que los indígenas mantienen con la tierra debe de ser reconocida y comprendida como la
base fundamental de sus culturas, su vida espiritual, su integridad y su supervivencia económica.
Para las comunidades indígenas la relación con la tierra no es meramente una cuestiónde posesión
y producción sino un elemento material y espiritual del que deben gozar plenamente, inclusive
para preservar su legado cultural y transmitirlo a las generaciones futuras.] CORTE IDH. caso da
Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni c. Nicarágua, de 31 de agosto de 2001, § 149.
894 Corte IDH. Caso Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai. Fundo, Reparações e Custas.
Sentença de 17 de junho de 2005. Série C N. 125.
895 Corte IDH. Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai. Fundo, Reparações e Custas.
Sentença de 24 de agosto de 2010. Série C N. 214.
896 Conforme dispõe a Corte IDH no caso Mayagma (Sumo) Awas Tingnic. Nicarágua, § 146.

263
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

a fim de adequar-lhes às condições de vida atuais, indissociáveis dos riscos e


conflitos ambientais típicos da crise ecológica. Tanto os direitos substantivos
como os procedimentais adquiriram conteúdo ambiental para se configura-
rem como instrumentos da promoção e garantia de uma dignidade e quali-
dade de vida indissociáveis do seu contexto ambiental. Verifica-se que as duas
Cortes, em momentos distintos e abordando diferentes temas e desafios,897 mas
compartilhando métodos e técnicas de interpretação e a mesma visão dinâ-
mica dos direitos humanos, consolidam uma jurisprudência ambiental898. A
partir desta análise, identificam-se como direitos humanos substantivos que
adquiriram uma dimensão ambiental os direitos à vida,899 à propriedade,900 ao

897 As provocações à Corte EDH centradas em problemas da industrialização e urbanização aceleradas


e a Corte IDH voltada para as populações tradicionais e sua relação com o ambiente, ameaçado pela
indústria extrativista.
898 Um estudo comparado da ecologização das Cortes européia e interamericana de direitos humanos
pode ser consultada em: CAVEDON, F. S. L’écologisation des juridictions régionales de protection
des droits de l’homme: des nouveaux espaces d’accès à la justice en matière d’environnement,
Revue Roumaine de Droit de l’Environnement, n. 2, 2010, pp. 51-65. Ou ainda: TORRE-SCHAUB,
M. ; CAVEDON, F. S. Le droit à l’environnement sain et les droits de l’Homme – Étude sur les
jurisprudences de la CEDH et le SIDH. MUÑAGORRI, R. E. ; BENSAMOUN, A. ; BROSSET, E. ;
COHENDET, M. A. (Orgs.). Sciences et droits de l’Homme. Paris : Mare & Martin, 2017. Pp. 153-172.
899 Ver os casosComunidade Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua c. Paraguai (2005); Comunidade
Xákmok Kásek c. Paraguai (2010; Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012). Na Corte
EDH, verÖneryildiz c. Turquia (2004) sobre violação do direito à vida em decorrência de atividade
industrial perigosa e, em seu aspecto procedimental, pela falta de informação adequada sobre os
riscos decorrentes da mesma. Outros casos se relacionam a desastres naturais: Budayeva c. Rússia
(2008) e Özel e outros c. Turquia (2015).
900 A ecologização da jurisprudência da Corte IDH se desenvolve à partir do direito de propriedade de
povos indígenas e outras comunidades tradicionais. Ver: Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni
c. Nicarágua (2001); Comunidade Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua c. Paraguai (2005); Comunidade
Xákmok Kásek c. Paraguai (2010); Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012); Povos
indígenas Kuna de Mandungandí e Emberá de Bayano c. Panamá (2014), Comunidade Garífuna de
Punta Piedra c. Honduras (2015). A Corte extrai do artigo 21 da CADH direitos conexos, como o
direito de acesso à água (Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai), o direito à identidade cultural
e à consulta, informação e participação no licenciamento de atividades que impactem a dimensão
ambiental da propriedade (Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador). Na Corte EDH, o artigo
1 do Protocolo n° 1 à CEDH reconhecendo o direito ao respeito dos bens é evocado quando danos ou
riscos ambientais podem afetar a propriedade (Öneryildiz c. Turquia de 2004,Chassagnou e outros
c. França de 1999 e Dimitar Yordanov c. Bulgária de 2018), ou diante de limitações ambientais, a
Corte reconheceu a proteção ambiental como interesse legítimoque justifica limitações ao direito
depropriedade como nos casos Fredin c. Suécia (1991),Malfatto e Mieille c. França (2016) ou
O’Sullivan McCarthy Mussel Development Ltd c. Irlanda (2018).

264
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

respeito da vida privada e familiar e do domicílio901 e à integridade física.902 En-


tre os direitos procedimentais cita-se os direitos à informação,903 à expressão,904
à associação,905 à participação em assuntos públicos,906 a um processo equitativo
e um recurso efetivo,907 que expressam de forma mais ampla o direito de aces-

901 A dimensão ambiental do direito à proteção da vida privada e familiar e do domicílio foi desenvolvida
pela Corte EDH na interpretação do artigo 8 da CEDH, em torno de temas típicos de sociedades
industriais, como a exposição a riscos ambientais e o direito de ser informado (ex.: Guerra e outros
c. Itália de 1998 e Brincat e outros c. Malta de 2004); violações decorrentes da poluição industrial
(ex.: Lopez Ostra c. Espanha de 1994, Taskin e outros c. Turquia de 2004, Fadeyeva c. Rússia de
2005, Giacomelli c. Itália de 2006, Tatar c. Romênia de 2009, Bacila c. Romênia de 2010, Dubetska e
outros c. Ucrânia de 2011 e Cordella e Outros c. Itália de 2009); poluição sonora (ex.: Moreno Gomez
c. Espanha de 2004, Grimkovskaya c. Ucrânia de 2011, Bor c. Hungria de 2013ou Cuenca Zarzoso c.
Espanha de 2018); resíduos (ex.: Brânduse c. Romênia de 2009 e Di Sarno e outros c. Itália de 2012)
ou contaminação da água (Dzemyuk c. Ucrânia de 2014).
902 No caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012) a Corte IDH atribui dimensão ambiental
ao direito à integridade física (art. 5.1 da CADH) face aos riscos deexploração de recursos naturais.
903 A única jurisprudência ambiental da Corte IDH que não versa sobre povos tradicionais relaciona-
se ao direito de acesso à informação ambiental, no caso Claude Reyes c. Chile (2006). A Corte
também reconhece um direito à informação ambiental decorrente do direito à propriedadedos
povostradicionais, como no caso Povo Saramaka c. Suriname (2007). Já a Corte EDH extrai um
direito de acesso à informação ambiental dos aspectos procedimentais do direito à vida (Öneryildiz
c. Turquia de 2004) e do direito à proteção da vida privada e familiar e do domicílio (ex.: Guerra e
outros c. Itália de 1998 e Cordella e Outros c. Itália de 2019).
904 Ver na Corte EDH os casos Steel et Morris c. Reino-Unido (2005); Mamère c. França (2006) e Vides
Aizsardzibas Klub c. Letônia (2004) reconhecendo o papel essencial das ong’s ambientalistas em
uma sociedade democrática e a importância do debate ambiental, que justifica maior tolerância
à críticas. Ver: CAVEDON, F. S. La construcción de una dimensión ambiental de los derechos
humanos por la jurisprudencia de la Corte Europea de Derechos Humanos: el derecho de acceso
a la información y a la libertad de expresión en materia ambiental. Revista Aranzadi de Derecho
Ambiental,v. 14, 2008, p. 137-156.
905 A única jurisprudência neste sentido é da Corte EDH no caso Costel Popa c. Romênia (2016).
906 Direito à consulta, exigência de estudo de impacto ambiental e social e repartição dos benefícios
decorrente do artigo 23 da CADH, conforme o caso Povos Kalina e Lokono c. Suriname “Pueblos del
Bajo Marowijne” (2015).
907 Ver jurisprudência da Corte EDH sobre artigo 6 da CADH, e sua violação por descumprimento
de decisão judicial/administrativa favorável ao meio ambiente (Ahmet Okyay e outros c. Turquia
de 2005, Öçkan e outros c. Turquia de 2006, Lemke c. Turquia de 2007,Apanasewicz c. Polônia de
2011 e Bursa Barosu Başkanlığı e Outros c. Turquia de 2018)) ou direito à revisão judicial de decisão
administrativa que causa impacto ambiental (Karin Andersson e outros c. Suécia de2014). Quanto
ao artigo 13 da CEDH (direito a um recurso efetivo) reconheceu-se a possibilidade de invocá-lo
para que os Estados disponibilizem recursos para defender os direitos humanos contra os efeitos da
contaminação ambiental (Hatton e outros c. Reino Unido de 2003). A Corte IDH reconhece o direito
a um recurso efetivo para a proteção do meio ambiente (Comunidades afrodescendentes deslocadas
da bacia do Rio Cacarica (Operação Gênesis) c. Colômbia de 2013).

265
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

so à justiça. Verifica-se que as Cortes de direitos humanos utilizaram todo


seu aparato interpretativo para enriquecer o conteúdo dos direitos humanos,
reconhecendo aos mesmos uma dimensão ambiental. Esta atribuição de uma
dimensão ambiental a direitos humanos consolidados configura a primeira
fase da sua ecologização, com fortes indícios da necessidade de reconheci-
mento de direitos ambientais autônomos, que representa a segunda fase deste
processo de ecologização.

6.6 Fase 2 – Reconhecimento de direitos


ambientais autônomos e ecologizados
A segunda fase corresponde ao reconhecimento e efetivação de um di-
reito ao meio ambiente, como condição para a realização dos demais direitos
humanos e dos próprios direitos da natureza, em uma perspectiva de digni-
dade ampliada. A dimensão ambiental dos direitos humanos representou um
importante passo no reconhecimento das conexões entre direitos humanos
e meio ambiente, e da impossibilidade de sua realização sem a proteção da
qualidade e da integridade do ambiente no qual se realizam. Porém, exige um
complexo trabalho de interpretação e argumentação jurídica, que representa
maior tempo, custos e dificuldades para alcançar o fim pretendido. O reco-
nhecimento de direitos ambientais autônomos representa uma ponte estável
de comunicação entre os sistemas jurídico-ambiental e de direitos humanos.
O meio ambiente como um direito humano vem gradualmente sendo
reconhecido e se afirmando, pela via normativa e jurisprudencial, além dos
distintos projetos em curso para o seu reconhecimento no direito internacio-
nal dos direitos humanos A falta de reconhecimento formal não é obstáculo
à ecologização dos direitos humanos, porém esse reconhecimento tem uma
força simbólica e um apelo inegáveis, além dos aspectos facilitadores mencio-
nados, importantes para impulsionar a ecologização.
O reconhecimento do direito humano ao meio ambiente pela via nor-
mativa se deu, até o momento, no nível regional. Nas Américas, o Protocolo
Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1988, Protocolo de San Salvador,
reconhece que toda pessoa tem direito a viver em um ambiente sadio e que

266
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

os Estados promoverão a proteção, preservação e melhoria do meio ambien-


te. Porém, como discutido anteriormente, carece de efetividade pelos limites
à sua justiciabilidade. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
reconhece o direito humano ao meio ambiente no seu artigo 24. Já no conti-
nente europeu, a Convenção EDH e seus protocolos não preveem um direito
humano ao meio ambiente, apesar da existência de iniciativas de adoção de
um protocolo adicional neste sentido.
O reconhecimento e desenvolvimento do conteúdo do direito humano
ao meio ambiente tem ocorrido especialmente pelo trabalho das Cortes de
direitos humanos. Nas Américas, a Corte IDH superou a lacuna da falta de
justiciabilidade deste direito e operou uma verdadeira revolução ecologizado-
ra através da Opinião Consultiva OC 23/17 sobre Meio Ambiente e Direitos
Humanos. Além de reconhecer que um meio ambiente sadio é um direito fun-
damental para a existência da humanidade, amplia os fundamentos jurídicos
deste direito para além do artigo 11 do Protocolo de San Salvador, ao reco-
nhecer que integra os direitos econômicos, sociais e culturais protegidos pelo
artigo 26 da CADH. Reconhece o direito humano ao meio ambiente como um
direito autônomo, que não se confunde com a dimensão ambiental atribuída a
outros direitos humanos, com uma dimensão coletiva e individual.
Em sua dimensão coletiva, o direito humano ao meio ambiente é um
valor universal e intergeracional, abrindo espaço, inclusive, para a quarta fase
de ecologização dos direitos humanos. Já na sua dimensão individual, a Corte
enfatiza a relação com os demais direitos humanos, razão pela qual a viola-
ção do direito humano ao meio ambiente traz repercussões diretas e indiretas
sobre o indivíduo e seus direitos. Neste aspecto, se coaduna à terceira fase
de ecologização a partir da premissa de que são direitos de sujeitos inseridos
em um contexto ambiental do qual não podem ser dissociados e que influen-
cia diretamente sobre a possibilidade de realização dos seus direitos. A Corte
classifica os direitos ambientais em substantivos (direitos cujo gozo é espe-
cialmente vulnerável à degradação ambiental) e procedimentais (direitos cujo
exercício contribui para a melhoria das políticas ambientais).
A OC 23–17 tem como um dos seus principais traços inovadores a previ-
são de um direito ao meio ambiente ecologizado, que protege e se aplica a todos
os seres e componentes do meio ambiente, protegidos por este direito como in-
teresses jurídicos em si mesmos. Se protege o meio ambiente não somente por

267
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

sua utilidade para o ser humano ou pelos efeitos de sua degradação sobre os
direitos humanos, mas pela importância para os demais organismos vivos que,
por sua vez, também merecem proteção.908Representa um passo fundamental
na ecologização dos direitos humanos, que se alinha à quinta fase deste proces-
so, quando direitos humanos e da natureza são operados e interpretados como
um único sistema de direitos. A Corte reconhece o valor intrínseco do ambiente
e seus elementos, sua função ecológica de manutenção do equilíbrio e vitalidade
do Sistema Terra, protegidos por um direito que definitivamente rompe com os
paradigmas utilitarista e individualista. Culminando o processo de reconheci-
mento de um direito ao meio ambiente pela via jurisprudencial, a Corte IDH
reconhece pela primeira vez uma violação a este direito como direito autônomo
e justiciável por força do artigo 26 da CADH no caso Comunidades Indígenas
Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra)909.
Outro passo fundamental para o reconhecimento de direitos ambientais
na região foi a adoção do Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Parti-
cipação Pública e Acesso à Justiça na América Latina e Caribe, em 4 de março
de 2018, (Acordo de Escazú).910 O Acordo tem por objetivo a implementação
dos direitos de acesso à informação ambiental, de participação pública nos
processos de tomada de decisões ambientais, e de acesso à justiça em assuntos
ambientais, bem como a criação e fortalecimento de capacidades e cooperação,
contribuindo para a proteção do direito a um ambiente saudável. Trata-se da
regulamentação do Princípio 10 da Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento de 1992 no âmbito da América Latina e Caribe. Em suas dis-
posições gerais (artigo 4, 1) atribui às Partes a obrigação de garantir o direito de
toda pessoa de viver em um meio ambiente saudável. Reconhece como princípio
que deve guiar a sua implementação a equidade intergeracional, adequando-se
à quarta fase de ecologização dos direitos humanos. O Acordo de Escazú repre-
senta mais um elemento desta revolução ecologizadora dos direitos humanos na
América Latina, conjuntamente com a Opinião Consultiva OC 23/17 da Corte
IDH e os avanços na ecologização de sua jurisprudência.

908 CORTE IDH. Opinião Consultiva OC 23-17. Op. cit. § 62.


909 2020.
910 O texto do Acordo em língua portuguesa está disponível em: <https://repositorio.cepal.org/
bitstream/handle/11362/43611/S1800493_pt.pdf>.

268
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Na Corte EDH, a ausência de previsão normativa de um direito ao meio


ambiente na Convenção EDH pode ter propulsionado os juízes de Estrasbur-
go a reconhecê-lo pela via judicial. Este reconhecimento não é absoluto nem
linear. A Corte oscila entre posições progressivas e regressivas em matéria
ambiental. O debate sobre o reconhecimento de um direito ao meio ambiente
se faz em torno do artigo 8 da CEDH. Em linhas gerais, e a fim de demonstrar
o caráter não linear do posicionamento da Corte, traça-se um panorama dos
principais elementos e casos que ilustram esta discussão.911
Um primeiro exemplo são as decisões divergentes no caso Hatton e ou-
tros c. Reino Unido.912 A primeira decisão, adotada pela Terceira Sala da Corte
EDH em 2001, era coerente com a dimensão ambiental do artigo 8 da CEDH
expressa no caso López Ostra c. Espanha que lhe antecede, inclusive desenvol-
vendo e aprofundando este entendimento. Para Marguénaud, a decisão repre-
sentava um grande passo na promoção de um “verdadeiro direito humano a
um ambiente sadio e calmo”.913 Seguindo as possibilidades recursais, o caso foi
reenviado à Grande Sala da Corte EDH. Em decisão de 2003, a Corte muda de
posição e decide pela não violação do artigo 8, enfatizando que sua aprecia-
ção de fatores ambientais não significa que reconheça “direitos humanos am-
bientais” (§ 122). Esta posição já havia sido manifestada em outra decisão do
mesmo ano, no caso Kyrtatos c. Grécia (2003).914 A postura restritiva da Corte
se manifesta ao afirmar que sua atuação na matéria não busca reconhecer um
estatuto especial aos direitos humanos ambientais e sua negativa em reconhe-
cer a CEDH como instrumento passível de ser invocado para fins ambientais.
A fase restritiva se reverte a partir de 2004 com uma série de decisões
favoráveis ao reconhecimento da dimensão ambiental da CEDH,915 e se con-

911 Para uma análise do movimento de progressão e regressão da jurisprudência ambiental da Corte
EDH, ver: NADAUD, S.; MARGUÉNAUD, J. P. Op. cit. 2011.
912 O caso trata de poluição sonora gerada por aeroporto que acarretaria uma violação do artigo 8 da
CEDH. A Corte analisa o justo equilíbrio entre os interesses econômicos e o interesse geral de proteção
ambiental, assim como a extensão da margem de apreciação dos Estados em matéria ambiental
913 MARGUÉNAUD, Jean-Pierre. Tranquillité du domicile et droit de l’homme à l’environnement.
Recueil Dalloz, n. 19. 2007. p. 1325.
914 Este caso trata de uma alegação de violação do artigo 8 da CEDH por falta de cumprimento de
decisões do Conselho de Estado anulando autorizações de construção em área de manguezal.
915 Especialmente os casos Taskin e outros c. Turquía (2004), Moreno Gómez c. Espanha (2004),
Fadeyeva c. Rússia (2005) e Giacomelli c. Itália (2006).

269
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

solida com a decisão do caso Tatar c. Romênia (2009) na qual a Corte EDH
manifesta que o artigo 8 da CEDH consagra, de maneira geral, um direito ao
desfrute de um ambiente sadio e protegido. Esta posição foi reforçada no caso
Bacila c. Romênia (2010) no qual a Corte menciona o direito de usufruir de
um ambiente equilibrado e adequado à saúde. Estas decisões consolidaram a
jurisprudência ambiental da Corte EDH e o entendimento de que havia reco-
nhecido, pela via jurisprudencial, um direito humano ao meio ambiente.
Porém, outra formação da Corte EDH retoma a postura regressiva no
caso Ivan Atanasov c. Bulgária916, entendendo que, mesmo diante da impor-
tância da proteção do meio ambiente na sociedade atual, o artigo 8 da CEDH
não pode ser invocado toda vez em que ocorra uma degradação do meio am-
biente. Isto porque nenhum direito à preservação do meio ambiente figura en-
tre os direitos e garantias previstos pela Convenção ou seus protocolos. Uma
tentativa de desenvolver um “meio termo” entre progressão e regressão ocor-
reu na decisão do caso Apanasewics c. Polônia (2011)917. Mesmo mantendo a
posição de que a CEDH não reconhece um direito ao meio ambiente, a Corte
reconhece que nas situações em que uma pessoa sofre direta e gravemente as
consequências da poluição, o artigo 8 pode ser invocado.
O reconhecimento de um direito humano ao meio ambiente pela Corte
EDH é sujeito a este movimento de progressão e regressão que marca a sua
jurisprudência ambiental. Partilha-se do entendimento de Nadaud e de Mar-
guénaud de que um protocolo adicional à CEDH que reconheça um direito
ao meio ambiente, seria o caminho mais seguro para dissipar a insegurança
jurídica decorrente das mudanças de posicionamento da Corte.918 Cabe desta-
car que as decisões restritivas de 2010 e 2011 não impediram a Corte EDH de
seguir desenvolvendo a dimensão ambiental dos direitos humanos.919

916 O caso trata dos riscos gerados por um lago de decantação de uma mina desativada, em razão do plano
de reabilitação e secagem do lago adotado pelas autoridades que não satisfaziam as exigências legais.
917 Trata-se de construção de indústria de cimento, sem autorização, em área vizinha ao terreno do
peticionário, ocasionando poluição e impactos à sua saúde. Mesmo diante de decisão judicial
obrigando ao fechamento da indústria, esta continuava operando, configurando descumprimento
de decisão judicial. A Corte reconheceu uma violação do artigo 6 §1 e do artigo 8 da CEDH.
918 NADAUD, S.; MARGUÉNAUD, J. P. Op. cit.2011.
919 Por exemplo: Grimkovskaia c. Ucrania (2011), Di Sarno e outros c. Italia (2012), Bor c. Hungria (2013),
Brincanat e outros c. Malta (2013), Locher e outros c. Suiça (2013), Dzemiuk c. Ucrânia (2014), Özel e

270
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

No nível internacional, em que pese os importantes avanços no reconhe-


cimento das relações entre direitos humanos e meio ambiente, especialmente
no âmbito dos organismos de direitos humanos da ONU, o direito ao meio am-
biente como um direito humano ainda não foi objeto de reconhecimento nor-
mativo. Neste sentido, o ex-Relator Especial da ONU para os Direitos Humanos
e o Meio ambiente, John Knox, expressou que a comunidade internacional deve
reconhecer este direito e solicitou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU
que considere apoiar o seu reconhecimento em um instrumento global920.

6.7 Fase 3 – Os Direitos Humanos se interpretam e


realizam em um contexto ecológico, do qual seus
titulares não podem se dissociar
Nesta fase do processo de ecologização, se reconhece que os direitos huma-
nos são interpretados e realizados em um contexto de relações de interdepen-
dência entre seus titulares e seu entorno, do qual não podem ser dissociados. A
proteção que conferem aproveita a todos os elementos do Sistema Terra, quando
operados em uma dimensão ecológica. A dignidade humana só é possível se
respeitada a integridade e a dignidade da própria natureza. Este entendimento
é corroborado pelo ex Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos Hu-
manos e o Meio Ambiente, John Knox ao considerar que “os seres humanos são
parte da natureza e nossos direitos humanos estão entrelaçados com o ambiente
em que vivemos”.921 Por outro lado, esta intrínseca relação impõe limitações
ecológicas a direitos.922 Quando contextualizados em seu substrato ambiental,

outros c. Turquia (2015), Malfatto e Mieille c. França (2016), Bursa Barosu Başkanlığı c. Turquia (2018),
O’Sullivan McCarthy Mussel Development Ltd c. Irlanda (2018), Cordella e Outros c. Itália (2019).
920 Informação obtida de: UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE OF THE HIGH
COMMISSIONER. UN expert calls for global recognition of the right to safe and healthy
environment. 2018. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.
aspx?NewsID=22755&LangID=E>. Acesso em: 7 de agosto de 2018.
921 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Framework Principles on Human Rights and the
Environment. Op. cit. p. 5. Livre tradução da autora.
922 Sobre as limitações ecológicas aos direitos humanos, ver: BOSSELMAN, K. Human Rights and the
Environment: Redefining Fundamental Principles? Em GLEESON, B.; LOW, N. (Eds.). Governing for the
Environment - Global Problems, Ethics and Democracy. Londres: Palgrave MacMillan, 2001. p. 118-134.

271
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

sua realização deve ser coerente com a manutenção do equilíbrio e das funções
ecológicas do Sistema Terra. Estes limites ecológicos ficaram demonstrados na
jurisprudência da Corte EDH quanto ao direito de propriedade.
Já a jurisprudência da Corte IDH é rica em exemplos da interpretação dos
direitos humanos a partir de seu substrato ambiental, especialmente no que se
refere ao direito à propriedade comum dos povos tradicionais e o direito à vida.
Uma análise detalhada é feita na parte 3. A noção de propriedade e de bem, é
ressignificada para se adequar à intrínseca relação entre a cultura, os modos
de vida e a espiritualidade dos povos tradicionais da América Latina com seus
territórios ancestrais e seus elementos naturais. Os direitos destes povos são
contextualizados a partir do substrato ambiental no qual evoluem seus sujeitos.
Os elementos ambientais dos territórios constituem a própria essência do bem
protegido pelo artigo 21 da CADH, aos quais se atribui valores materiais e ima-
teriais indispensáveis à cosmovisão dos povos tradicionais. Seus direitos são,
portanto, interpretados e aplicados a partir de seu contexto ecológico. O mesmo
ocorre com o direito à vida (art. 4 da CADH) que, na interpretação da Corte, é
dependente do substrato ambiental. O ambiente preservado e o acesso aos seus
recursos é um elemento fundamental da vida digna.
A terceira fase de ecologização, como verificado, está em curso, seja pelos
limites ecológicos aos direitos humanos que decorrem de sua interdependên-
cia com o substrato ambiental no qual se realizam, ou pelo reconhecimento
da indissociabilidade da existência, cultura e espiritualidade dos povos tradi-
cionais do seu ambiente, integrado nos conceitos de propriedade e vida digna.

6.8 Fase 4 – De direitos individuais, aqui e agora, a


direitos intergeracionais globais: superando limites
A quarta fase representa a superação de limites relacionados aos sujeitos,
ao tempo e ao espaço dos direitos em tempos de crise ecológica. O círculo dos
sujeitos se expande para além de indivíduos humanos vivendo aqui e agora,
integrando as comunidades, as gerações futuras e a própria natureza. Os di-
reitos se referem e são acionados face à questões globais, abordadas a partir de
uma visão ecossistêmica, para além dos limites do poder político e do territó-
rio, a exemplo dos efeitos adversos da mudança climática.

272
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

A dimensão intergeracional dos direitos humanos tem se afirmado como


um argumento central na litigância climática. Muitos casos, em tribunais na-
cionais e mesmo no Sistema de Direitos Humanos da ONU, têm como autores
crianças e jovens, e dispõem sobre os impactos da mudança climática em suas
perspectivas e projetos de futuro. Colocam em evidência a responsabilidade
intra e intergeracional na gestão da crise climática923.
A dimensão coletiva do direito ao meio ambiente, conforme entendi-
mento da Corte IDH na OC 23–17, compreende esta dimensão intergeracio-
nal. Constitui um valor atribuído às presentes e futuras gerações, é um direito
fundamental para a existência da humanidade e não somente de indivíduos
vivendo em um momento e local específicos. Em sua jurisprudência, a Corte
incorporou uma dimensão intergeracional e comum ao direito de proprieda-
de dos povos indígenas, reconhecendo a propriedade tradicional como um
patrimônio cultural imaterial a ser transmitido às futuras gerações, uma he-
rança intangível e intergeracional que integra a identidade destes povos.924
Quanto ao espaço dos direitos humanos e superação de seus limites, a
Corte IDH considerou na OC 23–17 que o termo jurisdição na Convenção
Americana é mais extenso que o território. Os Estados devem respeitar e
garantir os direitos humanos de toda pessoa sujeita à sua jurisdição mesmo
quando não se encontram em seu território. Também devem garantir que seu
território não é utilizado de uma forma que possa causar danos ao meio am-
biente em áreas fora de seus limites territoriais. Em consequência, os Estados
têm a obrigação de adotar todas as medidas necessárias para evitar que ati-
vidades realizadas em seu território ou sob seu controle afetem os direitos de
indivíduos dentro ou fora de seus limites territoriais925. O Alto-Comissariado
da ONU para os Direitos Humanos, quanto à extraterritorialidade das obriga-
ções dos Estados em matéria climática, considera que se estendem a todos os
detentores de direitos e aos danos que ocorram dentro e além das suas fron-

923 No Sistema de Direitos Humanos da ONU ver: Chiara Sacci e outros c. Argentina, Brasil, França,
Alemanha e Turquia (2019). Nos tribunais nacionais ver, por exemplo: Ali c. Paquistão (2016);
ENVironnement JEUnesse c. Canadá (2018); Generaciones Futuras c. Minambiente (2018); La Rose
c. Her Majesty the Queen (2019); Asociación Civil por la Justicia Ambiental e outros c. Entre Ríos,
Província e outros (2020); Neubauer e outros c. Alemanha (2020).
924 Ver casos Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni c. Nicarágua (2001); Comunidade Yakye Axa
do Povo Enxet-Lengua c. Paraguai (2005) e Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012).
925 Ver parágrafo 104 da OC 23-17.

273
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

teiras. Portanto, são responsáveis perante


​​ os detentores de direitos por suas
contribuições para a mudança climática, independentemente de onde essas
emissões ou seus danos ocorram.926
Os elementos destacados indicam que a quarta fase de ecologização dos
direitos humanos tem sido impulsionada pelas questões atinentes aos direitos
humanos no contexto da mudança climática e pela necessidade de adaptar
estes direitos à cosmovisão e modos de vida dos povos indígenas. A dimensão
intergeracional e transindividual dos direitos humanos e a extraterritoriali-
dade das obrigações ambientais que decorrem destes direitos indicam uma
tendência de fluidez essencial para adequá-los às demandas da crise ecológica.

6.9 Fase 5 – Direitos e dignidade para todos: um Sistema


Comum de Direitos da Comunidade Planetária
A quinta fase começa pela operacionalização conjugada de direitos hu-
manos e direitos da natureza e se consolida pelo desenvolvimento de um sis-
tema comum de direitos dos membros da comunidade planetária. Tem como
princípios orientadores a responsabilidade e equidade intra e intergeracional e
interespécies e a dignidade ecológica. Direitos humanos e direitos da natureza
se reforçam e enriquecem mutuamente.
Estes dois grupos de direitos, quando articulados, contribuem para o de-
senvolvimento de uma noção ampliada de dignidade ecológica que compreende
os membros humanos e não humanos da comunidade planetária. A dimensão
ecológica da dignidade humana foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justi-
ça no Recurso Especial REsp 1.797.175/SP927, que atribui dignidade e direitos aos
animais não humanos e à própria natureza, contribuindo para o delineamento
de um paradigma jurídico biocêntrico928. Também a Corte IDH deu um passo

926 OFFICE OF THE HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS (OHCHR). Key Messages on
Human Rights and Climate Change. Disponível em: <https://www.ohchr.org/Documents/Issues/
ClimateChange/Key_Messages_HR_CC_Migration.pdf>. Acesso em: 17 de agosto de 2020.
927 STJ, REsp 1.797.175/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Og Fernandes, j. 21.03.2019.
928 Um comentário sobre esta jurisprudência pode ser encontrado em: SARLET, I.W.; FENSTERSEIFER,
F. STF, a dimensão ecológica da dignidade e direitos do animal não humano. Consultor Jurídico,
2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mai-10/direitos-fundamentais-stj-dimensao-
ecologica-dignidade-direitos-animal-nao-humano#sdfootnote1sym>. Acesso em: 16 agosto 2020.

274
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

em direção a este novo paradigma, ao dispor que o direito ao meio ambiente


protege os elementos do meio ambiente pelo seu valor intrínseco, destacando
a tendência de reconhecimento de personalidade jurídica e direitos à natureza.
A conjugação de diferentes fases de ecologização dos direitos humanos e
de direitos da natureza como estratégia de reforço mútuo para melhor respon-
der aos desafios da crise ecológica foi operada na decisão do caso Gerações Fu-
turas c. Colômbia. A Corte Constitucional Colombiana reconheceu a dimensão
ambiental de direitos humanos como a vida e a saúde (1° fase), e a impossibi-
lidade de lhes dissociar de seu contexto ambiental (3° fase). Estabeleceu cone-
xões entre a dignidade dos sujeitos de direito e as suas condições ambientais
de existência, reconhecendo a alteridade entre todos os habitantes do Planeta,
compreendendo outras espécies animais e vegetais (3° e 5° fases). Incluiu no
círculo de proteção dos direitos humanos os não nascidos, que devem dispor
das mesmas condições ambientais que as gerações presentes, atribuindo uma
dimensão intergeracional a estes direitos (4° fase). Na base dos direitos ambien-
tais das futuras gerações está o valor intrínseco da natureza e o dever ético de
solidariedade entre espécies e de solidariedade humana com a natureza (2° e 5°
fases). Por fim, reconhece a Floresta Amazônica Colombiana como sujeito de
direitos, consolidando a articulação entre direitos humanos e da natureza como
um único sistema de direitos operado no enfrentamento da crise climática.
Esta parece ser uma tendência na litigância climática da América Latina.
Além do exemplo colombiano, no recente caso Asociación Civil Por La Justicia
Ambiental e outros c. Entre Ríos, Província de e outros de 2020 solicita-se à Su-
prema Corte da Argentina que declare o Delta do Rio Paraná como sujeito de
direitos e que reconheça sua função ecológica essencial na mitigação e adapta-
ção à mudança climática. Articula-se com direitos ambientais procedimentais
solicitando, com base no Acordo de Escazú, a participação ampla e efetiva dos
cidadãos nas decisões sobre este ecossistema.
Os progressos na ecologização dos direitos humanos, sua ressignificação
a fim de que sigam úteis e atuais em tempos de crise ecológica e climática,
em conjunto com o reconhecimento normativo e jurisprudencial de direitos
à natureza, indica que o ciclo de ecologização está se consolidando. As Cortes
de direitos humanos e os tribunais nacionais no âmbito da litigância climática
desempenharam um papel central neste processo, metamorfoseando direitos
individuais e antropocêntricos em ferramentas jurídicas fluidas e adaptadas

275
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

para o enfrentamento da crise ecológica. Na América Latina este processo é


ainda mais latente, pela influência da cosmovisão indígena no direito, promo-
vendo a descolonização dos direitos humanos.

Parte III – Trajetórias de ecologização: o Sistema


Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)

Impossível não questionar como organismos estruturados para anali-


sar violações de direitos em uma perspectiva individual decorrentes de ações
prioritariamente estatais, alcançam o papel de garantidores de uma qualidade
ambiental difusa e intergeracional. Como, partindo de um sistema jurídico tra-
dicional, estes organismos operaram uma revolução ecologizadora ressignifi-
cando os direitos humanos no contexto da crise ecológica. E, sobretudo, como
mantiveram a atualidade e a pertinência dos direitos humanos face à esta crise,
quando surgem profundos questionamentos sobre os limites e a efetividade do
direito frente aos desafios globais do século. A terceira parte conta essa história
através da atuação do SIDH. A fim de ilustrar este processo no SIDH, detalha-
-se como o meio ambiente passou a integrar a jurisprudência da Corte IDH, a
consolidação de sua ecologização através da Opinião Consultiva 23/17, e o papel
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão IDH).

6.10 O meio ambiente na jurisprudência da


Corte Interamericana de Direitos Humanos:
elementos de ecologização
A atuação da Corte IDH em matéria ambiental é,929 na maior parte dos
casos, centrada em conflitos entre interesses econômicos de indústrias extra-
tivistas e exploração de recursos ambientais e os direitos humanos de povos
indígenas e demais comunidades tradicionais da América Latina, especial-

929 Sobre a ecologização do SIDH ver : CAVEDON-CAPDEVILLE, F. S. L’écologisation du Système


Interaméricain des Droits de l’Homme (SIDH) : commentaires de la jurisprudence récente (2010-
2013). Revue Juridique de l’Environnement, n. 3, v. 39, 2014, p. 489-511.

276
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

mente o direito de propriedade coletiva sobre seu território ancestral. A falta


de reconhecimento da propriedade coletiva, as omissões estatais neste sentido
e no controle de atividades extrativistas, e em garantir o acesso à informação,
participação e consulta dos povos tradicionais, são os principais fatores das
denúncias de violação de direitos humanos com um viés ambiental na região.
A maior parte da jurisprudência ambiental da Corte IDH e das medidas e
audiências públicas promovidas pela Comissão IDH estão relacionadas a es-
tas questões930. Pode-se afirmar que foram os povos indígenas que abriram as
portas do SIDH ao meio ambiente e iniciaram seu processo de ecologização.
Em 2015, a Comissão IDH publicou um relatório específico sobre a pro-
teção dos direitos humanos no contexto de atividades de extração e exploração
de recursos naturais,931 no qual destaca a frequência de demandas relacionadas
aos efeitos humanos, sociais, culturais, ambientais e de saúde sobre os povos
indígenas e comunidades afrodescendentes resultantes deste tipo de projetos.
A Comissão IDH também recebe casos não diretamente relacionados aos po-
vos tradicionais, como a contaminação de recursos hídricos utilizados para o
abastecimento público,932 a contaminação em consequência de atividades de
metalurgia e danos à saúde933 ou ainda derrame de petróleo e contaminação
por metais pesados,934 tendo outorgado medidas cautelares em todos eles.
Da análise dos casos julgados pela Corte IDH identificam-se 13 decisões
relacionadas a questões ambientais. Destes, 12 casos935 se relacionam a direitos

930 Ver a audiência temática sobre os direitos humanos e as indústrias extrativistas na América Latina,
realizada em 2015 e, no 168° período de sessões de maio de 2018, as audiências sobre os direitos
humanos das comunidades indígenas afetadas por derrames de petróleo em Cuninico e Vista
Alegre no Peru e sobre a violação de direitos humanos e criminalização de pessoas defensoras no
contexto das indústrias extrativistas na Nicarágua.
931 COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Pueblos indígenas, comunidades
afrodescendientes y recursos naturales: protección de derechos humanos en el contexto de actividades
de extracción, explotación y desarrollo. OEA, 2015.
932 Resolução 12/18, Medida Cautelar 772/17 de 24 de fevereiro de 2018 – Moradores consumidores de
água do Rio Mezapa, Honduras.
933 Resolução 29/16, Medida Cautelar 271-05 de 3 de maio de 2016 – Comunidade de La Oroya, Peru –
Ampliação.
934 Resolução 52/17, Medida Cautelar 120-16 de 2 de dezembro de 2017, Moradores da Comunidade de
Cuninico e outras, Peru.
935 Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tigni c. Nicarágua (2001); Comunidade Yakye Axa do Povo
Enxet-Lengua c. Paraguai (2005); Comunidade Sawhoyamaxa c. Paraguai (2006); Povo Saramaka

277
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

de populações indígenas ou outras comunidades tradicionais e um único caso


não guarda relação com esta temática, referindo-se ao acesso à informação
ambiental.936 Destes casos extraem-se os principais traços da ecologização dos
direitos humanos na Corte IDH.
i) Ecologização do direito de propriedade (art. 21 da CADH): reconcei-
tuado e ampliado para incorporar a relação dos povos indígenas e demais po-
pulações tradicionais com seus territórios ancestrais e os bens ambientais que
os compõem, assim como sua dimensão coletiva que exige a revisão da noção
individualista de propriedade. São elementos do direito de propriedade o direito
ao acesso, à integridade e à utilização dos bens ambientais necessários para a
sobrevivência, manutenção dos modos de vida e cultura.937 Os bens ambientais
são elementos que integram o núcleo essencial deste direito, sem os quais sua
função de meio de subsistência, de vida digna e de suporte à identidade cultural
restam limitados. Considerando o conceito de “bem” como um conceito autô-
nomo a ser interpretado evolutivamente, a Corte considera também os elemen-
tos e valores imateriais, voltados à cultura, espiritualidade e cosmovisão dos
povos tradicionais e os atributos extrapatrimoniais dos elementos ambientais.938

c. Suriname (2007); Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai (2010); Povo Indígena Kichwa de
Sarayaku c. Equador (2012); Comunidades afrodescendentes deslocadas da bacia do rio Cacarica
(Operação Gênesis) c. Colômbia (2013); Povos indígenas Kuna de Madungandí e Emberá de Bayanos
c. Panamá (2014); Povos Kalina e Lokono v. Suriname (2015); Comunidade Garífuna Triunfo de la
Cruz c. Honduras (2015); Comunidade Garífuna de Punta Piedra c. Honduras (2015); Comunidades
Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) c. Argentina (2020).
936 Claude Reyes e outros c. Chile (2006).
937 A jurisprudência ambiental da Corte IDH relacionada a povos indígenas e demais comunidades
tradicionais reconhece a violação do artigo 21 da CADH relativo ao direito à propriedade comum
a seus territórios tradicionais. A conceituação do direito à propriedade e de bem protegido, assim
como a sua ecologização, foram construídos desdea primeira decisão de caráter ambiental no caso
Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni c.Nicarágua(2001) até a mais recente decisão proferida no
caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) c. Argentina. A
Corte ampliou sua dimensão de um direito individual a um direito coletivo, que abarca os aspectos
ambientais, imateriais e culturais. O caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012)não
discute o reconhecimento da propriedade, tratando da omissão do Estado em proteger este direito face
à atividades de risco e potencialmente degradadoras do elemento ambiental.
938 Sobre a interpretação autônoma do conceito de bem e a inclusão de elementos imateriais, ver
Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni c. Nicarágua(2001).

278
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

ii) Ecologização e ampliação do direito à vida (art. 4 da CADH): se re-


fere à vida digna,939 que tem como elementos os direitos econômicos, sociais
e culturais, dentre os quais o direito ao meio ambiente e, inclusive, o acesso
à água.940 Garante o direito de viver dignamente e em harmonia com a natu-
reza, mantendo e respeitando seus modos de vida, cultura e tradições ligadas
a um território e seus elementos ambientais, livre de riscos e ameaças decor-
rentes de atividades perigosas e que impactam sobre a dimensão ambiental do
conceito de vida digna.941
iii) Ecologização dos direitos econômicos, sociais e culturais (art. 26 da
CADH): são utilizados como critérios interpretativos para revisar e fixar o
conteúdo dos direitos humanos garantidos pela CADH.942O direito ao meio
ambiente é tutelado e justiciável como direito autônomo por força do artigo
26, tendo a Corte reconhecido a sua violação em situação envolvendo direitos
dos povos indígenas.943 No mesmo caso a Corte também reconhece o direito à
água como direito autônomo derivado do artigo 26. Este artigo prevê o dever
de desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais, entendendo-se que existe, portanto, uma interdição de retrocesso,
no que se refere às garantias de qualidade ambiental, proteção de bens am-
bientais essenciais e acesso à recursos naturais.
iv) Ecologização do direito à integridade física (art. 5.1 da CADH): rela-
cionado ao direito à propriedade comum ecologizada, reconhecendo-se a vio-
lação do direito à integridade física face aos riscos de atividades de exploração
de recursos naturais.944
v) Reconhecimento e garantia da dimensão procedimental do direito ao
meio ambiente: deriva de direitos substantivos ecologizados, especialmente
o direito à propriedade e à vida digna, representada pelos direitos à consulta

939 Sobre o conceito de vida digna ver Comunidade Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua c. Paraguai (2005).
940 O acesso à água como elemento do direito à vida digna foi previsto pela Corte IDH no caso
Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai (2010).
941 Sobre exposiçãoa riscos e violação do direito à vida ver Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012).
942 É na decisão do caso Comunidade Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua c. Paraguai (2005) que a Corte
IDH faz uso dos direitos econômicos, sociais e culturais do Protocolo de San Salvador e do artigo 26
da CADH.
943 Caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) c. Argentina (2020).
944 Ver:Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai (2010) e Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012).

279
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

prévia e à informação ambiental referente a projetos e atividades capazes de


gerar riscos e impactos ambientais.945 O direito à consulta que decorre do arti-
go 21 e do conceito ampliado de propriedade ecologizada, deve preencher os
seguintes requisitos: realizada com caráter prévio, ser informada, adequada
e acessível, de boa fé e com a intenção de chegar a um acordo, e é elemento
essencial para o respeito da identidade cultural dos povos tradicionais.946
vi) Ecologização do direito à participação nos assuntos públicos (art. 23
da CADH): abrange o direito à consulta prévia e à participação no licencia-
mento de atividades que afetem o meio ambiente, assim como na repartição
dos benefícios de projetos e atividades que explorem ou impactem os bens
ambientais de territórios tradicionais. Decorre ainda deste direito a exigência
de realização de estudo prévio de impacto ambiental e social com ampla par-
ticipação da comunidade em todas as etapas.947
vii) Ecologização do direito à liberdade de expressão (art. 13 da CADH):
abarca o direito de solicitar, receber e difundir informações sobre projetos e
medidas que tenham impactos sobre o meio ambiente. Gera a obrigação dos
Estados de fornecer informações sobre a gestão do meio ambiente, mesmo
quando relativas a projetos privados. A restrição do acesso à informação am-
biental é limitada, o Estado deve fornecer recursos e procedimentos adequa-
dos e eficazes para a obtenção das informações sob seu controle.948
viii) Ecologização do direito a um recurso efetivo (art. 25 da CADH): re-
conhece o direito a um recurso efetivo para a proteção ambiental, considerado
como um instrumento de combate à projetos e atividades potencialmente ou
efetivamente degradadoras do ambiente e à proteção judicial quando houver
privação do acesso à territórios e seus bens ambientais.

945 O desenvolvimento dos aspectos procedimentais de carácter ambiental derivados dos direitos
substantivos iniciou-se no caso Povo Saramaka c. Suriname (2007), e foi se consolidando nos casos
Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012), Povos Kalina e Lokono c. Suriname (2015),
Comunidade Garífuna Triunfo de la Cruz c. Honduras (2015) e Comunidade Garífuna de Punta
Piedra c. Honduras (2015).
946 Os critérios do direito à consulta prévia foram estabelecidos no caso Povo Indígena Kichwa de
Sarayaky c. Equador (2012).
947 Esta interpretação do artigo 23 se encontra no caso Povos Kalina e Lokono c. Suriname “Pueblos del
Bajo Marowijne” (2015).
948 Os aspectos ambientais do direito à liberdade de expressão e sua relação com o acesso à informação
ambiental foram desenvolvidos no caso Claude Reyes c. Chile (2006).

280
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

ix) Ecologização de instrumentos jurídicos de conservação ambiental,


reconhecendo-se a contribuição dos povos indígenas à proteção e conservação
de áreas protegidas e a sua dimensão socioambiental. A criação e implantação
dessas áreas deve garantir sua participação efetiva, o acesso e uso dos territó-
rios tradicionais e a obtenção dos benefícios da conservação. Corresponde a
ecologização de instrumentos do sistema jurídico-ambiental porque integra
visão de mundo centrada na natureza dos povos indígenas e sua contribuição
para a proteção do meio ambiente.949
x) Ecologização do princípio de não discriminação (art. 1° da CADH): in-
terpretado a partir do paradigma da justiça ambiental, estabelecendo-se cone-
xões entre instrumentos jurídico-ambientais e discriminação ambiental, pois
as comunidades mais vulneráveis e cujos modos de vida são indissociáveis dos
territórios ancestrais e seus bens ambientais sofrem restrições de acesso.950
xi) Influência ecologizadora no direito interno: as decisões da Corte re-
querem a adequação e alinhamento do direito nacional às exigências de pro-
teção dos direitos humanos ecologizados, beneficiando não só as vítimas do
caso específico, mas toda a coletividade e as futuras gerações. A Corte IDH
tem potencial para ser um vetor de ecologização do direito dos Estados, ali-
nhando-os a parâmetros ecológicos regionais uniformes.951
A partir dos elementos destacados da jurisprudência da Corte IDH veri-
fica-se que o processo de ecologização e descolonização dos direitos humanos
consagrados na CADH, mais do que uma escolha refletida de uma tendência,
é a consequência natural da necessidade de adequar estes direitos à visão de
mundo, modos de vida, identidade cultural e relação com a natureza dos povos
tradicionais da América Latina. Os direitos humanos, em sua versão tradicio-

949 Ver Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai (2010) sobre o impacto da criação de uma reserva privada de
fauna sobre os direitos de povos indígenas e as consequências da privação de seu território e do acesso aos
bens ambientais sobre seus modos de vida. No caso Povos Kalina e Lokono c. Suriname “Pueblos del Bajo
Marowijne” (2015) a Corte consolida seu entendimento sobre a compatibilidade entre áreas protegidas
e direitos indígenas, estabelecendo critérios neste aspecto, e criando um espaço de comunicação entre
sistemas jurídicos: direito ambiental, direitos humanos, direitos indígenas.
950 A invocação do artigo 1° da CADH ocorreu no caso Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai (2010),
no qual a Corte considerou que o Estado priorizou uma visão da propriedade que outorga maior
proteção aos proprietários privados do que as demandas territoriais indígenas.
951 Esta medida reparatória pode ser encontrada emComunidade Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua c.
Paraguai (2005), Comunidade Xákmok Kásek c. Paraguai (2010), Povo Indígena Kichwa de Sarayaky
c. Equador (2012).

281
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

nal, já não eram suficientes ou adequados para garantir a proteção destes povos
face a atividades econômicas e posturas estatais em contraposição aos seus mo-
dos de vida e relação com os demais elementos da natureza. A Corte realizou
um grande esforço de interpretação de categorias jurídicas para liberá-los dos
contornos individualistas e liberais e lhes adequar à propriedade comum dos
povos tradicionais e à indissociabilidade de sua identidade e sobrevivência deste
território tradicional permeado de elementos ambientais e espirituais.
Um caso paradigmático da Corte IDH neste processo de ecologização é o
do Povo Kichwa de Sarayaku952, ameaçados pela autorização de exploração de
petróleo em seu território. Este povo apresenta uma forte relação física e espiri-
tual com o seu território e seus elementos naturais. Em sua visão de mundo, a
floresta é um ser dotado de vida, os elementos da natureza estão ligados a enti-
dades espirituais conectadas entre si, o que os torna sagrados. Como, portanto,
proteger a cultura, a cosmovisão, o modo de vida desta comunidade utilizando-
-se esquemas jurídicos clássicos como a noção de bem material, dotado de valor
econômico e de conotação individualista que marca o direito de propriedade?
Somente a ecologização do conceito de bem e do direito de propriedade poderia
garantir a sua adequação aos territórios tradicionais, marcados pela noção de
propriedade comum, plena de significado e de valores imateriais, território onde
os elementos humanos e não humanos são indissociáveis e formam uma única
identidade e dignidade. Como manifestou a Corte IDH, “... para as comunida-
des indígenas a relação com a terra não é meramente uma questão de posse e
produção mas um elemento material e espiritual do qual devem gozar plena-
mente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmitir-lhe às futuras
gerações”953. A Corte avança até a quarta etapa de ecologização, reconhecendo
o caráter intergeracional do direito à propriedade, destacado em distintas de-

952 Corte IDH. Caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. Fundo e Reparações. Sentença de
27 de junho de 2012. Série C N. 245.
953 Assim se manifestou a Corte já no primeiro caso em que aborda a proteção do direito à propriedade
dos povos indígenas em relação com seus elementos naturais, culturais e espirituais, Comunidade
Mayagna (Sumo) Awas Tingni c. Nicarágua, de 2001, § 149. (… Para las comunidades indígenas la
relación con la tierra no es meramente una cuestión de posesión y producción sino un elemento
material y espiritual del que deben gozar plenamente, inclusive para preservar su legado cultural y
transmitirlo a las generaciones futuras). Livre tradução da autora.

282
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

cisões, reconhecendo a propriedade tradicional como um patrimônio cultural


imaterial transmitido às futuras gerações.954
O reconhecimento da concepção ampliada de propriedade marcada pe-
los seus elementos ambientais, culturais e espirituais, em contraposição a uma
concepção privatista de mercado e exploração, abre os caminhos para a eco-
logização da jurisprudência da Corte IDH e dos direitos humanos, para além
da simples atribuição de uma dimensão ambiental. A concepção ecologizada
de propriedade, construída a partir da cosmovisão indígena, é a base para
a interpretação dos demais direitos humanos substantivos e procedimentais,
como a vida, participação ou integridade física, que dela dependem para se re-
alizar, e que formam um conjunto de direitos humanos ecológicos essenciais
ao alcance de uma dignidade ampliada, indissociável da dignidade da natu-
reza. A Corte IDH vai consolidar esta interpretação ecologizada dos direitos
humanos através da Opinião Consultiva OC/23–17.

6.11 A consolidação da Ecologização na


Corte Interamericana de Direitos Humanos
na Opinião Consultiva OC/23–17
A partir de solicitação feita pela Colômbia relativa às obrigações ambientais
dos Estados na proteção e garantia dos direitos à vida e à integridade física (arts.
4 e 5 CIDH) face a possíveis danos ao ambiente marinho, a Corte IDH se mani-
festou pela primeira vez através da Opinião Consultiva OC/23–17 sobre a relação
entre direitos humanos e meio ambiente, destacando sua interdependência, além
de desenvolver o conteúdo do direito humano ao meio ambiente. Além destes
aspectos gerais, a Corte IDH também especificou as obrigações dos Estados em
matéria de proteção ambiental, em relação com os direitos humanos. A Opinião
Consultiva (OC) pode ser considerada como um importante instrumento de re-
forço da comunicação entre os sistemas jurídico-ambiental e de proteção dos di-
reitos humanos, contribuindo para superar a sua fragmentação e permitindo que,
com esta comunicação reforçada, possam se enriquecer mutuamente.

954 Além do caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni c. Nicarágua, o caráter intergeracional
do direito à propriedade tradicional foi expresso nos casos Comunidade Yakye Axa do Povo Enxet-
Lengua c. Paraguai (2005) e Povo Indígena Kichwa de Sarayaky c. Equador (2012).

283
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Esta comunicação reforçada e enriquecimento mútuo que proporciona


contribuem para a ecologização de ambos os sistemas jurídicos. Exemplo dis-
to é que a Corte IDH, para chegar às conclusões expressas na OC, faz um
trabalho de interpretação e de integração de princípios e normas de direito
ambiental com as obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos es-
tabelecidas pela CADH. Utiliza os aportes destes dois sistemas jurídicos para
extrair um conjunto de obrigações estatais que sintetizam obrigações ambien-
tais e obrigações decorrentes dos tratados de direitos humanos, enriquecidos
de sua própria jurisprudência e de outros tribunais internacionais.
Um exemplo de enriquecimento mútuo é a integração do princípio de pre-
caução às obrigações em matéria de direitos humanos, como já havia feito a
Corte EDH através de sua jurisprudência. Pelo trabalho de interpretação con-
junta dos princípios e obrigações de direito ambiental e dos direitos humanos,
a Corte IDH incorpora o princípio da precaução ao domínio dos direitos hu-
manos fixando a obrigação dos Estados de agir conforme este princípio frente à
possibilidade de danos ambientais graves ou irreversíveis, que afetam o direito à
vida e a integridade física, mesmo quando não houver certeza científica.
Do conjunto de argumentos e das obrigações estabelecidas pela Corte IDH
na OC/23–17, podem-se extrair três eixos centrais: i) reconhecimento e desen-
volvimento de um direito humano ao meio ambiente, autônomo, intergeracio-
nal e que se estende aos elementos não humanos do ambiente ; ii) jurisdição
ampliada em matéria de danos ambientais e sua incidência sobre os direitos
humanos; iii) obrigações estatais derivadas do dever de garantir e respeitar os
direitos à vida e a integridade física no contexto da proteção ambiental.
O primeiro aspecto, referente ao reconhecimento e desenvolvimento do
direito humano ao meio ambiente no SIDH, já foi abordado na parte 2. A
Corte reconhece este direito em sua dimensão individual e coletiva, quanto
aos seus aspectos substantivos e procedimentais, com fundamento normativo
no artigo 11 do Protocolo de San Salvador e no artigo 26 da CADH. O direito
ao meio ambiente é atinente à toda a humanidade e protege os elementos não
humanos do ambiente, independente de sua utilidade para os seres humanos.
Transpõe os paradigmas individualista, antropocentrista e utilitarista, abrin-
do caminho para um novo paradigma jurídico biocentrista e ecológico.
Sobre a jurisdição em matéria de danos ambientais e sua incidência sobre
os direitos humanos, a Corte IDH estabelece que os Estados devem garantir

284
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

que seu território não seja utilizado de forma a causar significativo dano ao
meio ambiente de outros Estados, estando obrigados a evitar danos transfron-
teiriços. Portanto, devem adotar as medidas necessárias a fim de evitar que
atividades que ocorram em seu território ou que estejam sob o seu controle,
capazes de produzir danos ao meio ambiente, afetem os direitos de pessoas
que estejam dentro ou fora de seu território.
As obrigações derivadas do dever de garantir e respeitar os direitos à
vida e à integridade física no contexto da proteção ambiental podem ser sinte-
tizadas em: i) prevenir danos ambientais significativos dentro ou fora do seu
território; ii) regular e monitorar atividades causadoras de danos ambientais,
realizar estudos de impacto ambiental, preparar planos de contingência para
minimizar risco de desastres, mitigar danos ambientais mesmo quando me-
didas preventivas foram adotadas; iii) adotar o princípio de precaução face à
possibilidade de danos graves ou irreversíveis ao meio ambiente e que afetem
os direitos humanos; iv) cooperar com outros Estados para a proteção contra
danos ambientais significativos, assegurando-se que atividades em seu terri-
tório não causam danos ambientais transfronteiriços; v) garantir os direitos
ambientais procedimentais, inclusive no que se refere à implementação de po-
líticas que afetem o meio ambiente.
Esta síntese dos elementos centrais da OC demonstram o grande passo
que representa para sistematizar as obrigações dos Estados em matéria am-
biental em razão da indissociabilidade dos direitos humanos, especialmente
o direito à vida e à integridade física, do ambiente no qual se realizam; e da
relação de indivisibilidade e interdependência entre direitos humanos e meio
ambiente. Integrando princípios e normas do sistema jurídico ambiental para
analisar situações de risco de violação dos direitos humanos por razões am-
bientais, e utilizando critérios e obrigações de proteção dos direitos humanos
para fixar obrigações estatais de caráter ambiental, a Corte IDH demonstra
potencial para reforçar a comunicação entre estes sistemas e, deste processo
comunicativo, desenvolver a sua ecologização. A OC demonstra que o aparato
jurídico, simbólico e ético dos direitos humanos tem um papel importante na
proteção do meio ambiente e na reconstrução do sistema jurídico-ambiental
a partir de uma visão mais ampla e complexa das questões socioambientais, e
que a comunicação estabelecida entre os direitos humanos e o sistema jurídi-
co-ambiental pode enriquecer estes direitos e contribuir à sua ecologização.

285
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

6.12 Contribuições da Comissão Interamericana


de Direitos Humanos
A Comissão IDH é uma peça fundamental no processo de ecologização
dos direitos humanos, pois é o primeiro ponto de contato dos titulares dos di-
reitos humanos com o SIDH, atuando como “filtro” dos casos que terão acesso
ao sistema e, talvez, à Corte. O regulamento da Corte IDH não prevê a pos-
sibilidade de petição individual, somente a Comissão ou os Estados podem
levar um caso ao seu conhecimento. Portanto, é a Comissão recebe, analisa
e investiga as petições individuais relativas a violações de direitos humanos,
assim como as comunicações dos Estados denunciando violações de direitos
humanos por outro Estado.
Desempenha, portanto, funções com uma dimensão “quase” jurisdicio-
nal, adotando decisões de fundo, promovendo acordos, fixando obrigações
aos Estados e protegendo diretamente as vítimas efetivas e potenciais de vio-
lações de direitos humanos através de medidas cautelares. Também tem como
função a análise e acompanhamento da situação geral dos direitos humanos
nos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de
sua promoção através de recomendações, visitas, realização de audiências te-
máticas e publicação de estudos e relatórios. Portanto, o trabalho da Comis-
são IDH no que concerne às relações entre direitos humanos e meio ambiente
não se restringe ao sistema de petições, podendo atuar de forma propositiva.
Pela maior proximidade e abertura às “provocações” oriundas do entor-
no, a Comissão tem atuado em questões relacionadas ao meio ambiente com
maior frequência que a Corte IDH. No período compreendido entre 2008 a
2020 foram 22 decisões955 de admissibilidade de denúncias de violação de di-

955 Relatório n° 125/20 Comunidades Kunas de Gardi, Comarca Kuna Yala, Região de Nurdargana
(2020); Relatório n° 33/20 Comunidade Garífuna de Travessia c. Honduras (2020); Relatório n°
113/20 64 Comunidades dos Povos Mojeno, Yuracaré e Tsimane c. Bolívia (2020);Relatório n° 35/20
Comunidades Indígenas Campesinas Turísticas e Meio Ambiente dos Gêiseres do Tatio c. Chile (2020);
Relatório n° 167/20 Povo Indígena Teribe c. Costa Rica (2020); Relatório n° 12/18 Trabalhadores
mortos na explosão da mina Pasta de Conchos c. México (2018); Relatório n° 30/17 Comunidade
Maya ‘Q’Eqchi’ Agua Caliente c. Guatemala (2017), Relatório n° 64/15 Povos Maias e Comunidades
Cristo Rey, Belluet Tree, San Ignácio, Santa Helena e Santa Família c. Belize (2015), Relatório 33/15
Comunidade U’WA c. Colômbia (2015), Relatório 48/15 Povos Yaqui c. México (2015), Relatório
n° 62/14 Residentes de Quishque-Tapayrihua c. Peru (2014), Relatório n° 96/14 Povos indígenas
isolados Tagaeri e Taromenani c. Equador (2014), Relatório n° 20/14 Comunidades do Povo Maya

286
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

reitos humanos ligada a fatores ambientais, em sua maioria relacionados a


direitos de povos tradicionais ameaçados por atividades e empreendimentos
potencialmente degradadores do meio ambiente e de exploração de recursos
naturais. Identificam-se impactos da mineração, contaminação de recursos
hídricos, ausência de estudo de impacto ambiental, exploração ilegal de recur-
sos naturais, desmatamento, exploração de petróleo, construção de barragens
e outros projetos de infraestrutura, em sua maioria sem que as comunidades
afetadas tenham sido adequadamente informadas e consultadas.
Alguns casos trazem elementos que podem enriquecer a ecologização
dos direitos humanos. Por exemplo, a discussão em torno do direito de acesso
à água e a proteção do direito de propriedade coletiva da água ou ainda sobre
a discriminação ambiental no que se refere ao acesso aos bens ambientais, que
poderiam acrescentar elementos para a ecologização do artigo 24 da CADH
que garante a igualdade perante a lei. Merece destaque o caso Comunidades
Indígenas Campesinas Turísticas e Meio Ambiente dos Gêiseres do Tatio c. Chi-
le, com decisão de admissibilidade em 2020,que traz a dimensão ecológica de
relação dos modos de vida, cultura e espiritualidade de comunidade indígena
com os elementos ambientais do seu território, além da perspectiva intergera-
cional, invocando os direitos da criança. Atividades de prospecção de petróleo
estariam afetando um elemento central de sua história e do futuro das gera-
ções, pois em sua cosmovisão a água vive e seus antepassados estão presentes
nos gêiseres e fontes de água. Os Gêiseres do Tatio são um local cerimonial
com um conjunto de elementos ambientais e humanos em relação harmônica
que compõem sua cosmovisão circular. O reconhecimento destas conexões
em uma perspectiva intergeracional reúne os elementos necessários para im-
pulsionar a ecologização do SIDH.

Sipakepense et Mam c. Guatemala (2014), Relatório n° 9/13 Comunidade indígena Maho c. Suriname
(2013), Relatório n° 29/13 Comunidade indígena Aymara de Chusmiza-Usmagama c. Chile (2013),
Relatório n° 71/12 Habitantes dos imóveis « Barão de Mauá » c. Brasil (2012), Relatório n° 43/10
Mossville Environmental Action Now c. Estados-Unidos (2010), Relatório 105/05 Grupo de Tratado
Hul’Qumi’Num c. Canadá (2009), Relatório n° 141/09 Comunidades Agrícolas Diaguita de los
Huascoaltinos e seus membros c. Chile (2009),Relatório n° 58/09 Povo Indígena Kuna De Madungandi
e Emberá De Bayano e seus membros c. Panamá (2009), Relatório n° 75/09 Comunidades Indígenas
Ngöbe e seus membros no Vale do Rio Changuinola c. Panamá (2009),Relatório n° 76/09 Comunidade
de La Oroya c. Perú (2009).

287
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Identificam-se também conflitos ambientais típicos da crise ecológica e


sem vínculo com os povos tradicionais, abordando desastres produzidos pela
ação humana e exposição de trabalhadores a situações de risco, contamina-
ção do solo e riscos à saúde, racismo e discriminação ambiental, ou ainda
contaminação ambiental decorrente de atividades metalúrgicas. Verifica-se a
possibilidade de ampliar o processo de ecologização dos direitos humanos no
SIDH para além dos povos tradicionais.
A Comissão também atua em casos de denúncias de violação ou risco de
violação de direitos humanos relacionados a questões ambientais através da
adoção de medidas cautelares.956 Caracterizam atuação preventiva para evitar
ou limitar o impacto de atividades degradadoras do meio ambiente sobre os
direitos humanos quando se caracterize uma situação grave ou urgente capaz de
produzir danos irreparáveis a pessoas ou ao objeto de uma petição. No período
compreendido entre 2008 e 2020, a Comissão ordenou onze medidas cautelares
relacionadas a questões ambientais957. Verifica-se uma maior incidência de me-
didas cautelares sobre casos que refletem problemas ambientais típicos da crise
ecológica, e que não guardam relação com povos tradicionais. Num total de
seis, estas medidas cautelares referem-se à contaminação de recursos hídricos
e impactos sobre a saúde dos consumidores, contaminação por metais pesados
decorrente de derrame de petróleo, danos à saúde resultantes de metalurgia,
contaminação da água e do solo pela mineração, risco de desastre tecnológico,
estocagem e transporte de chumbo provocando contaminação e danos à saúde.
As medidas cautelares relacionadas aos povos tradicionais referem-se à proteção
dos seus direitos face a projetos de desenvolvimento, como rodovias e usinas
hidrelétricas, e atividades extrativistas de minérios e recursos florestais.

956 As medidas cautelares estão previstas no artigo 25 do regulamento da Comissão IDH


957 MC 708/19 Moradores das Áreas Circundantes ao Rio Santiago, México (2020); MC 772/17
Consumidores de água do Rio Mezapa, Honduras (2018), MC 120/16 Comunidade de Cuninico e
outros, Peru (2017), MC 113/16 Comunidade Nativa »Tres Islas » de Madre de Dios, Peru (2017),
MC 271/05 Comunidade Oroya, Peru (2016) ampliação; MC 277/13 – Membros da comunidade
indígena Otomí-Mexica de San Francisco Xochicuautla, México (2016), MC 54/13 – Comunidades
em isolamento voluntário do Povo Ayoreo Totobiegosode, Paraguai (2016), MC 382/10 Comunidades
indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil (2011), MC 17/10 Habitantes Comunidade Omoa,
Honduras (2011), MC 105/11 Comunidades dos Povos Kuna de Madungandí e Emberá, Panamá
(2011), MC 260-07 Comunidades Povo Maia (Sipakepense et Mam) de Sipacapa e Sant Miguel
Ixtabuacan, Guatemala (2010), MC 199/09 300 Habitantes de Puerto Nuevo, Peru (2010), MC 56/08
– Comunidades Indígenas Ngöbe e outras, Panamá (2009).

288
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Entre as medidas exigidas pela Comissão face à gravidade e urgência


das situações de risco e degradação ambiental, figuram a redução e elimina-
ção das fontes contaminadoras e de risco, suspensão de atividades e projetos
de desenvolvimento até que sejam adotadas medidas para evitar, reduzir e/
ou eliminar a poluição e os danos ambientais, respeitar as normas ambien-
tais, adotar medidas para evitar a contaminação do meio ambiente e reduzir
os riscos. Mesmo se o objetivo visado é a proteção dos direitos humanos, as
medidas cautelares têm um alcance mais amplo, contribuindo para evitar e/
ou reduzir impactos negativos sobre o meio ambiente. Demonstram, assim,
a força dos direitos humanos como instrumentos para proteger e garantir a
qualidade ambiental, a integridade e a dignidade da natureza.
A partir dos elementos destacados da atuação da Comissão IDH pode-se
constatar que sua dinamicidade e o maior acesso por parte dos titulares de di-
reitos humanos violados ou ameaçados por questões ambientais, lhe configura
como um espaço estratégico para reforçar o processo de ecologização dos di-
reitos humanos. A variedade de temas que lhe são apresentados refletem a crise
ecológica e impulsionam a análise das conexões entre direitos humanos e meio
ambiente e terão reflexos na ecologização da jurisprudência da Corte IDH.

6.13 Conclusões: potencialidades dos Direitos Humanos


para a ecologização do Direito
A análise realizada traz elementos para a discussão de como sistemas
jurídicos com lógicas inicialmente opostas, fragmentados e isolados em seus
discursos, constroem sinergias para se ecologizar. Ou ainda, a contribuição
dos direitos humanos na transposição de paradigmas reducionistas pautados
no utilitarismo e antropocentrismo, para um novo paradigma jurídico bio-
cêntrico e ecológico. Demonstra como a “provocação” das Cortes por novos
atores como os povos tradicionais e as gerações futuras, vítimas de riscos e
danos típicos da crise ecológica e da emergência climática, podem operar
transformações nos parâmetros interpretativos destas instâncias jurisdicio-
nais, impulsionar a integração de novos elementos aos sistemas jurídicos e a
ressignificação dos elementos existentes.

289
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

As Cortes de direitos humanos, realizando um profundo trabalho de in-


terpretação adaptada à evolução dos tempos e as condições atuais de vida, trans-
formaram instrumentos normativos, concebidos em outro momento histórico
e com finalidades distantes das preocupações ecológicas emergentes, em ins-
trumentos vivos e dinâmicos, capazes de se adequar ao tempo e escala dos con-
flitos típicos da crise ecológica. Resgataram a atualidade dos direitos humanos
no contexto desta crise, transformando-os em direitos concretos e efetivos para
proteger seus titulares, não só individualmente, mas em uma dimensão coletiva
e intergeracional, interconectados com o ambiente no qual estes direitos se re-
alizam. Esta proteção não se restringe apenas aos titulares destes direitos, mas,
em uma perspectiva ecologizada, se estende à proteção do próprio ambiente
em si, do frágil equilíbrio entre os membros de toda a comunidade planetária
e de suas diferentes formas de interação. Os direitos humanos mantêm assim a
sua atualidade e a pertinência dentro do contexto mais amplo da ecologização
do direito, especialmente em um momento de questionamento da capacidade
transformativa e protetora das respostas jurídicas e da constatação dos limites
do direito diante da complexidade da crise ecológica global.
A análise do SIDH, das contribuições da Corte Europeia de Direitos Hu-
manos e dos casos de litigância climática no Sistema da ONU de direitos hu-
manos e em tribunais nacionais indica um nítido avanço no ciclo de ecologi-
zação dos direitos humanos. Algumas fases já estão consolidadas, como a atri-
buição de uma dimensão ambiental aos direitos humanos e o reconhecimento
de direitos ambientais autônomos. O reconhecimento dos modos de vida e
cosmovisão dos povos tradicionais, principalmente da indissociabilidade da
natureza e da cultura e da rede de interações entre todos os seres, humanos
e não humanos, que permeiam sua relação com o seu meio e território, indi-
cam que a terceira fase de ecologização dos direitos humanos está em curso.
Também se identificam elementos da quarta fase de ecologização quanto a
perspectiva intergeracional e extraterritorialidade dos direitos humanos, es-
pecialmente em matéria climática. A quinta fase teve um importante avanço
com a OC 23–17 e nos casos de litigância climática que articulam direitos
humanos e da natureza. Porém, o processo de ecologização dos direitos hu-
manos é gradual, não linear, sujeito a variáveis e composto de diferentes fases,
que se sobrepõem e se articulam de acordo com o momento e as situações.
O SIDH também tem contribuído para uma melhor comunicação e enri-
quecimento mútuo entre o sistema jurídico-ambiental e os direitos humanos,

290
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

seja utilizando princípios, instrumentos e conceitos típicos do direito ambien-


tal na abordagem de questões relacionadas a direitos humanos, seja atribuindo
uma dimensão ambiental aos direitos humanos, ou ainda adotando decisões
que aproveitam aos fins do direito ambiental. Por suas decisões, medidas cau-
telares, audiências temáticas e opiniões, pode influenciar o direito interno dos
Estados, reforçar instrumentos próprios da tutela jurídica do meio ambiente e
lhes enriquecer com elementos ecologizados. Estabelecendo critérios e parâ-
metros de um direito ecologizado, e pela sua capilaridade, pode provocar um
movimento regional nesta direção, demonstrando seu potencial como vetor
de ecologização do direito. A partir do momento em que estabelece obriga-
ções estatais extraídas de uma interpretação simbiótica de direitos, princí-
pios e diretrizes de direitos humanos e de direito ambiental, integrados com
o aporte da cosmovisão indígena e dos direitos da natureza, e determina aos
Estados que procedam à complementação ou adequação de seus ordenamen-
tos jurídicos, o SIDH reforça as conexões, a comunicação e o enriquecimento
mútuo entre sistemas jurídicos e contribui para a sua ecologização.
Reconhece-se que os direitos humanos, mesmo ecologizados, não são
suficientes para se alcançar um discurso e prática jurídicas menos fragmen-
tados, pautados em uma visão de mundo centrada na Terra e na dignidade
ecológica ampla. Porém, têm se mostrado uma importante ferramenta no en-
frentamento de grandes desafios da humanidade no século XXI decorrentes
da crise ecológica, especialmente face à mudança climática. O reconhecimen-
to do direito a um sistema climático seguro é representativo da evolução dos
direitos humanos e sua ressignificação para que sigam úteis e atuais neste ce-
nário. O direito a um sistema climático seguro, pautado na solidariedade intra
e intergeracional e interespécies, que se estende a todos os seres humanos e
não humanos enquanto comunidade de vida da Terra, é a simbiose e exemplo
do processo de ecologização dos direitos humanos.
Por diversas vias e etapas de ecologização, os direitos humanos ganham
nova vida no Antropoceno, face às ameaças da crise ecológica e a necessidade de
se construir um novo paradigma jurídico capaz de responder à complexidade
dos desafios globais. Estes direitos, articulados com novas dimensões de direi-
tos ecológicos, como os direitos da natureza, podem contribuir para construir
esta nova visão de mundo centrada na Terra e na dignidade da comunidade
planetária, representando um dos pilares essenciais da ecologização do direito.

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