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L. OUSPENSKY.
Cap. XIV: A Arte no séc. XVII: Uma arte dividida
O abandono da Tradição.
No séc. XVII a arte e sua atividade conhecem na Rússia uma amplitude extra- ordinária.
Jamais tinham sido criadas tantas obras arquiteturais nem decorações murais nessa
segunda metade do século. No domínio artístico é uma época de grandes aquisições, mas
também de grandes perdas. “A perda do grande estilo, da profundidade nos significados
picturais, a ausência, enfim, na pintura do séc. XVII da expressividade e intensidade
espiritual, próprias às obras dos séc. XII até XV; Tudo isso era compensado por uma grande
vivacidade das cores, um caráter magnificamente decorativo e grande riqueza ornamental”.
(1).
(1) Periódico L ‘ art russe ancien, séc. XVII, Moscou, 1964, p. 7, em russo.
Porém, essa arte, no mais nas pinturas dos ícones, manteve – se ainda num nível espiritual
e artístico bastante elevado. Os ateliers patriarcais e mosteiros assim como a grande massa
dos iconográfos continuam em ficar fieis à arte tradicional. A arte russa difunde – se
amplamente além das fronteiras do país. Ao pedido das autoridades eclesiásticas e civis os
pintores russos são enviados para decorar igrejas na Geórgia, na Servia, na Moldávia, na
Valachia... O alto clero e a nobreza de diversos países ortodoxos apreciam particularmente
os ícones russos: eles são encomendados, oferecidos como presentes: os pintores gregos
esforçam – se em obter as “receitas” dos iconográfos moscovitas (2). Assim derramam – se
as técnicas e o estilo dos pintores russos, assim como os assuntos adotados pela arte sacra
na Rússia no séc. XVI.
(2). A. GRABAR. L’ expansion de la peinture russe aux XVI et XVII ° siècles . L’ art de la fin de l’ antiquité et du Moyen –
Âge, 2° vol.., Paris, 1968, pp. 946- 963.
A ausência das qualidades essenciais da grande arte das épocas precedentes que
caracteriza a arte do séc. XVII resultava particularmente da decadência espiritual, mas
também das condições históricas que se definiam desde o séc. XVI. O interesse para a arte
russa nos outros países ortodoxos não era devido apenas ao declino da vida artística sob a
ocupação turca: era uma concepção da arte sacra que permanecia a mesma, de uma
atitude em relação a essa arte provocada por circunstâncias que, na época, marcavam a
história da ortodoxia.
O nível da instrução escolar sendo baixo, mandava - se pessoas no Ocidente para ali
estudar; eles voltavam infectados pela atmosfera teológica e espiritual do Ocidente.
Este século, o último antes da época de Pedro 1°, inicia – se na Rússia por perturbações e
acaba pela reforma brutal desse imperador. No decorrer dessa grande perturbação o papel
decisivo na tarefa de determinar a posição do Estado caiu, mais uma vez, para a Igreja:
apenas a sua voz teve bastante autoridade para colocar um fim a anarquia e reunir o povo
í
russo. Porém, desde a metade do séc. a situação muda. O desenvolvimento histórico do
Estado russo o leva na órbita da cultura ocidental. Implanta – se um ensino ocidental, por
não ter ensino próprio. É a Rússia do sul oeste que teve o papel determinante. “O monge
ortodoxo do sul oeste da Rússia, formado seja numa escola latina, seja numa escola russa
do mesmo modelo, foi chamado em Moscou e se tornou o primeiro promotor da ciência
ocidental. (5).
(5). V. O. Oeuvres, vol. 3, Moscou, 1957, p. 275, em russo.
Veiculada por essa ciência, uma teologia escolástica foi também divulgada. O sul oeste da
Rússia tinha não apenas aproximado – se dos problemas próprios ao Ocidente dessa época:
ele tinha tido também que viverem eles e buscar para eles uma solução. Ele próprio sendo
contaminado pelo ocidentalismo, ele comunicou as suas doenças do Ocidente à Igreja
russa.
A teologia tão grega quanto russa foi impregnada de escolástica, o pensamento ortodoxo
paralisado. Isto foi um aviso, uma latinização da ortodoxia desarmada, e essa latinização
abraçava a teologia, a visão de mundo, a psicologia religiosa em se.
Os países ortodoxos sob o domínio turco vêem a sua vida artística, senão desaparecer, ao
mínimo decrescer consideravelmente. A imitação da arte ocidental ganhava cada vez mais
í
território nas cidades grandes, nos meios submetidos à influência ocidental; quanto à arte
ortodoxa tradicional, ela está relegada dentro dos mosteiros e nas províncias. Uma divisão
se produziu, pois o simples povo continuava em querer com firmeza a arte tradicional; ele
via nela tanto uma defesa contra a heterodoxia quanto uma manifestação do espírito
nacional. (7)
(7). Essa situação da arte ortodoxa tradicional já era evidente no séc. XIV na costa do Adriático onde
encontrou – se face a face com uma forte influência ocidental proveniente da Itália vizinha, centro da
Renascença. Os pintores eram obrigados ou de imitar os italianos para satisfazer os clientes, ou de “voltar
às formas bizantinas para satisfazer os gostos conservadores e trabalhar em pequenas igrejas rurais onde
as formas bizantinas eram identificadas como a mais elevada expressão do sagrado” (Ver J. DJURIC, Ícones
de Yougoslavie, Belgrade, 1961, p. 52)
Na Rússia no séc. XVII, sob pressão da civilização ocidental, a cultura se separa da Igreja e se
torna um domínio autônomo. Até então a Igreja tinha abraçado todos os aspectos da vida,
todos os domínios da criação humana. Agora, alguns domínios da atividade criativa
emancipam – se: isso provoca uma divisão na sociedade russa. Outrora, apesar de todas as
diferenças de situações sociais, os Russos formavam um corpo homogêneo pela sua
mentalidade espiritual, mas agora a influência ocidental quebra essa “unidade moral da
sociedade russa (...). Assim como o vidro fende – se quando aquecido inegalmente em suas
diversas partes, a sociedade russa, inegalmente penetrada pelas influências ocidentais,
rachou – se”. (8)
(8). V. O. KLUTCHEVSKY. Ibid., pp. 361-362.
Essas influências penetram cada vez mais na própria vida da Igreja e de sua arte. As obras
de arte religiosas ocidentais inundam literalmente a Rússia, assim como “copias, desenhos,
gravuras representando originais ocidentais, lançados pelos Jesuítas” (9).
(9). M. SYTCHEV, “Une ícone de Simon OUCHAKOV dans les réserves diocésaines de Novgorod”. Livreto
consagrado ao 25° aniversário da atividade cientifica do padre AÏNALOV, S. P. B. 1915, p. 96, em russo.
Os pintores russos fazem grande uso de tudo isso e, decorando as igrejas, emprestam
composições inteiras. Eles são particularmente atraídos pelo aspecto anedótico, cotidiano,
sob o qual as gravuras ocidentais transpõem todos os assuntos bíblicos. A Bíblia ilustrada de
PISCATOR, editada em Amsterdam em 1650, conhece na Rússia uma sucesso muito grande.
Porém, temos que dizer que utilizando todo esse material, os pintores russos ainda o
mesclam dentro da linguagem orgânica da arte sacra ortodoxa e, do ponto de vista
artístico, as suas obras (por exemplo, as pinturas murais das igrejas de YAROSLAV,
KOSTROMA, ROSTOV) ultrapassam de longe os seus originais. Porém, apenas ainda é
“iluminada pelos reflexos fugazes das grandes tradições” (10).
(10). I GRABAR. L ‘ Histoire de l’ art russe. T. VI, Moscou, p. 492, em russo.
í
Na Ucrânia os pintores usam gravuras ocidentais como modelos desde os anos 40 do séc.
XVII. (11).
(11). V. SVENTSITSKAYA, “Les Oeuvres d’ Ivan ROUDKOVITCH”, na revista ISKOUSSTVO, n°6, 1964, p. 65,
nota, em russo.
Quanto à segunda parte do séc. segundo Paul de Alepo, “Os pintores cossacos emprestam,
na pintura dos rostos e cores das vestimentas, belezas dos pintores francos e poloneses e
pintam imagens ortodoxas, sendo agora hábeis e educados” (12).
(12). Le Voyage..., ibid., Livro IV, cap. XII, p. 41.
A influência dos modelos ocidentais explica sem dúvida que no Monte Athos onde, nesta
época, os monges eram fieis intratáveis à tradição ortodoxa; eles passam a ser muito hostis
em relação aos ícones russos e principalmente ucranianos; eles os suspeitavam de heresia
latina e “preferiam, ao melhor ícone russo, a mais modesta imagem local”. (13)
(13). A. Grabar, L’ Expansion de La peinture russe..., ibid., p. 941.
Em nenhum outro lugar a ruptura com a Tradição deu a vez a tanta discussões tão
violentas, a tal agitação apaixonada, a um rasgo tão doloroso quanto na Rússia. Em nenhum
outro local a questão da arte sacra jamais se colocou com tanta acuidade. Esse “século de
equilíbrio perdido” (14) conhece uma inquietude particular; ela se manifesta entre outras
numa serie de medidas das autoridades eclesiásticas e cíveis e documentos escritos. A
segunda metade do séc. XVII nos deixou mais de dezenas desses últimos (15), inteiramente
ou em parte consagrados à arte sacra.
(14). G. FLOROVSKY; Les Voies de La Théologie russe, Paris, 1937, p. 58, em russo.
(15). Os mais importantes deles são; 1° Joseph VLADIMIROV, “Lettre d’ um certain iconographe Joseph à l’
iconographe du Tzar” , Le três sage Simon THEODOROVITCH”(OUCHAKOV) editada em russo pela Sra. E.
OVTCHINNIKOVA em Drévnérousskoyé Iskousstvo XVII v., Moscou 1964. Mais baixo citado Lettre...
í
3° SYMEON, bispo de POLOTSK, “Requête ou message au Tzar au cours
Du Grand Concile de Moscou”, publicado por fragmentos em russo por L. N. MAÏKOV em Otcherki iz Istoril
rousskoï litératoury XVII – XVIII stol., S.P. B. 1889, e em Siméon Polotsky o rousskom ikonopissaniï, S. P. B.
1889.
10° Karion ISTOMINE, “Discours à celui qui ... ” escrito no fim do séc. XVII.
É uma compilação das obras de OUCHAKOV, de SYMEON de POLOTSK e dos escritos dos patriarcas e do
Tzar. Citamos à parte o livreto publicado em 1642 com o titulo “FLORILEGE. Ecrits choisis sur La dignité des
saintes icônes et sur leur vénération.” Ele não contém obras originais, mas compreende uma serie de obras
mais antigas reunidas num destino polemico contra os protestantes e reflete as discussões com eles.Não
foi reeditado desde então.
Já vimos que no século XVI as discussões que agitavam vastos ambientes na Rússia
concerniam os fundamentos da doutrina da imagem, a conformidade ou não com o ensino
da Igreja de certos assuntos iconográficos. No séc. XVII também certos textos continuam
sendo centrados neste mesmo problema. São; as Atas do Grande Concílio de Moscou, os
escritos do monge EUTHYME e em parte o Testamento do Patriarca Joachim. Outra serie de
documentos apresenta para nos um interesse particular, pois são os primeiros tratados que
são consagrados na Rússia à teoria da arte e da estética. Eles expressam a concepção toda
nova da arte que aparece nesta época. Diretamente ou não eles são consagrados à defesa
da corrente nova que implantava – se na prática da arte russa e eles estão dando uma
justificação teórica. São as obras de Mestres iconográfos como Joseph VLADIMIROV e
Simon OUCHAKOV, assim como as de Simon de POLOTSK, o Escrito dos três Patriarcas e, em
parte, o Escrito do Tzar. Enfim um 3° grupo de documentos expressa a oposição à corrente
nova (O Testamento de patriarca JOACHIM, a vida do arciprestre AVVAKUM). A importância
de todos esses documentos reside no fato que eles ilustram as modificações aparecidas
í
tanto na arte quanto em sua concepção; eles mostram como a corrente nova era
compreendida por seus adeptos, o que viam e o que julgavam os seus adversários. Todos
eles refletem a concepção complexa e contraditória da arte sacra no séc. XVII. E até os
documentos que defendem a pintura tradicional manifestam a decadência iniciada no séc.
XVI, mas agora de modo aprofundado e acrescido.
Os documentos do séc. XVII têm por origem, por sua maior parte, a inquietude nascida a
respeito do mau estado da arte sacra contemporânea e tendem com mais ou menos
insistência, em melhorar a sua qualidade. Desde o séc. XVI, já vimos isto, a necessidade
sempre crescente de ícones tinha provocado um aumento importante do numero de
iconográfos. (16).
(16). Anotamos aqui que em nenhum outro lugar o ícone era tão conhecido e tinha papel tão importante
quanto na Rússia. As Crônicas mencionam, ao mesmo tempo em que acontecimentos de importância
nacional, a construção e decoração de igrejas, a criação, a transferência e até a restauração de ícones. O
ícone fazia organicamente parte da vida do povo, ele o acompanhava em todos os acontecimentos de sua
vida; toda a existência, em particular o calendário agrícola, ordenava – se em volta das festas e isso
traduzia - se naturalmente por venerações de tal ou outro ícone e sua expansão. Os ícones eram elementos
indispensáveis na arrumação não somente interior, mas também exterior de todo edifício público ou
privado. Hoje é difícil para nos imaginar que “O Tzar Alexis MIHAÏLOVITCH tinha, na sua sala de ícones mais
de 6200 ícones recebidos como presentes (...). Fora isso, havia mais de 600 ícones antigos, e um numero
ainda maior nas reservas, imagens que tinham sido retiradas dos quartos para serem preservados dos
ladrões.” (N. P. KONDAKOV, L’ Icône russe, III, Praga, 1931, pp.30 -31, em russo). A catedral da Anunciação
tinha uma media de 3000 ícones assim como a catedral de Nossa Senhora de SMOLENSK no mosteiro de
NOVODEVITCHY. De todos esses tesouros apenas conservaram – se alguns vestígios fragmentários. “O que
não conseguiu ser destruído nem pelos incêndios devastadores, nem pelas invasões que certamente
destruíram catedrais e igrejas de madeiras e toda a sua decoração e todos os ícones nas casas privada, o
esquecimento devia chegar a esse resultado”. (ibid., p. 38).
Na sua luta contra a má qualidade da pintura, as autoridades, tão religiosas quanto civis,
exigiam que os ícones fossem pintados “a partir de modelos antigos”. Esses “modelos
antigos” se tornam o único critério para julgar da correção da imagem; eles pegam a vez do
critério teológico e satisfazem assim perfeitamente as autoridades eclesiásticas e civis. Para
remediar à situação existente o Grande Concílio de Moscou, sem entrar nos detalhes como
tinha feito o STOGLAV, formula uma decisão análoga: ele instituiu um controle sobre os
iconográfos, exercitado por um “SYNDIC”, ou seja, um pintor que pertence ao clero. Ele
retoma assim um meio de luta contra a má pintura que já tinha se mostrado impróprio e
í
que não tinha dado resultado nenhum. Um ano mais tarde o Escrito dos Três Patriarcas
aborda essa mesma questão, se bem que de modo mais geral, e exige que pintores hábeis
controlem os outros e testemunham de suas aptidões por escrito levando a própria
assinatura. Seguindo os Patriarcas, o Escrito do Tzar em 1669 institui um tipo de diploma do
Estado: “Nós queremos dar nossos alvarás de Tzar a todos os melhores iconográfos depois
de teste, a cada um segundo a sua habilidade, como confirmação”(17).
(17). “Ecrit du Tzar”, p. 17.
Assim foi que a direção do trabalho dos iconográfos passa do ensino espiritual, da ascese e
da oração, para o controle das autoridades eclesiásticas, e logo em seguida ao das
autoridades civis. O Concílio dos 100 Capítulos já tinha se apoiado sobre elas ameaçando
com “o descontentamento do Tzar”. A partir disso, a arte da Igreja é regulamentada ao
mesmo tempo por medidas eclesiásticas e por escritos do Tzar.
“Onde pode se ver indecências semelhantes àquelas que se pode ver aqui e agora? Um
rebaixamento e uma profanação da arte venerável e sábia dos ícones são provocados por
ignorantes pela seguinte razão: em todo canto nas aldeias e outros, vendedores e
revendedores trazem ícones por bolsas inteiras que foram pintados de modo totalmente
derrisório: alguns nem parecem de figuras humanas, mas sim de homens selvagens.” (18).
(18). Joseph VLADIMIROV; “LETTRE...”, p. 33.
Segundo o autor, tais ícones são revendidos de um ao outro comerciante em muito grande
quantidade, são levados nas aldeias perdidas e são “trocados tais como apitos de crianças
contra um ovo, uma cebola ou todo tipo de objetos”. VLADIMIIROV não se contenta em
criticar o “simples povo” que adquire esses ícones por tão pouco, ele parte em guerra
contra os ricos que compram esses mesmos ícones a baixo preço. O mal, segundo ele, não
vem apenas dos comerciantes que ganham a vida vendendo ícones; mas “o mal vem
í
principalmente da negligência dos sacerdotes que faltam de zelo e de cuidado na
administração das coisas eclesiásticas.” O maior encorajamento para a pintura degradada
vem das pessoas “que inclinaram o espírito para o dinheiro e o ouro, que construíram para
se casas luxuosas, que gostam ter cavalos de grande valor nas baias e que, nas igrejas,
compram ícones degradados”. (19).
Tais pinturas são, segundo Syméon de Polostk, uma blasfêmia contra o próprio Deus e
aqueles que os pintam são chamados de «borradeiros de Deus». (20).
(20). Ed. De MAÏKOV, p. 8.
A produção massiva de ícones tem por resultado, dizem os autores, a falta de trabalho para
os bons iconográfos, que vivem na miséria ou mudam de profissão. (21).
(21). J. Vladimirov, LETTRE..., p. 35.
« E tudo isso leva ao declínio das divinas igrejas,exclama – se o Syméon POLOTSK . (22).
(22). Ed. De MAÏKOV,p. 5.
A grande quantidade de ícones não era o único assunto em questão; havia também a
situação penosa dos iconográfos do meio. Além de sua profissão, eles eram obrigados
preencher tarefas impostas pelo Estado como todos os cidadões. Eis porque tanto o Stoglav
como uma serie de documentos do séc. XVII pedem que se dê aos iconográfos uma
situação mais elevada, visando melhorar a sua qualidade de vida.
E certo que a crítica da arte sacra pelos documentos do séc. XVII era fundamentada. A
compra massiva e a revenda, a comercialização do ícone levavam à negligências e abusos
inevitáveis, o que não podia não rebaixar a qualidade do ícone. Certamente não foi sem
razão que um escrito do Tzar proibia a pintura de ícones aos habitantes das aldeias situadas
em MSTERA e HOLOUÏ . VLADIMIROV visa com certeza, e é justo, os comerciantes que, no
interesse próprio, sugerem aos compradores que «não se pode obter a salvação pela boa
pintura e que, no meio dos ícones milagrosos, também havia ícones mal pintados » (23).
(23). « LETTRE... », p. 33.
Ele também visa os fieis que por inocência ou «para economizar compram por pouco
dinheiro ícones mal pintados e esperam deles sinais e milagres(...). Na verdade, tais pessoas
tentam Deus e não veneram realmente os ícones dos santos » . (24).
(24). Ibid., p. 36.
VLADIMIROV reconhece que os milagres não dependem da qualidade do ícone, que Deus
pode operar esses por via «de imagens inconvenientes », assim como Ele « age por pessoas
indignas », como Ele opera milagres pelas forças da natureza; mas se Ele age assim, não é
í
graças à indignidade desses ícones, mas sim apesar dessa indignidade. E assim «quando
acontece algum milagre por tais pinturas inconvenientes, não é isso uma justificação para
nos, diante do JUIZ equitável ». (25)
(25). Ibid., p. 34.
Porém, apesar de todas essas boas razões, a crítica generalizada de mais dos ícones
artesanais pelos autores citados acordou certa desconfiança. O que é que eles entendem
por «máus ícones ? ». Segundo quais critérios julgam eles a qualidade deles? É questão
mesmo e apenas de baixo nível artesanal ? Do séc. XVII sobraram um grande numéro de
ícones extremamente diversificados tanto no carácter quanto na qualidade. Nós portanto
não reconhecemos « imagens inconvenientes » cujo aspecto seriá o «de homens
selvagens »; e é difícil supor que eles todos tenham desaparecidos sem deixar traças,
enquanto outros subsistiram. Certo, aos olhos dos pintores dos quais nos fala PAUL de ALEP
e aos olhos dos clientes, um ícone artesanal habitual devia parecer um borrão. Mas não é
questão apenas disso. Num artigo consagrado a alguns dos documentos dos quais nós
estamos falando, G. N. DIMITRIEV anota com razão que eles lutam contra a produção
artesanal » de ícones de pouco preço utilizados pelo povo, pelas pessoas simples : Vai de se
que os autores desses documentos consideravam a pintura desses ícones como ruim, não
correspondendo ao que a arte exigia. Porém, de fato, é questão de duas artes diferentes
que existiam em paralelo; a arte das castes dirigentes e a arte que o povo criava ou que, no
todo caso, era difundida no meio do povo, reconhecida por ele. A luta contra esse tipo de
arte era apenas uma manifestação da luta das classes. Ela foi não somente pretexto, mas
também razão que fez aparecer os primeiros « tratados » russos sobre a teoria da arte,
esses tratados que justificam e exaltam a arte « superior »das classes dirigentes, assim
como a luta destas contra a arte em uso no povo.Os autores dos « tratados » (não apenas S.
OUCHAKOV, mas os outros também) eram, numa medida mais ou menos grande, adeptos
da pintura nova que se constituía nesta época. (26).
(26). J. M. DIMITRIEV. « La théorie de l ‘ art dans la littérature russe ancienne », TROUDY Otdéla
drèvnèrousskoi litératouryIX, Moscou- Leningrad, 1953,pp, 109-110.
De fato, a questão não é unicamente a qualidade dos ícones, e o entusiasmo polémico não
é a única razão que incita os autores em aumentar os defeitos da pintura artesanal : eles
também fazem suas as considerações ideológicas das quais alimentava – se a nova pintura.
Arte de Igreja, a arte sacra, pela sua própria natureza, tinha ou podia ter um carácter de
classe. Pelo contrário, independentemente de suas qualidades artisticas, ela tinha, no
decorrer da história, servido de elemento unificador ao que era dissociado não apenas no
plano social e politico, mas até mesmo no plano nacional. Ela obedecia a um único critério e
o aspecto doutrinal nem se distinguia do seu aspecto estético. Como já foi dito, a
í
apreciação estética de uma obra identificava – se com sua avaliação teológica ; a arte era
teológia manifestada pelo meio de categorias estéticas. Em alguns dos documentos do séc.
XVII, esse critério teológico permanece decisivo, mas unicamente no domínio da
iconográfia. Quanto aos adeptos da corrente nova, para eles, o critério estético separa – se
aos poucos do doutrinal e adquire um valor independente; não há nada estranho em que a
crítica sem medida dos ícones artesanais emana precisamente dos ideólogos desse tempo.
Assim para VLADIMIROV o critério estético é o único decisivo, é melhor ter uma só imagem
de Cristo bem pintada que muitos ícones de mà qualidade, « inconvenientes ». E ainda
mais, se não se pode obter um belo ícone, é melhor não ter nenhum que de orar diante de
um de mà qualidade. (27).
(27). LETTRE ..., pp, 42-43.
A atitude de Syméon de POLOTSK é mais flexível ; por parte ele critica violentemente a
produção de ícones ruins, mas por outra parte ele defende esses mesmos ícones nas suas
discussões com os protestantes. (28).
(28). Ed. De MAÏKOV,p. 137.
Claro é que do ponto de vista doutrinal, esses « ícones ruins »respondiam porém ao seu
objetivo. Não seria por isso que os documentos oficiais (As Atas do Grande Concílio de
Moscou, os Escritos dos 3 Patriarcas e do Tzar) são mais reservados na crítica que a dos
autores citados e limitam – se em considerações de ordem geral concernindo os
iconográfos ? O monge EUTHYME, o patriarca JOACHIM e o arciprestre AVVAKOUM nem
falam da qualidade artística dos ícones. Quanto ao povo, uma apreciação estética do ícone
lhe era completamente estranha. PAUL de ALEP que, ele, julgue a arte sacra do ponto de
vista estético, escreve ; «Como todos os moscovitas se distinguem por um grande desapego
e um grande amor para os ícones, eles nem consideram a beleza da imagem, nem a arte da
pintura, mas todos os ícones, belos ou não são para eles todos semelhantes. (29).
(29). Le Voyage... , Livro IX, cap. III, p. 136.
Para a massa do povo fiel não era a qualidade artistica que era decisiva. Sejam quais foram
as mudanças que surgiram na consciência eclesial, o ícone permanecia uma expressâo de
sua fé, independentemente de sua qualidade estética.
Qual era então o fator decisivo que orientava as opiniões dos autores de nossos
documentos novadores ? « Seria exato pensar, escreve DMITRIEV na obra citada, que as
opiniões expressas nesses tratados eram justificadas por « ideias ocidentais »que
penetravam no território no séc. XVII (...). Quem conhece as obras dos teoricianos
bizantinos consagrados às questões da arte veria certamente sem pena o laço estreito
existindo entre nossos tratados e essas obras » (30).
í
(30).DMITRIEV, La théorie..., ibid., p. 110.
Tal conclusão apenas pode ser fruto de uma juxtaposição toda exterior dos textos. Certo, os
ideólogos da arte nova não rompem abertamente com a Tradição ortodoxa ; eles
sublinham até a fidelidade deles com a Tradição da Igreja. Eis porque, nos seus raciocínios
teóricos, tantas vezes eles chamam ao pensamento dos « teoricianos bizantinos ».
Obviamente, « as ideias ocidentais » não definem inteiramente os tratados ; mas a cultura
em formação, o modo de pensar, de ver a vida, e assim a teologia « revestia roupagem
ocidental ».
A modificação radical na cultura e na visão de mundo que apareceu na « elite »e nos meios
dirigentes da sociedade russa devia trazer uma modificação radical na arte, uma atitude
diferente em relação a ela, novas categorias estéticas. Essa nova visão de mundo era
colportada por uma cultura desacralizada do tipo ocidental, cultura de classe. A arte que
lhe correspondia era uma arte também desacralizada, estranha para o povo. E essa arte
mesma e a maneira de compreender ela testemunham de uma visão artística, de categorias
estéticas novas, não mais fundamentadas em premissas doutrinais nem em experiência
espiritual ortodoxa, mas sim nessa cultura desacralizada. A própria fé aparece como um
aspecto da cultura e, na apreciação da arte sacra, o fator estético se torna decisivo. Foi esse
fator, essa nova concepção da arte que está na base da atitude crítica para com os ícones
artesanais para os ideólogos da nova pintura.
Os historiadores da arte têm anotado várias vezes que os tratados do séc. XVII representam
uma apologia da arte; eles todos esforçam – se, numa medida mais ou menos elevada, em
justificar a arte e provar a sua utilidade : mas se o objeto desses tratados excede o quadro
da arte sacra propriamente dita, é a própria defesa dessa que provocou a sua aparição. A
obra de Vladimirov está dirigida abertamente contra um adversário bem definido (os
defensores da arte tradicional e da pintura artesanal) ; porém, os outros documentos não
mencionam o seu adversário ; mesmo se a sua apologia reveste, na argumentação, um
carácter nitidamente anti - iconoclasta. «A criação dos ícones, disse Simon OUCHAKOV, foi
muito glorificada em todos os séculos, países e meios sociais, pois ela foi em todo caso
amplamente usada em razão de sua grande utilidade ». Ele expõe longamente a
argumentação clássica contra os iconoclastas com referências ao Antigo e ao Novo
Testamento: tem de religar a origem da criação de imagens até Deus em pessoa e conclui ;
« Quanto ao Decalógo, se Deus proíbe nele a criação de imagens, aquele que raciocina
sãmente pode ver que Ele proíbe criar imagens idolâtras, veneradas em vez de Deus e não
imagens que trazem beleza, o bem espiritual e representam a economia divina. » Falando
da Santa Face, ele conclui ; « O que Deus mesmo nós deu em exemplo, porque não o
pintarmos ? »(31).
í
(31). S. OUCHAKOV, Discours,p. 22.
O Escrito dos Patriarcas inicia –se pela afirmação de que a arte das imagens não foi
inventada pelos Indianos, como o pensava Pline, nem Pyrrhon (...). « Nem são os Egipcios,
nem os Coríntios, nem os habitantes de Chio, nem os Atenenses que são os primeiros
inventores dessa arte honorável, como pensavam alguns ; mas é mesmo o próprio Senhor
que é falado como sendo o autor de todas as artes e de todas as matérias ».(32).
(32). Ecrits des Patriarches, p. 8.
Dito de outra maneira, a criação de imagens não é uma invenção pagã «como o pensam
alguns », mas sim um aspecto da criação humana inaugurada por Deus mesmo. E os
Patriarcas de completar assim o seu raciocino ; expor em detalhe todos os louvores devidos
à essa arte é a mesma coisa que « esvaziar com um copo o oceano Atlãntico »(33).
(33). Ibid., p.9.
OUCHAKOV, por sua vez, conclui seu discurso dizendo ; « O demônio, odiando essa beleza
da Igreja e da divina graça, assim como por uma maligna astúcia tinha marcado de uma tara
e de um grande vicio a imagem de Deus em Adão, provocou via seus servidores uma calúnia
insuportável dos santos ícones chamando eles de ídolos. » (34).
(34). DISCOURS.Ibid.
Mas defender os ícones e provar a utilidade deles, particularmente para russos, era abrir
uma porta ...aberta. Em Moscou , naquela época, mais que por uma tendência para o
iconoclasmo, pecava – se por uma veneração de algum modo exagrada dos ícones, a ver às
vezes falsa. Parece então incontestável que esses escritos consagrados à teoria da estética
e que justificavam, segundo a expressão de DMITIEV, « a arte superior dos ambientes
privilegiados da sociedade », refletiam ao mesmo tempo a luta contra o protestantismo ; o
protestantismo fora da Igreja e as correntes protestizantes no seu próprio seio. Desde o
séc. XVI o perigo do iconoclasmo acentuava – se com o fato da penetração do
protestantismo no Estado Moscovite e particularmente em razão do considerável e rápido
sucesso que a REFORMA recebia na Polônia e na Lituânia.Foi nesse momento que S.
MAXIME O GREGO tinha escrito suas obras anti- protestantes (Tratado contra os Luteranos
concernindo a veneração dos Santos ícones, Ecrit contre les Hérétiques). A recusa
protestante de venerar os ícones podia ter certa repercussão, isso particularmente porque
a recusa já tinha se manifestado na heresia dos judaisantes contra a qual tinha sido escrito
o primeiro tratado do MESSAGE PARA UM ICONOGRÁFO .Quanto ao séc. XVII, a pressão
protestante se fazia então sentir muito fortemente no mundo ortodoxo inteiro, e mais
ainda depois da parução, no seio da própria Igreja da profissão de fé calvinista e iconoclasta
do patriarca de Constantinopla, CYRILLE LOUKARIS. Essa profissão de fé tinha provocado
í
grandes alvoroços tanto no Oriente grego quanto no sul da Rússia. Na Rússia moscovita a
questão do protestantismo existiu com muita acuidade no inicio dos anos 40, quando em
1642 foi editado o FLORILEGE defendendo os ícones. As discussões foram particularmente
violentas quando VALDEMAR, princípe dinamarques , pediu a mão da princesa russa IRENE.
Mais tarde, os autores de nossos tratados deviam certamente ter contactos seguidos com
protestantes que viviam em Moscou ; testemunho, as entrevistas polémicas com eles de
SYMEON de POLOTSK. (35).
(35). Em 1660 havia em Moscou, no bairro dito alemão, três templos luteranos e um reformado.(ver V :
KLUTCHEVSKY, Oeuvres,III, ibid., p. 270, em russo)
No meio dos documentos do séc. XVII, é o ECRIT des TROIS PATRIARCHES que é o mais
importante para nos, pois o mais revelador das modificações surgidas na concepção da arte
sacra. Os Patriarcas insistem sobre a necessidade e a importância da imagem que, para eles
assim como para outros autores, deve ser o produto não do artesanato, mas sim das Belas
– Artes.
Até parece que justamente nesse documento a arte da Igreja deveria ser o assunto central.
Ora, de fato, é do que menos se fala em relação aos outros escritos ; os Patriarcas
consideram a arte no plano principalmente de sua utilidade social, cívica e moral, e é isso o
conteúdo e o sentido principal desse ECRIT. Não foi dentro da óptica da Igreja que eles
analisam a arte, mas sim do ponto de vista da criação pura e simples. « A arte das
imagens » é para eles a arte em geral, independentemente de seu carácter eclesial ou
profano. Essa confusão não é apenas própria ao ECRIT des PATRIARCHES ; ela caracteriza
também todos os documentos desse grupo. Assim, em sua argumentação, os Patriarcas
referem – se indiferentemente aos santos Padres da Igreja e aos pensadores pagãos; eles
colocam uns e os outros no mesmo plano no seu raciocínio e nos exemplos citados.
Demonstrando, por exemplo, que temos de venerar os ícones em razão do seu laço com o
seu protótipo, eles referem – se naturalemente ao S. Basílio O Grande. Porém, eles
í
acrescentam imediatamente que já antés dele, «o filósofo STAGIRITE ( ARISTOTE) tinha
descoberto que o movimento até a imagem e até seu protótipo era o mesmo. Assim a
doutrina cristã de um Padre da Igreja sobre a relação pessoal existindo na graça com o
protótipo pelo meio da sua imagem encontra – se reduzida a uma noção filosófica abstrata.
Falando do destino da arte, os Patriarcas explicam que ela consiste em representar tudo; o
sagrado e o profano. As imagens, dizem eles, são « como informantes sábios ». Referindo –
se ao S. JOÃO DAMASCENO, eles comparam a imagem ao livro para os « simples »e falam,
em conformidade com o 7° Concílio Ecumenico, da correspondência entre a palavra e a
imagem. Mas o Concílio fala da palavra do Evangelho, enquanto os Patriarcas entendem a
palavra em geral e citam, como exemplos, julgamentos de filósofos pagãos; « SIMONIDE
não errou quando disse que a pintura de imagens era uma poesia silenciosa , enquanto que
a poesia é a pintura em palavras ; PLATON, o maior dos filósofos, não está também errado
em relação à verdade dizendo que a arte da pintura era viva, mas silenciosa, sem palavras
por causa da excelência mesmo de sua honra ».(36).
(36). Ecrit des Patriarches. P. 12.
Para os Patriarcas, possamos ver aqui, que a palavra possui seu valor como tal, que ela seja
cristã ou pagã ; eles não fazem a diferência entre a inteligência natural dos filósofos e a
inteligência dos Santos Padres iluminados pela graça, pelo conhecimento da revelação.
Mesma atitude no julgamento deles quanto à imagem. A teologia patrística está totalmente
ausente neles: o fundamento essencial da arte sacra, testemunho da encarnação, escapa
totalmente do seu modo de ver. E verdade que eles fazem, no texto deles, certa distinção
entre a arte da Igreja e a arte profana. (37).
(37). Anotemos aqui que, fazendo voltar a origem da arte no próprio Deus, os Patriarcas para provar até
que ponto essa atividade humana é sublime, referem – se aos sábios da Antiguidade ; « Os sábios homens
gregos, dizem eles, deixaram um mandamento escrito, para que ninguem no meio dos escravos ou dos
presos possa aprender a arte da imagem, mas que apenas os filhos de nobres e filhos dos conselheiros
iniciam – se nessa arte. »Ibid., p. 8.
Mas o único critério que eles aplicam, um e o outro, é o mesmo ; a qualidade artística. O
critério deles então é unicamente estético. Nesse plano não há para os Patriarcas nenhuma
diferência não apenas entre a arte da Igreja e a do mundo, mas mesmo entre a arte cristã e
a arte pagã , como não tem entre os antigos iconográfos e os pintores da Antiguidade pagã.
Inserindo assim a iconográfia ortodoxa no domínio geral da criação de imagens, os
Patriarcas apagam a linha de demarcação; eles retiram a diferência radical que existe entre
a imagem sacra e a imagem profana, assim como o fazem no domínio da palavra. A única
distinção que se manteve é o assunto; assunto cristão ou não, sacro ou profano. A noção
mesma de arte sacra é aqui desacralizada da mesma maneira que dentro do catolicismo
romano. E os Patriarcas apoiam assim o movimento novo na arte apresentada na Rússia por
í
OUCHAKOV e VLADIMIROV. Para esses ideólogos das inovações, não existe mais diferência
entre uma imagem ortodoxa e uma imagem católica romana, provas fazendo fé.
O motivo que incitou VLADIMIROV para escrever foi sua discussão com o arcidiácono
sérvio, JEAN PLECHKOVITCH, à respeito das inovações aparecidas na pintura dos ícones
russos. O conteúdo e a orientação desse escrito são particularmente característicos da
atmosfera do séc. XVII ; expressivo e concreto, esse texto reflete, mais que outros, a
orientação do pensamento dos inovadores e a fonte que alimentava as suas ideias. As duas
partes da LETTRE, a primeira consagrada à crítica da pintura ruim, e a segunda consagrada à
discussão em se – mesma, são escritas com muita energia e paixão. O autor usa
freqüentemente nela expressões violentas e meios polémicas que nem são sempre
honestas.
Foi isso que provocou a discussão. Nós não conhecemos o argumento de PLECHKOVITCH e
fica difícil julgar pelas refutações de VLADIMIROV. Por causa de sua hostilidade para com a
nova pintura e sua preferência para os ícones « ruins », VLADIMIROV acusa o seu
adversário de iconoclasmo, ou seja de heresia, nem menos nem mais. Ele o compara até
com CONSTANTIN COPRONYME ; « É vã opor – se com tanto ardor à beleza da Igreja e
provocar novamente uma antiga luta ».(39).
(39). LETTRE. P. 45.Tais acusações de heresia iam às vezes até o absurdo total. Assim certo sacerdote
LONGIN foi acusado de iconoclasmo ; ele tinha « blasfemado contra os ícones »por ter julgado severamente
uma mulher muito maquillada de branco, enquanto a cor branca entra na pintura dos ícones...(Ver A. V.
KARTACHEV, « l’ Histoire de l ‘ Eglise russe »t.II, Paris, 1959,p. 152, em russo).
í
(40). A Senhora E. S. OVTCHINNIKOV, que edita a LETTRE de VLADIMIROV, não está de acôrdo com G.
FILIMONOV que via na atitude de VLADIMIROV « uma viva simpatia do iconográfo russo para a pintura
ocidental ». Depois de um estudo aprofundado do tratado de VLADIMIROV, escreve ela no prefácio da
edição , essa questão nos parece mais complexa (p. 13) : A Senhora OVTCHINNIKOV reduz a questão numa
expressão da luta perfeitamente legítima da corrente nova na arte contra a antiga tradição caduca (p.19).
Na realidade, a simpatia de VLADIMIROV era longe de ir apenas à única pintura ocidental ; ela estendia –
se , como vamos ver, ao conteúdo ideológico do qual essa pintura é a expressão.
Fazendo o elogio da pintura ocidental, VLADIMIROV disse que não o faz para louvar a fé de
outros povos; mas, mesmo se «são gente de pouca fé », os ocidentais amam tanto a
sabedoria e «a pintura muito sábia »que eles pintam « como se fossem vivos » não apenas
o Cristo, a Virgem e os Santos, mas também os seus reis.(41).
(41). LETTRE, p. 45.
Quanto a arte ortodoxa, os estrangeiros não denigrem os ícones que imitam a luz, nem se
gozam das imagens dos santos, mas riam – se da pintura ruim e da ignorância da verdade.
(42).
(42).Ibid., p.41.
Qual seria então essa verdade cuja ignorância nos faz merecer as críticas dos estrangeiros ?
Onde VLADIMIROV enxergue ela? Os estrangeiros gozavam – se não apenas dos ícones mal
pintados , mas também da própria concepção da imagem, do que mostra a sua
autenticidade. Ora estamos abordando ali, assim nos parece, uma questão doutrinal. Toda
a seqüência dos raciocinios de VLADIMIROV mostra que é assim mesmo. Sem dúvida, os
iconográfos russos deviam ouvir exprobação como aqueles dos quais falava o monge
SAVVATIOS de SOLOVKI na sua súplica ao Tzar em 1662 ; «Os estrangeiros se gozam de nos
dizendo que nós não temos até agora conhecido a fé cristã ». (43).
(43). Citado por B. KLUTCHEVSKY, ibid., p. 311.
Lembremos que VLADIMIROV não fala apenas da arte profana ; ele fala da arte sacra, do
ícone. Mas defendendo – o ele refere – se constantemente aos pintores ocidentais que
representam o Cristo, a Virgem e os retratos dos reis « como se eles fossem vivos », sem
nenhuma distinção entre uns e outros. Aos poucos, o próprio VLADIMIROV adota essa
atitude ; na maneira de representar, ele nem vê mais a diferênça entre ícone, imagem
cultual (a de Cristo ou de um santo), e o retrato ordinário de uma personagem. «Os santos
e os outros homens são representados pelos amadores da sabedoria não por sinais ou
í
milagres, mas por ter uma imagem verídica e conservar eternamente a memória deles em
razão do amor para eles dirigido ». (44).
(44). LETTRE, p. 37.
Ele não vê que a confusão da imagem cultual com o retrato profano decorre de uma atitude
doutrinal e contradiz a concepção ortodoxa da imagem sacra.
Ou seja, sem dúvida, segundo a imaginação. Ele cita com indignação o pintor que, no tempo
de LÉON O GRANDE, pintou o Senhor « na imagem de ZEUS ».(46). Ou seja que copia ídolo.
(46). Ibid., p. 35.
Tal cópia, assim como a imaginação, associam – se para ele, curiosamente à « pintura
ruim »; ele também considera essa pintura como uma alteração da imagem de Cristo
historicamente autêntica. Uma imagem « mal pintada » segundo ele é falsa ; « uma imagem
inconveniente e mal pintada é inadmissível e contradiz o seu protótipo (47).
(47). Ibid., p. 41.
Assim, aos seus olhos a autenticidade é a fidelidade ao que o pintor vê na vida que o cerca.
«Como ele está vendo algo e ouvindo a descrição, ele a retrata nas imagens, ou seja nas
personagens, tornando as semelhantes ao que se vê e ouve. »( 51).
(51). LETTRE, p. 58.
Essa concepção da imagem encontra o seu fundamento teórico na obra atribuida ao SIMON
OUCHAKOV. Para ele, a imagem como tal é fundamentada sobre o mesmo princípio que o
reflexo num espelho. Tendo, ele também, citado o exemplo da SANTISSÍMA FACE,
OUCHAKOV continua : Não somente o próprio Senhor é o criador da imagem, mas todo
objeto acessível à vista « possui a força secreta e muito maravilhosa dessa arte. Pois cada
objeto, colocado frente ao espelho, pinta nele sua imagem por ordem da sabedoria divina.
Ó milagre sem milagre ! Uma imagem maravilhosa aparece que se mexe quando o homem
se mexe(...) ri quando ele ri, chora quando ele chora(...) e aparece toda viva sem ter nem
corpo nem alma humana. Não foi o próprio Deus que, pelo intermédio da natureza, nos
ensina a arte de pintar os ícones ? »(52).
í
(52).DISCOURS, pp. 22- 23. Quando dentro dos manuscritos russos antigos encontramos a expressão
« como se Ele fosse vivo » caraterizando o que está representado num ícone, ela nunca deve ser entendida
no sentido que lhe dão os apologístas da nova corrente na arte no séc. XVII : Como foi anotado por
DMITRIEV com razão (ibid., p. 113), essa expressão está aplicada , em qualidade de louvor, para obras de
arte de carácter completamente diferente. De fato, quando eles queriam louvar uma imagem, tanto os
autores gregos antigos e pagãos que escritores ortodoxos diziam que era « como viva ». Nos dois casos as
palavras são as mesmas, mas a arte que elas caracterizam totalemente diferente.É que o termo « vida »,
« vivo »tem aqui dois significados fundamentalmente diferentes.Para uns e outros, a imagem representa
vida ; mas essa vida não é a mesma. Para os apológistas da arte nova a tradução pitural da vida, que é o
trabalho ( praxis) espiritual interior, é trocado pela representação direta da vida acessível ao olho : « tal
como se vê algo ou que se entende sua descrição » .O que para a arte dos séc. XI- XVI era vivo, tornou – se
morto para eles. Mesma coisa com as noções de « lembrança » e de « chamamento ». Os apológistas da
arte nova entendem isso no sentido subjetivo e psicológico, enquant que na consciência ortodoxa ( no
decorrer do periódo iconoclasto sempre voltavam – se a essa noção) significa não apenas comemoração,
mas sim participação ontológica ao protótipo.
A propriedade natural de refletir os objetos está não apenas assimilada por OUCHAKOV à
criação da Santíssima Face ; ele propõe esta propriedade como modelo para a criação
humana. Criar significa imitar o espelho que reflete sobre uma ordem divina. Ou seja, para
OUCHAKOV,assim como para VLADIMIROV, a imagem deve representar a vida como reflexo
num espelho, os homens, os objetos no seu estado visível cotidiano(53), ou seja segundo o
que é acessível ao olho, sentimento , à razão.
(53). OUCHAKOV pintou toda uma serie de ícones da Santíssima Face onde ele esforçou – se dar com maior
exatidão possível a carne humana, um corpo vivo e nuances de diversos estados psicológicos, assim como
as dobras naturais dos tecidos( ver ilustração. 43). Esse pintor empreende a composição de um tipo de
manual ilustrado, «um alfabeto dessa arte : todos os membros do corpo humano dos quais precisa a nossa
arte », ou seja uma demonstração da maneira pela qual é preciso representar os membros do corpo
humano de modo naturalista em vez do modo iconográfico. Ver o fim do DISCOURS .
Esse princípio está sendo aplicado num domínio que, justamente, ultrapassa os limites
dessa concepção natural. Um exemplo concreto nos permitirá ver como noções ortodoxas
tradicionais são falsificadas por sua interpretação. Na imagem da NATIVIDADE DE CRISTO,
diz ele, a Criança « deve absolutamente ser branca, roseada e antes de tudo belo, e não
privado de beleza já que o Profeta diz : «O Senhor entrou em Seu Reino, Ele revestiu – Se
de esplendor » e ainda ; «Senhor, nós andaremos na Luz da Tua Face (...) : Como então
pintar o Seu Rosto com sombra ?» pergunta ele. (54).
(54).LETTRE, p. 57.
Ora, as duas profecias citadas por VLADIMIROV têm um sentido escatológico ; a primeira é
o Prokimenon do domingo, ou seja de uma imagem do oitavo dia da Criação, do século que
há de vir; a segunda faz parte da festa da TRANSFIGURACÃO, ou seja a Luz divina incriada.
Não se pode fazer escolha mais judiciosa, pois essas duas profecias revelam justamente o
í
carácter essencial do ícone ortodoxo, sua orientação escatológica. Mas esse sentido
escatológico das profecias, o ícone apenas pode o devolver símbolicamente como o
sabemos, e é isso que escapa ao VLADIMIROV. Aos seus olhos, para devolver a Luz incriada,
é preciso de cores claras e para traduzir exatamente as palavras proféticas sobre a beleza
divina e a Luz incriada, é preciso, pensa ele, representar a Criança recém – nascida com um
rosto branco e rosado na maneira dos pintores ocidentais.
Ele aplica esse mesmo raciocínio quando ele fala das imagens dos santos; « Onde
encontrou – se uma regra dizendo que é preciso representar todos os rostos dos santos
igualmente bronzeados ou em tons escuros ? Todos os santos não tinham rostos escuros ou
magros . Mas se alguns santos no decorrer de suas vidas, negligênciando o próprio corpo
não tinham ar de saúde, eles devem depois de suas mortes, tendo recebida as coroas dos
justos , modificar esse aspecto contra uma ascpecto claro, pois que esse convém aos justos
e o aspecto sombrio aos pecadores. Mas mesmo durante as suas vidas, muitos santos
distinguiam – se por uma notável beleza. E preciso então representar eles com rostos
escurecidos ? » (55).
(55). Ibid., p. 58.
Para apoiar o seu raciocínio, VLADIMIROV cita exemplos das Escrituras ; « Quando Moises,
o grande entre os Profetas recebeu do Senhor a lei no Sinaï(...), os filhos de Israel não
podiam olhar para o seu rosto por causa da Luz que repousava sobre ele (...). E preciso
então representar também o rosto de Moises bronzeado e escuro ? » Ou ainda ; « Quando
os Anciãos viram a Suzana extremamente bela e a cobiçaram, eles a caluniaram por causa
disso e a traduziram diante de um tribunal, ordenando – lhe desvendar a sua testa para
satisfazer – se da beleza do seu claro rosto (...). E na nossa época, tu, PLECHKOVITCH, tu
pedes aos iconográfos pintar imagens sombrias e sem semelhança com a beleza de seu
protótipo e tu nos ensinas em mentir contra os escritos antigos. »
Mas, primeiramente, nós sabemos que os rostos dos ícones não são sempre pintados
escuros; eles estavam pintados sombrios ou claros, independentemente da cor que eles
tinham tido durante a vida do santo. Mas o que é totalmente absurdo no raciocínio de
VLADIMIROV, é que ele coloca no mesmo plano o rosto bem iluminado pela graça, o de
Moises, e a beleza física ( que ele assimila ao aspecto claro segundo o gosto de seu tempo),
a beleza corporal, sensual de Suzana, que provocou a inveja dos anciãos, o aspecto claro da
carne florescente e a luz divina. Entre esses dois tipos de beleza, VLADIMIROV não vê
nenhuma diferência. Para traduzir uma e a outra na imagem convém, segundo ele, usar
tintas claras e aproximar – se tanto quanto possível da realidade visível. (56).
(56).Certamente, no meio dos santos, havia personagens de grande beleza fÍsica. Mas não é essa beleza
corporal que a Igreja nos dá em exemplo, e sim a vida interior do santo. Não será por isso que o Evangelho
í
não nos oferece nenhuma descrição de ordem física, que não exalta nem a beleza, nem a força do corpo
humano ? O objectivo das Escrituras , assim como o do ícone , não será de nos conduzir num estado oposto
aquele que vivenciaram os Anciãos vendo a Suzana ?
Assim, VLADIMIROV não concebe mais a beleza da santidade do modo tradicional ortodoxo,
ou seja como a semelhança com o Divino ; ela é para ele a beleza corporal, e a luz divina é a
luz física. Ele vê numa e noutra simples propriedades naturais que não ultrapassam os
limites do criado. Assim, ele introduz no ícone a noção de graça criada. Ora, é justamente
essa beleza « semelhante ao que se vê na vida »que os adversários das inovações
« começaram a odiar », diz VLADIMIROV. « Eles dizem que a beleza dos santos é
representada para tentar os cristões. »(57).
(57). LETTRE, p. 61.
Ele indigna – se com o fato das pinturas artistícas provocar nos seus adversários não a
oração, mas sim sentimentos culpados, e ele os compara com os sodomitas. « Vê (...),
como não temes olhar as imagens dos santos com malícia e alimentar em teu coração
pensamentos sedutores (...)? Um verdadeiro cristão piedoso, ensina ele, não deve ser
tentado olhando as próprias prostitutas, e não deve abrasar – se vendo os ícones dos
santos. » VLADIMIROV exige que diante da beleza física o homem tenha uma atitude
espiritual e não carnal, que ele não se deixe tentar. Ou ainda, segundo esse raciocínio, uma
imagem reproduzindo a natureza coloca um homem na mesma situação que se ele olhasse
uma prostituta e deveria ter a mesma reação. Assim o homem é suposto orar não mais
GRACAS AO ÍCONE, mas APESAR D’ELE.
Uma imagem imitando a natureza deve, segundo VLADIMIROV, refletir os diversos estados
físicos e psiquícos correspondendo às circunstâncias nas quais encontra – se a personagem
representada; assim diante de Pilatos o Cristo « está todo emocionado », na cruz Ele está
«com os sentidos murchos »(58).
(58).Ibid., p. 57.
í
Nós estamos vendo nisso não apenas a noção católica romana de « meritos », mas também
a noção da imagem como estimulador de emoções naturais. Bem verdade é que, uma
imagem reproduzindo de modo naturalista a vida corporal e emocional do homem não
pode pretender provocar no espectador nada mais que uma reação correspondente, uma
emoção natural.
Assim, mesmo se há nos raciocínios desses autores certa relação formal com os « teóricos
bizantinos », mesmo se eles apoiam – se neles, na realidade, vamos repetindo isso, eles
comprovam nos fatos uma atitude diametralmente oposta, tanto na teoria quanto na
prática, na sua noção da imagem (conteúdo, beleza, luz,etc.). Nós nos encontramos ali
diante de duas concepções sacras radicalmente diferentes; a concepção ortodoxa e a
concepção católica romana ; é para essa última que orientam – se agora a noção de
imagem e sua linguagem pitural.
Essa nova concepção da imagem leva os autores dos tratados a ver na arte otodoxa
tradicional uma etapa ultrapassada. O manuscrito «G»da LETTRE de VLADIMIROV contém
uma variação característica, colocando bem na luz sua atitude (ou ao minimo a da corrente
da qual ele pertence) em relação à arte passada. Podemos ler no texto; «Não é espantoso
que houve na Rússia, desde os tempos antigos, ícones ruins, pois um povo que há pouco foi
trazido das trêvas até a luz não teve como, nesse brevo espaço de tempo, assimilar
inteiramente uma arte de tão grande sabedoria » (60), ou seja essa arte que aparece ao
VLADIMIROV como ideal e dando da realidade uma verdade mais exata. Assim não é
questão para ele apenas dos iconográfos contemporanéos e de seus erros ; é questão da
arte russa das épocas precedentes, no seu conjunto, dessa arte que VLADIMIROV
considera como « de uso antigo » ; ora , um uso não é uma lei escrita (61), ele se mantém
graças à ignorância e à incompreensão.
(60).LETTRE p. 25.
(61). Ibid.
Há de ser dito que tal raciocínio encontra certo apoio nas reações provocadas pelas
reformas do patriarca NIKON. De fato, «toda a força da reforma de NIKON residia numa
rejeição em bloco de todo o ritual e de toda a ordem antiga da vida da Rússia. Não apenas
eles são trocados por algo novo, mas ainda são declarados falsos, heréticos, quase que
ímpios »(62).
(62). G. FLOGOROVSKY, Les Voies de la Théologie russe, ibid., p55, em russo.
No que tem a ver com a arte sacra, não era assim, verdadeiramente: porém, no contexto
geral, as «retificações » dos ritos por NIKON têm, por parte, « escandalizado e ferido a
consciência do povo», provocando protestos e rupturas. Por outra parte, para as pessoas a
í
favor das inovações elas forneceram um pretexto para duvidar da Tradição ortodoxa e de
sua arte, e para criticar elas. O arciprestre AVVAKOUM cita por exemplo as seguintes
palavras de novatos, ditas no meio de uma discussão: «Querido AVVAKOUM, não te
obstina. O que é que citaste dos santos russos; eles eram idiotas, nossos santos, eles nem
sabiam ler nem escrever, porque acreditar neles ? » (63).
(63). La vie de l’ Archiprêtre AVVAKOUM, texto russo, Moscou, 1960, pp. 139 e 156.
Essa atitude crítica manifestou – se com mais relevo nos pintores que gozavam de grande
autoridade.
Qual foi então a reação da Igreja e dos defensores da arte tradicional ?O que eles opuseram
de positivo frente a esse abandono da doutrina ortodoxa na concepção da imagem, frente a
deformação de sua linguagem.
Antes de qualquer outra coisa, tem de dizer que, pela perda do critério tradicional
autêntico e a implantação da teológia escolástica, os defensores da arte ortodoxa
encontraram – se face às novas teorias, sem defesa no plano teológico.
Mas se o esquecimento da Igreja é compreensível num pintor encantado pelas ideias novas,
fica bem mais estranho nos Patriarcas. O escrito deles, tanto em conteúdo quanto em sua
orientação geral, é o documento com certeza o menos eclesiastíco de todos. Quanto ao
í
ECRIT do TZAR, ele segue, para o essêncial, o dos Patriarcas e também nem reage contra as
inovações.
Porém, a ruptura da nova corrente com aTradição provocou uma violenta reação,
carácterizada pelo rasgo doentio próprio ao séc. XVII. Segundo os defensores da Tradição
nem a própria arte ocidental em se, nem a sua imitação poderiam ter sido aceitas pela
Igreja ortodoxa, pois que contaminadas pelas ideias do ocidente heterodoxo. Os
apologistas das inovações consideram estas como a sucessão legítima da Tradição
ortodoxa, e as formas novas da arte introduzidas por VLADIMIROV e OUCHAKOV como
sendo o desenvolvimento normal da arte sacra tradicional. Em contrapartida, para os
defensores da Tradição, não é questão de um desenvolvimento, mas sim de uma ruptura;
elementos estranhos são introduzidos na arte ortodoxa que a desnaturam. A imitação da
natureza, a reprodução do que é imediatamente visível inspiram neles um « temor ». «Sera,
perguntava VLADIMIROV ao PLECHKOVITCH, porque tu a viste pintada em imitação do
homem tal como é, que tu disseste que a imagem do Salvador te deu medo (...): E a
imagem do EMMANUEL(...) e a tua lingua ímpia a chamou de « alemã » (65).
(65).LETTRE...pp.50-51-
É o Patriarca NIKON que o AVVAKOUM , sabemos disso, torna responsável de todas essas
inovações. Essa opinião é contestada numa passagem de VLADIMIROV. Numa discussão,
PLECHKOVITCH refere – se às medidas violentas tomadas por NIKON(...) em relação à arte
nova e VLADIMIROV responde dizendo que « o senhor e reverendíssimo NIKON testemunha
de um bom zelo para a muito sábia pintura dos santos ícones (...). Ele não amaldiçoa a arte
da pintura e não a recusa (67) mas não louva os iconográfos grosseiros e inconvenientes,
nem apenas os latinos, mas também os russos quando são péssimos(...). Quanto à pintura
bela, ele não a recusa. »
í
(67). LETTRE, p.55.
Assim, quando VLADIMIROV fala de luta de NIKON contra os ícones pretensamente mal –
pintados, independentemente do carácter deles ser russo ou latino, isso não corresponde
mesmo à nenhuma atitude verdadeira do Patriarca. Alias, os ícones destruidos pertenciam
a nobres ou altos dignitários ; eles não podiam mesmo ser de pouca qualidade artistíca.
(69).
(69). Não há nenhum motivo para atribuir ao NIKON uma resistência aos únicos assuntos iconográficos
latinos ou luteranos, e um encorajamento da pintura ocidentalizante ( Ver L’ Histoire de l’ Art Russe, t. VI,
Moscou, p. 426, em russo). PAUL de ALEP é muito nítido em sua descrição . Em 1654, NIKON fez reunir, «
tomando os mesmos nas casas de dignitários do Estado », ícones pintados por pintores moscovitas »
segundo o modelo de quadros francos e poloneses » : ele furou os olhos deles e os fez transportar em
Moscou, ameaçando de castigos todos aqueles que pintariam ícones segundo tais modelos. Em 1655, no
Domingo do Triunfo da Ortodoxia, depois da liturgia na catedral da Assunção, o Patriarca fez trazer esses
ícones no meio da igreja. Ele pronunciou um longo discurso , dizendo que essa pintura era « inadmissível »
e citando as explicações emprestadas num livreto de sermões patrísticos (provavelmente o FLORILÈGE
editado em 1642). Depois disso, pegando os ícones um após o outro, os mostrou ao povo dizendo : « Esse
ícone vem da casa de tal dignitário, filho de Tal » e ele os jogava sobre o chão quebrando – os. Com o
Patriaca MACAIRE de ANTIOCHE e GABRIEL de SERBIE que estavam presentes, ele pronunciou o anátema
contra todos aqueles que iriam pintar tais imagens ou as guardariam em casa.(ver Le Voyage...)
Pode se afirmar com certeza que o Patriarca NIKON era consciente do limite a não
ultrapassar na arte sacra. Quanto aos apológistas da arte nova, a qualidade artística das
obras de arte ocidentais é para eles uma razão suficiente para venerar elas ao igual de um
ícone ortodoxo. Assim, aos olhos de VLADIMIROV, não apenas uma imagem naturalista,
mas mesmo sua reprodução imprimida pode ser abençoada e tomar a vez de um ícone.
«Quando vemos, nos nossos compatriótas ou em casa de estrangeiros, uma imagem do
Cristo ou da Virgem bem imprimida ou pintada com essa arte muito sábia(...), nós
preferimos esses objetos benéficos a todos outros objetos da terra; nós procuramos com
amor comprar eles dos estrangeiros(...)e recebemos a representação do Cristo sobre folhas
de papel ou sobre pranchas, beijando – as com amor : conforme às regras, nós trazemos
tais ícones aos sacerdotes que fazem as orações necessárias, bendizem Deus e consagram a
Sua imagem aspergindo – a de água benta, como está escrito nas regras para a consagração
dos objetos eclesiásticos. » E um pouco mais além, tendo enumerado os diversos objetos
servindo ao culto e fabricados com materiais de origem estrangeira, ele continua ; «E como
tudo isso é consagrado pelas mãos de um bispo e as palavras das orações , porque não
í
poderiamos consagrar também essa imagem de Cristo pintada imitando a vida, mesmo se
ela foi feita por estrangeiros ? » (70).
(70). LETTRE, P. 50.Nos seus raciocínios VLADIMIROV coloca objetos diversos servindo para o culto ( vasos
sagrados, vestimentas sacerdotais...) ao mesmo nível que uma imagem cutual. Porém, tal assimilação é
impossível no que tem a ver com o ícone ortodoxo. Ali existe uma confusão que testemunha , mais uma
vez, de uma perda total da concepção ortodoxa da imagem. Esse pecado alias existe igualmente na nossa
época ; ver a lista dos assuntos a serem discutidos no Concílio.(Journal du Patriarcat de Moscou, n°11,
1961,p. 25, em russo).Essa confusão faz regressar a questão do ícone ao estágio que precedeu sua solução
no 7° Concílio Ecumênico. Como convém venerar os ícones, isso era a pergunta, bom lembrar dela, nas Atas
do Concílio, do mesmo modo que os vasos sagrados, que os ornamentos e outros objetos cultuais, ou de
outra maneira ? A essa pergunta o Concílio respondeu , como se sabe, tanto nas Suas Atas quanto na Sua
decisão ; o ícone deve ser venerado ao mesmo título que a cruz ou o Evangelhário. Ou seja, a imagem está
colocada não num contexto apenas utilitário, mas sim num contexto dogmático.
Essas palavras de VLADIMIROV mostram que se abençoava segundo o rito não apenas
ícones pintados «a partir de quadros francos ou poloneses », os quais destruia o Patriarca
NIKON, mas também obras de arte ocidentais e gravuras, como se tudo fosse ícones
ortodoxos. Isso mostra até que ponto a indiferência para o conteúdo doutrinal da imagem
já tinha ganho também os meios do clero moscovita. Essa indiferência, e ver esse
abandono do critério doutrinal, provocaram uma reação violenta por parte do Patriarca
JOACHIM. Em seu « Testament », ele escreveu ; «... Em nome do Senhor, eu ordeno que
não se pinte os ícones do Deus – Homem, da Santíssima Mãe de Deus e de todos os Santos
(...) a partir de representações latinas e alemães, corrompidas e inadmissíveis,
recentemente inventadas segundo fantasias individuais e que corrompem nossa Tradição
eclesiástica. No caso, se encontrar alguns em igrejas que são pintados incorretamente, é
preciso retirar eles.»(71).
(71). O livro chamado BOUCLIER, citado no Manuel de Iconográfia editado por BOLCHAKOV, red.
OUSPENSKY, Moscou, 1903, em russo.
í
(72).Citado por N. POKROVSKY no tratado Les Monuments de l ‘ Iconographie et l’ Art Chrétien.S.P.b.1900,
p. 370,em russo.
Apesar da inluência e fraqueza dos argumentos dos defensores da arte tradicional (assim :
« A Igreja não admite esses aspectos novos, diz o Patriarca JOACHIM ; isso não faz parte do
uso »), sente – se neles, senão uma compreensão, ao mínimo um seguro instinto do que é
a imagem ortodoxa autêntica. Não é questão para eles de negar apenas o que é
incompreensível ou recusar o « novo » ; eles recusam o que é estrangeiro, a ver hóstil e
manifestamente destruidor para a arte ortodoxa e, mais geralmente, para a espiritualidade
como tal. Essa recusa não é raciocinada, é bem mais instintiva e por isso ainda mais
violenta. O Patriarca NIKON quebrava os ícones pintados ao modo novo e lhes furava os
olhos. O raciocínio « ascético »do arciprestre AVVAKOUM limita – se em injúrias, repletas
de ardor e de humor, verdade mesmo. Mesmo se ele ataca NIKON que ele considerava
como responsável das inovações nos ícones, o fato é que esses dois homens eram, nesse
ponto de vista, do mesmo bordo. « Gregófilo » em suas convicções ( pelo menos durante o
seu patriarcado !) e inimigo da cultura ocidental, NIKON estava sendo acusado pelos seus
adversários de ser partidário dos usos « alemãos ». No que concerne o ícone , essa
acusação é absurda. Os princípios da arte sacra ortodoxa eram para ele tão preciosos
quanto que para AVVAKOUM e os partidários dele. Se esses últimos esforçavam – se em
acusar NIKON , é que eles consideravam a mudança da arte no contexto geral das reformas
empreendidas por este. Ora, nesse domínio, para AVVAKOUM e seus partidários , tudo era
sagrado em bloco no mesmo grau e imutavelmente assim como a própria Santíssima
Trindade.
Apenas o Patriarca JOACHIM define nitídamente contra o que ele luta, mesmo se a sua
definição releva bem mais do domínio da prática ascética espiritual e se falta de uma
terminológia teológica : essas imagens, diz ele, são « corrompidas », elas são «
recentemente inventadas segundo fantasias individuais » ; elas corrompam a Tradição
ortodoxa ». JOACHIM e o arciprestre AVVAKOUM têm a mesma aproximação para julgar a
arte nova ; eles a consideram de cara na perspectíva da prática ascética e a condenam
como « invenção nova » segundo « veleidades da carne ».Porém a própria noção dessa
prática ascética e dos julgamentos que ela inspira é diferente nos dois casos. Para JOCHIM,
essa arte nova é inaceitável no culto, na Igreja ; para AVVAKOUM ela é inaceitável também,
mas no plano nacional e no do Estado, esse Estado que, na sua maneira de ver, inclui nele a
Igreja como componente de sua vida. « Infeliz és – tu ó Rússia, que inveja é essa que te faz
aceitar modos e costumes alemãos ? »(73).
(73). Vie de l’ archiprêtre AVVAKOUM, ibid., p. 136. Na edição francesa,p. 503.
Essa imutabilidade inclui assim tudo o que tinha sido introduzido na prática da arte sacra,
todas as fantasias dos pintores russos, todos os emprestimos ao Ocidente cobertos pela
autoridade dos Concílios do séc. XVI, e aqueles que tinham se acumulados desde então.
Tudo isso em bloco é considerado como herança inviolável e até os nossos dias os velhos –
naturalistas são apegados nisso, ao mínimo em princípio.
Convém sublinhar que posto à parte o AVVAKOUM, os partidários da arte tradicional não
defendia essa em razão de sua venerável antiguidade ; nenhum d’ entre eles fala nesses
termos. Apenas os seus adversários ( VLADIMIROV) e em nossos dias os historiadores da
arte, atribuem – lhes essa atitude de apego ao « antigo ».
A corrupção da arte sacra empresta duas vias no séc. XVII ; por uma parte, uma re -
orientação da concepção ortodoxa da imagem e de sua linguagem pictural no sentido
católico romano ; por outra parte, a deterioração da iconográfia pela influência das
gravuras ocidentais e pelas fantasias dos pintores russos. Nós vimos no capítulo precedente
que o abandono do realismo evangélico tinha provocado primeiramente protestos
enérgicos. Mas o séc. XVII viu se propagar ainda mais esse alegorismo, essas parábolas
picturais traindo o realismo evangélico. A partir do séc. XVI, «não sobrou mais uma ideia
importante pertencendo à visão poética do mundo no cristianismo, mais nenhum canto
litúrgico, nenhum salmo, sem que alguma tentativa tivesse sido feita para sua
personificação na iconográfia. « (75).
(75). G. FILIMONOV. « Aperçus de l’ iconographie chrétienne russe : Sophia , la Sagesse divine ». Vestnik
Ob. Drévnérousskogo pri Mosk. Poublitchnom Mouséé. Moscou, 1876, p. 131, em russo.
Claro , no meio dos numerosos assuntos iconográficos novos, alguns podem ser justificados
pelo seu conteúdo teológico( Ex: Em Ti, ó cheia de graças, alegra – se toda a criação), «Que
todo fôlego louve o Senhor ! » e outros ícones cósmicos ; mas em sua maioria esmagadora,
é questão do conjunto de fantasias que corrompem a iconográfia ortodoxa. Já temos dito
aqui, que todas as épocas conhecem erros tanto na iconográfia quanto na teológia ; mas
outrora, eram fenômenos excepcionais. Ora agora, elas são legiões, provocadas tanto pelos
empréstimos a heterodoxia que pelos « erros de uma bebedeira em folia », segundo a
expressão do monge ZÉNOBE.
í
É para luta contra essa corrupção da iconográfia ortodoxa que são consagrados alguns
documentos do séc. XVII : As Atas do Grande Concílio de Moscou, as obras do monge
EUTHYME, em parte a do Patriarca JOACHIM e também as de VLADIMIROV : nesse domínio
igualmente, nós esbarramos sobre um fenômeno característico da época ; alguns assuntos
iconográficos são bem estudados e criticados segundo um critério teológico
( particularmente do Grande Concílio) ; mas em contra – partida, a incompatibilidade com a
Tradição ortodoxa do próprio princípio dessa pintura não está bem iluminada.
Para VLADIMIROV os erros concernindo a iconográfia são apenas um dos aspectos do nível
tão baixo no qual encontra – se , segundo ele, a pintura russa : ele critica esses erros ao
mesmo título que os « ícones ruins » e no mesmo plano ; ele vê uma semelhança entre os
erros concernindo os velhos ícones e os erros contidos nos livros litúrgicos , e ele se refere à
correção desses últimos , então em curso( 76).
(76). LETTRE, p. 25.
A crítica de VLADIMIROV apenas se justifica quando ele ataca – se aos assuntos devidos aos
«delírios e fábulas » dos iconográfos russos ; assim , por exemplo, a representação do
Arcanjo MICHEL sob a forma de um monge revestido do ‘Grand Habit (schème)’(77), « ou
algo pior ainda e outras blasfémias mais ímpias contra Deus (...) ; O Cristo no seio do Pai
sobre a Cruz , como se Ele estivesse nas dobras da vestimenta do Senhor Sabaoth » (78).
(77). «... pois esses idiotas dizem que, quando o Arcanjo MICHEL se fez monge, ainda não pôde vencer
Satão até ele revestir o ‘ Grand Habit’ (schème) », ibid., p. 59.
Nos exemplos que citamos, esse critério da razão é justificado pelo absurdo evidente do
que ele critica.Mas esse critério é insuficiente e impotente onde a evidência não é tão
absoluta e onde uma compreensão teológica , mesmo elementar, é indispensável. O que
importa para VLADIMIROV , é fazer ressaltar o « delírio » que contradiz a razão natural ;
mas que tal ou outra iconográfia seja ortodoxa ou não , isso não tem mais importância para
ele.
í
importância decisiva o fato como tal, independentemente de seu sentido. Onde
encontraremos, pergunte ele, a imagem da Mãe de Deus na Descida do Espírito Santo ? Ela
não Se encontra, responde ele, « acreditando Ela estranha à recepção do Espírito Santo »
(80).
(80). Ibid., p. 60.
De fato, antes dos emprestimos direitos na iconográfia romana, não se pode achar na
ortodoxia uma imagem do Pentecostes com a Mãe de Deus no centro : Mas isso explica –
se não pela ignorância das Escrituras , nem pela incompreensão dos iconográfos, mas pelo
conteúdo teológico especificamente ortodoxo dessa festa, conteúdo que escapa ao
VLADIMIROV. De acordo com as ideias dele, ele cria uma imagem da Descida do Espírito
Santo segundo um modelo católico, com a Virgem no centro (81).
(81). Ver L. OUSPENSKY, « Quelques considerações sur l’ iconographie da la Pentecôte » Messager de l’
Exarchat du patr. Russe en Europe occid. ,n° 33-34, Paris, 1960.
Pela mesma razão, a importância decisiva do fato como tal, ele retira da iconográfia dessa
festa o apóstolo PAUL como sendo estranho ao acontecimento.
Esse mesmo assunto está no centro das preocupações do monge EUTHYME. Segundo ele,
« convém mesmo de pintar a imagem de Deus – Pai », mas essa imagem é , para ele, o
í
Verbo encarnado, o Cristo que é representado Criança no colo de Sua Mãe, adolescente de
12 anos no templo, e depois o adulto, « tal como Ele viveu no mundo e fez milagres » e
assim como Ele foi visto pelos Patriarcas e pelos profétas : EUTHYME condena severamente
a imagem dita « PATERNIDADE » , vendo nela, «tanto por parte dos pintores quanto por
parte daqueles que a encomendaram , uma audácia desprovida de todo sentido ». Como o
tinha feito em seu tempo o monge ZÉNOBE, ele faz chegar até sua conclusão lógica a
transposição da imagem verbal em ícone e coloca na luz seu absurdo. Assim os iconográfos
pintam Jésus « sentado usando vestimentas episcopais » ; mas o Senhor também é
chamado de sacerdote, higúmeno, cordeiro, pastor, rei dos reis «e existem ainda grande
número de outros epítetos ; e se os iconográfos começam em pintar o Cristo como
sacerdote levando o PHELONION, o EPITRACHILION e o resto, ou ainda na imagem de um
monge higúmeno , o que haveria de mais absurdo que aquilo ? »(83).
(83). « Questions et réponses concernant l’ iconographie russe », ibid., em russo. Ver « Materiais ». As
paginas não são indicadas ,pois foram confundidas.
í
eternos tormentos » e essa Palavra é representada por um filactério ou um livro. Ou ainda ;
« Agora alguns iconográfos pintam os santos Apóstolos segundo modelos alemãos, com os
intrumentos da tortura que eles sofreram. »Mas não apenas os Apóstolos , também « os
santos Mártires são até hoje representados segundo a antiga tradição, segurando não
instrumentos de suplício , mesmo se eles sofreram torturas diversas, mas a Cruz do Cristo ;
eles mostram assim que eles sofreram para Aquele que nela foi crucificado, que por ela,
eles foram fortificados nos sofrimentos, que eles se gloriam agora ainda por ela e não por
instrumentos de suplício ». Ou seja, o que importa, não é o modo da execução em se, mas o
seu sentido : a particularidade do iconográfo ortodoxo, russo particularmente, sempre foi
aprofundar o sentido e não reduzir ele ao aspecto episódico, próprio à iconográfia
ocidental. Para a consciência ortodoxa, não é o tipo de morte infligido aos santos que
conta, mas sim o seu testemunho do Cristo, de Sua Encarnação e de Sua missão redentora .
Assim como o Patriarca JOACHIM, EUTHYME reage violentemente contra o abandono da
Tradição na representação da Mãe de Deus que «os iconográfos pintam igualmente a partir
de modelos latinos , a cabeça sem véu, cabelos esvoaçados... ». « A Santíssima Mãe de
Deus, desde que noiva de José(...) não mais usou os cabelos soltos e si o véu, se bem que
Ela sempre foi e é ainda virgem ».Ou seja, tal representação da Mãe de Deus não
corresponde historicamente a Sua situação social. (84).
(84). Um dos emprestimos latinos citado por EUTHYME é a imagem da Virgem « em pé sobre a lua ».
Provavelmente é questão da imagem dita « Santa Sofia de Kiev ». Esse assunto apareceu no Ocidente no
fim de séc. XIV com um sentido teológico bem preciso ; o do símbolo da Imaculada Concepção. « Sabe se
até que ponto a opinião católica sobre a Imaculada Concepção era difundida no meio dos teológos de Kiev
no séc. XVII(...). Os membros da Congregação da Academia de Kiev devia confessar que « Maria estava não
apenas sem pecado efectivo, mas também sem o pecado original »( G. FLOGOROVSKY, La Vénération de
Sophie La Sagesse divine de Byzance et de la Russie, Obras do 5° Congresso das organizações
académicasrussas fora das fronteiras, 1° parte, Sofia, 1932,pp. 498 e 500, em russo.)
Mas é com a imagem de SOPHIE, a SABEDORIA divina , que EUTHYME se revoltou bem mais
severamente ; « A Sabedoria hipostática, como o Verbo e o Poder, é o Filho de Deus. E se
ouse – se pintar a Sabedoria sob certa forma inventada, daqui a pouco, começará ousar
pintar por via de outra invenção o Verbo, e ainda outra para o Poder, e o que de mais
absurdo teria depois disso ? »(85).
(85). EUTHYME pensa sem dúvida na imagem de Sofia de NOVGOROD. Durante séculos essa imagem
provocou explicações tão variadas quanto arbitrárias do seu « sentido miserioso » : Isso leva à reflexão e
mostra em todos os casos até que ponto existe ali falta de clareza.
« Para tudo isso, diz EUTHYME, temos de interrogar os mais sábios, para que eles explicam
com mais exatidão , segundo as Escrituras e não por silogismos humanos, ou sejam
reflexões mentirosas. Pois os Santos ordenam segundo a Tradição dos santos Apóstolos,
fugir os silogismos que levam à mentira ; se (dizem os santos) abandonemos a fé para os
í
silogismos , nossa fé sera perdida, pois não mais acreditaremos em Deus, mas nos
homens. » O monge EUTHYME termina a sua fala formulando o desejo de ver a Igreja
decidir dessas questões. « Tudo isso que foi escrito, deve ser apresentado aos bispos
consagrados para que eles dêem certeiro testemunho da verdade e para que o que convém
guardar seja guardado, que o que não convém guardar , seja rejeitado. Quanto ao que é
duvidoso, que seja endireitado pelo julgamento da Igreja. »
A ciência , tanto anterior quanto posterior à Revolução, apreciou de mais , as vezes até com
entusiasmo , os tratados do séc. XVII sobre a teoria da arte e o papel que eles tiveram. Os
cientistas de antés da Revolução vêem neles uma renovação das ideias e de princípios em
desuso e da própria arte que imitava modelos antigos. Alguns até enxergam no tratado de
VLADIMIROV « um raio de luz no desenvolvimento das ideias artísticas da velha Rússia ».
(86).
(86). G. FILIMONOV. « Simon OUCHAKOV et son époque dans l’iconographie russe », SBORNIK Ob.
DREVNEROUSSKOGO ISKOUSSTVA, Moscou, 1873, p. 81, em russo.
Para os cientistas de nossos dias, o valor dos tratados reside no fato d’ eles terem
contribuído à formação das ideias estéticas da arte profana nascendo, isso no contexto
geral das mudanças apresentando – se dentro do regime e cultura dessa época. Eles
contribuíram à implantação de uma maneira praticamente nova de ver a criação do artista
e a desacralizar a arte da Igreja.
í
Desacralizando – se a arte pretende continuar sacra. Sem dúvida, a arte profana nascendo
afirma – se e adquire independência ; mas seus princípios aplicam – se também à arte da
Igreja e a desnaturam. Essa mudança que acontece na arte sacra com certeza não é
desenvolvimento e nem é evolução. A evolução dessa arte correspondia e corresponde
sempre à orientação da vida espiritual e do estado geral da Igreja. Enquanto a Tradição da
Igreja era vivida de modo criativo, formas novas nasciam constantemente em seu seio e
desenvolviam – se segundo as próprias leis internas, leis espirituais. No séc. XVII
igualmente a arte da Igreja que continua tradicional evolui ; mas esta evolução,
correspondendo à vida eclesiástica da época, orienta – se para o conservadorismo e o
artesanato. Não é o « último século da arte russa antiga », do ícone ; mas também não é o
esgotamento interior da arte sacra, como se pensa freqüentemente. Assim como a própria
Igrejanem pode desaparecer e nem esgotar – se , sua arte também nem pode estancar – se
ou desaparecer. Mas para um período muito longo essa arte cessa de ter um papel
dominante de porta – voz da fé e da vida ortodoxa.
A visão que a Igreja tém do mundo não evolui : em nossa época ela permanece a mesma ,
assim como a Igreja permanece a Igreja. Mas, no contexto das formas do regime e da
cultura, duas culturas diferentes e duas visões de mundo chocam – se sob a bandeira
comum da ortodoxia. A visão de mundo própria à cultura nova penetra na consciência dos
fieis e em sua vida espiritual. E com ela « implanta – se uma tradição estrangeira, artificial,
exteriora que bloqueia os caminhos da criação »(88) ; sendo tudo bloqueiado tanto no
pensamento teologico quanto na arte.
(88).G. FLOROVSKY. Les voies de la Théologie russe, ibid., p. 49.
A ortodoxia viu introduzir – se em seu seio uma concepção da imagem e de sua criação
independentes da experiência espiritual. A piedade dos fieis permanece bem ortodoxa, mas
o pensamento deles e criação destacam – se da ortodoxia ; eles vivem de modo ortodoxo,
mas pensam de modo heterodoxo ; a sua atitude em relação ao santo ícone permanece a
mesma , mas eles a criam de modo ocidental. A integridade espiritual desagrega – se, o
homem do séc. XVII prossegue profundamente fiel, mas na criação ele é atraido por um
conhecimento não cristão de mundo do qual a sua fé não lhe oferece mais o sentido. As
experiências sociais do pintor, múltiplas e variadas , misturadas à fé, marcam a sua arte(89).
(89). Dali surge a inquietude que se pode entrever , entre outras, nos contratos passados com os
iconográfos nesta época. « Que nada de incompatível com a santidade da Igreja seja introduzido Nela »
( ver G. BRUSSOV, les Fresques de YAROSLAVL, Moscou,p. 15, em russo) Tais clausúlas encontram – se
freqüentemente nos documentos católicos romanos, mas elas imaginam – se mal na Igreja ortodoxa nas
épocas de DENYS ou de ROUBLEV...
í
Uma característica ambiguidade do séc XVII ; a defesa das formas tradicionais da arte e sua
destruição encontram – se lado à lado não apenas na mesma classe social, mas as vezes na
mesma pessoa. E o que havia de trágico na atitude de SIMON OUCHAKOV, é que eles
sapavam justamente o que eles defendiam com tanto ardor e convicção.
Ao considerar a arte sacra no seu conjunto, pode se enxergar que no séc.XVII a decadência
espiritual que age no mundo ortodoxo inteiro chegou até uma perda completa da
concepção ortodoxa da imagem, um desconhecimento total de seu sentido. Nisso está a
razão principal de decadência por uma parte, de sua desacralização por outra parte.
Medidas exteriores procuravam elevar o seu nível artístico, enquanto a sua decomposição
era espiritual, e são documentos oficiais das próprias autoridades eclesiásticas que são,
nesse sentido, os mais característicos. Já vimos que o ECRIT dos Três Patriarcas está
marcado por uma ausência completa de todo fundamento teológico da imagem. As
profissões de fé que aparecem no séc. XVII em reação à CONFISSÃO Calvinista do Patriarca
CYRILLE LOUKARIS são tão características quanto. São essas : Confissão de fé do metropolita
Pierre MOGHILA, remanejada e assinada mais tarde por quatro Patriarcas e vingt e dois
bispos, conhecida sob o título CONFISSÃO Ortodoxa, le MESSAGE DES PATRIARCHES DE L ‘
EGLISE CATOLÍCA DO ORIENTE CONCERNINDO A FÉ ORTODOXA ( La Confession du
Patriarche DOSITHÉE de JÉRUSALEM), e le CATECISMO de P. MOGHILA. Todos esses
documentos têm um carácter nitidamente latinizante e todos, no domínio da arte sacra,
apenas segam o conjunto das correntes de pensamento impostas pelo protestantismo, às
cegas ; eles limitam – se em justificar essa arte e refutar a acusação de idolatria. O seu
contúdo e espírito não estão indo além dos quadros do Concílio de Trente (1563) e o
CATECISMO de P. MOGHILA apenas repete em abreviado a decisão desse Concílio. O que
ainda mais caracteríza esses documentos, é a ausência de qualquer teológia. Tudo acontece
como se a teológia patrística da imagem jamais tivesse existido. Mesmo nas referências ao
7° Concílio Ecumênico , os autores e signatários apenas fazem, como no Concílio de
TRENTE, a exposição de como convém venerar os ícones. É totalmente típico também que
seja justamente no séc. XVII que tudo o que tém a ver com o conteúdo doutrinal da
imagem desaparece no SYNODICON russo do Triunfo da Ortodoxia.
A herança patrística cessa de ser um critério e isso as vezes manifesta- se de forma absurda.
Assim no séc. XVI (1512) aparecem no « CHRONOGRAPHE» as « Prophéties des Sages
Hellènes », uma compilação de diversas traduções composta por um autor desconhecido.
Profecias inventadas para a defesa da encarnação e do dogma trinitário são postas ali na
boca de filósofos da Antiguidade e outros ou até de deuses pagãos. Essas
« Prophéties »foram depois introduzidas em livretos diversos e foram publicadas
particularmente no séc. XVII. (90).
í
(90). Elas também são incluídas em certas edições de carácter polémico , tais como LE LIVRE DE CYRILLE
(1644), contendo obras patrísticas que explicam a doutrina ortodoxa. Artigos contra os heréticos ( arianos,
iconoclastas, latinos, armenianos...)lhes são incluídos e no meio deles « Les Prophéties des Sages Hellènes »
destinadas sem dúvida à luta contra as heresias.
De acordo com essa literatura, esses « Sages Hellènes » aparecem nas igrejas russas sobre
as paredes, portas e até sobre os ícones ; mais tarde eles serão representados até na
iconostase, abaixo da fileira local. Essas imagens são acompanhadas das « Prophéties »
correspondentes às dos livretos, escritas seja nos filactários, seja no fundo da imagem.
Assim : « Hermès Le trois fois Grand (...) explica sua teológia ; é árduo compreender Deus,
impossível explicar Ele ; pois Ele é tri – Hipóstatico e inefável, um ser e uma natureza que
não encontram nada semelhante no meio dos homens » ; MÉNANDRE : « A Divindade é
inexorável , indizível e indestrutível, composta e glorificada em Três Pessoas, ouvida e
glorificada pelos homens. Deus deve nascer da pura Virgem Maria e é Nele que eu também
acredito. » HOMÈRE ; « Um astro replandecerá diante dos mortais ; o Cristo no meio das
nações, Ele viverá estranhamente querendo unir os terrestres aos celestes. » APHRODITION
( Persã com espírito perverso que foi violentemente acusado no seu tempo por S. MAXIME
O GREC ) : « O Cristo vai nascer da pura Virgem Maria e eu acredito igualmente Nele » (91)
e assim por diante.
(91). N. A. KAZAKOVA. « Les Prophéties des Sages Hellènes et leurs repésentations dans la peinture russe »
Troudy Otdéla Drévnérousskoï Litératury XVII, Moscou, 1961, p. 368, em russo.
Mas de fato, essas provas inventadas por inteiro fazem parte das « invenções e
delírios » na iconográfia, que inundavam a arte sacra e por meio das quais eles esforçavam
– se também para provar algo. É marcante e revelador do estado de pensar do séc. XVII que
essas « PROPHÉTIES »aparecidas porém nas principais igrejas do KREMLIN (as catedrais da
Assunção e da Anunciação), não tenham provocado nenhuma reação.
Mesmo os documentos consagrados à crítica da pintura ruim e dos erros iconográficos não
dizem nada contra tais « provas »doutrinais. Ao contrário, alguns manuais iconográficos
dão instruções para saber como convém pintar os « Sages Hellènes » com as suas
« Prophéties ».
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O interesse acrescido para a Antiguidade, para a sabedoria externa, contamina a
consciência eclesial e a desnatura. Isso se manifesta , por uma parte sob a forma malsã de
falsas profecias, e por outra parte por um conjunto de noções baseadas na razão natural
dos filósofos e de textos de Padres da Igreja. Testemunho o ECRIT des TROIS PATRIARCHES,
na sua argumentação a respeito da arte. Podemos ver a mesma mistura no domínio
propriamente teológico, por exemplo no SYMÉON de POLOTSK, latinizando e partidário da
arte nova. Assim no seu trabalho LA COURONNE DE LA FOI, que o Patriarca JOACHIM
chama de « Coroa de espinhos prejudiciais crescidos no Ocidente » (93), SYMÉON se refere
indiferentemente aos Padres da Igreja e a uma serie de escritores pagãos.
(93). A. V. KARTACHEV, HISTOIRE..., ibid., t.II, p. 247.Assim como certos de nossos contemporáneos, «
SYMÉON não dava muita importância às divergências entre as igrejas gregas- ortodoxas- e católicas »( a.
M. PANTCHENKO, « La Parole et la Connaissance dans l’ Esthétique de SYMÉON de POLOTSK »Troudy
otdéla drévnérousskoïliteratoury XXV, Moscou, 1970,p. 236, em russo).
í
composições de MARTIN MILTCHEVSKY, diretor da capela dos RORANTISTAS de Cracovia, celebre nesse seu
tempo. (Ver G, FLOROVSKY, Les Voies de la Théologie russe, ibid., p . 74)
É característico que toda tentativa de voltar à norma corrigindo os erros, ao menos os mais
grosseiros, chocava – se contra a oposição e sem qualquer vergonha era qualificada de
« heresia ». Ainda é mais espantoso que, paralelamente à todos esse fenómenos malsãos,
os ícones por sua grande maioria, (fora naturalmente da corrente nova e suas
deformações) mantenham – se sempre, no séc. XVII, num nível espiritual e artístico
elevado, o que é testemunhado por aquelas que chegaram até nos. E mais ainda, é a
pintura dos ícones que representa o elemento mais sádio da vida litúrgica da Igreja russa.
A decadência geral da vida espiritual na ortodoxia entregou ela à pressão das confissões
ocidentais. Nem diante do Ocidente com a sua guerra intestina ( a crise dos séc. XVI e XVII),
nem em sua própria vida, face aos problemas que existiam, a ortodoxia conseguiu
manifestar a sua força vitale e criativa. Na oposição às confissões ocidentais, os teológos
ortodoxos lutavam às cegas, recorrendo , na sua luta contra o catolicismo, à argumentos
protestantes, na luta contra o protestantismo usando argumentos católicos romanos. Isso
não significa que a própria ortodoxia foi mudada. O pensamento teológico estava
paralisado , mas a vida espiritual continuava. A Igreja não modificou em nada a sua
doutrina e não adotou nenhum falso dogma. « Por tão baixo que tenha sido o nível do
ensino teológico em razão das circunstâncias historicas, e apesar das influências
heterodoxas que penetravam – a, a Igreja ortodoxa católica continuava conservando em
seus fundamentos a fé dos Concílios Ecumênicos e dos Santos Padres ; ou seja mais
exatamente, ela era a Igreja dos Concílios ecumênicos e dos Santos Padres »(96).
(96). Arcebispo BASÍLIO, « Les textes symboliques dans l’ Eglise Orthodoxe », Messager de l ‘ Exarchat du
Patriarche russe en Europe occidentale, n° 49, 1965, p 11.
NB. P. 342 está ocupada por um ícone em preto e branco n° 38, Santo Encontro. Ícone do
séc. XVII, Muséo A. ROUBLEV, Moscou.
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A corrente nova na arte modifica não apenas a concepção mesma da imagem e de seu
conteúdo, não apenas desvia a imagem de seu destino direto e imediato ; mas modifica
naturalmente também a consciência do artista.
Na imagem sacra tradicional tanto o conteúdo quanto a forma são definidos pelo protótipo
representado, esse protótipo cujo o estado interior difere radicalmente do estado atual do
homem pecador ; é a sua participação à vida divina, sua santidade que define uma e a
outra. É o homem que é na arte sacra ortodoxa, o assunto principal, para não dizer único.
Nenhuma arte oferece ao homem tanta atenção , nem o eleva a altura comparável à qual o
eleva o ícone. Tudo o que ele representa é ligado ao homem ; paisagem, animais, plantas...
Na hierarquia dos seres, é ele que ocupa a situação dominante ; ele é o centro do universo
e o mundo que o cerca é representado no estado que lhe comunica a santidade do homem.
Ora os pintores da corrente nova apegam – se a representar o santo assim como se ele não
fosse santo.
O corpo do homem e seu mundo emocional parecem não ter de serem comprometidos
pela sua santificação.Tudo o que é ligado à natureza do homem e tudo o que o cerca é
representado como estrangeiro à santificação espiritual, à transfiguração. O homem
permanece ainda sim o assunto principal da imagem, mas em seu estado atual, não
tranfigurado. Essa « imagem do homem em toda a sua insignificância interior se perde no
meio da abundância de objetos, animais, plantas. Ele se torna apenas uma parcela desse
mundo grande e barulhento e não é mais apto em ocupar nele uma situação dominante »
(97).
(97). L’ histoire de l’ art russe, t. IV, ibid., p. 39, em russo.
Ele está rebaixado ao nível do resto da criação , perde sua soberania sobre ela. A hierarquia
do SER está rompida.
No séc. XVI, é a imagem da encarnação , a imagem do Cristo se perde nas alegorias, nas
parábolas, etc. Agora, são os frutos da encarnação , a imagem do homem deificado que se
dissolve numa imitação da vida corriqueira. A economia da segunda Pessoa da Trindade
estompa – se primeiramente, e depois a do Espírito Santo. A verdadeira relação entre a
imagem e seu protótipo , essa relação revelada com tanta profundidade e penetração no
ícone ortodoxo, agora está quebrada. Na fórmula « Deus se tornou homem para que o
homem se torna deus », a segunda parte parece eclipsar – se da consciência, ela não é mais
percebida existencialmente. A vida e a consciência destacam – se do próprio objetivo para
o qual o homem foi chamado ; a semelhança divina. Isso reduz ao nada a orientação
escatológica do ícone, privando – a de todo dinamismo. Ou seja, a imagem cessa de ser
uma revelação de Deus, « uma revelação e uma manifestação do que está escondido », ela
é privada de seu sentido cristão e de seu destino. Desde então, não há mais imagem
í
tipicamente cristã como expressão da vida e da doutrina cristãs. Apenas sobra o uso pelo
cristianismo de uma imagem que lhe é estranha, assim como para a consciência profana,
não há mais razão cristã iluminada pelo conhecimento de Deus - apenas sobra o uso no
cristianismo da razão humana natural. A arte cessa aos poucos de ser a linguagem própria
da Igreja para servir ela apenas de fora. É assim que sempre tinha sido e que ainda é no
catolicismo romano e essa maneira de ver começa sua penetração também no pensamento
ortodoxo (98).
(98). Daï a afirmação que se escuta as vezes não apenas por parte dos católicos romanos, mas mesmo da
boca de bispos ortodoxos ; Os Concílios não teriam , verdade seja dita, definido um tipo de imagem
eclesiástica especial.
A noção de autor torna – se o que ela é comummente hoje e a rota está aberta ao princípio
que , mais tarde, graças à corrente nova, se tornará dominante e expressará a vida oficial
da Igreja. Essa arte permanecerá estrangeira ao povo, até o momento no qual os meios
dirigentes, eclesiásticos e profanos vão impor ela por medidas administrativas.