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A EXILADA
Por que a ativista Buba Aguiar teve de deixar a favela de Acari, no Rio
TIAGO COELHO
“Se mataram a Marielle, o que vai acontecer comigo?”, repetia Buba Aguiar poucas horas depois da morte da vereadora do
PSOL. Àquela altura, a militante e outros dois parceiros do coletivo Fala Akari já haviam decidido fugir da comunidade
VINCENT ROSENBLATT_2018
A
ssim que entrou por uma das principais vias do Complexo de Acari,
Buba Aguiar correu os olhos miúdos pelas imediações. Parecia
conferir se tudo continuava do mesmo jeito desde que partira, à
revelia, na madrugada do dia 15 de março. A favela se alastra à margem
da avenida Brasil, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e tem cerca de 27 mil
habitantes. Naquela tarde de julho, a ativista negra de 26 anos, baixa e
com cabelos encaracolados, retornava à comunidade onde havia morado
por mais de uma década. Integrante do coletivo Fala Akari, que luta
pelos interesses da favela, a jovem estava ali para acompanhar o trabalho
da Defensoria Pública do estado. Desde a intervenção federal no Rio,
decretada pelo presidente Michel Temer em fevereiro, grupos de
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Buba Aguiar avançou com o grupo cada vez mais para dentro da favela.
À medida que a equipe se embrenhava, a pobreza recrudescia. Em
algumas ruelas, o esgoto corria a céu aberto. De acordo com o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Acari tem a menor renda per
capita entre os bairros do Rio (em torno de 175 reais) e ocupa a penúltima
posição no ranking de expectativa de vida (63 anos contra 80 anos na
Gávea, por exemplo).
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Q
uatro meses antes, no dia 10 de março, um sábado, a favela
amanheceu sob operação policial. Militantes do Fala Akari logo
receberam denúncias contra a PM. Por mensagens de áudio ou
texto, moradores relatavam que policiais haviam invadido residências
sem necessidade, percorrido as ruas com gritos de “Não vamos matar só
bandidos, não”, fotografado RGs dos trabalhadores e atirado a esmo.
“Andei pela comunidade naquela manhã e realmente presenciei muito
tiro, mas não vi conflito com traficantes. A polícia atirava para o alto”,
relembrou Aguiar. O Terceiro Comando Puro (TCP) é a facção criminosa
que domina a favela.
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Saber que o vídeo se propagara deixou a militante ainda mais tensa. “Se
mataram a Marielle, agora fodeu real. O que vai acontecer comigo?”, não
parava de repetir. Àquela altura, a decisão já tinha sido tomada. Ela,
Deley de Acari e outro parceiro do coletivo abandonariam a favela o
quanto antes.
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N
ão foi a primeira vez que a moça se exilou de Acari. Ela conta que,
em 2016, quando saía para trabalhar, três policiais a pegaram e a
puseram dentro de uma viatura, que seguiu até um ponto mais
ermo nos arredores da comunidade. “Permaneci quase uma hora em
poder dos caras. Eles me xingaram e fizeram com que eu tentasse engolir
uma bola de papel. Um dos policiais ainda me mandou limpar o cano de
seu fuzil com o dedo. Foi tudo muito sádico. Depois disso, fiquei onze
meses fora de casa.”
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Não raro, a militante escuta tiros em favelas vizinhas à sua nova casa. O
barulho também desencadeia nela as crises de ansiedade. “Pensar que
está acontecendo algo violento em alguma favela do Rio não só me
assusta, como entristece e revolta, porque meu ativismo não se limita à
minha comunidade.” Além de continuar trabalhando no Fala Akari,
Aguiar é captadora de recursos numa ONG cujo nome prefere omitir.
Não quer associar sua atuação política à entidade.
O estresse constante faz com que a moça durma mal. Vira e mexe, ela tem
um mesmo pesadelo: está numa favela desconhecida quando policiais
aparecem, a encostam numa parede ao lado de outra ativista e atiram em
volta das duas sem atingi-las. Elas correm, entram num salão de beleza e
se escondem debaixo de uma pia enquanto ouvem os passos de um
policial que se aproxima. Nesse momento, a jovem sempre acorda –
suada, com palpitações e tremendo.
B
runa Aguiar nasceu e se criou em São João de Meriti, na Baixada
Fluminense. Filha única de uma empregada doméstica negra e de
um serralheiro com traços indígenas, ambos nordestinos, recebeu o
apelido de Buba ainda menina. O avô paterno integrou as Ligas
Camponesas, organizações criadas pelo então Partido Comunista do
Brasil (PCB) na década de 40 e extintas após o golpe militar de 1964, que
pleiteavam a reforma agrária.
Na infância, Aguiar exibia a pele mais alva e os cabelos mais lisos do que
hoje. Não se parecia muito com a mãe, que se melindrava em sair de casa
junto da criança, pois sempre perguntavam se a garota era mesmo sua
filha.
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O
41º Batalhão de Polícia Militar patrulha quinze bairros cariocas.
Enquanto trabalhavam, seus integrantes mataram 567 pessoas nos
últimos sete anos. De 2013 a 2016, o batalhão foi o mais letal do
estado. Em 2017, ocupou o segundo lugar no ranking de mortandade e,
durante o primeiro semestre de 2018, caiu para a terceira posição.
Como faz parte do Gaesp – que, por sua vez, está ligado ao Ministério
Público do Rio –, Cunha Júnior tirou algumas conclusões acerca do 41º
BPM. “O batalhão vigia uma área particularmente conflituosa da cidade,
onde atuam três facções criminosas: Comando Vermelho, Terceiro
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Durante uma das palestras que Cunha Júnior proferiu no 41º BPM, um
oficial perguntou o que estava autorizado a fazer numa incursão à favela.
O palestrante respondeu: “Se você ficar na dúvida, pense no que faria
caso estivesse num bairro rico, como o Leblon.” O policial rebateu
dizendo que, no Leblon, não seria recebido a bala. “Ele tinha razão”,
admite o promotor. “Mas argumentei que o Estado democrático de
direito não é um bibelô, um brinquedinho que se oferece apenas às
regiões mais abastadas da cidade. Tentei mostrar que, mesmo num
espaço conflagrado, é necessário agir dentro da lei.”
A
pós a operação policial denunciada por Marielle, o Complexo de
Acari presenciou outro momento crítico em 12 de junho. Na ocasião,
o inspetor Ellery de Ramos Lemos, chefe de investigações da
Delegacia de Combate às Drogas, morreu baleado durante uma ação
contra o tráfico. Três dias depois, o delegado Marcus Amim, comentarista
de segurança pública do telejornal SBT Rio e amigo do policial
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A
sala do Cineclube Ricamar, em Copacabana, estava quase às moscas
na noite de 6 de agosto. Apenas doze pessoas se espalhavam pela
plateia. A ativista chegou justo na hora em que o filme À Queima
Roupa começava e se sentou sozinha numa fileira vazia.
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E
ncontrei Buba Aguiar pela primeira vez em meados de maio, à
noite, no Centro do Rio. Caminhamos por uma rua estreita e escura
até um boteco. Fazia apenas dois meses que Marielle Franco havia
sido assassinada a poucos quilômetros de onde estávamos. Temeroso de
que algo nos acontecesse, eu olhava para todo lado e desconfiava de cada
sombra projetada pela luz alaranjada dos postes. Aguiar, ao contrário,
parecia tranquila.
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