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O debate sobre a universidade e o seu papel institucional por meio das

obras de Antonio Candido

Thales Biguinatti Carias

De acordo com o historiador alemão Reinhart Koselleck, a modernidade


configurou-se com base numa disjunção temporal entre um certo espaço de experiência
e um correlato horizonte de expectativas. Para o autor, essa disjunção entre as duas
categorias de orientação temporal possibilitou a ruptura com uma concepção cíclica do
mundo – onde a análise do passado garantiria elementos finitos de predição do futuro –
em favor de uma concepção progressiva do mundo, onde o passado e o presente não
teriam mais afinidades, posto que o presente deveria sempre caminhar para algo
diferente e essencialmente melhor do que esse passado.
Nesse sentido, Koselleck nos lembra que os sujeitos históricos pós-Revolução
francesa, sejam individuais ou coletivos, recolhem no campo de experiência não os
elementos necessários para aprender com o passado, mas aqueles elementos que irão
possibilitar mensurar em qual escala do progresso contínuo da humanidade esses
sujeitos se encontram no momento e como intervir para que os mesmos alcancem
patamares mais altos.
O trabalho que ora apresentamos busca, a partir dessas orientações, compreender
os elementos constitutivos de um certo campo de experiências a partir de Antonio
Candido de Mello e Souza. A questão central de análise é a própria experiência
universitária de Candido. Nossa hipótese de trabalho é a de que podemos compreender
momentos importantes da obra de Candido se tivermos bem delineado esse campo de
experiência que se reflete numa certa concepção de mundo a ser elaborada por esse
sujeito histórico em sua obra, bem como em sua atuação institucional.
Em outras palavras, acreditamos que a experiência e vivência universitária de
Candido nos fornece uma chave de leitura tanto para seus posicionamentos
institucionais quanto para pontos importantes de sua visada intelectual. Há, nessa
proposição, um contraponto à ideia de uma “crítica sociologizante” em Antonio
Candido. Quem já discutiu isso em tese de doutorado foi Rodrigo Martins Ramassote.
Para o autor, não há que se falar numa crítica sociológica para Antonio Candido, posto
que este transita entre esses polos sem enviesar um ou outro, mas servindo-se de ambos
para construir suas linhas interpretativas.
O que queremos apontar, alternativamente, é que essa polêmica entre uma crítica
e uma sociologia, ou mesmo de uma gradação de disciplinas das quais Candido se serve
para subsidiar seus escritos deve ser relativizada em favor de uma espécie de ética. Essa
ética de Candido é o que preside suas preocupações teórico-críticas e nos revela mais
sobre suas escolhas como sujeito histórico e como autor do que um determinado pendor
ora para a crítica literária ora para a sociologia.
É fundamental, portanto, termos em mente que esse campo de experiência
abordado nos parece decisivo para identificarmos os pressupostos éticos da escrita de
Candido. Nesse sentido, faz-se fundamental uma rápida menção às questões relativas à
formação da Universidade de São Paulo no ano de 1934. Nosso ponto de partida aí se
encontra porque precisamos compreender em que medida a USP se concretiza como um
projeto das elites paulistas, das quais Antonio Candido se insere em meio a seu processo
de formação intelectual.
Sérgio Miceli e outros pesquisadores, como Luiz Antonio da Cunha,
subscrevem, nesse sentido, a ideia de que a USP teria nascido a partir de uma reação
dessas elites paulistas à derrota de 1932. É o próprio Miceli, em sua tese de
doutoramento intitulada “Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945)” quem
crava a ideia de que essa reação demonstrava uma falta de leitura das oligarquias
paulistas para a questão social, levando-as a investir na USP como formadora de novos
quadros políticos mais do que na promoção de novos canais de relação entre as classes
dirigentes e o povo, cioso de garantias e direitos básicos que são, por sua vez,
irreconciliáveis com a ordem oligárquica definitivamente abalada no pós 1932.
O que buscamos, no primeiro capítulo da tese que estamos desenvolvendo e que
não convém trazer com muitos detalhes para o momento, é relativizar esse aspecto de
reação cega à derrota de 1932 mostrando que, dentro da oligarquia paulista, sobretudo a
oligarquia que cerrava fileiras no Partido Democrático e no editorial do jornal “O
Estado de São Paulo”, havia um claro projeto de universidade como resposta às crises
sociais da década de 1920. Nesse sentido, não há que se falar num erro de cálculo
quando a universidade cumpre um papel social para essa elite antes e depois de 1932.
Essa mesma elite, diga-se de passagem, que esteve a frente do processo de criação e
implementação da universidade de São Paulo.
Nesse sentido, é emblemático o depoimento dado por Antonio Candido para a
rádio USP no ano de 1990.
“Você sabe que quem teve mesmo a ideia da universidade foi o Júlio de
Mesquita Filho. Era a grande ideia dele. E ele era associado ao Fernando de Azevedo.
Havia muitas outras pessoas envolvidas nisso. Mas nas conversas da redação do jornal
“O Estado de São Paulo”... ali que nasceu a ideia de universidade. (...) Então resolveram
fundar essa faculdade e escolheram como primeiro diretor o professor Teodoro Ramos,
que era professor da Politécnica. E o Professor Teodoro Ramos foi encarregado de ir à
Europa escolher os professores. Aí, creio que foram os doutores Júlio de Mesquita Filho
e Fernando de Azevedo que estabeleceram o seguinte princípio: para as ciências
humanas e filosofia, não podemos contratar professores italianos por causa do fascismo.
Para ciências humanas e filosofia, tem que vir os professores franceses; que é um país
democrático, ligado com as ideias liberais e com as ideias de esquerda. Então, fica
estabelecido que, dos países fascistas, virão apenas professores para as ciências, que não
têm ideologia. (...) isto para mostrar a você que, ao contrário do que muitas pessoas mal
informadas pensam, dizem e escrevem hoje em dia, a oligarquia paulista liberal, que
pensou na faculdade, pensou com um espírito muito aberto. É preciso fazer justiça e não
ficar fazendo esquerdinha a propósito de tudo.”

Nesse trecho, bem como nas fontes primárias que já tivemos a oportunidade de
coligir, resta evidente que havia uma concepção liberal de universidade a presidir a
implementação da USP. Para além disso, fica claro também que as missões estrangeiras
tinham o propósito de formar as primeiras turmas no rumo das ciências. Ou seja, era
nítida, no Brasil, a noção de que não havia um corpo docente coeso e definido que fosse
capaz de criar um programa de ensino nos moldes dos padrões universitários europeus.
Nesse sentido, e ainda num sentido latu de motor do desenvolvimento social, a USP
parece representar um esforço dessas elites para alcançar os patamares de
desenvolvimento de países de maior progresso. Estavam, portanto, as elites preocupadas
com a universidade sentindo o tempo histórico numa dimensão de atraso social
proporcionado por um campo de experiências que promoveu essa primeira missão
formadora, francesa e italiana, dentro de um horizonte de expectativas para o quadro
político e cultural mais amplo do Brasil.
A turma de ciências sociais de Antonio Candido, sendo a primeira a se formar na
USP, evidentemente, estaria a par desse campo de experiência. Nesses termos, pretendo
evocar o processo formativo de Candido. Não como aluno de ciências sociais e, depois,
como professor assistente de Fernando de Azevedo, mas como professor do curso de
Teoria Literária e Literatura Comparada. É preciso compreender que, para chegar nesse
cargo, Candido operou uma verdadeira peregrinação, como nos narra o já citado
Rodrigo Ramassote em sua tese de doutoramento.
A primeira etapa desse processo formativo se refere ao concurso disputado por
Candido no ano de 1945. Deste concurso, resultaram duas publicações: a coletânea de
artigos de jornal intitulada “Brigada Ligeira” e a sua tese “O método crítico de Sílvio
Romero”, que lhe garantiu o título de livre docente em letras, mesmo formado em outra
área, no caso, a das ciências sociais. Não obstante essas duas publicações já de peso,
Antonio Candido fora preterido em função de José Aderaldo de Castello. Esse já
ocupava o cargo interinamente e fora escolhido por critérios que não constavam no
edital. No dia seguinte ao concurso, Antonio Candido figurava nas páginas do jornal “O
Estado de São Paulo” como o vencedor moral do pleito, posto que ele tinha mais
currículo do que o ganhador de fato.
Para que Candido pudesse se sagrar professor concursado pela USP, portanto, o
caminho a ser percorrido deveria ser mais longo. Nesse sentido, dois pontos são
marcantes nessa trajetória. O primeiro é a publicação de “Formação da Literatura
Brasileira”. Livro de fôlego que iria marcar sobremaneira o debate crítico da época e
que continua como grande referência. Concomitantemente, Candido ruma para Assis,
onde será peça fundamental para o planejamento e estruturação da faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Assis a partir do ano de 1958, retornando à USP no ano
de 1960, mas ainda como professor interino.
Essa passagem de Candido por Assis é vista na tese de Ramassote como
momento onde ele irá estabelecer um rito de passagem da sociologia à crítica literária.
Nós compreendemos que essa é uma leitura pertinente, porém, procuramos historiar
esse momento desde uma outra perspectiva. Pretendemos argumentar que, por meio de
uma frente variada de atuação, Antonio Candido promoveu um esforço de projeção de
sua concepção de universidade como ruptura com as relações de compadrio. Esse
projeto universitário envolve: 1 – o desenvolvimento de um método de análise centrado
na obra e desenvolvido como base para suas aulas, resultando inclusive na publicação
de “Na sala de aula”; 2 – a atuação em Assis no sentido de estabelecer horário de
estudos, projetos de pesquisa, bem como o esforço para a garantia de estrutura física e
material para o desenvolvimento dos mesmos; 3 – O esforço em levar para Assis e
planejar o II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária e 4 – O trabalho de
orientador responsável pelos primeiros projetos do curso de letras a serem contemplados
pela FAPESP.
Dessa forma, a atuação de Antonio Candido não só o ajudou a promove-lo
crítico literário reconhecido como também foi fundamental para que o projeto das
oligarquias paulistas de 1934 de universidade como motor do desenvolvimento pudesse
se autonomizar no sentido de não depender mais das missões francesas.
Desta feita, podemos enxergar Candido como um dos agentes promotores deste
projeto de desenvolvimento social que era a USP, universidade sentida temporalmente
como forma de diminuir a diferença de progresso entre o Brasil e os grandes centros
produtores de conhecimento do mundo. Como conclusão, reforçamos que esse campo
de experiência do qual Candido partilha e dele se vale para empreender seu projeto
intelectual não é verificável apenas nas movimentações institucionais, mas na própria
análise que ele faz. É o caso, por exemplo, do capítulo de formação da literatura
brasileira dedicado aos neoclássicos brasileiros que tematizaram a reforma da
universidade de Coimbra. Como também podemos colocar nesse patamar, o estudo de
Candido sobre Nicolau Tolentino, figura política interessante que se vale do cargo para,
em pleno império de D. Pedro II, instituir o concurso público como critério de seleção e
não mais as indiações resultantes das relações de compadrio.

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