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CANDIDO, Antonio.

Um funcionário da monarquia: Ensaio sobre o segundo


escalão. RJ: Ouro sobre azul, 2002.

PREFÁCIO:

Objeto do livro: traçar um quadro geral do tipo social do “self-made man” no


Brasil monárquico e suas relações com a classe média de então a partir da biografia de
Nicolau Tolentino.

Hipótese de trabalho: “sugerir como, numa sociedade de favor, a competência


profissional podia granjear a estima dos líderes, mas também levar a conflitos com a
engrenagem do patronato, essencial para a atuação desses líderes.” (p. 9)

CAP. I – Os funcionários:

Ser funcionário público no Brasil do século XIX era estar em relação constante
com os “donos do poder”.

Contemporaneamente, o serviço público logrou mais impessoalidade e


indistinção, executado por pessoas inseridas no contexto da expansão urbana.
“É mais preparado, tende a ser um técnico, mas vale menos diante da burguesia
mais rica, mais vasta, mais aninhada nas vantagens e benefícios do conforto que se
compra”. (p. 11)

Mas, e quando essa regra não era aplicada? Como pensar no funcionário público
que chegava e ascendia aos cargos mais elevados da Corte sem um padrinho ou outros
fatores marcados por essa sociedade do favor?
“Seria interessante para os historiadores avaliar qual era a proporção do esforço
pessoal e do mérito inicialmente desajudado, assim como da competência lentamente
adquirida, numa sociedade de prebenda e mercê, onde no fundo trabalhar era feio, o
funcionário parecia não trabalhar e frequentemente não trabalhava mesmo. Ignoro se há
estudos desse tipo. Mas gostaria de fornecer alguns dados sobre um burocrata imperial
que saiu do nada e chegou a posições elevadas, capitalizando o esforço para conquistar
apoios e praticamente reivindicando as vantagens com base no mérito. Não pretendo
forçar generalizações, mas apenas contribuir para caracterizar um tipo social daquele
tempo: o do alto funcionário que extravasa da burocracia sem todavia chegar às
lideranças. Por tabela, esta crônica de fatos talvez sirva para sugerir um dos modos
pelos quais se configurou o comportamento burguês no Brasil moderno, a partir do
recrutamento de pessoas das camadas modestas que, à medida que iam recebendo as
vantagens da ascensão, assimilavam os interesses, o ideário e o modo de viver das
camadas dominantes, perdendo qualquer veleidade potencial (estruturalmente viável) de
se tornarem antagônicas a elas. Finalmente, a história de funcionários deste tipo pode
ajudar a esclarecer um aspecto pouco conhecido da vida política e administrativa do
império: a relação entre o primeiro escalão, iluminado pelos faróis da história, e o
segundo, geralmente perdido para a memória da posteridade.” (p. 13)

CAP. II – Construir uma carreira:

Nicolau Tolentino (1810, Arraial da Praia Grande (atual Niterói)).

Filho de lavradores modestos e criado por uma tia solteira, Maria Benedita
Tolentino.
Candido o caracteriza como “burocrata predestinado”.
Primeiras referências a Nicolau que constam nas buscas de Antonio Candido em
arquivos: 1858 (ofício ao Marquês de Olinda – ministro do império e presidente do
Conselho). Neste documento, Nicolau Tolentino alega que já servia ao Estado há 34
anos. Pelos cálculos, Nicolau teria ingressado no serviço público por volta de 1825.
Em 1862, em novo documento, ele dizia ter 37 anos de serviço público. Pelas
contas, voltamos ao ano de 1825. Para Candido, isso é indicativo de que Nicolau
ingressara no serviço público já aos 14 anos, daí o termo “burocrata predestinado”.

Em 1826, Tolentino faz um requerimento para exercer função em caráter de


estágio, mas não é admitido, pois já havia um pretendente ao mesmo cargo que já
contava 3 anos de serviço no exército. Por essa informação, Candido considera que, ao
ingressar tão novo no serviço público, Nicolau Tolentino tenha tido um serviço muito
precário, com uma remuneração muito baixa que não lhe daria condições de galgar
postos mais interessantes. (pp. 19-21)
Candido só irá encontrar Tolentino nos arquivos com maior relevo no ano de
1937, quando atua como segundo escriturário da contadoria geral do tesouro nacional.

1842: Revoltas liberais e contra-ofensiva do império: Nicolau Tolentino se alista


e é admitido como “alferes da quinta” (p. 29)

1843: promovido a oficial maior e condecorado na Ordem de Cristo (cavaleiro).

1845: nomeado inspetor interino da alfandega do RJ. O contexto dessa


nomeação é importante para entender os modos como Tolentino se insere no alto
escalão do serviço público, quando substituiu Saturnino de Sousa e Oliveira:
“Saturnino, político de algum relevo, que fora presidente do Rio Grande do Sul e
seria dali a dois anos ministro de Estrangeiros, era irmão do poderoso “chefe da facção
áulica”, Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho. Sentindo-se talvez seguro por esse
parentesco, escreveu em 1843 artigos contra o governo, chefiado por Honório Hermeto
Carneiro Leão. Estomagado, este pediu a demissão de Saturnino, que o jovem
imperador negou, certamente influenciado por seu mentor Aureliano. Em consequência,
Honório Hermeto demitiu-se em dezembro e o novo ministério foi organizado por
Alves Branco em fevereiro de 1844. Em 1845 este nomeou Tolentino, e como na
qualidade de ministro da Fazenda tinha no ano anterior a famosa tarifa protecionista,
que suprimiu o livre comércio, estabelecido em 1808 formalmente e, de fato, em 1828,
por Bernardo Pereira Vasconselos, a Alfândega adquiriu uma importância-chave devido
ao aumento considerável de renda, tornando-se o cargo de inspetor um dos principais da
burocracia imperial. A escolha de Tolentino, justamente nessa conjuntura, parece um
galardão.” (p. 30)
Neste momento de ascensão, interpõem-se a construção de uma biografia para
Tolentino à altura de seu cargo. É aí que ele irá buscar acertar-se em casamento. Em
razão disso, separou-se de sua então companheira, com a qual não tinha chegado a
casar, e ficou com as duas filhas dessa relação. Arranjou uma noiva de 22 anos e de
família com posses e certa notoriedade. A família da noiva era de uma linhagem de
juristas e oficiais do exército. Além disso, ela ainda era parente de famílias ligadas ao
latifúndio cafeeiro.
“Era o que faltava a Tolentino: família, relações de parentesco que pudessem
fundear no decoro burguês um funcionário cujo calado ia aumentando, e aumentou mais
com os bens da noiva, que, sendo órfã de mãe desde os doze anos, tinha a vantagem de
trazer com o dote a legítima respectiva. Ele era praticamente nada sob todos esses
aspectos, mas punha no seu prato da balança a posição de funcionário bem
comissionado, elogiado, condecorado, pronto para chegar mais perto do poder. “Umile,
sí, mas pubblico funzionario” – como em Pensaci, Giacomino! De Pirandello. Em 26 de
junho de 1845 casou com Mariana Siqueira Botelho de Araújo Carvalho, nascida em
1823, continuando a morar no número 10 da rua Direita, atual Primeiro de Março.” (p.
38)

1846 (1 ano depois): É demitido do cargo de inspetor interino da alfândega por


ato do novo ministro da Fazenda, Antônio Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti de
Albuquerque. Uma série de comerciantes, na maioria ingleses, redigem uma carta de
descontentamento com a decisão, salientando a prestatividade e o bom relacionamento
que sempre tiveram com Tolentino.

1850: reforma no Tesouro de cunho racionalizador é implementada por Joaquim


José Rodrigues, novo ministro da Fazenda que nomeia Tolentino ao comando da
Segunda Controladoria da Diretoria Geral de Contabilidade, sob a alcunha de
“contador-chefe”, o segundo maior cargo da hierarquia.

1852: Tolentino e a esposa são convidados ao baile imperial, o que denota a


importância do casamento para a ascensão social do funcionário humilde.

CAP III – Missão no Uruguai:

A missão de supervisionar a cobrança e pagamento da dívida do Uruguai com o


Brasil no contexto de finais da Guerra do Prata levou Tolentino, no ano de 1851, a
morar em Montevidéu com a família. Candido destaca esse fato como momento de
passagem da carreira restrita aos círculos burocráticos do império para a atuação política
mais abrangente de Tolentino.

“Em Montevidéu Tolentino pôde estreitar relações, baseadas em grande


confiança mútua e duradoura, com Paranhos [José Maria da Silva Paranhos – ministro
residente, futuro Visconde do Rio Branco], então no começo de uma carreira fulgurante,
reforçando o vínculo decisivo com quem seria um dos mais eminentes “senhores da
situação”.” (p. 45)
Página 51: De como Tolentino consegue, em sua missão em Montevidéu, se
associar a 3 figuras de peso da política imperial: O visconde de Rio Branco, o duque de
Caxias e o visconde de Mauá.

Na mesma página, Candido relata que essa posição, junto ao seu alto
desempenho, renderam um desfecho da missão favorável ao Brasil, o que garantiu o
prestígio da imagem de Tolentino no alto escalão do império. Volta ao Rio de Janeiro e,
1855 e se aposenta como diretor do Tesouro, sendo ainda condecorado com o título de
conselheiro, “galardão dos altos funcionários de boa folha” (p. 51).

CAP. IV – Vice-presidente em exercício:

1856: Tolentino passa a integrar a comissão fiscal do Banco do Brasil, composta


por três membros e tendo como presidente o visconde de Itaboraí, Joaquim José
Rodrigues Torres.
Logo depois, Tolentino é nomeado vice-presidente a província do Rio de Janeiro
com a finalidade de exercer a presidência em lugar de Luís Antonio Barbosa, que
deixava o posto para ocupar a cadeira de deputado geral pelo partido conservador.
Tolentino é o primeiro “não-político” a ocupar o posto de presidente da
província do Rio de Janeiro, que era a província mais importante do império.
Após um exercício técnico e com algumas poucas vozes dissidentes ao seu
mandato, Tolentino volta para a presidência da província do Rio de Janeiro em caráter
efetivo no ano de 1857. (p. 61-2)

CAP V – O funcionário presidente:

1857: Tolentino é efetivado presidente num momento em que se discutia a


necessidade do executivo de uma província ser uma profissão de carreira e não cargo
destinado à propulsão política de deputados e outros figurões.

“Convém sublinhar que a ação reformuladora de Tolentino precedeu as Bases do


visconde do Uruguai e as demais propostas a respeito, embora ele devesse conhecer os
planos reformistas que aceitou pôr em prática, por corresponderem ao seu ponto de
vista. E assim temos um caso de convergência dos propósitos do Governo, das
aspirações da Província e das convicções do administrador escolhido. Aceitando a tarefa
espinhosa, Tolentino foi todavia mais longe do que os hábitos políticos comportavam, e
levou o Governo a recuar nas intenções de reforma. Veremos que atuou como
funcionário técnico, mais do que como político, procurando em vão modificar a rotina
defeituosa, o que gerou com a Assembléia Provincial um conflito bastante grave, que
visto de hoja parece choque entre a mentalidade racional da burocracia e as
acomodações táticas do jogo político.” (p. 66)

Os poucos meses em que Tolentino começou a empreender suas reformas foram


suficientes para mover esse contexto favorável e angariar uma oposição forte,
contrariada pelas mudanças postas em marcha pelo “reformador”. (p. 67-68: listagem de
algumas de suas principais ações)

Página 71: quando Tolentino começa de fato suas reformas, vê-se que a
intenção geral não era implementá-las a sério, mas erigir uma fachada de moralidade
com a qual se legitimaria o sistema eminentemente patronal.

Dessa forma, Tolentino empreende uma série de medidas que só fortalecem a


oposição ao seu nome, até que em 1858, ele decide por em marcha a reforma do
funcionalismo público:

“A atmosfera devia portanto estar carregada no momento em que ele baixou


afinal a resolução de reforma dos serviços administrativos em 30 de abril de 1858. Ela
procurava coibir o arbítrio das nomeações por favor e estabelecer critérios de
competência para dar eficácia ao serviço, criando uma carreira no sentido estrito, com
base sobretudo em duas medidas: (1) concurso de ingresso e (2) promoção sem saltos.
Assim, acima do nível que não requer conhecimentos especializados, como servente,
porteiro, etc., ninguém poderia, sem provas, ser nomeado para cargo inicial de
praticante. A partir daí, só poderia ter acesso ao nível imediatamente superior depois de
ter servido pelo menos um ano no imediatamente inferior, em lugar de, por exemplo,
entrar por cima, como oficial maior, chefe de seção ou diretor. As provas de concurso
exigiam um mínimo de conhecimentos, segundo o setor.” (p. 72)
CAP. VI – O conflito com a Assembléia:

Páginas 78 e 79: análise central sobre a crise e os motivos (explícitos e


implícitos) do descontentamento dos parlamentares e da derrubada de Tolentino da
presidência.

P. 86: o substituto definitivo de Tolentino era sua antítese.

CAP. VII – No quartel de Abrantes, tudo como dantes:

Depois de narrar o processo segundo o qual vemos a reforma de Tolentino


simplesmente resultar em retrocesso ao patamar inicial do patronato no serviço público,
Antonio Candido traz o seguinte comentário que se traduz também num juízo feito
sobre a atuação de Nicolau na presidência da Província:

“A nossa tradição administrativa provém da ibérica, na qual o cargo conservou o


caráter de prebenda. Tradição no fundo mais próxima das concepções orientais, que
ligam o ato administrativo à propina, do que da concepção alemã de inspiração luterana,
segundo a qual o serviço público é missão. O conflito de Tolentino com a Assembléia é
um típico conflito da racionalidade com o senso patrimonialista dos líderes políticos,
que não podiam dispensar os mecanismos de formação da clientela. Funcionário
competente e honesto, cumpridor escrupuloso do dever, ele se formou no limite estreito
das repartições, cujo descalabro pôde observar, desenvolvendo em relação ao patronato
uma repulsa que o acompanhou sempre. Mas esta formação fechada o tornou pouco
sensível à natureza do jogo político, que exigia maleabilidade, contemporização,
acomodação; e não a resoluta objetividade nem a franqueza com que levou a sério a
tarefa de reformar, indo além do que se esperava. Daí o escândalo e o ódio que
despertou.” (p. 90-91)

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