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Anibal Quijano - Romper Com o Eurocentrismo
Anibal Quijano - Romper Com o Eurocentrismo
A democratização das condições e limites da dominação política, se tiver êxito (na Bolívia), implicaria um processo
peculiar de descolonização do Estado e abrirá, sem dúvida, questões cruciais no debate boliviano, latino-americano e
mundial
BDF - Desde os anos 90, os movimentos indígenas, sobretudo nos Andes, ganharam força, derrubaram governos e
impulsionaram mudanças no poder. Quais as semelhanças entre esses movimentos da Bolívia, Peru e Equador? O
que pensa da atualidade da proposta do Estado plurinacional e pluriétnico?
Quijano - Primeiro, quero chamar a atenção sobre as dificuldades de olhar ou de pensar os "movimentos indígenas"
como se se tratassem de populações homegeneamente identificadas. Segundo, o Equador é o único lugar onde a
virtual totalidade de todas as "identidades" ou "etnicidades" "indígenas" conseguiram conformar uma organização
comum, sem prejuízo de manter as próprias particulares. É também o "movimento indígena" que mais cedo chegou
à idéia de que a liberação da colonialidade do poder não consistiria na destruição ou eliminação dos outros agentes
e identidades do poder, e sim na erradicação das relações sociais materiais e intersubjetivas do padrão de poder e a
produção de um novo mundo histórico intercultural e de uma autoridade política (pode ser o Estado) comum,
portanto, intercultural e internacional, mais que multicultural ou multinacional. O projeto de uma Universidade
Indígena InterCultural e de seu Instituto de Investigações Interculturais é um dos claros testemunhos desta proposta,
apesar de que seus desenvolvimento tenha sido, até agora, mais lento e irregular.
Depois de frustradas, por apressadas e equivocadas, alianças políticas que levaram a alguns líderes do movimento a
formar parte do governo do Estado central, sob o comando do coronel Gutiérrez - que logo se revelou como agente
da colonialidade do poder -, divisões e debates ásperos abriram um período de grave crise na unidade e na
organização do movimento.
Entretanto, está em curso um claro processo de renovação organizacional e de relegitimação da nova liderança
tanto dentro da população "indígena", como em relação a agentes sociais de outras identificações. Isso não permitiu
ao movimento indígena equatoriano voltar a ser o principal agente e representante político-cultural da população
popular equatoriana, até o ponto de ser o condutor do atual movimento popular que conseguiu bloquear e impedir
a aprovação do Tratado de Livre Comércio (TLC) entre Equador e Estados Unidos.
Sem dúvida, logo estará dentro do movimento indígena equatoriano, se já não está, o debate em torno do avanço
em direção ao governo do Estado. E, nesse caso, as questões da interculturalidade e da internacionalidade do
Estado, suas formas de apresentação e de organização institucional para a prática de ambas as propostas, nos
convocarão a todos na América Latina.
BDF - E na Bolívia?
Quijano - No caso da Bolívia, não ocorreu um processo semelhante. Os que se auto-identificam como "indígenas"
não conseguiram produzir uma organização comum, nem propostas culturais e políticas comuns. O Movimento ao
Socialismo (MAS) não se formou nem se desenvolveu como "movimento indígena", e sim como organização sindical,
primeiro, e política, depois, ainda que a população que o integra começando por seu principal líder, Evo Morales,
seja identificada ou inclusive possa autoidentificar-se como "indígena", segundo a classificação social fundante da
colonialidade do poder, ou seja, em termos de "raça".
Entretanto, a Bolívia é o primeiro país latino-americano no qual os "indígenas" (em termos já não só "raciais", mas
antes de tudo "culturais") terminaram sendo hegemônicos em um movimento amplo que conseguiu assumir, por
votação majoritária da população, o governo do Estado Central do país.
BDF - E qual a relação do projeto do MAS com uma sociedade socialista na Bolívia?
Quijano - Ainda que o termo socialismo esteja inscrito no nome mesmo da organização política governante (o MAS),
o vice-presidente, Alvaro García Linera, sustenta que, na Bolívia, não estão dadas as condições para tratar de ir agora
em direção ao socialismo, pois não existe nesse país uma classe operária ampla, muito menos majoritária.
García Linera propõe ir mais a um "capitalismo andino-amazônico". Fundamentalmente, essa fórmula pareceu se
referir, de um lado, ao controle estatal de uma parte maior da renda produzida pela produção mercantil do gás e do
petróleo, como resultaria da recente nacionalização das respectivas jazidas, para redistribuí-la entre as
comunidades, povoados, pequenas e médias empresas e serviços públicos.
Essa política poderia implicar uma relativa desconcentração do controle do trabalho, de seus recursos e de seus
produtos. Mas, do outro lado, seria mantido o controle privado-empresarial do restante da acumulação capitalista,
atualmente em mãos, sobretudo, da burguesia de Santa Cruz, Tarija e outros centros menores, associada já ao
capital global. Não está ainda esclarecida a relação entre ambas as formas de admnistração do capital.
Os conflitos e as associações serão, provavelmente, discutidos e negociados na Assembléia Constituinte e no
Referendo que também foi acordado para resolver as questões das autonomias.
As burguesias regionales reivindicam, obviamente, o controle autônomo de suas respectivas regiões (sobretudo
Santa Cruz e Tarija, onde estão as reservas de hidrocarbonatos, a mais moderna agricultura comercial e algumas
indústrias), mas as "identidades indígenas" demandam autonomia territorial por questões culturais e
jurídico/políticas.
A próxima história permitirá contestar uma crucial e ineludível questão: A redistribuição multicultural e
multinacional do controle do Estado pode ocorrer separadamente da redistribuição do controle de trabalho, de seus
recursos e de seus produtos e sem mudanzas igualmente profundas nos outros âmbitos básicos do padrão de poder?
BDF - Na América Latina, há uma safra de presidentes de origem no movimento social ou de orientação de
esquerda e nacionalista que chegaram ao poder. No governo, essas lideranças têm mantido uma política
econômica de clara orientação neoliberal. Você acredita que isso tem relação com o fato de que, cada vez mais, os
Estados de nações subdesenvolvidas terem se transformados em estruturas de administração local dos interesses
do capital mundial?
Quijano - No padrão atual de poder, um de cujos eixos centrais é o capitalismo, a idéia de um interesse social
chamado "nacional" corresponde à existência de uma sociedade nacional dominada por uma burguesia nacional,
com um estado nacional. Ou seja, a uma estrutura de poder configurada segundo essas condições. Na América
Latina, antes da chamada Revolução Mexicana, essas características correspondiam somente ao Chile, desde a
República Portaliana, desde a segunda década do Século XIX. Tal Estado Nacional Oligárquico foi consolidado com o
extermínio genocida dos "mapuches" - denominação imposta a uma população de "índios" de diversas origens.
Os movimentos sociais, sobretudo das classes médias e do proletariado mineiro rumo a um Moderno Estado-Nação
que se desenvolviam desde os anos 20 do Século XX, culminaram nos anos 1930 com o Governo de Frente Popular,
que implicou numa espécie pacto político entre a burguesia chilena e os partidos políticos dos trabalhadores e das
classes médias, para consolidar as normas e instituições da democracia liberal/burguesa.
Foi com elas que os trabalhadores e seus associdados nas classes médias chegaram com Allende ao governo do
Estado em 1971, mas foi também sua lealdade com elas que facilitou sua derrota a um sangrento golpe militar em
1973. Sob o Pinochetismo, levou-se a cabo uma contra-revolução. Uma ditadura sangrenta foi imposta enquanto
eram removidas e alteradas as bases sociais mais corroídas deste Estado para adequá-las à neoliberalização do
capitalismo, que foi precisamente iniciado ali e nesse momento, e às necessidades da globalização, ou seja, da
reconcentração mundial do controle do trabalho e do Estado.
Mas isso produziu também uma nova sociedade capitalista nacional e seu respectivo novo estado-nação.
BDF - O conflito no Iraque gerou uma disputa momentânea - hoje superada - entre os interesses dos EUA e de
parte do bloco imperialista mundial. Se os EUA continuarem a insistir com ações unilaterais, há possibilidade de
haver rachas nesse bloco? Ou todas as outras potências globais (União Européia, Japão) já aceitam um papel
subalterno ao dos EUA na divisão do poder global?
Quijano - Obviamente, com a desintegração do "campo socialista", o mundo emergiu como "unipolar", no sentido
específico de que um único padrão de poder controlava toda a população do "globo". Por isso, o que era, e ainda é,
um Bloco Imperial Global com os EUA como seu Estado Hegemônico, foi percebido por muitos como virtualmente
um único Estado todo poderoso, e até como o centro mesmo de um único império global. No entanto, os conflitos e
tensões internas não podiam deixar de existir nesse Bloco Imperial Global, por exemplo, em relação à invasão do
Iraque. Mas, é claro, visto que ocorriam dentro de um Bloco Imperial Global, um bloco de interesses sociais e
políticos comuns, não tinha sentido esperar rupturas ou enfrentamentos violentos.
De nenhum modo, no entanto, se poderia dizer que os conflitos terminaram, que os interesses particulares, inclusive
nacionais, dos outros membros do Bloco Imperial Global, deixaram de atuar. Dados os notórios problemas do
capitalismo nos EUA, por exemplo, a maior dívida internacional mundial, assim como os maiores déficits fiscal e
comercial do mundo; suas crescentes dificuldades nas guerras colonial/imperialistas no Iraque e no Afeganistão; a
resistência dos "migrantes" nos centros mesmos do Bloco Imperial Global (as lutas na França, na Espanha e nos EUA,
onde aconteceu a maior manifestação política de todos os Primeiros de Maio da história desse país), a resistência
social mundial dos trabalhadores contra as tendências extremas do poder; a luta dos "indígenas" na América Latina e
na Ásia; as tensões nesse Bloco Imperial poderiam ser ainda mais fortes.
E na perspectiva do futuro, as tendências apontam para a formação de novos participantes das disputas
hegemônicas no mundo, e em alguns casos para realinhamentos conjuntarais de interesses possíveis nessas
disputas, como China, Índia, Rússia, talvez Brasil, talvez, inclusive, teríamos direito a imaginar uma Comunidade
Sulamericana de Nações. Como se percebe, não se trata somente de disputas entre "Estados", mas também de
conflitos no padrão mesmo de poder, cujas expressões são esses Estados.
Ninguém, em nenhum espaço dentro deste padrão de poder, poderia estar fora ou livre dos conflitos, da
exarcebação da crise e de suas violências. Ninguém, portanto, deveria imaginar sequer que entre as crescentes
perversões dos dominadores/exploradores/repressores e as lutas de resistência de suas vítimas pode ser neutro. E
na medida em que os estudos e os debates sobre o alterado mundo que a crise da colonialidade do poder produziu,
também estão se levantando outros horizontes históricos em direção aos quais encaminhar nossas lutas.
BDF - Em um artigo, o senhor afirmou que a globalização impulsionou uma nova relação entre capital e trabalho.
Como isso está se refletindo na América Latina?
Quijano - Três modalidades principais: 1) a precarização e a flexibilização do trabalho foram muito mais longe que
nos países "centrais", a extensão do que Marx chamou de "mais-valia absoluta", ou seja, a prolongação arbitrária da
jornada de trabalho; 2) a re-primarização e a terceirização da estrutura produtiva reduziram drasticamente a
população operária industrial-urbana, quase desmantelaram suas organizações gremiais, assim como suas
organizações políticas diferenciadas e geraram a crise de identidade social dessas populações em termos de classes
sociais; 3) a re-expansão das formas não-salariais de exploração, como a escravidão (como no Brasil e no conjunto da
Bacia Amazônica), a servidão pessoal e a pequena produção mercantil independente.
BDF - Por que o senhor crê que a "colonialidade do poder" tem uma relação profunda com o atual padrão de poder?
Quijano - A Colonialidade não tem somente uma relação profunda com o padrão de poder hoje mundialmente
dominante. É o caráter central mesmo desse padrão de poder. A associação entre o novo sistema de dominação
social fundado na idéia de "raça" e de um novo sistema de exploração do trabalho, que consiste na combinação de
todas as formas de exploração em uma única estrutura de produção de mercadorias para o mercado mundial, sob a
hegemonia do capital, ou seja, formando em seu conjunto o capitalismo mundial, não seria possível de outro modo.
BDF - É possível um movimento revolucionário ter sucesso na América Latina tendo uma visão eurocêntrica?
Quijano - Dificilmente. O eurocentrismo é um modo de distorcer a percepção da experiência atual e histórica e como
conseqüência impede resolver nossos problemas, salvo de modo parcial e distorcido. A derrota mundial entre
meados dos anos 70 e final dos anos 80 no século XX foi, antes de tudo, uma conseqüência do domínio do
eurocentrismo, e além disso, em suas fase de tecnocratização e aprofundamento de suas propensões distorcivas sob
o domínio de capital finaceiro novo e mais predatório. Agora, estamos de novo na resistência mundial, a derrota vai
ficando para trás, e estamos começando a produzir outro horizonte histórico.
BDF - Como o senhor avalia o processo bolivariano conduzido por Hugo Chávez? Qual o potencial dessa proposta,
em termos de aglutinação de outras nações, por meio de propostas como a Alternativa Bolivariana para as
Américas (Alba)?
Quijano - Desde o ponto de vista da ampliação e defesa das margens de autonomia relativa dos países latino-
americanos frente ao Bloco Imperial Global e antes de tudo frente ao imperialismo dos Estados Unidos, esse
processo tem uma inegável importância. Não está claro o que poderia implicar em termos da destruição do padrão
de poder como tal, ou seja, da dominação/discriminação/exploração/repressão no controle do sexo, do trabalho, da
subjetividade, da autoridade pública e das relações com as demais espécies animais e o resto do universo. Só quanto
as vítimas do controle em cada um desses âmbitos puderem ganar autonomia, a produção democrática de uma
sociedade democrática entre iguais/heterogêneos pode avançar. Isso implica na redistribuição do acesso ao controle
dos recursos de cada um de tais âmbitos. E isso não ocorre, não pode ocorrer a não ser pelo desenvolvimento da
capacidade de auto-organização de auto-governo dos povos do mundo.
BDF - Muito se tem escrito sobre as rivalidades e as disputas de Argentina e Brasil no Mercosul (agora, entre
Argentina e Uruguai). Como o senhor avalia o esforço de construção de uma integração sócio-política na América
do Sul a partir dos atuais Estados?
Quijano - Enquanto a maioria das populações da América não conquistarem a igualdade básica e a des/colonialidade
do poder, me parece difícil que a integração da América Latina possa avançar e se consolidar. Até agora, as
tentativas se fazem em termos de mercado, porque os mercados locais são considerados pequenos, dada a limitada,
em rigor decrescente, capacidade aquisitiva das maiorias. Mas, não é tempo de nos perguntarmos por que a Suíça
ou a Bélgica, que não têm os recursos de nossos países, nem o tamanho de nossas populações, têm entretanto
grandes mercados internos? Essa questão não pode ser indagada, nem contestada, a não ser em termos da
colonialidade do poder.
BDF - Como o senhor avalia a posição do governo brasileiro na Organização Mundial do Comércio (OMC), que está
empenhado em obter a retomada das suas negociações, usando sobretudo o status de liderança dos países
subdesenvolvidos para convencer as outras nações da pertinência de um acordo?
Quijano - Não vejo nada de surpreendente no comportamento ambíguo do atual governo brasileiro nesse cenário.
Corresponde a uma linha de política de Estado estabelecida já há um bom tempo, de negociação entre a burguesia
brasileira e os grupos dominante da burguesia global. http://alainet.org/active/12103&lang=es