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Esses são, portanto, os principais pontos de tensão em relação à


abordagem dos professores Roberto Viciano e Rubens Dalmau. Todavia, é importante
ressaltar que as críticas acima destacadas não têm o condão de negar o Novo
Constitucionalismo aventado pelos autores, mas avançar naqueles pontos que
acreditamos essenciais para a construção de um direito plurinacional. Só então
poderemos traçar novos rumos e aperfeiçoar os caminhos já existentes.

Nesse sentido, as contribuições de Raquel Fajardo e diversos outros


autores andinos são marcantes na presente dissertação.

Todavia, se por um lado Roberto Viciano e Rubens Dalmau não


incorporam as experiencias indígenas na sua abordagem, Raquel Fajardo parece limitar
o seu Constitucionalismo Pluralista às experiências indigenas. É claro que esse é um
ponto essencial no debate, mas certamente não é único, ou seja, é primordial, mas não é
exclusivo23.

Portanto, se Raquel Fajardo analisa esse processo constitucional com


ênfase na questão indígena e, por outro lado, os professores espanhóis dão ênfase à
participação popular no controle do estado e da economia, entendemos que aliar essas
duas características seria o ideal para a nossa definição de Novo Constitucionalismo
Pluralista Latino-Americano.

1.4. O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano: entre a


participação cidadã e as cosmovisões indígenas – a concepção adotada
neste trabalho

processo constitucional da Venezuela, Equador e Bolívia. Quando questionado sobre a possibilidade das
jurisdições autônomas nestes países, afirmou que optava por uma aplicação mais homogênea do Direito.
Ora, a autodeterminação dos povos indígenas, incluindo a jurisdição especial, é uma das maiores
conquistas para esses povos. A jurisdição indígena autônoma foi prevista e fortalecida nas Constituições
do Equador (art. 171) e da Bolívia (art. 199), e garante o respeito à cultura e as tradições desses povos,
sendo um dos instrumentos mais importantes e originais no constitucionalismo desses países.
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É necessário ressaltar que a divisão em ciclos proposta pela autora não autoriza uma interpretação
linear da história, que já demonstrou que a possibilidade de avanços e retrocessos não são demarcadas
temporalmente. Os ciclos, na nossa interpretação, buscam sistematizar de forma didática os diferentes
avanços e propostas das recentes reformas constitucionais na América Latina, de forma que não pode ser
compreendida como uma sequência lógico-histórica.
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Mesclando os dois entendimentos acima mencionados, desenvolvemos


aquilo que denominamos “O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano”.

O século XXI se inicia com grandes experiências no campo político e


Constitucional em nuestra América. Mas a história, longe de ser linear, pode preparar
surpresas para essas novas experiências jurídicas – do sucesso ao fracasso – que só o
futuro irá responder. O nosso papel, enquanto investigador socio-jurídico, é analisar –
sem nenhuma pretensão de neutralidade – os avanços e retrocessos desses experimentos,
destacando o que a população desses países, notadamente aqueles que foram
historicamente marginalizados no campo político e jurídico, tem a ganhar (ou perder)
com esse novo movimento constitucional.

Esse movimento surgiu de uma necessidade histórica de, por um lado,


apropriar-se constitucionalmente de alguns instrumentos de lutas e reivindicações
populares, para garantir o controle popular do poder e da economia e, por outro,
salvaguardar conhecimentos e práticas históricas das comunidades ancestrais. Esses são
os dois principais pontos que convergem para a caracterização da nossa definição sobre
o Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano.

É por isso que a nossa proposta dialoga com os mecanismos


constitucionais de democratização do poder e, ao mesmo tempo, reafirma o grande
marco dessas Constituições: o protagonismo indígena e o giro descolonizador e
plurinacional. Tornar visível o que era invisível. Entender a lógica dos povos ancestrais
e positivar na Constituição seus conhecimentos: esta, sem dúvidas, parece-nos à maior
contribuição desse novo movimento político e constitucional surgido em nuestra
América.

Na busca por um modo alternativo de produção, relacionado diretamente


com o respeito à natureza, surge o Novo Constitucionalismo Pluralista como fruto da
luta dos povos ancestrais e em contraponto a concepções totalizantes e monoculturais do
Direito, com a positivação de lógicas das comunidades indígenas como o Sumak
Kawsay (Bem-viver) e a Pachamama (Mãe-terra).
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É importante observar que não há apenas o anuncio da “descolonização”,


“plurinacionalidade” ou “interculturalidade”. Palavras sem o intento efetivo de refundar
o Estado e desconstruir a colonização não são suficientes para o nosso projeto. Há,
efetivamente, a construção de novas formas de arquitetar o Constitucionalismo nesses
países - com sofisticados meios institucionais para sua implementação.

Historicamente, as diferentes concepções e culturas indígenas propostas


pelos ordenamentos não foram “traduzidas institucionalmente”, ou seja, foram
neutralizadas pela ausência de meios concretizadores no plano institucional, ainda
marcado pela monoculturalidade (Fajardo, 2011, p. 148). Por isso, as mudanças de
lógica nas Constituições Equatoriana e Boliviana também inauguram a necessidade de
uma verdadeira “reengenharia do sistema legal”, pois essas Constituições não apenas
anunciam direitos, mas traçam os caminhos para concretizá-los (Walsh, 2009, p. 2/5)
como analisamos no último capitulo do nosso trabalho.

O Estado, portanto, foi redesenhado a partir da perspectiva indígena - e


seu esforço plurinacional e descolonizador - nas Constituições do Equador e da Bolívia
(Sieder, 2011, p. 308). O debate que historicamente era conduzido sobre o que o Estado
pode fazer para os indígenas, transforma-se naquilo que esses povos podem contribuir
para o desenvolvimento da sociedade e a refundação do Estado, pois “o realmente
inovador das novas Constituições equatoriana e boliviana não é tanto a introdução de
novos elementos, mas sim o intento de construir uma nova lógica e forma de pensar sob
parâmetros radicalmente distintos” (Walsh, 2009, p. 1/7).

Nesse ponto, portanto, não se trata do Estado proteger o índio e suas


tradições e costumes, mas muito além disso, trata-se do Estado ser pensando a partir das
concepções indígenas. E ai repousa o grande diferencial das Cartas do Equador e da
Bolívia24.

Portanto, nos limites dessa dissertação, buscamos aprofundar aquilo que


entendemos que há de mais original nestas Constituições: a positivação da cosmovisão
indígena nas Constituições desses países e as consequências jurídicas dessa nova forma
de pensar o direito constitucional, com foco na Pachamama e Sumak Kawsay, que são

24
A população indígena na América latina corresponde a 11% de sua população, em mais de 400
comunidades, e encontram-se entre os setores mais pobres e excluídos da América latina (Sieder, 2011, p.
304).
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em nossa opinião as maiores representações constitucionais da intenção descolonizadora


e emancipatória do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano.

Por isso, a última parte do nosso trabalho tem como foco os direitos
indígenas e suas conquistas, mas sem deixar de perceber a importância do controle do
Estado e da economia através da participação cidadã para além da questão indígena. Ou
seja, a intensificação das formas tradicionais do Constitucionalismo, como o referendo
revogatório e as novas formas de intervenção popular também serão trabalhadas.
Obviamente, essas questões, muitas vezes, estão entrelaçadas25.

De acordo com esses critérios, entendemos que as Constituições do


Equador (2007/2008) e da Bolívia (2006/2009) cumprem esses requisitos. Aliam
participação cidadã e democrática a um giro paradigmático e mais criativo desse
movimento: reconhecimento das cosmovisões indígenas, que reconfiguram a própria
teoria da Constituição e o papel do Estado, sendo as Constituições da Colômbia (1991)
e da Venezuela (1999) os precedentes dessse processo26.

Essas linhas iniciais são fragmentos da nossa definição, como uma


introdução para que o leitor compreenda as diversas abordagens e concepções sobre o
tema ora em análise. As suas principais características serão analisadas na última parte
do nosso trabalho.

Desde já, porém, ressaltamos que a expressão “Novo Constitucionalismo


Pluralista” não tem nenhuma pretensão totalizadora ou de uniformidade. Tal expressão é
o somatório de diferentes perspectivas e concepções, que têm pontos de interseção e
contato. É fundamental esclarecer que a denominação adotada na presente dissertação
não tem o condão de tornar unitário ou homogêneo as ricas concepções daqueles países.

Não pretendemos negar o óbvio. As dessemelhanças são muitas. Mas as


similitudes também o são, os processos políticos desde a era colonial até a dependência
25
A divisão feita não tem o intuito de separá-las de outras perspectivas e possibilidade do Novo
Constitucionalismo Pluralista, mas apenas de analisá-la da forma mais clara possível, sempre tendo em
vista que as aproximações entre os diferentes temas são essenciais para a compreensão do tema.
26
É necessário ressaltar, também, que a não inserção de determinados processos Constituintes no que
classificamos de Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano, como, por exemplo, o caso
Brasileiro, Colombiano e Venezuelano, não significa, necessariamente, que tais processos são menos
democráticos, mas apenas que não correspondem às características desse campo teórico-metológico que
expusemos – notadamente no campo das conquistas indígenas e dos esforços descolonizadores.
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neocolonial. O que nos conduz é um continente marcado, antes de tudo, pela exploração
histórica e pela desigualdade que originaram outros dramas sociais que ainda assolam a
nossa sociedade a qual, como afirmou Eduardo Galeano “especializou-se em perder
desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo
mar e fincaram seus dentes em sua garganta” (Galeano, 2010, p. 17)

Porém, ainda pode-se objetar, com razão: porque um Constitucionalismo


“Latino-Americano”, se as experiências se resumem a Bolívia e Equador ? A resposta
pode-se dividir em duas partes: i) essas Constituições surgem, em boa medida, como
fruto das reivindicações de movimentos sociais de toda América Latina que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a construção desses novos modelos que resultaram nas
Constituições do Equador e da Bolívia; ii) o caráter emancipatório dessas Constituições
surgem como exemplo para nosso continente. Não como modelo que se deva reproduzir
acriticamente, mas como caminho trilhado para Constituições que retratem a pluralidade
da sociedade e combata as desigualdades sociais tão marcantes em nuestra America.

Dessa forma, são duas as dimensões desse novo processo. No plano


Latino-Americano; existe, na verdade, é um Novo Constitucionalismo Pluralista que se
contrapõe ao antigo Constitucionalismo Latino-Americano, marcado pelo elitismo, pela
ausência de participação popular e pela subordinação das práticas, saberes e
conhecimento dos povos indígenas. Portanto, a leitura do título do nosso trabalho deve
conjugar o Novo Constitucionalismo com o contexto Latino-Americano. Por outro lado,
existe a pretensão de destacar o real surgimento de um Novo Constitucionalismo na
história constitucional (embora, de acordo com o seu desenvolvimento, essa
possibilidade possa ser descartada), encontrando respostas constitucionalmente
adequadas para sociedades complexas e dando respaldo jurídico e político para setores
historicamente marginalizados, como a população indígena27.

De toda forma, sempre haverá críticas sobre a escolha da denominação


que optarmos. O que podemos fazer, na medida do possível, é esclarecer as nossas
escolhas e torná-las mais densas teoricamente. Mas, sabemos dos limites das definições,
especialmente, em temas complexos e ainda pouco estudados pelos juristas, como é o
presente caso.
27
Basta observar, por exemplo, como Gerardo Pisarello entende que as experiências constitucionais do
Sul são respostas criativas para a recente crise européia e suas constituições oligárquico-financeiras,
retomando o protagonismo dos grupos populares e das resistências sindicais (Pisarello, 2011, p. 189/205).
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Por fim, é bom alertar que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano


cumpre um papel importantíssimo na afirmação de um Direito Constitucional de acordo
com nosso tempo e espaço, mas devemos evitar ufanismos que proclamem
salvacionismos normativos/constitucionais. A América latina e o nosso
Constitucionalismo ainda têm muito que caminhar para a concretização desses Direitos.

1.5. Outras concepções teóricas sobre o tema

Além dos autores analisados nos pontos anteriores, há diversos outros


que, em termos gerais, concordam que o marco diferencial desse movimento é o
protagonismo indígena - representado principalmente nas Constituições do Equador e
da Bolívia – e a intensificação da participação popular. Porém, tais autores não
procuram aprofundar a sistematização desse novo movimento e utilizam conceitos
diversos para classificar o que chamamos de “Novo Constitucionalismo Pluralista
Latino-Americano”.

É óbvio que há diversos pesquisadores que tratam isoladamente tanto da


Constituição do Equador quanto da Bolívia, mas o que nos interessa no presente estudo
é a formulação teórica que faz a ponte entre essas duas Constituições, demonstrando
suas características descolonizadoras, com o reconhecimento da cosmovisão indígena e
com um novo projeto societário.

O termo Novo Constitucionalismo Latino-Americano também é utilizado


por Roberto Gargarella e Gerardo Pisarrelo, muito embora, como ressaltado, não se
estendam sobre a fundamentação da escolha conceitual sobre o tema.

Segundo Pisarello, o Constitucionalismo semântico ou nominal marcou a


história latino-americana durante parte do século XIX e durante o sec. XX, assinalando
uma contraposição entre o Constitucionalismo do “Norte”, com força normativa e
vinculante, e o Constitucionalismo dos países periféricos, sem efetividade e com forte
exclusão da participação popular e de minorias (ou maiorias) étnicas (Pisarello, 2009,
p.1).

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