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1 O “NOVO CONSTITUCIONALISMO” LATINO AMERICANO

No livro “Curso de Direito Constitucional”, do autor Flávio Martins Alves Nunes


Júnior, no primeiro capítulo, que aborda o Constitucionalismo, ele traz outras modalidades de
de constitucionalismo, e nesse relatório dissertaremos acerca do Novo Constitucionalismo
Latino-americano, que é um dos mais recentes fenômenos jurídico-constitucionais ocorridos
na América do Sul.
De início, precisa-se pontuar uma variedade do constitucionalismo, como já definiu
José Joaquim Gomes Canotilho, uma vez que há processos distintos de formação do
Estado-nação. Nesse sentido, existem dois movimentos constitucionalistas importantes: o
neoconstitucionalismo e o novo constitucionalismo latino-americano. Os primeiros
constitucionalistas que identificaram os novos movimentos para formar novas constituições
foram os professores da Universidade de Valência, na Espanha, Roberto Viciano Pastor e
Rubén Martínez Dalmau, que, identificaram diferenças entre o “Neoconstitucionalismo”, o
qual era mais conhecido e estudado, e o “Novo Constitucionalismo”. Enquanto o primeiro
aprimora o Direito Constitucional, por meio da construção teórica dos constitucionalistas e
operadores do Direito, baseando-se na força normativa da Constituição e no princípio da
eficiência - também chamado de máxima efetividade - com o objetivo de tornar a
Constituição mais eficaz, principalmente no que tange aos direitos fundamentais; o segundo,
surge a partir de reivindicações e manifestações populares, objetivando principalmente uma
maior legitimidade democrática da Constituição, garantindo a participação política de grupos
que antes eram excluídos do cenário político e estavam, transformando estruturas profundas
nas esferas política, social e econômica.
No Brasil, em virtude do vínculo vigente com a Constituição Tradicional, embora haja
grandes avanços democráticos e uma breve ligação ao neoconstitucionalismo, o documento
possui relações intrínsecas ao velho regimento, o qual constitui a democracia brasileira de
modo embrionária, sem fomento concreto da atividade popular, uma vez que no país não
houve manifestações sociais em prol da constituinte de 88. Isso ocorreu porque o parlamento
pós-ditadura assumiu a frente da formação da Carta Magna e uma série de medidas limitaram
a ação popular como atuantes dos direitos cidadãos, tomando o rumo contrário dos demais
países latino americanos, o que evidencia a fragilidade democrática do país.
Sob a perspectiva da constitucionalista peruana Raquel Yrigoyen Fajardo, que analisa
as mudanças constitucionais sob a ótica do multiculturalismo e do tratamento constitucional
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dado aos povos originários indígenas na América do Sul, analisaremos os ciclos


constitucionais, a partir de uma cronologia lógica, superando o “constitucionalismo liberal
monista”, do século XIX - influenciado pelas revoluções liberais, como a Revolução Francesa
- e o “constitucionalismo social integracionista” do século XX - em que foram incorporados
os direitos sociais e as leis trabalhistas nas Constituições dos Estados. Para a
constitucionalista, as primeiras constituições da América do Sul, por serem baseadas no
constitucionalismo europeu - que era um sistema importado, monocultural e que não permitia
mais de um sistema normativo - não tiveram capacidade para se adaptar a realidade existente
dos territórios latino-americanos, para garantir os anseios das populações indígenas,
afro-americanas e dos diversos movimentos do campo e urbanos, o que causou a exclusão de
mulheres, escravos e povos originários dos processos políticos. No entanto, para ela, existem
com o Novo Constitucionalismo Latino-americano, três ciclos constitucionais:
Constitucionalismo Multicultural, Constitucionalismo PluriCultural e Constitucionalismo
Plurinacional; que desenvolveremos a seguir.

2 O PRIMEIRO CICLO CONSTITUCIONAL:


CONSTITUCIONALISMO MULTICULTURAL

O primeiro ciclo constitucional, denominado de “Constitucionalismo Multicultural”,


visa principalmente dissociar-se do “Constitucionalismo Monocultural e Liberal Monista”, já
que as Constituições desse ciclo, possuem como características a abertura à diversidade
cultural, o reconhecimento de outras línguas, além da oficial de determinado território,
proteção dos direitos indígenas, mas mantendo o monismo jurídico. As principais
constituições dos países da América do Sul que ainda estão nesse ciclo são: a Constituição da
Guatemala (de 1985), a Constituição da Nicarágua (de 1987) e a Constituição do Brasil (de
1988).
Ao citarmos a Constituição Brasileira, vale enfatizá-la, já que ela rege a sociedade em
que vivemos. Seguindo essa premissa, os autores supracitados reconhecem que apesar dos
consideráveis avanços que a Constituição de 1988 trouxe para o Brasil, ela não conseguiu
romper de fato com o tradicional constitucionalismo, por isso ainda pertence ao primeiro
ciclo, apenas instituindo recentes ideias apresentadas pelo “Neoconstitucionalismo”, que,
mesmo tardiamente, consegue produzir progressivamente consequências para o corpo social.
Após o período ditatorial se instaurou o período democrático materializado na Constituição
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brasileira de 1988 que alcançou o primeiro estágio constitucional e nele se estagnou,


permeado de modo inicial os direitos democráticos e a autonomia indígena. Em razão da
incipiência constitucional, os povos originários não possuem autonomia jurídica, política e
cultural, sendo submetidos ao ideal positivista mono jurídico como é observado no artigo 20,
XI, da Carta Magna que descreve como bem da União as terras indígenas e sob
responsabilidade estatal a demarcação delas.
Na contemporaneidade, nota-se a efetivação dessa demanda constitucional pelo poder
legislativo em decorrência do projeto de lei 2.903/2023 – Marco Temporal, que viabiliza a
demarcação dos povos originários somente no período de promulgação da Constituição
Federal de 1988, ou seja, desconsiderando as ocupações indígenas anteriores a esse momento.
Além da violação proposta pelo âmbito legislativo do país, é prevista em lei que os grupos
indígenas podem ser removidos de suas terras em prol da conveniência da soberania nacional
(CF 1988, art. 231 § 5) e, concatenada a esse contexto, há o não reconhecimento das línguas
indígenas como oficiais, por mais que a existência dos povos originais anteceda qualquer
outro mecanismo legal, ainda que a Constituição preveja a utilização dos dialetos nas
comunidades indígenas (CF 1988, art.210 § 2). Mostra-se, assim, que o Estado brasileiro se
utiliza dos aparatos legais para limitar a garantia dos direitos dos povos tradicionais como
reflexo do comportamento histórico invisibilizar a existência indígena, bem como ocorreu, ao
longo do período colonizador, o genocídio e etnocídio dessa parcela da população e os
ataques criminais subsequentes praticados pelos latifundiários durante o regime ditatorial. De
forma pesarosa, nos tempos hodiernas é possível notar ainda as violências efetuados no
Brasil, em vista das disputas de terras promovidas por grandes fazendeiros, que destroem os
territórios tradicionais como intuito exploratório, deixando sérias consequências à exemplo da
crise humanitária do povo Yanomami, a qual 570 crianças indígenas morreram por doenças
evitáveis causadas pelo avanço do garimpo. Fica claro, portanto, que o estado democrático de
direito no Brasil não assegura os direitos fundamentais à sociedade, tornando frágeis as
questões essenciais à manutenção da vida indígena, o que distancia a participação popular do
exercício da democracia, tornando superficial o primeiro ciclo constitucional.
No que se refere ao “Estado Democrático de Direito”, definição do Estado pela
Constituição Brasileira de 1988, deve-se lembrar que ela é inspirada na Constituição
Portuguesa, o que já demonstra que tem-se um obstáculo para ter de fato o constitucionalismo
latino-americano como um todo. Devemos recordar que no artigo 1º da Constituição,
parágrafo único, é garantido que “todo poder emana do povo”, além de abordar o tipo de
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democracia que deveria ser vigente no país, a semidireta ou participativa, que é uma
democracia indireta com algumas suposições expressas de democracia direta.
Entretanto, a democracia brasileira não foi capaz de viabilizar uma nova forma de
cidadania solidária, como acontece nos outros países latino-americanos, tendo a democracia
indireta ou representativa como a predominante do país, sendo utilizada de forma errada, com
constantes desvios de função, por parlamentares que exercem o poder constituinte derivado
reformador. Com isso, nota-se que os veículos de democracia direta são frágeis, esporádicos e
insuficientes - apesar de existirem o plebiscito e o referendo para auxiliar nisso, mas são
pouco utilizados, porque apenas o Congresso Nacional pode convocá-los e deliberar sobre a
consulta popular - já que por exemplo, há a possibilidade de iniciativa popular para a
elaboração de projetos de lei, mas existem certos problemas para isso ocorrer, como muitas
exigências, o que as inviabiliza, não há prazo para a verificação da proposta pelo Poder
Legislativo e não é possível o povo alterar sua própria Constituição por vontade direta, pois
não é viável que ele sugira uma emenda constitucional, além disso, a Constituição Brasileira
não possui institutos capazes de cancelar o mandato eletivo das autoridades, como o “recall”
norte-americano e o “ostracismo” da Grécia.

3 O SEGUNDO CICLO CONSTITUCIONAL:


CONSTITUCIONALISMO PLURICULTURAL

As constituições pluralistas são caracterizadas pela diversidade jurídica, a qual leva em


consideração as particularidades das nações para o desenvolvimento da constituinte, como
pode ser observado na Colômbia e na Venezuela. Na Colômbia a constituição foi
fundamentada no pluralismo jurídico enfatizado na autonomia indígena, a fim de proteger os
direitos e a multiplicidade étnica dos povos originários do país, princípios previstos em lei, o
qual discorre sobre a oficialização das línguas e dialetos em território nacional, porém, essa
medida não foi o grande destaque do regimento, tendo em vista a criação da jurisdição
indígena.
A implementação do ordenamento indígena foi um expoente marco na constituição
colombiana que instituiu normas especiais aos povos originários a partir de seus costumes e
vivências culturais, de modo a respeitar a Constituição geral, já que ambas não podem entrar
em conflito. O documento (Jurisdição Especial Indígena) disserta acerca do reconhecimento
normativo dos direitos indígenas, assegurando o exercício das funções jurisdicionais dentro de
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seus territórios, o que facilita as práticas culturais e a liberdade de possuir governantes que
liderem as diligências das organizações tradicionais, respeitando e preservando as
comunidades.
Em suma, o grande passo dado pelo Estado colombiano foi democratizar o acesso à
justiça das sociedades originárias mediante o pluralismo jurídico, estratégia fulcral para a
valorização de estruturas decoloniais na américa latina. Na Venezuela, o projeto nacional se
deu de forma distinta, a Constituição venezuelana de 1999 foi instituída por meia de consulta
popular proposta pelo então presidente Hugo Chávez, que defendia a indispensabilidade de
uma Assembleia Nacional Constituinte, incentivando a participação política do corpo social
ao abrir uma votação para a aprovação popular.
Apesar da concentração de poder apenas no setor executivo no governo venezuelano
vigente, é possível considerar os avanços democráticos na participação semidireta nos
dispositivos legais que garantem iniciativas populares ou a revogatória de mandatário, acima
de tudo no destaque da constituinte ao evocar a ação popular em quaisquer mudanças da
constituição venezuelana. A assembleia nacional constituinte também assegurava o direito à
língua, aos costumes e à cultura indígena bem como prevê a efetivação da participação
política dos povos tradicionais e o pluralismo jurídico.

4 O TERCEIRO CICLO CONSTITUCIONAL:


CONSTITUCIONALISMO PLURINACIONAL

Por fim, tem-se o terceiro e último ciclo denominado de constitucionalismo


plurinacional, os povos originários integram a construção do Estado, de maneira a refundar o
Estado a partir da plurinacionalidade e do protagonismo da cultura indígena, com ampla
positivação dos direitos indígenas para a organização e solução de conflitos relativos aos
povos originários. Nesse sentido, são exemplos de constituições do terceiro de ciclo, Equador
(2008) e Bolívia (2009). A fundamentação desse último ciclo, que concretiza o novo
constitucionalismo latino-americano, se insere no excerto textual constitucional da lógica
epistemológica própria desses povos. De maneira mais específica, na Constituição
equatoriana vê-se, explicitamente, a menção do valor epistemológico '"Sumak Kawsay", que
trata do aspecto coletivo da vida, em todas as suas dimensões; assim como, na redação
constitucional da Bolívia em seu artigo 8 ̊. Portanto, ambas definem e integram princípios
éticos e morais para a construção de uma sociedade verdadeiramente pluralista.

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