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Roteiro do audioconto

Júlia Moreno, Luiz Henrique Espírito Santo

Português, 1° ano

Salvador, 2021
O fenômeno

Júlia : Era outono de 2436, ou pelo menos Lisa achava que era. Sabia que era
outono pois suas roupas já não estavam aguentando o clima, mas o ano era
impossível dizer, não tinha nenhum indicativo de data desde o "fenômeno".
Luke, por outro lado, não se importava com a data, ele já havia aceitado sua
situação e só se preocupava com a comida. Além da busca pelo alimento, a caça
era a sua maneira de fugir das loucuras da irmã, que tentava arduamente recuperar
suas vidas antes de irem parar naquele lugar. Compenetrado, tentando se
concentrar em qualquer coisa que não os próprios pensamentos, atirou, e tudo que
conseguiu ouvir foi o som da sua respiração em conjunto com a do pequeno animal
que ia se esvaindo.
Luiz: Ao voltar para a caverna tento não olhar para as falhas de que a irmã tanto
falava. As falhas eram resquícios do fenômeno, tinha aumentado significativamente
nós últimos meses, mas aquilo não importava, não sabia o que era aquilo e nem se
arriscaria em saber.
Lisa estava tão focada em fazer sua pequena máquina funcionar quem nem ouviu
Luke chegar, apenas notou o quão sua fome havia aumentado. Não podia se dar ao
luxo de ser vegetariana naquele lugar, o clima temperado não favorecia as
plantações, por isso viviam basicamente do que o irmão caçava, e ela não via a
hora disso acabar.
Júlia: Os irmãos se encontraram na cozinha, Luke cortando a pele do castor com
a mesma naturalidade que havia feito todos esses anos, e Lisa com a mesma
repulsa de todos esses anos. O jantar foi como sempre, Lisa esperançosa
comentando os avanços que havia feito, que mais pareciam grego para Luke, que
além de não entender não via um avanço sequer, não só nessa noite, mas também
nas outras 1.934, sim, ele havia contado. Não que isso o incomodasse a ponto de
dizer uma só palavra, mas algo tirou seu silêncio:
- Já imaginou o que as falhas fazem? - Perguntou a irmã, que não era muito de
fazer perguntas, pois teria que parar de falar para ouvir a resposta.
- Não?! - Falou Luke, já imaginando ser uma pergunta retórica.
- Acho que elas podem nos levar de volta.
Luiz: O silêncio perdurou por alguns instantes, Luke pousou a sua coxa de castor
na mesa e levantou os olhos para encarar a irmã, por um segundo tentou formular o
que iria falar. Nossa! Havia tanto para falar, mas tudo o que saiu foi:
- Como diabos você pretende descobrir? - Não queria parecer rude, mas já
não sabia como encerrar o assunto.
- Você sabe que só há uma maneira de saber - Lisa falou baixinho, abaixando
os olhos, mas Luke tinha escutado muito bem.
- Então quer dizer que eu te alimento todo dia para você inventar de se
desintegrar no ar? Como o John?- Realmente odiava tocar naquele assunto,
a irmã pensava que ele havia a perdoado, mas ele apenas havia se mantido
calado pois a dor não conseguia sair sequer em palavras.
- Qual a diferença entre desintegrar e continuar vivendo para o nada? - Disse
Lisa, sem ousar tocar no tópico John.
Julia: Infelizmente Luke não tinha resposta para aquilo. Mas extremos não tinham
os levado a lugar nenhum, a mãe que não quis continuar vivendo para o nada e
nem continuar convivendo com a culpa de os ter levado até ali, suicidou-se, o que
não foi uma solução prática para nenhum dos que se mantiveram vivos. E John, ele
desintegrou, simples assim, por sua esperança e ingenuidade de criança, com a
mesma imaturidade estava demonstrando naquele momento, e que havia
demonstrado ao encher a cabeça do irmãos mais novo com esperança, o que fez
com que ele atravessasse as falhas. Mas na realidade ele não havia atravessado,
pois passou de menino para pó em um milésimo de segundo.
Como sempre acontecia quando brigavam, não tocaram mais no assunto. Lisa foi
dormir mais cedo alegando cansaço e Luke permaneceu na sua parte da caverna
pensando no que tinha acontecido, em como a irmã era igual a mãe, em como tinha
medo que seguisse o mesmo caminho pela mesma impulsividade, em como ele
também sabia que estava vivendo para o nada, mas não queria admitir. Por fim, não
conseguiu dormir, absorto em pensamentos.
Luiz:Aproximadamente duas horas depois ouviu um barulho, devia ser a máquina
da irmã, ela provavelmente não tinha conseguido dormir também, foi até a parte da
caverna onde ela dormia para pedir que por Deus desligasse aquele negócio, mas
quando chegou, não havia sinal de ninguém.
Correu desesperado para fora da caverna, olhou tudo em volta, nenhuma luz,
precisava de uma luz, não conseguia nem distinguir o que era real naquele lugar.
Olhando atordoado ao seu redor viu um pequeno papelzinho caído no mato,
abaixou e o pegou, escrito apenas:
"Não posso mais viver desse jeito"
A frente dele, uma enorme falha em azul vibrante aparecia.

Júlia: Luke se encontrou no auge do desespero até não restar nada mais a sentir,
ou estava sentido tanta coisa que nem ao menos conseguia perceber o que era.
Sua irmã havia ido, só restara ele, em lugar completamente inabitado, que não
sabia onde era e muito menos o que faria a partir dali, estava perdido, cansada,
furioso, e o pior de tudo, sozinho.
Com o passar dos dias ele não queria fazer nada, levantar da sua desconfortável
cama improvisada parecia o maior sacrifício, só restava duas calças que havia feito
e logo teria que arranjar mais comida. Luke pensou que no momento realmente
estava vivendo para o completo nada, mas não poderia interromper sua vida
sabendo que poderia ter mais que aquilo de algum modo, já havia tido e não largava
a possibilidade de que poderia lhe surgir alguma coisa. Sua busca por sentido era
mais fácil naquele ambiente, apesar da ausência de pessoas, havia os pássaros, as
árvores, o rio corrente, o sol que nunca se atrasava para nada, e havia ele. Era para
ele que deveria viver.
Conseguiu achar prazer em sobreviver, antes tinha sua irmã que também dependia
dele, nunca teve propósito diferente desse, agora finalmente estava fazendo isso
por si mesmo, o peixe que comia com as ervas que encontrava eram o seu delírio,
os pássaros interagindo uns com os outros o seu entretenimento. Claro que faltava
algo, aquilo não era o suficiente, então procurou algo mais, todo dia desvendada
mais daquela terra, procurava novos caminhos, queria encontrar um litoral para
morar, não fazia mais sentido viver naquela caverna, poderia encontrar comida em
qualquer lugar e só precisava de abrigo para um, então começou sua jornada.
Júlia: Fez uma aposta no oeste para encontrar uma praia, todo dia seguia um
pouco mais, sentia falta de um companheiro, mas não tinha sequer um cachorro ali,
apenas animais selvagens, afinal, aquele lugar ainda não havia sido habitado, pelo
menos não por seres humanos. Seguiu mais e mais, achou uma praia, se
surpreendeu com o fato de haver tanta floresta ali, não sabia que as praias sem
ação do homem eram assim, a sua frente apenas uma passagem de areia não
muito longa, não sabia se era porque a maré estava alta e resolveu não arriscar,
recuou e se estabeleceu no topo de uma árvore, depois de dias focado na sua
jornada havia conseguido, e ainda faltava mais. Seu cansaço não o permitiu pensar
muito nisso, apenas apagou.
Na manhã seguinte resolveu observar o comportamento do local, sua única
distração, anotava tudo nas pedras, com arranhões, e ria do fato de ser o primeiro
humano fazendo pintura rupestre naquele lugar. Assim se seguiu por anos, sabia
quantos pois nãos havia distração o suficiente para esquecer de contar, trinta e três
anos.
Luiz: Trinta e três anos foi o tempo que demorou para Lisa conseguir recuperar
seu irmão. Ela já havia construído sua vida Terra original ( original é nome que
deram apesar de não ser exatamente o conceito correto), tinha filhos e uma carreira,
seguiu a mesma que sua mãe, física ambiental. Depois de conseguir voltar a Terra
por conta desses pesquisadores que estavam resgatando os voluntários do
fenômeno, trabalhou com eles para voltar e buscar seu irmão, finalmente conseguiu
permissão legal para atravessar de volta a barreira, e não foi sozinha. A equipe de
resgate estava maravilhada, nunca haviam visto nada parecido com aquilo, após
todos os desastres climáticos a Terra ficou bastante diferente, a falta de recursos
era notável. Com o uso de sua tecnologia conseguiram encontrar a localização de
Luke e marcharam até seu encontro. Ao chegarem notaram apenas um cinquentão
com a barba grisalha literalmente cerrada, Luke apenas sentiu um conforto em seu
peito, estava ali o que havia esperado todos esses anos.
Sua irmã lhe contou tudo o que havia acontecido, pela primeira vez não havia mais
ressentimento, ambos haviam conseguido o que queriam do jeito que escolheram,
todas aquelas brigas haviam perdido o sentido, voltaram para casa.
Depois de tantas reflexões, tantos anos, finalmente encontrou a plenitude, havia
valido a pena, e para sua irmã também, os dois depois de muito tempo haviam
descoberto que estavam na mesma busca e agora poderiam continuar, juntos.
Agora procurando um lugar como aquele lugar.

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