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Dossie15 Tambor
Dossie15 Tambor
FOTOGRAFIAS
Edgard Rocha
PROJETO GRÁFICO
Victor Burton
DIAGRAMAÇÃO
Inara Vieira
C A PA
M ÃO S TO C A NDO TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 06 .
PÁGINA 2
C O RE IRA S .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 05 .
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A FINA NDO TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 05 .
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C O RE IRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 02 .
Sumário
10 apresentação 64 O BEM CULTURAL COMO ANEXOS
OBJETO DE REGISTRO 76 Anexo 1 - Agradecimentos
12 introdução 80 Anexo 2 - Parecer do Relator
68 RECOMENDAÇÕES DE 92 Anexo 3 - Certidão de
18 IDENTIFICAÇÃO SALVAGUARDA Registro
19 O tambor
30 A roda de tambor 72 NOTAS
46 As festas de tambor
57 Permanência e mudança 75 FONTES BIBLIOGRÁFICAS
Apresentação
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R ODA DE TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
C ASARI O.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
Embora não se possa precisar dessas práticas e, nesse sentido, diferentes dimensões da vida social no
com segurança as origens históricas é atualizado como uma expressão de tambor de crioula – religião, política,
do tambor de crioula, é possível júbilo pelo fim da escravidão, lazer e economia, entre outras.
encontrar, dispersas em documentos além de guardar outros significados. No entanto, essas ligações só se
impressos e na memória dos Praticado especialmente em louvor tornaram mais explícitas na segunda
mais velhos, referências a práticas a São Benedito, com frequência ele metade do século XX e no início do
lúdico-religiosas realizadas ao longo tem sido associado ao campo religioso, século XXI, no bojo de um crescente
do século XIX por escravos e seus assim como ocorre em outras processo de organização dos brincantes
descendentes, como forma de lazer manifestações culturais populares em grupos e de institucionalização
e resistência ao contexto opressivo no Maranhão, a exemplo do bumba desses grupos para assumir relações
do regime de trabalho escravocrata. meu boi e da festa do Divino Espírito mais intensas e efetivas com os órgãos
O tambor de crioula teria sido uma Santo. São inegáveis as interfaces entre oficiais de Cultura do Estado.
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E SQU ERDA
TOQU E DE TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
D I REI TA
C O REI ROS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.
C O REI RO.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
Identificação
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R ODA DE TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
O TAMBOR É DOS NEGROS depois da abolição da escravidão, naquilo que costumamos chamar
em 1888, interpretar os sinais de de cultura popular há espaço para a
As narrativas da origem do tambor sua fala é um desafio para os não individualidade, a diferenciação.
de crioula em regra se referem a iniciados no jogo de representações Muitas vezes o tambor é
São Benedito ou ao período da da memória que sobreviveu à chamado pelo nome do líder
escravidão, ou a ambos. São Benedito opressão dos brancos. da brincadeira, aquele que é o
aparece no teatro das memórias como guardião da parelha de tambor,
um escravo que foi à mata, cortou O tambor é muito importante, o tambor por exemplo, Tambor de Leôncio,
um tronco de árvore e ensinou os é uma festa de amor dada pelos pretos Tambor de Apolônio e muitos
outros negros a fazer e a tocar o velhos antigos. Um preto antigo, numa outros. Às vezes o tambor é
tambor. Outras vezes ele surge como fazenda onde a princesa Isabel libertou simplesmente chamado de Tambor.
o cozinheiro do monastério que os pretos, ele ficou muito alegre. Alguns trazem no próprio nome
levava comida escondida em suas Ele gritava, falava, batia em cima de uma homenagem a São Benedito,
vestes para os pobres. Em todo caso, uma lata, fazendo a festa. Aí formaram como nos Tambores Proteção de
considerado o santo protetor dos um coro, encobriram um pau assim, São Benedito e Carinho de São
negros, no Maranhão São Benedito é como um tambor, e ficaram fazendo a festa Benedito. Há situações em que o
homenageado com toques de tambor. de alegria. De alegria! É uma história boa. nome também indica a localização
Desde a escravidão todo um Leôncio Baca, da sede do tambor, como no
sistema de comunicação não verbal, Tambor de Leôncio caso do Tambor Correio de São
incompreensível para os brancos, Benedito, cuja sede fica próximo
traduziu-se em expressões sonoras e Em muitos casos não há uma a uma agência dos correios. Mas é
corporais desenvolvidas pelos negros narrativa geral sobre o tambor e sua preciso que se diga que em regra o
em suas celebrações. O tambor de origem ancestral e sim a história tambor tem um nome, outorgado
crioula é uma das mais eloquentes específica de determinado grupo em muitos casos numa cerimônia
dentre essas expressões. Mesmo de tambor, demonstrando que de batismo com a presença de
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padrinhos e “familiares” do tambor. lugares onde se aprendeu a incorporaram desde cedo uma
A fala do tambor é a fala de um e tocar, nomes de lideranças que dedicação sem igual. O tambor tem
também a fala de muitos, mesclada já se foram, nomes de árvores de ser cuidado, sentido, amado,
nessa língua geral construída pela com a madeira apropriada para desejado, venerado. Para ser desse
passagem das gerações. a confecção dos instrumentos, mundo é preciso mais do que
As memórias dos integrantes do palavras que costumam ser vontade, é preciso um compromisso
tambor preenchem os sentidos de pronunciadas no auge da que por vezes ultrapassa a fronteira
uma memória mais geral que vai empolgação de uma roda, toadas, da morte. Por isso, as histórias de
sendo tecida com as experiências e o desejo permanente de ouvir e quem faz o tambor são de quem as
de vida trazidas pelo tempo. No sentir o som do tambor. narra, mas são de outros, os muitos
repertório dessas lembranças, Os saberes do mundo dos outros que compõem a irmandade
cenários de festas, nomes dos tambores pertencem àqueles que do tambor.
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E S QU E RDA
C O RE IRA .
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DIRE ITA
C O RE IRO .
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ou no momento da roda, pode ser O TAMBOR TEM MISTÉRIO lembranças mais profundas.
tomado como um elemento que Os tambores carregam um conteúdo
possibilita entender o modo de vida Como diz Seu Leôncio Baca, simbólico que transportam os
das pessoas que o cultivam. herdeiro de um tambor dos seus brincantes ao mundo de Deus,
Nos festejos, na dança, nos lugares e antepassados, “o tambor tem dos santos e da crença. Transportam-nos
na música encontram-se sintetizados mistério, mistério invisível” e seu para um mundo rico e heterogêneo,
a vida cotidiana, as relações de significado está, certamente, para propiciando uma experiência que,
parentesco e compadrio, os além da materialidade. Se as palavras como o transe, recria a realidade.
conflitos, as expectativas, os desejos, que acompanham e interpretam
a religiosidade, a fé; revelando o tambor de crioula compõem Eu nunca nem tinha olhado. Eu vim olhar
costumes, comportamentos e a um universo próprio, a memória a dança do tambor de crioula num terreiro,
cosmovisão dos brincantes. inscrita no corpo parece reter as aqui em São Luís, de uma senhora chamada
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Dona Denira, já falecida há muitos anos. Eu era de crioula. E esse tambor de crioula é de em entidades que particularizam
criança ainda, tinha uns 13 anos, 12 a 13 anos. uma invisível chamada Chica Baiana. uma essência divina que vem de
Estavam batendo esse tambor na porta da Igreja Acredito que foi ela que me ajuntou no outros tempos e lugares. No transe
de Santo Expedito. Quando eu escutei aquela momento e foi dançar tambor de crioula. os corpos têm um “dono”, um “guia”
marcha de tambor, aquilo me deu, assim, aquela Depois caiu na rotina, onde eu olhava o que transforma os indivíduos em algo
tristeza muito grande. As lágrimas vinham nos tambor eu queria cair dentro pra dançar. pertencente ao mundo dos espíritos,
meus olhos e eu não queria chorar, Neuza Marques, Tambor expressando uma personalidade
e aquilo me apertando. Eu comecei a Unidos de São Benedito através do domínio do corpo.
chorar, chorar, aí eu entrei no coro. Perdi o Uma vez incorporada, a pessoa
sentido e não me lembro mais. Minha mãe O transe é um dos mistérios da ultrapassa a fronteira do mundo
conta que eu brinquei o tambor de crioula e linguagem do tambor. Nele, os corpos dos homens e encontra o mundo
o pessoal se alegrava, e eu cantando tambor somam matéria e espírito duplicados dos encantados. Isso surge sem mais
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E SQU ERDA
C O REI RA COM I MAG EM D E SÃO BE NE DITO.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
D I REI TA
B UMB A -MEU-B OI .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.
assombros no meio do tambor, pois comunicativo, nasci pra bumba-boi e tambor de muitos grupos originados como
este é dos santos, das entidades. de crioula. E vou na macumba! E se o pagamento de promessas. Alguns
Com efeito, a principal motivação encantado esquecer de doutrinar eu doutrino. devotos que tiveram seus pedidos
dos festejos de tambor responde Dionísio Adrônico, Tambor de atendidos realizam festejos de tambor
à obrigação religiosa. E, nesse São Benedito da Vila Embratel desde a década de 1950, quando não
universo, a devoção não se restringe os herdaram de seus antepassados,
a São Benedito, seja na interpretação Alguns afirmam que a prática que já o faziam bem antes disso.
católica ou sincretizado com do tambor só se justifica em louvor É interessante notar que o mesmo
Averequete, mas também reverencia a São Benedito ou a outro santo. acontece em outra grande expressão
o Divino Espírito Santo, Acóssi4, Alguns festejam apenas santos da cultura popular maranhense,
Nossa Senhora da Conceição, Preto católicos. Já outros reverenciam o bumba meu boi, que também tem
Velho e outras entidades cultuadas em santos, entidades de cultos de matriz fortes ligações com o tambor de
casas de diferentes filiações religiosas. africana, sobretudo do tambor de crioula. Inclusive, muitos grupos
O fato é que a ligação entre tambor mina – religião de matriz africana, de tambor, especialmente os mais
de crioula, santos e entidades é iniciática e de transe ou possessão, antigos, originaram-se nos bois, cujos
mencionada em todos os grupos de altamente hierarquizada, que cultua participantes faziam rodas, dançando,
tambor, ainda que alguns brincantes voduns. Outros, ainda, destacando cantando e tocando o instrumento.
participem dele principalmente pela a dimensão da festa e da diversão, É esse o caso do Tambor do Oriente:
festa e pela diversão. consideram que a presença do santo
no tambor só é necessária quando se Com o tambor eu já me apresentava
Minha idade já está vencendo. Eu sei de onde está pagando promessa. em terreiros de umbanda, igrejas e
eu vim, onde eu estou, daqui eu não sei. A propósito, a lógica “promessa promessas muito antes da fundação do
Quem novo não morre, velho não escapa! feita, graça alcançada” está na origem grupo. O tambor de crioula começou
Então, eu não estou triste. Tenho setenta do tambor de crioula e evidencia a assim, principalmente para cumprir
anos, não bebo, sou sempre alegre, sempre dinâmica de criação e manutenção o ritual do boi, ou seja, a morte do
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E S QU E RDA
DE TA L H E S DA V E ST IM E NTA D E CO R EI R A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .
DIRE ITA
FE STA DO DIV INO E S PÍRITO S A NTO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .
com o santo dançando na cabeça, por Até a forma de dançar pode O TAMBOR CELEBRA A DÁDIVA
ser uma festa de São João e de santo diferir conforme os contextos e as
o entendimento é maior. Então, no devoções dos brincantes. Vide as São várias as festas animadas pelo
Carnaval, para não chocar as pessoas reclamações de muitas coreiras, tambor de crioula no Maranhão,
que são da Igreja Católica, aqueles de que algumas companheiras quer sejam de natureza religiosa ou
que são fervorosos mesmo, praticantes. “dançam tambor de crioula como se não. Por exemplo, o bumba meu
Se chega o Carnaval e se vê o tambor estivessem dançando mina”5. boi e a festa do Divino Espírito
de crioula e a pessoa dançando com Em todo caso, trata-se de instituir Santo, duas grandes expressões
o santo na cabeça, vai dizer: “O certos limites entre a festa e a devoção, da cultura popular maranhense
que é isso?!” Choca as pessoas. entre pureza e impureza, limites que também reúnem religiosidade
Clemente Filho, Tambor esses que são diferentes percebidos e e diversão, são frequentemente
Proteção de São Benedito vivenciados em cada grupo. acompanhados de rodas de tambor
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E SQU ERDA
PUNG A .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
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C O REI RAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
também possibilitam a recriação da um pouquinho. Toda noite a gente ia também podem pagar promessa
realidade cotidiana. para a beira da praia. Cansei de mandar simplesmente brincando, isto é,
meu irmão ir buscar uma saia da mamãe dançando, cantando e tocando
Eu nasci na Ponta D’Areia7. Quando o para eu dançar. Tudo de pé descalço, tambor para São Benedito. Por
vento estava muito forte, em agosto, que naquela areinha, que era uma beleza. outro lado, brincar no tambor de
não deixa pescador ir pescar, ficava todo Maria Arizete, Tambor um determinado dono, colaborando
mundo no barraco dos pescadores, ficava do Maracujá para sua brincadeira, pode ser
todo mundo triste. Meu pai ficava: “Meu uma forma de retribuição como
Deus do Céu, esse vento forte não deixa A generosidade e a reciprocidade expressão de lealdade ou gratidão ao
ninguém pescar, está todo mundo triste, os são atitudes comumente louvadas sujeito. Para o dono da festa, dar aos
homens estão com os nervos à flor da pele, no contexto festivo do tambor de brincantes comida e bebida, além da
sem poder pescar e sem ter nada em casa crioula. No entanto, é nas festas de oportunidade de brincar, é também
para alimentar a família”. Aí ele pegava e São Benedito que o circuito da dádiva uma forma de retribuir à sua gente,
botava o tambor dele para tocar. Camarão se revela mais explicitamente no demonstrando-lhe apreço. E há
seco, farinha d’água, cachaça, e botava cerne dessa brincadeira. Fazer uma ainda muitas maneiras de alimentar
gente para bater todos os três tambores e festa de tambor para o santo envolve o circuito da dádiva no tambor, sem
cantava. Ele patrocinava tudo. Com aquilo uma série de dons e contradons mencionar o pagamento de cachês
ele animava os pescadores, que estavam transitados entre humanos e por apresentações que passou a
tudo no desespero, sem ter nada de consolo. divindades e humanos entre si. ocorrer num contexto mais recente
Com aquilo passava, dava para aliviar o Primeiro, no caso do tambor de transformações na brincadeira.
coração e pensar no outro dia. “O outro originado de promessa, Em resumo, o tambor de crioula
dia é outro dia”. Então, quantas vezes eu subentende-se que a oferta da no Maranhão é uma forma de
chegava lá e meu pai estava com o tambor própria festa é um pagamento expressão que celebra a dádiva em
mais minha mãe na beira da praia. A gente ao santo pela graça concedida múltiplos planos da vida social,
morava na beira da praia, mas afastado ao festeiro. Mas os brincantes material e simbólica.
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RO DA DE TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.
“crivador” ou “pererengue” que Por exemplo, no povoado de Santa habilidade e precisão. Em primeiro
realiza improvisos em 6/8. A música Maria, no município de Porto Rico lugar, a madeira escolhida não
africana é frequentemente caracterizada do Maranhão, utiliza-se o vocábulo deve ter espessura igual em suas
como sendo polimétrica, porque, em “terno” para designar o conjunto extremidades, pois como alguns
contraste com a música ocidental, dos três tambores, ou ainda, “terno argumentam, em decorrência
cada instrumento no conjunto possui da santa” em referência ao festejo da cobertura ser feita na parte
medidas diferentes, permitindo diversas de Nossa Senhora da Conceição, superior, esta precisa ser mais larga
possibilidades de variação e de improviso no mês de novembro, quando é que a inferior. São especialmente
para o tambor que lidera o grupo. realizado o tambor de crioula. valorizadas para a confecção de
Igualmente, variam os materiais tambores as madeiras nativas das
As denominações variam de com que são feitos os tambores. áreas de manguezais, como o
acordo com o grupo ou a região. A propósito, fazê-los exige “burdãozeiro”, o “soro”,
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a “fava” e a “siriba”. Seu Coco, do não serem considerados ideais A mudança, nesse caso, tem
Tambor do Oriente, diz preferir nem originais. Eles apresentam contribuído para a continuidade
os “tambores originais e da raiz algumas vantagens como o fato de da prática do tambor de crioula.
do negro”. A originalidade, nesse serem mais leves, práticos e menos Como explica Dona Ildener
caso, diz respeito à utilização de custosos, além de mais facilmente Barbosa, do Tambor Coração
madeira “tirada no mangue”, acessíveis, tendo em vista o atual de São Benedito, o tambor dos
posteriormente, brocada e queimada contexto de proibição de retirada antigos era “uma casca de pau que
por dentro. de madeira em áreas de proteção eles batiam”, mas com o passar do
Geralmente, os grupos têm ambiental. Por esses motivos, tempo a madeira foi se tornando
as parelhas feitas de madeiras; o uso de tambores feitos de PVC menos acessível e buscaram-se
no entanto, os tambores de PVC tem aumentado significativamente, outras matérias-primas para fazer
são bastante utilizados, apesar de principalmente em São Luís. os tambores.
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E SQU ERDA
R ODA DE TA MB OR NO C ARNAVAL .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.
D I REI TA
R ODA DE TA MB OR EM FE STIVIDAD E RE L IGIOSA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
Depois eles inventaram aquele tambor confere a alguns tocadores a esteja no ponto, bem molinho. Na verdade,
de bambu, um tamborzinho de bambu. incumbência de especialistas. existem dois processos: esse de botar o couro
Desse tambor de bambu, foi o tambor de molho quando a gente compra ele seco,
de madeira, grande, de tronco. Eu vou buscar esses tambores no interior. e o outro de quando a gente compra o couro
Hoje em dia, nós usamos na maior Eu entro no mangue para pegar esses fresco. No caso de ter o couro fresco, a gente
parte já desse tambor [de PVC]. instrumentos; não é chegar e pegar um cobre logo, só faz cortar o pedaço certo pra
Tudo vai ficando difícil, porque a pedaço de madeira e botar um couro e cobrir. A gente utiliza muito couro de boi,
madeira, lá no mato, já não querem tocar, não! É todo um processo. A gente tira alguns gostam de couro de veado, mas eu
que ninguém corte, que ninguém a madeira por toque. Eu entro no mangue, gosto de trabalhar com couro de boi.
tire, o Ibama, não pode... dou um toque na madeira e sei quando ela Para ocar também tem todo um processo.
Ildener Barbosa, Tambor está no ponto para fazer o tambor; a gente A gente usa uma ferramenta chamada
Coração de São Benedito sabe quando ela não está. Quando dou um trincha coiva, e vai ocando por dentro da
toque nela e sinto que ela está um pouco madeira. À proporção que vai se tirando as
Ainda assim, minúcia, detalhes oca, eu tiro, boto na beira do mangue e já farpas, vai tocando fogo, aí o fogo
e alguns segredos são requeridos trago para cá [São Luís]. Chegando aqui, vai apagando e a gente vai ocando.
para garantir a qualidade dos ela vai sofrer outro processo. Um processo Isso tudo até chegar ao ponto certo do
instrumentos. Observam-se, entre de trabalho. A gente vai trabalhar em cima tambor estar totalmente ocado. Para
outros fatores, as fases da lua para dessa madeira, terminar de ocar, lixar a colocar as tarraxas ou cravelhas eu utilizo
escolher o momento certo de parte dela que tá mais bruta. É tipo um uma furadeira elétrica para fazer os sete
retirar a madeira para confeccionar diamante como uma pedra bruta, a gente furos. Nesse caso varia, tem gente que faz
os tambores. Descrito por alguns lapida ela todinha! A madeira passa por um oito, sete ou seis, no meu caso, eu gosto de
como um “todo ritual”, o ofício processo de lixamento. Depois tem que furar fazer oito furos que fica o ideal. Depois bota
de prepará-los é extremamente para botar o couro. O couro também tem o couro com três talhos, passa o ferro por
valorizado entre os brincantes e outro processo: tem que botar ele de molho dentro desses três talhos, puxa até o buraco
o domínio desse modo de fazer um dia antes para que no dia de cobrir ele e bota a cravelha para ficar bem esticado
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RO DA DE TA M BO R E M FE ST IV I DA D E R ELI G I O S A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.
e chegar à afinação certa. Eu acompanho lado do local onde haverá a roda, e eles, mantendo-os entre as pernas.
todo esse processo. Acompanho e faço. os brincantes levam os instrumentos O tambor grande é amarrado por
Marcelo Silva, próximos ao fogo por alguns uma corda na cintura e preso entre
Tambor Pungar da Ilha momentos, sendo este, um dos ritos as pernas do tocador chefe, que
iniciais para se começar um tambor. permanece de pé.
Da mesma forma, a afinação dos Na sequência, trazendo A maioria dos grupos também
instrumentos requer conhecimentos uma marcha solitária, o meião utiliza a matraca, um par de
específicos, já que para uma roda inicia os toques com seu ritmo pequenos pedaços de madeira
animada são indispensáveis certos marcado. É seguido pelo som batidos no corpo do tambor grande.
cuidados com o tratamento dos agudo ou “repicado” do crivador. O toque das matracas acrescenta
tambores, garantindo, assim, que Por último, o tambor grande se “um tom especial” às toadas. Elas são
tenham boa “voz”. apresenta “rufando” a liberdade e o executadas por tocadores que ficam
“Quentados a fogo”, os tambores improviso. José Vitório, do Tambor agachados atrás do tambor grande10.
devem ser cautelosamente afinados de Zequinha, explica o toque: A respeito da música dos tambores,
numa fogueira, tanto os de madeira “Tem de ‘caçar’ quando o tambor Sandler afirma que “mais do que
como os de PVC, embora este socador fala. O crivador vem logo um produto, é um processo no qual
último seja considerado mais fácil atrás, aí o tambor grande tem de todos os presentes são, ao mesmo
de afinar, já que as espessuras caçar o sotaque para não levar nada tempo, participantes e criadores”,
das duas partes, apesar de iguais, atrasado, tem de levar certinho”. acrescentando que esse processo não
não interferem na sonoridade Tocados com as mãos, tem “começo nem fim definido”11.
do instrumento. A quentura do os tambores compõem uma Para a autora, a característica mais
fogo deve acompanhar o tambor, combinação rítmica envolvente. marcante da musicalidade do tambor
que precisa retirar das chamas a O meião e o crivador são assentados de crioula é o grau de participação e
força para se expressar9. Então, em um tronco no chão, lado a lado, interação dos diferentes elementos
geralmente faz-se uma fogueira ao e os tocadores sentam-se sobre que o compõem.
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Há fundamentos musicais que enquadram baixo, interage com os outros tambores, menos “alvoroçadas”, “corridas”,
essa unidade de participação numa dirigindo a música e a dança, especialmente “lentas”, “cadenciadas”. Nessa
moldura. Uma base é a interpenetração a característica “punga”. O tocador de direção, Apolônio Melônio,
dos padrões rítmicos simples e repetitivos, tambor grande brinca com os ritmos, do Tambor Brilho de São Benedito,
chamados padrões “ostinatos”. A música enfatizando alguns, preenchendo espaços, acrescenta: “Em uma parte é
normalmente começa com um ostinato de realçando o sentido entre 2/4 e 6/8. mais cadenciada, outra mais
duas notas tocado no meião. O crivador, O canto está delimitado pelos instrumentos – alvoraçada, mas o sentido é só um.
com tom agudo, entra com outro ostinato, um cantador principal entoa uma melodia Os cantadores seguem o costume
tocando no meio dos espaços dos ritmos do curta, que é respondido pelo grupo.12 do lugar. Uns, cantam mais alto,
meião, e juntos criam um ciclo repetitivo. outros, mais baixo”.
O padrão da matraca define a duração O modo de tocar e cantar varia Como ocorre no bumba meu
desse ciclo. O tambor grande, de tom mais e as melodias podem ser mais ou boi, no tambor de crioula também é
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E SQU ERDA
A FI NAN DO TAMB ORES .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.
D I REI TA
PA R ELHA DE TAMB ORE S.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.
importante. São quatro tamborezinhos de ele enriquece a diversidade dos respondidos pelo coro. Logo o
taboca. Aliás, só têm nome três, porque toques de tambores na Ilha de São vozerio dos coreiros – homens que
dois fazem parte só de um. Dá o nome de Luís e no interior do Maranhão, ao tocam – e das coreiras – mulheres
meião, o crivador e o tambor grande. mesmo tempo, que exibe histórias, que dançam na roda – se dilui na
José Ribeiro, Tambor de estilos e performances próprias. energia contagiante da roda. O fim
Taboca de João Ceguinho Como diz César Imperial, do das cantorias, segundo Sandler,
Tambor Bambu Crioula, “o tambor “depende do ambiente musical ou
Uma versão sobre a origem do tocado com as tabocas ou bambus foi social, por exemplo, quando os
tambor de taboca informa que os feito por curiosidade, por ser ímpar tambores necessitam ser reafinados
indígenas, que já tinham práticas e único. É diferente, mas igual”. ao fogo, enquanto pouco a pouco
de percussão, vendo os negros silenciam o toque e o cântico”14.
se divertirem com os tambores TOADAS As toadas do tambor de crioula
de madeira “e tendo mania exemplificam o vasto repertório oral
de imitar tudo”, inventaram Unindo rimas improvisadas e musical do Maranhão e podem
instrumentos semelhantes para a um repertório tradicional ser classificadas em diferentes
os “caboclos” dançarem. No lugar comum, as toadas são versos temas como: a autoapresentação,
de madeira e couro, coletaram curtos acompanhados por um saudações, cumprimentos,
bambus, ocaram e bateram em coro resposta, que se fundem ao autoelogio, reverências a santos
cima de pedaços de madeira com ritmo dos tambores. Sejam mais e entidades protetoras, descrição
o objetivo de “tirar o som”. “cadenciadas” ou mais “badaladas”, de fatos, recordação de situações,
No amplo universo dos de acordo com o estilo do tocador pessoas e lugares, sátiras, recordações
tambores, não se trata de classificar e o conteúdo das toadas, há sempre amorosas, desafios, despedidas,
o tambor de taboca meramente algo de fascinante nos seus versos. etc. Elas elaboram e transmitem
como variação ou derivação. Apesar Um solista inicia os cânticos, mensagens diversas, muitas vezes,
de ser feito por poucos grupos, que passam a ser repetidos ou sob a forma de códigos e linguagens
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C O RE IRO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .
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C O RE IRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.
C O RE IRO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .
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DANÇA DA COREI RA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
D I REI TA
D ETA LHE DA DA NÇA DA C ORE IRA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
de derrubar o companheiro com senzalas, utilizando como atrativo as Benedito teria transformado uma
uma rasteira. Era como um golpe. negras escravas mais jovens e mais cesta de comida em flores quando
Dona Mocinha, do Tambor Lírio de bonitas. Enquanto isso, nos fundos foi pego em flagrante tentando
São Benedito, conta que “homem do local eram realizados os cultos alimentar os pobres.
pungava o outro, dava pungada e religiosos. Assim, a brincadeira
jogava distante. Aí ele se ajeitava chamada “tambor de crioula” ROUPAS
de ladinho e o couro comia de permitia que os cultos religiosos
novo! Depois que passou a ter essa permanecessem em segredo. Descrever a indumentária dos
violência, acabou esse negócio de Vale ressaltar que, além de praticantes de tambor de crioula
homem na dança”. Assim, a punga homens e mulheres, os santos poderia até ser um exercício simples.
masculina teria sido substituída pela também podem estar presentes Para as mulheres, saia de chitão
“umbigada” feminina, explicando a na dança, embora isso não ocorra florido e bem rodada, “que é para
ausência atual da figura do homem em todos os grupos. Dependendo dar aquele movimento”, anágua
como dançante do tambor. da promessa que tenha originado por baixo das saias, blusa branca de
Outra versão, igualmente o tambor, algumas diferenças em renda, com babado na gola, torso na
interessante, associa a ausência relação ao modo de devoção e cabeça, colares. Elas mesmas escolhem
dos homens no centro das rodas representação da divindade são o tecido, cortam e fazem as roupas.
às estratégias de dissimulação dos definidas na roda. No Tambor Para os homens, itens que podem ser
cultos africanos que eram proibidos Turma dos Crioulos, por exemplo, confeccionados ou comprados, como
e perseguidos durante a escravidão. São Benedito é louvado sem que calça, camisa “de botão” e chapéu de
Cícero Ribeiro, do Tambor Senhor sua imagem faça parte da roda. couro ou de palha. Mas tal descrição
de La Ravardière, relata que para Nele as mulheres dançam com não refletiria a complexidade de
viabilizar a continuidade dos seus uma pequena cesta enfeitada com escolhas que está por trás de cada
cultos, os negros começaram a fazer flores, adorno esse que representa peça do figurino aparentemente
rodas de tambor na entrada das o milagre do santo, já que São simples. Na roda de tambor de
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crioula, colorida, luminosa, animada, brincantes, “antes as mulheres botavam vestimentas antigas eram “simples,
a ideia de espetáculo cede lugar à seu melhor vestido godê, e os homens porque é brincadeira de lavrador”.
de apresentação. Apresentar-se ao roupa de ir para o trabalho, calça de Tais declarações deixam entrever
público, aos outros grupos de tambor, linho... Não tinha isso de farda!” Nesse que as roupas uniformizadas e
exige marcar um traço próprio não só mesmo tom, argumentam: chamativas foram uma introdução
no jeito de cantar, dançar e tocar, mas “saia estampada? Não, que só recente no tambor de crioula, que
também no jeito de vestir. muito depois é que chegou esse divide opiniões entre os participantes.
A roupa de coreiras, cantadores e tipo de tecido no interior”. Outros Algumas mulheres reclamam da
tambozeiros é um dos elementos que se explicam que “a gente se sujava de padronização que lhes chegou até os
produz na tensão entre padronização banha de porco e tintol e ia para a pés: umas dizem que “tem que dançar
e subjetividade no contexto da rua, por isso usava roupa de saca de descalça”, outras dizem que “tem que
cultura popular. Como dizem alguns açúcar”, reforçando a ideia de que as dançar calçada”.
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E SQU ERDA
A D ER EÇOS DA COREI RA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
D I REI TA
R OU PA DA COREI RA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
E SQU ERDA E DI R EI TA
C O REI ROS.
FOTOS: EDG A R R OCHA, 2002.
C O RE IRA S .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.
quem está batizando uma pessoa, Te batizo [...] santo como São Benedito ou São
rezando o padre nosso”. Só que, Em nome do Pai, do Filho João. Batizar o tambor significa
nesse caso, o rito deve ser realizado, e do Espírito Santo renovar os votos com o santo, com
preferencialmente, sob comando Pai Euclides a promessa ou com o motivo de
de uma rezadeira ou um rezador, origem da brincadeira. Na dinâmica
um sujeito legitimado para mediar a Esse rito de passagem, feito do tambor, esse ato reafirma o elo
comunicação com o mundo sagrado. anualmente, geralmente acontece entre a divindade e a festa,
antes da primeira apresentação do os brincantes e o grupo.
Eu te batizo [...], ano, na qual serão apresentadas Durante o rito de batismo
Com toda tua formosura, novas indumentárias e novos ladainhas são cantadas, orações e
Não te dou santos olhos instrumentos, mas também pode pedidos são anunciados. É a “salva
Porque não és criatura ocorrer no festejo principal de um do santo”, e ele deve estar presente,
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RO DA DE TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.
em especial, nos casos de promessa. quer dizer que o santo, no momento, As narrativas de seus milagres
Ao término das ladainhas, aciona- está valendo mais que o dinheiro. geralmente começam com uma
se a “voz” dos tambores, o santo Antônio Pacheco, Tambor “história do tempo dos escravos”
“sai” do altar e vai “dançar” com Milagre de São Benedito para introduzir episódios de feitos
os coreiros e coreiras. Santo e no presente. Pois é no presente
brincantes parecem pertencer ao São Benedito, “o santo preto”, que o santo é apropriado pelos
mesmo mundo. Depois que todos ocupa o lugar de patrono dos devotos para mediar em seu favor o
dançam e cumprimentam o santo, grupos de tambor de crioula. possível e o impossível, abrindo-lhes
ele volta para o altar, e “fica lá espaços nos quais os negros e seus
assistindo a festa”, como dizem. Meu São Benedito descendentes normalmente
Nesse contexto, o santo é a própria Vosso manto cheira, são interditados.
imagem; ela não o representa, Cheira cravo e rosa
mas simplesmente é. Então, até a Flor de laranjeira. Eu sou assim, uma devota do santo.
aquisição da imagem é ritualizada. Trecho do Bendito Eu quero fazer uma coisa que agrade o
de São Benedito santo e que seja assim do meu gosto.
A gente vai negociar, vai na casa de um Eu não botei tambor de crioula para
santeiro, numa casa que vende imagem. Evocando histórias contadas por comprar uma fazenda de gado,
A gente nunca diz que vai comprar antepassados, os brincantes de hoje é para pagar minha missão, minha
um santo, a gente vai trocar ele pelo o representam como aquele que promessa. Então, enquanto eu puder
dinheiro. Isso aí é uma coisa que tem um fazia a mediação com o “mundo eu quero fazer coisa daí pra melhor.
mistério, eu já encontrei da era dos meus dos brancos”. Seja para alimentar, Dona Mocinha, Tambor
pais, meus avós, que não se comprava proteger ou inventar a parelha de Lírio de São Benedito
santo. Aí nego pensa que trocar o santo tambor, São Benedito é reconhecido
é um pelo outro. Não, não é um pelo e cultuado como o santo milagreiro É nas festas de Tambor de
outro. É trocar o santo pelo dinheiro; e protetor dos negros e do tambor. Promessa e, evidentemente,
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nos próprios festejos de São não sobrou nada, toalha, nem mesa, Dia de preto velho é tambor de crioula
Benedito que a relação do tambor nem nada. Mas ele não pegou fogo, quase para todo lado. Essa história
de crioula com o santo fica mais estava em pezinho lá embaixo da mesa. vem daí. Como prova, a gente vê a
explícita, pois nelas se materializa a Terezinha Moraes, Tambor preta velha. Tem lugar que tem preta
presença do sagrado: o santo é visto, Brilho de São Benedito velha, de cabeça amarrada, né?
o santo assiste, é banhado, roubado, Maria da Paes Santos, Tambor
tocado, ele dança, é “salvo”. As festas de São Benedito, Mimo de São Benedito
animadas pelos tambores,
Uma vez, no festejo do Taim, a gente se multiplicam em todo o Maranhão, Nas casas de Tambor de Mina
estava dançando. E lá é assim, eles especialmente em São Luís e São Benedito é frequentemente
fazem uma casinha para botar o santo na Baixada Maranhense, que é sincretizado com Averequete,
e a gente dança na porta. Aí pegou considerada uma “terra de tambor motivando a realização de festas
dançar, pegou dançar, quando deu de crioula”. É como diz Joel João com tambor de crioula para
meia noite... Sempre tem um abelhudo, da Silva, do Tambor Rojão de São saudar esse vodum masculino
né? Diz que foi olhar o santo e ele Benedito, natural do município representado como um negro.
estava molhadinho de suor. Ele disse de Alcântara: “Sou alcantarense de Contudo, essa associação não
que tinha visto o santo dançando lá, São José. Eu cresci me habituando. é regra em todas as casas. Por
e estava molhado de suor mesmo. Lá tem um festejo de São Benedito exemplo, Pai Euclides, que é pai
Ah, isso foi um susto para a gente! todo ano, no mês de agosto”. de santo da Casa Fanti-Ashanti e
Teve outra vez, eles se mudaram daqui e Também se fazem festas de tambor dono dos tambores Venerador de
foram para Boa Razão. Na Boa Razão, para os pretos velhos, como diz São Benedito e Abanijé-um,
levaram São Benedito, chegaram lá, Maria da Paes. entende que São Benedito e
botaram São Benedito numa mesa. Averequete, embora sejam
Foram acender uma vela, não sei como, Porque o tambor de crioula, mesmo, negros, são distintos e devem ser
a mesa pegou fogo. Quando eles deram, que dizem, é do começo de preto velho. celebrados em rituais próprios.
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De modo geral, porém, espaço anexos à residência do dono ressignificam o lugar da sede.
para além dos momentos de festa, ou da dona do tambor. É nesse O dono da casa é o dono do grupo.
a relação dos tambores com espaço que os festejos, as promessas, Relações de hierarquia, de amizade,
São Benedito, Averequete e os os preparativos da brincadeira e as de compadrio, de parentesco, de
pretos velhos extrapola qualquer confraternizações são realizadas. sucessão se estabelecem de acordo
ritual específico e se dilui nas Vale destacar que, embora, em com as atividades e a entrada de
preces individuais, nas cores das regra, se distinguissem o lugar pessoas no grupo. As relações
roupas usadas pelos brincantes, de morar e o lugar de festejar dono-brincante assumem formas
nas toadas, nos nomes dos no espaço identificado como a variadas como mando-obediência,
grupos, nos altares, nas rodas, “casa”, o termo “sede” se tornou protetor-protegido, mestre-aprendiz.
nas promessas. Há, ainda, as corriqueiro mais recentemente O dono da brincadeira é um
formas silenciosas de expressão entre os grupos de tambor de “regente”, termo nativo que denota
da devoção. Para o pai, a mãe e crioula. Provavelmente esse fato se a obrigação de cuidar do grupo,
os filhos de santo que participam deve à obrigatoriedade de os grupos receber bem e zelar pelo lugar da
do tambor de crioula, em lugar adquirirem uma personalidade festa, seja a sede ou a casa.
da enunciação do milagre, da jurídica que precisa estar sediada
publicização da promessa, tem-se em algum endereço e ter uma Ele morreu (senhor Alteredo do Centro de
o segredo, o mistério revelado diretoria e um estatuto próprio, Cultura Domingos Vieira). A única palavra
apenas aos que têm a missão de ver individualizando cada grupo na que ele disse ainda, que São Benedito deu essa
o invisível e perpetuar o encanto. figura de uma associação civil licença pra ele. Se despediu de todo mundo,
e impessoal. quando o tambor chegou, que eles foram se
O LUGAR DA FESTA Em todo caso, porém, apresentar lá na praça, na Cohab, e quando
a “casa” rege as relações da “sede”; ele veio de lá o pessoal botaram o tambor
A maioria dos grupos de tambor é justamente a coletividade e a aqui na frente da mesa, que a gente dava o
de crioula tem sede na casa ou em pessoalidade das relações que jantar do pessoal, e nesse dia ele me ajudou
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a botar o jantar, botar a mesa... e disse pro que diminuiu o tamanho dos dos anos setenta do século XX a
povo: “a casa é nossa, vamos entrando, vamos quartos de sua casa para aumentar a saída dos tambores de crioula do
entrando...”. E eles disseram: “ah, nós tiramos sala, local onde ela serve comida aos espaço da casa para a apresentação
uma toada nova pro grupo, o senhor não foi, brincantes e visitantes do Tambor de espetáculos. Com o intuito de
mas a gente vai mostrar como foi que a gente Lírio de São Benedito I. mostrar as “raízes culturais” do
fez lá na praça”... E botaram os tambores bem Estado do Maranhão, os governos
na frente da mesa, e cantaram as duas toadas, O dono é aquele que de tudo entende um municipal e estadual elegeram duas
a entrada e a despedida, e aí ele começou a pouco. Se falta um cantador, eu tenho que épocas do ano nas quais o tambor
chorar e abraçar todo mundo se despedindo, cantar, pode ser tudo errado, mas tem que se tornou “brincadeira típica”:
e dizia assim: “tomam conta, tomam conta, ir lá; se falta uma coreira eu tenho que ir lá Carnaval e São João. Nesses períodos
obrigado meu Deus, tomam conta...” dançar; se tem que servir uma cachaça, eu o tambor circula como “show” em
Roseli Carneiro, Tambor vou servir; e até para beber mesmo! vários espaços públicos.
Flor de São Benedito Eu estou em tudo! Em todas as etapas. Casa e rua, então, tornaram-se
Onde me procurarem, eu acho que me acham. espaços emblemáticos
Cuidar da sede e da casa, Em todos os quesitos. Se for para carregar representativos de diferentes
na prática, compreende uma os bagulhos e não tiver no momento quem modos de realização do tambor
só atividade, mesmo quando esses carregue, quem tem que carregar sou eu. de crioula. Nos dizeres de Seu
espaços se situam em locais distintos. É igualzinho aquele ditado: o dono do Joel Silva, do Tambor Rojão
De fato, as distinções entre a sede defunto é que carrega do lado da cabeça. de São Benedito, essas formas
e a casa se dão menos pelo critério Maria Juliana Fonseca, diferenciadas de fazer a festa vão
geográfico e mais pela importância Tambor do Oriente além do aspecto material dos
que se atribui às atividades que nelas locais em que os grupos brincam e
se exercem. Cite-se o exemplo de O lugar da rua foi ocupado mais podem ser designadas por termos
Maria da Conceição Madeira, mais recentemente pelo tambor de crioula. como “tambor oficial” e “tambor
conhecida como Dona Mocinha, Várias narrativas situam por volta de residência”: “quando é oficial
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tem que estar no padrão. Tambor no Maranhão, percebe-se uma de periferia. Onde mais as pessoas
de residência, esse que a gente diz conexão clara entre a capital e o se sentariam na porta, acenderiam
tambor de amor, não, a gente faz interior do Estado. No contexto uma fogueira, chamariam o vizinho,
porque gosta da brincadeira, não do inventário foi identificado um abririam a própria casa para oferecer
para ter pagamento.” grande número de brincantes um café com bolo de tapioca a todos
Na prática, esses modos de nascidos na região chamada de quantos chegarem? Onde mais
fazer o tambor remetem a escolhas Baixada Maranhense. Mais que um as mulheres seriam dispensadas
e a imposições feitas em relação dado numérico ou geográfico, esse da cozinha para virarem atração
ao tipo de roupa, ao número de fato é relevante: por exemplo, ser do da casa? Onde mais, negros e
brincantes, ao tempo de duração município de Viana não é a mesma negras teriam a fama de melhores
da roda de tambor, ao tipo de coisa que ser de Pinheiro, embora cantadores, tocadores, dançadeiras,
toada tocada e cantada, à cobrança ambos sejam municípios da Baixada. de quem mais sabe, de quem é mais
ou não de cachê e à definição O ponto fundamental é que os capaz de ensinar? Onde mais seriam
do valor deste. Como aspectos grupos estabelecem diferenciação os grandes donos do tesouro? É por
positivos dessa espacialização entre si por esse critério de isso que a periferia assusta a cidade.
são mencionados a maior pertencimento. Certos grupos É lá o lugar da diferença. É de lá que
divulgação do tambor, a quebra primam pela lealdade e pelo o tambor rufa o inconformismo,
do preconceito, a renda gerada; comprometimento do brincante em desdenha da mesmice, do padrão.
entre os aspectos negativos são relação ao tambor ao qual pertence, É lá que a toada ignora a submissão,
citados a perda da originalidade, como se demarcasse uma referência que a fogueira consome a dor e
criação oportunista de grupos e a com o lugar, o bairro, a sede, o grupo, a transforma em força radiante.
burocratização na relação com as toadas, os toques e as pessoas. É lá que os pés das coreiras vão
o Estado. Em São Luís, boa parte das sedes sedimentando outro lugar e seus
No que tange à distribuição dos grupos de tambor e as casas dos gritos ultrapassam fronteiras.
socioespacial do tambor de crioula brincantes está situada em bairros Ao que parece, o tambor e a periferia
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criam-se mutuamente na Ilha, mas dignidade dos brincantes do já havia estado lá; que possuíam os
não rompem os laços com o interior.18 tambor de crioula, que, por sua vez, melhores tambozeiros; que suas
Se falar em periferia remetem ao mundo rural. coreiras eram mais “danadas”
remete comumente à avaliação No caso do tambor, estar e empolgavam o público
das condições materiais dos na periferia também implica a por onde passavam.
bairros, remete também a uma preferência em dizer que a casa é O jeito de cantar, tocar, dançar,
desapropriação de subjetividades, pequena em relação ao tamanho do as letras das toadas, tudo isso traduz
de sonhos. Ser da periferia é quase grupo de tambor, que a última festa no “aqui” – na cidade – o ser de “lá” –
uma acusação que o “centro” faz às bateu o recorde em quilogramas do interior. Da mesma forma,
pessoas que vivem nela, impondo de carne oferecidos, e em público o desenho irregular das ruas, os
uma perversa igualdade entre lugares presente; que a vizinhança terraços de chão batido, as casas de
e pessoas que as torna indistintas, acompanhava o grupo do bairro nos poucos compartimentos cortados
sob o rótulo de pobres e marginais, circuitos de Carnaval e São João; por grandes corredores, os quintais
que as torna despossuídas de que planejavam fazer um CD e cheios de plantas, animais, o café
desejos, apenas portadoras de um DVD; que queriam divulgar o na caneca, o rádio no lugar da
necessidades básicas. grupo na internet; que o valor dos TV não se explicam pela falta de
Atribuir aos brincantes de cachês é irrisório; que os grupos infraestrutura dos bairros ou pela
tambor de crioula o lugar da mereciam bem mais; que a última suposta pobreza dos entrevistados.
periferia, pelos critérios da falta, “farda” tinha ficado muito bonita; É o modo de viver de “lá”
da precariedade, silencia-os. que eles próprios faziam tudo; reproduzido e reafirmado em meio
A escassez material, embora muitas que um grupo vizinho espionava os aos padrões do urbano.
vezes perceptível, quando tornada o ensaios para copiar as novidades;
critério de identificação da periferia, que eram padrinhos/madrinhas Eu chorei, eu chorei
torna invisível a individualidade, do tambor de certo brincante; Eu chorei meu lugar
a diferença, a criatividade e a que um importante pesquisador Eu chorei
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Muitas são as comparações feitas crioula. Distribuir a comida nas econômicos, humanos e
pelos brincantes entre o “lá”, festas não é apenas alimentar os investimentos simbólicos.
lugar onde se nasceu ou se aprendeu convidados, mas seguir o exemplo
a prática do tambor, e o “aqui”, de caridade de São Benedito, Meu São Benedito
geralmente a capital do estado, demonstrar abundância e superação Foste cozinheiro,
São Luís. A expressão “meu lugar”, das dificuldades. Considerada um Hoje és um santo
frequentemente usada pelos dos pontos altos da festa, Do amor verdadeiro
brincantes em narrativas sobre a mesa deve ser farta, pois, na lógica Trecho do Bendito
o tambor, indica que o tambor dos devotos, está relacionada às de São Benedito
de crioula é um espaço em que histórias sobre o santo, que teria
a produção de memória e a sido um escravo e cozinheiro que, Quanto aos recursos econômicos,
história fundem temporalidades às escondidas, distribuía alimentos podem sair do bolso do festeiro que,
e espacialidades distintas, aos necessitados. driblando as dificuldades, confirma
conformando um lugar diferente do seu compromisso com São Benedito.
lá e do aqui, o lugar do tambor. A maioria dos cozinheiros era preta, Então, economiza dinheiro de um
e São Benedito eu acho que era vencimento mensal, cria animais para
A COMENSALIDADE escravo de Deus. Ele era cozinheiro serem servidos na ceia, faz bingos
e dava comida para aqueles que para arrecadar dinheiro ou vende
A comida adquire uma pediam esmola. Àqueles que não bebidas na festa. Também recebe
importância significativa nas festas tinham, ele dava o almoço e jantar. doações de devotos, muitas vezes
de tambor, desde o seu preparo Dário Lima, Tambor de animais ou bebidas, como pagamento
até o seu consumo, momentos que Crioula da Tenda Iguaruana de promessa para o santo.
unem brincantes e comunidades, Quanto aos recursos humanos,
revelando aspectos fundamentais A preparação de uma mesa muitas pessoas são recrutadas entre
para a continuidade do tambor de farta requer muitos recursos brincantes de tambor, vizinhos,
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B E B I DAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.
B E B I DA S.
FOTO: EDG AR R OCHA , 2006.
A comida na época de apresentação é só um diferentes de acordo com o lugar para animar o pessoal, ajudar na
lanche porque, às vezes tem gente que sai e a situação em que é preparada e batida do tambor. Alguns tambozeiros
do serviço direto para cá. A gente não sabe servida, a bebida também tem a sua passam bebida nas mãos para aliviar o
a hora que chega, então eu dou um lanche. importância na brincadeira. impacto da pele com o couro quente,
Quando se tem mais condição, eu boto um outros a tomam para aquecer a voz,
panelão de comida e dou para a turma. Eu vou levantar bandeira matar a sede, dar resistência para os
Raimundo Nonato, Eu vou levantar bandeira brincantes aguentarem bater e dançar
Tambor de Manezinho Correr cachaça na roda tambor a noite toda. Afinal, como
Que eu vou levantar bandeira diz Seu Venâncio, do Tambor Trovão
Assim como a comida, que é parte Azul, em “Tambor sem bebida o
do tambor de crioula, mesmo que Ela está presente em todos os tambozeiro fica sem coragem, a mão
adquirindo configurações e funções momentos do tambor, sendo usada dói, a voz fica rouca”.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 57
suas origens, apesar de mal história de permanência e mudança. escrita sobre a forma de expressão
identificadas, remontam pelo Nesta seção serão abordados, em questão refere como “batuque”
menos ao século XIX, a capacidade em linhas gerais, os períodos em os toques de tambores e festejos
de permanência dessa forma de que se efetuaram as principais realizados pelos escravos no Maranhão
expressão é notável. transformações no tambor. oitocentista. Afirma Frei Francisco
Essa característica, por sua vez, de Nossa Senhora dos Prazeres que
tem a ver também com uma DESAFIOS DA PERMANÊNCIA “para suavizar a sua triste condição
capacidade de transformação, EM CONTEXTO DE REPRESSÃO fazem, nos dias de guarda e suas
conforme o fluir dos tempos e as vésperas, uma dança denominada
mudanças sociais. De acordo com Sérgio Ferretti, batuque, porque n’ella uzam de uma
Entender o tambor de crioula hoje, um dos maiores estudiosos do espécie de tambor que tem este nome.
portanto, requer conhecer sua tambor de crioula, a primeira notícia Esta dança é acompanhada de uma
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E SQU ERDA
TA MB OR DA S CRI A NÇAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
D I REI TA
TA MB OR DA S CRI A NÇAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
TA MB OR DA S CRI A NÇAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.
as condições para aceleração das Uma das principais queixas dos e estadual, responsáveis pelo
transformações na brincadeira, grupos se refere ao fato de, depois incentivo e apoio a esses grupos,
sob a égide da valorização. que os órgãos oficiais se propuseram têm investido em estruturas físicas,
Os brincantes de tambor a pagar cachês pelas apresentações, administrativas e financeiras.
têm buscado, individualmente e sobretudo, nos períodos de Carnaval Por exemplo, na construção em
em grupo, adaptar-se aos novos e São João, eles terem de se sujeitar série de praças nos bairros da
contextos e lugares que, apesar da ao que esses órgãos determinam. capital, chamadas de “viva”,
visibilidade que promovem, criam São eles que fazem os programas que passaram a compor o circuito
situações que desafiam sua capacidade das apresentações e o orçamento de oficial das festas carnavalescas
de superação das adversidades. quanto os grupos devem receber. e juninas promovidas pelo
No cenário atual, além de fazerem a poder público. Ao mesmo
festa, eles devem assumir uma série O que eu acho que eles podiam fazer, tempo, incentivam a criação de
de outras responsabilidades: se quisessem entrar na vida do folclore, representações oficiais como
lidar com aspectos jurídicos e é pesquisar e ver a despesa de cada um, conselhos e associações para mediar
burocráticos no trato com o de cada grupo, a maneira, a vivência de o pagamento de cachês.
poder público (contratações, cada grupo, e daí determinar o que eles Essa estrutura montada se
cumprimento de contratos e [os órgãos oficiais] deviam, o que podem investe do objetivo de incentivar
pagamentos de cachês), fazer para melhorar a vida dos grupos. e manter viva a tradição de dançar
com assédios políticos,23 com Apolônio Melônio, Tambor de e tocar o tambor de crioula com
disputas entre grupos pelo maior Crioula Prazer de São Benedito a sua magia e encanto, além de
número de contratos nos eventos pretender dar maior visibilidade
públicos, com a espetacularização Na relação com os grupos de aos grupos. Porém, observa-se
da brincadeira e com as despesas cultura popular, em geral, e com o que esses investimentos também
mais altas dela decorrentes, tambor de crioula, em particular, têm funcionado como uma
por exemplo. os órgãos do executivo municipal moeda política, que muitas vezes
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 62
tornam esses agentes culturais “cuidar” e, em alguns casos, recebido. Fato que reforça a
dependentes de grupos políticos “recriar” a cultura popular relação de dependência econômica
que administram os recursos. maranhense têm divulgado as com os agentes políticos que,
Diversos relatos de donos de tradições, cultos, festas e outras ao patrocinarem esses gastos,
tambor apontam uma prática formas de expressão a partir da entendem que toda a organização
política que, segundo eles, impede administração de recursos que do grupo servirá de apoio político
ou dificulta a criação ou manutenção passaram a ser disputados por em pleitos posteriores.
de um grupo de tambor. As relações representantes de grupos culturais, Além disso, os organizadores dos
pessoalizadas dariam a garantia de que vêm, em certa medida, tambores precisam adequar-se
acesso aos recursos, só conseguindo adequando-se às exigências dos aos signos das práticas jurídicas
contratos aqueles cujos responsáveis órgãos oficiais e, muitas vezes, e administrativas, os quais os
mantivessem vínculos de amizade submetendo-se a agentes políticos impelem a usar outra racionalidade
ou parentesco, ou fossem como vereadores, deputados e para dar conta das relações com as
correligionários de algum gestor de senadores com alguma influência instituições burocráticas oficiais,
instituições da cultura popular, com os gestores da cultura local. tais como Secretarias de Fazenda e
ou mesmo agente político que tivesse Dentre essas exigências, surge a de Cultura. Essa burocratização leva
forte influência com os órgãos de que todo tambor para ter acesso a mudanças internas nos grupos,
estatais de cultura. Nesse caso, aos recursos públicos destinados ao que os impelem, necessariamente,
diversos grupos deixam de acessar os incentivo e apoio à cultura popular a constituir uma diretoria, mudando as
incentivos econômicos o que, deverá ser institucionalizado por suas características, que antes era
em certa medida, os impossibilitam meio da constituição de pessoa considerado “tambor de dono” e
de atender às exigências dos órgãos jurídica, o que, segundo muitos passa, com tais transformações, a ser
de cultura local. donos de tambor, tem aumentado tido como “tambor de associação”.
As instituições estatais os custos que, por sua vez, não Essas e outras mudanças
responsáveis por “salvaguardar”, são compensados pelo cachê sugeridas, ou mesmo impostas,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 63
pelos órgãos oficiais fazem com da certeza de que o turista virá e como saneamento básico, melhoria
que, sob o signo do belo, do encontrará uma mostra das festas e na qualidade educacional,
espetáculo, do moderno, ocorra dos rituais, tudo isso, sob medida assistência médica.
certa homogeneização de alguns para o tempo disponível e expectativa Há situações em que o
grupos de tambor que aceitam e do visitante, ávido pela beleza das esquecimento e a falta de políticas
entram nesse jogo, a exemplo da cores padronizadas, dos movimentos voltadas para esses segmentos sociais
padronização das indumentárias, sincronizados e sons ritmados. é tão dramática que vira objeto de
motivo que justifica os brincantes Muito embora a espetacularização seja promessa ao santo padroeiro do
a chamarem a vestimenta, por apenas um aspecto, uma maneira de tambor. Mesmo nas dificuldades
ser igual para todos, de “farda”. fazer o tambor proposta pelo Estado – cotidianas, pela falta de políticas
Segundo vários donos de tambor, que não dá conta de expressar o modo mais amplas que atendam outras
antes os brincantes podiam dançar de vida desses grupos –, essa fórmula demandas sociais, que não apenas um
com qualquer roupa e quem tem sido vendida ao visitante, turista, suposto incentivo à cultura, os donos
quisesse podia entrar na roda de espectador como sendo a autêntica de tambor e brincantes sonham e
tambor, o que atualmente não cultura maranhense. desejam ver seus grupos conhecidos
é mais observado, ao menos nas O espetáculo esconde o modo e reconhecidos no campo da arte;
apresentações patrocinadas pelo de vida que é permanentemente não uma arte classificada como
Estado. A ritualização do tambor foi tangenciado pelas dificuldades “irracional”, “mística”, “periferizada”
obrigada a se adequar a outra lógica: enfrentadas por muitos e, relegada, quando muito, ao
a do tempo do turista, a do controle dos brincantes de tambor, passado, aos pobres e aos desvalidos,
do Estado, a do espetáculo. cotidianamente. Conforme apontam mas uma arte própria que só pode ser
O Estado mantém fiscais para diversos donos de grupos, a maioria construída, a partir de um modo de
observar e avaliar as apresentações dos responsáveis e brincantes de vida e uma cosmologia específica que
contratadas. Em certo sentido, tambor de crioula habita bairros que está imersa nas formas de fazer e viver
eles são os guardiões do bom espetáculo, carecem de infraestrutura urbana desses grupos sociais. ¢
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PUNG A .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
à terra, à educação, à livre expressão transformações pelas quais tem Comparando-se os dados das
religiosa e cultural. No que passado tornaram-se objeto de duas pesquisas com os do INRC
tange às políticas de patrimônio, estudos técnicos e acadêmicos que do tambor de crioula,
especificamente, a população negra pretendem contribuir tanto para a notam-se a ampliação do número
maranhense obteve reconhecimentos compreensão de aspectos da vida e de participantes, o aumento do
importantes do Estado em relação da história das populações negras interesse por essa manifestação
à sua contribuição para a formação do Maranhão, quanto para a crítica e o maior conhecimento sobre
do patrimônio cultural maranhense das intervenções que no tambor se suas características e diferenças
e brasileiro. Ressaltem-se, nesse têm operado. nas diversas regiões do Estado.
sentido, o tombamento da Casa das Projetados sobre outras duas Paralelamente às transformações
Minas e os registros do tambor de pesquisas de caráter que ocorrem na sociedade e nesse
crioula e do bumba meu boi. histórico-etnográfico realizadas aspecto da cultura popular,
Para além dos aspectos positivos nos anos 1930 por Mário de o tambor de crioula continua
dessa requalificação do lugar do Andrade24 e no final da década sendo uma forma de divertimento
negro na sociedade local, de 1970 pela Fundação Cultural e de pagamento de promessa de
as mudanças também trouxeram do Maranhão (FUNCMA) sob a setores populares da sociedade,
pontos negativos, na ótica dos coordenação de Sérgio Ferretti, os em homenagem a São Benedito e
brincantes. No contexto atual estudos contemporâneos podem a diversas entidades sobrenaturais
multiplicam-se discussões e ajudar a compreender o passado cultuadas nos terreiros de tambor
negociações entre os diversos e o presente e, talvez, a planejar de mina e de umbanda, como os
agentes envolvidos na produção, o futuro. Nesse sentido, deve-se pretos velhos e outras entidades.
na circulação e na gestão do destacar que muitos dos desafios Em 1978 havia menos de 20
tambor de crioula, bem como na hoje enfrentados pelos grupos de grupos de tambor de crioula em São
produção de conhecimento sobre tambor de crioula foram claramente Luís, hoje há mais de 60 grupos
essa manifestação. As próprias delineados pela equipe de Ferretti.25 cadastrados nos órgãos de registros
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Recomendações de Salvaguarda
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TA MB OR DE CR I OULA NA PRAIA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.
– Um Batuque de Liberdade
e da sua proposta pedagógica
de funcionamento;
• O registro do tambor de
crioula como Patrimônio
Cultural Brasileiro, aprovado
na 53ª reunião do Conselho
Consultivo do Patrimônio
Cultural, realizada em 18 de
junho de 2007;
• A inscrição do tambor de
crioula no Livro de Registro
das Formas de Expressão em
dessa forma de expressão, 61 • A instituição do Dia do 20 de novembro de 2007;
grupos nos municípios de São Tambor de Crioula e seus • A proposição da instituição
Luís, Caxias, Pinheiro, Porto brincantes, em São Luís, do dia 18 de junho como Dia
Rico e Cajapió foram ouvidos pela lei municipal do Tambor de Crioula, a ser
a respeito de suas demandas e nº 4.349, de 21 de junho celebrado anualmente em
sugestões em relação às condições de 2004; todo o território brasileiro,
de continuidade do tambor. • A criação da Casa do Tambor pelo projeto de lei nº 1.677
Algumas ações foram de Crioula em São Luís, pela de 2007;
deflagradas a partir desse diálogo, lei municipal nº 4.673, de 9 • A proposição do
envolvendo não só o Iphan, mas de novembro de 2006; reconhecimento do tambor
também os poderes públicos locais. • A elaboração do projeto da de crioula como patrimônio
Destacam-se entre elas: Casa do Tambor de Crioula imaterial de São Luís;
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E SQU ERDA
A FI NAN DO O TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
D I REI TA
D ETA LHE DE TA MB OR DE C RIOUL A.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.
Notas
COREIRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .
derrubamento do mastro, roubo 17. Roupas de axé são as eleições têm sistematicamente se
do santo, roubo do mastro, forró indumentárias utilizadas nos aproximado dos agentes sociais
das caixeiras e tambor de crioula trabalhos de terreiro. que gozam de prestígio em meio
no encerramento. Ainda podem se 18. Não por acaso, a equipe de a grupos de Tambor de Crioula,
juntar outras brincadeiras à festa, pesquisadores envolvida no INRC Bumba meu Boi e Festa do Divino
de acordo com a promessa, com do tambor de crioula relatou a Espírito Santo, pelo fato destes
o gosto do dono da festa e/ou das frequente sensação de estar terem dedicado grande parte das
entidades reverenciadas. “no interior” quando visitava as suas vidas à manutenção dessas
7. Bairro de São Luís, situado à casas e sedes dos grupos localizados expressões culturais.
beira-mar. na capital. 24. A Missão de Pesquisa
8. FERRETTI; SANDLER 19. Apresentações feitas no Folclórica organizada por Mário de
(1995, p. 1). período de Carnaval e de São Andrade, através do Departamento
9. Ao se aquecer o couro no João, quando os órgãos oficiais da de Cultura da Prefeitura Municipal
fogo é lhe retirado sua umidade, Cultura do Estado e/ou Município de São Paulo, esteve em São
possibilitando ser esticado, o que contratam os grupos de tambor de Luís em 1938 e coletou material
favorece sua afinação. crioula para se apresentarem nos pioneiro sobre tambor de crioula,
10. FERRETTI; SANDLER, op. arraiais (São João) ou nos circuitos tambor de mina, bumba meu boi
cit., p. 1. de rua (Carnaval). e carimbó. Parte desse material foi
11. SANDLER (1995, p. 3). 20. Frei Francisco de Nossa publicado por Oneyda Alvarenga
12. Id., 1995, p. 3. Senhora dos Prazeres apud em 1948 e atualmente continua
13. SANTOS (1995, p. 3) FERRETTI (2008, p. 1). sendo publicado pelo Centro
14. SANDLER, op. cit., p. 3. 21. FERRETTI, op. cit., p. 1. Cultural São Paulo que preserva o
15. PEREIRA (1995, p. 3). 22. Ibid., p. 4. acervo então coletado.
16. CÂMARA CASCUDO 23. Os grupos políticos que 25. Tal pesquisa contou com
(2000, p. 542). ocupam o poder ou disputam as o incentivo do folclorista
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E SQUE RDA
CRIANÇ A NO TA M BO R DE C RIOU L A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .
D IRE ITA
DANÇ A DE TA M BO R DE C RIOU L A .
Fontes
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.
bibliográficas
ALVARENGA, Oneyda. Tambor UFMA, 2008. (Trabalho apresentado PEREIRA, Eliana Franco. Pungar
de mina e tambor de crioula. Registros em mesa redonda do curso de Letras é sexualidade. Boletim da Comissão
Sonoros do Folclore Musical em 9 out. 2008). Disponível em: Maranhense de Folclore, n. 3, ago. 1995.
Brasileiro. São Paulo: Discoteca <http://www.gpmina.ufma.br/
Pública Municipal, 1948. arquivos/CONTRIBUICAO%20 SANDLER, Patrícia. Musicalidade no
DO%20NEGRO.pdf>. tambor de crioula. Boletim da Comissão
CÂMARA CASCUDO, Luís. Maranhense de Folclore, n. 3, ago. 1995.
Dicionário de termos folclóricos. São FERRETTI, Sérgio; SANDLER,
Paulo: Global, 2000. Patrícia. Tambor de crioula. SANTOS, Maria do Rosário Carvalho.
Boletim da Comissão Maranhense O ritmo do tambor de crioula no
______. História de nossos gestos. São de Folclore, n. 3, ago. 1995. Maranhão. Boletim da Comissão Maranhense
Paulo: Global, 2003. de Folclore, n. 3, ago. 1995.
MARRONE, Gianfranco. Le monde
FERRETTI, Sérgio. Tambor de naturel, entre corps et cultures.
crioula: ritual e espetáculo. São Luís: Protée, Québec, v. 34, n. 1, 2006.
SECMA/Comissão Maranhense de
Folclore-Lithograf, 1995a. (Versão MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a
original de 1979). dádiva – forma e razão da troca
nas sociedades arcaicas. In: ______.
______. Religiosidade popular no Sociologia e antropologia. São Paulo:
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Maranhense de Folclore, n. 3, ago. 1995b.
MONTELLO, Josué. Os tambores
______. Contribuição cultural do negro de São Luís. Rio de Janeiro: Nova
na sociedade maranhense. São Luís: Fronteira, 1985.
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Anexo 1
Agradecimentos
Tambor de Crioula Mocidade Tambor de Crioula Oriente Tambor de Crioula Catarina Mina
Independente de Nivô Maria Juliana Fonseca Ivan Jorge da Piedade Madeira
Domingas Figueiredo Correa Melo
Tambor de Crioula Raízes Tambor de Crioula Mimo de
Tambor de Crioula da Boa Vontade da Terra São Benedito
José Constantino Soares José do Carmo Freitas Arouche Maria da Paes Santos
Tambor de Crioula Unidos de Santa Fé Tambor de Crioula Lírio de Tambor de Crioula Manto de
José de Jesus Figueiredo São Benedito I São Benedito
Maria da Conceição Madeira Maria dos Santos Cantanhede
Tambor de Crioula Correio de
São Benedito Tambor de Crioula Maracrioula Tambor Bambu Crioula
Wagno Cássio Santos Simone Paixão Carvalho César Roberto da Purificação Viana
C O RE IRA DE TA M BO R DE C RIOULA CO M
S ÃO BE NE DITO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.
Tambor de Crioula Minha Ginga Tambor de Manezinho Tambor de Crioula Uma Noite de
Eulália Silva Fontes Raimundo Nonato Madeira São Benedito
Francisco Silva Gomes
Tambor de Crioula Coração de Tambor de Crioula Unidos de
São Benedito São Benedito Tambor de Crioula do Taim
Ildener Barbosa Neuza Vieira Marques José Reinaldo Moraes Santos
Anexo 2
Parecer do
relator
DE TAL H E DA RO DA DE TA M BO R DE C RIOU L A .
FOTO: E DGA R RO C H A , 20 0 5.
Greimas, o homem é o agente de Mestre Felipe – um dos mais neste desdobramento, pois existe
do enunciado, já na gestualidade antigos e venerados tocadores uma pressão maior nos Tambores
comunicativa, o homem é o de tambor – ao lamentar que, oficiais para que se mantenham
sujeito da enunciação. Dito com por razões de saúde, pode estar as características mais tradicionais
componentes de nosso caso, o presente aos “folguedos”, mas “fica da cerimônia – as quais, pelo
Tambor de Crioula é uma práxis doido” por não mais conseguir estranhamento, constituem um dos
gestual, em que seus participantes, tocar. E é também ele que, fundamentos de sua atração para
na sua própria corporalidade, são o em outro momento, no vídeo, um público externo. Desta maneira,
enunciado que circula. É nessa diz elíptica, mas comoventemente, o conservadorismo torna-se bem de
corporalidade que se produz que “bem cantado, bem tocado, consumo. Mas seja num caso, seja
alegria, prazer (como se evidencia corre água nos olhos”. noutro, acredito que se mantêm
em muitíssimos momentos do No entanto, o turismo, a partir intactas a personalidade e natureza
vídeo), fruição, eventualmente da década de 1970 e mais ainda viva do Tambor.
transe, solidariedade, identidade, recentemente, tem exercido pressão Por fim, é preciso dizer que
auto-estima, resistência cultural, sobre o Tambor de Crioula, com a dessacralização da sociedade
transcendência etc. Quando, a mediação do poder público. contemporânea terá trazido ou
porém, o ritual se transforma Daí, como os pesquisadores poderá trazer uma atenuação de
em espetáculo, introduz-se a não deixaram de apontar, uma traços do caráter ritual do Tambor,
gestualidade comunicativa, em que bifurcação que é do maior interesse. capaz de comprometer algo de
o corpo não mais coincide com Ao lado do Tambor “nas casas”, que sua força, com um progressivo
o enunciado, mas é apenas vetor é para uso interno, multiplicam-se predomínio formal. No entanto,
de informação, limita-se a ser o os Tambores “de contrato”, formal nada na documentação disponível
sujeito do ato de enunciar. Nessa ou informal, em espaços oficiais, permite inferir que tal processo
perspectiva é que se compreende com cobrança de cachê. Há um esteja trazendo risco à configuração
em todo o seu alcance a aflição aspecto até certo ponto paradoxal aqui delineada.
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2.2. HISTÓRICO / EVOLUÇÃO fonte oitocentista, o médico e semelhantes. Diante dos 61 grupos
literato Antônio Henriques Leal, levantados na atual pesquisa, na
Aos origens do Tambor de no Pantheon Maranhense insere-se Ilha, pode-se reconhecer um
Crioula são mal identificadas. numa linha de interpretação desenvolvimento considerável.
As referências iconográficas preconceituosa, racista e hostil, (O ofício do Prefeito Municipal
oitocentistas são suficientes apenas que persistirá até inícios do século a fls. 02 menciona mais de
para reconhecer sua ancestralidade XX, pontuando uma história 80 grupos em São Luís, e um
africana e sua prática por negros de perseguições e depreciação. contingente de participantes
escravos ou libertos, Contudo, seu texto é precioso por superior a 3.000 pessoas). No
nas manifestações de batuques, listar uma série de traços que já interior, também as ocorrências
da família do samba, à qual se eram sintomáticos do Tambor: eram amplas: pesquisa da Fundação
filia o Tambor. A referência vertiginosa rotação de calcanhares, Cultural do Maranhão, em 1983,
textual mais antiga, apontada por movimento de quadris, bracejar afirmava que existia o Tambor na
Ferretti28 é de 1818, da lavra de “desordenado’, “esgares e momos”, maioria dos municípios. Todavia,
Frei Francisco de Nossa Senhora embigada (punga), parelha as informações sobre eles são ainda
dos Prazeres, que compensa de instrumentos. fragmentárias e imprecisas. Seja
citar: “para suavizar a sua triste O reconhecimento do valor como for, sem sombra de dúvida,
condição fazem [os escravos], nos cultural do Tambor começa a é a Ilha de São Luís o principal
dias de guarda e suas vésperas, se definir na década de 1970, foco dessa manifestação, seja pelo
uma dansa denominada batuque, quando ele passa a ser tratado número, seja pela irradiação.
porque n’ela uzam de uma espécie como atração turística de São Luís. Note-se, além disso, que
de tambor, que tem esse nome. Da época, foram identificados migrantes urbanos que adensaram
Esta dansa é acompanhada de apenas18 grupos, embora mais de a população de São Luís na
uma desconcertada cantoria, 30 municípios do litoral ao sertão década de 1980 contribuíram
que se ouve de longe”. Outra também contassem com grupos para aumentar os contingentes
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aos grupos, também houve uma “A dança do tambor de Crioula, Na realidade, a julgar pelo vídeo e
inversão curiosa: de início, normalmente executada só pelas mulheres, pelas entrevistas, assim como pelo
a valorização cultural do Tambor apresenta coreografia bastante livre e inconcluso debate historiográfico
atraía setores de classe alta e média, variada. Uma dançante de cada vez, sobre suas origens, seu sentido é
intelectuais e pesquisadores, faz evoluções diante dos tamborzeiros, muito mais profundo e constitui,
brancos. Hoje, a predominância enquanto as demais, completando a mesmo, um dos focos de interesse
é de negros – o que revela a roda entre tocadores e cantadores, fazem da parte das próprias dançantes.
relevância das funções identitárias pequenos movimentos para a esquerda e a Tem a ver, por seu simbolismo
que o Tambor desempenha. direita; esperando a vez de receber a punga e pela carga de interação, com a
Era no interior dos grupos que se e ir substituir a que está no meio. própria força do feminino, além de
dava a enculturação e a formação dos A punga é dada geralmente no abdômen, convite para entrar na roda ou gesto
novos participantes, pela observação no tórax, ou passada com as mãos, numa de saudação.
e pela imitação. A dança do Santo espécie de cumprimento. Quando a coreira A circularidade da dança e o
Preto estava no sangue, como que está dançando quer ser substituída, giro sem fim em torno de si mesmo
dizem alguns dos entrevistados. vai em direção a uma companheira e e em círculo, trazem à lembrança
Hoje já começam a aparecer aplica-lhe a punga. A que recebe vai ao uma observação aguda da famosa
“tambores-mirins” com a função de centro e dança para cada um dos tocadores, antropóloga Margareth Mead,
divulgar e formar novos praticantes e requebrando-se em frente do tambor na comparação que ela fez, numa
já se dispõe de “instrutores”. grande, do meião e do pequeno, e repete conferência (em Congresso da
tudo de novo até procurar uma substituta”. American Association for the Advancement
2.5. DANÇA of Science, Philadelphia, 1976) das
Embora a descrição seja danças nas sociedades tribais com
Cito, por maior comodidade e confiável, talvez tenha exagerado o o balé clássico. Neste, dizia ela,
para maior precisão, os Cadernos de papel da punga (umbigada) como o corpo é negado, a gravidade é
Folclore, nº 31, 198129: pedido de substituição na dança. ignorada e se procura construir um
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D E TAL H E DA RO DA DE TA M BO R DE C RIOU L A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.
espaço novo, imaterial, liberto de estão inextricavelmente articuladas da matraca define a duração
amarras. Entretanto, nas sociedades ao universo intangível de desse ciclo. O tambor grande,
tribais, é o contrário que ocorre, significados e valores). de tom mais baixo, interage com
isto é, insiste-se pela reiteração de os outros tambores, dirigindo a
gestos num espaço circunscrito, 2.6. MÚSICA música e a dança, especialmente
na materialização reforçada do a característica punga. O tocador
corpo que se apropria de um Valho-me, novamente por de tambor grande brinca com
território, espaço já dado com todas motivos de comodidade e precisão, os ritmos, enfatizando alguns,
as suas contingências, sim, mas de dados extraídos de Patrícia preenchendo espaços, realçando o
ventre fecundo da vida. Poderíamos Sandler, citados por Cláudia sentido entre 2/4 e 6/8. O canto
completar dizendo que as danças Vasques (fls.220) e que aqui está delimitado pelos instrumentos
tribais são, assim, de certa maneira, aproveito livremente. – um cantador principal entoa
danças territoriais. Marcam um Uma base da musicalidade uma melodia curta que é
sentimento de posse do espaço em do Tambor de Crioula é a respondida pelo grupo. Não
que se vive. (En passant, temos aqui interpenetração dos padrões há começo definido, nem fim. Há,
neste parecer, além da performance rítmicos simples e repetitivos, por outro lado, profunda interação
corporal como enunciado, uma chamados padrões “ostinatos”. dos três tocadores de tambor, os
segunda evidência a nos alertar A música normalmente começa com coreiros (que se revezam), dos
como é imprópria a denominação um ostinato de duas notas tocado tocadores de matracas e, cantadores
de “patrimônio imaterial”, hoje no tambor chamado meião. e dançantes (coreiras).
cristalizada internacionalmente O tambor crivador, com tom Após os primeiros toques do
e definitivamente oficial, para agudo, entra com outro ostinato, tambor, entra o cantador
conceituar expressões, como a tocado no meio dos espaços dos seguindo-se o refrão (fls.123).
nossa, em que a materialidade, ritmos do meião e, juntos, criam As toadas, quadras ou dísticos e
a sensorialidade e a corporalidade um ciclo repetitivo. O padrão refrão, podem ser de um repertório
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C O RE IRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.
têm biografia e tão carregados as dançantes mais tradicionais i. Casa do Tambor de Crioula,
estão de referências à vida de seus recusam a aceitar como Tambor criada em novembro
fabricantes e usuários, que se pode de Crioula, mas que vão se de 2006 e subordinada
dizer que dialogam com eles. sedimentando, ao mesmo tempo à Fundação Municipal
É o que deixa transparecer de que a bibliografia começa a de Cultura;
novo Mestre Felipe, em relação ao explicitar alguns aspectos eróticos ii. Projeto da Casa do
tambor que começou a tocar aos do Tambor. Tambor de Crioula, com
13 anos. Não é mera retórica os proposta pedagógica, de
especialistas em estudos de cultura 3. VOTO pesquisa, difusão cultural,
material falarem de socialidade das documentação, devendo-se
coisas e postularem que o estudo Do exposto, fica patente que notar preocupação especial
da sociedade inclua as coisas nas o Tambor de Crioula exibe todas com a história dos afro-
relações inter-pessoais. as condições para ser considerado descendentes maranhenses;
Nas cerimônias do Tambor de patrimônio imaterial brasileiro. iii. Dia do Tambor de Crioula
Crioula, há sempre um fogo aceso Antes, porém, de sintetizar a e seus brincantes, 6 de
para afinar os instrumentos. justificativa desta proposta, é setembro (criado por Lei
Acrescente-se que completam a pertinente ressaltar o interesse que a Municipal de 2004);
parelha matracas e bastões de madeira. sociedade maranhense tem dedicado iv. Projeto de Lei Municipal
A indumentária feminina a essa manifestação cultural. que propõe “integrar ao
caracteriza-se por saias amplas e Assim, inúmeras instituições Patrimônio Cultural e
vivamente coloridas e por blusas e medidas, oficiais e privadas Imaterial da Cidade de São
longas. Com o aumento da para conhecimento, valoração, Luís a dança Tambor de
presença de jovens, começaram a preservação, divulgação e Crioula”, nov. 2006.
aparecer blusas curtas e barrigas fruição do Tambor tomaram v. Conselho Cultural do
de fora, que, nas entrevistas, corpo recentemente: Tambor de Crioula do
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 90
Oneyda Alvarenga, na década de • seu forte caráter identitário e • como foco de atração no
1930, ou na de 1970, territorial assegurou-lhe um diversificado panorama de
de Sérgio Ferretti, hoje são cada papel relevante na produção nossa cultura, não há por
vez mais numerosos os trabalhos e estreitamento de laços de que lhe negar tratamento
acadêmicos, dos quais podemos solidariedade para além do concedido a expressões
citar: Raimunda Rocha Borges contexto de sua manifestação; comparáveis, como o jongo
(monografia de conclusão de • embora essa força local e o samba de roda do
licenciatura em Educação artística, faça dele uma expressão Recôncavo – já reconhecidos
UFMA 2000), Marie Cousin cultural qualificada do como integrantes do
(DEA/Musique, Universidade cotidiano maranhense, patrimônio cultural
de Paris, 2005), Valéria Maia a profundidade de seus (imaterial) brasileiro.
Lameira (dissertação de Mestrado significados lhe dá
em Psicologia, UERJ, 2002), relevância nacional: disso À vista de todo o exposto,
Maria Domingas Nascimento são prova os investimentos meu voto é incisivo ao propor
(monografia. de Licenciatura em do poder público local o deferimento, pelo Egrégio
História, UFMA, 1997. (incluindo preocupações Conselho Consultivo do Iphan,
Alinho, para terminar, a síntese com salvaguardas) e de do pedido de inscrição do Tambor
das justificativas que me permitem consideráveis segmentos da de Crioula entre as manifestações
propor o deferimento da solicitação: sociedade maranhense, ao culturais (imateriais) do Brasil.
lado do interesse despertado
• o Tambor de Crioula revela em vários quadrantes da São Luís do Maranhão, 18 de Junho
extraordinária continuidade, sociedade nacional, quer de 2007.
no essencial, de forma e de como objeto de estudo,
propósitos ao longo de quase quer como objeto de fruição Ulpiano T. Bezerra de Meneses
190 anos (pelo menos); e enriquecimento cultural; Conselheiro.
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Anexo 3
certidão de
registro
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COREIRA S .
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PÁGI NA 9 3
COREIRA S NA PRA IA .
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PUBLICAÇÃO (CIP)
I S B N : 978-85-7334-294-9
CDD 394.3