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{ Tambor de Crioula do Maranhão }

dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão }


dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão }
A Crioula 
Trajano Galvão de Carvalho (1875)

Ao tambor, quando saio da pinha


Das cativas, e danço gentil,
Sou senhora, sou alta rainha,
Não cativa, de escravos a mil!
Com requebros, a todos assombro
Voam lenços, ocultam-me o ombro,
Entre palmas, aplausos, furor!...
Mas, se alguém ousa dar-me uma punga,
O feitor de ciúmes resmunga,
Pega a taca, desmancha o tambor!
PRESIDENTA DA REPÚBLICA Departamento de Patrimônio Imaterial Instrução Técnica do Processo de Registro
Dilma Rousseff
COORDENAÇÃO-GERAL DE IDENTIFICAÇÃO
do Tambor de Crioula do Maranhão
MINISTRO DA CULTURA E REGISTRO
João Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira) Mônia Luciana Silvestrin Supervisão técnica
PRESIDENTA DO IPHAN DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO IMATERIAL
COORDENAÇÃO-GERAL DE SALVAGUARDA
Jurema de Sousa Machado Rívia Ryker Bandeira de Alencar Marcus Vinícius Carvalho Garcia

DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE COORDENAÇÃO DE PESQUISA


COORDENAÇÃO DE IDENTIFICAÇÃO
PATRIMÔNIO IMATERIAL Sara Santos Morais Superintendência do Iphan no Maranhão
Vanderlei dos Santos Catalão (TT Catalão)
COORDENAÇÃO DE REGISTRO Rodrigo Martins Ramassote
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE Diana Dianovsky
ARTICULAÇÃO E FOMENTO EQUIPE DE PESQUISA
Luiz Philippe Peres Torelly COORDENAÇÃO DE APOIO À SUSTENTABILIDADE Christiane de Fátima Silva Mota
Natália Guerra Brayner Bartolomeu Mendonça
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PATRIMÔNIO MATERIAL CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E Sislene Costa
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PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Bartolomeu Mendonça
Marcos José Silva Rêgo Christiane de Fátima Silva Mota
Renata dos Reis Cordeiro
DIRETOR DO PAC CIDADES HISTÓRICAS Rodrigo Martins Ramassote
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Sislene Costa
SUPERINTENDENTE DO IPHAN NO MARANHÃO Valdenira Barros
Alfredo Alves Costa Neto

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E


ARTÍSTICO NACIONAL
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Edição do Dossiê Interpretativo Registro do Tambor de Crioula
do Maranhão
COORDENAÇÃO DE EDIÇÃO
Yêda Barbosa Processo nº 01450.005742/2007-71

EDIÇÃO DE TEXTO E COPIDESQUE PROPONENTE


Fernanda Silveira Prefeitura de São Luís
Luciana Gonçalves de Carvalho
DADOS DO PROCESSO
REVISÃO DE TEXTOS Pedido de registro aprovado na 53ª reunião do Conselho
Grace Elizabeth Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada em 18 de
Rosalina Gouveia junho de 2007.
Inscrição no Livro de Registro das Formas de Expressão em
COLABORAÇÃO
20 de novembro de 2007.
Ivo Barreto
Marcus Vinícius Carvalho Garcia
Stella Regina Soares de Brito

FOTOGRAFIAS
Edgard Rocha

PROJETO GRÁFICO
Victor Burton

DIAGRAMAÇÃO
Inara Vieira

C A PA
M ÃO S TO C A NDO TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 06 .

PÁGINA 2
C O RE IRA S .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 05 .

PÁGINA 4
A FINA NDO TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 05 .

PÁGINA 8
C O RE IRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 02 .
Sumário
10 apresentação 64 O BEM CULTURAL COMO ANEXOS
OBJETO DE REGISTRO 76 Anexo 1 - Agradecimentos
12 introdução 80 Anexo 2 - Parecer do Relator
68 RECOMENDAÇÕES DE 92 Anexo 3 - Certidão de
18 IDENTIFICAÇÃO SALVAGUARDA Registro
19 O tambor
30 A roda de tambor 72 NOTAS
46 As festas de tambor
57 Permanência e mudança 75 FONTES BIBLIOGRÁFICAS
Apresentação
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R ODA DE TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

A Coleção Dossiê dos Bens Culturais


Registrados destina-se a
tornar amplamente conhecidos
patrimônio pela sociedade
brasileira e favorece condições de
sua permanência. São apresentados
lazer e resistência à opressão do
regime escravocrata.
A salvaguarda do tambor
e valorizados como Patrimônio nos Dossiês elementos que definem de crioula busca o respeito e o
Cultural do Brasil os bens de a identidade dos detentores dos favorecimento das condições de
natureza imaterial Registrados bens culturais e dos grupos sociais continuidade de uma prática
pelo Iphan. envolvidos em sua realização, autônoma, em movimento, não
O Registro foi instituído a seu universo de ocorrência, e as fixada num passado distante, mas
partir do Decreto nº 3.551/2000, práticas e saberes a eles inerentes. que incorpora as transformações
que também criou o Programa Inscrito no Livro das Formas de ocorridas no processo histórico
Nacional do Patrimônio Imaterial. Expressão, o Registro do Tambor da brincadeira. ¢
Ele é realizado pela inscrição dos de Crioula no Maranhão é o tema Jurema Machado
bens em algum dos quatro Livros do 15º volume da coleção, essa Presidente do Iphan
do Registro: das Celebrações, dos expressão de matriz afro-brasileira,
Lugares, das Formas de Expressão e que também traz consigo o caráter
dos Saberes. Os Dossiês publicados religioso e se aproxima do
têm por base os estudos que gênero samba.
fundamentaram o Registro do Bem No Maranhão, o tambor de
Cultural e refletem as etapas de crioula, ou brincadeira como
pesquisa, análise e reconhecimento é tratado, tem características
desse patrimônio. próprias de execução que envolvem
A divulgação dos processos a devoção, o canto, a dança e
de Registro e dos resultados do os tambores. Essa tradição,
trabalho institucional contribui ressignificada como júbilo pelo fim
para o reconhecimento desse da escravidão, foi originada como
Introdução
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C ASARI O.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

O certo é que, ouvindo bater os tambores


rituais, como que se reintegrava no mundo
mágico de sua progênie africana, enquanto
N o conjunto complexo e
heterogêneo das manifestações
culturais populares do Maranhão,
de partido-alto, samba de breque e
samba-canção – conforme sugeriu a
bibliografia sobre o assunto ao cunhar
se lhe alastrava pela consciência uma o tambor de crioula se destaca como o termo “família do samba”.
sensação nova de paz, que mergulhava uma das modalidades mais difundidas O Tambor de Crioula do
na mais profunda essência de seu ser. e ativas no cotidiano da capital e do Maranhão, em particular, tem
Josué Montello interior do Estado, fazendo parte das características próprias de execução
atividades festivas, da sensibilidade da música-dança no interior
musical e da definição da identidade da manifestação, que também é
cultural dos maranhenses. compreendida como brincadeira.
Resumidamente, trata-se de uma Enquanto os tocadores fazem soar
forma de expressão de matriz a parelha composta por um tambor
afro-brasileira que envolve dança grande ou rufador, um meião ou
circular, canto e percussão de socador e um crivador ou pererenga,
tambores, apresentando alguns os cantadores puxam toadas que são
traços que a aproximam do gênero acompanhadas em coro.
samba: a polirritmia dos tambores, Conduzidas pelo ritmo incessante
a síncope (frase rítmica característica dos tambores e o influxo das toadas
do samba), os principais movimentos evocadas, as coreiras dão passos miúdos
coreográficos e a umbigada. e rodopiam. No centro da roda, seus
Esses traços são comuns a outras passos culminam na punga
manifestações como o samba de (ou umbigada), movimento coreográfico
roda do Recôncavo Baiano, o jongo no qual as dançarinas tocam o ventre
praticado na região Sudeste e o umas das outras, num gesto entendido
samba carioca – nas modalidades como saudação e convite.
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Embora não se possa precisar dessas práticas e, nesse sentido, diferentes dimensões da vida social no
com segurança as origens históricas é atualizado como uma expressão de tambor de crioula – religião, política,
do tambor de crioula, é possível júbilo pelo fim da escravidão, lazer e economia, entre outras.
encontrar, dispersas em documentos além de guardar outros significados. No entanto, essas ligações só se
impressos e na memória dos Praticado especialmente em louvor tornaram mais explícitas na segunda
mais velhos, referências a práticas a São Benedito, com frequência ele metade do século XX e no início do
lúdico-religiosas realizadas ao longo tem sido associado ao campo religioso, século XXI, no bojo de um crescente
do século XIX por escravos e seus assim como ocorre em outras processo de organização dos brincantes
descendentes, como forma de lazer manifestações culturais populares em grupos e de institucionalização
e resistência ao contexto opressivo no Maranhão, a exemplo do bumba desses grupos para assumir relações
do regime de trabalho escravocrata. meu boi e da festa do Divino Espírito mais intensas e efetivas com os órgãos
O tambor de crioula teria sido uma Santo. São inegáveis as interfaces entre oficiais de Cultura do Estado.
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E SQU ERDA
TOQU E DE TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

D I REI TA
C O REI ROS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

Atualmente, os muitos grupos


de tambor de crioula no Maranhão
são mantidos por associações de
natureza comunitária e/ou por líderes
conhecidos como donos. Esses
grupos dependem em boa medida de
recursos públicos para continuidade
da brincadeira, os quais são acessados
principalmente na forma de cachês
recebidos por apresentações e de
investimentos em infraestrutura
básica nos espaços do circuito festivo
maranhense. Mas, seja nas praças,
no interior de terreiros, ao ar livre ou e inesgotável identificação tambor de crioula dialogou com
associado a outros eventos e festejos, experimentada por seus integrantes processos semelhantes desenvolvidos
o tambor de crioula é realizado diante dessa forma de congraçamento? em relação a outros bens culturais
sem local específico ou calendário Ao trabalhar sobre o tambor de natureza imaterial,
prefixado, mobilizando numerosos de crioula do Maranhão, o Iphan especialmente no âmbito da
brincantes e espectadores. procurou reconhecer, como parte musicalidade afro-brasileira.
Como compreender, em termos de uma ação integrada, as formas Em consonância com o decreto
socioculturais, o fascínio exercido pelo de expressão componentes do nº 3.551, de 2000, que instituiu
ritmo cadenciado dos tambores dessa amplo e diversificado legado das o registro e criou o Inventário
forma de expressão popular? tradições culturais de matriz africana Nacional de Referências Culturais
Que elementos simbólicos aclimatadas no país. Nesse sentido, (INRC) para os bens culturais de
permitiriam explicar a profunda o processo de patrimonialização do natureza imaterial, o Iphan realizou
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primeiramente um levantamento Para a segunda etapa, depois de do patrimônio cultural brasileiro.


preliminar das principais referências alguma deliberação inicial em que Por meio da aplicação de entrevistas
culturais da ilha de São Luís. Essa foram consultadas a população local dirigidas e de incursões frequentes ao
etapa, executada entre dezembro de e as recomendações do Manual de campo, os principais grupos existentes
2004 e junho de 2005, consistiu Aplicação INRC,1 a Superintendência na ilha de São Luís e, em grande
na identificação e descrição de do Iphan no Maranhão decidiu parte, suas respectivas lideranças
manifestações culturais populares investir no aprofundamento da foram abordadas e ouvidas, entre
constitutivas do patrimônio identificação do tambor de crioula, janeiro e julho de 2006.
imaterial daquela localidade, entre convicta da importância e da A terceira e última etapa
elas o tambor de crioula, que veio necessidade de se reconhecer, valorizar de trabalho envolveu a equipe
demandar novos investimentos e promover essa forma de expressão coordenada por Valdenira Barros
de pesquisa. como parte do esforço de preservação na produção de um documentário
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C O REI RO.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

audiovisual e na elaboração desabafos e recordações sobre os operaram nos últimos anos no


concomitante do dossiê que embasou encantos e as dificuldades envolvidas interior dos grupos existentes na Ilha
a decisão do Conselho Consultivo na realização e na participação do de São Luís.
do Iphan pelo registro do tambor evento, entremeado por tocantes Construídas a partir de
de crioula do Maranhão como relatos pessoais de brincantes que perspectivas analíticas distintas, mas
patrimônio cultural do Brasil, em sua receberam com simpatia e confiança aproximadas pelo esforço geral de
53ª reunião, realizada em 18 de junho os pesquisadores. Esse rico material realizar uma descrição detalhada e,
de 2007. Em 20 de novembro do foi originalmente publicado em 2006 ao mesmo tempo, reconsiderar as
mesmo ano, o tambor de crioula do no livro intitulado Os tambores da ilha, categorias e representações correntes
Maranhão foi inscrito pelo Iphan no que deu origem a esta edição. sobre o assunto, as informações
Livro de Registro das Formas Na sequência, a presente reunidas neste dossiê exploram
de Expressão. publicação é oportuna na medida os principais aspectos envolvidos
Ao longo de todo o processo em que avança e aprofunda questões no tambor de crioula. Costuradas
de trabalho visando ao registro os debatidas pela produção bibliográfica por depoimentos, versos de toadas
principais grupos da ilha de precedente sobre o tambor de crioula e fotografias, as seções do dossiê
São Luís foram contatados em sua e, simultaneamente, incentiva a abordam a história da brincadeira,
quase totalidade. Desses contatos promoção e a divulgação dessa forma os contextos de sua realização,
resultaram relatórios de visitas e de expressão cultural emblemática a dimensão religiosa dos tambores
entrevistas valiosas que poderão da região. Identificando e coletando para São Benedito, os toques,
subsidiar futuras pesquisas e novos dados etnográficos, a dança, a organização dos grupos,
diagnósticos, além do próprio repensando proposições de a comunidade festiva, as relações com
dossiê que reuniu contribuições de cunho teórico e propondo novas outras formas de expressão, os desafios
diferentes estudiosos do tema, assim perspectivas de análise, a pesquisa para a continuidade e as possibilidades
como um conjunto precioso de ora apresentada oferece um painel vislumbradas para o tambor de crioula
informações, inquietudes, aspirações, amplificado das mudanças que se pelos seus integrantes. ¢
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Identificação
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R ODA DE TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

Era o mesmo baticum inconfundível, outras formas de expressão e


que todos os ouvidos podem ouvir, celebração são designadas como
mas só os negros realmente escutam, brincadeiras, mesmo que tenham
com as vivências nostálgicas forte conotação religiosa, como,
de sua origem africana. aliás, é muito próprio dos festejos
Josué Montello de matriz africana no Maranhão.
O tambor O tambor de crioula, cujas
origens históricas remetem à vida
dos negros escravizados,
é atualmente uma das expressões
culturais populares mais
difundidas na capital e no
interior do Estado, atraindo

O tambor de crioula ou,


simplesmente, o tambor é uma
forma de expressão
cada vez mais maranhenses
identificados com diferentes
grupos étnicos. No entanto,
afro-brasileira que envolve música essa tradição ainda é transmitida
e dança de roda. Sua musicalidade principalmente entre os negros,
é baseada na percussão de três junto com crenças, devoções,
tambores acompanhada pela histórias, repertórios orais e
percussão de matracas, num ritmo técnicas corporais específicas.
forte e envolvente que acelera o O tambor é o objeto desta
coração e toma conta do corpo e seção, na qual se procura oferecer
da alma dos brincantes. Brincantes uma visão geral dos sentidos que
porque, no Maranhão, essa e lhe são atribuídos.
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C O RE IRA S E M FE ST IV IDA DE R ELI G I O S A .


FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

O TAMBOR É DOS NEGROS depois da abolição da escravidão, naquilo que costumamos chamar
em 1888, interpretar os sinais de de cultura popular há espaço para a
As narrativas da origem do tambor sua fala é um desafio para os não individualidade, a diferenciação.
de crioula em regra se referem a iniciados no jogo de representações Muitas vezes o tambor é
São Benedito ou ao período da da memória que sobreviveu à chamado pelo nome do líder
escravidão, ou a ambos. São Benedito opressão dos brancos. da brincadeira, aquele que é o
aparece no teatro das memórias como guardião da parelha de tambor,
um escravo que foi à mata, cortou O tambor é muito importante, o tambor por exemplo, Tambor de Leôncio,
um tronco de árvore e ensinou os é uma festa de amor dada pelos pretos Tambor de Apolônio e muitos
outros negros a fazer e a tocar o velhos antigos. Um preto antigo, numa outros. Às vezes o tambor é
tambor. Outras vezes ele surge como fazenda onde a princesa Isabel libertou simplesmente chamado de Tambor.
o cozinheiro do monastério que os pretos, ele ficou muito alegre. Alguns trazem no próprio nome
levava comida escondida em suas Ele gritava, falava, batia em cima de uma homenagem a São Benedito,
vestes para os pobres. Em todo caso, uma lata, fazendo a festa. Aí formaram como nos Tambores Proteção de
considerado o santo protetor dos um coro, encobriram um pau assim, São Benedito e Carinho de São
negros, no Maranhão São Benedito é como um tambor, e ficaram fazendo a festa Benedito. Há situações em que o
homenageado com toques de tambor. de alegria. De alegria! É uma história boa. nome também indica a localização
Desde a escravidão todo um Leôncio Baca, da sede do tambor, como no
sistema de comunicação não verbal, Tambor de Leôncio caso do Tambor Correio de São
incompreensível para os brancos, Benedito, cuja sede fica próximo
traduziu-se em expressões sonoras e Em muitos casos não há uma a uma agência dos correios. Mas é
corporais desenvolvidas pelos negros narrativa geral sobre o tambor e sua preciso que se diga que em regra o
em suas celebrações. O tambor de origem ancestral e sim a história tambor tem um nome, outorgado
crioula é uma das mais eloquentes específica de determinado grupo em muitos casos numa cerimônia
dentre essas expressões. Mesmo de tambor, demonstrando que de batismo com a presença de
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padrinhos e “familiares” do tambor. lugares onde se aprendeu a incorporaram desde cedo uma
A fala do tambor é a fala de um e tocar, nomes de lideranças que dedicação sem igual. O tambor tem
também a fala de muitos, mesclada já se foram, nomes de árvores de ser cuidado, sentido, amado,
nessa língua geral construída pela com a madeira apropriada para desejado, venerado. Para ser desse
passagem das gerações. a confecção dos instrumentos, mundo é preciso mais do que
As memórias dos integrantes do palavras que costumam ser vontade, é preciso um compromisso
tambor preenchem os sentidos de pronunciadas no auge da que por vezes ultrapassa a fronteira
uma memória mais geral que vai empolgação de uma roda, toadas, da morte. Por isso, as histórias de
sendo tecida com as experiências e o desejo permanente de ouvir e quem faz o tambor são de quem as
de vida trazidas pelo tempo. No sentir o som do tambor. narra, mas são de outros, os muitos
repertório dessas lembranças, Os saberes do mundo dos outros que compõem a irmandade
cenários de festas, nomes dos tambores pertencem àqueles que do tambor.
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E S QU E RDA
C O RE IRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

DIRE ITA
C O RE IRO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

não deixou a alegria sumir


dos espíritos. O tambor tocado,
batido no Maranhão é de crioula,
de São Benedito, de Averequete3,
da Princesa Isabel, dos pretos velhos,
de promessa, de satisfação,
de oferenda, mas acima de tudo é
dos negros que souberam multiplicar
os motivos e os desejos contidos no
tambor. Foram eles que trouxeram
consigo das terras africanas essa
sonoridade que desde sempre os ligou
com as forças sagradas. São eles que
Eu, na minha idade, eu me entendi que tambor A voz do tambor se negou a ficar continuam a nos ensinar a reconhecer
de crioula era dos antigos. Era daquelas raças muda. Permaneceu resguardada as festas como uma expressão irredutível
negras que a gente chamava de angolas, na fala dos corpos, dos gestos, da vida. Para estes, o tambor de crioula
viviam pelo mato. Numa casca de pau que eles dos passos que reconheciam nos não desaparecerá jamais, seguirá se
batiam, baque, baque, baque. [...] Então, batuques a essência de uma liberdade reinventando, multiplicando-se
nisso, nós a cada tempo vamos recorrendo, perdida nos limites da escravidão em formas que desconfiam das
fazendo uma coisa muito difícil. [...] Em todo física. O tambor não permitiu o simplificações apressadas e sorriem
caso, a gente vai levando a vida, que cada aprisionamento da alma e garantiu da inocência dos que não enxergam a
tempo é uma coisa... Mas o que eu quis dizer é a resistência espiritual necessária à profundidade dessa arte.
que o tambor de crioula é antigo. É dos negros! transcendência das torturas materiais. Em seus diversos sentidos o
Ildener Barbosa, Tambor Na memória dos mais velhos há tambor de crioula, seja na preparação
Coração de São Benedito gratidão e respeito ao tambor que do grupo, nas dificuldades contínuas
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ou no momento da roda, pode ser O TAMBOR TEM MISTÉRIO lembranças mais profundas.
tomado como um elemento que Os tambores carregam um conteúdo
possibilita entender o modo de vida Como diz Seu Leôncio Baca, simbólico que transportam os
das pessoas que o cultivam. herdeiro de um tambor dos seus brincantes ao mundo de Deus,
Nos festejos, na dança, nos lugares e antepassados, “o tambor tem dos santos e da crença. Transportam-nos
na música encontram-se sintetizados mistério, mistério invisível” e seu para um mundo rico e heterogêneo,
a vida cotidiana, as relações de significado está, certamente, para propiciando uma experiência que,
parentesco e compadrio, os além da materialidade. Se as palavras como o transe, recria a realidade.
conflitos, as expectativas, os desejos, que acompanham e interpretam
a religiosidade, a fé; revelando o tambor de crioula compõem Eu nunca nem tinha olhado. Eu vim olhar
costumes, comportamentos e a um universo próprio, a memória a dança do tambor de crioula num terreiro,
cosmovisão dos brincantes. inscrita no corpo parece reter as aqui em São Luís, de uma senhora chamada
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Dona Denira, já falecida há muitos anos. Eu era de crioula. E esse tambor de crioula é de em entidades que particularizam
criança ainda, tinha uns 13 anos, 12 a 13 anos. uma invisível chamada Chica Baiana. uma essência divina que vem de
Estavam batendo esse tambor na porta da Igreja Acredito que foi ela que me ajuntou no outros tempos e lugares. No transe
de Santo Expedito. Quando eu escutei aquela momento e foi dançar tambor de crioula. os corpos têm um “dono”, um “guia”
marcha de tambor, aquilo me deu, assim, aquela Depois caiu na rotina, onde eu olhava o que transforma os indivíduos em algo
tristeza muito grande. As lágrimas vinham nos tambor eu queria cair dentro pra dançar. pertencente ao mundo dos espíritos,
meus olhos e eu não queria chorar, Neuza Marques, Tambor expressando uma personalidade
e aquilo me apertando. Eu comecei a Unidos de São Benedito através do domínio do corpo.
chorar, chorar, aí eu entrei no coro. Perdi o Uma vez incorporada, a pessoa
sentido e não me lembro mais. Minha mãe O transe é um dos mistérios da ultrapassa a fronteira do mundo
conta que eu brinquei o tambor de crioula e linguagem do tambor. Nele, os corpos dos homens e encontra o mundo
o pessoal se alegrava, e eu cantando tambor somam matéria e espírito duplicados dos encantados. Isso surge sem mais
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E SQU ERDA
C O REI RA COM I MAG EM D E SÃO BE NE DITO.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

D I REI TA
B UMB A -MEU-B OI .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

assombros no meio do tambor, pois comunicativo, nasci pra bumba-boi e tambor de muitos grupos originados como
este é dos santos, das entidades. de crioula. E vou na macumba! E se o pagamento de promessas. Alguns
Com efeito, a principal motivação encantado esquecer de doutrinar eu doutrino. devotos que tiveram seus pedidos
dos festejos de tambor responde Dionísio Adrônico, Tambor de atendidos realizam festejos de tambor
à obrigação religiosa. E, nesse São Benedito da Vila Embratel desde a década de 1950, quando não
universo, a devoção não se restringe os herdaram de seus antepassados,
a São Benedito, seja na interpretação Alguns afirmam que a prática que já o faziam bem antes disso.
católica ou sincretizado com do tambor só se justifica em louvor É interessante notar que o mesmo
Averequete, mas também reverencia a São Benedito ou a outro santo. acontece em outra grande expressão
o Divino Espírito Santo, Acóssi4, Alguns festejam apenas santos da cultura popular maranhense,
Nossa Senhora da Conceição, Preto católicos. Já outros reverenciam o bumba meu boi, que também tem
Velho e outras entidades cultuadas em santos, entidades de cultos de matriz fortes ligações com o tambor de
casas de diferentes filiações religiosas. africana, sobretudo do tambor de crioula. Inclusive, muitos grupos
O fato é que a ligação entre tambor mina – religião de matriz africana, de tambor, especialmente os mais
de crioula, santos e entidades é iniciática e de transe ou possessão, antigos, originaram-se nos bois, cujos
mencionada em todos os grupos de altamente hierarquizada, que cultua participantes faziam rodas, dançando,
tambor, ainda que alguns brincantes voduns. Outros, ainda, destacando cantando e tocando o instrumento.
participem dele principalmente pela a dimensão da festa e da diversão, É esse o caso do Tambor do Oriente:
festa e pela diversão. consideram que a presença do santo
no tambor só é necessária quando se Com o tambor eu já me apresentava
Minha idade já está vencendo. Eu sei de onde está pagando promessa. em terreiros de umbanda, igrejas e
eu vim, onde eu estou, daqui eu não sei. A propósito, a lógica “promessa promessas muito antes da fundação do
Quem novo não morre, velho não escapa! feita, graça alcançada” está na origem grupo. O tambor de crioula começou
Então, eu não estou triste. Tenho setenta do tambor de crioula e evidencia a assim, principalmente para cumprir
anos, não bebo, sou sempre alegre, sempre dinâmica de criação e manutenção o ritual do boi, ou seja, a morte do
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E S QU E RDA
DE TA L H E S DA V E ST IM E NTA D E CO R EI R A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .

DIRE ITA
FE STA DO DIV INO E S PÍRITO S A NTO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .

Em suma, as formas de expressão


da devoção e de realização dos
festejos de tambor de crioula
podem variar de terreiro para
terreiro, de sujeito para sujeito, de
promessa para promessa.
Por exemplo, a maioria dos grupos
originados por uma promessa feita
para São Benedito leva a imagem do
santo consigo para as apresentações,
mas muitos discordam dessa prática
quando se trata do Carnaval, por
considerarem-no uma festividade
boi que ocorre no segundo sábado de Como o relato exemplifica, até hoje sem pretensões religiosas.
agosto. No encerramento da morte do é comum que o mesmo sujeito seja
boi tem que ter um tambor. dono de um boi e de um tambor, e que O Carnaval é uma festa profana.
O tambor tem a mesma época do seus brincantes participem de ambos os O tambor de crioula, na verdade, está
boi. Fazer um tambor no ritual não festejos e assim os santos João e Benedito ali como coadjuvante. Ele não é uma
é bem um desejo. Desejo é quando a sejam simbolicamente conectados. peça principal do Carnaval,
gente não tem, mas tem vontade de foi a Cultura que já colocou o tambor
ter! No caso, esses dois caminharam Eu vou fazer baião de crioula. Agora, o São João é uma
sempre juntos, o São João e o São Eu vou fazer baião festa religiosa, de santos. O Carnaval
Benedito caminharam logo juntos. Tambor pra São Benedito não é uma festa de santos. É uma
Maria Juliana, Tambor Pandeiro pra São João festa profana, do povo. As pessoas
do Oriente Toada de Tambor de Crioula quando olham o tambor de crioula
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com o santo dançando na cabeça, por Até a forma de dançar pode O TAMBOR CELEBRA A DÁDIVA
ser uma festa de São João e de santo diferir conforme os contextos e as
o entendimento é maior. Então, no devoções dos brincantes. Vide as São várias as festas animadas pelo
Carnaval, para não chocar as pessoas reclamações de muitas coreiras, tambor de crioula no Maranhão,
que são da Igreja Católica, aqueles de que algumas companheiras quer sejam de natureza religiosa ou
que são fervorosos mesmo, praticantes. “dançam tambor de crioula como se não. Por exemplo, o bumba meu
Se chega o Carnaval e se vê o tambor estivessem dançando mina”5. boi e a festa do Divino Espírito
de crioula e a pessoa dançando com Em todo caso, trata-se de instituir Santo, duas grandes expressões
o santo na cabeça, vai dizer: “O certos limites entre a festa e a devoção, da cultura popular maranhense
que é isso?!” Choca as pessoas. entre pureza e impureza, limites que também reúnem religiosidade
Clemente Filho, Tambor esses que são diferentes percebidos e e diversão, são frequentemente
Proteção de São Benedito vivenciados em cada grupo. acompanhados de rodas de tambor
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 28

de crioula em momentos específicos


de seus ciclos festivos particulares.

Eu fazia a festa da Matança do Boi e


depois eu fazia a festa de São Benedito
separada. Agora não, a gente tá
emendando a despesa. Faz a semana toda
a Matança do Boi, quando é sábado
a gente faz o Tambor de Crioula.
Apolônio Melônio, Tambor
Prazer de São Benedito

O tambor toca junto com as caixas de


Divino. Quando a caixa toca na tribuna, Como uma linguagem que associa os brincantes a tomarem parte
o tambor toca lá no barracão, histórias, memórias e música, e em grupos de tambor de crioula,
ao mesmo tempo. São doze dias de festa! a partir da qual se pode elaborar a dimensão festiva vivenciada na
Dário Lima, Tambor da múltiplas falas, o tambor é capaz brincadeira tem aspectos lúdicos que
Tenda de Iguaruana de percorrer diversos ambientes: contribuem para o estabelecimento
arraiais públicos e particulares, de relações de sociabilidade entre os
Para alguns, a presença do circuitos de rua, praças, eventos, componentes. A experiência festiva
tambor nesses festejos, assim congressos, festas de aniversário, em torno do canto, do toque e da
como em outras brincadeiras, terreiros, quintais, beiras de praia dança do tambor favorece a criação
se explicaria pela obrigação na capital e no interior do Estado. e a manutenção de laços de amizade
religiosa; outros acreditam que Além das crenças religiosas e e solidariedade entre os humanos.
apenas “faz parte do divertimento”. da busca de diversão que motivam E esses laços, assim como o transe,
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E SQU ERDA
PUNG A .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

D I REI TA
C O REI RAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

também possibilitam a recriação da um pouquinho. Toda noite a gente ia também podem pagar promessa
realidade cotidiana. para a beira da praia. Cansei de mandar simplesmente brincando, isto é,
meu irmão ir buscar uma saia da mamãe dançando, cantando e tocando
Eu nasci na Ponta D’Areia7. Quando o para eu dançar. Tudo de pé descalço, tambor para São Benedito. Por
vento estava muito forte, em agosto, que naquela areinha, que era uma beleza. outro lado, brincar no tambor de
não deixa pescador ir pescar, ficava todo Maria Arizete, Tambor um determinado dono, colaborando
mundo no barraco dos pescadores, ficava do Maracujá para sua brincadeira, pode ser
todo mundo triste. Meu pai ficava: “Meu uma forma de retribuição como
Deus do Céu, esse vento forte não deixa A generosidade e a reciprocidade expressão de lealdade ou gratidão ao
ninguém pescar, está todo mundo triste, os são atitudes comumente louvadas sujeito. Para o dono da festa, dar aos
homens estão com os nervos à flor da pele, no contexto festivo do tambor de brincantes comida e bebida, além da
sem poder pescar e sem ter nada em casa crioula. No entanto, é nas festas de oportunidade de brincar, é também
para alimentar a família”. Aí ele pegava e São Benedito que o circuito da dádiva uma forma de retribuir à sua gente,
botava o tambor dele para tocar. Camarão se revela mais explicitamente no demonstrando-lhe apreço. E há
seco, farinha d’água, cachaça, e botava cerne dessa brincadeira. Fazer uma ainda muitas maneiras de alimentar
gente para bater todos os três tambores e festa de tambor para o santo envolve o circuito da dádiva no tambor, sem
cantava. Ele patrocinava tudo. Com aquilo uma série de dons e contradons mencionar o pagamento de cachês
ele animava os pescadores, que estavam transitados entre humanos e por apresentações que passou a
tudo no desespero, sem ter nada de consolo. divindades e humanos entre si. ocorrer num contexto mais recente
Com aquilo passava, dava para aliviar o Primeiro, no caso do tambor de transformações na brincadeira.
coração e pensar no outro dia. “O outro originado de promessa, Em resumo, o tambor de crioula
dia é outro dia”. Então, quantas vezes eu subentende-se que a oferta da no Maranhão é uma forma de
chegava lá e meu pai estava com o tambor própria festa é um pagamento expressão que celebra a dádiva em
mais minha mãe na beira da praia. A gente ao santo pela graça concedida múltiplos planos da vida social,
morava na beira da praia, mas afastado ao festeiro. Mas os brincantes material e simbólica.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 30

RO DA DE TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.

Não só o espaço de apresentação Nesta seção serão descritos os


é circular, como as saias das principais elementos constituintes
mulheres têm de ser amplas para em das rodas de tambor.
determinado momento rodarem,
assim como a frente, a “face” TAMBORES E TOQUE
A roda de dos tambores é redonda.
As toadas também circulam, sendo Na roda, cantos, danças e
tambor as mais reconhecidas e amplamente devoções aos santos são ritmados
divulgadas entre os grupos. pela sonoridade da parelha,
A dinâmica da circularidade composta por três tambores com
orienta a performance, quer nas funções bem definidas: tambor
apresentações contratadas para os grande ou rufador, meião ou
arraiais ou nas realizações mais socador, e crivador ou pererenga.

A roda significa o lugar,


a performance, a realização
do próprio tambor. Em um
domésticas do tambor de crioula.
Tanto o toque quanto a dança
seguem o princípio da alternância.
Segundo Ferretti e Sandler,8
os tambores são similares aos utilizados
no culto Mina-Jêje, originário do
sentido mais geral, a roda é a Tambor não se faz só. Os integrantes antigo Reino do Daomé, e cada qual
forma de inserção do tambor de dos grupos sabem que a dança, assim tem uma função bem definida na roda
crioula nos mais variados como o toque é de todos. Deve haver e uma sonoridade própria.
ambientes. Ele circula a sua roda uma circulação entre os que dançam
em aniversários, festejos e os que tocam, apesar de haver o O tambor maior, chamado de “tambor
religiosos, batizados, dias santos. reconhecimento daqueles que são grande” é o solista. Há dois outros
Sua lógica é a do movimento, apontados como os que “arrepiam” tambores, o segundo chamado de
da circularidade de espaços, na dança ou sabem fazer o tambor “meião” ou “socador”, que estabelece
motivos e empolgações. falar com mais força. o ritmo básico de 6/8 e o terceiro
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 31

“crivador” ou “pererengue” que Por exemplo, no povoado de Santa habilidade e precisão. Em primeiro
realiza improvisos em 6/8. A música Maria, no município de Porto Rico lugar, a madeira escolhida não
africana é frequentemente caracterizada do Maranhão, utiliza-se o vocábulo deve ter espessura igual em suas
como sendo polimétrica, porque, em “terno” para designar o conjunto extremidades, pois como alguns
contraste com a música ocidental, dos três tambores, ou ainda, “terno argumentam, em decorrência
cada instrumento no conjunto possui da santa” em referência ao festejo da cobertura ser feita na parte
medidas diferentes, permitindo diversas de Nossa Senhora da Conceição, superior, esta precisa ser mais larga
possibilidades de variação e de improviso no mês de novembro, quando é que a inferior. São especialmente
para o tambor que lidera o grupo. realizado o tambor de crioula. valorizadas para a confecção de
Igualmente, variam os materiais tambores as madeiras nativas das
As denominações variam de com que são feitos os tambores. áreas de manguezais, como o
acordo com o grupo ou a região. A propósito, fazê-los exige “burdãozeiro”, o “soro”,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 32

a “fava” e a “siriba”. Seu Coco, do não serem considerados ideais A mudança, nesse caso, tem
Tambor do Oriente, diz preferir nem originais. Eles apresentam contribuído para a continuidade
os “tambores originais e da raiz algumas vantagens como o fato de da prática do tambor de crioula.
do negro”. A originalidade, nesse serem mais leves, práticos e menos Como explica Dona Ildener
caso, diz respeito à utilização de custosos, além de mais facilmente Barbosa, do Tambor Coração
madeira “tirada no mangue”, acessíveis, tendo em vista o atual de São Benedito, o tambor dos
posteriormente, brocada e queimada contexto de proibição de retirada antigos era “uma casca de pau que
por dentro. de madeira em áreas de proteção eles batiam”, mas com o passar do
Geralmente, os grupos têm ambiental. Por esses motivos, tempo a madeira foi se tornando
as parelhas feitas de madeiras; o uso de tambores feitos de PVC menos acessível e buscaram-se
no entanto, os tambores de PVC tem aumentado significativamente, outras matérias-primas para fazer
são bastante utilizados, apesar de principalmente em São Luís. os tambores.
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E SQU ERDA
R ODA DE TA MB OR NO C ARNAVAL .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

D I REI TA
R ODA DE TA MB OR EM FE STIVIDAD E RE L IGIOSA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

Depois eles inventaram aquele tambor confere a alguns tocadores a esteja no ponto, bem molinho. Na verdade,
de bambu, um tamborzinho de bambu. incumbência de especialistas. existem dois processos: esse de botar o couro
Desse tambor de bambu, foi o tambor de molho quando a gente compra ele seco,
de madeira, grande, de tronco. Eu vou buscar esses tambores no interior. e o outro de quando a gente compra o couro
Hoje em dia, nós usamos na maior Eu entro no mangue para pegar esses fresco. No caso de ter o couro fresco, a gente
parte já desse tambor [de PVC]. instrumentos; não é chegar e pegar um cobre logo, só faz cortar o pedaço certo pra
Tudo vai ficando difícil, porque a pedaço de madeira e botar um couro e cobrir. A gente utiliza muito couro de boi,
madeira, lá no mato, já não querem tocar, não! É todo um processo. A gente tira alguns gostam de couro de veado, mas eu
que ninguém corte, que ninguém a madeira por toque. Eu entro no mangue, gosto de trabalhar com couro de boi.
tire, o Ibama, não pode... dou um toque na madeira e sei quando ela Para ocar também tem todo um processo.
Ildener Barbosa, Tambor está no ponto para fazer o tambor; a gente A gente usa uma ferramenta chamada
Coração de São Benedito sabe quando ela não está. Quando dou um trincha coiva, e vai ocando por dentro da
toque nela e sinto que ela está um pouco madeira. À proporção que vai se tirando as
Ainda assim, minúcia, detalhes oca, eu tiro, boto na beira do mangue e já farpas, vai tocando fogo, aí o fogo
e alguns segredos são requeridos trago para cá [São Luís]. Chegando aqui, vai apagando e a gente vai ocando.
para garantir a qualidade dos ela vai sofrer outro processo. Um processo Isso tudo até chegar ao ponto certo do
instrumentos. Observam-se, entre de trabalho. A gente vai trabalhar em cima tambor estar totalmente ocado. Para
outros fatores, as fases da lua para dessa madeira, terminar de ocar, lixar a colocar as tarraxas ou cravelhas eu utilizo
escolher o momento certo de parte dela que tá mais bruta. É tipo um uma furadeira elétrica para fazer os sete
retirar a madeira para confeccionar diamante como uma pedra bruta, a gente furos. Nesse caso varia, tem gente que faz
os tambores. Descrito por alguns lapida ela todinha! A madeira passa por um oito, sete ou seis, no meu caso, eu gosto de
como um “todo ritual”, o ofício processo de lixamento. Depois tem que furar fazer oito furos que fica o ideal. Depois bota
de prepará-los é extremamente para botar o couro. O couro também tem o couro com três talhos, passa o ferro por
valorizado entre os brincantes e outro processo: tem que botar ele de molho dentro desses três talhos, puxa até o buraco
o domínio desse modo de fazer um dia antes para que no dia de cobrir ele e bota a cravelha para ficar bem esticado
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RO DA DE TA M BO R E M FE ST IV I DA D E R ELI G I O S A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

e chegar à afinação certa. Eu acompanho lado do local onde haverá a roda, e eles, mantendo-os entre as pernas.
todo esse processo. Acompanho e faço. os brincantes levam os instrumentos O tambor grande é amarrado por
Marcelo Silva, próximos ao fogo por alguns uma corda na cintura e preso entre
Tambor Pungar da Ilha momentos, sendo este, um dos ritos as pernas do tocador chefe, que
iniciais para se começar um tambor. permanece de pé.
Da mesma forma, a afinação dos Na sequência, trazendo A maioria dos grupos também
instrumentos requer conhecimentos uma marcha solitária, o meião utiliza a matraca, um par de
específicos, já que para uma roda inicia os toques com seu ritmo pequenos pedaços de madeira
animada são indispensáveis certos marcado. É seguido pelo som batidos no corpo do tambor grande.
cuidados com o tratamento dos agudo ou “repicado” do crivador. O toque das matracas acrescenta
tambores, garantindo, assim, que Por último, o tambor grande se “um tom especial” às toadas. Elas são
tenham boa “voz”. apresenta “rufando” a liberdade e o executadas por tocadores que ficam
“Quentados a fogo”, os tambores improviso. José Vitório, do Tambor agachados atrás do tambor grande10.
devem ser cautelosamente afinados de Zequinha, explica o toque: A respeito da música dos tambores,
numa fogueira, tanto os de madeira “Tem de ‘caçar’ quando o tambor Sandler afirma que “mais do que
como os de PVC, embora este socador fala. O crivador vem logo um produto, é um processo no qual
último seja considerado mais fácil atrás, aí o tambor grande tem de todos os presentes são, ao mesmo
de afinar, já que as espessuras caçar o sotaque para não levar nada tempo, participantes e criadores”,
das duas partes, apesar de iguais, atrasado, tem de levar certinho”. acrescentando que esse processo não
não interferem na sonoridade Tocados com as mãos, tem “começo nem fim definido”11.
do instrumento. A quentura do os tambores compõem uma Para a autora, a característica mais
fogo deve acompanhar o tambor, combinação rítmica envolvente. marcante da musicalidade do tambor
que precisa retirar das chamas a O meião e o crivador são assentados de crioula é o grau de participação e
força para se expressar9. Então, em um tronco no chão, lado a lado, interação dos diferentes elementos
geralmente faz-se uma fogueira ao e os tocadores sentam-se sobre que o compõem.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 35

Há fundamentos musicais que enquadram baixo, interage com os outros tambores, menos “alvoroçadas”, “corridas”,
essa unidade de participação numa dirigindo a música e a dança, especialmente “lentas”, “cadenciadas”. Nessa
moldura. Uma base é a interpenetração a característica “punga”. O tocador de direção, Apolônio Melônio,
dos padrões rítmicos simples e repetitivos, tambor grande brinca com os ritmos, do Tambor Brilho de São Benedito,
chamados padrões “ostinatos”. A música enfatizando alguns, preenchendo espaços, acrescenta: “Em uma parte é
normalmente começa com um ostinato de realçando o sentido entre 2/4 e 6/8. mais cadenciada, outra mais
duas notas tocado no meião. O crivador, O canto está delimitado pelos instrumentos – alvoraçada, mas o sentido é só um.
com tom agudo, entra com outro ostinato, um cantador principal entoa uma melodia Os cantadores seguem o costume
tocando no meio dos espaços dos ritmos do curta, que é respondido pelo grupo.12 do lugar. Uns, cantam mais alto,
meião, e juntos criam um ciclo repetitivo. outros, mais baixo”.
O padrão da matraca define a duração O modo de tocar e cantar varia Como ocorre no bumba meu
desse ciclo. O tambor grande, de tom mais e as melodias podem ser mais ou boi, no tambor de crioula também é
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 36

possível estabelecer “sotaques”


ou ritmos diferenciados. “Sotaque”,
apesar de não ser um termo tão
comum no universo do tambor
quanto o é no do boi, é empregado
como uma classificação das
diferentes formas de cantar e tocar.
É utilizado para demarcar a maneira
individual de cada tocador,
bem como as sonoridades específicas
de cada região, por exemplo,
“sotaque da baixada” ou “sotaque da ilha”.
De acordo com Santos:
de Bumba meu Boi de Zabumba, sofrendo usa quatro ou cinco pequenos
Em Codó (sede), o tambor de crioula é variações em relação aos de Cururupu tambores feitos de taboca ou
muito mais forte, prendendo-se mais para e Pindaré, sediados em seus próprios bambu. Socados com as mãos e
o terecô, enquanto que nos povoados como Municípios... No Povoado de Santa Rosa, batidos no chão, esses tambores
Santo Antônio dos Pretos e São Benedito Município de Itapecuru-Mirim, o Tambor produzem sons que se assemelham
dos Colados, a dança e o toque são mais de Crioula é executado com a adoção da à musicalidade da parelha.
pausados, seguindo o ritmo de pandeiros dança do coco e outras manifestações.13
pequenos. Já os grupos de Tambor de No de taboca se usa uma “perna manca”
Crioula da Baixada, sediados em São Luís, Destaca-se nesse conjunto de para a gente bater em cima. E quando
seguem a linha do sotaque de zabumba, variantes das formas e linguagens a gente está brincando por aí, eles dão
em face aos seus “comandantes”, radicados relacionadas ao tambor de cachaça, qualquer tipo de bebida para
na capital, serem proprietários de grupos crioula o Tambor de Taboca, que tomar. E assim vai a brincadeira, que é muito
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E SQU ERDA
A FI NAN DO TAMB ORES .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

D I REI TA
PA R ELHA DE TAMB ORE S.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

importante. São quatro tamborezinhos de ele enriquece a diversidade dos respondidos pelo coro. Logo o
taboca. Aliás, só têm nome três, porque toques de tambores na Ilha de São vozerio dos coreiros – homens que
dois fazem parte só de um. Dá o nome de Luís e no interior do Maranhão, ao tocam – e das coreiras – mulheres
meião, o crivador e o tambor grande. mesmo tempo, que exibe histórias, que dançam na roda – se dilui na
José Ribeiro, Tambor de estilos e performances próprias. energia contagiante da roda. O fim
Taboca de João Ceguinho Como diz César Imperial, do das cantorias, segundo Sandler,
Tambor Bambu Crioula, “o tambor “depende do ambiente musical ou
Uma versão sobre a origem do tocado com as tabocas ou bambus foi social, por exemplo, quando os
tambor de taboca informa que os feito por curiosidade, por ser ímpar tambores necessitam ser reafinados
indígenas, que já tinham práticas e único. É diferente, mas igual”. ao fogo, enquanto pouco a pouco
de percussão, vendo os negros silenciam o toque e o cântico”14.
se divertirem com os tambores TOADAS As toadas do tambor de crioula
de madeira “e tendo mania exemplificam o vasto repertório oral
de imitar tudo”, inventaram Unindo rimas improvisadas e musical do Maranhão e podem
instrumentos semelhantes para a um repertório tradicional ser classificadas em diferentes
os “caboclos” dançarem. No lugar comum, as toadas são versos temas como: a autoapresentação,
de madeira e couro, coletaram curtos acompanhados por um saudações, cumprimentos,
bambus, ocaram e bateram em coro resposta, que se fundem ao autoelogio, reverências a santos
cima de pedaços de madeira com ritmo dos tambores. Sejam mais e entidades protetoras, descrição
o objetivo de “tirar o som”. “cadenciadas” ou mais “badaladas”, de fatos, recordação de situações,
No amplo universo dos de acordo com o estilo do tocador pessoas e lugares, sátiras, recordações
tambores, não se trata de classificar e o conteúdo das toadas, há sempre amorosas, desafios, despedidas,
o tambor de taboca meramente algo de fascinante nos seus versos. etc. Elas elaboram e transmitem
como variação ou derivação. Apesar Um solista inicia os cânticos, mensagens diversas, muitas vezes,
de ser feito por poucos grupos, que passam a ser repetidos ou sob a forma de códigos e linguagens
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E S QU E RDA
C O RE IRO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .

PÁGINA AO L A DO , DA E S QU E R DA PA R A A D I R EI TA
C O RE IRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

C O RE IRO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .

toadas de bumba-boi e de tambor,


Seu Antoninho, do Tambor Milagre
de São Benedito, explica que há
uma mistura entre toadas sobre
fatos atuais, as “toadas novas”, e as
toadas sobejamente cantadas,
as “toadas mortas”. As primeiras
falam do dono do tambor, da
política cultural e de eventos
recentes e têm compasso mais
acelerado. As “toadas mortas”
correspondem às cantigas
tradicionais, amplamente
que singularizam essa brincadeira, Na verdade, elas são plenas de poesia conhecidas entre os brincantes,
tudo entremeado por versos e rimas e sentido, mas o sotaque com que são e apresentam sonoridade mais
improvisadas no calor da festa. pronunciadas, o uso de regionalismos lenta. As canções mais festejadas são
Muito preconceito se criou e palavras arcaizantes, bem como a as que dão o tom de brincadeira.
em torno das toadas do tambor própria impostação vocal dificultam Referem-se aos versos improvisados
de crioula. Devido à dificuldade sua compreensão por quem não faz no momento da festa em que os
de compreendê-los, por parte parte do universo da brincadeira. tocadores e cantadores exercem à
de pessoas de fora dos setores da Da mesma forma, pessoas de fora dos exaustão suas habilidades rítmicas
classe social que participam de grupos não aprendem facilmente a e musicais intermediadas pela
sua realização, os cânticos foram tocar e dançar. criatividade. O improviso funciona
recorrentemente julgados como Sobre a composição diversificada como uma espécie de competição
conjuntos de palavras sem nexo. dos temas e versos, o compositor de simbólica pelas melhores rimas;
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 39

um “bom rimador” é aquele que DANÇA acompanhando o ritmo das


consegue musicar um fato com toadas, a coreira entra na roda
maior riqueza, sem “sair do ritmo”. Os tambores já estão “no ponto”. “segurando a ponta da saia,
Seu Gonçalo e Domingas O coreiro, sobretudo, o mais antigo, de maneira graciosa, faceira e
Figueiredo, ambos do Tambor de coordena a roda usando um apito sensual”.15 Ela se dirige para o
Nivô, relatam que, antigamente, para dar início ou encerrar os centro da roda e reverencia os
durante o Carnaval, havia toques. O meião “puxa o toque”, tambores dançando.
concursos de grupos de tambor seguido do “repicado” do crivador, O ponto alto de sua performance é o
de crioula na praça Deodoro, no e por último, do “rufar” do tambor movimento com que convida uma
centro de São Luís. Na época, grande. As coreiras, em círculo, se companheira para a dança,
muitos se referiam ao local como posicionam na roda. Logo coreiros, por meio de um toque de ventre
a “praça de guerra”. Durante o coreiras e tambores parecem um com ventre, uma espécie de
concurso, cada grupo procurava só. Cada movimento e inflexão são umbigada, que é chamado punga.
fazer a melhor apresentação, e a devorados pelos que observam
disputa se dava, de forma mais a roda. A punga é o símbolo do tambor de
marcante, entre os cantadores crioula. Quer dizer, tem que ter. Tem que
e tocadores por meio de rimas. Chega pra roda, mulher existir. O toque do tambor aqui que faz
Costumavam cantar toadas Chega pra roda, mulher ela, a coreira, fazer a punga ali.
que ressaltavam as qualidades Tambô que tá te chamando, O jogo em cima do tambor. Ela rola ali,
de seu grupo, apontando, Chega pra roda mulher dá aquela rodada; quando ela faz aquela
concomitantemente, falhas e Trecho de toada meia lua, aí ela vai em cima do tambor.
imperfeições dos concorrentes, Quer dizer, certo com a punga do tambor,
e essas toadas eram prontamente Requebrando os quadris e ela também faz o jogo do corpo dela.
respondidas, em forma de rima, com movimentos expressivos de José Domingos, Tambor
pelo tambor adversário. pernas, pés, braços e ombros, Brilho de São Benedito
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 40

Esse movimento é tão


característico do tambor de crioula
do Maranhão que, não raro,
o termo punga aparece como
sinônimo equivalente do próprio
tambor. Em seu Dicionário de Termos
Folclóricos, Câmara Cascudo comenta,
no respectivo verbete, que se trata
de “dança popular no Maranhão,
capital e interior”. Acrescente que
“a punga é também chamada tambor
de crioula. Ponga é um jogo. Creio
que punga é um termo corrente
apenas no Maranhão e significa, na e observadores na experiência de piada, simulação de brigas e risos
dança em questão, a umbigada, altamente sensorial da brincadeira. são bastante comuns; para remediar
a punga”16. A propósito, a ludicidade é o a situação a coreira “emprenhada”
A punga demarca a saída de uma que comanda a dança. Tal qual deverá ser a primeira a dançar logo
coreira, a saudação e o pedido de a punga, “emprenhar” é uma após os toques recomeçarem.
entrada da “dançadeira” seguinte, brincadeira feita no momento da Relatos dos brincantes mais antigos
no momento máximo de interação roda. Acontece quando a coreira enfatizam que no passado o tambor
e integração entre os brincantes. está dançando e os tambores param era tocado e dançado exclusivamente
O movimento da coreira nesse abruptamente, significando que por homens, inclusive com a punga,
gesto deve estar em sintonia com a mulher ficou “emprenhada”, que então consistia numa batida
o toque do tambor grande, numa engravidou na roda de tambor. de joelho contra joelho ou uma
combinação que envolve brincantes A partir disso, provocações em tom espécie de pernada com o objetivo
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E SQU ERDA
DANÇA DA COREI RA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

D I REI TA
D ETA LHE DA DA NÇA DA C ORE IRA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

de derrubar o companheiro com senzalas, utilizando como atrativo as Benedito teria transformado uma
uma rasteira. Era como um golpe. negras escravas mais jovens e mais cesta de comida em flores quando
Dona Mocinha, do Tambor Lírio de bonitas. Enquanto isso, nos fundos foi pego em flagrante tentando
São Benedito, conta que “homem do local eram realizados os cultos alimentar os pobres.
pungava o outro, dava pungada e religiosos. Assim, a brincadeira
jogava distante. Aí ele se ajeitava chamada “tambor de crioula” ROUPAS
de ladinho e o couro comia de permitia que os cultos religiosos
novo! Depois que passou a ter essa permanecessem em segredo. Descrever a indumentária dos
violência, acabou esse negócio de Vale ressaltar que, além de praticantes de tambor de crioula
homem na dança”. Assim, a punga homens e mulheres, os santos poderia até ser um exercício simples.
masculina teria sido substituída pela também podem estar presentes Para as mulheres, saia de chitão
“umbigada” feminina, explicando a na dança, embora isso não ocorra florido e bem rodada, “que é para
ausência atual da figura do homem em todos os grupos. Dependendo dar aquele movimento”, anágua
como dançante do tambor. da promessa que tenha originado por baixo das saias, blusa branca de
Outra versão, igualmente o tambor, algumas diferenças em renda, com babado na gola, torso na
interessante, associa a ausência relação ao modo de devoção e cabeça, colares. Elas mesmas escolhem
dos homens no centro das rodas representação da divindade são o tecido, cortam e fazem as roupas.
às estratégias de dissimulação dos definidas na roda. No Tambor Para os homens, itens que podem ser
cultos africanos que eram proibidos Turma dos Crioulos, por exemplo, confeccionados ou comprados, como
e perseguidos durante a escravidão. São Benedito é louvado sem que calça, camisa “de botão” e chapéu de
Cícero Ribeiro, do Tambor Senhor sua imagem faça parte da roda. couro ou de palha. Mas tal descrição
de La Ravardière, relata que para Nele as mulheres dançam com não refletiria a complexidade de
viabilizar a continuidade dos seus uma pequena cesta enfeitada com escolhas que está por trás de cada
cultos, os negros começaram a fazer flores, adorno esse que representa peça do figurino aparentemente
rodas de tambor na entrada das o milagre do santo, já que São simples. Na roda de tambor de
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 42

crioula, colorida, luminosa, animada, brincantes, “antes as mulheres botavam vestimentas antigas eram “simples,
a ideia de espetáculo cede lugar à seu melhor vestido godê, e os homens porque é brincadeira de lavrador”.
de apresentação. Apresentar-se ao roupa de ir para o trabalho, calça de Tais declarações deixam entrever
público, aos outros grupos de tambor, linho... Não tinha isso de farda!” Nesse que as roupas uniformizadas e
exige marcar um traço próprio não só mesmo tom, argumentam: chamativas foram uma introdução
no jeito de cantar, dançar e tocar, mas “saia estampada? Não, que só recente no tambor de crioula, que
também no jeito de vestir. muito depois é que chegou esse divide opiniões entre os participantes.
A roupa de coreiras, cantadores e tipo de tecido no interior”. Outros Algumas mulheres reclamam da
tambozeiros é um dos elementos que se explicam que “a gente se sujava de padronização que lhes chegou até os
produz na tensão entre padronização banha de porco e tintol e ia para a pés: umas dizem que “tem que dançar
e subjetividade no contexto da rua, por isso usava roupa de saca de descalça”, outras dizem que “tem que
cultura popular. Como dizem alguns açúcar”, reforçando a ideia de que as dançar calçada”.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 43

E SQU ERDA
A D ER EÇOS DA COREI RA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

D I REI TA
R OU PA DA COREI RA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

Da tensão entre o padrão e a


criatividade alimentam-se a busca
da originalidade, que os brincantes
identificam em diferentes atributos,
e o discurso da autenticidade
representada no modo de vestir.
Para uns, “original é o chitão”,
mas Antoninho, do Tambor Milagre
de São Benedito, diz que suas
coreiras já não querem esse tecido,
pois se tornou comum a todas as
brincadeiras populares. Para outros,
“original é a blusa de renda”. E ainda
há quem afirme que “crioula de e coletiva no Tambor de Crioula, Averequete, mas também usa tecidos
verdade usa chapéu de palha”, pois criam variações para afirmarem seu de cores diferentes: corta-os em várias
“não se pode dançar com a barriga e a pertencimento ao tambor, mas cada tiras na vertical e depois emenda uma
cabeça no tempo”. um de uma forma diferente. nas outras; por fim, manda pintar uma
Embora todos concordem que Seu João, do Tambor de Crioula do imagem do santo ou uma cena de roda
“tem que ser bonito porque é Nordeste, elegeu a cor marrom para de tambor com estrelas, fogueiras,
pra São Benedito”, a escolha da suas roupas e, inclusive, para pintar as parelhas. Faz saias sobressalentes e
indumentária para a roda do tambor parelhas de tambor, pois, segundo ele, tem uma caixa com pulseiras, brincos,
configura um espaço para disputas essa é a cor do manto de São Benedito. colares que ela e sua filha fazem para as
humanas. Sob uma matriz dada Dona Mocinha, do Tambor Lírio de coreiras se enfeitarem e para oferecerem
como tradicional, os brincantes, São Benedito, respeita a preferência a oportunidade de espectadoras
de acordo com sua história pessoal pela cor associada ao santo e a entrarem na roda. Por sua vez,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 44

No caso dos grupos a escolha da


roupa constitui uma estratégia de
representação de si, voltada tanto
para agradar o público quanto os
órgãos de Estado que contratam as
brincadeiras, pois, como muitas
pessoas disseram, a fiscalização nos
circuitos oficiais de apresentações
avalia como negativo o fato de
um grupo exibir-se com roupas
que tenham estampas diferentes
umas das outras. Ademais, a
adoção de uma indumentária
Dona Evanilde, do Tambor Um Canto um vermelho com amarelo é que uniformizada nesses casos consiste
de Amor a São Luís, adaptou “roupas o turista acha bonito”; “meu filho em uma estratégia para afirmar a
de axé”17 para suas coreiras. traz o tecido do Rio de Janeiro, identidade coletiva e firmar uma
Além das preferências pessoais que é para ser diferente”; “eu saio marca própria que a distinga dos
e das conexões religiosas que cedinho, ando a Rua Grande toda, outros. Muitos já optam por fazer
também se expressam nas roupas, o pessoal das lojas já me conhece, a roupa em malharias e inscrever
as escolhas nesse campo se ando até encontrar o pano nas costas das camisas o nome do
orientam pelo desejo de satisfazer mais bonito”. Um sonho, uma grupo, para não deixar dúvidas.
as expectativas do público que promessa, um desejo, uma origem Como explicou um brincante, “a
assiste ao tambor, como revelam diferente da brincadeira são as gente pintou esse azulejo na blusa
as declarações dos brincantes: explicações dadas para burlar o que é para homenagear São Luís e
“Eu gosto de muito colorido, padrão e legitimar as mudanças. botou o nome atrás da camisa que
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 45

E SQU ERDA E DI R EI TA
C O REI ROS.
FOTOS: EDG A R R OCHA, 2002.

é para fazer a propaganda. É tanto


grupo, que ninguém sabe quem é
quem quando está dançando”. As
roupas padronizadas geralmente são
patrocinadas pelo “dono” ou “dona”
do grupo e são frequentemente
percebidas como bens da
coletividade, apesar de seu uso ser
individual. Assim, alguns donos de
tambor exigem dos brincantes que
não usem a roupa identificadora
do grupo em outras rodas, pois
isso ensejaria interpretações de
que o dono não cuida bem de sua é preciso sempre fazer algo novo, brincadeira em signo da cultura
brincadeira. Da mesma forma, é pois integrantes de outros tambores maranhense. Originalidade,
comum que o dono determine a “vão aos ensaios para espionar” a simplificada como tradição pelas
guarda da indumentária na sede do preparação do grupo. intenções de homogeneizar as
grupo, embora alguns permitam Enfim, nas suas dimensões de expressões da cultura popular,
que os brincantes, dependendo experiência individual e coletiva, é traduzida pelos brincantes e
do grau de envolvimento com o a escolha e o uso de determinada grupos como criatividade, diferença,
tambor, levem a roupa para casa roupa no tambor de crioula rivalidade, vaidade, capricho,
depois de cada apresentação. Dona preservam na brincadeira um espaço cuidado. Os brincantes revelam
Domingas, do Tambor de Crioula de ginga, de voz e de altivez que assim seu desejo de agradar a si
Mocidade Independente de Nivô, contrabalançam as regras criadas próprios, ao santo, ao público, ao
esclarece que, apesar do padrão, no processo de transformação da Estado, ao movimento do tambor.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 46

C O RE IRA S .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

solidariedade e pela comunhão de CICLO FESTIVO


interesses compartilhados pelos
indivíduos que juntos celebram. Para os festejos de tambor de
Ressalte-se também, nas festas crioula, toda época é época, todo
de tambor, a importância da tempo é tempo, como dizem os
As festas memória coletiva de grupos que brincantes. Mas o fato de não ter
compartilham um passado comum data fixa de realização não significa
de tambor remetido à construção da identidade que a brincadeira não siga preceitos
étnica num contexto de resistência relativos ao tempo de brincar e
à escravidão dos negros africanos festejar. Portanto, antes de saírem
trazido para o Maranhão. Como na para arraiais públicos ou particulares,
tradução poética de Josué Montello, circuitos de rua, praças, eventos,
“o certo é que, ouvindo bater os congressos e festas de aniversário,

O casiões de festa e devoção,


as rodas de tambor de crioula
instituem momentos especiais
tambores rituais”, o negro “como
que se reintegrava no mundo mágico
de sua progênie africana, enquanto
os grupos realizam rituais próprios,
entre eles o batismo.
O batismo de um tambor é uma
na vida diária. Pautados pela se lhe alastrava pela consciência ocasião festiva de que participam
lógica da fartura e da cooperação, uma sensação nova de paz, que os integrantes do grupo, amigos do
articulando uma extensa rede de mergulhava na mais profunda dono, vizinhos, visitantes e demais
reciprocidade entre brincantes, essência de seu ser”. Essa é uma das interessados. Contudo, não é
parentes, amigos e vizinhos, mais significativas dimensões da qualquer pessoa que pode conduzir
esses momentos suspendem a festa de tambor, até hoje. o ritual envolvido nesse momento
precariedade que muitas vezes Nesta seção serão descritos os especial da vida do grupo. Dulcimar,
marca o cotidiano, na medida em principais contextos festivos de do Tambor de Mundé, resume com
que promovem sua superação pela realização do tambor de crioula. propriedade o assunto: “É como
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 47

quem está batizando uma pessoa, Te batizo [...] santo como São Benedito ou São
rezando o padre nosso”. Só que, Em nome do Pai, do Filho João. Batizar o tambor significa
nesse caso, o rito deve ser realizado, e do Espírito Santo renovar os votos com o santo, com
preferencialmente, sob comando Pai Euclides a promessa ou com o motivo de
de uma rezadeira ou um rezador, origem da brincadeira. Na dinâmica
um sujeito legitimado para mediar a Esse rito de passagem, feito do tambor, esse ato reafirma o elo
comunicação com o mundo sagrado. anualmente, geralmente acontece entre a divindade e a festa,
antes da primeira apresentação do os brincantes e o grupo.
Eu te batizo [...], ano, na qual serão apresentadas Durante o rito de batismo
Com toda tua formosura, novas indumentárias e novos ladainhas são cantadas, orações e
Não te dou santos olhos instrumentos, mas também pode pedidos são anunciados. É a “salva
Porque não és criatura ocorrer no festejo principal de um do santo”, e ele deve estar presente,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 48

RO DA DE TA M BO R.
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.

em especial, nos casos de promessa. quer dizer que o santo, no momento, As narrativas de seus milagres
Ao término das ladainhas, aciona- está valendo mais que o dinheiro. geralmente começam com uma
se a “voz” dos tambores, o santo Antônio Pacheco, Tambor “história do tempo dos escravos”
“sai” do altar e vai “dançar” com Milagre de São Benedito para introduzir episódios de feitos
os coreiros e coreiras. Santo e no presente. Pois é no presente
brincantes parecem pertencer ao São Benedito, “o santo preto”, que o santo é apropriado pelos
mesmo mundo. Depois que todos ocupa o lugar de patrono dos devotos para mediar em seu favor o
dançam e cumprimentam o santo, grupos de tambor de crioula. possível e o impossível, abrindo-lhes
ele volta para o altar, e “fica lá espaços nos quais os negros e seus
assistindo a festa”, como dizem. Meu São Benedito descendentes normalmente
Nesse contexto, o santo é a própria Vosso manto cheira, são interditados.
imagem; ela não o representa, Cheira cravo e rosa
mas simplesmente é. Então, até a Flor de laranjeira. Eu sou assim, uma devota do santo.
aquisição da imagem é ritualizada. Trecho do Bendito Eu quero fazer uma coisa que agrade o
de São Benedito santo e que seja assim do meu gosto.
A gente vai negociar, vai na casa de um Eu não botei tambor de crioula para
santeiro, numa casa que vende imagem. Evocando histórias contadas por comprar uma fazenda de gado,
A gente nunca diz que vai comprar antepassados, os brincantes de hoje é para pagar minha missão, minha
um santo, a gente vai trocar ele pelo o representam como aquele que promessa. Então, enquanto eu puder
dinheiro. Isso aí é uma coisa que tem um fazia a mediação com o “mundo eu quero fazer coisa daí pra melhor.
mistério, eu já encontrei da era dos meus dos brancos”. Seja para alimentar, Dona Mocinha, Tambor
pais, meus avós, que não se comprava proteger ou inventar a parelha de Lírio de São Benedito
santo. Aí nego pensa que trocar o santo tambor, São Benedito é reconhecido
é um pelo outro. Não, não é um pelo e cultuado como o santo milagreiro É nas festas de Tambor de
outro. É trocar o santo pelo dinheiro; e protetor dos negros e do tambor. Promessa e, evidentemente,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 49

nos próprios festejos de São não sobrou nada, toalha, nem mesa, Dia de preto velho é tambor de crioula
Benedito que a relação do tambor nem nada. Mas ele não pegou fogo, quase para todo lado. Essa história
de crioula com o santo fica mais estava em pezinho lá embaixo da mesa. vem daí. Como prova, a gente vê a
explícita, pois nelas se materializa a Terezinha Moraes, Tambor preta velha. Tem lugar que tem preta
presença do sagrado: o santo é visto, Brilho de São Benedito velha, de cabeça amarrada, né?
o santo assiste, é banhado, roubado, Maria da Paes Santos, Tambor
tocado, ele dança, é “salvo”. As festas de São Benedito, Mimo de São Benedito
animadas pelos tambores,
Uma vez, no festejo do Taim, a gente se multiplicam em todo o Maranhão, Nas casas de Tambor de Mina
estava dançando. E lá é assim, eles especialmente em São Luís e São Benedito é frequentemente
fazem uma casinha para botar o santo na Baixada Maranhense, que é sincretizado com Averequete,
e a gente dança na porta. Aí pegou considerada uma “terra de tambor motivando a realização de festas
dançar, pegou dançar, quando deu de crioula”. É como diz Joel João com tambor de crioula para
meia noite... Sempre tem um abelhudo, da Silva, do Tambor Rojão de São saudar esse vodum masculino
né? Diz que foi olhar o santo e ele Benedito, natural do município representado como um negro.
estava molhadinho de suor. Ele disse de Alcântara: “Sou alcantarense de Contudo, essa associação não
que tinha visto o santo dançando lá, São José. Eu cresci me habituando. é regra em todas as casas. Por
e estava molhado de suor mesmo. Lá tem um festejo de São Benedito exemplo, Pai Euclides, que é pai
Ah, isso foi um susto para a gente! todo ano, no mês de agosto”. de santo da Casa Fanti-Ashanti e
Teve outra vez, eles se mudaram daqui e Também se fazem festas de tambor dono dos tambores Venerador de
foram para Boa Razão. Na Boa Razão, para os pretos velhos, como diz São Benedito e Abanijé-um,
levaram São Benedito, chegaram lá, Maria da Paes. entende que São Benedito e
botaram São Benedito numa mesa. Averequete, embora sejam
Foram acender uma vela, não sei como, Porque o tambor de crioula, mesmo, negros, são distintos e devem ser
a mesa pegou fogo. Quando eles deram, que dizem, é do começo de preto velho. celebrados em rituais próprios.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 50

De modo geral, porém, espaço anexos à residência do dono ressignificam o lugar da sede.
para além dos momentos de festa, ou da dona do tambor. É nesse O dono da casa é o dono do grupo.
a relação dos tambores com espaço que os festejos, as promessas, Relações de hierarquia, de amizade,
São Benedito, Averequete e os os preparativos da brincadeira e as de compadrio, de parentesco, de
pretos velhos extrapola qualquer confraternizações são realizadas. sucessão se estabelecem de acordo
ritual específico e se dilui nas Vale destacar que, embora, em com as atividades e a entrada de
preces individuais, nas cores das regra, se distinguissem o lugar pessoas no grupo. As relações
roupas usadas pelos brincantes, de morar e o lugar de festejar dono-brincante assumem formas
nas toadas, nos nomes dos no espaço identificado como a variadas como mando-obediência,
grupos, nos altares, nas rodas, “casa”, o termo “sede” se tornou protetor-protegido, mestre-aprendiz.
nas promessas. Há, ainda, as corriqueiro mais recentemente O dono da brincadeira é um
formas silenciosas de expressão entre os grupos de tambor de “regente”, termo nativo que denota
da devoção. Para o pai, a mãe e crioula. Provavelmente esse fato se a obrigação de cuidar do grupo,
os filhos de santo que participam deve à obrigatoriedade de os grupos receber bem e zelar pelo lugar da
do tambor de crioula, em lugar adquirirem uma personalidade festa, seja a sede ou a casa.
da enunciação do milagre, da jurídica que precisa estar sediada
publicização da promessa, tem-se em algum endereço e ter uma Ele morreu (senhor Alteredo do Centro de
o segredo, o mistério revelado diretoria e um estatuto próprio, Cultura Domingos Vieira). A única palavra
apenas aos que têm a missão de ver individualizando cada grupo na que ele disse ainda, que São Benedito deu essa
o invisível e perpetuar o encanto. figura de uma associação civil licença pra ele. Se despediu de todo mundo,
e impessoal. quando o tambor chegou, que eles foram se
O LUGAR DA FESTA Em todo caso, porém, apresentar lá na praça, na Cohab, e quando
a “casa” rege as relações da “sede”; ele veio de lá o pessoal botaram o tambor
A maioria dos grupos de tambor é justamente a coletividade e a aqui na frente da mesa, que a gente dava o
de crioula tem sede na casa ou em pessoalidade das relações que jantar do pessoal, e nesse dia ele me ajudou
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 51

D ETA LHE DO G RU P O D E TAM BOR DE C RIOUL A.


FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

a botar o jantar, botar a mesa... e disse pro que diminuiu o tamanho dos dos anos setenta do século XX a
povo: “a casa é nossa, vamos entrando, vamos quartos de sua casa para aumentar a saída dos tambores de crioula do
entrando...”. E eles disseram: “ah, nós tiramos sala, local onde ela serve comida aos espaço da casa para a apresentação
uma toada nova pro grupo, o senhor não foi, brincantes e visitantes do Tambor de espetáculos. Com o intuito de
mas a gente vai mostrar como foi que a gente Lírio de São Benedito I. mostrar as “raízes culturais” do
fez lá na praça”... E botaram os tambores bem Estado do Maranhão, os governos
na frente da mesa, e cantaram as duas toadas, O dono é aquele que de tudo entende um municipal e estadual elegeram duas
a entrada e a despedida, e aí ele começou a pouco. Se falta um cantador, eu tenho que épocas do ano nas quais o tambor
chorar e abraçar todo mundo se despedindo, cantar, pode ser tudo errado, mas tem que se tornou “brincadeira típica”:
e dizia assim: “tomam conta, tomam conta, ir lá; se falta uma coreira eu tenho que ir lá Carnaval e São João. Nesses períodos
obrigado meu Deus, tomam conta...” dançar; se tem que servir uma cachaça, eu o tambor circula como “show” em
Roseli Carneiro, Tambor vou servir; e até para beber mesmo! vários espaços públicos.
Flor de São Benedito Eu estou em tudo! Em todas as etapas. Casa e rua, então, tornaram-se
Onde me procurarem, eu acho que me acham. espaços emblemáticos
Cuidar da sede e da casa, Em todos os quesitos. Se for para carregar representativos de diferentes
na prática, compreende uma os bagulhos e não tiver no momento quem modos de realização do tambor
só atividade, mesmo quando esses carregue, quem tem que carregar sou eu. de crioula. Nos dizeres de Seu
espaços se situam em locais distintos. É igualzinho aquele ditado: o dono do Joel Silva, do Tambor Rojão
De fato, as distinções entre a sede defunto é que carrega do lado da cabeça. de São Benedito, essas formas
e a casa se dão menos pelo critério Maria Juliana Fonseca, diferenciadas de fazer a festa vão
geográfico e mais pela importância Tambor do Oriente além do aspecto material dos
que se atribui às atividades que nelas locais em que os grupos brincam e
se exercem. Cite-se o exemplo de O lugar da rua foi ocupado mais podem ser designadas por termos
Maria da Conceição Madeira, mais recentemente pelo tambor de crioula. como “tambor oficial” e “tambor
conhecida como Dona Mocinha, Várias narrativas situam por volta de residência”: “quando é oficial
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 52

tem que estar no padrão. Tambor no Maranhão, percebe-se uma de periferia. Onde mais as pessoas
de residência, esse que a gente diz conexão clara entre a capital e o se sentariam na porta, acenderiam
tambor de amor, não, a gente faz interior do Estado. No contexto uma fogueira, chamariam o vizinho,
porque gosta da brincadeira, não do inventário foi identificado um abririam a própria casa para oferecer
para ter pagamento.” grande número de brincantes um café com bolo de tapioca a todos
Na prática, esses modos de nascidos na região chamada de quantos chegarem? Onde mais
fazer o tambor remetem a escolhas Baixada Maranhense. Mais que um as mulheres seriam dispensadas
e a imposições feitas em relação dado numérico ou geográfico, esse da cozinha para virarem atração
ao tipo de roupa, ao número de fato é relevante: por exemplo, ser do da casa? Onde mais, negros e
brincantes, ao tempo de duração município de Viana não é a mesma negras teriam a fama de melhores
da roda de tambor, ao tipo de coisa que ser de Pinheiro, embora cantadores, tocadores, dançadeiras,
toada tocada e cantada, à cobrança ambos sejam municípios da Baixada. de quem mais sabe, de quem é mais
ou não de cachê e à definição O ponto fundamental é que os capaz de ensinar? Onde mais seriam
do valor deste. Como aspectos grupos estabelecem diferenciação os grandes donos do tesouro? É por
positivos dessa espacialização entre si por esse critério de isso que a periferia assusta a cidade.
são mencionados a maior pertencimento. Certos grupos É lá o lugar da diferença. É de lá que
divulgação do tambor, a quebra primam pela lealdade e pelo o tambor rufa o inconformismo,
do preconceito, a renda gerada; comprometimento do brincante em desdenha da mesmice, do padrão.
entre os aspectos negativos são relação ao tambor ao qual pertence, É lá que a toada ignora a submissão,
citados a perda da originalidade, como se demarcasse uma referência que a fogueira consome a dor e
criação oportunista de grupos e a com o lugar, o bairro, a sede, o grupo, a transforma em força radiante.
burocratização na relação com as toadas, os toques e as pessoas. É lá que os pés das coreiras vão
o Estado. Em São Luís, boa parte das sedes sedimentando outro lugar e seus
No que tange à distribuição dos grupos de tambor e as casas dos gritos ultrapassam fronteiras.
socioespacial do tambor de crioula brincantes está situada em bairros Ao que parece, o tambor e a periferia
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 53

criam-se mutuamente na Ilha, mas dignidade dos brincantes do já havia estado lá; que possuíam os
não rompem os laços com o interior.18 tambor de crioula, que, por sua vez, melhores tambozeiros; que suas
Se falar em periferia remetem ao mundo rural. coreiras eram mais “danadas”
remete comumente à avaliação No caso do tambor, estar e empolgavam o público
das condições materiais dos na periferia também implica a por onde passavam.
bairros, remete também a uma preferência em dizer que a casa é O jeito de cantar, tocar, dançar,
desapropriação de subjetividades, pequena em relação ao tamanho do as letras das toadas, tudo isso traduz
de sonhos. Ser da periferia é quase grupo de tambor, que a última festa no “aqui” – na cidade – o ser de “lá” –
uma acusação que o “centro” faz às bateu o recorde em quilogramas do interior. Da mesma forma,
pessoas que vivem nela, impondo de carne oferecidos, e em público o desenho irregular das ruas, os
uma perversa igualdade entre lugares presente; que a vizinhança terraços de chão batido, as casas de
e pessoas que as torna indistintas, acompanhava o grupo do bairro nos poucos compartimentos cortados
sob o rótulo de pobres e marginais, circuitos de Carnaval e São João; por grandes corredores, os quintais
que as torna despossuídas de que planejavam fazer um CD e cheios de plantas, animais, o café
desejos, apenas portadoras de um DVD; que queriam divulgar o na caneca, o rádio no lugar da
necessidades básicas. grupo na internet; que o valor dos TV não se explicam pela falta de
Atribuir aos brincantes de cachês é irrisório; que os grupos infraestrutura dos bairros ou pela
tambor de crioula o lugar da mereciam bem mais; que a última suposta pobreza dos entrevistados.
periferia, pelos critérios da falta, “farda” tinha ficado muito bonita; É o modo de viver de “lá”
da precariedade, silencia-os. que eles próprios faziam tudo; reproduzido e reafirmado em meio
A escassez material, embora muitas que um grupo vizinho espionava os aos padrões do urbano.
vezes perceptível, quando tornada o ensaios para copiar as novidades;
critério de identificação da periferia, que eram padrinhos/madrinhas Eu chorei, eu chorei
torna invisível a individualidade, do tambor de certo brincante; Eu chorei meu lugar
a diferença, a criatividade e a que um importante pesquisador Eu chorei
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 54

Muitas são as comparações feitas crioula. Distribuir a comida nas econômicos, humanos e
pelos brincantes entre o “lá”, festas não é apenas alimentar os investimentos simbólicos.
lugar onde se nasceu ou se aprendeu convidados, mas seguir o exemplo
a prática do tambor, e o “aqui”, de caridade de São Benedito, Meu São Benedito
geralmente a capital do estado, demonstrar abundância e superação Foste cozinheiro,
São Luís. A expressão “meu lugar”, das dificuldades. Considerada um Hoje és um santo
frequentemente usada pelos dos pontos altos da festa, Do amor verdadeiro
brincantes em narrativas sobre a mesa deve ser farta, pois, na lógica Trecho do Bendito
o tambor, indica que o tambor dos devotos, está relacionada às de São Benedito
de crioula é um espaço em que histórias sobre o santo, que teria
a produção de memória e a sido um escravo e cozinheiro que, Quanto aos recursos econômicos,
história fundem temporalidades às escondidas, distribuía alimentos podem sair do bolso do festeiro que,
e espacialidades distintas, aos necessitados. driblando as dificuldades, confirma
conformando um lugar diferente do seu compromisso com São Benedito.
lá e do aqui, o lugar do tambor. A maioria dos cozinheiros era preta, Então, economiza dinheiro de um
e São Benedito eu acho que era vencimento mensal, cria animais para
A COMENSALIDADE escravo de Deus. Ele era cozinheiro serem servidos na ceia, faz bingos
e dava comida para aqueles que para arrecadar dinheiro ou vende
A comida adquire uma pediam esmola. Àqueles que não bebidas na festa. Também recebe
importância significativa nas festas tinham, ele dava o almoço e jantar. doações de devotos, muitas vezes
de tambor, desde o seu preparo Dário Lima, Tambor de animais ou bebidas, como pagamento
até o seu consumo, momentos que Crioula da Tenda Iguaruana de promessa para o santo.
unem brincantes e comunidades, Quanto aos recursos humanos,
revelando aspectos fundamentais A preparação de uma mesa muitas pessoas são recrutadas entre
para a continuidade do tambor de farta requer muitos recursos brincantes de tambor, vizinhos,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 55

B E B I DAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

parentes e compadres para ajudar.


As atividades são divididas: há o
grupo encarregado de matar os
animais; aqueles que vão
prepará-los; os amigos que cuidam
das bebidas; quem prepara os bolos.
A casa do festeiro se transforma
em um centro de sociabilidade
mais amplo e, na preparação da
comida, os participantes reafirmam
seus laços de parentesco, amizade,
compadrio e vizinhança, num
ambiente de confraternização.
A comida da festa é, geralmente, Batista, entre outros – ou por terem divertir sem nenhum compromisso de
a mesma servida em festejos de outros sido transmitidas pelos pais, avós, contratação, a comida adquire a função
santos: galinha, carne de gado e porco, enfim, “os antigos”. Assim faz Neuza de alimentar para fortalecê-los para
torta de camarão, macarrão, farofa, Vieira, do Tambor Unidos de São a maratona de apresentações oficiais.
bolos. Alguns brincantes destacam o Benedito: “eu venho mantendo essa Isso decorre do pouco tempo que os
bolo de tapioca e a carne de porco tradição do meu pai. Bastante bolo de brincantes dispõem nesse período,
“com aquele bastante toicinho” tapioca, com café, com erva-doce. já que há um horário definido pelos
como alimentos que não podem É uma coisa que eu já me entendi órgãos de cultura para os grupos
faltar na mesa, de acordo com minha mãe me falava assim”. estarem nos locais de apresentação
recomendações legitimadas pelas Fora do contexto da festa para e o atraso pode resultar na perda da
lembranças dos festejos do interior – São Benedito ou os momentos em brincada (expressão utilizada pelos
de Alcântara, Pinheiro, São João que os brincantes se reúnem para se brincantes para se referirem
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 56

B E B I DA S.
FOTO: EDG AR R OCHA , 2006.

às apresentações por contrato)


ou na espera do encerramento da
apresentação de um grupo colocado
em seu lugar para assim poderem se
apresentar. Então, para não perderem
tempo preparando a alimentação e
também devido aos parcos recursos
financeiros, os responsáveis pelos
grupos costumam preparar comidas
práticas, os chamados lanches, que
são fáceis de preparar e rápidos para
serem consumidos.

A comida na época de apresentação é só um diferentes de acordo com o lugar para animar o pessoal, ajudar na
lanche porque, às vezes tem gente que sai e a situação em que é preparada e batida do tambor. Alguns tambozeiros
do serviço direto para cá. A gente não sabe servida, a bebida também tem a sua passam bebida nas mãos para aliviar o
a hora que chega, então eu dou um lanche. importância na brincadeira. impacto da pele com o couro quente,
Quando se tem mais condição, eu boto um outros a tomam para aquecer a voz,
panelão de comida e dou para a turma. Eu vou levantar bandeira matar a sede, dar resistência para os
Raimundo Nonato, Eu vou levantar bandeira brincantes aguentarem bater e dançar
Tambor de Manezinho Correr cachaça na roda tambor a noite toda. Afinal, como
Que eu vou levantar bandeira diz Seu Venâncio, do Tambor Trovão
Assim como a comida, que é parte Azul, em “Tambor sem bebida o
do tambor de crioula, mesmo que Ela está presente em todos os tambozeiro fica sem coragem, a mão
adquirindo configurações e funções momentos do tambor, sendo usada dói, a voz fica rouca”.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 57

Tem a bebida, que no tambor de crioula Juliana, do Tambor Oriente –, ela é


sem bebida não vai. Não é muito, mas não motivo de brincadeiras e tema das toadas
pode faltar, também. A cachaça é só para do tambor de crioula. Por exemplo, há
esquentar os brincantes. Quando não se muitas toadas para lembrar a bebida,
tem, se reclama logo: “Ô tambor seco!” cuja ausência na festa pode resultar em
Ivaldo Duarte, Tambor má reputação da brincadeira. Permanência
Proteção de São Benedito
Eu vou falando mal
e mudança
Embora se sirvam vinho, conhaque, Eu vou falando mal
cerveja e refrigerante, a bebida preferida Tambor que não tem cachaça
dos brincantes parece ser mesmo a cachaça. Eu vou falando mal

O “Não seca” é a maior atração da festa. No contexto das apresentações


É um filtro cheio de cachaça com um copinho
que pode encher, mas não pode botar fora.
Se encher, tem que tomar! São sete caixas de
contratadas para os períodos de
Carnaval e São João, o consumo de
bebida alcóolica deve ser moderado.
O tambor de crioula no
Maranhão como forma de
expressão cultural tem mantido
cachaça, às vezes oito, que a gente gasta de Muitos participantes de tambor relações com diversos campos,
sábado até domingo... Isso é bem antigo. afirmam que há uma exigência para entre eles o campo religioso,
Inaldo Pedro, Tambor de Inaldo que ela seja controlada durante as o econômico e, recentemente,
apresentações, o que faz com que o político, estabelecendo muitas
Além de participar da salva do muitos responsáveis por tambores estratégias de continuidade ao
tambor – porque “antes de todas as estabeleçam momentos e lugar longo de sua trajetória histórica,
apresentações os instrumentos devem específicos para o brincante beber, frequentemente em contextos
ser salvos com uma bebida, geralmente como nos intervalos de troca de socioculturais e econômicos
uma cachacinha”, como explica Maria parelha, fora da roda do tambor. adversos. Considerando que
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 58

suas origens, apesar de mal história de permanência e mudança. escrita sobre a forma de expressão
identificadas, remontam pelo Nesta seção serão abordados, em questão refere como “batuque”
menos ao século XIX, a capacidade em linhas gerais, os períodos em os toques de tambores e festejos
de permanência dessa forma de que se efetuaram as principais realizados pelos escravos no Maranhão
expressão é notável. transformações no tambor. oitocentista. Afirma Frei Francisco
Essa característica, por sua vez, de Nossa Senhora dos Prazeres que
tem a ver também com uma DESAFIOS DA PERMANÊNCIA “para suavizar a sua triste condição
capacidade de transformação, EM CONTEXTO DE REPRESSÃO fazem, nos dias de guarda e suas
conforme o fluir dos tempos e as vésperas, uma dança denominada
mudanças sociais. De acordo com Sérgio Ferretti, batuque, porque n’ella uzam de uma
Entender o tambor de crioula hoje, um dos maiores estudiosos do espécie de tambor que tem este nome.
portanto, requer conhecer sua tambor de crioula, a primeira notícia Esta dança é acompanhada de uma
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 59

E SQU ERDA
TA MB OR DA S CRI A NÇAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

D I REI TA
TA MB OR DA S CRI A NÇAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

desconcertada cantoria que se ouve


muito longe”.20
Como nesse relato, perspectivas
desqualificadoras foram recorrentes
nas descrições das manifestações
culturais dos negros feitas,
em geral, por missionários, agentes
de governo e da imprensa.
“Em toda parte”, argumenta
Ferretti21, “o elemento negro foi
colocado no nível mais baixo da
escala social, considerado como coisa
e não como ser humano criador
de cultura”. Apesar da significativa populares de matriz africana, de Polícia referentes ao período
participação dos africanos e seus submetidas aos preconceitos dos entre 1885 e 1930, Ferretti22
descendentes na formação da brancos, deviam ser autorizadas chama atenção para a grande
sociedade maranhense – cerca de pela polícia para que tivessem quantidade de pedidos de
setenta por cento da população –, lugar em São Luís. Isso acontecia licenças para tais festejos:
seus cantos, cultos, danças, festas com a festa do Divino, o bumba “ 44 com registro de pedido para
e tradições orais em geral foram meu boi, o tambor de mina e, festa de mina, 14 com registro de
rechaçados, vistos como baderna, evidentemente, com o tambor tambor e 70 com registro de festa
reprimidos e perseguidos por de crioula. Citando um estudo do Divino”.
governos e polícias. de Ribeiro realizado no Arquivo A repressão se estendeu de
Até mesmo depois da abolição Público do Estado do Maranhão, várias formas mais ou menos
da escravidão, as comemorações entre documentos da Secretaria ostensivas até o último quarto do
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 60

século XX e está registrada em DESAFIOS DA TRANSFORMAÇÃO festejos do Divino aos poucos se


documentos policiais e códigos de EM CONTEXTO DE VALORIZAÇÃO tornaram atrações em roteiros
postura até, pelo menos, fins da turísticos, eventos e festividades
década de 1950 em São Luís. A partir dos anos 1970 as oficiais, exibindo-se como
Não fossem a capacidade brincadeiras populares do constitutivos da tradição cultural
de resistência, a fé e os laços de Maranhão ganharam mais e da identidade maranhense.
solidariedade mantidos pelos visibilidade para as elites políticas Desde então, a intensificação da
grupos negros, os festejos do e intelectuais e aproximaram-se exploração turística e o processo
tambor de crioula, assim como os da cidade, rompendo os limites crescente de institucionalização
do Divino e do boi, possivelmente dos bairros periféricos onde até de investimentos financeiros por
não seriam objeto das ações então se concentravam. Tambor parte de órgãos oficiais de cultura
patrimoniais contemporâneas. de crioula, bumba meu boi e no tambor de crioula configuraram
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 61

TA MB OR DA S CRI A NÇAS.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

as condições para aceleração das Uma das principais queixas dos e estadual, responsáveis pelo
transformações na brincadeira, grupos se refere ao fato de, depois incentivo e apoio a esses grupos,
sob a égide da valorização. que os órgãos oficiais se propuseram têm investido em estruturas físicas,
Os brincantes de tambor a pagar cachês pelas apresentações, administrativas e financeiras.
têm buscado, individualmente e sobretudo, nos períodos de Carnaval Por exemplo, na construção em
em grupo, adaptar-se aos novos e São João, eles terem de se sujeitar série de praças nos bairros da
contextos e lugares que, apesar da ao que esses órgãos determinam. capital, chamadas de “viva”,
visibilidade que promovem, criam São eles que fazem os programas que passaram a compor o circuito
situações que desafiam sua capacidade das apresentações e o orçamento de oficial das festas carnavalescas
de superação das adversidades. quanto os grupos devem receber. e juninas promovidas pelo
No cenário atual, além de fazerem a poder público. Ao mesmo
festa, eles devem assumir uma série O que eu acho que eles podiam fazer, tempo, incentivam a criação de
de outras responsabilidades: se quisessem entrar na vida do folclore, representações oficiais como
lidar com aspectos jurídicos e é pesquisar e ver a despesa de cada um, conselhos e associações para mediar
burocráticos no trato com o de cada grupo, a maneira, a vivência de o pagamento de cachês.
poder público (contratações, cada grupo, e daí determinar o que eles Essa estrutura montada se
cumprimento de contratos e [os órgãos oficiais] deviam, o que podem investe do objetivo de incentivar
pagamentos de cachês), fazer para melhorar a vida dos grupos. e manter viva a tradição de dançar
com assédios políticos,23 com Apolônio Melônio, Tambor de e tocar o tambor de crioula com
disputas entre grupos pelo maior Crioula Prazer de São Benedito a sua magia e encanto, além de
número de contratos nos eventos pretender dar maior visibilidade
públicos, com a espetacularização Na relação com os grupos de aos grupos. Porém, observa-se
da brincadeira e com as despesas cultura popular, em geral, e com o que esses investimentos também
mais altas dela decorrentes, tambor de crioula, em particular, têm funcionado como uma
por exemplo. os órgãos do executivo municipal moeda política, que muitas vezes
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 62

tornam esses agentes culturais “cuidar” e, em alguns casos, recebido. Fato que reforça a
dependentes de grupos políticos “recriar” a cultura popular relação de dependência econômica
que administram os recursos. maranhense têm divulgado as com os agentes políticos que,
Diversos relatos de donos de tradições, cultos, festas e outras ao patrocinarem esses gastos,
tambor apontam uma prática formas de expressão a partir da entendem que toda a organização
política que, segundo eles, impede administração de recursos que do grupo servirá de apoio político
ou dificulta a criação ou manutenção passaram a ser disputados por em pleitos posteriores.
de um grupo de tambor. As relações representantes de grupos culturais, Além disso, os organizadores dos
pessoalizadas dariam a garantia de que vêm, em certa medida, tambores precisam adequar-se
acesso aos recursos, só conseguindo adequando-se às exigências dos aos signos das práticas jurídicas
contratos aqueles cujos responsáveis órgãos oficiais e, muitas vezes, e administrativas, os quais os
mantivessem vínculos de amizade submetendo-se a agentes políticos impelem a usar outra racionalidade
ou parentesco, ou fossem como vereadores, deputados e para dar conta das relações com as
correligionários de algum gestor de senadores com alguma influência instituições burocráticas oficiais,
instituições da cultura popular, com os gestores da cultura local. tais como Secretarias de Fazenda e
ou mesmo agente político que tivesse Dentre essas exigências, surge a de Cultura. Essa burocratização leva
forte influência com os órgãos de que todo tambor para ter acesso a mudanças internas nos grupos,
estatais de cultura. Nesse caso, aos recursos públicos destinados ao que os impelem, necessariamente,
diversos grupos deixam de acessar os incentivo e apoio à cultura popular a constituir uma diretoria, mudando as
incentivos econômicos o que, deverá ser institucionalizado por suas características, que antes era
em certa medida, os impossibilitam meio da constituição de pessoa considerado “tambor de dono” e
de atender às exigências dos órgãos jurídica, o que, segundo muitos passa, com tais transformações, a ser
de cultura local. donos de tambor, tem aumentado tido como “tambor de associação”.
As instituições estatais os custos que, por sua vez, não Essas e outras mudanças
responsáveis por “salvaguardar”, são compensados pelo cachê sugeridas, ou mesmo impostas,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 63

pelos órgãos oficiais fazem com da certeza de que o turista virá e como saneamento básico, melhoria
que, sob o signo do belo, do encontrará uma mostra das festas e na qualidade educacional,
espetáculo, do moderno, ocorra dos rituais, tudo isso, sob medida assistência médica.
certa homogeneização de alguns para o tempo disponível e expectativa Há situações em que o
grupos de tambor que aceitam e do visitante, ávido pela beleza das esquecimento e a falta de políticas
entram nesse jogo, a exemplo da cores padronizadas, dos movimentos voltadas para esses segmentos sociais
padronização das indumentárias, sincronizados e sons ritmados. é tão dramática que vira objeto de
motivo que justifica os brincantes Muito embora a espetacularização seja promessa ao santo padroeiro do
a chamarem a vestimenta, por apenas um aspecto, uma maneira de tambor. Mesmo nas dificuldades
ser igual para todos, de “farda”. fazer o tambor proposta pelo Estado – cotidianas, pela falta de políticas
Segundo vários donos de tambor, que não dá conta de expressar o modo mais amplas que atendam outras
antes os brincantes podiam dançar de vida desses grupos –, essa fórmula demandas sociais, que não apenas um
com qualquer roupa e quem tem sido vendida ao visitante, turista, suposto incentivo à cultura, os donos
quisesse podia entrar na roda de espectador como sendo a autêntica de tambor e brincantes sonham e
tambor, o que atualmente não cultura maranhense. desejam ver seus grupos conhecidos
é mais observado, ao menos nas O espetáculo esconde o modo e reconhecidos no campo da arte;
apresentações patrocinadas pelo de vida que é permanentemente não uma arte classificada como
Estado. A ritualização do tambor foi tangenciado pelas dificuldades “irracional”, “mística”, “periferizada”
obrigada a se adequar a outra lógica: enfrentadas por muitos e, relegada, quando muito, ao
a do tempo do turista, a do controle dos brincantes de tambor, passado, aos pobres e aos desvalidos,
do Estado, a do espetáculo. cotidianamente. Conforme apontam mas uma arte própria que só pode ser
O Estado mantém fiscais para diversos donos de grupos, a maioria construída, a partir de um modo de
observar e avaliar as apresentações dos responsáveis e brincantes de vida e uma cosmologia específica que
contratadas. Em certo sentido, tambor de crioula habita bairros que está imersa nas formas de fazer e viver
eles são os guardiões do bom espetáculo, carecem de infraestrutura urbana desses grupos sociais. ¢
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 64

O Bem Cultural Como Objeto de Registro


dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 65

PUNG A .
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

Quase todos os negros tinham


ido para o terreiro. Os tambores
agora batiam forte, acompanhados
O registro do tambor de crioula
se coaduna, em vários aspectos,
com as diretrizes das políticas
No bojo de uma série de
transformações iniciadas no
século XX, que resultaram em maior
pelos chocalhos e os agogôs. públicas de preservação do visibilidade para a brincadeira,
Josué Montello patrimônio cultural brasileiro. Além o valor de referência cultural
dos elementos materiais e simbólicos que o tambor de crioula assume
que essa forma de expressão aciona tradicionalmente para as populações
em seus momentos de celebração, negras passou a ser reconhecido
de trabalho, de diversão e de igualmente por diferentes grupos
devoção, ela representa igualmente étnicos e classes sociais entre os
a resistência cultural dos negros maranhenses. Contudo, as raízes
africanos e seus descendentes africanas do toque dos tambores,
no Maranhão. Historicamente dos cânticos, do ritmo, da dança e
escravizados, espoliados e excluídos, da sociabilidade experienciada no
os grupos negros que constituem tambor, permanecem perceptíveis
a grande maioria dos brincantes na brincadeira. Outras referências,
têm no tambor de crioula um porém, também podem
canal de atualização de memórias ser incorporadas.
individuais e coletivas, de afirmação O respeito à diversidade étnica,
da identidade étnica e de reforço estimulado pela positivação da
de vínculos sociais que favorecem a brincadeira como signo cultural
coesão dos homens, o contato com o do Maranhão, andou de par com
divino e a própria brincadeira como o fortalecimento dos movimentos
experiência constitutiva de seu modo negros contra o racismo e em busca
de vida. da efetivação de múltiplos direitos:
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 66

à terra, à educação, à livre expressão transformações pelas quais tem Comparando-se os dados das
religiosa e cultural. No que passado tornaram-se objeto de duas pesquisas com os do INRC
tange às políticas de patrimônio, estudos técnicos e acadêmicos que do tambor de crioula,
especificamente, a população negra pretendem contribuir tanto para a notam-se a ampliação do número
maranhense obteve reconhecimentos compreensão de aspectos da vida e de participantes, o aumento do
importantes do Estado em relação da história das populações negras interesse por essa manifestação
à sua contribuição para a formação do Maranhão, quanto para a crítica e o maior conhecimento sobre
do patrimônio cultural maranhense das intervenções que no tambor se suas características e diferenças
e brasileiro. Ressaltem-se, nesse têm operado. nas diversas regiões do Estado.
sentido, o tombamento da Casa das Projetados sobre outras duas Paralelamente às transformações
Minas e os registros do tambor de pesquisas de caráter que ocorrem na sociedade e nesse
crioula e do bumba meu boi. histórico-etnográfico realizadas aspecto da cultura popular,
Para além dos aspectos positivos nos anos 1930 por Mário de o tambor de crioula continua
dessa requalificação do lugar do Andrade24 e no final da década sendo uma forma de divertimento
negro na sociedade local, de 1970 pela Fundação Cultural e de pagamento de promessa de
as mudanças também trouxeram do Maranhão (FUNCMA) sob a setores populares da sociedade,
pontos negativos, na ótica dos coordenação de Sérgio Ferretti, os em homenagem a São Benedito e
brincantes. No contexto atual estudos contemporâneos podem a diversas entidades sobrenaturais
multiplicam-se discussões e ajudar a compreender o passado cultuadas nos terreiros de tambor
negociações entre os diversos e o presente e, talvez, a planejar de mina e de umbanda, como os
agentes envolvidos na produção, o futuro. Nesse sentido, deve-se pretos velhos e outras entidades.
na circulação e na gestão do destacar que muitos dos desafios Em 1978 havia menos de 20
tambor de crioula, bem como na hoje enfrentados pelos grupos de grupos de tambor de crioula em São
produção de conhecimento sobre tambor de crioula foram claramente Luís, hoje há mais de 60 grupos
essa manifestação. As próprias delineados pela equipe de Ferretti.25 cadastrados nos órgãos de registros
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 67

da cultura popular na capital. como produtores e detentores do O inventário e o registro


O tambor de crioula continua vivo patrimônio cultural associado ao do tambor de crioula como
e muito atuante no Maranhão. tambor. Assumem lugares políticos patrimônio cultural brasileiro se
Os temores da década de 1970, de e cobram da sociedade a garantia inserem no processo mais amplo
que a influência do turismo poderia de seus direitos culturais. de reconhecimento e valorização
contribuir para a descaracterização não só dessa forma de expressão,
dessa brincadeira, felizmente não Vocês, com essa pesquisa, vocês olhem mas do conjunto de tradições
se concretizaram, embora tenham mais um pouco, que a universidade pode culturais de matriz africana que se
acontecido transformações, como dar alguma coisa de ajuda para os grupos desenvolveram no país.
não podia deixar de ocorrer. também, que ela tem essa capacidade, A contínua resistência, a fé,
Apesar da tendência à né? Não é só tirar também dos grupos, a renovação expressiva dos grupos
espetacularização intensificada no entendeu? Tem que ajudar em alguma de tambor nas últimas décadas e a
século XXI em função da demanda coisa, chamar os grupos, ajudar em disseminação da brincadeira em
turística, midiática e política, os alguma coisa... Nós trabalhamos com contextos sociais distintos têm dado
elementos rituais estruturantes muito sacrifício, porque este cachê que o ao tambor de crioula a necessária
do tambor de crioula se mantêm governo dá não dá para nós mantermos mobilidade de forma e de linguagem
vigorosamente na maioria dos o nosso grupo, de jeito nenhum, não que lhe confere vivacidade. Corpos
grupos: a devoção, o canto, dá... A universidade precisa demais da em movimento, olhares expressivos,
a dança e todos os enunciados nossa ajuda, ou da nossa colaboração, passos majestosos e vozes que
ocultos das vozes dos tambores, então eu quero que ela olhe mais com alimentam a dança nos seduzem com
que só quem lhes é próximo pode carinho os grupos dos tambores de eloquência. As músicas carregadas de
entender captar. Esse segredo, crioula, entendeu? Então o Iphan tem significações, ao serem pronunciadas,
porém, não é mais equivalente que olhar um pouco pela gente, né não? anunciam o protesto, o lamento, os
de invisibilidade. Ao contrário, Maria dos Santos, Tambor de amores, o riso, a devoção, os sonhos
os tambozeiros hoje se afirmam Crioula Manto de São Benedito perdidos e as lembranças. ¢
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 68

Recomendações de Salvaguarda
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 69

TA MB OR DE CR I OULA NA PRAIA.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2005.

Já nessa noite, metido numa calça


de riscado alinhavada pela Rosária,
o Samuel pediu ao Mundico que lhe
C onsiderando os sentidos e
os modos de viver, de fazer
e de criar associados ao tambor
estabelecidas entre os diferentes
agentes e os sujeitos que criam,
fazem e vivem o tambor de crioula.
emprestasse o tambor, e então todo de crioula ao longo de toda sua
o quilombo veio para perto, atraído trajetória histórica de resistência e Eu tinha vontade, eu tinha vontade
pelas primeiras batidas, e então se viu superação de condições limitantes que o povo que mexe com a cultura,
que era mesmo um tamboreiro. da existência humana, impõe-se que dizem que são os representantes da
Josué Montello a necessidade de tratá-lo, cultura... Que a cultura somos nós,
no âmbito de qualquer ação que somos fazedores da arte.
patrimonial, como uma prática Nós é que somos a cultura...
em movimento e não fixada num Que eles participassem da festa da
passado distante. É preciso vê-lo gente, que chegassem junto, para
como uma prática autônoma, eles verem como é a festa da gente.
rica, conflituosa, geradora de Antônio Pacheco, Tambor
identidades e expectativas e não Milagre de São Benedito
como algo frágil, homogêneo,
rastro de existência prestes a, Os donos e os brincantes dos
pacificamente, desaparecer. grupos de tambor expressam um
Considerando, por outro lado, número significativo de desejos
as transformações ocorridas na e sonhos, cujas expectativas, não
brincadeira no processo histórico raro, aportam nas instituições
de aproximação do Estado, da políticas responsáveis pela
academia e do turismo diante da cultura popular local. Durante o
brincadeira, é preciso reconhecer processo de inventário, pesquisa e
o caráter assimétrico das relações documentação visando ao registro
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 70

– Um Batuque de Liberdade
e da sua proposta pedagógica
de funcionamento;
• O registro do tambor de
crioula como Patrimônio
Cultural Brasileiro, aprovado
na 53ª reunião do Conselho
Consultivo do Patrimônio
Cultural, realizada em 18 de
junho de 2007;
• A inscrição do tambor de
crioula no Livro de Registro
das Formas de Expressão em
dessa forma de expressão, 61 • A instituição do Dia do 20 de novembro de 2007;
grupos nos municípios de São Tambor de Crioula e seus • A proposição da instituição
Luís, Caxias, Pinheiro, Porto brincantes, em São Luís, do dia 18 de junho como Dia
Rico e Cajapió foram ouvidos pela lei municipal do Tambor de Crioula, a ser
a respeito de suas demandas e nº 4.349, de 21 de junho celebrado anualmente em
sugestões em relação às condições de 2004; todo o território brasileiro,
de continuidade do tambor. • A criação da Casa do Tambor pelo projeto de lei nº 1.677
Algumas ações foram de Crioula em São Luís, pela de 2007;
deflagradas a partir desse diálogo, lei municipal nº 4.673, de 9 • A proposição do
envolvendo não só o Iphan, mas de novembro de 2006; reconhecimento do tambor
também os poderes públicos locais. • A elaboração do projeto da de crioula como patrimônio
Destacam-se entre elas: Casa do Tambor de Crioula imaterial de São Luís;
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 71

E SQU ERDA
A FI NAN DO O TA MB OR.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

D I REI TA
D ETA LHE DE TA MB OR DE C RIOUL A.
FOTO: EDG A R R OCHA , 2002.

• A elaboração do projeto • A realização de oficinas de


Salvaguarda do Tambor de repasse de saberes associados
Crioula pelo Iphan/MA em ao bem cultural em questão;
parceria com a Secretaria de • Ações voltadas para a
Estado da Cultura e com o preservação do modo
apoio do Comitê Gestor artesanal de produção
da Salvaguarda do Tambor dos tambores;
de Crioula; • Apoio à gravação de CDs e
• A oficina de Incentivo à DVDs, de modo a divulgar
Formação de Grupos Mirins mais amplamente os grupos
em 2013, no âmbito do de tambor de crioula e
projeto Salvaguarda do demais aspectos relacionados
Tambor de Crioula. a essa prática;
• Apoio a exposições e
Outras ações têm sido projetos de difusão dessa
regularmente discutidas pelo forma de expressão cultural;
Iphan (MA) com pesquisadores, • Incentivo aos grupos mirins;
produtores, praticantes e • Melhorias nos barracões
membros do Comitê Gestor dos grupos;
da Salvaguarda do Tambor de • Reformas na Casa dos
Crioula, a fim de contemplar Tambores de Crioula. ¢
os aspectos a seguir relacionados
e favorecer a continuidade e a
sustentabilidade dessa forma
de expressão.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 72

Notas

1. De acordo com o relatório se verificar um interesse renovado dançando mina”, apresenta-se


técnico apresentado ao término sobre o tema, com a realização subentendida uma das diferenças
da segunda etapa, os “critérios de monografias de conclusão de entre esses dois tambores, pois no
utilizados para essa escolha foram: cursos de graduação, dissertação de tambor de mina, as pessoas dançam
que o bem a ser pesquisado mestrado e a publicação de artigos e em transe ou possessão, interagindo
fosse apontado pela população comunicações em números do Boletim com divindades. Enquanto que no
local como uma referência de da Comissão Maranhense de Folclore. tambor de crioula, a dança é uma
identidade; que integrasse ou 3. Na manifestação do tambor manifestação lúdica, sem cunho
estivesse vinculado a outras de crioula, Averequete (também religioso, entre as pessoas ou
manifestações que carecessem de grafado com variações como o grupo.
estudos mais aprofundados e que Averikêti, Veriketi) é entidade 6. De grande abrangência no
também estivesse inserido nos religiosa afro-brasileira, associada Maranhão, os festejos do Divino
critérios usados pelo Departamento a divindades marítimas com função são interpretados e organizados de
de Patrimônio Imaterial (DPI/ de mensageiro, nas religiões de acordo com o lugar de realização,
Iphan), no caso de tratar-se de matriz Mina-Jêje. consistindo geralmente de um
‘expressão relacionada a grupos 4. Denominação de vodum ritual bastante complexo que
indígenas, afrodescendentes e associado à cura na religião de demanda extensa preparação e
populações tradicionais’’’. matriz Mina-Jêje. detalhado ciclo de eventos. Na
2. Com exceção do pioneiro 5. Referência à Casa de Mina. maioria das vezes, compreende
e imprescindível livro de Sergio Há um equívoco no entendimento festividades realizadas por um
Ferretti (1979), Tambor de crioula – ritual popular que dá o mesmo período de uma semana a quinze
e espetáculo, são escassos e recentes os significado ao tambor de crioula e dias, comportando diversos
estudos abrangentes a respeito do ao tambor de mina. No texto, ao momentos: abertura da tribuna,
assunto. Conforme o autor observa, se mencionar “que dançam tambor levantamento do mastro, missas,
a partir da década de 1990 pode- de crioula como se estivessem procissões, carimbó de velha,
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 73

COREIRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .

derrubamento do mastro, roubo 17. Roupas de axé são as eleições têm sistematicamente se
do santo, roubo do mastro, forró indumentárias utilizadas nos aproximado dos agentes sociais
das caixeiras e tambor de crioula trabalhos de terreiro. que gozam de prestígio em meio
no encerramento. Ainda podem se 18. Não por acaso, a equipe de a grupos de Tambor de Crioula,
juntar outras brincadeiras à festa, pesquisadores envolvida no INRC Bumba meu Boi e Festa do Divino
de acordo com a promessa, com do tambor de crioula relatou a Espírito Santo, pelo fato destes
o gosto do dono da festa e/ou das frequente sensação de estar terem dedicado grande parte das
entidades reverenciadas. “no interior” quando visitava as suas vidas à manutenção dessas
7. Bairro de São Luís, situado à casas e sedes dos grupos localizados expressões culturais.
beira-mar. na capital. 24. A Missão de Pesquisa
8. FERRETTI; SANDLER 19. Apresentações feitas no Folclórica organizada por Mário de
(1995, p. 1). período de Carnaval e de São Andrade, através do Departamento
9. Ao se aquecer o couro no João, quando os órgãos oficiais da de Cultura da Prefeitura Municipal
fogo é lhe retirado sua umidade, Cultura do Estado e/ou Município de São Paulo, esteve em São
possibilitando ser esticado, o que contratam os grupos de tambor de Luís em 1938 e coletou material
favorece sua afinação. crioula para se apresentarem nos pioneiro sobre tambor de crioula,
10. FERRETTI; SANDLER, op. arraiais (São João) ou nos circuitos tambor de mina, bumba meu boi
cit., p. 1. de rua (Carnaval). e carimbó. Parte desse material foi
11. SANDLER (1995, p. 3). 20. Frei Francisco de Nossa publicado por Oneyda Alvarenga
12. Id., 1995, p. 3. Senhora dos Prazeres apud em 1948 e atualmente continua
13. SANTOS (1995, p. 3) FERRETTI (2008, p. 1). sendo publicado pelo Centro
14. SANDLER, op. cit., p. 3. 21. FERRETTI, op. cit., p. 1. Cultural São Paulo que preserva o
15. PEREIRA (1995, p. 3). 22. Ibid., p. 4. acervo então coletado.
16. CÂMARA CASCUDO 23. Os grupos políticos que 25. Tal pesquisa contou com
(2000, p. 542). ocupam o poder ou disputam as o incentivo do folclorista
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 74

Domingos Vieira Filho, então


presidente da FUNCMA, e foi
realizada com apoio financeiro do
Instituto Nacional do Folclore.
Participaram os técnicos Roldão
Lima e José Valdelino Cécio,
prematuramente falecidos, além
de Joila Moraes, Joaquim Santos
Neto, Murilo Santos e um grupo
de estudantes estagiários. Um dos
objetivos da pesquisa era coletar
documentação para o acervo do
futuro Museu de Folclore do
Maranhão, planejado por
Vieira Filho e transformado
no Centro de Cultura Popular que
levou seu nome depois de
sua morte.
26. Apud Relatório de Rodrigo
Ramassote, fls.118-119.
27. cf. MARRONE (2006).
28. Apud Relatório de Rodrigo
Ramassote, fls. 120.
29. Apud Parecer Técnico de
Cláudia Vasques, fls. 218.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 75

E SQUE RDA
CRIANÇ A NO TA M BO R DE C RIOU L A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 6 .

D IRE ITA
DANÇ A DE TA M BO R DE C RIOU L A .

Fontes
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.

bibliográficas

ALVARENGA, Oneyda. Tambor UFMA, 2008. (Trabalho apresentado PEREIRA, Eliana Franco. Pungar
de mina e tambor de crioula. Registros em mesa redonda do curso de Letras é sexualidade. Boletim da Comissão
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______. Contribuição cultural do negro de São Luís. Rio de Janeiro: Nova
na sociedade maranhense. São Luís: Fronteira, 1985.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 76

Anexo 1
Agradecimentos

Tambor de Crioula Mocidade Tambor de Crioula Oriente Tambor de Crioula Catarina Mina
Independente de Nivô Maria Juliana Fonseca Ivan Jorge da Piedade Madeira
Domingas Figueiredo Correa Melo
Tambor de Crioula Raízes Tambor de Crioula Mimo de
Tambor de Crioula da Boa Vontade da Terra São Benedito
José Constantino Soares José do Carmo Freitas Arouche Maria da Paes Santos

Tambor de Crioula Alegria de Tambor de Crioula Pungar Tambor de Crioula Prazer de


São Benedito da Ilha São Benedito
Maria José Sousa Lima Marcelo Henrique Silva Apolônio Melônio

Tambor de Crioula Unidos de Santa Fé Tambor de Crioula Lírio de Tambor de Crioula Manto de
José de Jesus Figueiredo São Benedito I São Benedito
Maria da Conceição Madeira Maria dos Santos Cantanhede
Tambor de Crioula Correio de
São Benedito Tambor de Crioula Maracrioula Tambor Bambu Crioula
Wagno Cássio Santos Simone Paixão Carvalho César Roberto da Purificação Viana

Tambor de Crioula Unidos de Tambor de Crioula Um Canto de Tambor de Crioula Lírio de


São Benedito Amor a São Luís São Benedito II
Eliésio Almeida Martins Evanilde Costa Raimundo Mendes da Silva

Tambor de Crioula Milagre de Tambor de Crioula Amor de Tambor de Crioula Milagre de


São Benedito São Benedito São Benedito
Canuto Santos Therezinha Jansen Antônio Mário Nogueira Pacheco
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 77

Tambor de Crioula Carinho de Tambor de Dona Laíde Tambor de Crioula Mimo de


São Benedito Nair Santos São Benedito
Analice Ferreira Silva Rosa Carvalho Mesquita
Tambor de Santa Maria
Tambor de Crioula da Tenda (povoado de Santa Maria) Tambor de Crioula Proteção
de Iguaraúna Raimunda de Jesus Pinto Vieira de São Benedito do Anjo
Dário Lima da Guarda
Tambor de Crioula Trovão Azul Ivaldo Duarte dos Santos
Tambor de Crioula de Inaldo Senhor Venâncio
Inaldo Pedro Mota Tambor de Crioula Alegria
Tambor Ginga de Zé Macaco do Maranhão
Tambor de Crioula Alto de Doegnes Soares Daniel Correia Gaspar
São Benedito
Sildileia Melônio dos Santos Tambor Mensageiro de São Benedito Tambor de Crioula Desejo
Rosa Carvalho Mesquita do Nordeste
Tambor de Crioula Turma Raimundo Sousa Martins
dos Crioulos Tambor de Seu Zuza
Rosa Maria Marques Barbosa José Mendes Tambor de São Benedito da
Vila Embratel
Tambor de Crioula Brilho de Tambor de Seu Zequinha Mondego Dionísio Adrônico Silva
São Benedito José Vitório Costa
José Domingos Santos Alves Tambor de Crioula Proteção de
Tambor de Crioula Proteção de São Benedito
Tambor de Seu Leôncio São Benedito Julião Silva Santos
Leôncio Pereira Silva Baca Clemente Sousa Filho
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 78

C O RE IRA DE TA M BO R DE C RIOULA CO M
S ÃO BE NE DITO .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.

Tambor de Crioula Somos Tambor de Crioula Terreiro de Tambor de Crioula Flor de


Protegidos de São Benedito São Benedito São Benedito
Maria José Pereira Carvalho Nartier Evangelista Roseli Costa Martins Carneiro

Tambor de Crioula Minha Ginga Tambor de Manezinho Tambor de Crioula Uma Noite de
Eulália Silva Fontes Raimundo Nonato Madeira São Benedito
Francisco Silva Gomes
Tambor de Crioula Coração de Tambor de Crioula Unidos de
São Benedito São Benedito Tambor de Crioula do Taim
Ildener Barbosa Neuza Vieira Marques José Reinaldo Moraes Santos

Tambor de Crioula Rojão de Tambor Brilho de São Benedito Tambor do Maracujá


São Benedito Terezinha de Jesus Vegas Morais / Maria Arizete dos Santos Pacífico
Joel João da Silva Dionísio Morais
Tambor de Taboca Venerador de
Tambor de Crioula de Ubaldo Tambor de João Ceguinho São Benedito
Ubaldo Martins Gomes José Ribeiro
Tambor de Crioula Abanaje-um
Tambor de Crioula do Nordeste Tambor de La Ravardière Euclides Menezes Ferreira
João Álvaro Costa Cícero Ribeiro Filho

Tambor de Crioula de Dona Isabel Tambor de Aruanda


João Henrique Pereira dos Santos / Damião Aristelmo
Dona Isabel Santos Conceição
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 79
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 80

Anexo 2
Parecer do
relator

PROCESSO: Secretário de Estado da Cultura e os créditos com que conta para


01440.005742/2007-71 e pela Comissão Maranhense de o atendimento do pedido de
INTERESSADO: 3ª Folclore. Acionada pela Diretora registro no Livro de Registro das
Superintendência Regional do Técnica do DPI, Arquiteta Formas de Expressão do Iphan.
IPHAN/MA ASSUNTO: Proposta Márcia Sant’Anna, a Gerência de Tendo sido publicado no D.O.U
de inclusão da manifestação cultural Registro produziu Nota Técnica, de 17 de maio pp. o Aviso a que
“Tambor de Crioula” no Registro em 30 de abril do corrente, se refere o par. 5º do art. 3º do
do Patrimônio Imaterial Brasileiro. analisando a documentação Decreto nº 3.551/2000, concluiu
disponível (fls.108-110), à qual a Procuradora Ana Luiza Bretas
1. RELATÓRIO se acrescentou o consistente da Fonseca (fls.227-229) que a
Relatório do Antropólogo da 3ª tramitação do processo cumprira os
A inicial é um ofício da SR, Rodrigo Martins Ramassote requisitos previstos pela Resolução
Superintendente Regional do e o texto corrido do livro “Os do Conselho Consultivo do Iphan
Iphan (3ª SR), Kátia Santos Bogéa, tambores da Ilha” (fls.112-190). nº 1, de 23/03/2007 e que,
ao Presidente do Iphan, datada de Considerada pertinente a inscrição completada a instrução, estaria,
22.03.2007, encaminhando dossiê solicitada, a DPI encaminhou o pois, a partir de 16 de junho,
com documentação referente à processo à Procuradora Federal/ em condições de ser submetido à
manifestação cultural “Tambor de Iphan, acrescido do competente apreciação do Egrégio Conselho
Crioula”, do qual consta solicitação Parecer Técnico de Cláudia Marina Consultivo do Iphan o pedido de
do Prefeito Municipal de São Luís, de Macedo Vasques, Técnica da inscrição do Tambor de Crioula
acompanhada de um Gerência de Registro do DPI entre as manifestações culturais
abaixo-assinado com 303 (fls.212-226). Como o relatório há imateriais do Brasil.
assinaturas, e igualmente endossada pouco citado, este Parecer Técnico A documentação encaminhada
pelo Conselho Cultural do Tambor é enfático em reconhecer o valor ao relator é abundante,
de Crioula do Maranhão, pelo cultural do Tambor de Crioula diversificada e de alta qualidade –
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 81

suficiente, em suma, para A documentação refere-se mais alto interesse sob


fundamentar um juízo essencialmente à Ilha de São diversos aspectos do
de mérito. Luís, embora contenha, também, Tambor (dança, música,
Com efeito, se a formalização levantamentos realizados em papel dos tambores, sua
do pedido de registro é bastante Caxias, Pinheiro, Mirinzal, Porto fabricação, circunstâncias,
recente, as atividades de Rico e Cajapió. participantes, entrevistas
documentação e análise são Acresce notar que, por ocasião e depoimentos),
bem mais antigas. Uma fonte dos levantamentos, foi organizada constituindo instigante
fundamental foi o projeto do uma exposição itinerante de síntese visual;
INRC/Inventário Cultural de fotografias, assim como uma reunião • livro “Os tambores da
Referências Culturais de São Luís, com representantes dos principais Ilha” (informações gerais,
realizado de 2004 a 2006, com grupos de Tambor de Crioula, fotografias, síntese de
apoio e orientação da Gerência de na sede do Conselho Cultural de dados etnográficos);
Identificação do DPI e do CNCP/ Tambor de Crioula do Maranhão, • CDs de músicas;
Centro Nacional de Folclore e para esclarecer dúvidas relativas à • 61 entrevistas (principais
Cultura Popular. O horizonte mais noção de patrimônio imaterial e ao grupos da Ilha e algumas
amplo incluía as manifestações significado do registro. cidades do interior);
culturais de matriz africana, Além do que consta do processo, • livro de Sérgio Ferretti,
notadamente, junto ao tambor foram fornecidos ao Relator: “Tambor de Crioula – Ritual
de crioula, o samba de roda do e espetáculo”. São Luís,
Recôncavo Baiano (já inscrito no • vídeo, cuja função, Comissão Maranhense de
Livro de Registro das Formas de evidentemente, não é Folclore, 3ª ed. rev., 2002.
Expressão em 2004) e o Jongo do a de um documentário 1982 (ed. or. 1979).
Sudeste (inscrito no mesmo Livro sistemático, embora
em 2005). contenha material do Este é o relatório.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 82

DE TAL H E DA RO DA DE TA M BO R DE C RIOU L A .
FOTO: E DGA R RO C H A , 20 0 5.

2. CARACTERIZAÇÃO E ANÁLISE o pagamento de promessas a e São Raimundo, como narra um


DO TAMBOR DE CRIOULA. São Benedito e a devoção ao dos informantes). Nos pagamentos
padroeiro além da imbricação de promessa, em espaço religioso,
Na caracterização da entre sagrado x profano, ritual x começa-se com uma ladainha por
manifestação cultural em causa, espetáculo, devoção x brincadeira. uma rezadeira (muitas vezes em
não poderia deixar de me valer Parece-me que esta segunda latim), cantam-se hinos de louvor
extensivamente das importantes posição, também endossada ao santo e se exibe sua estátua
informações fornecidas pelo pelo antropólogo do Iphan, é a (em várias imagens do vídeo,
relatório apresentado por Rodrigo mais adequada. Com efeito, nas muitas “coreiras”, as dançantes,
Ramassote e pelo parecer técnico sociedades pré-industriais, como também empunham a imagem de
de Cláudia Marina de Macedo aquela em que se originou o São Benedito).
Vasques, acima mencionados. Tambor e que sob certos aspectos Valeria a pena, neste ponto,
ainda permanece marcando seus fazer apelo a uma distinção
2.1. NATUREZA praticantes, sagrado e profano se que Júlia Kristeva e Greimas27
opõem dialeticamente, mas não propõem, ao alargar a noção
Discute-se o caráter ritualístico se isolam em compartimentos não mesma de linguagem, não mais
ou profano do Tambor de comunicantes, como ocorre nas como comunicação, mas como
Crioula. O folclorista maranhense sociedades pós-industriais. Por produção (se opondo à visão
Domingos Vieira Filho26, por isso, não há oposição entre, de um funcional das línguas como
exemplo, alega que se trata de dança lado, tomar parte em “folguedo”, simples instrumentos para a
que nos veio no bojo da escravidão “brincar” e, de outro lado, transmissão das informações).
negro-africana e não tem nenhuma “organizar três marchas de tambor” Aplicada ao estudo dos gestos,
conotação ritual.O antropólogo (por exemplo, ao dono da promessa a distinção conduz à conclusão
maranhense Sérgio Ferretti de bom sucesso na escavação de de que toda gestualidade é uma
acentua o conteúdo religioso, um poço d’água, a São Benedito prática. Na práxis gestual, diz
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 83

Greimas, o homem é o agente de Mestre Felipe – um dos mais neste desdobramento, pois existe
do enunciado, já na gestualidade antigos e venerados tocadores uma pressão maior nos Tambores
comunicativa, o homem é o de tambor – ao lamentar que, oficiais para que se mantenham
sujeito da enunciação. Dito com por razões de saúde, pode estar as características mais tradicionais
componentes de nosso caso, o presente aos “folguedos”, mas “fica da cerimônia – as quais, pelo
Tambor de Crioula é uma práxis doido” por não mais conseguir estranhamento, constituem um dos
gestual, em que seus participantes, tocar. E é também ele que, fundamentos de sua atração para
na sua própria corporalidade, são o em outro momento, no vídeo, um público externo. Desta maneira,
enunciado que circula. É nessa diz elíptica, mas comoventemente, o conservadorismo torna-se bem de
corporalidade que se produz que “bem cantado, bem tocado, consumo. Mas seja num caso, seja
alegria, prazer (como se evidencia corre água nos olhos”. noutro, acredito que se mantêm
em muitíssimos momentos do No entanto, o turismo, a partir intactas a personalidade e natureza
vídeo), fruição, eventualmente da década de 1970 e mais ainda viva do Tambor.
transe, solidariedade, identidade, recentemente, tem exercido pressão Por fim, é preciso dizer que
auto-estima, resistência cultural, sobre o Tambor de Crioula, com a dessacralização da sociedade
transcendência etc. Quando, a mediação do poder público. contemporânea terá trazido ou
porém, o ritual se transforma Daí, como os pesquisadores poderá trazer uma atenuação de
em espetáculo, introduz-se a não deixaram de apontar, uma traços do caráter ritual do Tambor,
gestualidade comunicativa, em que bifurcação que é do maior interesse. capaz de comprometer algo de
o corpo não mais coincide com Ao lado do Tambor “nas casas”, que sua força, com um progressivo
o enunciado, mas é apenas vetor é para uso interno, multiplicam-se predomínio formal. No entanto,
de informação, limita-se a ser o os Tambores “de contrato”, formal nada na documentação disponível
sujeito do ato de enunciar. Nessa ou informal, em espaços oficiais, permite inferir que tal processo
perspectiva é que se compreende com cobrança de cachê. Há um esteja trazendo risco à configuração
em todo o seu alcance a aflição aspecto até certo ponto paradoxal aqui delineada.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 84

2.2. HISTÓRICO / EVOLUÇÃO fonte oitocentista, o médico e semelhantes. Diante dos 61 grupos
literato Antônio Henriques Leal, levantados na atual pesquisa, na
Aos origens do Tambor de no Pantheon Maranhense insere-se Ilha, pode-se reconhecer um
Crioula são mal identificadas. numa linha de interpretação desenvolvimento considerável.
As referências iconográficas preconceituosa, racista e hostil, (O ofício do Prefeito Municipal
oitocentistas são suficientes apenas que persistirá até inícios do século a fls. 02 menciona mais de
para reconhecer sua ancestralidade XX, pontuando uma história 80 grupos em São Luís, e um
africana e sua prática por negros de perseguições e depreciação. contingente de participantes
escravos ou libertos, Contudo, seu texto é precioso por superior a 3.000 pessoas). No
nas manifestações de batuques, listar uma série de traços que já interior, também as ocorrências
da família do samba, à qual se eram sintomáticos do Tambor: eram amplas: pesquisa da Fundação
filia o Tambor. A referência vertiginosa rotação de calcanhares, Cultural do Maranhão, em 1983,
textual mais antiga, apontada por movimento de quadris, bracejar afirmava que existia o Tambor na
Ferretti28 é de 1818, da lavra de “desordenado’, “esgares e momos”, maioria dos municípios. Todavia,
Frei Francisco de Nossa Senhora embigada (punga), parelha as informações sobre eles são ainda
dos Prazeres, que compensa de instrumentos. fragmentárias e imprecisas. Seja
citar: “para suavizar a sua triste O reconhecimento do valor como for, sem sombra de dúvida,
condição fazem [os escravos], nos cultural do Tambor começa a é a Ilha de São Luís o principal
dias de guarda e suas vésperas, se definir na década de 1970, foco dessa manifestação, seja pelo
uma dansa denominada batuque, quando ele passa a ser tratado número, seja pela irradiação.
porque n’ela uzam de uma espécie como atração turística de São Luís. Note-se, além disso, que
de tambor, que tem esse nome. Da época, foram identificados migrantes urbanos que adensaram
Esta dansa é acompanhada de apenas18 grupos, embora mais de a população de São Luís na
uma desconcertada cantoria, 30 municípios do litoral ao sertão década de 1980 contribuíram
que se ouve de longe”. Outra também contassem com grupos para aumentar os contingentes
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 85

da capital, instalados em bairros 2.3 CALENDÁRIO própria localização urbana acima


periféricos do centro histórico mencionada, os participantes do
– núcleo em que, desde o século Não há um calendário canônico, Tambor são de condição popular e
XIX os chamados “folguedos de embora ocorra certa concentração de origem afro-brasileira e revelam
negro” não eram bem-vindos. no Carnaval, e em junho e agosto. bastante homogeneidade. Ao que
O influxo dos novos habitantes é O pagamento de promessa pode tudo indica, parece haver um
interessante, quer porque revela realizar-se a qualquer tempo. componente de territorialidade,
que o Tambor funcionou como Finalmente, efemérides relativas à favorecido pela semelhança, que já
um fator de manutenção de trajetória dos negros no Brasil ou foi notada, de profissões, nível de
identidade e integração ao novo aniversário dos grupos também são renda, habitação, idade etc.
quadro de vida, quer porque motivações para realizar o Tambor. Com relação à idade, porém,
também significou um reforço à Cumpre notar, ainda, que pelo observou-se uma redução da idade
continuidade de padrões culturais parentesco com o Bumba-meu-boi, média dos brincantes após o final dos
entre o interior e a capital – apesar é freqüente que esta celebração seja anos 1970. De novo, a valorização
de algumas diferenças esparsas que encerrada com um Tambor. da cultura popular, mas, sobretudo,
podem ser assinaladas (presença perspectivas de auto-estima e de
de homens dançando em roda 2.4. PARTICIPANTES prestação de serviços ampliadas pelo
lateral, à moda de capoeira; padrão turismo, induziram o aumento na
rítmico de toques diferenciado; Os participantes integram presença de jovens.
organização menos formalizada dos grupos organizados. Também os laços de família
grupos; ausência de padronização Não há estudos locacionais desempenharam papel importante.
de vestimentas e uso de roupas de disponíveis, que permitam entender Há casos da transmissão da chefia
uso cotidiano). Outras diferenças certas formas de interação dos dos grupos ao longo das gerações.
também poderiam ser acrescidas grupos entre si, nem seus padrões Quanto ao público ou
(fls.221). de distribuição. Todavia, pela participantes não pertencentes
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 86

aos grupos, também houve uma “A dança do tambor de Crioula, Na realidade, a julgar pelo vídeo e
inversão curiosa: de início, normalmente executada só pelas mulheres, pelas entrevistas, assim como pelo
a valorização cultural do Tambor apresenta coreografia bastante livre e inconcluso debate historiográfico
atraía setores de classe alta e média, variada. Uma dançante de cada vez, sobre suas origens, seu sentido é
intelectuais e pesquisadores, faz evoluções diante dos tamborzeiros, muito mais profundo e constitui,
brancos. Hoje, a predominância enquanto as demais, completando a mesmo, um dos focos de interesse
é de negros – o que revela a roda entre tocadores e cantadores, fazem da parte das próprias dançantes.
relevância das funções identitárias pequenos movimentos para a esquerda e a Tem a ver, por seu simbolismo
que o Tambor desempenha. direita; esperando a vez de receber a punga e pela carga de interação, com a
Era no interior dos grupos que se e ir substituir a que está no meio. própria força do feminino, além de
dava a enculturação e a formação dos A punga é dada geralmente no abdômen, convite para entrar na roda ou gesto
novos participantes, pela observação no tórax, ou passada com as mãos, numa de saudação.
e pela imitação. A dança do Santo espécie de cumprimento. Quando a coreira A circularidade da dança e o
Preto estava no sangue, como que está dançando quer ser substituída, giro sem fim em torno de si mesmo
dizem alguns dos entrevistados. vai em direção a uma companheira e e em círculo, trazem à lembrança
Hoje já começam a aparecer aplica-lhe a punga. A que recebe vai ao uma observação aguda da famosa
“tambores-mirins” com a função de centro e dança para cada um dos tocadores, antropóloga Margareth Mead,
divulgar e formar novos praticantes e requebrando-se em frente do tambor na comparação que ela fez, numa
já se dispõe de “instrutores”. grande, do meião e do pequeno, e repete conferência (em Congresso da
tudo de novo até procurar uma substituta”. American Association for the Advancement
2.5. DANÇA of Science, Philadelphia, 1976) das
Embora a descrição seja danças nas sociedades tribais com
Cito, por maior comodidade e confiável, talvez tenha exagerado o o balé clássico. Neste, dizia ela,
para maior precisão, os Cadernos de papel da punga (umbigada) como o corpo é negado, a gravidade é
Folclore, nº 31, 198129: pedido de substituição na dança. ignorada e se procura construir um
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 87

D E TAL H E DA RO DA DE TA M BO R DE C RIOU L A .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

espaço novo, imaterial, liberto de estão inextricavelmente articuladas da matraca define a duração
amarras. Entretanto, nas sociedades ao universo intangível de desse ciclo. O tambor grande,
tribais, é o contrário que ocorre, significados e valores). de tom mais baixo, interage com
isto é, insiste-se pela reiteração de os outros tambores, dirigindo a
gestos num espaço circunscrito, 2.6. MÚSICA música e a dança, especialmente
na materialização reforçada do a característica punga. O tocador
corpo que se apropria de um Valho-me, novamente por de tambor grande brinca com
território, espaço já dado com todas motivos de comodidade e precisão, os ritmos, enfatizando alguns,
as suas contingências, sim, mas de dados extraídos de Patrícia preenchendo espaços, realçando o
ventre fecundo da vida. Poderíamos Sandler, citados por Cláudia sentido entre 2/4 e 6/8. O canto
completar dizendo que as danças Vasques (fls.220) e que aqui está delimitado pelos instrumentos
tribais são, assim, de certa maneira, aproveito livremente. – um cantador principal entoa
danças territoriais. Marcam um Uma base da musicalidade uma melodia curta que é
sentimento de posse do espaço em do Tambor de Crioula é a respondida pelo grupo. Não
que se vive. (En passant, temos aqui interpenetração dos padrões há começo definido, nem fim. Há,
neste parecer, além da performance rítmicos simples e repetitivos, por outro lado, profunda interação
corporal como enunciado, uma chamados padrões “ostinatos”. dos três tocadores de tambor, os
segunda evidência a nos alertar A música normalmente começa com coreiros (que se revezam), dos
como é imprópria a denominação um ostinato de duas notas tocado tocadores de matracas e, cantadores
de “patrimônio imaterial”, hoje no tambor chamado meião. e dançantes (coreiras).
cristalizada internacionalmente O tambor crivador, com tom Após os primeiros toques do
e definitivamente oficial, para agudo, entra com outro ostinato, tambor, entra o cantador
conceituar expressões, como a tocado no meio dos espaços dos seguindo-se o refrão (fls.123).
nossa, em que a materialidade, ritmos do meião e, juntos, criam As toadas, quadras ou dísticos e
a sensorialidade e a corporalidade um ciclo repetitivo. O padrão refrão, podem ser de um repertório
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 88

C O RE IRA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 2.

antigo ou de elaboração recente ou, e pelo grande (responsável pelo solo


mesmo, improvisadas. Há toadas e improvisos). O tambor grande é
centenárias, outras incorporam sempre tocado de pé, amarrado à
situações contemporâneas – cintura, preso entre as pernas.
os temas são variados (saudações, Os dois outros ficam entre as
trabalho, desafios, situações, pernas do tocador, sentado, e se
lugares, pessoas, sátiras, apoiam num tronco ou base.
despedidas, lembranças amorosas, O processo de fabricação dos
referências a santos e entidades tambores é altamente ritualizado.
sobrenaturais). A matéria prima – tronco de
Foi considerada potencialmente árvores de grande porte – como
danosa a carência de novas o pau d’arco, macajuba, pequi,
composições e ausência de cantores sororó, bacuri ou abacateiro –
especialistas nos assuntos que é escolhida na lua cheia. O tronco é são batizados: recebem um nome
pudessem reavivar a fertilidade das então esvaziado, com instrumentos (do local, do dono da parelha, do
composições (fls.123). que podem variar, mas com santo etc.), água benta, padrinho e
técnicas de escavação longamente madrinha. A descrição em tudo é
2.7. OS ARTEFATOS sedimentadas e completadas pelo paralela à que faz Marcel Mauss, da
fogo. A superfície de percussão canoa polinésica, para demonstrar
Os tambores, sem dúvida, é obtida da pele de vaca, égua ou que reduzir os significados de
merecem lugar de destaque. veado, mergulhada em água e um artefato à sua forma material,
A parelha de tambores é o conjunto cal para eliminar o mau cheiro como produto final, é deixar
formado pelo meião (dá o ritmo e retidas, para fechar a abertura de considerá-lo como um eixo
contínuo, pulsação), pelo crivador do tronco, com tiras de couro e gravitacional de sentidos e
(pequeno, fornece o contraponto) cravelhas. Muitas vezes os tambores inter-relações. Esses tambores
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 89

têm biografia e tão carregados as dançantes mais tradicionais i. Casa do Tambor de Crioula,
estão de referências à vida de seus recusam a aceitar como Tambor criada em novembro
fabricantes e usuários, que se pode de Crioula, mas que vão se de 2006 e subordinada
dizer que dialogam com eles. sedimentando, ao mesmo tempo à Fundação Municipal
É o que deixa transparecer de que a bibliografia começa a de Cultura;
novo Mestre Felipe, em relação ao explicitar alguns aspectos eróticos ii. Projeto da Casa do
tambor que começou a tocar aos do Tambor. Tambor de Crioula, com
13 anos. Não é mera retórica os proposta pedagógica, de
especialistas em estudos de cultura 3. VOTO pesquisa, difusão cultural,
material falarem de socialidade das documentação, devendo-se
coisas e postularem que o estudo Do exposto, fica patente que notar preocupação especial
da sociedade inclua as coisas nas o Tambor de Crioula exibe todas com a história dos afro-
relações inter-pessoais. as condições para ser considerado descendentes maranhenses;
Nas cerimônias do Tambor de patrimônio imaterial brasileiro. iii. Dia do Tambor de Crioula
Crioula, há sempre um fogo aceso Antes, porém, de sintetizar a e seus brincantes, 6 de
para afinar os instrumentos. justificativa desta proposta, é setembro (criado por Lei
Acrescente-se que completam a pertinente ressaltar o interesse que a Municipal de 2004);
parelha matracas e bastões de madeira. sociedade maranhense tem dedicado iv. Projeto de Lei Municipal
A indumentária feminina a essa manifestação cultural. que propõe “integrar ao
caracteriza-se por saias amplas e Assim, inúmeras instituições Patrimônio Cultural e
vivamente coloridas e por blusas e medidas, oficiais e privadas Imaterial da Cidade de São
longas. Com o aumento da para conhecimento, valoração, Luís a dança Tambor de
presença de jovens, começaram a preservação, divulgação e Crioula”, nov. 2006.
aparecer blusas curtas e barrigas fruição do Tambor tomaram v. Conselho Cultural do
de fora, que, nas entrevistas, corpo recentemente: Tambor de Crioula do
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 90

Maranhão, pessoa jurídica físicos, tambor de crioula, integrantes dos grupos e,


de direito privado, umbanda, bumba-meu- posteriormente, abertas.
constituída em janeiro boi de todos os sotaques,
de 2004, tendo por artesanato, saúde, tendo em Outra prova do interesse
finalidade (art. 2º) “realizar vista o bem estar dos sócios despertado, já agora extravasando
campanhas de atividades e fazer funcionar o presente o âmbito maranhense são as
culturais, como prestação estatuto e as normas do pesquisas de caráter folclórico,
de serviços sociais, festejo regimento interno”. etnográfico, artístico, histórico,
de São Benedito, festejo do vi. Oficinas com Mestre Felipe, psicanalítico, que se vêm
Divino Espírito Santo, São organizadas pela Ong multiplicando sobre o tema.
Sebastião, auxiliar pessoas Laborate, na década de 1970 Transposta a fase heróica de um
doentes, idosas, deficientes fechadas, de início, para Mário de Andrade ou de uma
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D ETA LHE DE SAI A S EM M OVIM E NTO DAS CORE IRAS.


FOTO: EDG A R R OCHA , 2006.

Oneyda Alvarenga, na década de • seu forte caráter identitário e • como foco de atração no
1930, ou na de 1970, territorial assegurou-lhe um diversificado panorama de
de Sérgio Ferretti, hoje são cada papel relevante na produção nossa cultura, não há por
vez mais numerosos os trabalhos e estreitamento de laços de que lhe negar tratamento
acadêmicos, dos quais podemos solidariedade para além do concedido a expressões
citar: Raimunda Rocha Borges contexto de sua manifestação; comparáveis, como o jongo
(monografia de conclusão de • embora essa força local e o samba de roda do
licenciatura em Educação artística, faça dele uma expressão Recôncavo – já reconhecidos
UFMA 2000), Marie Cousin cultural qualificada do como integrantes do
(DEA/Musique, Universidade cotidiano maranhense, patrimônio cultural
de Paris, 2005), Valéria Maia a profundidade de seus (imaterial) brasileiro.
Lameira (dissertação de Mestrado significados lhe dá
em Psicologia, UERJ, 2002), relevância nacional: disso À vista de todo o exposto,
Maria Domingas Nascimento são prova os investimentos meu voto é incisivo ao propor
(monografia. de Licenciatura em do poder público local o deferimento, pelo Egrégio
História, UFMA, 1997. (incluindo preocupações Conselho Consultivo do Iphan,
Alinho, para terminar, a síntese com salvaguardas) e de do pedido de inscrição do Tambor
das justificativas que me permitem consideráveis segmentos da de Crioula entre as manifestações
propor o deferimento da solicitação: sociedade maranhense, ao culturais (imateriais) do Brasil.
lado do interesse despertado
• o Tambor de Crioula revela em vários quadrantes da São Luís do Maranhão, 18 de Junho
extraordinária continuidade, sociedade nacional, quer de 2007.
no essencial, de forma e de como objeto de estudo,
propósitos ao longo de quase quer como objeto de fruição Ulpiano T. Bezerra de Meneses
190 anos (pelo menos); e enriquecimento cultural; Conselheiro.
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 92

Anexo 3
certidão de
registro
dossiê iphan 15 { Tambor de Crioula do Maranhão } 93
COREIRA S .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.

PÁGI NA 9 3
COREIRA S NA PRA IA .
FOTO : E DGA R RO C H A , 20 0 5.

Este livro foi produzido no


outono de 2016 para o Instituto
do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional.

Foi composto nas tipografias


Rosewood (títulos) e MrsEaves
(textos), corpo 12/14.4, em papel
couché matte 150 g/m (miolo).
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA

PUBLICAÇÃO (CIP)

BIBLIOTECA ALOÍSIO MAGALHÃES, IPHAN

T156 Tambor de Crioula do Maranhão / coordenação, Yêda


Barbosa. – Brasília, DF : Iphan, 2016.
96 p. : il. color. ; 25 cm. – (Dossiê Iphan ; 15)

I S B N : 978-85-7334-294-9

1. Tambor de crioula – Maranhão (MA). 2. Dança


folclórica. 3. Música folclórica. 4. Patrimônio imaterial –
Maranhão (MA). I. Barbosa, Yêda. II. Série.

CDD 394.3

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