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Limpeza

Yoshi Oida (com colaboração de Lorna Marshall) em O Ator Invisível

Antes de começar qualquer coisa, é importante limpar o espaço de trabalho. Esvaziá-lo,


desfazer-se de tudo o que é inútil e ordenar apenas algumas cadeiras necessárias ou certos
acessórios, cuidadosamente, próximos às paredes do ambiente. Depois limpa-se o chão. Se os
atores se derem esse tempo e se entregarem a isso no começo do dia de ensaio, o trabalho tende a
ser bom. No Japão, todas as tradições teatrais, religiosas e das artes marciais seguem essa prática.
Mas essa limpeza não é feita de qualquer jeito, só para se livrar da sujeira, usando
detergente ou até alguns aparelhos. Todas as disciplinas tradicionais têm um estilo particular de
limpar o chão, em que se usa água fria com panos de algodão, ficando-se num estado desperto de
consciência e solicitando do corpo uma posição específica. O pano deve ser umedecido em água
fria (sem detergente) e depois torcido. Abre-se o pano úmido no chão, pondo-se as duas palmas
das mãos sobre ele. Os joelhos não tocam o chão, somente as mãos e os pés, de modo que o corpo
fica parecido com um V invertido. Então andamos para frente, lentamente, empurrando o pano
pelo chão. Normalmente começamos por um lado do ambiente e atravessamos sem parar em
direção ao outro. Quando chegamos na parede oposta, ficamos em pé, umedecemos o pano e
recomeçamos por outra "pista". Nesta posição, nossos quadris estão firmes, e trabalhamos o corpo
à medida que limpamos o chão. Enquanto fazemos esse exercício, temos de pensar somente em
esfregar o pano, limpando cuidadosamente. Não devemos nos apressar, ficar distraídos ou pensar
em outras coisas. Não devemos conversar com outro colega. Tudo isso é extremamente difícil, mas
é algo muito bom para treinar a concentração de que um ator necessita.
Existe um conceito que se encontra na antiga filosofia budista indiana, o samadhi, que se
refere a um nível particular de concentração profunda. De certo modo, é absolutamente simples:
quando lemos um livro, apenas nos concentramos na leitura do livro; quando pescamos, focamos
nossa atenção somente nos movimentos e na vibração da própria linha; quando limpamos o chão, é
tudo o que fazemos.
Na vida cotidiana, quando nos encarregamos de uma tarefa simples, devemos tentar dirigir
a atenção inteiramente para aquilo que estamos fazendo. Sentirmo-nos estivéssemos cobertos e
apoiados pela energia do universo inteiro. Normalmente nossos pensamentos escapam para todos
os lados: estamos limpando o chão, mas nos “esquecemos” do que estamos fazendo e acabamos
pensando no que aconteceu no dia anterior, no barulho irritante que fazem nossos vizinhos ou na
conta de luz que precisamos pagar. Nesse estado é impossível ser envolvido pela energia do
universo. Não importa, realmente, no que nos concentramos, desde que seja totalmente.
Desenvolver essa concentração ajuda a entrar no estado de samadhi. Uma vez neste estado,
começamos a perceber a existência de algo além de nossa energia pessoal. Existimos em dois
níveis. Por exemplo, agora estamos lendo este livro. Enquanto nos concentramos na “leitura” das
palavras, estamos também despertos para tudo o que está à nossa volta; mas a consciência disso
não nos perturba.
Eu tento estender esse exercício à minha vida cotidiana. Quando me levanto pela manhã e
vou escovar os dentes, procuro me concentrar apenas na escovação dos dentes. Infelizmente,
sempre me distraio. Começo cuidadosamente a dirigir minha atenção para esta atividade, mas
frequentemente me pego pensando: “Não posso me esquecer de ir ao banco... tenho de telefonar
para fulano, beltrano... será que o metrô vai estar muito cheio hoje?". É extremamente difícil
concentrar-se apenas na ação de limpar; é fácil distrair-se. No entanto, os atores devem ser capazes
de realizar qualquer atividade com 100% de si mesmos e de concentração.
Se considerarmos esse ponto de vista, limpar não é simplesmente uma “preparação” para
trabalhar. A palavra “preparação” tende a sugerir que a etapa seguinte é que é importante. Não é
esse o caso. A ação de limpar já é útil por si mesma.
Essa abordagem da limpeza não está limitada ao ambiente onde se irá trabalhar. Temos
igualmente de nos assegurar de que nossos corpos estão no mesmo estado de prontidão. No Japão,
nas artes marciais, antes de um grande torneio ou nos momentos que antecedem uma
apresentação de Nô particularmente importante, os lutadores/intérpretes derramam água fria
sobre a cabeça. Não, apenas para se livrarem de alguma sujeira, mas para se purificarem
simbolicamente. Do mesmo modo, é interessante notar que muitas culturas pelo mundo inteiro
ressaltam a importância do ritual de purificação. No Islã lavam-se os pés antes de entrar na
mesquita, e no xintoísmo lavam-se a boca e as mãos antes de entrar no templo; no cristianismo, o
batismo tem um significado simbólico e cerimonial. Talvez essas crenças tenham suas origens na
necessidade de sensibilizar as pessoas para as questões de higiene, mas todas enfatizam a
importância da limpeza como uma parte do culto.

O valor da limpeza e da pureza é central na cultura japonesa. Evidentemente, a importância


de lavar e limpar, na prevenção contra doenças, é reconhecida no mundo inteiro, mas no Japão há
um fator adicional. A ação de limpar não só o corpo, mas também o ambiente em que se está tem
uma dimensão espiritual, enraizada nas origens da religião xintoísta. De acordo com esta tradição, o
deus Isanagi lavava seu corpo para se purificar após uma jornada no submundo da morte. Conforme
limpava sua pele divina, removendo as contaminações do submundo, várias entidades, deuses e
multidões eram criados. Nessa cosmologia, a limpeza está ligada à criação. Trata-se de uma ação
positiva, poderosa, e não simplesmente algo que signifique apenas livrar-se da sujeira.
Em algumas seitas xintoístas, o ritual da purificação do corpo assume a forma de um banho
de mar, mesmo que se esteja em pleno inverno. Esta prática é chamada misogi. Se não for feita no
mar, pode ser realizada em qualquer lugar em que haja água fria corrente, como num rio, cachoeira
ou até mesmo debaixo do chuveiro. Uma vez imerso, o participante faz exercícios específicos, que
envolvem cânticos e concentração.
Em termos de vida cotidiana, limpeza implica um respeito apropriado por si mesmo, sendo
também uma maneira ativa de preparar a mente e o corpo para um trabalho disciplinado.
Praticamente todas as artes marciais e práticas religiosas ressaltam a importância da limpeza, não
como algo preliminar à atividade, mas como algo que faz parte integral do próprio treinamento.
Sendo assim, começa-se o dia de trabalho com uma limpeza completa dos ambientes e do corpo.
L.M.

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