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Tradução & Comunicação TRADUÇÃO TÉCNICA: ARMADILHAS E DESAFIOS

Revista Brasileira de Tradutores


Nº. 19, Ano 2009 Technical translation: snares and challenges

RESUMO
Silvana Polchlopek
Universidade Federal de Santa Catarina A tradução da modalidade de textos considerados “técnicos” representa um dos
UFSC/PGET maiores segmentos dentro do mercado de tradução, gerando, portanto, discussões no
que se refere à conceituação dessa modalidade textual. A tendência atual, no entanto,
sil-in-sc@uol.com.br
é considerar técnicos não só manuais de instrução, artigos científicos e bulas de
remédio, por exemplo, como também textos literários, jornalísticos e até mesmo uma
carta de amor. Com isso, perde-se a dicotomia existente entre textos literários e
Michelle de Abreu Aio técnicos, e, por conseguinte, as classificações atribuídas aos tradutores desses textos.
Universidade Federal de Santa Catarina Nesse sentido, propomos discutir a tradução chamada de “técnica” através do papel
UFSC/PGET do tradutor; da terminologia (AUBERT, 2001); e dos marcadores culturais (AZENHA,
1999), utilizando exemplos reais que representam, muitas vezes, desafios e armadilhas
michelleaio@yahoo.com.br para o tradutor, bem como estratégias e caminhos empregados para chegar à tradução
dos termos apresentados. O objetivo é abandonar a concepção equivocada de que
textos técnicos são rápidos e fáceis de traduzir visto que necessitam “somente” do
conhecimento “básico” da terminologia específica, exigindo do tradutor “apenas” o
domínio do assunto e a revisão sintática para torná-lo legível e com sentido.

Palavras-Chave: tradução técnica; tradutor; armadilhas de tradução.

ABSTRACT

The translation of texts regarded as ‘technical’ represents one of the largest segments
in the translation market, generating, therefore, discussions concerning the
conceptualization of this text modality. The current tendency is, though, to consider as
technical not only instructions manuals, scientific papers and medicine directions, but
also literary, journalistic texts and even love letters. Thus, the dichotomy existing
between literary and technical texts is lost, as well as the classifications attributed to
the translators of those texts. In this sense, we aim to discuss the translation named as
‘technical’ through the translator role; terminology (AUBERT, 2001); cultural markers
(AZENHA, 1999), using real examples that many times represent challenges and traps
to the translator, as well as strategies and paths taken to get to the translation of the
presented terms. The focus is to abandon the mistaken concept that technical texts as
quick and easy to be translated, for to translate them it is necessary to have ‘only’ the
‘basic’ knowledge of the specific terminology, requiring from the translator ‘just’ the
domain of the issue and the syntactic review in order to make it readable and
meaningful.

Keywords: technical translation; translator; translation tricks.

Anhanguera Educacional S.A.


Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 2000
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181
rc.ipade@unianhanguera.edu.br
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 17/12/2009
Avaliado em: 28/12/2009
Publicação: 27 de abril de 2010
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1. INTRODUÇÃO

Falar sobre os estudos da tradução implica, atualmente, compreendê-la como uma


disciplina autônoma. As reflexões acerca da práxis tradutória não partem mais de campos
de conhecimento já institucionalizados como os estudos literários ou lingüísticos, razão
pela qual os estudos da tradução representam hoje, per se, um campo de conhecimento
extremamente diversificado. Um resultado direto dessas mudanças relaciona-se com as
próprias modalidades tradutórias, antes aparentemente distintas e que hoje acabam se
diluindo entre as fronteiras dos gêneros textuais. Este é o caso do campo da tradução
chamada ‘técnica’ e de suas especificidades.

Pouco explorada, mesmo na área acadêmica, a tradução técnica, ao contrário do


que comumente se imagina, não é um terreno árido, sem vida, no qual é suficiente o
domínio dos idiomas, bem como a terminologia da área da tradução. Incorrer em tal idéia
é um erro crasso e, no entanto, mais comum do que se imagina. Essa modalidade de
tradução tematiza, igualmente, a questão maior da linguagem, do processo de tradução,
de níveis de equivalência textual e do papel dos agentes envolvidos nessa tarefa, no
sentido de se perceber e construir uma prática que envolve, também, condicionantes
culturais (AZENHA JR., 1999), ou seja, a necessidade de uma interferência mais direta por
parte do tradutor sobre o texto, caso as diferenças culturais entre emissor e receptor sejam
sensíveis. No entanto e, apesar de ser um entroncamento significativo dentro da própria
área tradutológica, a prática da tradução técnica não tem merecido a importância devida
ou recebido muita atenção de pesquisadores da área.

Com base nestas considerações, este artigo pretende discutir os pressupostos que
envolvem a modalidade da tradução de textos técnicos, tais como a rigidez terminológica
e sintática, ressaltando que mesmo sendo técnicos os textos exigem sensibilidade e
criatividade por parte do tradutor, o que demanda uma reavaliação imediata tanto do
conceito do termo ‘técnico’, como também da valorização do tradutor que se especializa
nessa modalidade. Essas reflexões são ainda pautadas pela análise de exemplos aleatórios
de textos técnicos representativos da realidade profissional das autoras, selecionados
devido ao grau de especificidade de análise e funcionalidade exigidas durante o processo
tradutório, para além do simples domínio dos idiomas envolvidos. Tais reflexões são
articuladas a partir de teóricos como Nord (1991); Azenha Jr. (1999); Barbosa (2005);
Aubert (2001); Cabré, (1999) e Emmel (1998).

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2. O QUE É A TRADUÇÃO CHAMADA ‘TÉCNICA’?

Uma pesquisa, ainda de caráter informal, para coleta de dados de cunho acadêmico
realizada pelas autoras entrevistou 71 pessoas de um grupo denominado “público-leitor”.
A contagem preliminar das respostas revelou que o material mais requisitado para
traduções são os textos técnicos, caracterizados como artigos científicos, manuais, abstracts
citados por 49,2% dos respondentes. Dos 71 entrevistados, 53,5% traduziram o texto por
conta própria, enquanto apenas 32,3% recorreram ao tradutor profissional quando os
textos eram jurídicos e precisava-se de um tradutor juramentado. Questionados sobre os
critérios de escolha dos profissionais tradutores, independente do tipo de texto para
tradução, 35,2% consideraram o domínio do idioma e 21,1% a rapidez e a agilidade.
Outras 31% responderam que traduziram direto porque dominam o idioma e/ou a área
da tradução.

Para 42,2% tradução é basicamente “reescrita de um texto em outra língua,


permitindo a total compreensão do texto fonte”; “transcrição de um texto de uma língua para
outra” e/ou “transpor o texto de uma língua para outra, preservando integralmente o seu sentido
original”. 29,5% não responderam a essa pergunta e os 28% restantes associaram a
tradução com “expressão de idéias; interpretação de informações ou ponte para o entendimento
entre culturas”, afastando-se, ainda que pouco, do rigor do conceito de
transposição/transcrição lexical e sintática.

O que se percebe é que, apesar de fundamental para os campos do saber


tecnológico, empresarial, científico, e, até mesmo, quando nos defrontamos com manuais
de aparelhos e equipamentos eletro-eletrônicos, a tradução técnica é marginalizada por
inúmeros fatores que se acredita serem ‘inerentes’ a essa modalidade, a saber:

i) tem menor valor estilístico se comparada à tradução literária, por exemplo;


ii) sua aridez não permite a interação de concepções que revolucionam
aspectos e pressupostos da área;
iii) não apresenta variações lexicais devido à especificidade de cunho
terminológico, ou seja, tendo conhecimento da área técnica que se está
traduzindo, o processo tradutório não vê obstáculos;
iv) tem como ponto central de discussão a questão da equivalência textual, no
sentido um-pra-um, em relação ao conteúdo temático.
Esses fatores estão em consonância com o que os entrevistados entendem por
competência tradutória. Para 94,3% competência é sinônimo de domínio das línguas de
partida e de chegada; 70,4% respeito aos prazos; 63,3% conhecimento do assunto da
tradução; 60,5% muita leitura e, 56,3% conhecimento de gêneros textuais. Ressalta-se que

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havia mais itens para esta pergunta e que os entrevistados poderiam marcar quantos itens
quisessem.

Sabe-se, por outro lado, que os textos técnicos não permitem muitas variações
estilísticas, o que, no entanto, não lhes diminui o valor, visto que atuam diretamente no
processo de disseminação de dados e experiências tecnológicas e científicas. Seu terreno
não é árido simplesmente por ser técnico. O que há é a redução da instabilidade ou
ambigüidade pelo uso da terminologia. Se traduzir é, à parte os termos teóricos, transpor
um texto de uma língua para outra, não se pode esquecer de que a língua é parte
integrante da cultura, ou seja, os textos técnicos também estão expostos a variantes
culturais estilísticas, lexicais, sintáticas ou mesmo variantes internas à própria área técnica
em que se está traduzido devido a diferenças no grau de desenvolvimento tecnológico
entre uma cultura e outra, por exemplo. Conhecer tais especificidades deve fazer parte do
processo de tradução tanto quanto o domínio da terminologia em questão, no sentido de
buscar um texto funcionalmente adequado para o leitor-destinatário ou grupo.

No entanto, isso representa trabalho extra para o tradutor, e tempo, conforme os


dados acima, nem sempre é uma variante que o tradutor tem a seu favor. Por outro lado,
essa atitude de investigação pode resultar em um termo que represente melhor as nuances
do texto e, conseqüentemente, alcance o grau de objetividade necessário para a tradução.
Além disso, existem questões de ordem ideológica, como sigilos tecnológicos ou inserção
de produtos no mercado industrial, que podem influenciar escolhas lexicais, estratégias e
decisões do tradutor - não isentando o trabalho, portanto, dos mesmos obstáculos
encontrados em outras modalidades tradutórias.

3. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DOS TEXTOS TÉCNICOS

O mercado da tradução técnica no Brasil tem se tornado altamente especializado desde a


década de 90, em função do próprio cenário nacional: abertura do MERCOSUL; número
crescente de importações aumentando a demanda da tradução de características e
funcionamento dos produtos; privatizações de empresas; desenvolvimento da
globalização e terceirização de publicações técnicas na área industrial. No entanto, o
cenário que poderia ser mais promissor considerando-se negociações de prazos e
remuneração adequada, parece não ter se alterado. O que se observa é que o serviço se
tornou altamente especializado, rigoroso e, em sua grande maioria, realizado por agências
que valorizam mais o ‘great work load capacity’ do que propriamente a formação mais
acadêmica do tradutor.

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O termo ‘técnico’ polariza, de um lado, os textos chamados literários ou poéticos


e, de outro, todos aqueles que tenham caráter de manual, documento, artigo e que
empreguem uma terminologia representativa de uma determinada área de especialidade.
Essa distinção nos leva a compreender, portanto, todo o material passível de tradução
como em oposição aos textos literários que ocupariam um nível maior na hierarquia de
material mais valorizado, mesmo com os textos técnicos ditando uma boa parcela das
leituras presentes no universo discursivo cotidiano: manuais de eletrônicos, contratos de
assinatura de serviços ou bulas de remédio, manuais de instrução; relatórios; descrição,
operação e montagem de maquinários; documentos judiciais, econômicos, médicos, por
exemplo. Essa distinção, no entanto, conforme apontado por Heloisa Barbosa (2005) não
mais se sustenta, visto que, por sugestão do SINTRA foi retirado o termo ‘técnica’ da
modalidade antes chamada de ‘tradução técnica’, conhecida agora somente por
‘tradução’. A autora considera esse “um passo adiante para dar condições melhores de lutar
pelos seus direitos a uma categoria profissional [tradutores] que mal começou no Brasil, a tentar
cobrar, das editoras, os direitos autorais relativos às suas traduções” (BARBOSA, 2005, p.10).

Nesse sentido, a nossa ‘definição’ é de cunho empírico, não-conceitual, voltada às


características estilísticas do texto, dentre as quais observam-se o predomínio de: tempo
presente com a função de atingir a objetividade, o factual; uso de asserções, frases curtas e
orações simples; pretensão a uma ausência de ambigüidade; pouco uso de adjetivação
valorativa; emprego de voz passiva e auxiliares modais; parágrafos curtos e itemizados;
dados estatísticos; nominalizações (substantivos e adjetivos derivados de verbos);
conclusões parciais para cada item abordado, além é claro, da terminologia técnica.
Segundo Azenha (1999, p. 70) essa ‘linguagem técnica’ pode e deve ser considerada de um
ponto de vista lingüístico-estrutural e funcional-comunicativo, como base para propor
diversas possibilidades de investigação e pesquisa. Ainda de acordo com Azenha (op. cit.,
p. 11), “o que talvez constitua um elemento diferencial no caso das traduções técnicas são as
condições (não intrínsecas aos textos) em que a comunicação técnica ocorre”. Dessa maneira os
problemas de tradução decorrentes dessas condições são diferentes apenas em grau e não
em essência. Ao considerar o texto técnico como um texto híbrido e exposto a variações
culturais, a exemplo de outras modalidades tradutórias, Azenha abre caminho para uma
mudança de paradigma em relação às pesquisas sobre tradução técnica. Isso significa
compreender um texto técnico como uma estrutura multidimensional capaz de introduzir
novos elementos de análise para dentro do texto, como questões de ordem ideológica,
defesa de interesses, estratégias de persuasão para o consumidor ou, ainda, a questão de
reserva de direitos tecnológicos.

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4. TERMO E TERMINOLOGIA – CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS

Segundo Azenha (1999, p.10) costuma-se admitir para a tradução técnica uma
característica “veemente condenada para a tradução como um todo: a noção de sentidos
estáveis [...] uma operação de transcodificação [...] à margem de um enquadramento
cultural.” No entanto, como o próprio autor discute em seguida, a terminologia “é
dinâmica e admite uma margem de subjetividade no tratamento de seu objeto” (idem).
Porém, e independente desse fato, a consulta a bancos terminológicos deve ser uma
atividade paralela àquela da tarefa de tradução, seja o tradutor especialista ou não numa
determinada área. Pode-se comparar tal consulta à procura de quaisquer termos em
dicionários durante atividades tradutórias formalmente classificadas como não-técnicas.

Poucas são as pesquisas sobre terminologia na área dos estudos da tradução,


sendo a maioria delas mais vinculadas à lexicografia. Defini-la, portanto, implica algumas
considerações de ordem metalingüística como a própria compreensão acerca de
‘conceitos’ e ‘definições’. Emmel (1998, p.49) menciona o fato de a idéia de ‘conceito’ ser
pertinente a um sistema que extrapola a dimensão lingüística da palavra, nesse caso, o
termo técnico. Isso significa dizer que o conceito de um termo engloba o seu conteúdo, e é
essa matéria que lhe confere significado dentro da sua área de aplicação (Laurén e Picht
apud EMMEL, 1998, p.4). Dessa maneira a definição de um termo motiva a sua inclusão
em um determinado sistema de estudo, ou seja, fora desse sistema o termo pouco ou nada
significa. Algumas das características atribuídas ao ‘termo’, como forma de defini-lo, são
listadas por Fluck; Filipec; Arntz e Hoffmann (apud EMMEL, 1998, p. 13-5):

• componente da linguagem → etiqueta para uma determinada área;


• unidade verbal especifica que designa um conceito já definido no sistema
da área técnica;
• não estático e nem isolado; significado conceitual é dominante;
• de caráter relacional, operacional → permite entendimento geral do fato;
• tem função textual e léxica bem abrangentes;
• unidade lexical definida na área de especialidade;
• qualidade que a palavra técnica adquire no âmbito teórico no qual é
definida e institucionalizada.

Parece-nos que a idéia central dos autores é o fato de o termo técnico ser,
necessariamente, conciso, exato, abranger e ao mesmo tempo delimitar o conteúdo
descrito conceitualmente, estabelecendo uma relação: conceito ↔ signo lingüístico
(AUBERT, 2001; HOFFMANN, apud EMMEL, 1998). Podemos dizer, então, que o termo
técnico é formado por dois constituintes: a noção de conceito, como um conteúdo
independente da língua utilizado em acepções técnico-científicas, somada à de

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designação, como uma espécie de “etiqueta” para o objeto que designa, conforme Fluck
(apud EMMEL, 1998, p.13).

Tal consideração vincula, entretanto, a materialidade do ‘termo’ a um outro


matiz relevante para a tradução técnica: a linguagem de especialidade, isto é, o discurso
técnico-científico. Esta pode ser compreendida como um conjunto de marcas sintáticas,
lexicais, estilísticas e discursivas que tipificam o código lingüístico dentro de um ambiente
de interação social especifico (AUBERT, 2001, p. 24-5). Isso significa que a situação
extralingüística, isto é, as condições de produção do texto, é fator dominante no sentido
de identificar o conteúdo nocional e conceitual do emprego de um determinado termo,
bem como o seu grau de precisão semântica, de forma distinta de outros itens lexicais.
Dessa maneira e, segundo Wüster (apud EMMEL, 1998), fundador da terminologia
moderna, o termo não tem nenhuma existência fora do seu sistema terminológico, visto
que resulta de um sistema de denominação fundamentado num sistema conceitual
específico. Nesse sentido, a linguagem de especialidade médica ou da engenharia
química, por exemplo, torna-se compreensível e ideal dentro do meio social que a
constitui, podendo ou não ser absorvida pela linguagem comum caso o termo se
institucionalize como significante. Como conseqüência, o termo pode, inclusive, ser
atualizado conforme as evoluções tecnológicas da área que o caracteriza. Vejamos alguns
exemplos pertencentes a área das engenharias1:

• Disconnector → secionadora (área elétrica). A mudança, neste caso, se dá


ao nível morfológico, visto que o termo costumava ser escrito com um “c”
a mais;
• O-ring sealings → selamento O-ring ou selo tipo anel (área mecânica).
Artigos recentes da área utilizam somente a segunda opção;
• Recycability → reciclabilidade (área ambiental). O crescimento de ONG’s
relacionadas a questões ambientais e a própria consciência da população
em geral sobre noções de reciclagem, favorecem a produtividade do
termo;
• Gas Insulated Switchgear (GIS) → subestação blindada isolada a gás
(área elétrica). Artigos recentes utilizam a sigla correspondente em
português – SIG.

É dentro dessa linguagem de especialidade que a terminologia, segundo Aubert


(2001, p. 24-5), se constitui de duas maneiras distintas:
i) como um conjunto de termos característicos de uma área específica;
ii) como o estudo desses termos, um conjunto de pressupostos, métodos e
representações que descrevem uma linguagem de especialidade (language for special
purposes).

1Estes exemplos foram retirados do Guia de Reciclagem do SF6, documento normativo que visa normalizar o manuseio

correto do gás SF6 (agente causador do efeito estufa) em projetos de equipamentos elétricos, facilitando sua reciclagem e
transporte. Ver referências bibliográficas.

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Por extensão ao termo técnico, a terminologia não apresenta ambigüidade, é


estilisticamente objetiva e também auto-explicativa, embora não-autônoma, visto que se
desenvolve a partir da linguagem comum das práticas de comunicação diárias. Segundo o
autor, a situação extralingüística, isto é, as condições de produção do texto, representam
um fator dominante no sentido de identificar os conteúdos - nocional e conceitual -
referentes à escolha de um determinado termo.

Ronai (apud OTTONI, 2005, p.119) mostra alguns exemplos da polissemia


terminológica presente em textos literários como Harry Potter2: o emprego do termo “raio”
é distinto nas áreas da geometria, ótica, zoologia, física, meteorologia, já o termo “raiz”
pode ser utilizado: lingüística, estética, botânica, anatomia, matemática e medicina. Nesse
sentido, nos permitimos discordar do autor (ibid) quando afirma ser a ‘fidelidade’ o grau
‘artístico’ mais elevado da tradução técnica pelo fato de o autor desconsiderar o texto
como realidade maior em que os termos estão inseridos. Ronai, no entanto, aponta o
conhecimento lingüístico associado ao conhecimento específico tanto empírico (não
necessariamente técnico) quanto teórico para a formação do tradutor. Este seria um
caminho para solucionar o que Maillot indicou como um problema da tradução técnica, a
exemplo da literária: a questão do estilo, “maneira de exprimir o pensamento por meio
dos [com o auxilio dos] recursos da língua” (apud OTTONI, 2005, p.122).

5. O PAPEL DO TRADUTOR DE TEXTOS TÉCNICOS

O papel do tradutor em qualquer modalidade de textos é uma questão que suscita


inúmeros debates, visto que envolve não somente a figura do profissional quanto à
competência e habilidades tradutórias (ou terminológicas e gramaticais), mas também
outros elementos vinculados ao processo: questões de equivalência textual, fidelidade,
funcionalidade do texto e, até mesmo, o próprio conceito de tradução. Na teoria
funcionalista (NORD, 1991), o tradutor ocupa lugar central e sua leitura obedece a
condições peculiares, sendo determinadas pelas necessidades comunicativas de um
Iniciador (quem solicita o serviço) ou do receptor e voltada às intenções e funções do
autor referentes ao contexto de produção do TF e aquelas a serem alcançadas no contexto
de recepção. Para 18 pessoas do público-leitor entrevistado, o tradutor é a ‘pessoa capaz
de redigir numa língua o que entende em outra, com coesão e sentido, sem alterar o
original’, enquanto que outras 12 dizem que é o ‘profissional habilitado a traduzir’. Para
Azenha (1999, p.12), o tradutor é quem define,

2 Autora: J.K.Rowling. Tradução para o português: Lya Wiler, Editora: Rocco

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a partir das características específicas das culturas envolvidas e das instruções da tarefa
de tradução, uma estratégia de trabalho que, ao mesmo tempo, (1) preserve a referência
à instância que transfere o saber especifico (...) e (2) possa ser eficaz na cultura para a
qual o texto é transportado.

Apesar da sua importância, especialmente no que diz respeito aos textos técnicos,
como é o caso do corpus deste artigo, a responsabilidade maior do tradutor vincula-se à
definição de estratégias, escolhas e gerenciamento variáveis que vão desde a sua
competência lingüística e cultural até a avaliação da função (skopos3) que ao TT pretende
alcançar na cultura alvo. Tais considerações, segundo Azenha (1999, p.13) nos convidam a
redefinir o papel e a tarefa do tradutor técnico cujas habilidades, além, do mero domínio
de códigos e contextos de produção e recepção, tem a ver também com percepção
aguçada, criatividade, sensibilidade e experiência de tradução, além de, eventualmente,
do assunto que traduz. Nesse sentido, defende-se a idéia de que a tradução seja feita por
profissionais tradutores, ainda que não especialistas nas suas áreas de trabalho, em razão
dessa maior capacidade de leitura apurada. Caberia, então, ao técnico (engenheiro,
médico, economista) a tarefa de revisão terminológica e questões de ordem estilístico-
discursivas. Mesmo que esta seja uma visão idealista e “time consuming” quando se trata
do trabalho costumeiro via agências, esta deveria ser uma prática real que poderia, quem
sabe, contribuir para a maior valorização do tradutor no mercado de trabalho, visto que
para o tradutor profissional ingressar na tradução técnica – não sendo técnico-especialista
– os desafios são muitos e as armadilhas também.

6. O TRADUTOR NA PRÁTICA

Muito se engana quem assume a tarefa de traduzir um texto técnico com a crença de que
apenas o conhecimento da terminologia e da língua estrangeira serão ferramentas
suficientes para que se tenha um bom texto final. Se um trabalho de tradução é assim
assumido, será o revisor, também inserido dentro da cadeia do processo tradutório, quem
geralmente se debruçará em tal texto com a tarefa de dar sentido ao texto traduzido.
Revisor este muitas vezes designado de acordo com seu grau de conhecimento na área
específica da tradução em questão. O próprio Azenha (1996), em trabalho realizado para
editoras, afirma ter sido incumbido da tarefa de apenas “rever a sintaxe” visto que a
“terminologia estava 100% correta”. É por isso que, em algumas áreas, mesmo os termos
denominados ‘técnicos’, quando não reestruturados de forma adequada na língua alvo,
chegam a se tornar verdadeiros enigmas para o leitor.

3 skopos – propósito (NORD3, 1991, p.1)

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Em traduções da área médica, por exemplo, os deslizes podem ser confusos e,


muitas vezes, desastrosos. Como citado por Azenha (1996, p.137), “Em se tratando de
traduções técnicas, não é pequeno o anedotário sobre os ‘desastres’ provocados por erros”. Quando
perguntado a um grupo de tradutores profissionais como traduziriam a expressão
presente em um artigo técnico de medicina: “agressive pulmonary toilet”, referente ao
tipo de limpeza pulmonar, conseguimos as seguintes opções:

• tratamento agressivo de congestionamento dos pulmões;


• limpeza pulmonar agressiva;
• toalete pulmonar agressivo;
• ambiente agressivo aos pulmões.

Como constatado na última sugestão dada por um tradutor, o erro de


interpretação pode conduzir o leitor a caminhos muitas vezes bastante diversos daqueles
pretendidos pelo artigo original. Muitas vezes, o termo a ser traduzido possui, se não
tradução cristalizada, características que determinarão a escolha do termo alvo. Ao
traduzirmos para grandes instituições internacionais, como a OTAN, por exemplo,
devemos estar atentos para o fato de que a instituição já possui algumas publicações em
português – de Portugal. Por isso, ao depararmo-nos com a palavra “summit”, tão
corriqueira nos textos da OTAN, precisamos ter em mente qual será o público alvo deste
texto – que determinará se a tradução será “cúpula” ou “cimeira”, esta última mais
comum em Portugal.

Nas traduções da área do turismo, permanece o problema da construção frasal de


acordo com a interpretação do texto de partida. Em um folheto destinado aos turistas em
Santa Catarina, deparamos com a expressão “prazeres da mesa”, referente às iguarias
encontradas no estado. Quando novamente perguntado a um grupo de tradutores
profissionais qual seria a melhor tradução em inglês para a expressão, obtivemos as
seguintes opções:

• pleasures of the table;


• the pleasure of food;
• table pleasures;
• food pleasure;
• gastronomic delights.

Mais uma vez vemos que a construção do termo alvo é crucial para evitar que o
texto se torne empobrecido, ou mesmo hilário, se pensarmos no desvio de interpretação
que algumas sugestões acima poderiam causar.

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Como vimos, a interpretação do texto de partida é igualmente importante tanto


na tradução literária quanto na técnica. Em termos de construção frasal, a tradução técnica
em nada perde para a literária. Afinal, para uma boa tradução – seja ela de que tipo for –
ainda é de suma importância que o tradutor seja um exímio leitor, tanto de literatura
quanto de rótulos de embalagens.

A escolha de palavras, longe de ser determinada de modo aleatório, torna-se


essencial quando o texto original fornece apenas um termo ao qual podemos atribuir
diversos significantes na língua-alvo. Na tradução, essa escolha é fundamental para que o
leitor compreenda o texto da maneira mais próxima possível da (questionável) intenção
do autor. Em uma tradução da área de engenharia, por exemplo, a frase original
“stabilizzatori retrattili idraulici” foi vertida como “estabilizadores telescópicos hidráulicos”.
Havendo, em língua portuguesa, já dicionarizada, a palavra “retrátil”, é curioso
pensarmos nos longínquos caminhos tomados por esse tradutor até chegar a
“telescópico”, embora ambos adjetivos remontem a movimentos semelhantes.

É por esses e outros deslizes que atribuímos importância equivalente para


traduções literárias e técnicas. Talvez o descaso com o qual a tradução técnica é tratada
em livros de teoria da tradução seja pressuposto para que classifiquemos esta atividade
como secundária diante do glamour atribuído às traduções literárias. Embora o mercado
favoreça economicamente as traduções técnicas, estas permanecem quase sempre em
segundo plano nos debates sobre a atividade tradutória.

Contudo, em termos de construção textual, tanto o texto técnico quanto o literário


são objetos desta ourivesaria que é a escrita de textos. Só quem já traduziu textos técnicos
sabe o desafio que se encara ao tentar fazer com que a tradução pareça tão natural e tão
técnica quanto o texto de partida. É preciso diminuir as distâncias, amenizar as
categorizações. Em um mundo onde tudo se reinventa dentro de outros moldes, não é
difícil encontrarmos literatura escrita em caixas de fósforo.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir as reflexões desenvolvidas neste artigo, acreditamos ser necessário mudar a
dimensão da tradução de textos considerados técnicos, do papel do tradutor e das
condições em que o trabalho é realizado. Conforme os dados da pesquisa com o público
leitor, traduzir textos técnicos é, além de uma tarefa fácil e rápida – dadas as condições
facilitadoras que o simples domínio de línguas e conhecimento terminológico impõe –,
uma tarefa reconhecidamente desvalorizada no mercado de tradução em termos de

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processo de trabalho por essas mesmas razões. É necessário um processo maior de


entendimento e negociação por parte de tradutores e contratantes do serviço, a fim de
ambos discutirem juntos alternativas, melhores opções, para caracterizar, conforme nos
diz Azenha, um trabalho conjunto, de equipe. Afinal, é esse mesmo público contratante
que reconhece que o tradutor deve ter um amplo leque de conhecimentos gerais, mas não,
necessariamente, ser especialista na área de que traduz, ainda que isto seja um elemento
facilitador do serviço de tradução.

Propor discussões como esta permitem compreender que o cenário da tradução


precisa mudar no sentido de valorizar não só a profissão em si, como também o
profissional tradutor, seu processo de trabalho e, conseqüentemente, sua remuneração. A
tradução técnica não é, definitivamente, um terreno árido, pois está integrada, como
qualquer outra modalidade textual, “numa realidade tecnológica culturalmente condicionada”
e contextualizada, segundo Azenha (1996). Nesse sentido, este artigo discutiu os
pressupostos que envolvem a modalidade da tradução de textos técnicos; características
dessa modalidade textual, o papel do tradutor ‘técnico’, além de questões terminológicas
e exemplos que ilustram a sensibilidade e a criatividade por parte do tradutor em relação
ao processo tradutório.

REFERÊNCIAS
AUBERT, Francis Henrik. Introdução a Metodologia da Pesquisa Terminológica Bilíngüe. 2. ed.
Cadernos de Terminologia, FFLCH/USP, Humanitas, n. 2, 2001.
AZENHA JR., João. Tradução Técnica e Condicionantes Culturais: Primeiros Passos para um Estudo
Integrado. FFLCH/USP, Humanitas, 1999. 157 p.
______. Tradução técnica, condicionantes culturais e os limites da responsabilidade do tradutor.
Cadernos de Tradução, v.1, n.1, p.137-149, 1996.
BARBOSA, Heloísa Gonçalves. Tradução, mercado e profissão no Brasil. Revista Confluências –
Revista de Tradução Científica e Técnica. n. 3, p. 6-24, nov. 2005.
CABRÉ, Maria Teresa. La Terminología: Representación y Comunicación. Elementos para una teoría de
base comunicativa y otros artículos. 1.ed. Barcelona: Institut Universitani de Lingüística Aplicada,
1999.
EMMEL, Ina. O “Fazer Terminológico X o Fazer Tradutório. Uma Aplicação Prática na área de
Especialidade: Tradutologia”. 1998. Dissertação (Mestrado) - UFSC (inédita).
NORD, Christiane. Text Analysis in Translation. (Tradução de Christiane Nord e Penelope
Sparrow). Amsterdam, Atlanta, GA: Rodopi, 1991.
OTTONI, Paulo. Tradução Manifesta: double bind e acontecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2005.
MAUTHE, G. et al. SF6 Recycling Guide: Reuse of the SF6 gas in Electrical Power Equipment and
Final Disposal. CIGRÉ International Council on Large Electric Systems, CIGRÉ Report, n.17, jul.
1997.

Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 101-113
Silvana Polchlopek, Michelle de Abreu Aio 113

Silvana Polchlopek
Mestre e doutoranda em Estudos da Tradução pela
UFSC. Pesquisa os temas: tradução-jornalística, discurso
jornalístico, cultura e ensino de línguas. É membro do
grupo de pesquisa TRAC - Tradução e Cultura (UFSC).

Michelle de Abreu Aio


Mestranda em Estudos da Tradução pela UFSC.
Pesquisa os temas: tradução jornalística, tradução e
cultura, português brasileiro e europeu. Tradutora
credenciada pelo SINTRA – Sindicato Nacional dos
Tradutores, filiado à FIT – Federação Internacional de
Tradutores. É membro do grupo de pesquisa TRAC -
Tradução e Cultura (UFSC).
http://www.proz.com/profile/879107;
http://translatiocultural.blogspot.com

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