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Carolina

Maria
de Jesus
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Carolina
Maria
de Jesus
uma escritora improvável

Joel Rufino dos Santos

Garamond
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Estúdio Garamond

Revisão
Arthur Almeida

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
DO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S235c
Santos, Joel Rufino dos, 1941-
Carolina Maria de Jesus : uma escritora improvável / Joel Rufino dos
Santos. - Rio de Janeiro : Garamond, 2009.
168p. 14x21 cm

ISBN 978-85-7617-173-7

1. Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977. 2.Escritoras brasileiras - Bio-


grafia. 3. Negros - Brasil - Condições sociais. I. Título. II. Título: uma
escritora improvável

09-5933. CDD: 928.699


CDU: 929:821.134.3(81)
Para José Carlos e Vera Eunice
Sumário

Parelheiros, 9
Alienada, 15
Tempo, 33
Tango, 61
Mãe, 71
Populismo, 79
Fama, 93
Cláudia, 101
Pobre sozinha, 113
Racismo, 127
Queda, 141
Imaginação, 149

Imagens, 157

O que se deve ler, 163


Parelheiros

Carolina Maria de Jesus 


A senhora muito magra saiu pelos fundos da casa, arrastou os pés
até o milharal, seguida por galinhas.
Pensou em caminhar até o fim da plantação, molhar as mãos no seu
riacho. Ao enfiar os pés na lama e perder um chinelo, voltou. O céu
estava baixo, sentiu leve falta de ar. Na soleira da cozinha, já com
vontade de se meter outra vez na cama, o cão lhe pulou em cima,
sujando-a de barro mole.
Possivelmente se lembrou da infância.
A diferença é que naquele tempo, há sessenta anos, nunca estava
só. Em Sacramento chamavam a casa de senzala, mas a escravidão
acabara há tanto tempo que ninguém podia falar dela com autorida-
de. Havia moleques de todo o tipo, negras, caboclas, bugres, criouli-
nhas, raçadas, cor de burro quando foge, sararás, cabo-verdes e até
dois irmãos que chamavam cabeças de ovo, de tão brancos. Pensou
que alegria de pobre é uma: só fazer filhos.
Deitada, puxou a coberta de lã quadriculada até o queixo. Pela vidra-
ça suja, viu os abacateiros que encostavam na casa, os cachos de
banana verde-escuro. Fora talvez a sua melhor ideia, no fim de tan-
tos aborrecimentos, comprar esse lugarzinho em Parelheiros, duas
horas de ônibus da Avenida Nove de Julho. Quando voltava para a
Chácara Coração de Jesus, a sua casa, tinha a sensação de lar, enxer-
gando-a à distância, amarela de janelas verdes, entre coqueiros.
Em vez de bosta seca, estopa, plástico, lata, recolhia agora abacate,
milho, mamão, mandioca. Aqui tinha duas televisões, fotos amare-
ladas na parede da sala, ela com Ademar de Barros, ela com Clarice
Lispector, uma com Jango, que lhe doía por ter pago 600 cruzeiros a
um fotógrafo.

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Pensou em outra alegria de pobre: calor. De raio de sol, fogareiro, de
gruta, de casaco de lã, de queima de trapos, de incêndio de jornal, de
sopa, de caldo verde, até de brasa de cigarro. O filho estranhava que
reclamasse todo dia de comida fria, até farofa só comia quente.
Recordou o colégio Allan Kardec, em Sacramento, o único que fre-
quentara. Um jornalista lhe disse ter sido o primeiro colégio espí-
rita do Brasil – sempre teve medo de espiritismo. Cinco bancos de
cada lado. Um dos meninos, Antônio, seriíssimo, pusera um espe-
lho debaixo da carteira para ver a sua calcinha. Um dia se atracou
com outro por sua causa. Naquele lugar ela passara em branco, sem
nenhum sentimento por alguém. Muitas vezes, dona Lanitinha fora
injusta com ela, exigindo que não viesse com as canelas russas, “Não
tem banha na tua casa?”, a pusera de castigo por retardar a volta do
banheiro, “Tá com caganeira, fica em casa”.
Por que lembrava disso agora? Fora feliz. Tinha pai, mãe, irmã, avô,
não seria pega pelo Pé de Garrafa, o Quibungo mudaria de calçada
quando a encontrasse no caminho. Muitas vezes pensara em como ia
morrer, os que vivem até chegar a hora da morte são heróis.
Aprendera rápido a ler, nunca precisara de régua e palmatória. A
professora a encarregara, duas ou três vezes, de recitar na frente da
classe. Passado tanto tempo ainda sabia de cor:
Amor
O coração é colibri dourado
Das veigas puras do jardim do céu.
Um – tem o mel da granadilha agreste,
Bebe os perfumes, que a bonina deu.

O outro – voa em mais virentes balsas,


Pousa de um rio na rubente flor.
Vive do mel – a que se chama – crenças –,
Vive do aroma – que se diz – amor.

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A classe não aplaudia, dona Lanitinha a olhava sem carinho:
– Muito bem. Só faltou dizer no começo o nome do autor. Diga ago-
ra: “é de Castro Alves, o poeta dos escravos”.
– Não digo.
– E por que não diz? A poesia não é sua.
– Não quero dizer, uai.
– Negrinha atrevida.
Desde então quis escrever. A mãe arranjou emprego numa fazenda,
largou a escola. A vida de cigana começara – Franca, Uberaba, Ribei-
rão Preto, Jardinópolis, Sales Oliveira, Orlândia... A mãe ficou pelo
caminho. E você, sempre atrás de comida, como sobreviveu? Se lhe
perguntassem, responderia: vá ler os meus diários, “já que a barriga
não fica vazia, tentei viver com ar, comecei desmaiar, então eu resol-
vi trabalhar porque eu não queria desistir da vida.” 
Daí a um tempo, que não soube medir, sentiu de novo falta de ar.
Dia seguinte achou melhor mudar para a casa de Zé Carlos, no mes-
mo terreno. Com a filha, Vera Eunice, não se dava bem, reclamava
que Carolina dava moleza a Zé Carlos, sempre cheirando a cachaça,
sem trabalho fixo.
Avisou à nora que ia à cidade, já se sentia melhor. Ia pegar o ônibus,
caiu, rolou num pequeno barranco, a meteram no carro velho.
O dono do carro era Dentista, ou Bombeiro, ou capitão Rancieri, seu
velho conhecido.

 Quarto de despejo: diário de uma favelada, São Paulo, Francisco Alves, 1960, p. 51.

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