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mapeando

diálogos
mapeando
diálogos
ferramentas essenciais
para a mudança social

Marianne Mille Bojer


Heiko Roehl
Marianne Knuth
Colleen Magner

Tradução de Leonora Corsini


Mapping Dialogue: Essential Tools for Social Change by Marianne Mille Bojer, Heiko Roehl,
Marianne Knuth e Colleen Magner.

Copyright © 2008 by Marianne Mille Bojer, Heiko Roehl, Marianne Knuth e Colleen Magner.

Direitos de tradução em português licenciados pelo editor em língua inglesa, Taos Institute
Publications

Publicado por Taos Institute em 2008


www.taosinstitute.net

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma,
seja digital, fotocópia, gravação etc – nem apropriada ou estocada em banco de dados, sem a
autorização dos detentores dos direitos autorais.

Produção editorial
Anna Carla Ferreira
Copidesque
Rodrigo Peixoto
Revisão
Clarissa Luz
Capa, projeto gráfico de miolo e diagramação
Ilustrarte Design e Produção Editorial
Imagem de capa
iStockphoto | johnwoodcock

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M254
Mapeando diálogos : ferramentas essenciais para a mudança social / Marianne
Mille Bojer... [et al.] ; tradução de Leonora Corsini. – Rio de Janeiro : Instituto Noos,
2010.

Anexos
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86132-17-9

1. Facilitação de grupo. 2. Mudança social. 3. Grupos sociais. 4. Comunicação. 5. Comporta-


mento organizacional. I. Bojer, Marianne Miller. II. Instituto Noos.

CDD: 658.4022
CDU: 005.56

Instituto Noos – Instituto de Pesquisas Sistêmicas e Desenvolvimento de Redes Sociais


Rua Álvares Borgerth, 27 – Botafogo – 22270-080
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel./fax: (21) 2197-1500
www.noos.org.br
noos@noos.org.br
A todos cujas vozes precisam ser ouvidas em diálogo.
Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer às várias pessoas que contribuíram para


esta pesquisa com seu apoio, enviando documentos por e-mail, dan-
do seu feedback e/ou conversando pessoalmente ou por telefone.
São elas: Verne Harris, Mothomang Diaho, Naomi Warren,
Shaun Johnson, Elaine McKay, Zelda la Grange, John Samuel,
Busi Dlamini, Doug Reeler, Nomvula Dlamini, Gavin Anders-
son, Ishmael Mkhabela, Njabulo Ndebele, Teddy Nemeroff, Bjorn
Brunstad, Carsten Ohm, Tim Merry, Mogomme Alpheus Masoga,
Myrna Lewis, Zaid Hassan, Nick Wilding, Bob Stilger, Kate Parrot,
Bettye Pruitt, Leon Olsen, Anthony Blake e, por último, mas não
menos importante, Ken e Mary Gergen, que nos encorajaram a
publicar este livro numa das séries do Taos Institute.

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Seguindo o espírito do diálogo, estamos interessados em receber


feedback sobre este livro e sua utilidade para praticantes e profissio-
nais do diálogo. Gostaríamos de continuar reunindo material para
Ferramentas do Diálogo. Qualquer contribuição sobre leituras, li-
vros, artigos, publicações, reflexões, bem como comentários sobre
a sua experiência frente ao conteúdo deste livro será enormemen-
te apreciada. Esperamos receber seus comentários no endereço
mappingdialogue@reospartners.com.
Este processo foi extremamente prazeroso, e ficamos muito im-
pressionados com a quantidade de trabalho que encontramos em
andamento sobre o tema. Estamos ansiosos para continuar esta via-
gem e colocar em prática os novos conhecimentos que adquirimos.

São Paulo/Frankfurt/Harare/Joanesburgo
Marianne Mille Bojer
Heiko Roehl
Marianne Knuth
Colleen Magner
Sumário

Preâmbulo 11
Introdução 13

I. Fundamentos 19
Clareza de propósito 19
Boas perguntas 20
Participação e participantes 21
Estrutura essencial do processo 22
Princípios 24
Seleção das ferramentas 25
O facilitador 25
Espaço físico 31

II. Ferramentas 33
Características do método 33
Propósito do diálogo 35
Contexto do diálogo 36
Investigação Apreciativa 40
Laboratório de Mudança 51
O Círculo 60
Democracia Profunda 71
Busca do Futuro 80
Escola para a Paz Palestino-Israelense 89
Tecnologia do Espaço Aberto 98
Planejamento de Cenários 108
Diálogo Sustentado 119
O World Café 130
Ferramentas adicionais 139
Diálogo de Bohm 139
Conselhos de Cidadãos 142
Comunidades de Prática 144
Ecologia Profunda 145
Facilitação Dinâmica e Criação de Alternativas 146
Grupos Focais 147
10 • Mapeando diálogos

Facilitação Gráfica 148


Jornadas de Aprendizagem 149
Projetos de Escuta e Entrevistas-Diálogo 150
Diálogo Socrático 151
Diálogo por meio de Histórias 151
Teatro do Oprimido 152
Encontro da Cidade do Século XXI 154

III. Epílogo: Conversas Africanas 155

Sobre os autores 161


Anexo A: Visão geral para avaliação do propósito 165
Anexo B: Visão geral para avaliação do contexto 167

Preâmbulo

A complexidade dos desafios atuais e nossa crescente interdepen-


dência demandam que busquemos soluções por meio do engaja-
mento com os outros. A necessidade de uma cultura participativa
e democrática nunca foi tão intensa. Isso se torna evidente ao ana-
lisarmos a situação da democracia no mundo para poder encami-
nhar as demandas e os problemas de seus cidadãos. Os vários pro-
blemas que atingem a sociedade permanecem desatendidos, seja
por uma falha das partes envolvidas no conflito em chegar a um
entendimento, seja pela corrosão das instituições democráticas e
do resultante enfraquecimento da autoridade do governo.

“Sempre procurei ouvir o que cada uma das pessoas en-


gajadas em uma discussão tinha a dizer antes de arriscar
manifestar a minha própria opinião.”
Nelson Mandela

A vida de Nelson Mandela é baseada no diálogo. Por meio de seu


trabalho e do trabalho de outras pessoas, a transição pacífica e ne-
gociada do regime de apartheid para a democracia foi facilitada. O
sucesso da África do Sul neste processo de negociação permanece
sendo um paradigma para o mundo. E tal negociação surgiu da ne-
cessidade de libertar os cidadãos dos grilhões do apartheid e criar
uma sociedade justa para todos, dando conta de todo o seu potencial.
O Centro de Memória e Diálogo da Fundação Nelson Mandela
tem como objetivo desenvolver e alimentar o diálogo em torno do
legado de Mandela. Seu compromisso é utilizar a história, a expe-
riência, os valores, a visão e a liderança de seu fundador para ofere-
cer uma plataforma não partidária ao discurso público e contribuir
na construção de uma sociedade mais justa, fomentando o diálogo
em torno das questões sociais mais críticas e urgentes. É prioritá-
rio obter participação ativa nas tomadas de decisão até mesmo no
plano diretivo e político.
A Fundação tem reunido um conjunto de diálogos e debates
plurais voltados às mais variadas questões, tais como o acesso à
12 • Mapeando diálogos

educação; o acesso ao tratamento antirretroviral para HIV/AIDS


em comunidades carentes de recursos; a situação de crianças órfãs
e vulnerabilizadas pela pobreza e pelo HIV/AIDS; a desigualdade
de gênero; os direitos humanos e o papel da mídia na divulgação
dos problemas sociais que causam forte impacto em nossa socie-
dade, dentre outras.
Este valioso livro de referência sobre metodologias de diálogo
surge no exato momento em que profissionais e demais envolvi-
dos na busca de soluções para problemas sociais recorrentes ne-
cessitam ampliar seus conhecimentos a respeito das ferramentas
e dos instrumentos disponíveis para conquistar uma mudança so-
cial sustentável. Estamos certos de que o leitor se beneficiará deste
livro tanto quanto nós nos beneficiamos.

Doutora Mothomang Diaho


Coordenadora do Programa de Diálogo
Centro de Memória e Diálogo
Fundação Nelson Mandela
Acesse: www.nelsonmandela.org
Introdução

Claro que estávamos animados. Quando nos encontramos, no ve-


rão de 2005, para discutir o apoio ao trabalho do Centro Nelson
Mandela de Memória e Diálogo, nos sentimos envolvidos em um
projeto de grande significado — um projeto que prometia contri-
buir verdadeiramente e fazer a diferença.
Naquele momento, Mille, Marianne e Colleen estavam engajadas
em várias atividades como profissionais do diálogo. Mille estava no
processo de lançamento de um “Laboratório de mudança” multidis-
ciplinar voltado à crise das crianças órfãs e vulneráveis da África do
Sul; Colleen estava bastante atarefada na gestão de um abrangente
programa de treinamento em diálogo em uma conhecida escola de
administração da África do Sul; e Marianne coordenava um inova-
dor centro de aprendizagem em uma aldeia rural do Zimbábue. En-
trementes, Heiko dedicava seus dois últimos anos como consultor
residente na Fundação Nelson Mandela, em Joanesburgo, África do
Sul. Ele recebeu apoio do governo alemão para ajudar no desenvol-
vimento organizacional da fundação por intermédio da Cooperação
Técnica Alemã (German Technical Co-operation — GTZ). Naquele
ano, o comitê de patrocinadores da fundação havia decidido focar
uma parte significativa do trabalho no diálogo — visto como elemen-
to indispensável do legado do fundador. Durante e desde o processo
de transição da África do Sul para a democracia, Nelson Mandela
exibiu uma formidável habilidade para perdoar, aliada à consciência
sobre a importância de escutar todos os lados, um verdadeiro reco-
nhecimento de que todos guardamos uma peça do quebra-cabeça do
futuro e devemos estar envolvidos neste processo de avanço.
Em conjunto com a equipe que gerencia a fundação, focamos
em nossa experiência com diferentes metodologias para criar uma
visão geral dos vários instrumentos de diálogo, suas características
específicas, vantagens e limites. Queríamos ter certeza de que se-
ria um recurso prático e utilizável — não um exercício acadêmico
— e, por isso, buscamos apresentar estudos de caso ilustrativos,
checklists de fácil acesso e uma sessão de avaliação global das ferra-
mentas apresentadas, para que os leitores pudessem determinar a
melhor ferramenta para cada situação.
14 • Mapeando diálogos

Além do propósito imediato de explorar as diferentes maneiras


pelas quais o diálogo pode ser usado pela fundação nos desafios
sociais na África do Sul, esperamos que este material seja útil a
qualquer pessoa que compartilhe do nosso interesse em aumentar
a qualidade das conversas humanas.
O resultado foi um relatório intitulado “Mapeando o diálogo:
projeto de pesquisa perfilando ferramentas e processos de diálogo
para transformação social”. Decidimos tornar o relatório acessí-
vel a um maior número de pessoas, disponibilizando-o no site da
rede internacional Pioneers of Change, o que acabou sendo uma
excelente ideia. O relatório conseguiu captar atenção significativa.
Recebemos comentários bastante positivos e encorajadores de to-
das as partes do mundo. Muitas comunidades envolvidas com o
desenvolvimento social recomendaram nosso estudo e incluíram
o link nas suas páginas.
No entanto, sempre estivemos conscientes de que a internet
não chega a todos os lugares. Além disso, sabíamos que talvez não
atingíssemos os profissionais que preferem levar um livro quando
saem a campo. Assim nasceu a ideia de publicar este livro, em um
pequeno café em Melville, Joanesburgo, no inverno de 2006.

“A resposta é sempre uma parte da estrada que está atrás


de você. Apenas questões levam ao futuro.”
Jostein Gaarder

O mundo moderno adora respostas. Nós gostamos de resolver ra-


pidamente os problemas, gostamos de ter uma ideia precisa do que
está a nossa frente. Gostamos de saber o que fazer. Não queremos
“reinventar a roda” nem “desperdiçar nosso tempo”. Quando temos
as respostas ou inventamos uma roda, tudo o que queremos é poder
passar essa informação para os outros por meio da mídia, de progra-
mas de treinamento nos quais os professores transmitem as respos-
tas aos alunos, ou mesmo por meio de conferências com especialistas
para centenas de ouvintes (ou pessoas que fingem ouvir). Esse tipo de
abordagem da conversação humana pode ser útil em determinadas
situações, mas, por duas razões, tornou-se particularmente proble-
mático, para lidar com os desafios sociais do século XXI.
Em primeiro lugar, vivemos em um mundo cada vez mais com-
plexo e interdependente, onde as respostas têm vida curta. Nem
todos os problemas do nosso tempo são complexos, mas a maioria
Introdução • 15

deles, ou pelo menos todos os relacionados com as questões so-


ciais mais prementes, são. Pobreza, HIV/AIDS e criminalidade
são exemplos perfeitos.
Em segundo lugar, as pessoas parecem ter um desejo ineren-
te de resolver os seus próprios problemas. Os seres humanos têm
um vívido e profundo ímpeto por liberdade e autodeterminação.
Acreditamos que, em determinadas circunstâncias, as pessoas
normalmente têm mais recursos do que imaginam para encontrar
soluções próprias aos problemas que enfrentam. Quando fórmu-
las pré-fabricadas são importadas ou impostas desde fora, encon-
tram resistência e, em geral, fracassam. Em parte, por não serem
adequadas ao contexto específico, e, em grande medida, por não
serem entendidas por quem não participa do processo ou não foi
consultado nas decisões tomadas.
Mesmo que apenas por essas duas razões, nós, agentes de mu-
dança, devemos ser adeptos a fazer perguntas, bem como a con-
versar e escutar os outros. Essas são habilidades muito antigas.
Durante milênios, cidadãos de todo o mundo trabalharam coleti-
vamente para superar seus desafios, criando soluções por meio da
conversa e do diálogo. No entanto, muitos de nós parecem ter se
esquecido de como se engajar, como estar presentes em conversas.
Nesses tempos de saturação de informação, de comunicação ele-
trônica, de racionalidade científica e complexidade organizacional,
às vezes temos a sensação de que já não sabemos mais conversar
uns com os outros.
Nos últimos séculos, a quantidade de tempo e recursos inves-
tidos globalmente no desenvolvimento tecnológico é inconcebível.
Os resultados que hoje observamos são igualmente incríveis. Ao
iniciarmos este novo século, temos condições de chegar às origens
do universo usando telescópios baseados no espaço; em laboratórios
de física, podemos descobrir o que acontece quando as menores das
menores partículas, os prótons, colidem umas contra as outras; e
podemos nos surpreender com incontáveis outras maravilhas que,
através dos séculos, vêm sendo incansavelmente criadas pelo esfor-
ço dos cientistas. Ao mesmo tempo, é irônico que, na maioria das
vezes, ainda nos comuniquemos e solucionemos os problemas exa-
tamente como há centenas de anos. Ou até de maneira pior. Olhan-
do para o mundo em 2008, o processo de evolução da capacidade de
conversa humana ainda parece ter um longo caminho pela frente.
16 • Mapeando diálogos

Como usar este livro

Navegando no campo da conversa e do diálogo, nos pareceu evi-


dente que trata-se de um termo muito amplo. Em uma das entre-
vistas que deram base a este livro, foi dito que o diálogo inclui o
diálogo consigo mesmo, o diálogo com a natureza, o diálogo com o
passado e com o futuro, e também o diálogo online. Para manter-
mos o foco, decidimos delimitar o tema centrando-nos nos méto-
dos de diálogo aplicáveis aos encontros presenciais de grupos de pessoas
que se reúnem para tratar dos desafios sociais coletivos.
As abordagens (ou ferramentas) que selecionamos seguin-
do esse foco são diferenciadas em vários aspectos. Algumas são
destinadas a pequenos grupos de vinte pessoas, outras podem ser
usadas com grupos de 1.200 e até de 5 mil pessoas em diálogo
simultâneo. Algumas focam na exploração e na resolução de con-
flitos e diferenças, enquanto outras enfatizam o olhar para o que
está funcionando e sobre o que as pessoas concordam. Algumas
são explicitamente para diálogos entre grupos, enquanto outras po-
dem requerer que cada um dos participantes esteja presente, repre-
sentando a si mesmo como indivíduo. No entanto, ao analisarmos
transversalmente todos esses métodos de diálogo, percebemos a
emergência de alguns padrões.
Todas as ferramentas visam à facilitação da comunicação fran-
ca, da fala honesta e da escuta genuína. Elas permitem que as pes-
soas se responsabilizem por seu próprio aprendizado e por suas
próprias ideias. Criam um espaço seguro — ou um “contêiner”
— para que seja possível trazer à tona suposições e hipóteses, para
questionar suas percepções, seus julgamentos ou suas visões de
mundo, bem como para mudar o modo de pensar. Essas ferra-
mentas geram ideias ou soluções que ultrapassam o que já tinha
sido pensado, criam um nível diferente de entendimento dos seres
humanos e de seus problemas, e favorecem formas de olhar mais
contextuais e holísticas.
Os vários métodos de diálogo hoje disponíveis surgiram em
diferentes situações, mas sempre em resposta a necessidades e
descobertas bastante similares. São parte de uma virada mais am-
pla, resultante do aumento da complexidade e da diversidade, ou
surgem quando nos tornamos mais conscientes de nossa interde-
Introdução • 17

pendência e da necessidade de escutar o outro, de entender e de


colaborar.
Este livro engloba a análise aprofundada de dez métodos de
diálogo, bem como análises mais superficiais de outros métodos,
e está organizado em três partes:

• Na primeira parte, Fundamentos, falamos sobre os funda-


mentos gerais para um bom processo de diálogo. Alguns
desses aspectos constituem uma caixa de ferramentas bási-
ca e devem ser lidos antes das demais partes do livro.
• A segunda parte expõe as ferramentas propriamente di-
tas. Nesta seção, o leitor encontrará explicações detalhadas
sobre os dez métodos, bem como descrições sintéticas de
ferramentas adicionais. Cada um dos dez métodos contém
uma apresentação básica com as características específicas
da ferramenta — sua ficha de identidade —, uma revisão
das aplicações, um exemplo e nossos comentários subjeti-
vos. Os métodos são apresentados em ordem alfabética.
• Finalmente, no Epílogo, honramos a tradição africana da
conversa, recuperando as raízes e os legados de vários des-
ses processos.

Cada uma das ferramentas de diálogo apresentadas a seguir tem uma


história. Muitas surgiram a partir de uma pergunta feita por alguém.

• Já que os coffee breaks parecem ser a parte mais interessante e


proveitosa da conferência, por que não desenhar todo o encontro
para que este se pareça com um coffee break?
• O que perdemos quando aceitamos as decisões da maioria, sem
escutar o que a minoria tem a dizer?
• De que maneira as perguntas que fazemos moldam nossa reali-
dade?
• Como criar uma conversa em rede espelhada na forma como as pes-
soas normalmente se comunicam?
• Por que repetir os mesmos rituais de seminários e conferências
quando eles nos mantêm passivos e limitam nossa criatividade?
• Por que não somos capazes de incluir a inteligência coletiva de cen-
tenas de pessoas e só selecionamos e escutamos algumas poucas
vozes de especialistas?
18 • Mapeando diálogos

Dicionário do diálogo
A definição de dicionário mais corrente para diálogo é simplesmente:
interação entre duas ou mais pessoas. Para os profissionais do diálo-
go, no entanto, o significado é bem mais profundo e distinto. David
Bohm voltou às origens etimológicas da palavra, que deriva do ra-
dical grego “dia”, que significa “através”; e “logos”, que equivale à
“palavra” ou “significado”; assim, sua definição de diálogo é: signifi-
cado que flui através das pessoas. Tal acepção mais ampla engloba
elementos como ênfase nas questões, nas perguntas, na cocriação,
na escuta, na revelação das suposições de cada um, na suspensão do
julgamento e numa busca coletiva pela verdade. Bill Isaacs diz que o
diálogo é conversa “com um centro, não com lados”.
O que o diálogo não é?
Advocacy. Advocacy é o ato de pedir ou argumentar fortemente em
favor de uma determinada causa, ideia ou política.
Conferência. Conferência é uma reunião formal para consulta ou
discussão.
Consulta. Numa consulta, a parte com poder para atuar solicita a
outra pessoa ou grupo aconselhamento ou opinião para tomar uma
decisão. O tomador de decisão geralmente retém o poder de aceitar
ou não o conselho.
Debate. Um debate é uma discussão normalmente focada em duas
perspectivas opostas, para que um lado saia vitorioso. O lado ganha-
dor é aquele com as melhores articulações, ideias e argumentos.
Discussão. De maneira oposta ao diálogo, Bohm aponta que a raiz
da palavra discussão, “cuss” equivale à raiz de “percussão” e “con-
cussão” — significando quebrar, romper. A discussão é geralmente
uma consideração racional e analítica de um tópico por um grupo,
quebrando o problema em suas partes constitutivas para melhor
entendê-lo.
Negociação. Uma negociação é uma discussão que tem o objetivo
de produzir um acordo. Os diferentes lados trazem seus interesses
à mesa de negociações, que acaba tendo um caráter transacional e
de barganha.
Tertúlia. É uma reunião periódica, não estruturada e informal que
envolve uma conversa sem um objetivo concreto.
I. Fundamentos

Os métodos de diálogo descritos neste livro aparecem como fer-


ramentas separadas, independentes, cada um com sua própria
história, propósito e atributos. Nesta seção, pretendemos apagar
tal ideia apresentando alguns dos princípios subjacentes aos pro-
cessos de diálogos bem-sucedidos. Esses princípios indicam como
as ferramentas, na verdade, estão conectadas, e o que é necessário
para desenhar processos integrais de mudança e aprendizado, seja
em grupos reduzidos ou em agrupamentos e processos que envol-
vam centenas de pessoas.
Nesta seção, buscamos guiar o processo reflexivo enquanto o
leitor define o seu projeto de trabalho, escolhendo os processos, os
fluxos e quais, entre várias ferramentas para diálogo e interação,
serão as mais indicadas para sua situação específica.

Clareza de propósito

Antes de decidir quais ferramentas utilizar, precisamos saber exa-


tamente quais são as nossas intenções: para que estamos reunindo
esse grupo de pessoas? Que propósitos estão por trás desse pro-
cesso específico de mudança? O que significa tudo isso? Muitas
vezes, começamos um processo sem saber exatamente o porquê
ou apoiados em razões inadequadas ou fora do contexto particular
e das necessidades dos envolvidos. Todas, ou pelo menos a maior
parte das ferramentas que apresentamos, trazem subjacente o
princípio essencial da clareza de propósito.

“A clareza de propósito é uma doce arma contra a con-


fusão.”
Toke Moeller

Antes, porém, de esclarecer qual o verdadeiro propósito, talvez


seja necessário conectar-se com as necessidades que o processo
quer responder. Quais as necessidades específicas que fizeram
20 • Mapeando diálogos

com que nos reuníssemos? O que pretendemos conquistar ao res-


ponder a tais necessidades? Um propósito claro pode e deve surgir
de uma necessidade verdadeira, genuína. É também importante
avaliar se o investimento de tempo e atenção que exigimos dos
participantes corresponde à percepção que eles têm sobre a possi-
bilidade de o processo atender suas necessidades e a importância
que eles dão para que essa demanda seja atendida.
O propósito precisa ser atrativo a todos os participantes. É
muito importante não formulá-lo em termos demasiadamente
específicos ou estruturados, do tipo que pressupõe metas quan-
tificáveis. Objetivos abertamente explícitos e expectativas muito
específicas com relação a algum resultado tendem a se tornar
predominantes no processo, e podem se tornar um obstáculo à
abertura e ao diálogo. Alguns proponentes e praticantes do diá-
logo enfatizam que, por um lado, o processo deve ser completa-
mente aberto, não atrelado a resultados específicos; por outro, é
sempre necessário ter clareza do motivo que levou à reunião do
grupo.

Boas perguntas

O poder de uma boa pergunta não deve ser subestimado. As boas


perguntas são catalíticas. Elas abrem um campo de aprendizado,
estimulam processos de pensamento, curiosidade e desejo de se
engajar em um grupo; além disso, são um elemento central na
definição e na distinção do diálogo.
Normalmente, chegamos a uma reunião com respostas, ex-
pertise, tópicos a serem discutidos, além de posições a serem de-
fendidas ou negociadas. Entretanto, no diálogo, as perguntas são,
em muitos aspectos, mais poderosas do que as respostas. As per-
guntas nos levam ao futuro, ao passo que as respostas, apesar de
importantes, remetem ao passado. Uma pergunta que interesse
aos participantes pode disparar todo um processo de aprendizado
e mudança. Ela tem o poder de abrir o campo e reforçar o engaja-
mento a temas significativos. Bill Isaacs descreve o diálogo como
uma “conversa com um centro, não lados”, e este “centro” é, em
geral, criado por uma ou várias boas perguntas.
Fundamentos • 21

É uma arte conseguir identificar perguntas poderosas que des-


pertem interesse e tenham significado em um grupo de pessoas,
comunidade ou país. Tais perguntas podem ganhar vida dentro de
nós à medida que trabalhamos com elas. As maiores questões vêm
diretamente do campo (dos corações e das mentes) das pessoas en-
volvidas. Boas perguntas têm o potencial de focar os diálogos so-
bre temas complexos sem aprisioná-los. Por exemplo, talvez exista
uma ou mais questões dominantes orientando o processo inteiro.
Ou ainda, uma pergunta inicial pode ser formulada, refinada e
utilizada como material para reflexão conjunta. As perguntas são
parte integrante da grande maioria das ferramentas que apresen-
tamos neste livro.

Participação e participantes

Nosso trabalho de diálogo tem como base a crença e a valorização


da inteligência e da sabedoria que se fazem acessíveis por inter-
médio de cada pessoa com a qual nos engajamos e conectamos.
Dependendo do propósito, serão necessários diferentes níveis e
formas de participação para atingir um diálogo bem-sucedido.
Muitos métodos de diálogo funcionam de maneira a transformar
uma situação de fragmentação em uma situação de conexão e
completude, por meio de práticas de inclusão. Quando encontra-
mos modos de conectar e incluir diferentes vozes e partes de um
sistema, novas e surpreendentes descobertas podem ser feitas.

Questões que podem ajudar a esclarecer sobre a participação e os


participantes de um diálogo:

• Segundo o nosso propósito, quem deve ser envolvido?


• O que pretendemos fazer e conquistar com eles?
• O que cada um oferece e o que espera ganhar?
• Acreditamos que cada participante guarda uma peça valiosa do
quebra-cabeça que queremos montar?
• Quais as melhores formas de engajá-los e envolvê-los?
22 • Mapeando diálogos

Se o tempo e os recursos permitirem, pode fazer uma grande


diferença entrevistar todos ou alguns dos participantes antes de
um workshop. As vantagens são muitas: estabelece as bases para o
planejamento, indica aos participantes que suas vozes são ouvidas
e faz com que todos se envolvam na tarefa de pensar previamente
sobre o tópico que será alvo de discussão.
O nível máximo de inclusão é atingido quando os participantes
assumem o lugar de coanfitriões. Nesse momento, a liderança e
o apoio do grupo são completamente compartilhados. O que ob-
viamente não é possível quando temos centenas de participantes.
No entanto, imaginar como seria o máximo de envolvimento e en-
gajamento para o grupo pode nos ajudar a aproveitar, da melhor
maneira possível, o tempo e os recursos dos participantes.

Estrutura essencial do processo

Existe um ritmo subjacente a todos os processos de mudança


bem-sucedidos. Alguns dos processos e das ferramentas retrata-
dos aqui já integraram seu entendimento próprio de mudanças
profundas ao desenho dos workshops propostos. Mas, para certas
ferramentas, é preciso pensar no fluxo geral do workshop e no
ritmo diário deste para dar suporte aos nossos propósitos. Vários
modelos podem nos ajudar a pensar sobre a estrutura mais ade-
quada aos nossos objetivos. Uma versão simples é o modelo de
divergência e convergência. A fase divergente de um processo é
o momento de abertura de possibilidades, questões ou temas a
serem abordados. Trata-se de gerar alternativas e agregar diver-
sos pontos de vista, sempre permitindo que haja discordância e
suspendendo o julgamento. Costumamos ter medo de nos abrir-
mos realmente para permitir que o máximo da divergência ocor-
ra, pois ficamos desconfortáveis ou mesmo apreensivos frente
à possibilidade de receber um acúmulo de ideias e perspectivas
muito novas ou divergentes. Contudo, quanto maior a divergên-
cia no início de um processo, quanto mais liberdade para expres-
sar ideias “loucas”, maior a chance de surgirem resultados sur-
preendentes e inovadores.
Fundamentos • 23

O fluxo da divergência

No entanto, quando ocorre apenas divergência, corremos o ris-


co de gerar frustração e não alcançar resultados positivos. A con-
vergência é, portanto, um elemento importante de se planejar e
desenhar na construção de todo o processo. Trata-se de encontrar
(e explicitar) conclusões, insights e novos passos do processo e,
talvez, compreender as novas questões coletivas que surgiram.
Ambos os movimentos, de divergência e convergência, podem
acontecer muitas vezes durante um processo, e talvez gerem um
padrão. Algumas ferramentas são mais adequadas para suportar a
divergência, outras são mais apropriadas para a convergência.
Os processos de diálogo transformativos que realmente abrem
espaço para a divergência costumam incluir uma “zona de tensão”1
ou um “denso nevoeiro”. A “zona de tensão” é um lugar de certa
forma doloroso, onde tudo parece ficar um pouco caótico, ininte-
ligível e desestruturado. Algumas vezes, é um momento de con-
flito, “tempestuoso”; outras vezes, é caracterizado pela confusão
e pela sensação de ser dominado pela complexidade, ou mesmo
pelo desespero. Trata-se de uma parte indispensável a qualquer
processo com certo grau de profundidade. Nela, a inovação e a su-
peração têm uma chance real de ocorrer. Quando os membros do
grupo conseguem sustentar a confusão por um momento e depois
entram num processo de convergência, eles podem experimentar
mudanças significativas. Por outro lado, se a divergência é menor,
e a convergência for prematura, o potencial para mudanças ex-
pressivas será consequentemente menor.

1
Groan Zone no original (N.T.).
24 • Mapeando diálogos

Em suas arquiteturas internas, as várias ferramentas enfatizam


diferentes estruturas de processo. Algumas possuem uma arquite-
tura distinta e um fluxo a ela associado, seguindo uma sequência
narrativa e um conjunto de fases através das quais os participantes
vão se movimentando. Os processos do Laboratório de Mudan-
ça, por exemplo, operam com uma estrutura bem específica, com
movimentos amplos que seguem o princípio geral de permitir
uma divergência inicial para depois trabalhar um momento de
convergência, com uma fase de “emergência” no meio. Já a Busca
do Futuro atua olhando para o passado, depois para o presente e,
finalmente, para o futuro. Outros métodos, como World Café ou
Círculo, focam menos no fluxo e podem ser facilmente incorpora-
dos como ferramentas em muitos processos.

Princípios

Os princípios definem como gostaríamos de estar juntos ao bus-


carmos nosso propósito. Eles podem ser usados para desenhar
e guiar o processo e o envolvimento dos participantes. Mesmo
quando apenas nos reunimos como um grupo informal para uma
conversa de poucas horas, é importante fazer alguns acordos so-
bre como queremos estar juntos. Quanto maior ou mais abran-
gente uma iniciativa, mais importante será trabalhar os princípios
em grupo. A maioria das ferramentas aqui apresentadas traz um
conjunto de princípios agregados, e este é um elemento funda-
mental para o seu sucesso. Alguns exemplos: “Liderança rotativa”
(Círculo), “Acessando o conhecimento da minoria” (Democracia
Profunda), “Explorando questões que importam” (World Café) e
“Qualquer um que chegar é a pessoa certa” (Espaço Aberto).
Normalmente, o coordenador compartilhará (ou cocriará) o
propósito e os princípios com os participantes, antes ou no iní-
cio de cada evento ou processo, e permitirá sua evolução junto ao
grupo ampliado de participantes sempre que possível. O grupo,
e não apenas o coordenador, deve se “apropriar” do propósito e
dos princípios. Em conjunto, um propósito bem delineado, aliado
aos princípios atua como uma bússola que nos ajuda a navegar e
tomar as decisões necessárias à medida que avançamos.
Fundamentos • 25

Seleção das ferramentas

As ferramentas costumam auxiliar e informar o comportamento


de quem as usa. O conhecimento de poucas pode rapidamente
levar a uma dependência. As ferramentas que descrevemos aqui
têm suas próprias histórias, filosofias e visões de mundo. Convi-
dam o usuário a se identificar com elas e a compartilhar o modo
como encaram o mundo, definindo problemas e oferecendo so-
luções. Se adquirirmos conhecimento suficiente para usar uma
ferramenta, nos sentiremos confortáveis e seguros. Somos capa-
zes de explicar o que acontece por meio das interpretações que a
ferramenta nos oferece. Muitas ferramentas de diálogo apregoam
terem aplicabilidade universal em diferentes culturas, tamanhos
de grupos e situações.
Tal processo surge sempre que desenvolvemos habilidades em
relação a uma ferramenta, mas envolve também um grande risco,
que é bem expresso no ditado: “Com um martelo na mão, o mun-
do inteiro se assemelha a um prego.” O modo ideal de lidar com
o problema é fazer uma seleção consciente e usar as ferramentas,
deixando, antes de mais nada, o propósito do seu uso sempre à
mão. Além disso, para poder se beneficiar do potencial de uma fer-
ramenta, é muito importante conhecer as suas limitações. A busca
contínua de novos métodos e a ampliação de repertórios mistos
são ações que também ajudam.

O facilitador

As ferramentas, o modelo, o processo: é muito fácil que o cui-


dado com esses elementos passem a nos preocupar exagerada-
mente, mas a ferramenta mais importante que temos a nossa
disposição como facilitadores somos nós mesmos e a nossa pre-
sença. O que, evidentemente, não quer dizer que os outros não
contam. Trata-se simplesmente de afirmar que a importância da
preparação, da presença e do estado mental do facilitador são
aspectos cruciais.
26 • Mapeando diálogos

Como coordenador e anfitrião de grupos, o facilitador exerce influên-


cia no espaço e no grupo de muitas formas, visíveis e invisíveis.
Ainda que muitos detalhes possam ser planejados antecipa-
damente, um facilitador bem treinado responderá a tudo o que
surgir. Em um trabalho de diálogo, o facilitador não poderá se apri-
sionar a uma estrutura ou a um cronograma pré-determinado, que
deva ser cumprido a qualquer custo. Para responder criativamente
à medida que o processo avança, é necessária uma boa preparação
aliada à flexibilidade. Talvez soe um pouco como laissez-faire, mas,
na verdade, requer uma grande clareza e habilidade de escuta fren-
te ao grupo e ao processo. É nesse ponto que descobrimos o valor
do propósito e dos princípios: um propósito claro e um conjunto
de princípios vivos e encarnados no facilitador permitirão que ele
improvise e responda com uma liberdade conectada a uma direção
clara.
A habilidade de se conectar com clareza e de maneira firme
às intenções e aos princípios de um encontro ou processo está
diretamente relacionada à quão integralmente presente o facilita-
dor é capaz de estar. Muitos dos mais bem-sucedidos facilitadores
que conhecemos investem tempo em práticas de meditação e em
exercícios que os ajudam a sintonizar com a intenção de servir ao
grupo antes de assumir o papel de facilitador. Para ter um bom
desempenho, o facilitador deve desenvolver a humildade mas tam-
bém a coragem para sentir o fluxo seguir. Se o facilitador demons-
tra esse tipo de confiança e é uma pessoa centrada, obterá ainda
mais legitimidade e confiança dos participantes.
Qualidades básicas do facilitador de diálogo:

• Forte habilidade de escuta. Os facilitadores precisam ser


capazes de escutar atentamente durante todas as fases
do processo. Tal habilidade lhe permitirá desenhar um
processo adequado, espelhando aos participantes o que
acontece e ajudando o grupo a se tornar mais consciente.
A perícia na escuta depende, em parte, da habilidade dos
facilitadores de se descolarem de suas próprias agendas
pré-estabelecidas.
Fundamentos • 27

• Autoconsciência e autenticidade. Tanto quanto prestar aten-


ção ao grupo, bons facilitadores de diálogo devem ser capa-
zes de entender o que acontece com eles próprios quando
estão com o grupo. Esta é uma das grandes meta-habilida-
des da facilitação, particularmente importante em proces-
sos menos estruturados, mais abertos e mais psicologica-
mente orientados. Os facilitadores basicamente “seguram”
o grupo, por isso devem evitar projetar suas próprias ques-
tões e inseguranças ao lidarem com as projeções do grupo
em relação a eles. Autoconsciência tem a ver com a habili-
dade de ser honesto em relação às limitações pessoais (saber
o que pode ou não fazer) e a disposição de, quando for o
momento, deixar o processo nas mãos do grupo.
• Fazer boas perguntas. Como já foi mencionado, na nossa
área, fazer boas perguntas é uma espécie de arte. As ques-
tões efetivas têm o poder de acordar os participantes, me-
xer com o que é mais importante para eles, deixar visível a
sua interdependência na busca de respostas. Podem trazer
à tona novos insights ou ideias em que os participantes
ainda não haviam pensado sobre o tema em foco. A sim-
ples entonação de uma pergunta pode ajudar a determinar
se as pessoas se sentem desesperançosas, desesperadas ou
curiosas, com energia, fortes e excitadas.
• Uma abordagem holística. Ser capaz de determinar o méto-
do a ser utilizado em uma dada situação, ou se o método
preferido é aplicável, requer do facilitador a compreensão
do contexto particular. Adotar uma abordagem holística
também diz respeito a ser capaz de enxergar padrões, aju-
dando o grupo a se conectar enquanto trabalha e a reconhe-
cer que múltiplas inteligências estão em ação. Quão mais
integralmente as pessoas sejam convidadas ao diálogo,
mais capazes serão de engajar-se de forma equitativa.

Escolher o facilitador certo é fundamental, mas, assim como os


métodos, tal escolha dependerá da situação. A seguir, apresenta-
mos quatro critérios básicos para avaliar facilitadores.
28 • Mapeando diálogos

Foco no conhecimento Foco no conhecimento


do conteúdo do processo

Uma questão bastante comum entre facilitadores gira em torno do


quanto eles precisam saber a respeito do conteúdo que o grupo dis-
cute. Por exemplo, se um facilitador é contratado para coordenar
um diálogo sobre HIV/AIDS, deve conhecer as estatísticas, os envol-
vidos, as questões inter-relacionadas ou as políticas que estão sen-
do implementadas com relação ao problema? Num contexto mais
amplo, quando tais detalhes entram no diálogo, o facilitador deve
ter conhecimento prévio sobre um setor da economia ou campo de
ação institucional? Ou é suficiente conhecer caminhos que permi-
tam aos participantes processar suas próprias informações e chegar
às suas próprias respostas?
Alguns facilitadores preferem conhecer um pouco do conteúdo que
estão trabalhando a fim de ajudar o grupo a encontrar padrões e
construir suas conclusões; já outros acreditam que a neutralidade e
a objetividade por parte do facilitador são fundamentais e que a falta
de conhecimento sobre a questão que está sendo discutida de fato
ajuda neste sentido. O tipo de facilitador indicado a cada processo
dependerá em grande parte da atenção necessária para que o grupo
processe as informações. Alguns grupos necessitam de um peque-
no apoio às suas conversas, e, neste caso, seria mais indicado um
facilitador não muito envolvido com o conteúdo das discussões.
Fundamentos • 29

Diretivo e estruturado Seguindo o fluxo

Alguns facilitadores coconstruirão uma agenda, em geral com o clien-


te ou o coordenador do grupo, para depois guiar os participantes pelo
processo. Busca do Futuro ou Processos em Cenário são exemplos de
métodos bem estruturados. Ao passar de fase, o grupo se exercita para
a próxima, e existe um limite de tempo para cada passo. O facilitador
deve ser capaz de dar suporte aos movimentos do grupo durante o
processo em uma sequência específica.
Já outros métodos exigem que os facilitadores sejam capazes de seguir
o fluxo e permitir que o processo dite o seu próprio ritmo. Nesses casos,
ninguém sabe exatamente o que deve acontecer para que um grupo siga
o processo (menos ainda um facilitador externo).
Esse tipo de facilitador virá e responderá às necessidades do grupo,
oferecendo os métodos e as abordagens relevantes em cada mo-
mento.
O Diálogo Sustentado, por exemplo, requer um facilitador que pos-
sa dar suporte ao grupo em qualquer direção que ele decida seguir.
Certas vezes, o facilitador é atraído por abordagens específicas e
ajuda o grupo a revelar o que precisa ser revelado. Mais uma vez, tal
abordagem pode ser a mais apropriada por adaptar-se melhor às ne-
cessidades específicas de cada grupo, mas ela requer um alto grau
de confiança no facilitador, e vontade, por parte dos participantes,
de se engajar em um processo aberto.
30 • Mapeando diálogos

Nenhuma expertise Forte expertise


psicológica psicológica

No centro do diálogo, os temas podem se situar em diferentes ní-


veis. Alguns são profundamente psicológicos, derivados dos relacio-
namentos dentro do grupo, e podem referir-se a traumas passados
dos participantes ou a atuais inseguranças. Os facilitadores podem
acabar entrando em situações que se aproximam da terapia. Alguns
definem para si mesmos um limite claro, enfatizando que a facilita-
ção não é aconselhamento ou terapia, e tentando conduzir a con-
versa para temas mais relacionados ao conteúdo que o grupo está
trabalhando. Já outros acreditam que os fatores psicológicos estão
profundamente imbricados com a habilidade do grupo em resolver
seus problemas cotidianos, e entram nesses aspectos para tentar
trabalhá-los.
São dois conjuntos bem diferentes de habilidades. O tipo de facilita-
dor a ser escolhido dependerá da necessidade do grupo de trabalhar
no nível do “inconsciente grupal” ou de focar mais nas questões
conscientes, racionais ou de ordem prática, fora dessa esfera psico-
lógica. Trabalhando com um facilitador com grande conhecimento
e prática psicológica, é provável que o grupo acabe entrando nessa
esfera — muitas vezes, mesmo sem querer. Se um facilitador não
possui essas competências, o grupo pode terminar não entrando
nessas questões, mesmo querendo.
Em virtude da natureza do diálogo, as pessoas podem ser levadas a
colocar em xeque suas crenças particulares, o que pode ser desesta-
bilizador no processo. A Democracia Profunda é a abordagem mais
orientada psicologicamente entre as descritas neste livro, embora a
Escola para a Paz também se beneficie de facilitadores com algum
conhecimento sobre os processos psicológicos. O Círculo e Diálogo
Sustentado também podem oferecer aos participantes um ponto de
significativa vulnerabilidade, mas, neste caso, bem como nas outras
abordagens, a competência terapêutica não é requisito obrigatório.
Fundamentos • 31

Facilitação em equipe Facilitação solo

Alguns facilitadores preferem um trabalho “solo” porque assim po-


dem ter mais liberdade para improvisar e seguir sua intuição, sem
ter que checar com os parceiros. Os facilitadores solo geralmente
descrevem seu trabalho como uma forma de arte; focam na dinâ-
mica entre eles próprios e o grupo, em contraste com o trabalho de
facilitação em equipe.
Na outra extremidade estão os que preferem construir uma equi-
pe com outros facilitadores para poderem se complementar. O
trabalho em equipe pode oferecer um equilíbrio entre alguns dos
critérios mencionados nesta seção. Pode fazer sentido, por exem-
plo, combinar uma facilitação em equipe quando um dos membros
tem mais competências nos processos, enquanto o outro é melhor
nos conteúdos; um é mais talhado para temáticas sociais, e o ou-
tro acompanha melhor as dinâmicas psicológicas; ou um consegue
ter a visão panorâmica de para onde as coisas estão caminhando,
enquanto o outro pode contribuir com sua experiência em alguma
técnica particular.
Entre os praticantes do Diálogo Sustentado, existe uma avaliação
predominante de que as melhores equipes moderadoras são as do
tipo insider/outsider. O insider é o elemento com familiaridade frente
ao conteúdo, à cultura, às dinâmicas de personalidade do grupo,
enquanto o outsider traz na bagagem seu conhecimento do processo
e sua habilidade em ser objetivo e fazer perguntas “idiotas”.

Espaço físico

As instalações típicas de muitas salas de reunião não são convida-


tivas ao diálogo, mas continuamos a usá-las por hábito. Ficamos
mais preocupados com a agenda e menos com a arrumação do
ambiente ou da sala. No entanto, o espaço físico exerce uma enor-
me — ainda que invisível — influência nos rumos do processo.
Quando as pessoas se reúnem em uma sala atraente aos sentidos,
32 • Mapeando diálogos

algo acontece. É como se estivessem sendo mais do que simples-


mente convidadas a entrar. Antes que as conversas tenham início,
antes que os propósitos sejam apresentados, algo já está sendo
afetado.

O espaço físico também pode sustentar a inteligência coletiva


do grupo enquanto esta evolui. É importante tentar criar esse tipo
de ambiente em todas as conversas e processos de diálogo que
iniciemos.

As perguntas a seguir podem ajudar a encontrar o espaço adequado:

• O espaço favorece uma verdadeira interação e participação?


• O espaço tem um tamanho adequado ao número de participantes?
• Os participantes estarão confortáveis no espaço?
• O espaço nos deixará à vontade e, ao mesmo tempo, alertas e des-
pertos?
• Como as pessoas se reunirão no espaço — em círculos, como uma
plateia, uma sala de reuniões ou em torno de pequenas mesas?
• Seria melhor reunir-se ao ar livre, num bar ou na casa de alguém?
• Haverá música? Serão servidos cafezinho e bebidas? Queremos
mais barulho ou silêncio?
• Existem algumas distrações que gostaríamos de eliminar?
II. Ferramentas

Enfatizamos em vários momentos ao longo deste livro que não


enxergamos as ferramentas como receitas que devem ser aplica-
das universalmente, tampouco prescrevemos ferramentas especí-
ficas. Encorajamos que leiam nossas descrições das ferramentas e
considerem o contexto, a história e o impulso por trás da maneira
como os processos foram desenvolvidos. Uma compreensão mais
profunda ajudará a desenhar o processo adequado a cada situação
particular.
Acreditamos que existem padrões arquetípicos subjacentes aos
quais podemos recorrer, que a conversa é uma necessidade uni-
versal e que alguns dos princípios que fazem parte dos métodos
são profundamente humanos. Porém, é importante saber que cor-
remos o risco de cair na armadilha de acreditar que nossa ferra-
menta favorita salvará o mundo. Como já mencionamos antes, as
ferramentas exercem um efeito interessante: oferecem segurança
e conforto, e nos aferramos a elas porque nos ajudam a caminhar
em um mundo complexo. Uma ferramenta pode se transformar
em uma lente e afetar a forma como percebemos o nosso entorno.
Ao usarmos sempre a mesma lente, a percepção do que estamos
tentando mudar pode ficar comprometida.
Por isso, é sempre útil voltar à questão de como essas diferen-
tes ferramentas e esses processos podem ser combinados de novas
maneiras. Se dialogar é explorar, nosso processo também deveria
ser uma exploração. O desafio é usar essas ferramentas com sa-
bedoria para que elas sejam efetivas, e, ao mesmo tempo, usá-las
com parcimônia, abandonando-as quando nos deixem de servir.
Enquanto você lê estas páginas, o convidamos a nos ajudar a en-
contrar o equilíbrio entre respeitar a energia e o poder dessas ferra-
mentas, sempre conscientes de que não passam disso: ferramentas.

Características do método

No capítulo seguinte, ao explorar as ferramentas, você talvez fique


entusiasmado e queira imediatamente experimentar algumas de-
34 • Mapeando diálogos

las, ou talvez fique preocupado ou apreensivo com relação a outras,


ou, quem sabe, impressionado com a variedade delas. Como de-
cidir que método usar em cada situação? Como saber se a melhor
ferramenta é a Busca do Futuro, o Espaço Aberto, a Democracia
Profunda, o Laboratório de Mudança — ou apenas um passeio
contemplativo pelo parque?
Nesta seção, pretendemos guiá-lo por várias opções. No en-
tanto, a realidade é que não existem receitas universais sobre a
escolha de ferramentas, mas uma infinidade de situações e con-
textos. Certamente, existam boas e más escolhas para cada caso,
mas nunca haverá apenas um método ideal e com garantia de
êxito.
Facilitadores experientes e coordenadores de diálogo serão ca-
pazes de fazer perguntas certas e entender as particularidades de
uma situação, além de trabalhar com as opções oferecidas por cada
método. Eles desenvolverão e permanentemente redesenharão
um processo único, que não é finalizado até que o processo seja
concluído, pois estarão respondendo às sempre renovadas neces-
sidades do grupo. Por outro lado, um facilitador com tal nível de
conhecimento prático, competências, habilidades, sensibilidade e
criatividade nem sempre está disponível. Para essas situações, o
World Café, o Espaço Aberto, o Círculo e a Investigação Apreciati-
va são verdadeiros presentes. Esses processos são mais facilmente
aplicáveis — mesmo por facilitadores menos experientes — e po-
dem fazer muita diferença. Em geral, um dos pontos mais impor-
tantes a considerar é que o facilitador deve estar confortável com
a abordagem escolhida. É muito melhor ter um facilitador bem
centrado e confiante, aplicando bem uma metodologia simples,
do que pretender usar uma metodologia sofisticada de maneira
deficiente.
Para oferecer uma orientação útil ao processo de seleção, su-
gerimos que, em primeiro lugar, dê uma olhada (a) no propósito
e (b) no contexto do processo que pretende desenvolver. É impor-
tante ter em mente que o método de avaliação de ferramentas
que propomos aqui possui algumas limitações. Recomendamos
que leia todos os fundamentos antes de entrar na seção de ferra-
mentas. Isso poderá ajudar a assegurar que o processo seja cons-
truído a partir de uma avaliação completa dos propósitos, das
Ferramentas • 35

necessidades e especificidades dos participantes e dos requisitos


de conteúdo, processuais e físicos. A avaliação que oferecemos
é evidentemente subjetiva. De modo geral, cada uma das ferra-
mentas pode ser utilizada na maioria ou em todas as possíveis
situações, mas requerem adaptação criativa ou sensibilidade por
parte do facilitador, e muito provavelmente suscitarão combina-
ções com outros métodos. No entanto, nossa descrição genera-
lista poderá auxiliar quem estiver em busca de uma visão geral,
querendo distinguir entre as várias ferramentas disponíveis sem
entrar em muitos detalhes.
As descrições das ferramentas — ou “fichas de identidade” —
são ajustadas à nossa avaliação de cada uma delas em relação ao
propósito e ao contexto. Um único ü indica relevância básica da
ferramenta; dois üü indicam que é apropriada; e três üüü signi-
ficam que tem uma força adicional. Para uma visão geral da pontua-
ção de todas as ferramentas, consulte os apêndices A (revisão da
matriz de propósito) e B (revisão da matriz de contexto).

Propósito do diálogo

Nesta seção, elencamos os possíveis e mais amplos propósitos


que podemos tentar alcançar, tais como: geração de consciência,
resolução de problemas, construção de relacionamentos, trocas
de conhecimento e ideias, inovação, visão compartilhada, cons-
trução de capacidade, desenvolvimento pessoal e/ou de liderança,
modos de lidar com conflito, planejamento estratégico e de ação,
e tomada de decisão.
A matriz a seguir ajuda a avaliar quais métodos se encaixam em
cada propósito, mas também pode servir como fonte de inspiração
à articulação das intenções e dos objetivos de um diálogo. Ao ob-
servar sua matriz, você notará que o Laboratório de Mudança, por
exemplo, tem boa pontuação, pois contempla um grande número
de propósitos, mas é também uma abordagem muito intensiva,
que exige grande investimento. Se um pequeno número de pro-
pósitos é requerido, talvez seja melhor trabalhar com abordagens
mais simples.
Baixa complexidade Gerar consciência

Situação
Alta complexidade Resolução de problemas

tal abordagem.
Situação conflitual Construir relacionamentos
36 • Mapeando diálogos

Contexto do diálogo
Situação pacífica Compartilhar conhecimentos

Pequeno grupo (até 30) Inovação

Grande grupo Visão compartilhada

Participantes
Microcosmo/multidisciplinar Construir capacidades

Grupo de pares Desenvolvimento pessoal/de liderança

Contexto do processo de diálogo


Propósitos de um processo de diálogo

Diferentes níveis de poder Lidar com conflitos

Diversidade de cultura Planejamento estratégico e de ação

Requisitos de treinamento específico Tomar decisões

tação
Facili-
se o processo requer um facilitador especificamente treinado para
O segmento que trata de contexto nas características do método
abrange: a situação geral do processo, quem são os participantes e
Ferramentas • 37

Complexidade da situação

Um processo e seu contexto têm sua complexidade demonstrada


por alguns fatores: número e relevância dos assuntos conecta-
dos às questões principais; causa e efeito distantes, no tempo e
no espaço, em relação ao tema objeto de discussão; multiplicida-
de de interesses e opiniões divergentes ligados ao tema; contexto
em constante mudança; e soluções antigas que já não funcio-
nam.
Vale observar que, como mencionamos na introdução, a evolu-
ção das ferramentas de diálogo é, em grande medida, uma resposta
à crescente complexidade, por isso todas as abordagens são dese-
nhadas para serem aplicadas em situações de alta complexidade.
Na matriz apresentada, você poderá observar que enxergamos al-
gumas das ferramentas como relevantes unicamente em determi-
nadas situações, ao passo que as demais podem ser úteis também
em situações de menor complexidade.

Conflito na situação

Ao definir conflito, devemos avaliar, em relação ao tema e à compo-


sição daquele determinado grupo, a intensidade da carga emocio-
nal colocada sobre os participantes, e se posições diferentes, entrin-
cheiradas, parecem ser incompatíveis. Devemos analisar também
se é difícil para as pessoas “concordarem em discordar”. Se existem
subgrupos em conflito, ultrapassando o encontro de indivíduos, e
que possam estar relacionados a conflitos sociais mais amplos. Isso
inclui situações de agressão, raiva e ataques, que não necessaria-
mente devem ser manifestadas em público.
Em situações de conflito, todas as abordagens podem ser
úteis se o foco for apenas descobrir um território comum —
alheio ao conflito — no qual é possível avançar sem mergulhar
na negatividade e no impasse. Contudo, se a intenção é atingir
diretamente o conflito e resolvê-lo para liberar tensões subja-
centes e relacionamentos complicados, bem como negociar
uma maneira de avançar respeitando as diferenças, o conjunto
de abordagens relevantes é menor. Se as emoções, no entanto,
38 • Mapeando diálogos

realmente precisam vir à tona e o grupo avança num compor-


tamento subconsciente, é hora de estreitar ainda mais a lista
para Círculo, Democracia Profunda, Diálogo Sustentado e Esco-
la para a Paz.

Tamanho do grupo

Tomamos o número de trinta participantes como parâmetro útil


para definir pequenos e grandes grupos. Acreditamos que, nesse
ponto, exista uma massa crítica de diversidade, mas é também
onde o grupo como um todo começa a ser limitador, exigindo
uma escolha entre a formação de pequenos grupos e o grupo
maior. Para números mais precisos, consulte as descrições das
ferramentas.

Representação sistêmica

Muitos processos são especificamente desenhados para “abranger


todo o sistema”, ao passo que outros devem ser trabalhados em
grupos com maior homogeneidade. Sob a categoria “microcosmo”
classificamos os processos segundo a capacidade de refletir o sis-
tema mais amplo.

Diversidade do poder

As dinâmicas de poder podem exigir requisitos específicos a um


processo de diálogo. É importante, por exemplo, pensar se o pro-
cesso escolhido está apto a trabalhar com diferentes níveis de po-
der e classe social. Os participantes normalmente reconhecem
outras formas de diversidade, tais como cultura, gênero, raça e
faixa etária, sem necessariamente perceber a diversidade dos ní-
veis de poder e como as dinâmicas de poder e a hierarquia afetam
o grupo. Certas abordagens são explicitamente conscientes de tal
impacto e aptas a lidar com ele.
Ferramentas • 39

Diversidade cultural

Sob o título diversidade cultural, incluímos a generacional, de gê-


nero, de nível social e outras. Como o diálogo sempre visa reduzir
as diferenças (e é sempre bom ter em mente este aspecto ao fazer
uma avaliação), demos preferência às ferramentas especialmente
úteis a tal processo.

Treinamento específico do facilitador

Este item está relacionado à possível necessidade de o facilitador


ser especificamente treinado para trabalhar com uma ferramenta.
Observe que o Círculo, Espaço Aberto, World Café e Investigação
Apreciativa são mais acessíveis a facilitadores iniciantes. São como
instrumentos musicais que podem soar bem mesmo com pouco
treino, mas têm capacidade de se tornarem cada vez mais sofis-
ticados e eficientes à medida que se ganha experiência. Também
incluímos Busca do Futuro nesta categoria porque sentimos que
pessoas com grande experiência em facilitação não necessaria-
mente precisam de treinamento específico para esta ferramenta,
embora seja fundamental um facilitador consistente.
Investigação Apreciativa

Visão geral

A Investigação Apreciativa (IA) é uma abordagem e um processo


que inverte a lógica da resolução de problemas. Em vez de buscar
as melhores formas de solucionar problemas prementes, o foco do
processo é identificar o melhor de uma organização ou comunida-
de e as maneiras de intensificar este recurso, viabilizando o que se
gostaria e se poderia alcançar.
O processo de Investigação Apreciativa nasceu do trabalho
de David Cooperrider. Quando estava no doutorado, em 1980,
Cooperrider deu uma guinada na abordagem de sua pesquisa na
Cleveland Clinic. Ele estudava os fatores que contribuem para a
saúde e a excelência de uma organização. Ao reconhecer o poder
conquistado com o deslocamento de foco do problema para os re-
cursos positivos, o doutor Cooperrider começava a lançar as bases
para o que hoje se conhece como Investigação Apreciativa. Ele tra-
balhava sob a supervisão de seu orientador doutor Suresh Srivasta-
va e contava com o apoio e o encorajamento dos líderes da clínica,
que enxergavam o potencial desta nova abordagem para ampliar e
disseminar o desenvolvimento organizacional.

Resolução de problemas Investigação apreciativa

• “Necessidade percebida” e • Aprecie e valorize o melhor do


identificação do problema. que já existe.
• Análise das causas. • Imaginação: o que poderia ser.
• Análise das possíveis soluções. • Diálogo: o que deveria ser.
• Planejamento da ação. • Criatividade: o que será.
• Pressuposto: a organização é • Pressuposto: a organização é
um problema a ser solucionado. um mistério a ser desvendado.
• O que está no caminho do que • O que realmente queremos?
queremos?

Perspectiva do déficit Perspectiva da possibilidade


Ferramentas • 41

A premissa básica desta abordagem é: as perguntas que faze-


mos influenciam, e muito, as respostas que encontramos. E per-
guntas que permitem elicitar respostas altamente positivas podem
ser mais eficazes para conduzir a um futuro positivo. Tal perspec-
tiva permite que as pessoas caminhem em direção a algo que as
energiza e as inspira, sem ter de superar detalhes deficitários e
disfuncionais. A Investigação Apreciativa (IA) utiliza essas desco-
bertas para ajudar a aperfeiçoar sistemas sociais, organizações e
comunidades.
A IA é, por sua própria natureza, um processo cooperativo
que reúne, constrói e trabalha a partir dos pontos fortes, das for-
ças geradoras de vida, das histórias que trazem “boas notícias”,
encontradas em qualquer comunidade ou organização.

As etapas do processo IA

• Selecione o foco ou tópico(s) de interesse.


• Conduza entrevistas desenhadas para descobrir pontos fortes,
paixões, atributos singulares e únicos.
• Identifique padrões, temas e/ou possibilidades intrigantes.
• Crie declarações ousadas sobre possibilidades ideais (“proposições
provocadoras”).
• Codetermine “o que deveria ser” (consenso: princípios e priori-
dades).
• Crie “o que será”.

O processo IA

Como mostra o diagrama a seguir, são quatro os passos principais


do processo IA. Antes de começarmos a detalhá-los, porém, existe
uma primeira etapa que consiste em definir o foco e o escopo da
investigação. Levá-la a cabo de forma colaborativa é um ponto de
partida incrivelmente positivo. É também importante enquadrar
esse ponto de partida como um tópico afirmativo, não como uma
declaração de problema. Exemplo: “Criar e sustentar uma boa re-
42 • Mapeando diálogos

lação entre pessoas do sexo oposto no ambiente de trabalho” é um


tópico afirmativo, ao passo que “eliminar incidentes de assédio
sexual” é declaração de problema.
Descoberta: apreciar e valorizar o melhor que já existe. Trata-se
de uma investigação que inclui todo o sistema (por meio de entre-
vistas e contação de histórias), visando elencar as experiências das
pessoas com o grupo, organização ou comunidade, especialmente
os aspectos mais vitais e latentes, refletindo sobre os pontos prin-
cipais e levando à tona os fatores que tornaram tais experiências
possíveis. Nessa fase devem ser esclarecidos quais elementos as
pessoas desejam manter, mesmo que elas (ou sua organização ou
comunidade) se transformem no futuro, bem como identificar po-
tenciais intrigantes.

Processo IA

Descoberta
O que dá vida?
(O melhor do que é)

Apreciando o
núcleo positivo
Destino Sonho
Como empoderar, O que poderia ser?
aprender e ajustar/ Escolha de Tópico O que o mundo está
improvisar? pedindo?
Afirmativo
Sustentando Vislumbrando
resultados

Desenho
Como seria
o ideal?

Coconstruindo

Sonho: vislumbrar o que poderia ser. Juntas, as pessoas cons-


troem a visão do futuro que desejam. Elas respondem ao que ima-
ginam que o mundo pede que sejam. Creem que o melhor do que
aquilo que já existe serve de base para o futuro. Essa fase inclui
Ferramentas • 43

perguntas como: o que o nosso núcleo positivo indica que poderia


ser feito? Quais são nossas possibilidades mais estimulantes? O que o
mundo pede de nós?
Desenho: nesta fase, as pessoas determinam o que deveria ser,
criando uma organização ou comunidade na qual o núcleo positi-
vo seja vibrante e vivo. O foco recai sobre elementos que possam
ajudar a dar vida aos sonhos, tais como práticas, estruturas, políti-
cas e tecnologias. O trabalho consiste em desenvolver proposições
provocadoras (possibilidades ousadamente ideais) e princípios
que possam ser integrados ao núcleo positivo.

Os quatro princípios norteadores em IA

• Todo sistema funciona, em maior ou menor grau: procure identificar


as forças positivas e geradoras, e aprecie o melhor do que já existe.
• O conhecimento produzido pela investigação deve ser aplicável; ob-
serve os detalhes possíveis e relevantes.
• Sistemas são capazes de se tornar mais do que são e podem apren-
der a nortear sua própria evolução: considere os desafios provoca-
dores e os sonhos ousados do “que poderia ser”.
• O processo e o resultado da investigação estão inter-relacionados e
são inseparáveis, portanto, faça com que este processo seja colabo-
rativo.
(Fonte: “Appreciative Inquiry, An Overview”, compilado por Kendy Rossi)

Destino: nesta etapa final, a ação é conduzida à criação de ini-


ciativas, sistemas ou mudanças necessárias para realizar o futuro
tal como desenhado. Esta fase pode ser cumprida com a ajuda do
Espaço Aberto (consulte a seção sobre Espaço Aberto mais adiante
neste livro), de forma a ativar ao máximo a criatividade e o insight
dos envolvidos, possibilitando que grupos autoformados planejem
os próximos passos em áreas que mais despertem paixão e interes-
se, e pelas quais estejam dipostos a se responsabilizar (ver a seção
sobre a Tecnologia de Espaço Aberto).
O processo completo pode ser organizado no que chamamos
Conferência IA, capaz de reunir centenas de pessoas por um pe-
ríodo de dois a seis dias. Numa Conferência IA, a primeira fase
44 • Mapeando diálogos

(Descoberta) inicia-se com entrevistas pessoais sobre questões e


temas variados relacionados a histórias de destaque ou experiên-
cias altamente positivas. Essa fase é seguida por trabalhos em pe-
quenos grupos e equipes, visando ao mapeamento dos padrões
e à identificação dos núcleos positivos nas histórias. Juntos, os
envolvidos continuam vislumbrando “o que poderia ser” para,
em seguida, construir “o que deveria ser”. Após cada fase, há um
contínuo feedback para permitir que o sistema como um todo se
integre ao que acontece nos subgrupos.

Aplicações

A-pre-ci-ar (verbo):
valorizar; ato de reconhecer o melhor nas pessoas ou no mundo ao
redor; afirmação dos pontos positivos passados e presentes, êxitos
e potenciais; perceber o que confere vida (saúde, vitalidade, excelên-
cia) aos sistemas vivos; aumentar o valor, por ex., a economia está
apreciada em valor.
In-ves-ti-gar (verbo):
Ato de exploração e descoberta visando a formulação de perguntas;
estar aberto a novos potenciais e possibilidades.

A Investigação Apreciativa pode ser usada de várias maneiras —


uma delas é a Conferência IA que descrevemos acima, em que uma
organização, comunidade ou sistema se reúne durante um período
de dois a seis dias para percorrer todo o processo de IA com o ob-
jetivo de articular um trabalho de mudança ou de desenvolvimen-
to em larga escala. Pode ser desde o planejamento estratégico, de-
senvolvimento comunitário, mudanças sistêmicas, reestruturação
organizacional, alargamento de visão ou qualquer outro processo
que envolva um desejo genuíno de mudança e crescimento com
base em investigação positiva, além de possibilitar que as vozes dos
envolvidos – em todos os níveis do sistema – sejam ouvidas e
Ferramentas • 45

incluídas. Mesmo que tal aplicação possa ser vista como um proces-
so isolado, ela está muito bem ancorada num formato que permite
às organizações ou comunidades criarem juntas um futuro deseja-
do com base no melhor do passado. Muitas vezes, a Conferência IA
é apenas o começo de um processo contínuo de análise e construção
de pontos de força e de possibilidades. E pode envolver públicos de
cinquenta a duas mil pessoas.
Em segundo lugar, a Investigação Apreciativa também pode ser
um processo contínuo de entrevistas e diálogos dentro de um sis-
tema (organização, comunidade ou cidade). O caso que apresenta-
remos a seguir exemplifica esse tipo de processo.
Por último, os princípios da IA podem ser integrados em for-
matos muito simples, embora potentes, em quase todos os tipos
de workshops e outros encontros, seguindo seu princípio básico de
formular perguntas apreciativas, além da narrativa de histórias,
como agentes poderosos para o engajamento e o envolvimento das
pessoas. Uma premissa básica é aprender a arte de fazer pergun-
tas apreciativas que tragam à tona histórias atraentes ou perguntas
que ajudem a vislumbrar o futuro.

Exemplo: o movimento Imagine

Imagine Chicago é parte de um movimento de imaginação. É


considerado um catalizador do movimento pelo mundo, dando
suporte ao nascimento de iniciativas Imagine em todos os con-
tinentes. Ainda que cada empreendimento Imagine seja único,
as iniciativas compartilham certas convicções: os seres humanos
podem se unir em torno de significados compartilhados; a contri-
buição de cada um é vital para a comunidade florescente; e a cria-
ção de uma cultura de aprendizado público e engajamento cidadão
que conecte as gerações e as culturas está no cerne da autotrans-
formação e da mudança social.

“Nos vinte anos em que estamos em Chicago, os temas de


nossas conversas em comunidade têm sido sobre a sobre-
vivência.
46 • Mapeando diálogos

Agora nos perguntam sobre como podemos contribuir


para a cidade. Esta é uma pergunta empolgante que pode-
mos começar a nos fazer.”
Participante do “Imagine Chicago”

Bliss Browne, fundadora do Imagine Chicago, começou seu


trabalho em 1993 com uma visão inspirada em conversas com vá-
rios líderes bem conhecidos da cidade e com inovadores sociais
(o texto a seguir foi adaptado de Imagine Chicago – Ten Years of
Imagination in Action, escrito por Bliss W. Browne e Shilpa Jain).
Ela começou a imaginar uma cidade onde cada cidadão, jovem ou
velho, reverte seus talentos à criação de um futuro positivo para
si mesmo e para sua comunidade, onde a esperança renasce com
o florescimento e a conexão das vidas humanas, onde os jovens e
outras pessoas cujas visões têm sido rebaixadas podem se desen-
volver e contribuir com suas ideias e energia.
Ao tentar dar vida a essas ideias, ela criou o que se tornou o
Imagine Chicago. O projeto inicial foi uma tentativa de desco-
brir o que dava vida à cidade e, ao mesmo tempo, oferecer opor-
tunidades significativas de liderança aos jovens, que claramente
representam o futuro da cidade. Entre 1993 e 1994, a equipe do
Imagine Chicago deu início a dois processos-piloto paralelos de
investigação intergeracional como ponto de partida para uma
conversa mais ampla sobre o futuro da cidade. Esses processos
eram: (1) uma investigação apreciativa no âmbito da cidade e (2)
uma série de investigações baseadas na própria comunidade e por
ela conduzida.

“O Sistema Humano se orienta em direção às perguntas


que lhe são feitas.”
David Cooperrider e Diana Whitney

O processo de entrevistas pela cidade envolveu aproximada-


mente cinquenta jovens entrevistadores, que ouviram cerca de 140
cidadãos reconhecidos pela equipe do Imagine Chicago como for-
madores de opinião. Entre eles havia: artistas, políticos, homens
Ferramentas • 47

de negócios, líderes comunitários e outros jovens da cidade. Por


vários meses, adolescentes e adultos conversaram “cara a cara”
sobre o passado da cidade e as perspectivas para o futuro. Tanto
os participantes jovens quanto os adultos, mais tarde, descreve-
riam essas conversas como “energizadoras”, “rejuvenescedoras” e
“transformadoras”.
Nos projetos-piloto levados a cabo nas comunidades, jovens
líderes entrevistavam personalidades de destaque em diferentes
grupos étnicos. O projeto de entrevistas ampliou a visão dos parti-
cipantes sobre o que poderia ser feito em relação a eles mesmos e
à cidade. As histórias surgidas nas entrevistas com pequenos gru-
pos eram transferidas e compartilhadas em uma série de fóruns
de cidadania onde os moradores de Chicago se reuniam e começa-
vam a maquinar projetos que pudessem levar mudanças positivas
a bairros específicos e a instituições públicas. As perguntas apre-
ciativas se desdobravam em torno de três estágios principais de
investigação apreciativa — o que ainda hoje constitui a estrutura
de todas as iniciativas do Imagine Chicago. A abordagem vai da
ideia à ação num ciclo generativo, buscando inspiração na estrutu-
ra básica de uma investigação apreciativa:
Entender o que é (focando no melhor do que é) — Todo o tra-
balho do Imagine Chicago tem seu início e está ancorado em
perguntas abertas e orientadas ao que tem sido gerador de vida,
ao que está funcionando, ao que está sendo produtivo, ao que é
importante.
Entender o que poderia ser (trabalhando em parceria com outros)
— Novas possibilidades são inspiradas por perguntas ou histórias
interessantes, que ampliam nosso entendimento para além do que
já sabemos.
Criar o que será (traduzindo o que valorizamos no que fazemos)
— Para que a imaginação possa nortear mudanças na comunida-
de, ela deve estar encarnada em algo concreto e prático, em um
resultado visível capaz de inspirar mais pessoas a investirem em
fazer a diferença.
48 • Mapeando diálogos

Questionário com perguntas intergeracionais do Imagine Chicago:


1. Há quanto tempo você vive em Chicago? Nesta comunidade?
a. O que trouxe sua família aqui?
b. Para você, como é viver nesta comunidade?
2. Quando você pensa em Chicago como um todo, que lugares,
pessoas ou imagens representam a cidade?
3. Explorando suas memórias de Chicago,o que você destacaria,
na condição de cidadão, como pontos altos da cidade?
4. Por que tais experiências significam tanto para você?
5. Como você descreveria a qualidade de vida em Chicago hoje?
6. Que mudanças você mais gostaria de ver acontecer na cidade?
a. Que papel você imagina que poderia assumir para ajudar a
transformar essas mudanças em realidade?
b. Quem poderia trabalhar junto com você?
7. Feche os olhos e imagine a Chicago dos seus sonhos daqui a
uma geração. Como ela é? O que você vê e escuta nesta cidade?
Do que você mais se orgulha de ter realizado?
8. Voltando às conversas iniciais, que imagens se destacam e em
quais você deposita mais esperanças para o futuro da cidade?
9. Qual seria um meio efetivo de fazer com que gente de toda a
cidade se empenhe em conversar e trabalhar juntas em prol do
futuro de Chicago?

O Imagine Chicago apoia a criação de iniciativas e programas


em parceria com organizações e instituições locais. Todos os três
processos se intercomplementam e interalimentam; tal relação de
interdependência possibilita transformar sonhos individuais e co-
munitários em realidade.

Comentário

A Investigação Apreciativa tem-se mostrado particularmente efi-


caz com pessoas que perdem poder e focalizam excessivamente
as próprias deficiências. Essa abordagem faz um contraste impor-
Ferramentas • 49

tante com a abordagem corriqueira de enxergá-las como “coita-


das” que precisam de “ajuda” externa. Via de regra, os trabalhos
que visam ao desenvolvimento tendem a focar nas deficiências,
levantar necessidades e demandas, e buscar a solução de proble-
mas. Isto não apenas faz com que deixemos de enxergar algumas
oportunidades, mas também causa um impacto negativo sobre a
autoestima e a criatividade das pessoas envolvidas.
Temos usado a Investigação Apreciativa em comunidades ru-
rais no Zimbábue, com um impacto considerável desde o momen-
to em que a metodologia começa a operar, oferecendo um sentido
mais claro da riqueza e da sabedoria que essas pessoas já têm em
suas comunidades. Quando descobrem que podem aproveitar seus
próprios recursos de variadas formas, são capazes de romper uma
orientação mental de escassez e dependência, gerando um senti-
mento de liberdade e possibilidade, criatividade e autoestima. Sua
habilidade para imaginar e planejar o futuro vem de uma fonte de
força e de perspectivas inteiramente diferente. Nesse contexto, a
Investigação Apreciativa está relacionada a outras ferramentas de
desenvolvimento, tais como o “mapa de ativos da comunidade” e
o “inventário de capacidades”.
Por outro lado, a Investigação Apreciativa pode acabar focando
unicamente no que é bom, prejudicando, assim, uma visão mais
completa da situação, tornando-se ilusória. Também pode acabar
criando a sensação de ser restritiva, abrindo espaço apenas ao que
é positivo, escondendo o conflito.
Nossa experiência tem sido de que, quando utilizamos uma
perspectiva apreciativa, ela precisa vir acompanhada de atuações
que permitam liberar as experiências dolorosas ou que são sen-
tidas como limitantes. Isto poderia ser obtido, por exemplo, com
a complementação do Diálogo Circular, um trabalho de Ecologia
Profunda, exercícios de Cenários ou outras ferramentas. Esse é o
caso, especialmente, de quando trabalhamos mais intimamente
em uma comunidade, por um bom tempo. Trabalhar de forma
apreciativa não significa fecharmos os olhos ao que não queremos
ver. E, finalmente, a Investigação Apreciativa é um ótimo exercício
para percebermos e conhecermos nossas questões, além de no-
tarmos os impactos que elas exercem sobre os pensamentos e as
ações humanas.
50 • Mapeando diálogos

Conscientização üü
Resolução de problemas ü
Construir relações üü
Compartilhar conhecimento üü
Inovação üü
Propósito Visão compartilhada üüü
Construção de capacidades ü
Desenv. pessoal/Liderança üü
Lidar com conflitos ü
Planejamento/Ação estratégica üüü
Tomada de decisões üü
Situação pacífica üüü
Situação conflitual ü
Situação
Alta complexidade üü
Baixa complexidade üüü
Pequeno grupo (≤ 30) üüü
Grande grupo (≥ 30) üüü
Múltiplas partes interessadas ü
Participantes e
Grupo de pares üüü
facilitadores
Div. por níveis de poder ü
Div. por cultura üü
Requisitos específicos de facilitação ü

Fontes

BARRETT, Frank; FRY, Ron. Appreciative Inquiry: A Positive Approach to


Building Cooperative Capacity, 2005.
COOPERRIDER, David; WHITNEY, Diana; STAVROS, Jacqueline. Appre-
ciative Inquiry Handbook, 2007.
COOPERRIDER, David; WHITNEY, Diana. Appreciative Inquiry: A Positi-
ve Revolution in Change, 2005.
WHITNEY, Diana; TROSTEN-BLOOM, Amanda; COOPERRIDER, Da-
vid. The Power of Appreciative Inquiry: A Practical Guide to Positive Change,
2003.
http://www.appreciative-inquiry.org
http://www.imaginechicago.org
Laboratório de Mudança

Visão geral

O Laboratório de Mudança (“Change Lab”) é um processo dialógico de


mudança envolvendo múltiplas partes interessadas. Foi concebido para
gerar insight coletivo, empenho compartilhado e capacidades criativas
— requisitos necessários para lidar com problemas sociais complexos.
Cada Laboratório de Mudança é composto por uma ou mais organi-
zações que, conscientes de que não poderão encontrar uma solução
sozinhas, empenham-se em promover mudanças em relação a um de-
terminado problema complexo. Os organizadores formam grupos com
25-35 stakeholders chave do sistema em questão e que juntos represen-
tam um “microcosmo” deste, ao refletir sobre a diversidade de atores
envolvidos na geração e sobre o endereçamento do problema. Essas
pessoas devem ser capazes de influenciar, ser diferentes entre si, empe-
nhar-se na mudança do sistema e, ao mesmo tempo, estar abertas para
mudarem a si mesmas. O processo de mudança desses membros do
grupo é construído em torno de três movimentos ou fases principais:

O Laboratório de Mudança
Co-Sentir Co-Criar
Reunindo um microcosmo
Institucionalizando inovações
estratégico do sistema

Mergulhando no sistema:
entrevistas-diálogo, visitas à Protótipos e pilotos
comunidade, pessoas de recurso, das inovações
jornadas de aprendizagem

Desenvolvendo uma Cristalização de perspectiva e


compreensão sistêmica pontos de alavancagem

Co-Presenciar

Retiro para acessar conhecimento interior


52 • Mapeando diálogos

Co-Sentir, Co-Presenciar e Co-Criar. O processo é inspirado na


“Teoria do U”, uma tecnologia social bastante criativa, desenvolvi-
da em conjunto por Otto Scharmer e Joseph Jaworski, e mais tarde
trabalhada para se adaptar ao processo de múltiplas partes interes-
sados por Adam Kahane, e vários outros profissionais. Continua
em evolução, à medida que mais experiências são construídas e
compartilhadas.

Fases do Laboratório de Mudança

Cada uma das fases do Laboratório de Mudança está associada a


um conjunto de capacidades de liderança, atividades e ferramen-
tas diferentes.

• Na fase Co-Sentir, os participantes transformam o modo


como percebem o problema. Eles são treinados e praticam
diferentes formas de ver e perceber, e não simplesmente
projetam suas ideias prévias sobre o problema. Trabalham
com a compreensão das perspectivas, motivações e sistemas
de referências de cada um. Mergulham na situação trazida
como problema em jornadas de aprendizagem às comuni-
dades e organizações afetadas e envolvidas. Os membros do
grupo compartilham suas histórias e tentam criar mapas do
sistema, encarando sua própria dinâmica como um micro-
cosmo desse sistema. Fazem emergir um corpo de conheci-
mentos compartilhados, delineando “espaços de problema”
e “espaços de solução” em múltiplas interações.
• Na fase Co-Presenciar, os participantes geralmente ficam
um tempo em silêncio. Esta fase envolve um retiro, no qual
os participantes ficam um período sozinhos na natureza.
É uma prática poderosa para mobilizar as capacidades de
presenciar: deixando ir e deixando vir. Enquanto a experiên-
cia de Co-Sentir pode inundar o grupo de complexidade, a
experiência de Co-Presenciar busca criar um esvaziamento,
para permitir que o “conhecimento interior” emerja, possi-
bilitando uma ligação com o que realmente importa e, por
meio deste processo, o encontro de uma nova simplicidade.
O foco é o desvelamento do propósito comum e a conexão
Ferramentas • 53

com a vontade mais profunda: o que cada um realmente


quer fazer com relação ao problema?
• Na fase Co-Criar, os participantes cristalizam seus insights
nas características básicas que definirão um novo sistema
e fomentarão ideias criativas para solucionar o problema.
Essas ideias são traduzidas em “protótipos” – versões simu-
ladas da solução que podem ser testadas com a equipe do
laboratório, depois com um grupo maior de interessados. O
processo de prototipagem visa ir além de escrever a ideia
em um documento para tentar proporcionar às pessoas uma
experiência da iniciativa. Trata também de adotar uma abor-
dagem que privilegie a emergência, que permita a adaptação
constante da iniciativa por meio de conversas com o con-
texto. Tal abordagem contrasta com aquela mais tradicional
em que as atividades de planejamento e implementação são
separadas no tempo e no espaço. O trabalho com o protótipo
permite aos membros da equipe construir, testar, aperfeiçoar
e voltar a testar as intervenções no mundo real.

As inovações que, com base na prototipagem, mostram-se mais


promissoras a uma mudança sistêmica são então desenvolvidas
em projetos-piloto. Finalmente, esses pilotos são ampliados, inte-
grados e institucionalizados com o apoio de governos, empresas e
parceiros da sociedade civil.

Aplicações

O Laboratório de Mudança busca encontrar respostas a problemas


caraterizados por três dimensões da complexidade:

• complexidade dinâmica: causa e efeito estão distantes no


tempo e no espaço, gerando a necessidade de uma solução
sistêmica;
• complexidade generativa: o futuro é indeterminado e não fa-
miliar, e as soluções tradicionais não estão funcionando, daí
a necessidade de uma solução emergente;
• complexidade social: nenhuma entidade tem a exclusivida-
de do problema, e as partes envolvidas têm perspectivas e
54 • Mapeando diálogos

interesses diversos, potencialmente antagônicas e entrin-


cheiradas, o que resulta na necessidade de uma solução
participativa.

Em virtude do nível de complexidade trabalhado, bem como da


abrangência e da escala dos problemas que se pretende solucio-
nar, muitas vezes, um Laboratório de Mudança permanece ativo
por vários anos, requerendo investimento significativo de tempo,
atenção e recursos financeiros. É possível, no entanto, realizar ver-
sões mais curtas e condensadas de apenas dias ou meses e, ainda
assim, obter um notável impacto; é também possível montar labo-
ratórios local ou globalmente.
Não existe receita para montar um Laboratório de Mudança, e
profissionais de todo o mundo experimentam diferentes formas
de facilitação de inovação, inspirados pelo modelo básico do Pro-
cesso U.
Caso esteja tentando implementar um Laboratório de Mudança
maior ou queira reunir um “microcosmo” dentro de sistemas ou
setores diferentes, é importante notar se as partes representantes
desses setores e os principais grupos interessados querem estar
envolvidos no trabalho. Se os atores-chave necessários à constru-
ção de um microcosmo dentro do sistema não estiverem com-
prometidos, o Laboratório de Mudança talvez não seja a melhor
opção.

Exemplo de caso: Laboratório de Alimentação Sustentável


(Extraído da página www.sustainablefoodlab.org.)

O objetivo do Laboratório de Alimentação Sustentável (Sustainable


Food Laboratory – SFL) é criar inovações que tornem os sistemas
de alimentos mais sustentáveis em termos econômicos, ambien-
tais e sociais — em outras palavras, que sejam mais lucrativos,
acessíveis, bons para as comunidades de produtores e consumido-
res, e estejam em equilíbrio com a natureza. Os 35 membros ini-
ciais da equipe se reuniram em uma oficina inaugural realizada na
Holanda, em junho de 2004. Juntos, formaram um microcosmo
de interessados nas cadeias mundiais de suprimento de alimen-
Ferramentas • 55

tos: agricultores, fazendeiros, processadores, atacadistas, varejis-


tas, consumidores, representantes de agências governamentais,
ativistas, financiadores, pesquisadores etc. O grupo, que já au-
mentou para setenta membros, consiste basicamente em repre-
sentantes da Europa e das Américas. Cada um deles foi convidado
em função de uma história comprovada de inovação e experiência
no campo, combinada à capacidade de visão panorâmica do siste-
ma de alimentos; além disso, foram levadas em conta sua paixão,
seu espírito empreendedor e sua influência.
No momento em que o SFL foi lançado, os membros da equi-
pe sentiam-se frustrados pelo que tinham sido, até então, capazes
de conquistar trabalhando nos respectivos setores ou organiza-
ções. Ao ingressarem no laboratório, comprometeram-se a par-
ticipar de quarenta ou mais dias de trabalho, durante dois anos,
em workshops com toda a equipe, jornadas de aprendizagem e
subgrupos de trabalho para desenvolver protótipos e projetos-
piloto.
Hoje, os participantes estão empenhados no diálogo e na ação
para conquistar mudanças mais ambiciosas do que as que conse-
guiriam trabalhando separadamente.
O Processo: logo após a oficina inaugural na Holanda, cada
membro do laboratório iniciou uma das três jornadas de apren-
dizagem de cinco dias de duração, no Brasil. Ao retornarem e
sintetizarem os resultados dessas jornadas, a equipe voltou a se
reunir para um retiro de inovação, e os membros escolheram as
iniciativas para os subgrupos de trabalho. No encontro seguinte,
em Salzburg, em abril de 2005, foram feitos protótipos dessas no-
vas iniciativas, que se encontram hoje em fase-piloto e em proces-
so de institucionalização, enquanto o grupo continua a se reunir
periodicamente.
Cada iniciativa pretende, de alguma maneira, criar cadeias de
suprimento de alimentos sustentáveis e trazê-las para o mercado.
As seis iniciativas surgidas no encontro de Salzburg são:

1. vincular a produção de alimentos sustentáveis das famílias


de agricultores latino-americanos aos mercados globais;
2. fornecer alimentos de alta qualidade nutricional produzidos
em fazendas regionais a escolas e hospitais;
56 • Mapeando diálogos

3. construir uma coalizão empresarial para alimentos susten-


táveis;
4. criar padrões de sustentabilidade para alimentos que são
commodities e parâmetros de investimento adequados a in-
dústria de alimentos;
5. re-contextualizar a sustentabilidade alimentar de cidadãos,
consumidores e formuladores de políticas públicas;
6. aumentar a sustentabilidade da cadeia produtiva de pes-
cados.

Mapa dos sistemas SFL


Gêneros de
S subsistência Saúde
dos produtores ecológica

S S Saúde dos Mensagens


Acesso ao pequeno consumidores
mercado agricultor consistentes
informadas pelo
S
S
S planejamento
Preços médios Atratividade do
Planejamento para os mercado para o
produtores produtor
S
S
S S
S Adoção de S
S padrões Produção Demanda
Política de de HSF R
incentivos comuns de por HSF
HSF (fornecimento)
S S
S S S
Atratividade do
produto para o
S consumidor (preço,
Commodities 0 disponibilidade, S
responsáveis qualidade) Compra
CUSTOS 0
Reestruturação S institucional
das cadeias de de HSF
abastecimento 0 S
Projeto de S R
gêneros de Difusão das
subsistência melhores
sustentável S práticas Alimento para a saúde
Pescado S
S
Aliança para
o negócio

O diagrama acima reflete as conexões entre as iniciativas e o


mapa global construído pela equipe do SFL para ilustrar as relações
no sistema de alimentos. Ainda é cedo para documentar os resul-
tados das iniciativas, mas está claro que o laboratório tem gerado
um novo modo de pensar, novos relacionamentos e fortes parcerias
entre os setores, além de ter começado a alterar o sistema mundial
de alimentos, ao promover a mudança nos participantes e por meio
das iniciativas que agora se empenham em dar continuidade.
Ferramentas • 57

Comentário

O Laboratório de Mudança tem alguns pontos fortes de destaque:

1. A abordagem é sistêmica. Ao longo de todo o laboratório, os


participantes constroem uma visão sistêmica. Definem o
espaço do problema e o espaço da solução de uma maneira
sistêmica, funcionando como um microcosmo do sistema;
são também um reflexo da questão mais ampla.
2. Opera por aprendizado-ação. O Laboratório de Mudança é
dialógico e tem o diálogo enraizado durante todo o proces-
so, mas é igualmente um processo de ação. Ele não é inter-
rompido no momento em que novas ideias ou insights são
gerados. A equipe permanece unida trabalhando nos pilotos
das novas iniciativas, remetendo continuamente os resul-
tados dessas iniciativas ao mapa do sistema total, de modo
que os esforços não se fragmentem.
3. O Laboratório de Mudança é mais um processo do que uma fer-
ramenta; são vinte anos de experimentação com diferentes
tipos de ferramentas em que as melhores delas são integra-
das em várias fases. O tema, o padrão e a liga que unem essas
diferentes ferramentas são o processo do Laboratório de Mu-
dança, inspirado no Processo U. Isso significa que o labora-
tório é bastante flexível e pode se adaptar aos novos padrões
que vão emergir.

Existem, claro, vários riscos e desafios envolvidos na mobilização


de um Laboratório de Mudança. O fato de trabalhar com múltiplos
interesses advindos de uma diversidade de organizações e setores,
além de ter de coordená-la, pode tornar o processo significativamente
mais lento. O que pode ser exacerbado pelo fato de o processo ser
pouco familiar a muitos participantes, além de algumas práticas po-
derem encontrar resistência. Em certos casos, é útil começar com
um mini Lab — uma versão em miniatura de três dias de duração —
para oferecer aos participantes do Laboratório de Mudança uma ideia
do que o processo mais amplo poderia alcançar.
Caso esteja tentando organizar um Laboratório de Mudança
maior e queira criar um microcosmo sistêmico entre os setores, é
58 • Mapeando diálogos

importante estar atento a quais partes dos setores e grupos serão


envolvidos. Se os atores-chave necessários à construção de um
“microcosmo” não puderem ser envolvidos, o Laboratório de Mu-
dança talvez não seja a técnica mais indicada.

Conscientização 
Resolução de problemas 
Construir relações 
Compartilhar conhecimento 
Inovação 
Propósito Visão compartilhada 
Construção de capacidades 
Desenv. pessoal/Liderança 
Lidar com conflitos 
Planejamento/Ação estratégica 
Tomada de decisões 
Situação pacífica 
Situação conflitual 
Situação
Alta complexidade 
Baixa complexidade 
Pequeno grupo (≤ 30) 
Grande grupo (≥ 30) 
Múltiplas partes interessadas 
Participantes e
Grupo de pares 
facilitadores
Div. por níveis de poder 

Div. por cultura 

Requisitos específicos de facilitação 


Ferramentas • 59

Atenção: os Laboratórios de Mudança, mesmo os mais curtos,


tendem a consumir recursos de maneira intensiva. Geralmente
envolvem grande empenho dos responsáveis para juntar todos
os envolvidos em uma sala de reuniões e coordenar o processo,
além de demandar recursos financeiros para a organização das
jornadas de aprendizagem, retiros, oficinas de mudança e demais
atividades que acontecem a cada fase do processo. Em situações
de baixa complexidade, ou quando o propósito é unicamente o de
compartilhar conhecimentos ou construir relações, um Laborató-
rio de Mudança completo talvez não valha a pena, e outras ferra-
mentas podem ser mais apropriadas e suficientes. Um Laboratório
de Mudança se justifica quando o propósito realmente inclui a ne-
cessidade de inovação e alterações de conscientização e de capaci-
dade, o contexto é complexo e o grupo é multidisciplinar.

Fontes

SENGE, Peter; SCHARMER, Otto; JAWORSKI, Joseph; FLOWERS, Betty


Sue. Presence: Human Purpose and the Field of the Future, 2004.
SCHARMER, Otto. Theory U, 2007.
KAHANE, Adam. Solving Tough Problems, 2005.
http://www.sustainablefoodlab.org
http://www.ottoscharmer.com
http://www.generonconsulting.com
http://www.reospartners.com
http://www.dialogonleadership.org (Documenta uma série de entrevis-
tas, conduzidas sobretudo por Otto Scharmer, muito ricas e profundas
com os inovadores deste campo.)
O Círculo

Visão geral

Desde o início da história da humanidade, o círculo tem estado en-


tre nós. Os seres humanos naturalmente se reuniam em círculos,
em volta da fogueira, para longas conversas, algumas vezes em si-
lêncio, com o único propósito de estarem juntos. Neste nível bas-
tante essencial, o círculo é a forma que permite aos grupos relaxar,
praticar a escuta profunda e verdadeiramente pensar junto. Quando
praticado integralmente, funciona como uma incorporação física
das raízes da palavra diálogo: “significado que flui através de.”
Imaginemos um círculo de anciãos passando de um para outro,
o “bastão da fala”2. As atenções de todos vão se dirigir a quem es-
tiver segurando o bastão, e seus pensamentos, suas perspectivas e
sua sabedoria serão compartilhados. A voz de cada pessoa é valo-
rizada e prestigiada. Longas pausas de silencio são também parte
da conversa.
As pessoas podem se reunir em círculo regularmente, por perí-
odos que variam de alguns meses a vários anos, ou em uma única
vez. Nos últimos anos, o Círculo tem sido repetido com diversas
variações. De executivos em reuniões de conselho a integrantes de
comunidades rurais, muita gente está se reconectando ao valor
de conversar em círculo.
De alguma maneira, muitos dos processos descritos neste livro
usam o formato circular de reuniões, porque, em geral, é a confi-
guração mais apropriada para o diálogo. Nesta seção, entretanto,
tomamos o Círculo especificamente como método processual, não
apenas como um dispositivo físico.

2
Talking piece, no original, é uma adaptação do bastão usado pelos índios da
América do Norte em suas rodas de conversa (N.T.).
Ferramentas • 61

Os três princípios do Círculo

• Liderança rotativa entre todos os membros. Não se trata de um en-


contro sem líder — na verdade, todos são líderes.
• Responsabilidade compartilhada pela qualidade da experiência.
• As pessoas depositam a máxima confiança na inspiração, não em agen-
das pessoais. Existe um propósito maior no centro de cada Círculo.

Somos particularmente instigados pelas diretrizes desenvolvi-


das por Christina Baldwin do PeerSpirit. Inspirada por sua pesqui-
sa das tradições dos Povos Indígenas Norte-Americanos, Baldwin
é a autora do livro Calling the Circle (Invocando o Círculo), que con-
tribuiu significativamente para reintroduzir o processo do círculo
e para o desenvolvimento de um conjunto de práticas que pode
nos auxiliar a facilitar círculos de diálogo significativos. Essas dire-
trizes podem ser seguidas integralmente ou de modo mais livre.

Intenção

Tal como ocorre com a maior parte das ferramentas e dos pro-
cessos de um bom diálogo, o ponto de partida é o propósito e a
intenção. A intenção irá determinar quem deve ser convidado a
participar, quando, onde e por quanto tempo seguirão se reunin-
do, bem como sobre que questões irão conversar.
Quanto mais clara for a intenção, quanto maior o comprome-
timento com ela, mais forte será o círculo. Existem círculos de
liderança, nos quais as pessoas se juntam para apoiar umas as
outras em suas respectivas práticas de liderança, e também cír-
culos que se formam para resolver uma questão específica, como
incrementar um programa em uma empresa ou trabalhar coleti-
vamente para aumentar a segurança de um bairro da cidade. Pode
ser um grupo de trabalhadores que se reúne para conversar com
os patrões e tentar encontrar a melhor forma de lidar com a ne-
cessidade de demitir pessoas para reduzir custos, ou um grupo de
sem-teto reunido com membros de alguma congregação religiosa
local para juntos encontrarem as melhores maneiras de ajudá-los.
Às vezes, o círculo é simplesmente uma ferramenta usada den-
tro de um processo maior no curso de um workshop, ou em reuniões
semanais ou mensais de uma empresa ou de uma comunidade.
62 • Mapeando diálogos

Nesses casos, a intenção é mais informal — compartilhar expectati-


vas, entrar em contato com as outras pessoas, trazer à tona e enca-
minhar as preocupações e necessidades que as pessoas possam ter.

O anfitrião

Apesar de a liderança ser plenamente compartilhada no círculo,


sempre há um anfitrião para cada círculo em particular. Geralmen-
te o anfitrião é também quem convoca o círculo, mas, à medida
que os encontros se repetem, o anfitrião pode ir mudando a cada
reunião. Ele é o responsável por garantir que o círculo flua através
de suas fases principais e que a intenção seja mantida no centro do
diálogo. O anfitrião é também, com frequência, responsável, junto
com o guardião (ver abaixo), pelo espaço físico dos encontros.
Atenção particular é dada ao centro físico do círculo, que ge-
ralmente representa a intenção coletiva e pode ser marcado com
um tapete colorido, alguns símbolos ou objetos significativos e/
ou uma planta. Essa atenção ao centro do círculo traz o senso do
sagrado quando as pessoas se reúnem ao redor.

O guardião

O guardião presta atenção especial à energia do grupo, e também


se certifica de que este não está desviando da intenção. O guardião
pode interromper o curso do círculo para sugerir uma pausa ou
um momento de silêncio.

Fluxo de um círculo típico

Acolhida: as boas-vindas ajudam o grupo a se deslocar para


o espaço do círculo. Uma boa acolhida pode ser a leitura
de um poema, um momento de silêncio ou um pouco de
música, para ajudar as pessoas a chegarem integralmente e
estarem presentes umas para as outras e para o círculo.
Check-in: o que distingue o círculo de várias outras formas de
encontro é a importância de trazer a voz de cada um para o
ambiente onde o grupo está reunido. Assim, o círculo come-
Ferramentas • 63

ça com um check-in em que cada pessoa tem a oportunidade


de dizer como está se sentindo e também de compartilhar
suas expectativas em relação ao encontro. O anfitrião pode
fazer uma pergunta específica para os participantes respon-
derem durante o check-in. Também é comum pedir que cada
um deposite, no centro do círculo, um objeto que represente
sua expectativa, compartilhando um pouco do significado do
objeto ao depositá-lo. O resultado é uma interessante repre-
sentação visual dos anseios coletivos do grupo.
Acordos: uma vez formado o círculo, os membros devem
formular os norteadores ou os acordos sobre como querem
estar juntos. Essa é uma parte importante da coliderança,
na qual todos os participantes assumem a responsabilidade
pelo tempo que estarão juntos.
Despedida/Check-out: no final do círculo, da mesma forma que
houve o check-in no início, as pessoas fazem o check-out para
compartilhar como estão saindo. O foco do check-out pode ser
tão variado como cada círculo. Pode ser sobre o que cada um
aprendeu, como se sente em relação ao que veio à tona ou
como cada um se compromete a avançar a partir do encontro.
Em geral, todos os participantes falam durante o check-in e o
check-out, a não ser que explicitem sua escolha por não fazê-lo.

Componentes do Círculo

Preparação pessoal
Boas-
-vindas

Despedida Check-in
Check-out

Centro

Guardião Acordos

Três
práticas Intenção

Desenvolvido por Peerspirit


(www.peerspirit.com) para
From the Four Directions.
64 • Mapeando diálogos

Um modelo de assembleia

O círculo é bastante conhecido pelo uso do “bastão da fala”. O bas-


tão vai passando ao redor do círculo, e a pessoa que o está segurando
é a única que fala naquele momento. Ele pode ser qualquer coisa
— um objeto da natureza, uma foto, uma caneta, até um celular.
No entanto, seu uso não é obrigatório durante o círculo. Em geral,
o check-in é feito com o passar de um bastão, mas depois as pessoas
passam a falar sem ele.
Essa versão também costuma ser chamada de assembleia de con-
versa, na qual cada participante que tem algo a dizer terá direito a
falar. Depois que o grupo já estiver usando o formato do círculo por
um tempo, mesmo nessas assembleias de conversa, vai se conso-
lidando a prática de não interromper quem fala e de deixar cada
pessoa terminar antes de outra fala ter início. Às vezes, a conver-
sa fica muito acelerada no círculo, e o centro — ou a calma — se
perde. Nesse momento, o guardião, ou qualquer pessoa que sentir
necessidade, pode convidar o círculo a uma reflexão ou propor uma
assembleia silenciosa, em que todos permanecem em silêncio por
um instante, até que as ideias se assentem, antes de prosseguir com
o bastão ou continuar com a assembleia de conversa.

Exemplos dos acordos mais comuns

• Ouvir sem julgar


• Oferecer o que você pode e pedir o que você precisa
• Confidencialidade — o que é dito no círculo fica no círculo
• Silêncio também faz parte da conversa

Três práticas

O círculo é, basicamente, um espaço de fala e escuta, de reflexão


conjunta e construção de um significado comum. Selecionamos
três práticas que podem ser úteis para o alcance de uma atenção
de mais qualidade:
Ferramentas • 65

• falar com intenção: percebendo o que é relevante para a con-


versa naquele momento;
• ouvir com atenção: respeitando o processo de aprendizado
de todos os membros do grupo;
• cuidar do bem-estar do círculo: observando o impacto de
nossas contribuições.

Aplicações

Como já mencionamos, o Círculo é a forma mais fundamental


dos humanos se organizarem para uma conversa coletiva — prá-
tica que continua sendo usada em todo o mundo há milênios. O
trabalho de Christina Baldwin, em particular, tem alcance mun-
dial. Ela tem feito treinamentos na Europa, na América do Norte
e na África, e frequentemente reúne e divulga por e-mail as “Peer
Spirit Tales”, relatos de como o círculo vem sendo usado em di-
ferentes ambientes. Uma iniciativa feita em colaboração com o
Instituto Berkana chamada “From the Four Directions” [Dos qua-
tro cantos] motivou o lançamento de vários círculos de liderança
na América do Norte, na Europa e, em menor escala, em outros
continentes.
O Círculo é bom para:

• construir relações e possibilitar ao grupo uma conexão mais


íntima;
• criar igualdade entre pessoas que estão em níveis diferentes
dentro do grupo, organização ou comunidade, dando igual
valor e pedindo a participação de todos;
• desacelerar as pessoas, para que possam pensar juntas e
construir uma visão compartilhada.

O círculo é muito eficiente se usado como formato de reuniões


de grupo durante um tempo, e igualmente valioso para dar pro-
fundidade a um processo ou workshop por meio da inclusão de
check-ins e reflexões em círculo durante os encontros.
Segundo a nossa experiência, grupos de até trinta pessoas
(máximo de 35) deveriam se reunir em círculo. Com grupos de
66 • Mapeando diálogos

oito a quinze, pode-se obter maior profundidade. O círculo tam-


bém pode ser utilizado em processos mais amplos, dividindo o
grupo em vários círculos. Para tanto, é necessário ter familiari-
dade com os princípios básicos do Círculo, para poder gerir cada
subgrupo.

Exemplo de caso: Aldeia Kufunda

Na Aldeia Kufunda — um centro de aprendizagem focado no de-


senvolvimento das comunidades rurais do Zimbábue —, o Círcu-
lo tornou-se o cerne do trabalho e da forma como o centro é con-
duzido. Sempre que a aldeia faz a avaliação de seus programas ou
do trabalho com as próprias comunidades, o círculo aparece como
fator-chave do sucesso. As pessoas parecem se conectar inteira-
mente com ele, talvez porque já faça parte da cultura tradicional.
Na sua expressão mais simples, forma-se um círculo matutino a
cada dia, quando cada participante verifica como está se sentindo
com relação ao programa, checa qual aprendizado permanece e dá
voz às esperanças e expectativas para o dia.

“Nossas conversas aconteciam em volta da fogueira.


Todas as tardes, sentávamos ao redor dela e conversávamos.”
Silas, Aldeia Kufunda

O efeito do Círculo com os líderes das comunidades rurais


foi tal que, onde normalmente apenas os homens adultos con-
tribuiriam, todo mundo ganhou direito à fala. Lentamente, mas
de maneira segura, os participantes ganham confiança e natura-
lidade, de modo que cada um possa contribuir integralmente em
todas as ações coletivas. Ao final de vários encontros, os homens
manifestam sua surpresa ao notarem o quanto aprendem em
suas conversas com as mulheres (no sistema Shona, mulheres
e homens geralmente fazem reuniões separadas), os idosos e os
jovens.
O Círculo também tem sido aplicado nas comunidades atendi-
das pela Aldeia Kufunda e se transformou num formato natural
Ferramentas • 67

de encontro em todas as comunidades parceiras, permitindo que


as vozes dos jovens e a dos chefes sejam igualmente expressadas.
Uma vez por mês, acontece o encontro da equipe do centro Kufun-
da — ocasião em que o círculo é bastante usado (mas não apenas
ele), contribuindo para que as equipes possam colaborar de for-
ma mais íntima, encontrando espaço para se expressar e trabalhar
as questões importantes, suas preocupações, necessidades, novas
ideias, que talvez não pudessem ser compartilhadas com o grupo
na rotina do dia a dia. Além disso, cada equipe da Aldeia Kufunda
se reúne semanalmente, começando e terminando todos os en-
contros com um check-in e um check-out. Ou seja, as pessoas não
mergulham direto no trabalho ou nos afazeres, mas têm a opor-
tunidade de se conectar com os companheiros antes de começar o
trabalho. O check-out geralmente dispara um momento de reflexão
sobre como cada um se sente em relação ao que foi discutido ou
decidido. Quando a equipe entra em conflito por conta de mal en-
tendidos, um bom trabalho em círculo é ótimo para desanuviar o
ambiente, pois exercita as práticas de dizer a verdade, escutar sem
interromper e evitar a defensiva. Todos esses são aspectos que o
círculo ajuda a promover.
Outro exemplo de aplicação potente do círculo é a dos Alcoó-
licos Anônimos (AA). Suas reuniões semanais estabelecem diálo-
go e reflexão, testemunhando os desafios e os progressos de cada
um, e são parte essencial do modelo do AA. Nesses encontros, as
pessoas podem pedir ajuda frente às suas dificuldades individuais
para permanecer sóbrias, e a obtêm por meio das experiências e
do apoio de semelhantes. Não existe hierarquia, ao contrário, cria-
se uma comunidade de apoio para quem compartilha o desejo de
parar de beber e permanecer sóbrio. É um lugar onde as pessoas
podem se mostrar como são, deixando cair as máscaras, sem ne-
cessidade de esconder seus medos. Existem reuniões do AA aber-
tas e fechadas. As reuniões fechadas são as que mais se parecem
com o círculo tal como o descrevemos neste livro. As relações e os
conhecimentos construídos no AA, em geral, se transformam em
conquista para toda a vida e acabam se mostrando relevantes em
um conjunto mais amplo de situações.
68 • Mapeando diálogos

A relação a seguir reflete o que o círculo significa, tanto para os em-


pregados de Kufunda quanto para as comunidades parceiras, a par-
tir de uma série de avaliações realizadas.

• O círculo cria um sentido de pertencimento


• Todo mundo contribui
• Todo mundo é líder
• As pessoas falam com o coração
• O silêncio é válido
• Nos tira da zona de conforto
• Subverte a hierarquia
• Conecta as pessoas
• Cria intimidade
• É libertador
• A voz de todo mundo é ouvida
• É eficaz durante o conflito
• O círculo é regulado por norteadores criados pelo grupo
• Promove a igualdade

Comentário

Se o grupo for muito grande para formar um círculo, mas ainda


assim for preciso que as atenções de todos convirjam em uma con-
versa importante, uma abordagem útil pode ser o uso do “aquá-
rio”, conhecido também como Círculos de Samoa. Aqui os partici-
pantes são divididos em um círculo interno e outro externo, e só
o círculo interno fala enquanto o externo apenas escuta. O círculo
interno pode representar todo o grupo ou um subgrupo, e, às ve-
zes, é montado de tal forma que as pessoas podem se movimentar
entre um e outro. Tal processo é particularmente útil quando os
temas são controversos ou quando o grupo é grande demais para
caber em um único círculo.
Ferramentas • 69

Conscientização 
Resolução de problemas 
Construir relações 
Compartilhar conhecimento 
Inovação 
Propósito Visão compartilhada 
Construção de capacidades 
Desenv. pessoal/liderança 
Lidar com conflitos 
Planejamento/Ação estratégica 
Tomada de decisões 
Situação pacífica 
Situação conflitual 
Situação
Alta complexidade 
Baixa complexidade 
Pequeno grupo (≤ 30) 
Grande grupo (≥ 30) 
Múltiplas partes interessadas 
Participantes
e facilitadores
Grupo de pares 
Diversidade de níveis de poder 
Diversidade de culturas 
Requisitos específicos de facilitação 

Para muitos que ainda não estão acostumados com o círculo, a


lentidão das conversas e do pensamento pode ser frustrante. Com
70 • Mapeando diálogos

o tempo, a maioria das pessoas aprende a valorizar e apreciar os


benefícios dessa desaceleração conjunta, a fim de realmente es-
cutar cada um dos envolvidos. Em geral, quem tende a ter menos
voz e poder gosta muito do círculo, pois ganha espaço para falar;
já os acostumados a dominar as conversas poderão se sentir mais
frustrados.
É útil lembrar que pesquisas das ciências sociais têm demons-
trado que a primeira pessoa a falar costuma ter influência sobre o
que será dito em seguida e sobre a direção da conversa, e o círcu-
lo parece ser particularmente propenso a esse tipo de dinâmica,
o que pode ser útil e ao mesmo tempo problemático. A solução
é oferecer às pessoas tempo para refletir em silêncio e organizar
suas próprias ideias antes de começar a falar. Em geral, o anfitrião
deve levar em conta que, apesar de o círculo ter uma grande in-
fluência equalizadora no grupo, as dinâmicas informais de poder
não desaparecem e podem influenciar a conversação.

Fontes

BALDWIN, Christina. Calling the Circle: The First and Future Culture, 1994.
http://www.peerspirit.com
http://www.fromthefourdirections.org
Democracia Profunda

Visão geral

Existem muitos motivos para que as pessoas envolvidas em um


grupo não digam o que realmente pensam. Talvez o tema seja con-
siderado tabu, politicamente incorreto ou muito sensível. Outro
motivo poderia ser a crença de que não serão realmente ouvidos
e serão incapazes de influenciar a visão da maioria do grupo. A
Democracia Profunda é uma metodologia de facilitação baseada na
premissa de que existe sabedoria valiosa para todos na voz mino-
ritária e na diversidade de pontos de vista. Tal abordagem ajuda a
trazer à tona e dar voz ao que poderia ser silenciado.
A Democracia Profunda foi desenvolvida na África do Sul por
Myrna Lewis — junto com seu falecido marido Greg Lewis —
após 15 anos de trabalho intensivo nos setores privados e públicos.
Está fortemente relacionada à psicologia orientada ao processo, de
Arnold Mindell (worldwork), com a vantagem de oferecer um con-
junto de ferramentas mais estruturado e acessível.
Imagine um iceberg. Geralmente, apenas 10 por cento dele estão
acima da linha d’água, e os 90 por cento restantes permanecem
invisíveis, mergulhados na profundeza do oceano. Muitos piscó-
logos usam tal imagem como metáfora para o que é consciente e
inconsciente nos seres humanos. Apenas uma parte do que nos
impulsiona é consciente, o principal permanece inconsciente. De
modo semelhante, em um grupo que se reúne por qualquer pro-
pósito, alguns aspectos são conscientes para todos e outros perten-
cem ao inconsciente grupal. O inconsciente do grupo com frequên-
cia se revela nas conversas cara a cara ou nas pequenas conversas
de grupo, que acontecem fora das reuniões formais, por meio de
indiretas e brincadeiras, nas desculpas que as pessoas dão por es-
tarem atrasadas ou não fazerem o que deveriam fazer, ou ainda
em emoções e opiniões não expressadas verbalmente.
A maior parte do nosso trabalho é confortavelmente realizado no
domínio da consciência. No entanto, às vezes, algumas dinâmicas
72 • Mapeando diálogos

emocionais internas nos bloqueiam ou nos impedem de continuar


avançando, de solucionar um problema ou tomar uma decisão. A
Democracia Profunda foi desenhada para trazer à superfície es-
sas questões e facilitar sua resolução. A ideia é de que o maior
potencial e conhecimento de um grupo fica submerso nas profun-
dezas e emergirá quando o material inconsciente vier à tona. Se
algumas questões do grupo, mesmo passado um tempo, permane-
cem inconscientes em virtude de algum problema de comunica-
ção, talvez seja necessário um processo de conflito para liberá-las.
Conflito aqui não é visto como algo a ser evitado, mas como uma
oportunidade para aprendizagem e mudança. Quanto mais cedo o
conflito se expressar e as pessoas falarem abertamente sobre ele,
menos doloroso será o processo.
Um aspecto-chave da Democracia Profunda é que o processo
focaliza papéis e relacionamentos, não indivíduos. Normalmente,
pensamos nos “papéis” como papéis sociais, empregos ou posi-
ções. Na Democracia Profunda, o papel pode ser qualquer coisa
expressada por uma pessoa: uma opinião, uma ideia, uma emo-
ção, uma sensação física ou um papel arquetípico como pai/filho,
professor/aluno, vítima/opressor, quem ajuda/quem necessita de
ajuda, e assim por diante. Um papel é muitas vezes assumido por
mais de um indivíduo, e um mesmo indivíduo pode assumir mais
de um papel num grupo. Expressando seus papéis, o lado mais
pessoal de cada um é ligado ao universal, e todos, no fundo, temos
capacidade e potencial para expressar qualquer papel. Temos uma
identidade individual e o poder de acessar o padrão geral e o co-
nhecimento do todo.
Um sistema tenderá a ser mais saudável se os papéis forem
fluidos e compartilhados. Se uma pessoa permanece sozinha num
papel, este se torna um fardo pessoal. Se os papéis se demons-
tram exageradamente imutáveis, a organização ou grupo não está
crescendo. Na Democracia Profunda, o facilitador deve ajudar as
pessoas a tornarem seus papéis mais fluidos, a serem mais cons-
cientes de si mesmas, dos outros e da sua interdependência, e,
por meio disso, acessar sua sabedoria. O facilitador deve ajudar o
grupo a baixar o nível de água do seu iceberg.
Ferramentas • 73

Os quatro passos iniciais

São cinco os passos da Democracia Profunda. Os quatro primeiros


constituem uma abordagem única de tomada de decisão e explo-
ram o que está acima do nível da água:

• Não pratique democracia majoritária. A democracia majori-


tária tradicionalmente realiza votação para chegar a uma
decisão. Entretanto, a ideia de que a minoria acompanhará
sem conflitos a decisão da maioria é, na verdade, um mito.
Na Democracia Profunda, a decisão alcançada com o voto da
maioria não é o fim do processo. A minoria é encorajada a
se expressar. Não se acomode com o voto.
• Busque e encoraje o “não”. O facilitador precisa assegurar que
as pessoas possam expressar sua discordância, que não te-
nham medo de dizer “não”. A visão da minoria é encorajada
e ela é autorizada a falar.
• Dissemine o “não”. Uma vez que o “não” se expressou, per-
gunte a outros participantes se estão de acordo com esse
“não”, mesmo que apenas parcialmente. Normalmente, as
pessoas são encorajadas a concordar com o “não”. Este pro-
cesso evita criar um bode expiatório e que as pessoas sejam
isoladas e fiquem no ostracismo por discordarem.
• Acesse a sabedoria do “não”. Quando a maioria decide seguir
uma direção, a minoria precisa responder: “Do que você
precisa para seguir junto com a maioria?”. Não se trata de
uma segunda chance para a minoria dizer “não”. A minoria
agregará sabedoria e ajudará a elaborar melhor a decisão,
qualificando a mesma com os elementos necessários para
que ela possa seguir a decisão.

Esse processo é uma tentativa pouco comum de chegar a um


acordo no ponto em que a minoria costuma negociar e “comprar”
a decisão da maioria. Pode parecer construção de consenso, mas
não é exatamente a mesma coisa. Em muitas situações, quando não
há demasiado conflito por trás da decisão, esse processo de acordo
será suficiente. Se as decisões forem tomadas desta forma, a mino-
74 • Mapeando diálogos

ria se sentirá ouvida, o grupo se tornará mais consciente do por-


quê está fazendo o que está fazendo e os conflitos serão resolvidos
antes de se tornarem dolorosos.

Abaixo da linha d’água

Algumas vezes, não basta ficar acima da superfície. Quando a resis-


tência à tomada de decisão permanece, quando as pessoas mantêm
os mesmos pequenos argumentos, quando começam a soar como
um disco arranhado, quando não se sentem escutadas ou quando es-
tão falando de maneira muito indireta, é hora de mergulhar e avan-
çar ao quinto passo da Democracia Profunda. Para tanto, pode ser
usado um processo por meio do qual o facilitador aumenta o volume
da conversa. Se um participante fala de maneira indireta, o facili-
tador se intromete e fala por aquela pessoa, amplificando o que está
sendo dito, tornando a fala mais direta, sem rodeios.
O facilitador se transforma em instrumento para o grupo. Os
participantes falam diretamente uns com os outros, não com o
facilitador. Este vai tornando a mensagem clara e direta, o que pos-
sibilita o surgimento de questões com as quais o grupo deve lidar.
O facilitador não deve acrescentar significado, mas simplesmente
falar “em nome” dos participantes, adicionando “carga elétrica”
às palavras e buscando a reação dos demais. Os participantes, por
sua vez, devem saber que podem corrigir o facilitador caso este
distorça suas falas.
Para poder amplificar o que é dito, o facilitador precisa aplicar
um conjunto de meta-habilidades — atitudes e comportamentos pe-
los quais a ferramenta de facilitação é ativada. As duas habilidades
mais importantes são neutralidade e compaixão. O facilitador não
julgará o que as pessoas estão dizendo em termos de bom ou mau,
mas apoiará a totalidade de suas experiências. Por isso, é importante
que o facilitador trabalhe sua autoconsciência, para se posicionar no
grupo de forma centrada e consciente de sua própria bagagem.
Se, com a amplificação, a discussão se polarizar, o grupo pode
resolver entrar de fato no conflito — o que sempre é feito como
um acordo muito consciente, pedindo a todos os participantes que
se lembrem de que o propósito do conflito é o crescimento, e que
Ferramentas • 75

este deve permanecer no âmbito da vontade de manter o relaciona-


mento. Ou seja, não se trata de vencer uma batalha. Num conflito
de Democracia Profunda, todos os participantes concordam em se
expressar integralmente e aceitar completamente o seu lado no confli-
to. É bem diferente do que acontece em várias outras formas de re-
solução de conflito, nas quais os participantes são encorajados a ter
como foco a tentativa de entender o outro ponto de vista primeiro.
Durante o conflito, os participantes são explicitamente orien-
tados a não se expressarem de maneira defensiva; pede-se que,
aos poucos, possam ir “tirando tudo do peito”. Quando o conflito
começa a se resolver, geralmente descobrimos que os lados dife-
rentes passam a dizer o mesmo. Eles se tornam mais silenciosos
e contemplativos. Neste ponto, pede-se a cada participante que
compartilhe pelo menos um aprendizado pessoal — um “grão de
verdade” que possam ter recebido do conflito. A sabedoria desses
grãos de verdade deve ser confrontada com a questão inicial que o
grupo estava tentando resolver.

Aplicações

O processo Democracia Profunda é relativamente jovem, mas está


se difundindo rapidamente. Na África do Sul, tem sido usado em
ambientes corporativos, em escolas, por conselheiros para proble-
mas de HIV/AIDS e grupos de jovens. Myrna Lewis treina facilita-
dores para Democracia Profunda em vários países, incluindo Ingla-
terra, Estados Unidos, Dinamarca, Israel, França, Irlanda e Canadá.
A maior força da Democracia Profunda está no reconhecimen-
to do papel preponderante que a dinâmica emocional pode desem-
penhar na incorporação de conhecimento para a tomada de deci-
são. A Democracia Profunda também é muito útil em situações
em que as coisas não estão sendo ditas e precisam vir à tona; as
pessoas estão presas em determinados papéis e os conflitos estão
se multiplicando; existe uma diversidade muito grande de visões
dentro do grupo, e os diferentes lados de uma questão precisam
ser considerados; diferenças de poder estão afetando a liberdade
das pessoas para agir; existe a necessidade de retomar o contato
com uma minoria; e/ou as pessoas estão sendo rotuladas.
76 • Mapeando diálogos

Exemplo de caso: A Imigração na Dinamarca e o Tópico da Honra

A imigração é atualmente um dos problemas mais discutidos na


Dinamarca. É uma questão que tem tido impacto nas eleições
dos governantes e representantes, e não há um dia em que o
problema não seja coberto pelos noticiários. Em particular, existe
uma exacerbação do conflito entre a cultura muçulmana, profes-
sada por grande parte dos migrantes, e a cultura dinamarquesa
dominante.

“A imigração é um assunto tão quente para nós aqui na Eu-


ropa que, pela primeira vez, pude experimentar uma con-
versa franca e aberta sobre a questão, em que tudo o que
precisava ser dito foi dito, e todos saímos mais satisfeitos.”
Participante

Em maio de 2005, um grupo de vinte pessoas se reuniu em Co-


penhagen para conhecer a proposta da Democracia Profunda. Cer-
ca de um quarto do grupo era formado por residentes estrangei-
ros, enquanto os demais eram cidadãos dinamarqueses, metade
dos quais com etnia dinamarquesa e a outra metade proveniente
de segunda geração de migrantes, ou de etnias misturadas.
O facilitador pediu ao grupo para decidirem juntos sobre o
que gostariam de conversar. Dois participantes se ofereceram
para facilitar o processo de tomada de decisão. Um deles come-
çou dizendo que gostaria de falar sobre a questão da “honra”.
Ele trabalhava com jovens de uma comunidade de migrantes e
havia descoberto que, frequentemente, eles justificavam a vio-
lência com a desculpa de que alguém havia ofendido sua honra.
Queria entender o que isto significava e encontrar uma forma
de lidar com a questão, estancando a violência. Os demais par-
ticipantes “oscilaram” entre querer ou não discutir esse tópico.
Um estrangeiro disse que a questão da honra era totalmente ir-
relevante para o seu trabalho. Outro participante sugeriu que o
grupo deveria discutir o problema da imigração, aparentemente
sem se dar conta de que a questão da honra estava no cerne dos
problemas dos imigrantes.
Ferramentas • 77

No momento em que alguém tornou a discussão pessoal, di-


zendo que tinha se sentido atacado em sua honra por outro parti-
cipante, o grupo decidiu partir para o conflito facilitado. Por meio
do conflito, alguns participantes tornaram-se conscientes do pró-
prio racismo e de seus privilégios, ao passo que outros perceberam
o quanto vinham alimentando uma mentalidade de vitimização,
sem assumir responsabilidades. Alguns dos participantes imi-
grantes sentiam que os dinamarqueses haviam deixado a questão
da honra para trás há muitas gerações e, portanto, não entendiam
porque era um fator tão importante na cultura islâmica.
Surpreendente nesta discussão foi o fato de a cultura dinamar-
quesa ter encarado a si mesma como muito generosa em relação
aos migrantes. Um espaço no qual os migrantes pudessem criticar
a cultura dinamarquesa e falar abertamente sobre suas preocupa-
ções nunca havia sido criado antes, pois poderia ser recebido como
um gesto de ingratidão dos imigrantes. Na sequência da discussão,
quando ambos os lados puderam falar abertamente o que pensavam,
cada participante recebeu um “grão de verdade”. No dia seguinte,
havia uma nova compreensão entre os participantes do grupo, e um
sentido de empenho conjunto e desejo de colaborar para reduzir os
choques culturais na sociedade como um todo.

Comentário

A Democracia Profunda não é um processo comum. Estamos


acostumados a tentar evitar ou conter conflitos, polarizações e
desacordos. A Democracia Profunda, ao contrário, convida e al-
gumas vezes até provoca o conflito. Quando o processo funciona
bem, o resultado é uma maior abertura, transparência e um po-
deroso fortalecimento dos relacionamentos e da colaboração. Os
participantes podem vivenciar um processo no qual a maior parte
do tempo é gasta numa discussão antagonística e polarizadora, e
ainda assim terminarem com a sensação de terem participado de
um diálogo franco e empático.
É importante reconhecer que, quando a Democracia Profunda
encoraja o conflito, ela o faz com base na premissa de que o conflito
está sempre presente e é, na verdade, inevitável. Mas, infelizmente,
78 • Mapeando diálogos

o conflito costuma ser contido até que seja tarde demais para resol-
vê-lo ou para se conseguir chegar a uma solução pacífica. A ideia
aqui é tentar explicitá-lo o mais cedo possível, para que seja me-
nos doloroso e explosivo, e gerador de transformação. Isso é feito
ajudando as pessoas a se expressarem honestamente umas para as
outras a partir das ferramentas de facilitação dos cinco passos.

Conscientização 
Resolução de problemas 
Construir relações 
Compartilhar conhecimento 
Inovação 
Propósito Visão partilhada 
Construção de capacidades 
Desenv. pessoal/Liderança 
Lidar com conflitos 
Planejamento/Ação estratégica 
Tomada de decisões 
Situação pacífica 
Situação conflitual 
Situação
Alta complexidade 
Baixa complexidade 
Pequeno grupo (≤ 30) 
Grande grupo (≥ 30) 
Múltiplas partes interessadas 
Participantes e 
Grupo de pares
facilitadores
Div. por níveis de poder 
Div. por cultura 
Requisitos de facilitação específicos 
Ferramentas • 79

Acreditamos ser vital contar com um facilitador bem treinado


e experiente para o trabalho de Democracia Profunda, especial-
mente nos grupos em que muita coisa está em jogo. Entre as fer-
ramentas apresentadas neste livro, esta talvez seja a que requeira
um treinamento mais profundo para funcionar adequadamente,
e nunca chega a ser completamente dominada. Mesmo com um
bom facilitador, a Democracia Profunda costuma ser, num primei-
ro momento, frustrante para os participantes. Isso faz parte da
experiência e só aumenta a importância de se ter um facilitador
confiante, que enxergue com clareza o que está fazendo e por que
está fazendo.
O valor da Democracia Profunda em relação à facilitação por
meio do diálogo tem a ver, não só com sua filosofia e suas premis-
sas, mas também com as ferramentas específicas que ela apre-
senta. Algumas dicas simples de Democracia Profunda podem ser
úteis em qualquer processo de diálogo em grupo. Particularmen-
te, as ideias de “disseminar o não” e não deixar os participantes
presos a um papel nos parecem bastante úteis. Em vez de seguir a
tendência de responder diretamente às críticas e de isolar algumas
pessoas do grupo, deve-se convidar a voz crítica, perguntando se
mais alguém compartilha daquele ponto de vista. Quando existe
dissenso com relação à direção que o grupo está tomando, pergun-
te “o que falta para você nos acompanhar?”.

Fontes

www.deep-democracy.net
Busca do Futuro

Visão geral

A Busca do Futuro leva o “sistema inteiro” para dentro da sala


com o objetivo de enxergar as experiências do passado, do pre-
sente e do futuro dos participantes, por meio de uma agenda
focada em tarefas. Sua estrutura tem como base a intenção de
fazer com que todos os participantes se apropriem de seu pas-
sado, presente e futuro, para então encontrar um solo comum
a futuras ações coletivas. Uma conferência de Busca do Futuro
apresenta um tema especial, sobre o qual todos os interessados
trabalharão durante um processo de três dias de duração. Um
princípio importante deste processo depende da aceitação de to-
dos os participantes a um convite de passar alguns dias juntos
em uma missão exploratória.
A Busca do Futuro foi desenvolvida por Marvin Weisbord e
Sandra Janoff como um processo no qual diferentes grupos inte-
ressados em uma determinada comunidade ou organização po-
dem juntos planejar seu futuro. Marvin e Sandra são autores de
um livro chamado Future search, no qual explicam em detalhes
o processo que aqui sintetizamos. A Busca do Futuro tem uma
estrutura específica, que nasceu e evoluiu a partir das experiências
de centenas de encontros similares. O processo em geral reúne
entre sessenta e setenta participantes. Esse número está relacio-
nado ao princípio de trazer o “sistema inteiro” para dentro da sala,
selecionando pelo menos oito grupos de interessados, que são re-
presentados igualitariamente por aproximadamente oito partici-
pantes cada um.

O processo

O processo da Busca do Futuro recomenda uma agenda que inclua


pelo menos duas noites e três dias de trabalho. Uma agenda típica
de Busca do Futuro seria mais ou menos assim:
Ferramentas • 81

Dia 1, Tarde
Foco no passado: grupos misturados sentam-se para compar-
tilhar histórias de vida e discutir marcos importantes viven-
ciados ao longo de um determinado número de anos. Cada
participante faz um desenho que represente sua experiên-
cia em enormes flipcharts dispostos nas paredes, divididos
nas categorias sociedade/indivíduo. O resultado final será
uma série de experiências representadas graficamente nos
flipcharts. Esta galeria transmite a todos os presentes um
sentido de experiências coletivas de passado, bem como um
paralelo entre trajetórias individuais e em sociedade.
Foco no presente, tendências de futuro: reunido, o grupo faz uma
revisão das tendências que atualmente afetam nossas vidas
e comunidades. Essas experiências são documentadas pelo
facilitador em um “mapa mental”. Quando todas as experiên-
cias tiverem sido mapeadas, os participantes recebem peque-
nos círculos adesivos coloridos para “votar” nas tendências
que lhes parecem mais importantes. A sessão termina ofe-
recendo aos participantes a oportunidade de refletir sobre o
extraordinário diagrama de complexidade até o dia seguinte.

Dia 2, manhã (8h30-12h30)


Tendências (continuação): o grupo maior é dividido em
grupos de pessoas com contextos/interesses semelhantes.
Esses grupos de interesse reveem as tendências e decidem
quais são importantes e de quais gostariam de se apropriar.
Foco no presente, apropriando-se das ações: analisando as pró-
prias contribuições às tendências escolhidas, cada grupo
discute as que lhe dão orgulho e as que lamentam.
Nesse momento, cada grupo assume sua responsabilidade
pelas questões com as quais estão lidando. O grupo apre-
senta a todos os participantes seus “orgulhos” e “desculpas”
relativos às tendências por ele priorizadas.

Dia 2, Tarde (13h30-18h)


Cenas de futuro ideal: o grupo retorna à forma de grupos mis-
turados do dia anterior. O propósito deste exercício é ima-
ginar um futuro desejado, para daqui a dez ou vinte anos, e
dramatizar esta cena para o grupo maior como se estivesse
82 • Mapeando diálogos

acontecendo hoje. É muito importante que os grupos sejam


encorajados a pensar com suas mentes, corpos e emoções,
para acessarem suas aspirações inconscientes. Os grupos
precisam destacar, em suas apresentações, as barreiras que
ultrapassaram para chegar a esse futuro desejado que estão
encenando.
Identificando o território comum: uma vez que as cenas tive-
rem sido dramatizadas, os grupos misturados vão destacar
os temas de futuro comuns que emergiram. Vão também
analisar projetos ou estratégias potenciais que poderão aju-
dar a conquistar esses futuros. Finalmente, irão anotar os
desacordos que ainda permanecem.

Dia 3, manhã (8h30-13h)


Confirmando o território comum (continuação): o grupo
maior revê as listas de temas da tarde anterior. A discus-
são é facilitada para tentar entender o que cada declaração
significa, e se existe acordo em relação a ela. Se não existe
acordo, isto é anotado e o grupo prossegue. Este exercício
também explora a tensão entre o atual e o ideal. O grupo
precisa decidir se quer usar o limitado tempo remanescente
para aprofundar-se nas áreas de conflito ou se prefere focar
no território comum já demarcado.
Planejamento de ação: os participantes terão, neste momen-
to, a oportunidade de convidar outras pessoas que estejam
interessadas em determinados projetos ou temas para se
juntarem ao planejamento de ações. Este processo é seme-
lhante ao Espaço Aberto descrito em outra seção deste livro,
e o propósito é incentivar as pessoas a cruzarem as frontei-
ras ao abordarem seus temas de interesse. Os grupos farão
relatórios ressaltando como as informações e os planos de
ação serão implementados e disseminados, e a conferência
é encerrada.

Preparação para a Busca do Futuro

O processo de preparação de uma conferência de Busca do Futu-


ro é vital para o sucesso do encontro. Permitir que todos os inte-
Ferramentas • 83

ressados se apropriem do encontro e de fato compareçam é um


processo que demanda tempo. A Busca do Futuro é normalmen-
te “patrocinada” por uma organização em particular ou por uma
pessoa (muitas vezes, um ator-chave) que reúne as outras partes
interessadas e “promove” a preparação.

Aplicações

Este método tem sido amplamente usado no mundo todo, em todos


os continentes — em países como Sudão, Rússia, Sri Lanka, Botswa-
na, Suécia, Irlanda do Norte e Austrália —, sendo aplicado em dife-
rentes setores, como saúde, educação e negócios. Um extenso pano-
rama dessas aplicações está disponível no site do Future Search.
De acordo com Weisbord e Janoff, as condições requeridas
para o sucesso de uma sessão de Busca do Futuro incluem:

1. O sistema deve estar inteiramente presente. A Busca do Futuro


só funciona se “o sistema inteiro” estiver presente no local
de reunião. É fundamental que o maior número de partes
interessadas em uma questão esteja presente e que as dife-
rentes vozes de um “sistema total” estejam contribuindo.
Múltiplas perspectivas permitem que novas relações sejam
construídas, e uma parte interessada pode aprender muito
mais sobre si mesmo e sobre o mundo através da interação
com os outros atores do sistema. Se apenas uma parte da
história estiver sendo contada por um grupo de pessoas que
normalmente interagem entre si, o futuro coletivo não será
vislumbrado e a Busca do Futuro não funcionará.

É recomendável ter pelo menos dois encontros preparatórios com


um representante das partes interessadas para:
• definir o propósito e as expectativas;
• apresentar os facilitadores;
• decidir a programação;
• definir a lista de convidados;
• organizar a logística.
84 • Mapeando diálogos

2. A “visão geral” como contexto da ação local. Para que os par-


ticipantes estejam sintonizados na mesma frequência, é
importante que todos estejam falando sobre um mesmo
universo. Neste sentido, antes de fazer qualquer coisa, é im-
portante que o grupo descreva tal universo da forma mais
detalhada possível. Por isso, a conferência é iniciada com a
exploração de “tendências globais”.
3. Explorando a realidade atual e os futuros comuns, não os pro-
blemas e conflitos. As Buscas do Futuro se aprofundam nos
cenários futuros, não na resolução de problemas ou ad-
ministração de conflitos. O processo acolhe as diferenças,
mas não trabalha a partir delas, uma vez que o propósito
do encontro não é a construção de equipe ou resolução de
conflito. Neste processo, o terreno comum é a base para o
planejamento.
4. Planos de ação e de exploração administrados pelos próprios
grupos. Grupos autogeridos são utilizados ao longo do pro-
cesso, reduzindo a passividade, a hierarquia e a dependên-
cia dos facilitadores. A intenção é alternar o controle com
os facilitadores externos. Recomenda-se que os papéis de
facilitador, relator e controlador do tempo sejam alternados
dentro dos pequenos grupos.
5. Assistir a todo o encontro. É importante que cada participante
esteja envolvido nos movimentos que permitem modificar
a perspectiva sobre o que precisa ser feito e que ajudam a
construir o território comum. Para tanto, os participantes
devem estar presentes durante todo o encontro. Não se en-
coraja a presença de não participantes ou observadores.
6. Condições saudáveis para o encontro. Como foi enfatizado
na introdução, uma boa comida e um ambiente saudável e
agradável, com iluminação natural, favorecem a energia e a
capacidade de concentração. O espaço deve permitir a mo-
bilidade das pessoas e oferecer flexibilidade para alternância
entre pequenos e grandes grupos, com bastante espaço nas
paredes para os flipcharts.
7. Jornada de três dias de trabalho. O importante aqui não é a
quantidade de tempo, mas o intervalo de duas noites para
absorver o que foi aprendido. Acredita-se que, durante a noi-
Ferramentas • 85

te, o inconsciente trabalha as questões deixadas em aberto,


e, com base nesta premissa, o programa foi desenhado.
8. Comprometer-se publicamente com o prosseguimento. Fazer
com que os participantes selecionem os grupos de ação de
que farão parte e que declarem publicamente quais serão
seus próximos passos ajuda a criar um sentido de apropria-
ção e compromisso com o prosseguimento do trabalho.

Exemplos de caso

Os casos que apresentamos a seguir são adaptações extraídas do


livro Future Search, de Weisbord e Janoff, editado em 2000.
Construindo uma nação em Bangladesh. A UNICEF aceitou pa-
trocinar um treinamento de Busca do Futuro em Bangladesh, país
com uma população de 110 milhões de pessoas e inúmeros de-
safios sociais. A intenção era treinar facilitadores locais que, em
contrapartida, seriam anfitriões em encontros de Busca do Futuro
para desenhar novas realidades para o futuro do país e ajudar o
seu enorme contingente de pobres a sair da pobreza. Em 1994, fo-
ram reunidos cinquenta consultores, treinadores e gerentes locais.
Um dos desafios era a dificuldade dos participantes em ter sonhos
ambiciosos, como o de um país sem trabalho infantil. Todos en-
tão concordaram que “precisamos aprender a sonhar”. Algumas
conferências de follow-up foram planejadas, e Buscas do Futuro
foram feitas para tópicos como “Chega de crianças morrendo por
diarreia”, “Desenvolvimento da primeira infância”, “Trabalho in-
fantil”, “Interrompendo a difusão do HIV/AIDS”, entre outros.
Esses encontros provaram ser muito populares como ferramentas
de planejamento em Bangladesh, e, posteriormente, se dissemina-
ram a outras partes do Sudeste Asiático, incluindo Nepal, Paquis-
tão e Sri Lanka.
Desenvolvimento econômico regional: a comunidade Inuit, Canadá.
Quando os povos Inuit da região Ártica receberam uma nova terra,
eles embarcaram na Busca do Futuro para desenhar estratégias
de desenvolvimento econômico. O processo foi conduzido tanto
na língua local quanto em inglês, e incluiu a dança do tambor e
outros elementos tradicionais da cultura Inuit. A conferência reu-
86 • Mapeando diálogos

niu vários interessados do território recentemente formado, e pro-


duziu referências para educação e treinamento, desenvolvimento
social, preservação da cultura e da língua, desenvolvimento de
pequenas empresas, transportes, infraestrutura e outros aspectos
organizacionais do planejamento de ação. Os inuits organizaram
vários encontros subsequentes, e os líderes locais aprenderam as
técnicas da Busca do Futuro para aplicar em seus trabalhos de pla-
nejamento comunitário em vários níveis locais.

Comentário

A Busca do Futuro é um processo estruturado que conta com uma


sofisticada “arquitetura” e que foi conscientemente desenhado
para fluir em uma ordem particular. Este é um de seus pontos
fortes, mas pode acabar fazendo-o parecer muito rígido. É impor-
tante considerar que, embora as instruções sobre como realizar
uma Busca do Futuro possam indicar a existência de apenas uma
maneira de fazê-la, no website e nas newsletters podemos acompa-
nhar várias discussões e debates entre praticantes que adaptaram
o programa de várias formas, em diferentes contextos culturais.
Existe, claramente, certa variedade de formas usadas para aplicar a
Busca do Futuro. Um dos aspectos que consideramos mais poten-
tes é o uso das técnicas visuais e dos processos criativos. A linha de
tempo que o grupo monta em conjunto logo no primeiro dia, ocu-
pando paredes inteiras, geralmente conta uma história surpreen-
dentemente complexa, bem como o mapa mental multicolorido
das tendências atuais. De maneira semelhante, o desafio lançado
para que as pessoas dramatizem suas cenas de futuro, em vez de
apenas desenhá-las nos flipchart, convida as múltiplas inteligên-
cias e invoca a imaginação.
Também é importante considerar o que a Busca do Futuro não
pode fazer. Por exemplo, não pode compensar uma liderança fra-
ca. Se a liderança não atua sobre as ideias surgidas na Busca do
Futuro, o processo não funcionará. O processo termina com o pla-
nejamento das ações e deixa a implementação das mesmas sob a
responsabilidade e o comprometimento dos atores participantes.
Ferramentas • 87

A Busca do Futuro também não é capaz de reconciliar profun-


das diferenças de valores. Se as pessoas têm divergências muito
grandes por questões religiosas ou políticas, isto provavelmente não
será resolvido com a ajuda da Busca do Futuro, já que tal processo
deixa de lado os desacordos e privilegia os pontos em comum. Em
muitos contextos, isto é suficiente, mas se problemas internos ou
desacordos estiverem bloqueando a ação, talvez seja necessária a
substituição por outro processo ou uma complementação.
Finalmente, existem ótimos programas de treinamento para
Busca do Futuro, mas acreditamos que uma pessoa com boas téc-
nicas de facilitação seja capaz de conduzir um processo com base
no excelente material disponível no livro e no site.

Fontes

WEISBORD, Marvin; JANOFF, Sandra. Future Search: An Action Guide to


Finding Common Ground in Organizations and Communities, 1995, 2000.
www.futuresearch.net

Conscientização 
Resolução de problemas 
Construir relações 
Compartilhar conhecimento 
Inovação 
Propósito Visão partilhada 
Construção de capacidades 
Desenv. pessoal/Liderança 
Lidar com conflitos 
Planejamento/Ação estratégica 
Tomada de decisões 
88 • Mapeando diálogos

Situação pacífica 
Situação conflitual 
Situação
Alta complexidade 
Baixa complexidade 
Pequeno grupo (≤ 30) 
Grande grupo (≥ 30) 
Múltiplas partes interessadas 
Participantes
e facilitadores
Grupo de pares 
Div. por níveis de poder 
Div. por cultura 
Requisitos específicos de facilitação 
Escola para a Paz Palestino-Israelense

Visão geral

Em 1972, um grupo de árabes e judeus se juntou para criar uma


aldeia em Israel onde passariam a viver juntos, voluntariamente.
Eles deram o nome a esta aldeia de “Neve Shalom” / “Wahat El Sa-
lam”, que quer dizer “Oásis de Paz” em hebraico e árabe, respecti-
vamente. Em 1976, a comunidade fundou a Escola para a Paz, que
tinha a missão de criar programas de encontro para judeus e ára-
bes, baseando-se na rica experiência de vida em conjunto daquela
comunidade. Eles acreditavam que, conseguindo trazer judeus e
árabes para um encontro realmente pessoal, os estereótipos domi-
nantes seriam reduzidos e a paz se tornaria possível.
Hoje, os fundadores reconhecem que sua visão incial era muito
ingênua. Logo descobriram que a “hipótese do contato” — a ideia
de que tudo o que precisamos é encontrar e conhecer o outro —
empiricamente não funciona tão bem. Se você simplesmente junta
as pessoas e possibilita que elas se tornem amigas, o que acontece
é que, na cabeça dessas pessoas, os novos amigos são separados
do seu grupo de pertencimento. É uma atitude do tipo “Tudo bem,
você pode ser meu amigo, mas você não é um típico representan-
te, você não é como os outros judeus/árabes/negros/brancos...”.
Este tipo de racionalização mental é chamado “subtipificação”.
O conflito entre israelenses e palestinos se dá entre dois povos,
não entre indivíduos. A equipe da Escola para a Paz entendeu que
os estereótipos são apenas um sintoma que revela concepções e
crenças mais profundas, difíceis de erradicar. As identidades co-
letivas são reais, construídas a partir de crenças estáveis e profun-
damente enraizadas. Contrariamente ao que pregam algumas teo-
rias, essas identidades não são facilmente educáveis, descartáveis
ou intercambiáveis por desenvolvimento econômico.
Com base nesta realidade, eles desenvolveram uma abordagem
mais sofisticada e crítica para os programas de encontro — que
foram organizados como encontros entre duas identidades nacio-
nais — e começaram a incentivar os participantes a se identifica-
rem com seu grupo. A abordagem atual foi desenvolvida por meio
90 • Mapeando diálogos

de tentativa e erro, e só aos poucos e retrospectivamente foram en-


contrando mais teorias da ciência social que lhe davam suporte.

O processo

A intenção dos programas é permitir que os participantes exami-


nem sua própria identidade por meio do encontro com o grupo
oposto em diálogos autênticos e diretos. Trata-se de criar percep-
ção e compreensão reais, permitindo aos participantes compreen-
derem os processos turbulentos e violentos que vêm ocorrendo
em Israel, assim como seu papel nesse conflito. A escola cria um
espaço seguro que permite aos participantes examinarem, em gru-
po, seus sentimentos e ideias. Eles examinam criticamente coi-
sas que normalmente são dadas a priori, questionando a realidade
existente e apresentando novas possibilidades.
Cada programa abrange um igual número de participantes árabes
e judeus, bem como um número igual de facilitadores árabes e ju-
deus. Os grupos grandes são geralmente divididos em subgrupos de
aproximadamente 16 participantes — oito árabes e oito judeus, com
um facilitador árabe e um facilitador judeu designado para cada gru-
po. Tanto o arábe quanto o hebraico são línguas oficiais, e os partici-
pantes são incentivados a falar em sua língua materna com tradução.
O papel dos facilitadores é clarificar os processos, analisar e espelhar
para o grupo o que está acontecendo, além de criar links com a realida-
de externa por meio de diálogos contínuos com os participantes.
Os grupos se reúnem em dois fóruns: o grupo de encontro bi-
nacional (árabes e judeus juntos) e o uninacional (árabes e judeus
se reunindo separadamente). Os participantes geralmente passam
1/4 do tempo no grupo binacional e 1/4 no seu grupo uninacional.
Em um primeiro momento, os participantes tendem a criticar os
grupos uninacionais. Não conseguem enxergar o seu valor, já que se
dispuseram a um encontro com outra cultura. No entanto, à medida
que as conversas vão se tornando mais conflituais, o grupo unina-
cional começa a se tornar um lugar mais seguro, onde os partici-
pantes se sentem à vontade para ser vulneráveis, para examinar sua
própria identidade, para compartilhar pensamentos e considerações
mais profundas, e também para explorar subidentidades dentro do
seu grupo de origem. Essas subidentidades incluem, por exemplo,
as diferenças entre muçulmanos, cristãos e árabes druzos, e entre
Ferramentas • 91

judeus Ashkenazi (europeus) e Mizrahi (do Oriente Médio), bem


como entre judeus liberais e nacionalistas. É mais difícil examinar
essas diferenças no grupo de encontro binacional, porque a linha de
identidade árabe-judaica é proeminente nesse contexto.

Conscientização 
Resolução de problemas 
Construir relações 
Compartilhar conhecimento 
Inovação 
Propósito Visão partilhada 
Construção de capacidades 
Desenv. pessoal/Liderança 
Lidar com conflitos 
Planejamento/Ação estratégica 
Tomada de decisões 
Situação pacífica 
Situação conflitual 
Situação
Alta complexidade 
Baixa complexidade 
Pequeno grupo (≤ 30) 
Grande grupo (≥ 30) 
Múltiplas partes interessadas 
Participantes
e facilitadores
Grupo de pares 
Div. por níveis de poder 
Div. por cultura 
Requisitos específicos de facilitação 
92 • Mapeando diálogos

Os tópicos centrais para os diálogos intergrupais giram em


torno das desigualdades, das políticas israelenses, das dinâmicas
culturais e da experiência de ser árabe ou judeu em Israel. Os par-
ticipantes são convidados a trazer temas que considerem interes-
santes ou problemáticos. A ideia é que, para a mudança acontecer,
um genuíno e real diálogo olho no olho precisa acontecer entre es-
ses grupos. E para que os dois grupos pudessem estar juntos num
plano de igualdade e autenticidade, os facilitadores descobriram
que primeiro o grupo árabe deveria se fortalecer, livrar-se de seu
sentimento de inferioridade e extirpar a opressão internalizada.
Uma vez que fossem capazes de construir uma identidade intra-
grupal clara, confiante, autoconsciente e bem demarcada, estariam
mais bem equipados para conduzir diálogos intergrupais.

“A consciência, mesmo quando dolorosa, está encarnada


em um dos valores mais humanos: o direito de ter uma
escolha, e a opção de mudar e ser mudado.”
Rabah Halabi

Os grupos que vão para a Escola para a Paz são considerados


“microcosmos”. Ou seja, mesmo que não sejam representativos
demograficamente, todos os elementos da sociedade da qual fa-
zem parte podem ser encontrados, de alguma forma, em cada pes-
soa e em cada grupo. Os facilitadores acreditam que o processo
que se desenrola seguidas vezes nesses grupos reflete o caminho que
a sociedade como um todo está tomando, e a jornada que Israel,
como país, precisa atravessar. O processo pode variar dependendo
do programa. Oferecemos dois exemplos: um programa universi-
tário e um programa de jovens.

Aplicações

Até hoje, os programas da Escola para Paz já atenderam 35 mil


pessoas dos mais variados segmentos — desde advogados, estu-
dantes, até professores. Com esses programas, não só os partici-
pantes foram impactados, mas também seus amigos, colegas e
familiares. Essas pessoas também dão cursos nas principais uni-
versidades de Israel.
Ferramentas • 93

Não sabemos até que ponto a abordagem se disseminou e foi


replicada em outros países. A situação em Israel e na Palestina é,
certamente, extrema, mas muitas das dinâmicas que aparecem de
forma aguda neste processo são arquétipos comuns entre grupos
minoritários e grupos majoritários poderosos. O processo parece
ser altamente pertinente para enfrentar problemáticas raciais, ét-
nicas ou outras dinâmicas minoria-maioria em diferentes contex-
tos, e alguns de seus aspectos também podem ser úteis em diálo-
gos entre diferentes setores, gerações ou outros tipos de grupos.

Exemplos de caso: programas para jovens e adultos

Programa para adultos. O programa universitário que descreveremos


aqui foi implementado na Universidade de Tel-Aviv, entre 1996 e
1997. Um grupo de dezesseis estudantes, metade árabes, metade
judeus, participou de 22 sessões, com três horas de duração cada. O
grupo percorreu as cinco fases típicas desses programas.

1. Explorações iniciais e declarações de intenção: nesta primei-


ra fase, os participantes foram corteses e cuidadosos, e as
fronteiras dos grupos ainda não eram claras. Cada grupo
se identificava com membros do outro grupo, e a discussão
estava focada na natureza do encontro.
2. Fortalecendo o grupo árabe: neste momento, o grupo árabe
começava a se consolidar e se unir, demonstrando coragem,
fortalecendo-se mutuamente durante os encontros unina-
cionais. Eles conseguiam expressar as diferenças nesses
encontros, mas não diante do grupo de judeus. Os grupos
começaram a se sentar separadamente e expressar suas
identidades de maneira mais clara. Os árabes começaram a
dominar, focando na exigência de seus direitos e criticando
os judeus por serem opressores. Os judeus, por serem es-
tudantes universitários liberais, apoiavam a causa do outro
grupo, mas começaram a se sentir magoados.
3. Retomada do poder pelo grupo de judeus: o grupo de judeus
experimentou a perda de controle e poder, e, portanto, uma
perda de sua identidade. Eles não sabiam como lidar com
94 • Mapeando diálogos

a identidade forte dos árabes, até então desconhecida. Ma-


nifestavam frustração e até desespero. Alguns chegaram
a considerar a hipótese de desistir do programa. Estavam
começando, naquele momento, a assumir a posição de ví-
timas, apontando o quanto os árabes estavam invertendo
os papéis e denunciando sua falta de sensibilidade e huma-
nidade. O discurso era “nós entendemos vocês, mas vocês
não nos entendem”. Começou uma disputa sobre qual dos
grupos era mais humano. O grupo de judeus mirou no pon-
to fraco dos árabes. Como resultado, o grupo de árabes co-
meçou a se sentir angustiado, enquanto o grupo de judeus
recuperava o controle.
4. Impasse: os dois lados estavam exaustos e desesperados. O
diálogo parecia ter se extinguido. Neste momento, um dos
participantes começou a falar sobre as opções que tinham
à sua frente. O desespero deu lugar à ação e, no lugar da
sensação de causa perdida, emergiu um diálogo mais pro-
fundo. Ambos os grupos aceitaram equilibrar o poder e pu-
deram encarar-se “olho no olho”.
5. Um diálogo diferente: os judeus assumiram seu sentimen-
to de superioridade e se dispuseram a falar de si mesmos
como aqueles que estavam no poder e davam as cartas. Nes-
se momento, houve uma sensação de conquista e respeito
mútuo. A humanidade, de ambos os lados, foi restaurada
à medida que tanto os “oprimidos” quanto os “opressores”
puderam ser liberados dentro desse microcosmo. A iden-
tidade grupal passou a ser menos central e os participan-
tes puderam voltar a ser indivíduos. O diálogo retomou as
questões práticas de como viver junto e como retornar à
realidade.

Programas para jovens: os programas para jovens são os mais co-


muns na Escola para a Paz. São programas de quatro dias, mais
estruturados do que o programa para adultos e não tão intensos
psicologicamente como o que acabamos de descrever.
Nesses programas, em geral, cerca de sessenta estudantes do
ensino médio, com idades entre dezesseis e dezessete anos, são
reunidos e agrupados em grupos de quatorze a dezesseis pessoas
que realizarão trabalhos em paralelo durante os quatro dias.
Ferramentas • 95

1. O primeiro dia é focado nas apresentações pessoais e em


diminuir as ansiedades. Uma atmosfera confortável e oti-
mista é criada. Os participantes se apresentam, aprendem
os nomes dos demais participantes e os significados desses
nomes, conversam sobre temas familiares como escola, fa-
mília, planos para o futuro, e compartilham histórias pes-
soais em duplas. A ênfase é colocada no que eles têm em
comum. Jogos e atividades lúdicas ajudam a quebrar o gelo,
e um exercício que só pode ser realizado com a colaboração
entre culturas é proposto. As discussões políticas são evita-
das. As relações de poder ainda estão muito presentes, pois
os judeus tendem a verbalizar mais e todo mundo fala em
hebraico.
2. No segundo dia, os grupos começam a conhecer as culturas
de cada um. Organizados em subgrupos mistos de quatro
pessoas, os participantes recebem cartões com tópicos de
discussão sobre diferenças culturais. As conversas come-
çam com temas como “a forma como fazemos...” e “a forma
como eles fazem...”. Aqui o diálogo transita entre o inter-
pessoal e o intergrupal, e os jovens começam a encarar seus
sentimentos de superioridade e inferioridade. Após um en-
contro uninacional, voltam a se reunir em uma sessão con-
junta que começa a puxar o assunto da política por meio de
um exercício de “foto-linguagem”. Pede-se aos participantes
que escolham uma foto entre as que são apresentadas, e que
usem esta foto para descrever como se sentem sendo árabe
ou judeu em Israel. A partir dessas visualizações e das con-
versas, cada lado consegue expressar suas emoções e começa
a disputa para justificar sua própria narrativa. O dia termina
com encontros uninacionais. Neste momento, os dois lados
percebem que, para muitos deles, foi a primeira vez que real-
mente se engajaram numa discussão com o “outro”.
3. O terceiro dia acontece como um jogo de simulação. Os
jovens são levados a imaginar uma situação: em cinquenta
anos, existe uma situação de paz entre Israel e os Estados
Árabes, mas a situação das minorias árabes que vivem em
Israel não mudou. Manifestações acontecem, e o governo
de Israel começa as negociações com a minoria árabe so-
bre assuntos como: segurança, educação, símbolos e re-
96 • Mapeando diálogos

presentação, e o caráter do Estado. Os jovens devem criar


equipes de negociação para cada um desses quatro tópicos
e imaginar que fazem parte desse processo político. Eles
sentem dificuldade em saber se o que fazem é apenas um
jogo ou se reflete a realidade. Os participantes são desafia-
dos a descobrir por que estão lutando verdadeiramente e
que tipo de sociedade desejam ter.
4. No quarto dia, acontece um diálogo de encerramento, no
qual se conversa sobre como levar o que foi aprendido para
casa. Cada participante escreve uma carta que será copiada
para todos os demais e formará um álbum de recordações
da experiência; além disso, cada participante recebe um cer-
tificado de participação em uma cerimônia.

Comentário

A abordagem da Escola para a Paz é surpreendente e segue em


direção contrária a muito do que tem sido ensinado a respeito do
diálogo. O que nos atraiu e fez com que incluíssemos a proposta
neste livro é sua ênfase na autenticidade, em encarar a realidade e
desenvolver um processo que não é “importado” de outro contexto
diferente, mas realmente aplicável para Israel.
A maioria, senão a totalidade dos outros métodos aqui apresen-
tados, enfatiza que os indivíduos devem falar por si mesmos, que
ser representante ou porta-voz de um grupo ou organização inibe
o diálogo. Aqui, a centralidade da identidade coletiva não é ignora-
da, ela é incorporada. Muitas das outras ferramentas descritas nes-
te livro foram desenvolvidas por pessoas em situação de privilégio
e poder. Mais do que qualquer outra ferramenta, a Escola para a
Paz ajuda a compreender a perspectiva de grupos minoritários e
desempoderados.
Contudo, a abordagem é difícil e complexa, e os participantes
podem senti-la como pouco respeitosa frente às diferenças indivi-
duais e muito fechada à expressão pessoal. Ao incluirmos a pro-
posta, não pensamos que deveria ser repetida integralmente, mas
que as questões levantadas a partir das diferenças de encontros
entre indivíduos e encontros entre grupos fossem consideradas;
Ferramentas • 97

além disso, seria interessante incorporar algumas dessas questões


em processos em que diferenças de poder sejam notadas entre os
grupos reunidos. Em particular, pode valer a pena adotar a propos-
ta em muitos trabalhos com grupos intersetoriais, interculturais
ou intergeracionais, para possibilitar aos participantes esta movi-
mentação entre grupos diversos e grupos homogêneos.

Fontes

RABAH HALABI, Ed. Israeli and Palestinian Identities in Dialogue: The


School for Peace Approach, 2004.
http://sfpeace.org
Tecnologia do Espaço Aberto

Visão geral

A Tecnologia do Espaço Aberto (Open Space) permite que grupos,


grandes ou pequenos, possam se auto-organizar para lidar de for-
ma mais efetiva com questões complexas em um curto espaço de
tempo. Os participantes criam e administram sua própria agenda
de sessões paralelas de trabalho em torno de um tema central de
importância estratégica. O que o Espaço Aberto oferece é, no míni-
mo, uma nova forma de conduzir melhores encontros. É possível,
contudo, que evolua e se torne uma nova forma de organização,
inspirando tanto empresas inteiras quanto pequenas comunidades.
Harrison Owen inaugurou a Tecnologia do Espaço Aberto em
meados da década de 1980. Owen tivera várias experiências de
boas e excelentes conferências, nas quais os destaques eram as
conversas que surgiam fora da programação formal — o que o
levou a pensar se uma forma diferente de organizar as reuniões
seria possível. A questão foi evoluindo até chegar à pergunta sobre
como combinar o nível de sinergia e excitação presentes em um
bom coffee break com a atividade e os resultados que caracterizam
uma reunião produtiva.

“No Espaço Aberto, nenhuma ideia fica escondida ou não


dita. Tudo vem à tona.”
Praticante do Espaço Aberto

Ao procurar as respostas, Owen se inspirou num rito de pas-


sagem de jovens do sexo masculino que teve a oportunidade de
assistir numa aldeia africana situada na Libéria. Mesmo que apa-
rentemente não existisse nenhum comitê de organização ou estru-
tura formal, os quatro dias do ritual transcorreram perfeitamente,
com todas as quinhentas pessoas presentes administrando, elas
mesmas, as atividades, os eventos, a comida, a música e todos os
demais componentes do cerimonial. Dessa experiência, Owen
retirou alguns dos princípios fundamentais que configuraram o
Ferramentas • 99

Espaço Aberto no seu formato atual. Resumidamente, são eles: o


círculo, como o centro onde a organização acontece; uma respi-
ração, ou ritmo, que as pessoas conheçam e que possa funcionar
como elemento aglutinador; o mercado da aldeia, onde são feitas
conexões em torno a diferentes ofertas; e o mural de informações,
para onde as notícias são enviadas para serem compartilhadas.
Desde então, o Espaço Aberto se tornou o sistema operacional
de alguns dos maiores encontros autogeridos mundiais. O benefí-
cio desta tecnologia é que as pessoas se envolvem para contribuir
e trabalhar em áreas em que estão verdadeiramente engajadas e
comprometidas. O risco (para algumas pessoas) é que existe total
liberdade para as pessoas escolherem suas respostas e seus níveis
de envolvimento, sem serem controladas por um planejador ou
organizador.

Como funciona

Uma reunião de Espaço Aberto pode durar de duas horas a vários


dias. As pessoas se reúnem e, juntas, criam uma agenda, modelan-
do-a segundo as paixões e os interesses dos envolvidos. Cada Espa-
ço Aberto começa com uma grande roda. Um facilitador é tudo o
que é preciso. Após as boas-vindas iniciais, o facilitador apresenta
o tema ou a questão-chave que trouxe as pessoas ao encontro e
explica que, durante a próxima hora, será criada uma agenda em
uma grande parede nua. Explica também que todas as sessões se-
rão sugeridas e conduzidas pelos próprios participantes.
As pessoas são convidadas a propor sessões e discussões sobre
temas instigantes, pelos quais desejam assumir responsabilidade,
respondendo ao tema ou à questão exposta. Porém, antes de ini-
ciar a construção coletiva da agenda, o facilitador deve explicar os
princípios básicos e a lei do Espaço Aberto.

Quatro Princípios

• “As pessoas que vierem são as pessoas certas.” Este princípio con-
vida os participantes a abrirem mão de sua necessidade de
100 • Mapeando diálogos

escolher indivíduos específicos para os seus grupos. Eles tal-


vez queiram ter certas pessoas influentes ou especialistas em
uma determinada área. Entretanto, a partir deste princípio,
precisam enxergar que os que demonstram interesse a ponto
de escolherem livremente participar de uma sessão de conver-
sa deste tipo são os mais indicados para iniciar o trabalho.
• “A hora que começar é a hora certa pra começar.” Este prin-
cípio reconhece que, embora as sessões devam começar
numa determinada hora, a criatividade e a inspiração nem
sempre surgem no momento desejado. As coisas realmente
começam quando estão prontas para começar.
• “O que acontecer é a única coisa que poderia ter acontecido.”
Resumindo: abra mão das expectativas sobre como e para
onde as coisas devem seguir. Precisamos aprender a aban-
donar tais expectativas e tentar estar presentes e atentos ao
que de fato está acontecendo e emergindo entre nós.
• “Quando acabar, acabou.” Não sabemos quanto tempo é
preciso para examinar um problema. No Espaço Aberto, o
problema é mais importante do que a programação. Se ter-
minarmos antes do tempo regulamentar, passamos a outro
tema. Não precisamos ficar presos a um assunto porque a
programação diz que o tempo ainda não acabou. O mesmo
vale para a situação oposta. Se não terminamos antes de o
tempo regulamentar acabar, podemos fazer uma rearruma-
ção e estender o tema a outro espaço da agenda, deixando
sempre a informação visível no mural para que os demais
participantes conheçam e/ou encontrem meios de prosse-
guir com o trabalho após a conferência.

Uma lei

A “lei dos dois pés” estimula as pessoas a se responsabilizarem por


seu próprio aprendizado, por sua paz de espírito e por sua contri-
buição. Se alguém estiver numa posição em que não sinta que está
aprendendo ou seja capaz de contribuir, esta lei o encoraja a sair
e mudar-se para outro grupo, onde acredite poder agregar valor e
se sinta mais engajado. Essa pessoa pode também simplesmente
Ferramentas • 101

resolver fazer outra coisa. O importante é que ninguém deve estar


em lugares onde sinta estar perdendo tempo.

“Não posso imaginar um método melhor que permita a


um grupo descobrir seu potencial.”
Praticante do Espaço Aberto

Seguindo essa lei, alguns participantes se transformarão em


“zangões”, pessoas que voam entre as seções e, tal como as abe-
lhas, carregam o pólen entre uma sessão e outra; ou então em
“borboletas”, que, em alguns momentos, escapam de uma sessão
formal para escutar sua própria intuição sobre o que deveria ser
feito em determinado momento. Às vezes, duas borboletas se en-
contram fora de uma sessão, em conversas informais, e um novo
tópico pode surgir dessas conversas.
Os quatro princípios e a lei fornecem o contêiner para o Espaço
Aberto, permitindo às pessoas assumirem inteira responsabilida-
de por seu próprio aprendizado e contribuições. Essas mesmas
pessoas criam o contexto no qual irão focar e trabalhar, mas per-
manecem flexíveis e abertas a surpresas. “Prepare-se para ser sur-
preendido” é um lembrete típico em encontros do Espaço Aberto.
Após essas instruções básicas, o grupo estará pronto para
preencher o mural vazio (ver o exemplo). O facilitador pede que
os participantes pensem em uma ideia ou questão em resposta ao
tema proposto. Após um breve momento de silêncio, o facilitador
convida quem estiver pronto para ir para o centro a pegar uma ca-
neta pilot e um pedaço de papel e escrever sua ideia ou pergunta,
lendo-a em voz alta e pendurando-a no mural — escolhendo uma
das opções de espaço/tempo previamente definidas. Às vezes, se-
guem-se momentos de silêncio, mas, invariavelmente, as pessoas
começam a se levantar e escrever.
Logo depois, a agenda para o dia ou para a semana é estabe-
lecida. As pessoas vão até o mural para ler as diferentes ofertas,
inscrevendo-se nos grupos em que gostariam de estar.
E, assim, o trabalho pode começar. Em um Espaço Aberto mais
longo, o grupo maior se reunirá por algum tempo pela manhã
e à tarde para relatar os aprendizados mais importantes, colocar
novas propostas no mural e ajudar a manter o sentido do todo. O
102 • Mapeando diálogos

facilitador de cada subgrupo deve compilar um relatório de sua


própria sessão. Normalmente, os resultados são reunidos e digita-
dos ao longo de todo o encontro, para que as pessoas voltem para
casa levando um relatório final.

Sala Salão Lounge Biblioteca Jardim


principal de chá

8:30-9:30 Encontro da comunidade

9:30-11:00

11:00-13:00

13:00-14:00 Almoço

14:00-15:30

16:00-17:30

17:30-18:00 Convergência

Quando é preciso tomar decisões, deve-se reservar um tempo


para focalizar e priorizar o material resultante no final. Isso pode
ser feito em poucas horas, mesmo com grupos maiores.

Aplicações

O Espaço Aberto tem sido aplicado no mundo todo: em localida-


des da África do Sul, em diálogos entre Israelenses e Palestinos no
Oriente Médio, em muitas empresas e multinacionais, em ONGs
que atuam no planejamento e mobilização de comunidades e no
setor público. Pode ser aplicado em grupos de cinco a mil pessoas.
Segundo Harrison Owen, o Espaço Aberto funciona melhor quan-
do existe conflito; quando as questões são complexas; quando
existe enorme diversidade de atores e interessados; e quando se
busca uma resposta “para ontem”. O investimento pessoal é mui-
to importante, bem como um real sentido de urgência entre os
participantes. Quanto maior a diversidade, maior o potencial para
verdadeiras descobertas e desdobramentos inovadores. Funciona
Ferramentas • 103

particularmente bem na passagem do planejamento à ação, em


que a ação concreta é facilitada pelas pessoas que estão presentes
e responsáveis pelas áreas que elas mesmas consideraram impor-
tantes.
O Espaço Aberto pode ser usado sozinho, mas funciona igual-
mente bem, e às vezes até melhor, quando combinado com outras
ferramentas e processos, tais como o World Café, a Investigação
Apreciativa, o Planejamento de Cenário e outras. Nesse caso, usar
o Espaço Aberto mais para o final de um encontro tem sido um
pouco o padrão, para permitir que o processo inicial de clarificar
ideias e perspectivas seja seguido pelo momento de assumir res-
ponsabilidades por certas partes do trabalho.

Dois exemplos

O primeiro caso é um relato extraído de um artigo de Harrison


Owen no começo da Tecnologia do Espaço Aberto. No início do
verão de 1992, o Espaço Aberto foi usado em um muncípio da
África do Sul para promover discussões úteis entre vários grupos
políticos. O foco da conversa era a melhoria das comunicações
nessa região específica.
Durante um dia de trabalho, representantes de vários partidos
políticos trabalharam junto a industriais da redondeza (a maioria
brancos). Seria grande exagero afirmar que todas as questões fo-
ram resolvidas ou que o amor e a luz irromperam abundantemen-
te. Mas as discussões foram bastante intensas, produtivas, sem
rancor, e contrastaram muito com as condições de uma cidade
vizinha, onde as conversas haviam cessado e o derramamento de
sangue começado.
Houve também a continuidade dos benefícios. Vários dias após
o encontro, um dos participantes chamou o facilitador para dizer
que, durante os dois anos em que havia sido presidente do comitê
de coordenação de uma escola local, tentou fazer com que as pes-
soas se envolvessem na construção de seu futuro. Nada tinha dado
certo. Quando foi experimentada a Tecnologia do Espaço Aberto,
o problema se reverteu e os participantes ficaram totalmente en-
volvidos.
104 • Mapeando diálogos

“Os dois dias de Espaço Aberto que se seguiram foram um


sucesso, um milagre nas palavras do CEO, que acrescentou
que, há 3 anos, eles receberam, em uma reunião em Israel,
um espesso relatório feito por uma empresa estratégica in-
ternacionalmente famosa, que custou 1,5 milhão de dólares e
que dificilmente poderiam implementar. Agora nós produzi-
mos de uma forma muito mais eficaz ao custo de uma página
daquele relatório e conseguimos implementá-lo todo.”
Avner Haramati

Um segundo caso traz o exemplo de como o Espaço Aberto,


acoplado a um processo de Investigação Apreciativa, pode ajudar
organizações internacionais a construir uma plataforma comum
e planejar o futuro. A Children’s International Summer Villages —
CISV (Aldeias Infantis de Verão) — é uma entidade sem fins lu-
crativos que desenvolve a consciência transcultural em crianças e
jovens de todo o mundo por meio da educação para a paz. Eles têm
mais de sessenta escritórios e queriam desenvolver um novo plano
estratégico, envolvendo as bases da organização. Decidiram usar
o processo de Investigação Apreciativa junto com o Espaço Aberto
para conjugar o potencial da IA em coletar informação e construir
uma fundação, uma direção e uma visão de futuro compartilhadas
com a força do Espaço Aberto de mobilizar pessoas para a ação nas
áreas em que elas têm profundo interesse.
Cada país recebeu um pequeno manual que explicava o pro-
cesso de Investigação Apreciativa, e teve início uma série de entre-
vistas para coletar histórias pessoais de inspiração e beleza, que as
pessoas traziam de sua vivência na organização.
Milhares de entrevistas foram compiladas em um livro, apre-
sentando uma síntese de valores e desejos para o futuro. O livro
tornou-se a base de um encontro IA de dois dias e meio, no qual
as pessoas mergulharam em histórias e dados, construindo um
sentimento de orgulho e clareza sobre o que sabem fazer bem e as
áreas em que podem desenvolver naturalmente seus potenciais. A
partir daí, foram desenvolvendo metas tangíveis para o futuro (na
forma de proposições provocadoras).
Um tema geral para o futuro tornou-se a questão-chave de um
dia de Espaço Aberto, que incluiu 150 pessoas de várias partes do
mundo. Os resultados foram fantásticos. Muitas ideias práticas,
Ferramentas • 105

planos e novos pontos focais emergiram do CISV, e no final foram


ranqueados e votados pelos participantes que estavam presentes e
por várias outras pessoas que participaram online.
Ao apresentarem os resultados dos pequenos grupos, as pesso-
as relacionavam seus relatórios com as metas globais, certifican-
do-se de que todos entendiam as implicações de cada relatório e
como ele se vinculava à perspectiva geral antes da votação. Todos,
inclusive os participantes online, votaram nas prioridades para o
CISV. Também foi identificada a direção em que gostariam de co-
meçar a movimentar a organização.
O que se conquistou neste processo foi um plano — um pla-
no que ganhara vida com os participantes e que, de certa forma,
mesmo antes de serem dados os primeiros passos, já tinha entra-
do em ação. Os processos AI e Espaço Aberto foram usados para
reacender a paixão que existe nos movimentos de base, reunindo o
compromisso de todos de implementar as ações escolhidas.

Comentário

O Espaço Aberto funciona particularmente bem quando a paixão,


o envolvimento e as questões-chave estão presentes. Quando isso
acontece, a técnica realmente pode ajudar o grupo a avançar rapida-
mente e com mais clareza. Por outro lado, pode ser de pouca serven-
tia quando o interesse e o engajamento são pequenos. Os partici-
pantes precisam estar presentes porque querem, não obrigados ou
persuadidos. Por isso, a intenção e a expressão desta intenção, já no
convite para a sessão ou encontro de Espaço Aberto, são vitais.
Por ser tão versátil, atribuímos a esta tecnologia uma pontuação
média na maioria das categorias da nossa ficha de identidade da
ferramenta. Obviamente, isso não quer dizer que o Espaço Aber-
to seja uma ferramenta medíocre. Quando utilizada de maneira
apropriada, pode fazer toda a diferença. Com uma clara intenção e
na presença de uma necessidade real, o Espaço Aberto é um lindo
testemunho de quão pouca organização é necessária quando se per-
mite que as pessoas auto-organizem o trabalho. Na verdade, a arte
de um planejador de reuniões, nas sessões mais potentes de Espaço
Aberto, consiste em aprender a “sair da frente” e dar espaço aos par-
106 • Mapeando diálogos

ticipantes. Tal característica faz também com que o Espaço Aberto


seja uma ferramenta bastante acessível a novos facilitadores.

Conscientização üü
Resolução de Problemas üüü
Construir Relações üü
Compartilhar Conhecimento üüü
Inovação üü
Propósito

Visão Partilhada üü
Construção de Capacidades üü
Desenv. Pessoal/Liderança üü
Lidar com Conflitos üü
Planejamento/Ação Estratégica üüü
Tomada de Decisões üü
Situação Pacífica üü
Situação Conflitual ü
Situação

Alta Complexidade üü
Baixa Complexidade üü
Pequeno Grupo (≤ 30) üü
Participantes e Facilitadores

Grande Grupo (≥ 30) üü


Múltiplas Partes Interessadas üü
Grupo de Pares üü
Div. por Níveis de Poder ü
Div. por Cultura üü
Requisitos Específicos de Facilitação ü
Ferramentas • 107

Por outro lado, muitas vezes é interessante conjugar Espaço


Aberto com outros processos, pois existe um grande risco de que
uma conferência deste tipo termine sem que a convergência acon-
teça entre os diferentes grupos. Ótimas conversas podem ter acon-
tecido nos pequenos grupos, mas elas acabam não sendo “costura-
das” adequadamente. Encontrar as maneiras de criar convergência
e reconexão com o todo é o maior desafio para os facilitadores e
organizadores que utilizem esse processo.
Além disso, embora Harrison Owen aponte que o Espaço Aber-
to é útil em situações de conflito, pela nossa experiência, sabemos
existir certo risco de que as partes conflitantes escolham trabalhar
apenas com as pessoas que concordam com elas. Por isso, com-
binar o Espaço Aberto com outros processos mais direcionados à
resolução de conflitos (mais do que manter a produtividade apesar
do conflito) pode ser muito útil. De modo parecido, enquanto o
Espaço Aberto equaliza as estruturas formais de poder, oferecendo
aos indivíduos com menos poder o mesmo direito de coordenar
sessões, outros processos podem ser necessários para trabalhar as
dinâmicas informais de poder, para que se construam a confiança e
a liberdade genuína necessárias para que isto ocorra.
O Espaço Aberto está diretamente relacionado a devolver a res-
ponsabilidade aos participantes. Duas perguntas vitais que carac-
terizam o processo são: “O que você quer realmente fazer?” e “Por
que você não vai em frente e faz?”. Assim como no World Café, e
em vários outros processos, a verdadeira arte consiste em identifi-
car as perguntas e os convites certos, que possam realmente mobi-
lizar as pessoas em uma arena coletiva de pensamento e ação.

Fontes

OWEN, Harrison. Expanding our now: the story of Open Space Technology,
1997.
OWEN, Harrison. Open Space Technology: A user’s guide, 1997.
http://www.openspaceworld.com
Planejamento de Cenários

Visão geral

Os cenários são imagens possíveis e plausíveis do futuro. Eles são


criados a partir de uma série de conversas nas quais um grupo
inventa e considera histórias variadas sobre como o mundo pode
estar no futuro. O ideal é que tais histórias sejam cuidadosamente
pesquisadas, ricas em detalhes e capazes de expor novas compreen-
sões e algumas surpresas. Os cenários são poderosas ferramentas
para questionar algumas suposições sobre o mundo, por isto libe-
ram as barreiras de nossa criatividade e entendimento do futuro. O
termo “planejamento de cenário” foi originalmente cunhado pela
RAND Corporation, durante e após a Segunda Guerra Mundial,
como parte de sua estratégia corporativa. Quando Herman Kahn
deixou a RAND, montou o Instituto Hudson e desenvolveu ain-
da mais o processo, começando também a escrever o livro O ano
2000, que seria publicado em 1967. No final da década de 1960,
o processo decolou como ferramenta e evoluiu consideravelmen-
te. Originalmente, o planejamento de cenário começou apoiado
no paradigma do “predizer e controlar”, segundo o qual cenários
probabilísticos para o futuro eram esboçados. Tal paradigma foi
significativamente alterado ao longo dos anos, sobretudo devido
ao trabalho de Pierre Wack na Shell, na década de 1970. Wack se-
parava as questões predizíveis das incertas, trabalhando com as
incertezas e observando como elas influenciavam vários cenários.

“A construção de cenário é intensamente participativa ou


fracassa.”
Peter Schwartz

Hoje, o planejamento de cenário sustenta a noção de que o


mundo é intrinsecamente incerto. Os cenários não são usados
como ferramentas para predizer o futuro, mas como um processo
que desafia as suposições, os valores e os modelos mentais sobre
como as incertezas podem afetar o futuro coletivo. Ao encorajar
processos de planejamento de cenário em diferentes níveis de uma
Ferramentas • 109

organização ou comunidade, velhos paradigmas são colocados em


xeque, e a inovação é estimulada por meio de surpreendentes his-
tórias alternativas sobre o futuro. Os cenários, desta maneira, aju-
dam a desenvolver novos e valiosos conhecimentos.
Ao trazer múltiplas perspectivas para uma conversa sobre o fu-
turo, uma rica e multidimensional variedade de cenários é criada.
Os cenários promovem as narrativas de histórias e o diálogo entre
pessoas que não necessariamente compartilhariam perspectivas e
pontos de vista umas com as outras.

Preparação para um processo de Planejamento de Cenário

Antes de embarcar num processo de cenário, é importante definir


se esta é a alternativa correta a ser utilizada e em que contexto se-
ria mais útil. Cenários são geralmente usados quando existem as
seguintes condições:
• alto nível de complexidade em uma dada situação, difícil de
ser compreendida;
• necessidade de foco a longo prazo (pelo menos alguns anos à
frente) para observar o futuro e saber como responder a ele;
• incerteza sobre como o ambiente externo poderá impactar
uma situação particular;

O processo de planejamento de cenário pode ser adaptado de acor-


do com as seguintes questões específicas:

• Qual o propósito do processo?


• Quantos “atores” devem fazer parte do processo para que sejam
vislumbradas as perspectivas de futuro?
• Que partes do ambiente externo devem ser focadas quando os
cenários estiverem sendo considerados?
• Existe algum tipo de controle dessas variáveis externas por qualquer
das partes interessadas?
• Qual é o horizonte de tempo a ser considerado?
• Quem, no nível da liderança, está endossando esse processo?
• Quem deve se comprometer com os eventuais resultados?
110 • Mapeando diálogos

• há recursos disponíveis para investir em uma série de con-


versas entre diferentes atores por um período de tempo, e
para distribuir esses cenários de maneira extensiva.

Construindo um conjunto de cenários

Controle

3. Opções 4. Decisões

Incerteza Certeza

2.a Incertezas-chave 1. Regras do jogo


2.b Cenários

Ausência de controle

Os cenários podem ser muito amplos e não necessariamente


úteis quando o foco e o propósito são pouco claros. Quando uma
organização ou comunidade decide usar cenários, as seguintes
questões ajudarão a tornar o resultado relevante a todos os inte-
ressados.

O processo

Existem várias formas de desenvolver cenários. O processo que


descrevemos a seguir é apenas um exemplo bem simples de
como facilitar um exercício de construção de cenário que con-
templa os importantes princípios da incerteza e do controle. Os
sul-africanos Chantall Illbury e Clem Sunter mapearam este
processo de construção de um conjunto de cenários a serem
considerados para uma estratégia futura.
Ferramentas • 111

O eixo horizontal representa o continuum certeza/incerteza, en-


quanto o eixo vertical representa o continuum controle/ausência de
controle. Todos os passos do processo estão numerados em ordem
e se movimentam pelos quatro quadrantes mostrados no diagra-
ma. Os próprios cenários são geralmente baseados em um con-
junto de diferentes incertezas que podem atuar no futuro e sobre
as quais os “jogadores” não têm controle. Os passos do processo
são descritos a seguir:

a. Quais são as regras?

Em qualquer situação, as “regras do jogo” são certas, mas não


necessariamente controláveis. O “jogo” é uma metáfora para o
contexto do processo que está sendo examinado. É importante
distinguir, em primeiro lugar, as regras escritas das não escri-
tas. As regras não escritas também podem ser referidas como
“tácitas”, e, em geral, são socialmente construídas. Ao trazer à
tona essas regras não escritas, fica mais fácil entender o “jogo”.
Por outro lado, regras escritas costumam ser aspirações — são
aspiradas por uma organização, mas não necessariamente im-
plementadas de fato.

b. Quais as principais incertezas?

O seguinte passo no processo de cenário é mapear as principais


incertezas com relação ao futuro. Trata-se de um momento alta-
mente criativo, no qual é importante obter múltiplas perspecti-
vas do que é incerto. Ao mapear as incertezas-chave em ordem
de importância e nível de previsibilidade, o grupo pode começar
a decidir quais deverão ser exploradas mais detalhadamente para
desenvolver os cenários. O diagrama a seguir ilustra o processo de
priorização de cenários:
112 • Mapeando diálogos

Priorizando cenários

Incerteza 1

Incerteza 2

Previsibilidade

Incerteza 4

Incerteza 3

Impacto potencial

c. Desenvolvendo cenários

Como indicado acima, os cenários podem ser vistos como múlti-


plas imagens do futuro. Essa “espiada” pode oferecer uma com-
preensão do que é possível e uma motivação para que os parti-
cipantes planejem na direção de seu cenário preferido. Uma
técnica útil para identificar os cenários preferidos é amplificar as
incertezas-chave, analisando seus possíveis desdobramentos. Para
exemplificar, num contexto rural, uma das incertezas poderia ser o
crescimento econômico. Nesse caso, os cenários poderiam explo-
rar as histórias que se desenrolariam com um alto ou baixo índice
de crescimento econômico.
Para que o cenário tenha um aspecto mais multidimensional,
duas incertezas-chave poderiam ser exploradas, como vemos no
gráfico a seguir. Os cenários são desenvolvidos para surpreender e
trazer à tona possibilidades que normalmente não anteciparíamos.
Ou seja, é importante basear os cenários em incertezas com baixa
previsibilidade e alto impacto (incertezas 3 e 4 no gráfico acima). O
gráfico que se segue é um exemplo de cenários desenvolvidos com
base em duas incertezas-chave.
Ferramentas • 113

d. Identificando opções para ações futuras

As opções são determinadas a partir dos cenários. Os cenários po-


dem ser vistos como pontes entre as incertezas-chave e o conjunto
de opções — ajudam a ordenar um processo grupal de maneira a
elaborar uma série de quadros vívidos e detalhados do que é pos-
sível e, portanto, oferecem a possibilidade de mapear opções que
combinem com cada um desses cenários. Por isso, é extremamen-
te importante que os cenários sejam descritos com muitos deta-
lhes, para que todos os componentes de uma dada situação sejam
explorados. Isso auxiliará o processo de mapeamento das opções
de ações para cada cenário.

Exemplo: construindo um conjunto de cenários

Alto índice de crescimento econômico

“O paraíso dos
“Madiba” ricos, o inferno
dos pobres”

Baixa Alta
corrupção corrupção

“Tropeçando pelo “Beco sem saída”


caminho”

Baixo índice de crescimento econômico

e. Tomando decisões

O último estágio é a tomada de decisão com base nos cenários


e nas opções. A pergunta-chave para esta fase é: “Se o cenário X
um dia se tornar realidade, o que deveríamos fazer hoje para nos
preparar?” Illbury e Sunter citam George Kelley, que introduziu a
“teoria do constructo pessoal”.
114 • Mapeando diálogos

Kelley defende a ideia de que tomamos decisões com base


em nossas próprias interpretações do mundo, que são informa-
das por nossas experiências. Se nossas experiências forem des-
conectadas da experiência dos outros, limitamos a qualidade das
decisões que tomamos. Por meio do diálogo, os cenários ajudam
a agrupar essas diferentes experiências em representações do fu-
turo, que, por sua vez, nos ajudam a tomar decisões mais infor-
madas para o futuro.

Aplicações

Os Métodos de Cenário têm sido aplicados desde os anos 1960.


Naquela época, o processo era usado, na maioria das vezes, em
empresas, a fim de ajudar seus dirigentes a tomar decisões mais
informadas de longo prazo . Desde então, o processo tem sido cada
vez mais aplicado a contextos sociais com múltiplos grupos de in-
teresses envolvidos, em todo o mundo, e nos mais variados con-
textos, desde o mapeamento de estratégias para o campo (Jamaica,
África do Sul, Botswana, Quênia e outros) a estratégias de grandes
multinacionais (Shell, Anglo American, Old Mutual), bem como
em múltiplos níveis comunitários.

Exemplo de caso: Processo de Cenário em Mont Fleur,


África do Sul

Em seu livro Como resolver problemas complexos, Adam Kahane re-


lata o caso da facilitação de cenários em Mont Fleur. Em 1991,
vinte e duas figuras influentes da África do Sul se reuniram para
um processo de construção de cenários sobre o futuro do país.
Isso aconteceu logo após a libertação de Nelson Mandela, quando
o futuro era bastante incerto. O grupo de participantes incluía líde-
res da esquerda (Congresso Nacional Africano — CNA, Congres-
so Pan-Africano, Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Minas,
Partido Comunista da África do Sul), assim como seus adversários:
homens brancos de negócios e da academia. Todos enxergavam a
realidade da África do Sul de diferentes perspectivas.
Ferramentas • 115

O grupo se sentou para alguns dias de conversa, voltando a


reunir-se várias vezes durante alguns meses para discutir uma
série de cenários. Eventualmente, elegeram quatro cenários que
acreditavam serem os mais plausíveis para a África do Sul. Esses
cenários eram todos baseados na pergunta: “Como será a transi-
ção, o país conseguirá decolar?”
As quatro histórias eram baseadas em analogias com aves. Pri-
meiramente, a do avestruz, em referência ao governo dos brancos,
que enterrava a cabeça na areia para evitar a negociação. Depois, a
do Pato Manco, em que a transição se estendeu por muito tempo,
tentando satisfazer a todos os lados e fracassando. A terceira era
a de Ícaro, em que o governo negro assumiu o poder e instituiu
uma política massiva de gastos e investimentos públicos, que aca-
bou quebrando a economia. Finalmente, o cenário mais positivo
apareceu na história Voo dos Flamingos, na qual aconteceu uma
transição bem-sucedida e todos os sul-africanos, lentamente, le-
vantaram voo juntos.
O cenário do Flamingo foi eleito por unanimidade como a me-
lhor alternativa. Todos os cenários foram redigidos e reunidos em
um rico relatório de 25 páginas, que foi amplamente disseminado
na mídia e em workshops por todo o país. A partir desses múltiplos
envolvimentos, os resultados de Mont Fleur tiveram um efeito signi-
ficativo na política econômica da África do Sul. Vários líderes e gover-
nantes passaram a se referir aos cenários em debates e discussões.
O processo foi um sucesso tão grande devido a quatro razões
principais:

• o timing era propício; havia uma janela de oportunidade para


criar um novo futuro logo no início da transição sul-africana,
em meio a muita incerteza e ausência de controle;
• houve adesão de políticos de peso e participação em todos
os níveis;
• o processo construiu novas e significativas relações, e todos os
envolvidos aderiram aos cenários;
• houve um follow-up extensivo. As histórias foram bem escri-
tas, de maneira detalhada, e difundidas nos meios de comu-
nicação de massa, televisão e workshops. Muitos discursos e
reuniões políticas faziam referência a esta documentação.
116 • Mapeando diálogos

Esses cenários se revelaram ferramentas poderosas tanto para o


planejamento quanto para o debate e, mesmo passados dez anos,
ainda se fala deles. O processo de Mont Fleur põe em destaque o
impacto do diálogo facilitado sobre o futuro e o poder das histórias.

Comentário

Muitas organizações atuam em situações de crescente complexida-


de, tanto interna quanto externamente. Quando nos defrontamos
com sistemas complexos, uma das capacidades-chave é ser capaz de
trabalhar a partir de múltiplos pontos de vista ou quadros de refe-
rência. Os cenários nos ajudam a trabalhar simultaneamente com
mais de uma perspectiva, com mais de uma história, e empreender
ações que fazem sentido em múltiplos enquadramentos. O poder
real do processo de planejamento de cenário é a habilidade para
colocar diferentes atores conversando sobre o futuro, propiciando a
apropriação coletiva de uma série de cenários e construindo impor-
tantes relações através das diferenças. O resultado do processo de
construção de cenário pode ser útil de duas maneiras:

• Em primeiro lugar, o conjunto de possíveis histórias de futu-


ro ajuda o grupo/organização/comunidade a responder de
maneira mais rápida caso surja uma crise. Essa seria uma
perspectiva mais preventiva do trabalho com cenário, uma
vez que os cenários escolhidos no final podem não ter uma
ordem de preferência (bom ou mau, desejável ou indesejá-
vel), mas simplesmente mapear as implicações dos vários
“futuros” possíveis. O objetivo principal, nesse caso, seria
estar mais bem informado para responder às situações no
momento em que elas surjam ou mesmo antes disso.
• Em segundo lugar, uma resposta mais proativa poderia ser a
de esforçar-se para ir ao encontro do cenário preferido, ma-
peando estratégias que ajudem o grupo a se movimentar em
direção a este cenário. Os cenários teriam, nesse caso, uma
ordem de preferência entre as partes envolvidas, e o cená-
rio preferido é aquele que todos se esforçarão para alcançar.
Peter Drucker uma vez declarou: “A melhor forma de pre-
dizer o futuro é criá-lo.” Os cenários são um meio poderoso
Ferramentas • 117

para avançar na direção de um futuro desejado, como ficou


evidenciado pelo resultado dos cenários de Mont Fleur. O
processo e os exemplos que usamos nessa explicação de-
monstram essa visão do pensamento sobre o futuro.

Conscientização 
Resolução de problemas 
Construir relações 
Compartilhar conhecimento 
Inovação 
Propósito Visão partilhada 
Construção de capacidades 
Desenv. pessoal/Liderança 
Lidar com conflitos 
Planejamento/Ação estratégica 
Tomada de decisões 
Situação pacífica 
Situação conflitual 
Situação
Alta complexidade 
Baixa complexidade 
Pequeno grupo (≤ 30) 
Grande grupo (≥ 30) 
Múltiplas partes interessadas 
Participantes e
Grupo de pares 
facilitadores
Div. por níveis de poder 
Div. por cultura 
Requisitos específicos de facilitação 
118 • Mapeando diálogos

Fontes

HANSEN, Morten et al. What’s Your Strategy for Managing Knowledge? In:
Harvard Business Review: 106-117, 1999.
ILLBURY, Chantel; SUNTER, Clem. The Mind of a Fox: Scenario Planning
in Action, 2001.
SCHWARTZ, Peter. The Art of the Long View: Planning for an Uncertain
World, 1991.
VAN DER HEIJDEN, Kees. The Art of Strategic Conversation, 1996.
KAHANE, Adam. Solving Tough Problems, 2004.
SENGE, Peter et al. The 5th Discipline Fieldbook, 1994.
Diálogo Sustentado

Visão geral

A característica que distingue o Diálogo Sustentado (DS) é pre-


cisamente o fato dele ser sustentado. Por um longo período, um
mesmo grupo de pessoas se reúne seguidamente. A suposição
principal é: para poder lidar com temas conflituais, precisamos
conseguir olhar além do problema a ser resolvido e focar nas rela-
ções subjacentes à questão. Além disso, uma mudança relacional
é um processo dinâmico, não linear, que requer tempo e compro-
metimento das partes envolvidas. Não acontece em um dia ou
num breve workshop. O Diálogo Sustentado foi, em grande parte,
desenvolvido pelo veterano diplomata norte-americano doutor Ha-
rold Saunders, inspirado em uma longa carreira em relações inter-
nacionais e processos de paz. Fundamental para sua inspiração foi
o seu trabalho como copresidente das “Conferências Dartmouth”,
empreendimento único e não oficial visando à promoção da paz
entre os Estados Unidos e a União Soviética, iniciado em 1960 e
continuado como um processo por mais trinta anos.
Ao longo dos anos, os mesmos participantes mantiveram a
conversa ativa de encontro a encontro, com um crescente sentido
de liberdade, atingindo cada vez mais profundidade, construindo
relações de confiança e uma base de conhecimentos compartilha-
dos. Sua agenda era aberta e cumulativa, permitindo aos partici-
pantes selecionar e conduzir os temas até sua conclusão lógica,
permitindo, assim, que novos temas surgissem.
Em 1992, os membros da Força Tarefa para Conflitos Regio-
nais da Conferência de Dartmouth, baseados na sua experiência,
decidiram promover o diálogo em um conflito nacional no Taji-
quistão. A partir desse trabalho, o Diálogo Sustentado foi elabora-
do e conceitualizado no seu modelo básico atual.
Apesar do processo ter surgido de situações de conflito e estres-
se intenso, ele reflete um padrão universal dos relacionamentos
humanos e pode ser aplicado em vários ambientes comunitários,
corporativos, regionais e nacionais. Esta seção é baseada nos escri-
120 • Mapeando diálogos

tos de Harold Saunders, bem como em uma entrevista e em ma-


teriais oferecidos por Teddy Nemeroff enquanto trabalhava para o
Instituto para a Democracia na África do Sul (IDASA). Nemeroff
vinha trabalhando com Diálogo Sustentado em contextos que iam
além da arena de discussões sobre a paz mundial, incluindo ques-
tões de jovens, governança local e também universidades. Ele lan-
çou um programa de Diálogo Sustentado na Universidade de Prin-
ceton, que, desde então, evoluiu para um programa que abrange
dez campi universitários nos Estados Unidos, visando especifica-
mente às relações raciais entre estudantes.
O Diálogo Sustentado se apoia em dois quadros conceituais:
os cinco elementos de relacionamentos e os cinco estágios de um
diálogo sustentado.

Os cinco elementos de relacionamentos

Como mencionamos, o foco do Diálogo Sustentado são as relações


intrínsecas que afetam um dado problema. A partir deste prisma,
é importante esclarecer o que se entende por relacionamento e
quais os diferentes aspectos das relações. Os cinco componentes
ou arenas de interação a seguir produzem uma definição possível
para relacionamento. Esses componentes operam em combina-
ções permanentemente intercambiáveis.

• Identidade: a forma pela qual os participantes se definem


e se apresentam, incluindo suas experiências de vida até
aquele momento.
• Interesses: os temas que mobilizam as pessoas e fazem com
que elas se reúnam.
• Poder: a capacidade de influenciar um curso de eventos.
• Percepções do outro: incluindo percepções equivocadas e es-
tereótipos.
• Padrões de interação: incluindo respeito por certos limites no
comportamento.

Este quadro é analítico mas também operacional, pois os parti-


cipantes de um Diálogo Sustentado serão apresentados a tais ele-
Ferramentas • 121

mentos e neles se basearão para compreender a natureza das rela-


ções que os separam. Muitas vezes, os participantes podem sentir
dificuldades para falar a respeito dessas relações, mas elas vão se
tornando aparentes para os participantes e moderadores durante
os diálogos. A partir daí, o quadro conceitual funciona como um
ponto de referência.

Os cinco estágios do Diálogo Sustentado

O processo de Diálogo Sustentado percorre cinco estágios. Esses


estágios foram mapeados, mas não baseados no que os criadores
do processo necessariamente desejariam que acontecesse; ao con-
trário, o mapeamento foi feito observando a evolução natural do
que acontecia nos encontros quando os participantes se engaja-
vam em um diálogo sustentado ao longo do tempo.
É importante frisar que os estágios são uma espécie de descrição
ideal, não uma receita. Em geral, os participantes se movimentam
para a frente e para trás entre os cinco estágios e não os seguem rigi-
damente. Além disso, o facilitador do Diálogo Sustentado não deve
“empurrar” os participantes durante o processo, apesar deste tipo
de padrão fornecer um certo sentido de direcionamento, tanto para
os participantes quanto para os facilitadores, para um processo que
tem a característica de, ao contrário, não ter um final definido.

“Como estudante branco, eu falaria sobre a interação com


um estudante negro e de como isto era desconfortável. O
estudante negro contaria uma história sobre como o estu-
dante branco os tratava. O Estágio Três é aquele no qual
alguém diria: ‘Talvez nossa experiência seja parecida’.
‘Talvez, na minha história, eu tenha sentido exatamente o
mesmo que o branco da sua história’. É aí que sentimos
como se estivéssemos calçando o sapato do outro.”
Teddy Nemeroff (entrevista)

Estágio Um: Decidindo se engajar


Primeiramente, deve ser reunido um grupo de participantes. Um
bom tamanho para um processo de DS é de oito a doze pessoas.
122 • Mapeando diálogos

O ideal é que sejam líderes respeitados em sua comunidade (mas


não necessariamente ocupantes de posições oficiais de liderança),
que reflitam as principais perspectivas a respeito do tópico, confli-
to ou comunidade envolvida, e que queiram se reunir para ouvir
uns aos outros durante um processo contínuo. Apesar de o Diá-
logo Sustentado ter sido desenhado e concebido para transformar
relacionamentos, os participantes geralmente vão aos encontros
por se sentirem motivados a enfocar um problema particular. Es-
sas pessoas não necessariamente enxergam as relações como o
cerne do problema que as mobiliza.
Reunir o grupo apropriado de participantes pode ser um pro-
cesso longo e complexo. Talvez seja difícil fazer com que as pes-
soas se comprometam com o horário, que entendam e aceitem o
valor do processo ou que se envolvam com pessoas com as quais
existe uma relação disfuncional. Sua motivação para aderir irá de-
pender de serem as pessoas indicadas para estar ali, de realmente
terem o firme desejo de resolver o problema, de estarem cientes
dos interesses mútuos e das interdependências na resolução do
problema e, finalmente, de os organizadores do encontro conse-
guirem comunicar o valor do processo de diálogo.
Uma vez que os participantes tenham sido identificados, o Es-
tágio Um é também o momento em que juntos podem entrar em
acordo a respeito do propósito, do escopo e das regras para o diá-
logo. Muitas vezes, os participantes chegam a assinar um termo
firmando um contrato mútuo.

Estágio Dois: Mapeando as relações e nomeando os problemas


Neste momento, as conversas de fato começam. O Estágio Dois é
inicialmente um processo de dar nome aos problemas — por meio
das narrativas de experiências pessoais, ventilando queixas, liberan-
do ou “colocando para fora” todas as preocupações, deixando sair e
limpando o ar. Mais para o final deste estágio, os participantes come-
çarão a mapear os problemas e as respectivas relações subjacentes
de forma mais estruturada e poderão identificar alguns temas cen-
trais que gostariam de focar em explorações mais aprofundadas.

Estágio Três: Sondagem dos problemas e relações


No final do Estágio Dois e no início do Estágio Três, o caráter da
conversa muda. “Eu” se transforma em “Nós”. “O que” muda para
Ferramentas • 123

“Por que”. E os participantes, em vez de falarem “para” cada um,


começam a falar “com” cada um. O grupo vai encontrando pa-
drões e explicações, fazendo conexões e desenvolvendo conceitos.
Os participantes estão mais interpretativos e analíticos neste está-
gio, podendo especular sobre as dinâmicas relacionais que podem
estar causando os problemas e as dificuldades, e identificar um
conjunto de possíveis mudanças dessas relações.
O grupo foca temas mais estritos ou profundos, ou foca nos
pontos de alavancagem do sistema, tendo em mente as conexões
com os outros temas mapeados no Estágio Dois. Neste momen-
to, começam a chegar aos insights que impulsionarão as opções
de ação. O grupo também começa a acessar a vontade coletiva e
individual para concretizar a mudança, e encontra um sentido de
orientação e direcionamento.

Estágio Quatro: Construção de cenário


Até este ponto, o grupo esteve focado apenas nos problemas, ago-
ra penetra num espaço positivo de resolução de problemas. São
identificados quais as medidas e os passos necessários para trans-
formar os relacionamentos problemáticos e ultrapassar os obstá-
culos. Se o diálogo está vinculado à esfera política, serão sugeridos
passos a serem dados na arena política, que podem estar relacio-
nados a ações a serem tomadas por atores influentes que estão
fora do grupo de diálogo. Se o nível for mais local ou organizacio-
nal, o grupo de diálogo pode focar no desenho e no planejamento
de suas próprias ações, que podem ser coletivas ou individuais.
O uso do termo “cenário” para descrever este estágio do Diálogo
Sustentado é diferente do sentido adotado no planejamento de cená-
rio que descrevemos anteriormente. Neste momento, o facilitador
de Diálogo Sustentado pode até decidir iniciar um processo de pla-
nejamento de cenário, mas aqui o objetivo é esboçar cenários am-
plos, ou seja, opções para a ação e possíveis caminhos para avançar.

Estágio Cinco: Ação conjunta


Neste estágio, a conversa se transforma em ação, e o foco, antes
dirigido para dentro, é redirecionado para fora. Os participantes
devem pensar em como colocar suas sugestões nas mãos de quem
poderá implementá-las ou imaginar uma forma de implementar
124 • Mapeando diálogos

eles mesmos as atividades necessárias. A natureza deste momento


dependerá, e muito, do tema do diálogo, do nível de influência dos
membros, do nível de risco envolvido e do contexto específico no
qual o processo acontece. Este estágio pode ser o momento de con-
clusão do processo ou o início do encaminhamento de uma nova
(talvez previamente levantada) questão.

Como afirmamos anteriormente, os cinco estágios não são li-


neares, mas alguns padrões são verificados em sua não lineari-
dade. Por exemplo: um Estágio Três genuíno e efetivo dependerá
de o grupo ter passado pelo Estágio Dois, por isso não é comum
“pular” do Estágio Um para o Três. Porém, entre os estágios Dois e
Três, os participantes podem oscilar um pouco para a frente e para
trás, e avançar para o Estágio Quatro quando estiverem prontos.
Nos estágios Três a Cinco, a diferença entre os trabalhos no plano
diplomático/político e os trabalhos com comunidades/jovens fica
aparente. Existe muita diversidade na forma como esses estágios
atuam em diferentes processos, e o Diálogo Sustentado adota uma
abordagem saudável de flexibilidade para lidar com toda essa diver-
sidade. À medida que o grupo se movimenta nos cinco estágios, o
processo vai sendo cada vez mais adaptado, passando muitas vezes
a ser completamente autogerido. É importante, no entanto, que um
facilitador guie o processo — alguém que compreenda as necessida-
des do grupo e seja capaz de reconhecer os cinco estágios, para que
as transições entre eles aconteçam naturalmente, sem pressões.
O estilo de facilitação e o grau de intervenção do facilitador no
grupo variam bastante de um diálogo para outro. Algumas vezes, o
facilitador pode não precisar dizer absolutamente nada. Em outras,
poderá fazer intervenções bem mais diretas, em um formato mais
próximo ao dos workshops. Na verdade, dependerá das característi-
cas do grupo de diálogo e de que elementos relacionais emergem
em um dado momento.

Aplicações

O Diálogo Sustentado vem sendo aplicado em vários e distintos


ambientes. Hal Saunders e o Kettering Institute ressaltam sua efi-
Ferramentas • 125

cácia na resolução de conflitos políticos ou sociais. Além do trabalho


extenso que desenvolveram no Tajiquistão, aplicaram o DS no Azer-
baijão, na Armênia, em Nagorno-Karabakh, no Oriente Médio e
em outros lugares. Como mencionamos anteriormente, o trabalho
de Teddy Nemeroff em Princeton levou o DS a cerca de dez campi
universitários nos Estados Unidos, focando, sobretudo, na melhoria
das relações raciais. O caso a seguir foi extraído do trabalho realiza-
do por Nemeroff em parceria com o IDASA (Instituto para Demo-
cracia na África do Sul), no Zimbábue e na África do Sul.

Exemplo: Projeto Juventude – IDASA Zimbábue

No momento em que se intensificou a crise no Zimbábue, os jo-


vens constituíam um grupo particularmente vulnerável. Corriam
risco crescente de contrair HIV/AIDS e sofriam enormemente com
o colapso econômico e o altíssimo índice de desemprego do país.
Esses fatores contribuiram para que os jovens começassem a ser
explorados pelos partidos políticos. De maio de 2004 a dezembro
de 2005, o IDASA promoveu uma iniciativa de Diálogo Sustentado,
visando dar poderes os jovens do Zimbábue, em colaboração com
o Comitê de Coordenação das Organizações de Serviço Voluntário
(COSV) e seu parceiro local, o Fundo Amani. A intenção do projeto
era reduzir a exploração política da juventude e fortalecer a autocon-
fiança dos jovens por meio da construção e do fortalecimento das
relações, do desenvolvimento de uma compreensão mais profunda
dos problemas e da implementação de ações que pudessem melho-
rar sua qualidade de vida. O projeto reuniu 120 líderes jovens em
Harare, de diversos estratos socioeconômicos e políticos.
A colaboração entre organizações locais formou-se original-
mente como campanha de mídia e advocacy, mobilizando quator-
ze ONGs do país. Porém, à medida que se tornou um exercício
político cada vez mais arriscado, decidiu-se tentar o Diálogo Sus-
tentado. Tal deslocamento mudou significativamente a escala do
projeto, que passou a abranger apenas 120 participantes, e não
os mil planejados originalmente. Mas o aumento de profundida-
de compensou a diminuição de abrangência. O projeto trabalhou
estrategicamente com jovens lideranças que poderiam fazer dife-
126 • Mapeando diálogos

rença positiva em suas comunidades, e este impacto poderia ser


monitorado mais facilmente. Além disso, em vez de a mensagem
ser definida de maneira centralizada e difundida para os jovens,
eles mesmos definiam os problemas que desejavam focar, espe-
cialmente questões relacionadas ao desemprego e ao HIV/AIDS.
Oito grupos de diálogo com quinze jovens cada foram lançados
simultaneamente na capital Harare. Cada grupo tinha um jovem
e um ativista de ONG como moderadores, treinados em Diálogo
Sustentado pelo IDASA. Esses moderadores coordenaram sessões
de orientação para os participantes nas quais as expectativas eram
alinhadas e os tópicos de discussão selecionados. O trabalho com
os grupos foi iniciado com um encontro de dois dias, e depois eles
passaram a se reunir mensalmente em encontros de meio dia de
duração, nas próprias comunidades. Os grupos começaram com
certa cautela, em razão da situação política e da sensibilidade do
tema HIV/AIDS, mas, à medida que foram progredindo e a con-
fiança aumentando, começaram a ampliar e compartilhar melhor
as conversas.
O clima político e os acontecimentos que tiveram lugar no Zim-
bábue dificultaram o funcionamento do projeto, inclusive o acesso
dos jovens aos locais de encontro. Ainda assim, ele alcançou re-
sultados significativos, criando espaços de fala e reflexão coletiva
sobre os desafios a serem enfrentados. Metade dos grupos conse-
guiu reunir e engajar jovens dos dois lados do espectro político, e
a totalidade deles conseguiu trazer para a arena de conversas uma
diversidade de interesses e backgrounds. Os participantes adqui-
riram conhecimento sobre os problemas, um crescente senso de
influência, relações mais fortes e habilidades para dialogar e admi-
nistrar conflitos. O resultado foi um número maior de lideranças
jovens nas comunidades, a mitigação dos conflitos e da violência
juvenil e o desenvolvimento de planos de ação para encaminhar os
desafios da comunidade.

Comentário

De acordo com Nemeroff, são duas as perguntas a serem feitas. A


primeira é: O diálogo e as relações fortalecidas ajudarão a melho-
Ferramentas • 127

rar a situação e, por isso, vale a pena tentar? Convocar e manter


um Diálogo Sustentado pode significar muito trabalho.
A segunda pergunta é: O timing é adequado? Como será a inte-
ração com o que está acontecendo no mundo? Entrará em conflito
com processos já em andamento que estão tentando resolver o
problema?
O Diálogo Sustentado é bastante útil em situações em que as
relações são disfuncionais, em que existe pouca confiança e nas
quais os processos oficiais não funcionam, pois os problemas
não podem ser solucionados num ambiente típico de negocia-
ções. O DS não é um espaço para debate ou para negociações ofi-
ciais entre representantes formais. Não é, tampouco, um proces-
so puramente interpessoal ou um treinamento de habilidades.
Acima de tudo, não é uma solução rápida. A força do Diálogo
Sustentado reside em sua flexibilidade e simplicidade. A aber-
tura permite ao grupo chegar ao ponto necessário e enxergar
não apenas os impactos esperados, mas também os resultados
positivos inesperados.

Conscientização üüü
Resolução de Problemas üü
Construir Relações üüü
Compartilhar Conhecimento üüü
Inovação ü
Propósito

Visão Partilhada üü
Construção de Capacidades ü
Desenv. Pessoal/Liderança üü
Lidar com Conflitos üü
Planejamento/Ação Estratégica üü
Tomada de Decisões ü
128 • Mapeando diálogos

Situação Pacífica ü
Situação Conflitual üü
Situação

Alta Complexidade üü
Baixa Complexidade ü
Pequeno Grupo (≤ 30) üüü
Participantes e Facilitadores

Grande Grupo (≥ 30) ü


Múltiplas Partes Interessadas üü
Grupo de Pares üü
Div. por Níveis de Poder üü
Div. por Cultura üü
Requisitos Específicos de Facilitação üü

O principal desafio é notar que sua metodologia não vem pron-


ta, acompanhada de um guia passo a passo. Os dois arcabouços
— os cinco elementos da relação e os cinco estágios do Diálogo
Sustentado — fornecem um sentido de direcionamento e um
ponto de referência básicos, porém bastante úteis. Isso quer dizer
que o processo se apoia, sobretudo, na intuição do facilitador, bem
como nas suas habilidades, atitudes pessoais e capacidades, além
da compreensão do contexto.
O facilitador precisa ser capaz de responder a várias situações
e desenhar um amplo repertório de interações dentro do grupo.
Além da natureza deste processo ser a sustentação através do tem-
po, outro aspecto que chama nossa atenção e que o distingue de
outros processos apresentados neste livro é a natureza do Está-
gio Dois e a transição para o Estágio Três. Ventilar suposições nos
parece uma atividade bastante subavaliada em vários processos.
O alívio experimentado pelos participantes, ao expressarem o que
os oprime, esvaziando o peito das ansiedades e preocupações, e a
mudança subsequente podem ser bastante produtivos.
Ferramentas • 129

Fontes

SAUNDERS, Harold A. Public Peace Process: Sustained Dialogue to Trans-


form Racial and Ethnic Conflicts, 1999.
NEMEROFF, Teddy (org). Sustained Dialogue: A Citizen’s Peace Building
Process.
NEMEROFF, Teddy; TUKEY, David. Diving In: A Handbook for Improving
Race Relations on College Campuses Through the Process of Sustained Dialogue.
NEMEROFF, Teddy. Empowering Zimbabwean Youth Through Sustained
Dialogue.
www.sdcampusnetwork.org
www.sustaineddialogue.org
www.kettering.org
World Café

Visão geral

O World Café é uma forma de, intencionalmente, criar uma rede


viva de conversas em torno de questões que importam. A metodo-
logia permite que grupos de 12 a 1.200 (!) pessoas pensem juntas,
visando criar novos significados compartilhados e insight coleti-
vo. Apesar de sempre terem existido reuniões e encontros com o
mesmo espírito do World Café, a metodologia propriamente dita
foi “descoberta” e formalizada por Juanita Brown e David Isaacs,
em 1995. Desde então, centenas de milhares de pessoas em todo o
mundo se reúnem em encontros do tipo World Café.
O anfitrião de um World Café utiliza a metáfora do café quase
literalmente. O ambiente é organizado como se fosse uma cafeteria,
e as pessoas se sentam em mesas de quatro para terem conversas
de alta qualidade e profundamente participativas. Elas são orienta-
das a mudarem de mesa, em diversas rodadas de conversas sobre
questões de seu interesse. A cada rodada, o anfitrião de cada mesa
permanece onde está, compartilhando a essência da conversa. Os
outros participantes se movimentam pela sala conectando-se com
as conversas que aconteceram nas outras mesas, construindo uma
rede e “polinizando” as conversas. Este formato, com sua capaci-
dade de tecer e construir insights, novas ideias ou novas perguntas,
permite que a inteligência coletiva se desenvolva dentro do grupo.
O World Café tem como base a suposição de que o conhecimento
e a sabedoria de que necessitamos já estão presentes e são acessáveis.
Ao trabalhar com o World Café, podemos resgatar a sabedoria cole-
tiva do grupo — que é sempre maior do que a soma de suas partes
— e canalizá-la em direção a uma mudança positiva. Finn Voldtofte,
um dos pioneiros no uso do formato, enxerga o café como a unidade
de força de mudança em qualquer sistema ou organização, pois en-
volve, inspira e conecta diferentes partes de um sistema.
Como disse Margaret Mead: “Nunca duvide de que pequenos
grupos de pessoas comprometidas podem mudar o mundo. Na
verdade, são os únicos que até hoje o conseguiram.”
Ferramentas • 131

Quatro condições para criar a mágica do café

Muitas pessoas que tiveram a oportunidade de participar de um


World Café realmente estimulante e eficaz falam sobre uma espé-
cie de “mágica” que acontece nas conversas, à medida que mudam
de uma para outra, desenvolvendo um tema ou aprofundando
uma questão. No curso do processo, quatro condições favorecem o
acontecimento da mágica:

1. Uma questão essencial: identificar questões que mobilizam é


uma forma de arte. Para que uma questão tenha importân-
cia para um grupo, é necessário que seja relevante para cada
participante,. Eles precisam ter interesse genuíno e ser im-
pactados pela pergunta e, principalmente, pelas respostas
que forem dadas. Boas perguntas têm a capacidade de abrir
uma gama de ideias, provocam o pensamento e estimulam
a criatividade. Uma boa pergunta coloca a bola no campo
dos participantes — demonstrando que sua contribuição é
necessária e valiosa para o sistema.
2. Um espaço seguro e hospitaleiro: em geral, os espaços de reu-
nião não são muito convidativos. E a metáfora do café é posi-
tiva para a criação de um ambiente acolhedor e convidativo,
o que pode ser obtido com mesinhas de café, toalhas, flo-
res e velas. Quando as pessoas entram no World Café, elas
imediatamente percebem que não se trata de uma reunião
formal. Além do espaço físico, é criado um ambiente real-
mente seguro, onde os participantes se sentem confortáveis
o bastante para contribuir com suas ideias e sentimentos.
Se, por exemplo, um grupo de uma mesma empresa par-
ticipa de um World Café, as pessoas devem saber que não
serão punidas por contribuirem com opiniões diferentes de
um colega ou superior.
3. Escuta mútua: esta condição enfatiza a importância que se
dá ao escutar, mais do que ao falar. Está conectada à suposi-
ção intrínseca de que o conhecimento e a sabedoria de que
necessitamos já estão presentes. O insight coletivo só poderá
emergir ao honrarmos e encorajarmos a contribuição única
de cada participante. Como Margaret Wheatley costuma di-
zer: “A inteligência emerge quando um sistema se conecta
132 • Mapeando diálogos

consigo mesmo de novas e diferentes maneiras.” Quando


cada pessoa oferece sua perspectiva singular, ela está con-
tribuindo para a crescente inteligência e visão do todo, fre-
quentemente de maneiras surpreendentes.
4. Espírito de indagação: no World Café, um espírito questiona-
dor é fundamental. Significa que as pessoas encontram-se
verdadeiramente engajadas numa exploração conjunta. Elas
trazem para a mesa os conhecimentos que têm, pensam e
sentem a respeito de uma determinada questão, mas dese-
jam ir além do que já sabem e trabalhar juntas para desco-
brir novos insights, diferentes perspectivas e perguntas mais
profundas. Sempre podemos aprender mais. Favorecer o
espírito de indagação e curiosidade frente ao desconheci-
do ajudará a suplantar a resistência a novas e diferentes
ideias.

A página do World Café sugere que uma maneira bastante simples


de convidar os participantes ao engajamento é compartilhar com
eles a “etiqueta do café”, que apresentamos a seguir:

• foque no que importa;


• contribua com suas ideias e experiências;
• fale com o coração;
• escute para compreender;
• conecte as ideias;
• escute em conjunto à procura de temas, perguntas e insights mais
profundos;
• brinque, rabisque, desenhe — escrever nas toalhas das mesas é en-
corajado!

As orientações a seguir estão diretamente relacionadas às qua-


tro condições e podem ser úteis para ajudar o facilitador a criá-las.

• Clarifique o propósito: antes de reunir as pessoas em um


café, deixe claro o propósito do encontro. É necessário com-
preendê-lo para poder decidir quem deverá estar presente,
quais questões deverão ser discutidas e acertar os detalhes
finais do projeto.
Ferramentas • 133

• Crie um espaço hospitaleiro e acolhedor.


• Explore as questões que interessam: não subestime o cui-
dado e o tempo necessários para conseguir identificar boas
questões.
• Incentive a contribuição de cada participante.
• Conecte diferentes pessoas e ideias: a oportunidade de se mo-
vimentar entre as mesas, encontrar novas pessoas, contribuir
ativamente com seus pensamentos e conectar as descobertas
são características que diferenciam o World Café de outras me-
todologias. Planeje o máximo de movimentação e polinização,
mas sem que as rodadas de conversa fiquem muito curtas.
• Escute os insights e compartilhe as descobertas: encoraje
cada grupo a dedicar um tempinho para refletir sobre o que
está no centro de sua conversa. Após várias rodadas do café, é
muito útil engajar o grupo por inteiro em uma conversa, a
fim de explorar e refletir juntos sobre os temas e as questões
que surgirem.

Aplicações

O site do World Café e o novo livro lançado em 2005 apresentam


numerosos relatos de como esta abordagem tem sido usada em
diferentes contextos, nas mais variadas culturas, setores, classes
sociais e gerações. De acordo com o site, o World Café é valioso
quando se quer:

• gerar e compartilhar conhecimento, estimular ideias ino-


vadoras e explorar possíveis ações em torno de questões e
temas da vida real;
• engajar as pessoas — quando estiverem se encontrando
pela primeira vez ou quando já se conhecem e se relacio-
nam — em uma conversa autêntica;
• conduzir uma análise aprofundada dos desafios estratégi-
cos ou oportunidades primordiais;
• aprofundar as relações e se apropriar dos resultados de for-
ma conjunta em um grupo já estabelecido;
• criar interação significativa entre apresentador e audiência;
134 • Mapeando diálogos

• engajar grupos de mais de doze pessoas (até 1.200!) num


autêntico processo de diálogo.

O café é menos útil quando existe um resultado predetermina-


do, um desejo de transmitir informação unidirecional ou quando
o grupo trabalha usando planos de implementação detalhados.

Exemplos de casos: das reivindicações ambientais dos maoris


ao planejamento municipal norueguês

O café é uma ferramenta simples e eficiente que tem sido usa-


da em contextos e cenários muito diferentes. Apresentamos três
exemplos para ilustrar a amplitude das aplicações. Esses casos fo-
ram extraídos do site: www.theworldcafe.com.

• Na Nova Zelândia, o World Café foi usado por uma empresa


que buscava criar um encontro capaz de ampliar o conhe-
cimento, a formação de redes, acordos e negociações entre
diversos grupos maori que lutavam para recuperar algumas
florestas junto ao Ministério da Justiça. A atmosfera infor-
malmente acolhedora do World Café conectou-se incrivel-
mente bem aos costumes tradicionais dos povos maori.
Especialistas em processos reivindicatórios foram convoca-
dos para oferecer suas ideias e perspectivas, e as conversas
entre os grupos reivindicantes e os demais grupos partici-
pantes do café transcorreram sem sobressaltos. O propósito
era avançar em direção a um tratado baseado na reivindi-
cação dos maori, e o processo consistiu em ouvir diversas
visões, conectar-se com os integrantes com maior conheci-
mento sobre a causa e considerar os próximos passos. Essa
primeira iniciativa de café, com três dias de duração, tem
grandes chances de ser multiplicada em outras regiões da
Nova Zelândia, objetivando, como resultado final, uma vi-
são das parcerias possíveis entre os maori e outros habitan-
tes da ilha.
• O World Café também provou ser uma ferramenta muito
útil ao planejamento municipal da Noruega. O coordena-
dor de cultura de um subúrbio de Oslo fez uso do café para
Ferramentas • 135

obter informações e envolvimento dos cidadãos de alguma


forma relacionados à cultura, visando à criação de um pla-
nejamento de atividades culturais. Normalmente, as pes-
soas eram muito passivas durante as reuniões municipais, e
o World Café foi uma tentativa de criar maior engajamento.
O café se iniciou com um exercício simples: cada partici-
pante deveria fazer um desenho que expressasse o tipo de
atividade cultural que gostariam de ter na sua comunidade.
A partir desse momento, as ideias começaram a ser com-
partilhadas e as pessoas escreviam os comentários, insights
e perguntas nas toalhas (de papel) das mesas. A partir do
entrelaçamento dos grupos que passaram pelas mesas, fo-
ram sendo reunidas novas ideias ou soluções a serem elabo-
radas. Cada mesa contava com membros do departamento
cultural, que ajudavam a coletar as principais ideias, que
mais tarde seriam aproveitadas no plano de cultura mu-
nicipal. A configuração e a estrutura de café propiciaram
que todos fossem profundamente envolvidos e refletissem
juntos sobre as questões, os desafios e as possibilidades da
cultura no futuro da cidade. Ideias que poderiam funcionar
em vários setores foram compartilhadas. A criação informal
de relações e a construção de um senso de todo no grupo
foram efeitos colaterais bastante importantes. No final do
encontro, o principal aprendizado para os organizadores foi
que é muito mais importante encontrar formas de mobili-
zar a energia e o comprometimento das pessoas envolvidas
do que simplesmente produzir um pedaço de papel com
um planejamento formal.
• Nosso terceiro exemplo é o da Associação de Planejamento
Financeiro — uma associação que congrega planejadores fi-
nanceiros nos Estados Unidos. Eles têm usado o café como
forma de construir uma nova organização, após a fusão de
dois grupos independentes. No primeiro ano, eles foram
anfitriões de cerca de quinze cafés, que se enquadravam em
uma de três categorias gerais:
Café dos membros: encontros para membros da associação,
em sua maioria focados na formação de rede. As perguntas
feitas eram bastante amplas e simplesmente visavam gerar
conversações estimulantes e novas ideias coletivas.
136 • Mapeando diálogos

Cafés associados a eventos: integrados a eventos já programa-


dos para os diferentes componentes da associação. Esses
encontros possibilitavam às pessoas participar de conversas
sobre assuntos técnicos específicos, aprendendo uns com
os outros durante o processo. As metas da maioria dessas
reuniões eram as anotações pessoais e de trabalho que os
participantes faziam pra si próprios.
Cafés orientados para um propósito: constituídos com um
propósito bem específico em mente e algum tipo de resulta-
do esperado. Por exemplo: chegar a um consenso em torno
de uma decisão importante ou planejar algumas atividades
específicas para os grupos de trabalho.

Comentário

O World Café é uma ferramenta poderosa para engajar grandes


grupos ao redor de perguntas significativas em um espaço seguro
e acolhedor. O processo de reunir perspectivas e ideias diversas
pode fazer o grupo valorizar sua sabedoria e inteligência coleti-
va, que é maior do que a soma das partes. O World Café pode
ser usado em encontros de apenas uma hora ou de vários dias.
Como ferramenta isolada, o World Café é mais potente para abrir
possibilidades do que para criar convergência em torno de planos
ou decisões. Quando a metodologia é adotada para encontros de
maior duração, costuma ser combinada com outras ferramentas.
Por exemplo, a divergência e a amplitude de ideias produzidas no
âmbito de um café podem ser acompanhadas por um processo de
Espaço Aberto, no qual os participantes assumem responsabilida-
des por ações ou questões específicas.
Por outro lado, o café pode ser uma alternativa interessante a
métodos mais formais de apresentação de resultados de pequenos
grupos como forças-tarefa, comitês ou grupos de Espaço Aberto.
Em vez de cada grupo falar e apresentar gráficos diante de uma
plenária, pode-se criar um café para que os participantes dos di-
ferentes grupos circulem pelas mesas e capturem as ideias e os
insights produzidos nas diferentes rodadas de conversa.
Ferramentas • 137

Conscientização 
Resolução de problemas 
Construir relações 
Compartilhar conhecimento 
Inovação 
Propósito Visão partilhada 
Construção de capacidades 
Desenv. pessoal/Liderança 
Lidar com conflitos 
Planejamento/Ação estratégica 
Tomada de decisões 
Situação pacífica 
Situação conflitual 
Situação
Alta complexidade 
Baixa complexidade 
Pequeno grupo (≤ 30) 
Grande grupo (≥ 30) 
Múltiplas partes interessadas 
Participantes e
Grupo de pares 
facilitadores
Div. por níveis de poder 
Div. por cultura 
Requisitos específicos de facilitação 

O World Café pode ser também um excelente meio de equa-


lizar o poder, pois as pessoas se sentam em diversos grupos, em
pequenas mesas; um diretor de empresa junto com um estagiário,
um oficial das Nações Unidas com um garoto de rua, e as mesas
são tão pequenas que todo mundo, em geral, precisa participar. Às
138 • Mapeando diálogos

vezes, pode ser importante dar instruções de com quem as pes-


soas devem se sentar ou colocar marcas nas mesas, sinalizando
diferentes tipos de participantes, de forma a ajudá-los a delibera-
damente procurarem se sentar juntos.
Quando se planeja um café em que o grupo de participantes é
caracterizado pela diversidade de poder, é importante que as pes-
soas conheçam a proposta e saibam onde estão entrando. Caso
contrário, quem ocupa altos escalões pode oferecer alguma resis-
tência. Um facilitador habilidoso saberá como transformar esse
tipo de tensão em aprendizagem para o grupo. Questões signifi-
cativas são absolutamente essenciais para o sucesso de um café.
No entanto, questões importantes para os organizadores podem
não ser tão atrativas aos participantes. Quando quem desenha um
World Café não está muito certo sobre as questões capazes de des-
pertar e mobilizar as paixões de um grupo, é possível simplesmen-
te colocar uma questão inicial que alimentará outras, como: “Que
pergunta, quando respondida, poderia fazer maior diferença para
o futuro da situação que estamos explorando aqui?”

Fontes

BROWN, Juanita; ISAACS, David. The World Café: Shaping our Futures
through Conversations that Matter, 2005.
http://www.theworldcafe.com
Ferramentas adicionais

O universo das metodologias de diálogo parece ser infinito. Além


das dez ferramentas que descrevemos em profundidade, nos de-
paramos, a partir de experiências e pesquisas, com uma grande
variedade de outras abordagens. Nesta seção, faremos uma breve
descrição de algumas dessas ferramentas adicionais, pois elas me-
recem ser mencionadas.

Diálogo de Bohm

“Qual é a fonte de todo esse problema? Eu afirmo que a fonte do


problema reside basicamente no pensamento. Muita gente pensa
que minha afirmação é uma maluquice; afinal, o pensamento é a
única arma que temos para resolver nossos problemas. Faz parte
de nossa tradição pensar assim. No entanto, o que usamos para
solucionar nossos problemas, na verdade, parece ser a sua fonte. É
como ir ao médico e ele fazer você ficar doente. Em 20% dos aten-
dimentos médicos, isso acaba acontecendo. Mas, com relação ao
pensamento, acontece em bem mais de 20% dos casos” — David
Bohm.
O famoso físico quântico David Bohm (1917-1992) ofereceu
várias contribuições significativas à teoria física, particularmente
à mecânica quântica e à teoria da relatividade. Ao mesmo tem-
po, Bohm é uma das pessoas mais citadas no campo da teoria e
método do diálogo. A princípio, a conexão entre a física e o diálo-
go pode parecer pouco evidente. Entretanto, o entendimento que
Bohm tinha da física estava profundamente alinhado à sua visão
da natureza da realidade, da natureza do pensamento, do significado
do diálogo e das conexões entre eles. Ao longo de sua vida, ele se
envolveu ativamente na política e na filosofia, tendo como uma de
suas principais inspirações o filósofo indiano J. Krishnamurti.
Incluímos neste livro a abordagem do diálogo de David Bohm
por acreditarmos que ela tem o mérito de ser um método único.
Entretanto, é importante ressalvar que o Diálogo de Bohm é bem
140 • Mapeando diálogos

mais que um método. É uma filosofia e uma visão de mundo, que


só poderemos apresentar de forma sintética aqui. Bohm acredita-
va que o pensamento modela nossa realidade e que o diálogo, em
contrapartida, modela o pensamento e os processos mentais. Ele
costumava enfatizar que o termo diálogo deriva da raiz dia (através)
e logos (significado); assim, para ele, a palavra diálogo seria sinôni-
mo de significado que flui através de nós. Bohm enxergava o diálogo
como um processo de encontros diretos, cara a cara, em que as
pessoas compartilham uma plataforma comum de sentido — uma
espécie de “mente compartilhada” ou “inteligência coletiva”. Não
se trata de um processo pelo qual uma pessoa tenta convencer os
demais de sua ideia, mas, ao contrário, uma situação em que os
participantes se mobilizam para criar um entendimento comum
sobre algo. De acordo com Bohm, o pensamento é um grande pro-
cesso, e não faz muito sentido compartimentá-lo em meu pensa-
mento e seu pensamento.

“O diálogo realmente visa entrar no processo do pensamen-


to e mudar a forma como ele acontece coletivamente. Não
costumamos prestar muita atenção ao pensamento en-
quanto processo. Pensamos, mas só prestamos atenção ao
conteúdo, não ao processo.”
David Bohm

Em várias situações de crise mundial, Bohm identificou pa-


drões de fragmentação na vida, na comunicação e na sociedade.
Bohm enxergava um colapso nas comunicações e nas relações,
acreditando que o problema primordial era uma incoerência de
pensamento e a inabilidade de enxergar o comportamento de nos-
so próprio pensamento e analisar como o processo de pensamento
cria mais problemas do que resolve. A intenção primordial nesta
abordagem do diálogo era entender a consciência, explorar os re-
lacionamentos e a comunicação do dia a dia e superar a fragmen-
tação.
Num diálogo bohminiano, um grupo de quinze a quarenta pes-
soas se reúne em um círculo. Esta quantidade de participantes foi
estabelecida por não ser exageradamente grande — impedindo a
profundidade e a intimidade —, mas grande o bastante para permi-
Ferramentas • 141

tir que subculturas sejam formadas e se tornem visíveis. Os grupos,


em geral, se reúnem mais de uma vez, em encontros de cerca de
duas horas, em intervalos regulares e por um extenso período de
tempo.
Não existe agenda preestabelecida. A ideia é de que a ausência
de uma agenda prévia permita que o significado flua livremente
e sem direção. Ao se reunir, o grupo decide sobre o que gostaria
de falar e como proceder. É importante ressaltar que o fato de não
haver um objetivo específico ou resultado esperado para o diálo-
go não significa que não haja uma razão para ele. À medida que
o processo avança, os significados mais profundos vão sendo re-
velados. O diálogo leva a uma crescente coerência, criatividade e
camaradagem.
Esse processo de indagação não direcionada geralmente leva à
frustração e ao desconforto. Os grupos são incentivados a traba-
lhar a partir da ansiedade e permitir que a mesma conduza o gru-
po de forma criativa para novas áreas. Apesar da emoção não ser o
foco, ela é considerada algo útil. Frustração, caos e emoção podem
ajudar a criar significado quando o grupo não tenta se esquivar. A
fricção entre subculturas permite trazer à tona suposições e cren-
ças — para que os participantes visualizem seus próprios pensa-
mentos e os dos outros.
A prática mais importante do diálogo bohminiano é a suspen-
são. Os participantes tentam suspender suas suposições, julga-
mentos, reações, impulsos e emoções durante o processo. Sus-
pender não é o mesmo que reprimir esses processos, adiá-los ou
segui-los cegamente. Significa estar atento a eles, notá-los e ob-
servá-los sem julgá-los como certo ou errado. Seus pensamentos,
sensações físicas e emoções são expostos de forma a poderem ser
vistos por você e pelos outros. O grupo se torna seu espelho, refle-
tindo o conteúdo do pensamento e as estruturas subjacentes. Os
ouvintes espelham as suposições construídas a partir do que está
sendo dito. E, à medida que o processo do pensamento está sendo
observado, ele se modifica.
O facilitador é útil no início de um diálogo de Bohm para dar
acolhimento ao grupo. Geralmente, ele começa falando sobre diá-
logo e explicando o significado da palavra, bem como os princípios
e as práticas inerentes a esta abordagem particular. O facilitador
142 • Mapeando diálogos

não é visto como um observador neutro, mas como um integrante


do grupo. Idealmente, ele deve abandonar tal função assim que
possível, logo que o grupo tenha estabelecido a prática do diálogo.
O diálogo de Bohm é, sem dúvida, diferente da forma como nor-
malmente funcionamos. Geralmente, prestamos atenção ao con-
teúdo de nosso pensamento — nossas ideias, opiniões, questões,
insights — mas não ao processo que o constitui. Igualmente, em
geral, nos parece muito difícil abrir mão de nossos julgamentos
e ideias porque nos identificamos profundamente com eles, nos
aferramos a eles e os defendemos. Se pudéssemos enxergar o pen-
samento como um sistema maior, que se movimenta através e ao
redor de nós, talvez fôssemos capazes de dar um passo atrás e ver:
(a) como aquilo que se passa dentro de cada um de nós é reflexo
do grupo de diálogo e (b) como o que acontece com o grupo de
diálogo é um reflexo da sociedade em geral.

Fontes
BOHM, David. On Dialogue, 1996.
BOHM, David; FACTOR, Donald; GARRETT, Peter. Dialogue: a Proposal,
1991.
www.laetusinpraesens.org

Conselhos de Cidadãos

Conselhos de Cidadãos são experimentos em democracia. Têm o


propósito de definir o que as pessoas de uma comunidade, cidade
ou nação como um todo poderiam realmente querer se pudessem
pensar com cuidado sobre o assunto e conversar umas com as
outras por meio do diálogo.
Existe uma variedade de formas correlatas, geralmente agrupa-
das sob o título genérico de “conselhos de cidadãos”. Esses outros
formatos podem incluir “conselhos de cidadão para o consenso”,
“conselhos de deliberação dos cidadãos”, “fóruns de cidadania”,
“conferências de consenso”, “assembleias de cidadãos”, “células
de planejamento” etc. Diferem em número de participantes, pro-
cesso de seleção, mandato, tempo e frequência das reuniões, se
Ferramentas • 143

são permanentes ou temporárias, nível de expertise, participação


da mídia, e assim por diante.
O traço comum do Conselho de Cidadãos é o ato de reunir um
pequeno grupo (geralmente entre 12 e 24 pessoas) que compreen-
da um “microcosmo” da comunidade ou sociedade. Os partici-
pantes não são eleitos como representantes no sentido político.
Eles falam por si mesmos como cidadãos, individualmente, mas
encarnam as diversas perspectivas e capacidades do grupo a que
pertencem. Em virtude dessa composição, as decisões serão prova-
velmente semelhantes às que o grupo mais amplo teria tomado se
tivesse a oportunidade de engajar-se em um diálogo deste tipo em
larga escala. Se é dada visibilidade para que a comunidade como
um todo enxergue o processo pelo qual o pequeno grupo está pas-
sando, há uma grande probabilidade de que conversas estimulan-
tes de qualidade similar aconteçam informalmente em uma área
mais extensa.
Os membros do Conselho de Cidadãos se reúnem presencial-
mente para engajar-se em um diálogo ou deliberação facilitada em
torno de uma ou mais questões que digam respeito à população de
onde foram selecionados. A abordagem do diálogo deve permitir
aos diferentes membros realmente ouvir cada um, abrindo suas
mentes e expandindo seu entendimento, articulando-se com os
demais na busca de soluções criativas. O diálogo pode se estender
por alguns dias ou por períodos maiores de tempo. Geralmente,
resulta em um documento final, que é divulgado para a população
e para as autoridades. Para chegar a esse tipo de acordo, os mem-
bros precisam explorar sua diversidade, aprofundar os pontos em
comum e ajudarem-se mutuamente a enxergar o sistema como
um todo.

Fontes

ATLEE, Tom. The Tao of Democracy, 2002.


http://co-intelligence.org
http://www.wisedemocracy.org
144 • Mapeando diálogos

Comunidades de Prática

Apesar de não serem explicitamente nomeadas como tal, as Comu-


nidades de Prática fazem parte da vida cotidiana. Uma Comunidade
de Prática é uma forma de organização que nos ajuda com comparti-
lhamento de conhecimentos, aprendizagens e mudança. Trata-se, em
geral, de um grupo auto-organizado de pessoas que se reúnem para
compartilhar conhecimento sobre um campo ou prática em particular.
O processo de identificar e cultivar Comunidades de Prática
é cada vez mais difundido em ambientes corporativos, governa-
mentais e na sociedade civil em todo o mundo. Trata-se de uma
resposta à crescente complexidade do mundo contemporâneo e à
passagem para a sociedade do conhecimento. A premissa básica é
de que o conhecimento já não pode ser empacotado, externalizado
e armazenado em bases de dados, permanecendo atual e relevante
com o passar do tempo. Precisamos ser capazes de nos basear em
um conhecimento vivo, tácito e contextual, que existe sobretudo
nas pessoas e só pode ser voluntário, nunca ditado. As Comunida-
des de Prática são desenhadas para que o conhecimento seja trans-
mitido voluntariamente, muito mais por “demanda” (e sempre
que for necessário para um problema ou situação específica) que
por “pressão” (quando um expert decide o que os outros precisam
saber e o conhecimento é transmitido de forma unidirecional).
O processo requer relações consolidadas e de confiança, pois
depende de “know-who” (“saber-quem-sabe”) para poder transmi-
tir “know-how”. As Comunidades de Prática empregam várias fer-
ramentas de diálogo para poder construir essas relações e promo-
ver o aprendizado entre os membros.
O paradoxo é que tal formato organizacional costuma fracassar
quando exageradamente administrado, mas, ao mesmo tempo, pre-
cisa ser cultivado para se sustentar. Para ser bem-sucedido, o grupo
precisa ter apoio e, simultaneamente, liberdade para criar suas pró-
prias fronteiras e identidades. No fim das contas, relacionamentos
humanos são, em grande medida, determinados pela “química” en-
tre as pessoas e pela construção de confiança ao longo do tempo.

Fontes

WENGER, Etienne. Communities of Practice: Learning, Meaning, and Iden-


tity, 1998.
www.etiennewenger.com
Ferramentas • 145

Ecologia Profunda

Ecologia Profunda é tanto uma filosofia quanto um movimento. O


termo foi cunhado pelo filósofo norueguês Arne Naess para con-
trastar com o tipo de ambientalismo voltado apenas para atender
aos interesses humanos. Esta filosofia se baseia na premissa de que
formas de vida não humana têm um valor intrínseco, além de sua
utilidade para os propósitos humanos, e que o nível atual de inter-
ferência dos homens sobre o mundo não humano é excessivo. Essa
filosofia inspirou um conjunto de práticas experimentais e dialógi-
cas, inicialmente desenvolvidas por John Seed e Joanna Macy, com
a intenção de ajudar a “descondicionar” as pessoas, após séculos
colocando os interesses humanos acima de todos os outros. Macy
chama esse conjunto de práticas de “O Trabalho que Reconecta”.
O Trabalho que Reconecta visa ajudar as pessoas a experimen-
tar suas conexões inatas com as demais e com a teia da vida, e as-
sim ganharem motivação para desempenhar sua parte na criação
de uma civilização sustentável. Os participantes experienciam e
compartilham suas respostas mais íntimas a respeito da condição
atual do nosso mundo, reenquadram sua dor pelo que está acon-
tecendo como evidência desta interconexão, e constroem relações
de mútua ajuda e colaboração. Os participantes também apren-
dem conceitos, exercícios e métodos que ajudam a tornar visível
o poder que eles possuem para participar do processo de cura do
mundo.
O trabalho tornou-se particularmente conhecido na década de
1970 na América do Norte, quando milhares de ativistas antinu-
cleares e ambientalistas, psicólogos, artistas e espiritualistas se
reuniram. Um de seus mais famosos exercícios é chamado “Con-
selho de todos os seres”, em que os participantes assumem o papel
de diferentes seres vivos sobre a terra e, a partir da perspectiva
daquele ser vivo, se engajam em um diálogo sobre o que acontece
com o seu mundo.
A Ecologia Profunda é realmente uma visão de mundo diferen-
te. Nós a incluímos aqui porque ela desafia e amplia nossa con-
cepção das possibilidades do diálogo, incluindo o diálogo com o
mundo não humano, além de incluir a prática do diálogo com
nosso passado e futuro. Também acreditamos que esses exercícios
146 • Mapeando diálogos

estruturados podem tirar os participantes de sua zona de conforto,


propiciando um estado de abertura no qual mais diálogos podem
acontecer. O trabalho de Macy e Brown, Coming Back to Life: Prac-
tices to Reconnect our Lives, Our World [Voltando à vida: práticas que
reconectam nossas vidas, nosso mundo], oferece uma descrição atua-
lizada da teoria que sustenta o Trabalho que Reconecta, aproxima-
damente sessenta exercícios, novos e antigos, e um guia prático
para o desenho e a facilitação de workshops.

Fontes

MACY, Joanna; YOUNG BROWN, Molly. Coming Back to Life: Practices to


Reconnect our Lives, our World, 1998.
www.deepecology.org
www.joannamacy.net

Facilitação Dinâmica e Criação de Alternativas

A experiência mais emocionante e gratificante para um grupo que


tenta resolver um problema é encontrar uma nova alternativa,
algo nunca antes considerado. Tal alternativa pode ser algo que
crie sinergia onde antes havia competição de propostas ou algo
que se sobrepõe ou, de alguma forma, faz com que as preocupa-
ções iniciais pareçam irrelevantes. É o que a Facilitação Dinâmica
tenta fazer a partir da criação de um espaço chamado “Criação de
Alternativas”.
A criação de alternativas conjuga a abertura e a capacidade
transformadora do diálogo com uma abordagem deliberada de
tentar de fato chegar a conclusões para problemas específicos. O
facilitador tem um papel ativo, ajudando os participantes a deter-
minarem uma questão que realmente os interessa e poder dizer
de forma aberta, clara e respeitosa o que passa nas suas cabeças a
respeito dela. Durante o processo, o facilitador trabalha com quatro
flipcharts ao mesmo tempo — lista de soluções, problemas, dados
e preocupações. À medida que as conclusões do grupo emergem,
outro flipchart, o das decisões, é adicionado.
Ferramentas • 147

O facilitador segue o fluxo natural da dinâmica e espontaneida-


de da conversação, sem tentar administrar uma agenda. A facilita-
ção dinâmica foi desenvolvida por Jim Rough no início dos anos
1980. De acordo com ele, é um método especialmente valioso em
situações em que as pessoas enfrentam questões importantes,
complexas, estratégicas ou aparentemente impossíveis de resolver,
quando existe um conflito ou quando as pessoas buscam construir
um trabalho em equipe ou uma comunidade.

Fontes

www.ToBE.net
www.SocietysBreakthrough.com

Grupos focais

Grupos focais são muito usados nas pesquisas qualitativas acadê-


micas e pesquisas de mercado. Normalmente, consistem em pe-
quenos grupos de seis a doze pessoas que são reunidos nas fases
exploratórias de estudos ou projetos, para que os resultados das
conversas desta fase possam auxiliar na montagem de questioná-
rios ou outros instrumentos de pesquisa quantitativa.

Perguntas relacionadas a trabalhos com comunidade a partir de


Grupos Focais

• Quais as implicações para a comunidade?


• Quais seriam as preocupações centrais?
• Quais obstáculos poderiam se colocar no caminho do sucesso do
projeto?
• Quais as forças que poderiam ajudá-lo a funcionar?
• Quais as razões por trás das preferências das pessoas?

A vantagem de um grupo focal frente a um questionário é que


os participantes têm a oportunidade de interagir, fazer brainstor-
148 • Mapeando diálogos

ming e reagir aos comentários feitos pelos outros participantes.


Isso ajuda a obter respostas mais consistentes, possibilitando a
emergência de novas ideias, além de fornecer informações sobre
as relações e a dinâmica do grupo. Mais importante: um grupo
focal ajuda a responder aos porquês, enquanto os questionários
respondem basicamente a perguntas do tipo “o quê?”.
Um grupo focal é particularmente interessante quando uma
organização deseja iniciar um novo projeto e não tem muita clare-
za de como a comunidade irá responder (ver box com perguntas).
Trata-se, geralmente, de um processo mais consultivo do que uma
reunião dos atores efetivamente envolvidos numa ação conjunta
para implementar algum projeto. Os grupos focais não são neces-
sariamente dialógicos, mas podem ser. Outras ferramentas, como
o Círculo ou World Café, podem ser criativamente inseridas em
uma sessão de grupo focal.

Facilitação Gráfica

Uma imagem vale mais do que mil palavras. O facilitador gráfico


consegue visualizar o que as pessoas estão dizendo durante um
diálogo. Quando o facilitador gráfico estiver presente, uma parede
deverá ser coberta por um papel branco logo no início do processo.
Ao final do encontro, esse papel contará de forma colorida a histó-
ria do processo, por meio de palavras, mapas mentais, símbolos e
imagens. Imagens ricas podem capturar a complexidade das dis-
cussões e do encontro de forma simples e resumida.
Um designer de informação escuta o que as pessoas dizem ao
longo de um processo, transformando as falas em diagramas, ta-
belas e modelos. Ele devolverá continuamente aos participantes
o conhecimento que está sendo produzido, mas em um formato
diferente, para que possam reagir.
A facilitação gráfica, em si, não é um processo dialógico, mas
uma importante ferramenta que pode ter papel central na quali-
dade e no sucesso de um processo de diálogo. Ajuda a tornar o
grupo mais consciente de si e dos padrões que emergem durante
as conversas.
Ferramentas • 149

Fontes

www.groveconsulting.com
www.biggerpicture.dk

Jornadas de Aprendizagem

As Jornadas de Aprendizagem têm a ver com sair do escritório e


da zona de conforto de salas de reunião e hotéis. São jornadas de
um lugar para outro com o objetivo de explorar e experimentar o
mundo em primeira mão. Também são jornadas da mente, que
desafiam as noções preconcebidas e as suposições acerca da reali-
dade e das possibilidades atuais. Como foi mencionado a respeito
da maioria das ferramentas adicionais, elas são métodos de diálo-
go apenas em um sentido mais amplo — estabelecendo um diá-
logo com a realidade. No entanto, a distinção principal entre uma
Jornada de Aprendizagem real e uma típica “viagem de campo”
ou “excursão de estudos” nasce a partir da introdução de métodos
de diálogo.

“A mesa de trabalho é um lugar perigoso a partir do qual


ver o mundo.”
John le Carré

Jornadas de Aprendizagem devem ser cuidadosamente plane-


jadas. Desde escolher uma organização, grupo ou comunidade,
esclarecer suas próprias intenções e questões, a treinar a melhor
forma de “suspender julgamentos” — todos esses passos fazem
parte de um processo de aprendizado. Em uma jornada de apren-
dizagem, os participantes são convidados a se sentarem em peque-
nos grupos para conversar com os atores locais, buscando entender
sua realidade. Escutam, não apenas com a mente aberta, mas tam-
bém com o coração e a vontade abertos. Após a visita, escutam as
perspectivas de cada um e, por meio da conversa, chegam a uma
compreensão mais profunda e a um quadro mais completo do que
foi experienciado. Os participantes tornam-se conscientes de coisas
que os outros enxergaram e para as quais estavam cegos; desco-
150 • Mapeando diálogos

brem o valor de ampliar a compreensão do que significa enxergar.


Numa jornada bem-sucedida, o aprendizado vai além do grupo de
aprendizes; ele envolve tanto os visitantes quanto os visitados.

Projetos de Escuta e Entrevistas-Diálogo

Muita gente não está habituada a ser genuinamente escutada. E


normalmente, ao escutarmos, estamos o tempo todo julgando o
que está sendo dito ou esperando uma oportunidade para dizer
o que gostaríamos. Quando se cria uma oportunidade real para
fazermos perguntas, escutarmos com a mente aberta e nos conec-
tarmos ao que o outro está dizendo, podemos de fato ajudá-lo a
descobrir um conhecimento que ele não sabia ter.
Com uma conversa aberta que se aprofunde na experiência de
vida, nos conhecimentos, nas necessidades e nas preocupações
do entrevistado, as questões são reavivadas em sua mente e seu
coração. Os próprios entrevistados descobrem coisas novas sobre
como se sentem e o que podem fazer a respeito.
Esse tipo de entrevista e escuta pode ser relevante em várias
situações. Pode ser útil na mobilização de pessoas para que se en-
gajem em um projeto, para que desenvolvam uma rede ou sim-
plesmente despertá-las para que ajam como indivíduos.
Para exemplificar, os Projetos de Escuta são uma forma particu-
lar de organização de comunidades que vem sendo usada desde o
início da década de 1980. Nela, os entrevistadores vão de porta em
porta fazendo perguntas poderosas às pessoas a respeito de ques-
tões locais. As entrevistas geralmente duram cerca de uma hora.
Quando os entrevistados se convencem de que as intenções do en-
trevistador são genuínas e de que ele está ali para escutá-los e não
para julgá-los, eles se abrem e compartilham suas ideias e perspec-
tivas. O projeto gera mudança não por dizer às pessoas o que fazer,
mas simplesmente por fazer perguntas e realmente escutar.

Fontes

www.listeningproject.info
www.dialogonleadership.org
Ferramentas • 151

Diálogo Socrático

Um Diálogo Socrático é uma busca pela verdade. Essa abordagem


tem sua origem e seu nome inspirados na vida de Sócrates, o filóso-
fo da Grécia Antiga. Geralmente, acontece em grupos bem peque-
nos, de seis pessoas, por exemplo. A regra mais importante em um
Diálogo Socrático é “pense por si mesmo”. O diálogo geralmente
começa com uma questão filosófica, ou seja, uma questão funda-
mental que pode ser respondida a partir da reflexão sobre ela.
Os participantes são convidados a adiar e suspender julgamen-
tos, abordando a questão com a mente aberta. O facilitador alfine-
ta, faz perguntas e gentilmente desafia o estudante/participante
a entrar mais profundamente em seu raciocínio. Tenta-se chegar
a um consenso, não porque necessariamente seja atingível, mas
porque o desejo de se chegar a um consenso ajuda a aprofundar a
investigação e a escutar profundamente todos os pontos de vista.
Um aspecto-chave do Diálogo Socrático é que, enquanto a
questão é filosófica, ela é sempre aplicável à experiência concreta,
e o grupo permanece em contato com esta experiência. Os partici-
pantes trazem exemplos específicos, em face dos quais o que está
sendo dito pode ser verificado e testado. Os insights são criados
conjuntamente a partir da compreensão aprofundada dos exem-
plos concretos — ao mesmo tempo, os participantes ganham con-
fiança em sua capacidade de raciocinar.

Fontes

www.socraticmethod.net

Diálogo por meio de Histórias

Como mencionamos na seção sobre o Círculo, nós, seres hu-


manos, sempre usamos histórias para nos comunicar. Antes de
existir a escrita, eram elas que transmitiam informação e saberes
através das gerações, pois é mais fácil lembrar-se de uma histó-
ria do que de fatos ou conceitos isolados. Somos, em certo sentido,
152 • Mapeando diálogos

“construídos” para apreciar histórias. Ao mesmo tempo, tendemos


a racionalizar e dissociar os conceitos que estamos transmitindo
das histórias que os ilustram.
A técnica do “Diálogo por meio de histórias” foi desenvolvida
por Ron Labonte e Joan Featherstone quando trabalhavam com
desenvolvimento de comunidade e saúde no Canadá. Eles enxer-
gavam a técnica como uma forma de diminuir a distância entre te-
oria e prática e reconhecer a expertise das pessoas em suas próprias
vidas. A técnica faz uso das histórias para detectar temas e ques-
tões importantes para uma comunidade, partindo das experiências
pessoais para construir um conhecimento mais generalizado.
No “Diálogo por meio de histórias”, os indivíduos são convida-
dos a escrever e contar suas histórias em torno de um tema gerador
— um tema que contenha energia e possibilidades para o grupo.
Na medida em que uma pessoa narra sua história, os outros escu-
tam atentamente, algumas vezes tomando notas. A narrativa é se-
guida de uma roda de reflexão em que cada pessoa pode falar sobre
como aquela narrativa se assemelha e se afasta da sua própria his-
tória. Um diálogo estruturado acontece, norteado pelas perguntas:
“o quê?” (sobre o que era a história), “por quê?” (por que os acon-
tecimentos da história se deram daquela forma), “e agora?” (quais
são nossos insights) e “então, o quê?” (o que faremos a respeito). O
grupo encerra criando “cartões de insight”, escrevendo cada insight
num cartão colorido e agrupando-os por tema.

Fontes

http://www.evaluationtrust.org/tools/story.html

Teatro do Oprimido

Na década de 1950, o diretor teatral brasileiro Augusto Boal


(1931-2009) começou a se perguntar por que o teatro teria que
ser um “monólogo”. Por que a plateia sempre consumia passiva-
mente as performances? Ele começou a fazer experimentações
com teatro interativo, criando um “diálogo” entre a plateia e o
Ferramentas • 153

palco. Sua premissa era de que o diálogo é uma dinâmica co-


mum e saudável entre todos os seres humanos, e que a opressão
é o resultado da ausência do diálogo e dominância do monólo-
go. Ao longo dos últimos cinquenta anos, o Teatro do Oprimido
(TO) deu origem a um vasto sistema abrangendo diversos jogos,
exercícios e técnicas teatrais interativas, adotados em comunida-
des do mundo todo. Ao transformar monólogos em diálogos, o
TO é originalmente aplicado como um instrumento que capacita
o “oprimido” a transformar, de maneira concreta, a sociedade.
Todas as técnicas do TO apresentam aos participantes dilemas
e desafios relacionados com os principais problemas sociais e
estruturas de poder de suas comunidades locais ou da sociedade
como um todo. As técnicas ajudam a “sair” da cabeça e se conec-
tar com o corpo, permitindo que as pessoas tenham encontros
em uma diversidade de culturas e níveis educacionais, permitin-
do também acessar as dinâmicas mais inconscientes. As oficinas
do Teatro do Oprimido, agora coordenadas por centenas de facili-
tadores, constituem um bom terreno de treinamento para a ação,
não apenas no teatro, mas na vida. A forma mais conhecida do
TO é o chamado “Teatro Fórum”. No Teatro Fórum, um dilema
é apresentado ao grupo na forma de cena teatral, em geral com
um desfecho negativo. Os participantes são convidados a entrar
na peça e assumir o papel de um dos atores para tentar mudar
o desfecho. São convidados a imaginar novas possibilidades e
soluções, e a tentar ativamente fazer com que elas aconteçam
naquele momento. Como resultado da resolução desse problema
do grupo, bem como da imaginação interativa, do envolvimento
físico, da confiança, da diversão e da vigorosa dinâmica inter-
pessoal, os participantes percebem que são parte integrante da
cadeia de perpetuação dos problemas, mas também podem ser a
fonte de sua própria libertação.

Fontes

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores, 1992.


http://www.theatreoftheopressed.org
http://ctorio.org.br
154 • Mapeando diálogos

O Encontro da Cidade do Século XXI

Como engajar ativamente cinco mil cidadãos em um encontro na


sua própria cidade e habilitar cada um deles a oferecer sua contri-
buição substancial à formulação de políticas e decisões públicas?
Isso é o que acontece na série de Encontros da Cidade do Sécu-
lo XXI, promovidos por AmericaSpeaks. Atualizando os tradicio-
nais encontros municipais da Nova Inglaterra para endereçarem
as questões e necessidades da democracia contemporânea, o Ame-
ricaSpeaks restaura a voz do cidadão. Nos encontros, deliberações
facilitadas acontecem em mesas de dez a doze participantes. Uma
determinada tecnologia transforma essas discussões em recomen-
dações sintetizadas. Cada mesa submete suas ideias através de
uma rede de computadores sem fio, e o grupo inteiro vota para
eleger as recomendações finais.
Os resultados são compilados em um relatório em tempo real,
que identifica de forma imediata as prioridades e recomenda-
ções. Este material é levado para casa pelos participantes ao final
do encontro. Desde a sua fundação, em 1995, as metodologias do
AmericaSpeaks já mobilizaram mais de 65 mil pessoas em cerca
de cinquenta fóruns em grande escala realizados em todos os cin-
quenta estados americanos, mais o Distrito de Colúmbia. Nos en-
contros foram trabalhadas questões locais, estaduais e nacionais,
e tomadas decisões referentes a temas que vão desde a reforma da
Previdência Social até o desenvolvimento de orçamentos munici-
pais e planos regionais.

Fontes

www.americaspeaks.org
III. Epílogo: Conversas Africanas

Este livro teve origem na África. As primeiras ideias que surgiram


foram desenvolvidas lá, o público para o qual foi inicialmente es-
crito é africano e, finalmente, a história da maioria das ferramen-
tas apresentadas remete ao continente africano.
Ao embarcar no projeto deste livro, sabíamos ser de alguma
forma absurdo importar métodos de diálogo ocidentais para a
África, onde a conversa é uma prática profundamente enraizada
na cultura nativa. Dado que a África é o berço da humanidade,
talvez tenha sido também o lugar onde as pessoas se sentaram em
círculo pela primeira vez para se comunicar. Na medida em que
íamos avançando sobre os métodos mais recentes de diálogo, sen-
tíamos necessidade de explorar e reconhecer essa tradição.
Começamos nossa investigação sobre diálogos africanos pre-
tendendo clarificar e compreender melhor o significado de termos
como lekgotla, imbizo e indaba. Essas palavras, que significam en-
contros tradicionais africanos, se popularizaram bastante em al-
guns países.
Acreditamos ser relevante pelo menos tentar documentar bre-
vemente o que aprendemos até o momento. Entretanto, devemos
também ressaltar que nossa investigação é um universo que ultra-
passa, em muito, o escopo deste livro.
Em primeiro lugar, é impossível caracterizar as conversas e os pro-
cessos de diálogo africanos indiscriminadamente, porque a África é
um continente com milhares de agrupamentos humanos, cada um
com suas próprias particularidades em termos de governança, toma-
da de decisões e vida comunitária. Em segundo lugar, as formas de
encontro são inseparáveis das culturas nas quais são adotadas. E, em
terceiro lugar, se realmente pretendemos nos engajar nesses proces-
sos em sua totalidade, é preciso que se diga que eles colocam em xe-
que muitas das nossas suposições e preconceitos fundamentais.
Esta seção foi inspirada em uma série de entrevistas com o dou-
tor Magomme Masoga e Nomvula Dlamini, bem como em nossa
própria experiência e algumas leituras. Ela deve ser lida como uma
descrição geral e não deve ser citada como evidência factual.
156 • Mapeando diálogos

Conversas vivas

Imagine uma “típica” comunidade tradicional africana. Nela, as


conversas acontecem constantemente como processos vivos e
continuados, que vão desde a família até o nível comunitário. As
mulheres se encontram no rio durante o dia, os jovens e meni-
nos conversam enquanto cuidam do gado, as famílias se reúnem
em torno da fogueira e compartilham histórias. As conversas vão
sendo tecidas coletivamente. Por meio da história oral, contos e
provérbios, princípios e regras da comunidade são compartilhados
e permanecem vivos.

“No final, nosso propósito é a harmonia e o bem-estar


social e comunal. Ubuntu não significa penso, logo existo.
Significa: Sou humano porque eu pertenço; eu participo; eu
compartilho.”
Arcebispo Desmond Tutu

Essas conversas continuadas são uma forma de vida. Os ho-


mens de cada localidade se reúnem em encontros especialmente
convocados (lekgotlas ou imbizos) sempre que necessário, quando
chegam a uma visão geral do que está acontecendo naquela comu-
nidade e então tomam decisões. Mas essa é apenas uma pequena
parte das conversas da comunidade. As mulheres, os jovens e as
famílias conversam fora da reunião e influenciam a conversa que
acontece no lekgotla. Quando as conversas acontecem, existe sem-
pre uma percepção concreta de que não são apenas indivíduos se
comunicando. Cada pessoa está conectada a uma família, comuni-
dade e grupo de ancestrais. Elas representam um todo maior, não
falam apenas por elas mesmas nem interagem visando unicamen-
te ao seu próprio interesse.
A comunicação não é apenas direta e verbal. Arte, dramatiza-
ção, tambores e canções são usados, especialmente para comuni-
car o que pode ser difícil de enfrentar. As mulheres, por exem-
plo, podem compor uma nova canção para comunicar o que está
acontecendo com elas. A comunidade é, de certa forma, arquite-
tonicamente desenhada para conversas e reuniões. As casas são
circulares, a fogueira é circular e a posição das casas, umas em
Epílogo • 157

relação às outras, é também circular. A conversa é incorporada no


espaço físico.

O Lekgotla

O Lekgotla de Botswana é provavelmente o mais bem documenta-


do processo de conselhos africanos da região sul da África. Atual-
mente, é muito criticado por ser convocado pelo chefe e só incluir
os homens da comunidade, mas muitos argumentam que existem
outras formas para as mulheres e os jovens levarem seus assuntos
e questões ao Lekgotla (na cultura Venda do norte da África do
Sul, aparentemente, as decisões finais têm que ser passadas à ma-
triarca da comunidade). Acreditamos ser possível extrair alguns
ensinamentos úteis dessa prática, mesmo para diálogos entre os
gêneros, embora neste caso talvez fosse inadequado nomear estes
como “Lekgotla”.
Na aldeia, a decisão de convocar um Lekgotla não é necessa-
riamente transparente. Os conselheiros do chefe têm o papel de
escutar a comunidade e prestar atenção às questões que vão sur-
gindo. Quando algo começa a surgir, eles levam para o Lekgotla
para assegurar que a conversa aconteça o mais rápido possível,
antes que o conflito aumente.
Um Lekgotla é sempre feito ao ar livre porque é um espaço
que não pertence a ninguém. Isso proporciona um sentido de li-
berdade, abertura e convida as pessoas a participarem e falarem
honestamente. Também não existe limite de tempo no processo.
Pode levar dias, ou mesmo semanas, até que as soluções para os
problemas encaminhados sejam encontradas. De acordo com
Nomvula Dlamini: “As vidas das pessoas se desdobravam ao longo
do tempo. O tempo não era imposto sobre as vidas das pessoas.”
Trata-se de uma concepção bastante diferente daquela do mundo
moderno e constitui modelo mental fundamental. Nomvula des-
taca que a liberdade das restrições impostas pelo tempo permite
aos participantes suspenderem julgamentos e estarem prontos a
escutar histórias e pontos de vista de qualquer pessoa no contexto,
sem pressa.
158 • Mapeando diálogos

O Lekgotla se reúne em círculo. O círculo representa unidade,


e os participantes estão cientes de que somente formando um todo
unido podem encaminhar seus problemas. O círculo também ga-
rante que possam encarar cada participante e falar francamente
um com o outro. À medida que vão chegando, as pessoas fazem
uma saudação às outras presentes na roda. Elas se certificam de
que todos que têm importância para o processo estejam presentes.
Apesar de se sentarem e falarem em ordem hierárquica, a ênfase
é para que cada voz seja ouvida igualmente.
A conversa é aberta. Cada participante fala sobre como o pro-
blema afeta sua vida diretamente. Nada é visto como um evento
isolado. Todas as histórias são ouvidas em contexto, respeitosa-
mente, e pelo tempo que for preciso. Essa orientação de tempo
diferente permite uma qualidade mais profunda da escuta, e cada
voz é escutada e recebe peso igual. A mesma pessoa não falará
uma segunda vez nem responderá até que as visões dos demais se-
jam escutadas. O silêncio também é parte integrante da conversa,
para que as palavras de cada um se acomodem nos intervalos entre
as falas. A emoção é expressada de forma livre, porém construtiva.
O processo permite que cada participante reflita e avalie seu pró-
prio comportamento em relação à comunidade.
O Lekgotla é em parte uma corte de julgamento de conflitos,
mas pode também funcionar como um encontro para conversas
mais gerais em torno das principais questões de uma comunidade.
Ao resolver as injustiças, o foco está menos em determinar o certo
e o errado ou alguma punição, e mais voltado à cura, restauração
das relações e busca de maneiras de avançar. O acusado é sempre
ouvido em primeiro lugar, para poder esclarecer o que aconteceu,
e depois tem a chance de voltar a falar no final, momento em que
avalia se acredita que a decisão do grupo é justa e se a reabilitação
e a restauração que está sendo solicitada está dentro de suas possi-
bilidades. Ele nunca é impedido de falar.
O grupo assume responsabilidade coletiva pelas questões. As
soluções são exploradas em conjunto, e não impostas por um dos
lados; a orientação vai em direção ao consenso e ao compromisso.
As necessidades coletivas da comunidade são colocadas no cen-
tro, acima de qualquer necessidade individual, e a preocupação é
sempre com o que é melhor para a comunidade. Para as mentes
Epílogo • 159

ocidentais isso pode soar opressivo, mas nessa cultura não é visto
como sacrifício, pois o que é bom para a coletividade está comple-
tamente interligado ao que é bom para o indivíduo. A concepção
é de que cada um deveria ter o máximo grau de liberdade sempre
que não for à custa da liberdade dos outros.
Por meio desse processo contínuo de conversa em comunidade
é criado um nível de clareza compartilhada em torno dos princí-
pios e do senso de certo e errado. Tais princípios são, então, aplica-
dos pelas deliberações do Lekgotla para determinar o que deveria
ser feito em um contexto particular. Não existe uma lei configuran-
do uma regulamentação padronizada para cada situação.

Extraindo ensinamentos

Algumas das profundas visões de mundo que estão por trás da


natureza integral das conversas em uma comunidade africana
tradicional podem parecer incompatíveis com a vida moderna. A
ideia de que não somos, antes de mais nada, indivíduos, mas sim
membros de uma comunidade, e de que não precisamos ser es-
cravos do relógio são difíceis de colocar em prática integralmente.
Contudo, explorar a cultura africana pode significar um estimu-
lante desafio para nossas estruturas mentais, e certamente pode-
mos retirar inspiração dessas práticas e verificar como a natureza
de nossas conversas se modifica, se tentarmos alterar nossa visão
de mundo. Muitas das ferramentas e dos processos apresentados
neste livro também foram parcialmente inspirados em visões e
práticas culturais similares às que encontramos nas comunidades
tradicionais africanas e que foram descritas acima.
Algumas dessas práticas retiraram inspiração diretamente do
solo africano, outras das tradições dos nativos americanos que
compartilham de crenças semelhantes. Muitas têm em comum o
retorno ao tempo circular e compartilham a ideia de que as pessoas
e o propósito de estar junto são mais importantes do que o tempo
e a estrutura de um encontro. A maioria dessas práticas faz uso do
círculo como meio de estar junto como um todo não fragmentado.
O diálogo, de muitas maneiras, alimenta a cultura de se reunir
enquanto um todo — permitindo que cada voz seja ouvida, mas
160 • Mapeando diálogos

sempre a serviço da comunidade e do todo. Vários dos métodos que


apresentamos parecem resgatar muito do que já sabemos a respei-
to de nossa cultura africana e da própria história da África. Portan-
to, embora a princípio possa parecer inadequado trazer métodos
ocidentais para um lugar onde o diálogo e a conversação podem ter
se originado, existe um senso de afirmação, visto que muitos des-
ses métodos retornam a algumas de nossas raízes mais profundas.
Muitos dos processos apresentados também reconhecem e traba-
lham explicitamente com a narrativa de histórias como meio de
compartilhar um conhecimento inspirador e de construir em cima
das memórias do que de melhor aconteceu e ainda acontece.
Sobre os Autores

Marianne Mille Bojer [bojer@reospartners.com]

Mille é uma facilitadora experiente e designer de diálogos em gru-


po e processos de mudança. Recentemente, mudou-se para São
Paulo, Brasil, a fim de inaugurar a Reos Partners em São Paulo.
A Reos é uma organização internacional que trabalha com desen-
volvimento de liderança e inovação social em sistemas complexos.
Mille esteve anteriormente na África do Sul, à frente do Reos Part-
ners em Joanesburgo, com a responsabilidade de desenvolver pro-
cessos de liderança e projetos entre múltiplas partes interessadas
para atender aos desafios do HIV/AIDS, bem como crianças órfãs
e vulneráveis.
Mille é também uma das fundadoras do Pioneers of Change
(www.pioneersofchange.net), uma comunidade de aprendizagem
para jovens agentes de mudança no mundo. No decorrer de seu
trabalho com o Pioneers of Change, Mille desenvolveu uma sóli-
da experiência na facilitação de comunidades de aprendizagem,
coordenação de diálogo, bem como na construção de redes e or-
ganizações. Com formação acadêmica na área dos estudos do de-
senvolvimento internacional, Mille, dinamarquesa de nascimento,
passou mais da metade de sua vida em países como Egito, Estados
Unidos, Burkina Faso, Holanda, Brasil e África do Sul.

Heiko Roehl [hr@heikoroehl.de]

Como designer de intervenções para o desenvolvimento social,


Heiko é um apaixonado pela geração de futuros alternativos. Ele
dirige a área Corporativa da Cooperação Técnica Alemã — GTZ,
uma organização internacional de desenvolvimento sustentável
que opera em mais de 120 países implementando programas de
desenvolvimento em nome do governo alemão. De 2002 a 2006,
foi destacado pelo Ministério da Cooperação e Desenvolvimento
Econômico do governo alemão para apoiar a Fundação Nelson
162 • Mapeando diálogos

Mandela em Joanesburgo, África do Sul, na luta contra o HIV/


AIDS. Antes de assumir essa missão, Heiko passou mais de seis
anos no Centro de Estudos de Tecnologia e Sociedade da Daimler,
em Berlim e Palo Alto, Califórnia, trabalhando em criação de valor
organizacional, visão estratégica, organização do conhecimento e
ferramentas para gestão de mudança. Tem formação acadêmica
em psicologia e teoria organizacional, doutorado em sociologia, e
várias publicações sobre mudança organizacional e social (visite
www.heikoroehl.de para mais informações). Entusiasta da vincu-
lação da experiência prática às teorias de mudança e desenvolvi-
mento organizacional, Heiko é também editor do German Journal
of Organizational Development and Change Management [Revista
Alemã de Desenvolvimento Organizacional e Gestão de Mudança
—www.zoe.ch].

Marianne Knuth [knuth@reospartners.com]

Marianne é facilitadora de aprendizagem e cocriação individual e


em grupo. Mudou-se recentemente do Zimbábue para a África do
Sul, como sócia da Reos Partners. Na África do Sul, seu foco de tra-
balho é principalmente o diálogo e a ação entre múltiplas partes
interessadas com foco no problema das crianças órfãs e vulnerá-
veis em nível nacional. Participa também da iniciativa local para
desenvolver soluções inovadoras para o cuidado das crianças na
comunidade. No Zimbábue, fundou o Kufunda Learning Village,
um centro de aprendizagem que visa à criação de soluções locais
para os desafios da autoconfiança comunitária pelo uso de imagi-
nação, colaboração e recursos locais. Por esse trabalho, Marianne
foi designada fellow da Ashoka (www.ashoka.org) em 2004. Desde
2001, é também professora em cursos sobre a arte de facilitar con-
versas significativas e estratégicas. Foi uma das cofundadoras do
Pioneers of Change, junto com Mille e Colleen. Possui mestrado
em finanças e negócios internacionais da Escola de Administração
de Copenhagen. Durante seus estudos, atuou como presidente da
AIESEC International (www.aiesec.net), uma organização mun-
dial que congrega estudantes, abrangendo 87 países e cerca de
cinquenta mil participantes.
Sobre os autores • 163

Colleen Magner [magner@reospartners.com]

As áreas de especialidade de Colleen são empreendedorismo so-


cial e métodos de aprendizagem extra-classe, com foco no diálogo
e na aprendizagem por meio da experiência. Sócia da Reos Part-
ners com base em Joanesburgo, Colleen integra o corpo docente
do Gordon Institute of Business Science (GIBS), tendo anterior-
mente gerenciado a Unidade de Estudos sobre Política, Lideran-
ça e Gênero (PL&G) daquela instituição. Supervisionou estudos
de caso sobre empreendedorismo social e editou o livro Dust to
Diamonds: Stories of South African Social Entrepreneurs [Do pó aos
diamantes: histórias de empreendedores sul-africanos].
Antes de fazer parte do GIBS, Colleen foi uma das cofundado-
ras do Pioneers of Change, junto com Mille e Marianne.
Formada pela Universidade de Port Elizabeth, África do Sul,
tem duas graduações, em direito e economia, além de um mes-
trado em Mudança Organizacional e Gestão do Conhecimento
pela Universidade de Kwa Zulu Natal. Frequentou os seguintes
programas executivos: “Making Markets Work” e “Teaching the
Practice of Management”, ambos oferecidos pela Harvard Busi-
ness School.
Anexo A
Visão geral para avaliação do propósito

Propósito do processo de diálogo

Desenvolvimento pessoal/

Planejamento estratégico/
Construção de capacidade
Resolução do problema
Geração de consciência

Construção de relações

Compartilhamento de

Visão compartilhada

Capacidade de lidar

Tomada de decisão
conhecimento

com conflitos
Liderança
Inovação

de Ação
Investigação Apreciativa
          

Laboratório de Mudança
          

O Círculo
          
Democracia Profunda
          
Busca do Futuro
          
Escola Israelense-Palestina para a Paz
          
Tecnologia do Espaço Aberto
          
Planejamento de Cenário
          
Diálogo Sustentado
          
World Café
          
Anexo B
Visão geral para avaliação do contexto

Contexto do processo de diálogo


Facili-
Situação Participantes tação

Requisitos de treinamento
Diversos níveis de poder

Diversidade cultural
Baixa complexidade

Situação conflitual
Alta complexidade

Situação de paz

multidisciplinar

Grupo de pares
Pequeno grupo

Grande grupo

Microcosmo/

específico
(até 30)

Investigação Apreciativa
          
Laboratório de Mudança
          
O Círculo
          
Democracia Profunda
          
Busca do Futuro
          
Escola Israelense-Palestina para a Paz
          
Tecnologia do Espaço Aberto
          
Planejamento de Cenário
          
Diálogo Sustentado
          
World Café
          
Este livro foi impresso no Rio de Janeiro, pela Milograph,
para o Instituto Noos, em fevereiro de 2011.
A tipografia usada foi a ADScala 10,5/13.
O papel de miolo é offset 75g/m2,
e o de capa é cartão 250g/m2.

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