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Teoria U

e suas
interfaces

por Marina Galvão


E-book
Teoria U e suas interfaces

Uma coletânea de pequenos textos com


conteúdos e reflexões de uma facilitadora,
consultora e pensadora livre.

Para você aplicar em seus processos de


aprendizagem.

Escrito e revisado por Marina Galvão


Projeto visual e diagramação por Luana Adriano
“O pensamento produz resultados, mas diz
que não o faz.“

— David Bohm

“A palavra é metade de quem pronuncia e


metade de quem escuta.”

— Michel de Montaigne
MARINA GALVÃO
Facilitadora e
consultora

Me formei em Direito, e após terminar meu mestrado em Direito


Ambiental pela Universidade de Lisboa - voltado para consumo
consciente - , caminhei um tempo pelo ensino acadêmico científico.
Porém, redirecionei minha trajetória para a co-criação de experiências
de aprendizagem livre, quando descobri minha paixão pelas conexões
interpessoais e pelo poder da Facilitação.

Sou Facilitadora, fundadora da Húmus: adubo para pessoas, atuo como


Consultora corporativa na nōvi e como Designer de Aprendizagem no
Instituto Amuta.

Desenho e facilito workshops, eventos e experiências de grupos dentro


e fora de organizações, utilizando ferramentas advindas da Teoria U,
Thinking Environment, Art of Hosting e outras metodologias de
aprendizagem colaborativa.

Nos últimos anos estive envolvida em projetos nas áreas de educação,


meio ambiente, liderança, desenvolvimento pessoal e organizacional,
resolução de conflitos e gestão de comunidades.

MINHA HISTÓRIA COM A TEORIA U

A Teoria U foi desenvolvida por Otto Scharmer na primeira década


do novo milênio, época em que publicou os livros Teoria U e Presença
(este último em co-autoria com P. Senge). Em 2015, ele co-fundou o
MITx u.lab, um Curso Online Aberto Massivo (do inglês MOOC: Massive
Open Online Course ) para liderar mudanças profundas. Anualmente, de
setembro a dezembro, pesquisadores do Massachusetts Institute of
Technology (MIT) e do Presencing Institute realizam o U.lab: laboratório
para aprendizado e prática sobre a Teoria U.

Pessoas de várias partes do mundo se engajam nessa jornada para


aprender e colocar em prática projetos e ações que potencializem uma
transformação sistêmica. Durante os últimos anos, o Ulab já mobilizou
pessoas de 185 países diferentes nessa jornada.
Para aprender a metodologia, se apoiar no processo e praticar junto, os
participantes podem se engajar em Hubs, que são grupos que se
reúnem em centenas de cidades do mundo para compartilhar essa
experiência.

Eu participei do curso da Teoria U pela primeira vez em 2015, e foi


surpreendente o impacto que essa Teoria teve na minha jornada e nas
ações que eu estava buscando implementar na minha vida pessoal e
profissional na época.

Em dezembro desse mesmo ano, participei do Laboratório de Inovação


Social, em São Paulo, organizado pelo Novos Urbanos, e facilitado
presencialmente por Otto Scharmer - criador da Teoria U - e sua equipe.
Essa experiência foi extremamente transformadora, e deixou ainda mais
evidente pra mim a potência dessa metodologia.

Assim, a partir de 2016, ao lado da Bruna Viana, passei a organizar e


facilitar anualmente o Hub da Teoria U em Belo Horizonte, pela Húmus:
adubo para pessoas. Em 2020, em função da Pandemia de Covid-19, o
Hub foi pela primeira vez online, o que permitiu a participação de
pessoas de diversas partes do Brasil. No Hub construímos um espaço
para as pessoas aplicarem as ferramentas aprendidas, trocarem insights
e se apoiarem durante a jornada do curso.

Ao longo do Hub de 2020 escrevi alguns textos com a intenção de


compartilhar um pouco mais da Teoria U e das minhas experiências
profissionais de facilitação com grupos e com organizações.

Este ebook é um compilado desses textos, que abordam, sob


diferentes aspectos, a Teoria U e suas interfaces, e também minhas
reflexões.

Espero que lhe seja útil.

Se quiser me contar suas impressões a partir da leitura,


vou adorar receber sua mensagem, e por isso deixo
aqui meus contatos:

LinkedIn • Medium • Instagram


marina.d.galvao@gmail.com
sumário
1. A virada de câmera da Teoria U 7
2. Pandemia e percepção sistêmica 11
3. Preste atenção na sua atenção 16
4. Vozes internas de resistência: Voz do julgamento 20
5. Vozes internas de resistência: Voz do cinismo 30
6. Vozes internas de resistência: Voz do medo 39
7. Iniciando a Jornada do U: O contêiner e o grupo 49
8. Escuta: Quantas vezes você entra numa conversa
disposto a não ter razão? 56
9. Conselhos: Boa intenção. péssimo hábito 64
10. Quer aprender com o futuro? 72
11. Fonte da Criatividade: Como acessar o seu
“Eu-futuro”? 80
12. Protótipo: Pensamento sem ação vs. Ação sem
Pensamento 86
13. Responsabilidade e Culpa: Primas distantes 93
Inspirações e Referências 102

DICA: Os textos são complementares,


mas independentes. Então, você pode
optar por ler na ordem do sumário ou
de forma aleatória. Clique na paginação
para ser direcionado ao texto que
deseja ler.
texto um

A virada de
câmera da
Teoria U

7
A virada de câmera da Teoria U

Lidamos com questões que precisam ser resolvidas a


todo tempo.

Percebo que somos pressionados por uma constante


sensação de urgência em apresentar uma solução rápida -
e eficaz - para os desafios que despontam em nossa vida
pessoal, em nosso trabalho e no mundo.

O tempo e o dinheiro permeiam a maioria das questões, e


o medo é o sentimento sombra desses dois elementos.
Sem a devida atenção para nos conectar com a verdadeira
questão “por debaixo” do desafio emergente, alcançamos
soluções superficiais e que não se sustentam no tempo.

Seja no campo pessoal ou no campo profissional, criamos


respostas automáticas para questões novas - e cada vez
mais complexas - e depois nos aborrecemos por nos
depararmos repetidamente com as mesmas questões.

Em regra, sinto que não nos colocamos disponíveis para


visitar as estruturas e sistemas “encobertos”, muito menos
os paradigmas de pensamento e comportamento que
permeiam e propagam nossos desafios diários.

8
A virada de câmera da Teoria U

TEORIA U E MUDANÇA SISTÊMICA

Ao olhar para tais desafios, a Teoria U aponta que o


denominador comum entre os nossos projetos, negócios,
relações e ações é o nosso nível de consciência e, de
forma mais objetiva, o nosso nível de atenção. As soluções
emergem e a mudança acontece quando nos engajamos
em algum trabalho de liderança interna.

A Teoria U nos apresenta uma metodologia (com


ferramentas e práticas), e nos conduz por uma mudança
sistêmica que cultiva esse estado interior de consciência e
atenção voltado para a ação.

Nas palavras de Kurt Lewin e Otto Scharmer:

Você não pode entender um sistema a não


ser que você tente mudar esse sistema.
Você não pode mudar um sistema a não
ser que você mude a consciência, e você
não pode mudar a consciência, a não ser
que você permita ao sistema ver e sentir a
si mesmo”. (tradução livre)

9
A virada de câmera da Teoria U

Temos a tendência de entender o sistema como algo que


está fora de nós, e a Teoria U nos ensina a ver o sistema
como algo que inclui a nós mesmos. Propõe, assim, que
façamos uma “virada de câmera", ou seja, que tragamos
atenção para perceber qual é a nossa atuação individual
nos sistemas aos quais pertencemos (inclusive naqueles
sistemas dos quais discordamos ou que gostaríamos que
funcionassem de outra maneira).

O Ulab, curso da Teoria U, desponta como um laboratório


para desenvolver habilidades, não só no nível individual,
mas, também, no aspecto sistêmico, olhando para nossa
relação com os outros, com os negócios e com o mundo.

Quem passa por este processo experimenta mudanças


sutis no campo social cognitivo, que perpassam a escuta, a
observação e a ação.

Ao “descer” o U, você consegue se aprofundar nos


desafios, identificando os padrões e as causas que dão
origem ao problema e, ao “subir” o U, você é convidado a
trazer o entendimento da mente para as mãos,
prototipando e criando soluções que se sustentem ao
longo do tempo.

A consciência é o grande diferencial na hora de agir, e o


erro passa a ser o fio condutor dessa revolução.

10
texto dois

Teoria U:
Percepção
sistêmica E
pandemia

11
Teoria U: Percepção sistêmica e pandemia

Faz 5 anos que estudo e trabalho com a Teoria U.


A primeira vez que fiz o curso, em 2015, estava
sozinha em casa, no meu computador, e
provavelmente sozinha na cidade de Belo Horizonte
também, uma vez que sempre que comentava com
alguém sobre essa incrível Teoria que eu estava
descobrindo, me deparava com olhares de surpresa
e uma cara de interrogação.

MAS O QUE É A TEORIA U?

Em uma frase, eu diria que a Teoria U é uma


metodologia para transformar sistemas baseada na
consciência. Imagino que vocês estão fazendo a
mesma expressão que eu recebia das pessoas em
2015.

12
Teoria U: Percepção sistêmica e pandemia

Essa Teoria é como um mergulho no iceberg. Ela


propõe um passo a passo para olharmos para além
da superfície dos desafios que enfrentamos
(pessoais, organizacionais ou globais), e acessar o
que está por debaixo daquela questão, para depois
construir uma solução que se sustente.

Após esses 5 anos, hoje me vejo, cada vez mais,


cercada por pessoas que conhecem, aplicam e
espalham a palavra sobre essa Teoria. Aqui cabe um
ponto de atenção: ela não é um culto, nem uma seita,
mas realmente não tem como você vivenciar esse
mergulho no U e não ser impactado por ele. As
pessoas que experienciam a jornada acabam, então,
“espalhando a palavra” para outras.

Otto Scharmer, fundador da Teoria nos apresenta o


seguinte questionamento:

Por que nós criamos coletivamente


resultados que individualmente
ninguém quer?

13
Teoria U: Percepção sistêmica e pandemia

Para tentar responder a essa questão, a Teoria U propõe


uma virada de câmera, ou seja, que a gente perceba a
nossa atuação individual nos sistemas aos quais
pertencemos, seja na nossa equipe de trabalho, na nossa
comunidade, ou na nossa família. Somos sempre uma
parte essencial do resultado alcançado.

No atual cenário pandêmico, ficou ainda mais explícito que


as nossas ações individuais (seja de trabalho, de consumo,
de higiene, de carinho) têm um impacto direto no sistema
coletivo em que vivemos. Um sistema que muitas vezes
parece alheio à nossa vontade, mas que, no fundo, é
formado justamente por nossas vontades e ações
individuais.

Zygmunt Bauman já dizia há tempos:

Nós somos responsáveis pelo outro,


estando atentos a isto ou não, desejando
ou não, torcendo positivamente ou indo
contra, pela simples razão de que, em
nosso mundo globalizado, tudo o que
fazemos (ou deixamos de fazer) tem
impacto na vida de todo mundo e tudo o
que as pessoas fazem (ou se privam de
fazer) acaba afetando nossas vidas.

14
Teoria U: Percepção sistêmica e pandemia

Se você não percebeu isso, provavelmente é porque no


atual cenário não está desinfetando o saco de arroz
quando chega do supermercado ou evitando abraçar
pessoas queridas.

Hoje somos um mundo conectado pela doença, mas o


atual momento revelou o impacto que cada um de nós tem
nessa estrutura e nesse sistema: que muitas vezes produz
resultados que parecem independentes da nossa vontade.
Mas não são.

E isso é empoderador. Se visivelmente as nossas ações


individuais podem trazer mudanças sistêmicas em todos
os níveis (social, econômico, ambiental, espiritual), nós
podemos sim promover todas as mudanças que
consideramos relevantes. E, quem sabe, passarmos a ser
um mundo conectado pela cura.

15
texto três

Teoria U:
Preste atenção
na sua atenção

16
Teoria U: Preste atenção na sua atenção

Existem duas frases muito simples e poderosas que a


Teoria U nos oferece, que são:

Energia segue atenção


Realinhe sua atenção com sua intenção

Claro que elas emergem de forma contextualizada dentro


da Teoria, e diante de um contexto profundo, mas são
frases que por si só despertam o interesse das pessoas e
que podem nos trazer ensinamentos valiosos.

Ao compartilhar essas frases, muitas vezes observo um


interesse seguido de um desinteresse. E, ao longo dos
anos, percebi duas questões centrais que fazem as
pessoas descartá-las:

1. Por acreditar que são frases bonitas, porém intangíveis e


pouco práticas
2. Por reagir automaticamente, acreditando que já temos
nossa atenção alinhada com nossa intenção.

E por isso gosto sempre de trazer um exemplo prático que


nos ajuda a tangibilizar e, por ser uma situação bem
comum, facilita a percepção sobre o desalinhamento
constante entre a nossa intenção e a nossa atenção.

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Teoria U: Preste atenção na sua atenção

Vamos a ele:

Quem alguma vez já foi a um almoço de família (ou de


amigos), com a intenção de ter um bom momento, de ter
uma tarde agradável com pessoas queridas, mas sabendo,
porém, que iria se encontrar com aquele familiar (tio, prima,
colega, etc) que carrega opiniões radicalmente diferentes
da sua (políticas, religiosas, etc)?

Você realmente acredita que sua intenção é ter um


momento agradável, mas sua atenção, como um pano de
fundo, está com a luzinha acesa e apontando atentamente
para aquele familiar que, como você já imagina, mais cedo
ou mais tarde vai te falar alguma coisa desagradável.

E você pode até estar interagindo com outras pessoas,


conversando de outros assuntos, mas sua atenção está
focada - ou pelo menos parcialmente focada - naquela
pessoa que vai pisar na bola e trazer aquele comentário
que te incomoda. E internamente você vai dizer para si
mesma: “- Eu sabia! Começou!”

Será que sua atenção estava voltada para o quê? E para


quem? Será que sua intenção era mesmo ter um momento
agradável? Ou você estava todo o tempo se preparando
para o “combate”?

18
Teoria U: Preste atenção na sua atenção

Esse é um exemplo que eu acredito representar de forma


simples esse desatento desalinhamento da nossa intenção
com a nossa atenção, e que faz com que sigamos
direcionando energia para aquelas coisas ou pessoas às
quais - em teoria - não gostaríamos de potencializar.

Quantas vezes trabalhamos secretamente contra as


nossas intenções e, por pura desatenção, fortalecemos
aquilo que mais gostaríamos de evitar?

Por isso, um grande passo para tomar maior consciência


sobre si demanda um pequeno reajuste:

Preste atenção na sua atenção.

19
texto quatro

Vozes internas
de resistência:
voz do julgamento

20
Vozes internas de resistência: voz do julgamento

Na perspectiva da Teoria U, a mente aberta, o coração


aberto e a vontade aberta são os 3 elementos que nos
ajudam a estar no campo social do “presencing” (que em
inglês combina sensing com presence = sentir/perceber +
presença).

Mas esses elementos nem sempre são de simples


compreensão. Um caminho interessante para acessá-los é
conhecer quais são os três inimigos (como diriam os norte
americanos) ou as três vozes internas de resistência (como
diriam os europeus) que nos atrapalham nesse processo de
abertura.

A mente aberta, o coração aberto e a vontade aberta são


bloqueados, respectivamente, pela Voz do Julgamento,
pela Voz do Cinismo e pela Voz do Medo.

A Voz do Julgamento bloqueia a mente aberta e, de


acordo com a Teoria U, o seu “antídoto” seria a curiosidade.

Um ponto importante quando falamos sobre julgamento é


ter clareza de que todo mundo julga! Desconheço um ser
humano que esteja livre desse padrão de pensamento e
comportamento.

MAS, AFINAL, O QUE É JULGAMENTO?

Julgamento descende de julgar, original do Latim, e


significa sentenciar, avaliar, ponderar.

21
Vozes internas de resistência: voz do julgamento

No dicionário, julgamento é o “ato pelo qual a autoridade


judicante, após examinar os autos do processo e formar
sobre ele um juízo, expõe e justifica sua decisão para a
solução do conflito”.

Perguntei a uma amiga muito questionadora como ela


definiria o julgamento e ela me respondeu: “- pra mim,
julgamento é uma forma limitada de ver as coisas. Ele parte
de um princípio unilateral e monocromático e imprime uma
análise definitiva naquilo que não tem uma análise
definitiva.”

Acredito que, assim como o juiz julga com base nos


códigos civil e penal, também nós analisamos e julgamos
com base nos nossos códigos: ético-moral,
socioeconômico, religioso, familiar, político, ideológico,
etc.. construídos e reconstruídos ao longo da nossa vida, e
imprimimos definições para os acontecimentos.

Seria inevitável ao ser humano julgar, analisar, criticar, ter


uma opinião ou um parecer sobre as situações e as
pessoas; afinal, tudo isso é parte de uma construção social.
Acredito, entretanto, que a principal questão emerge
quando esses pensamentos se transformam em
convicção e nos impedem de ir além.

Quando tomamos consciência do nosso poder julgador,


muitas vezes tentamos “controlá-lo”. Fazemos isso calando
o nosso pensamento de duas formas:

22
Vozes internas de resistência: voz do julgamento

1. Tentando negar o nosso julgamento com frases internas


do tipo: “- Eu não julgo que isso seja ruim” (mas o
julgamento já está ali)
2. Ou reprimindo o nosso julgamento com frases internas
do tipo: “-Eu não deveria estar pensando que isso seja ruim”
(julgando o julgamento)

Só que o caminho não é controlar o julgamento, o caminho


é a curiosidade.

Quando trata dos pressupostos (primos de primeiro grau


do julgamento), David Bohm afirma que é necessário
suspender essas ideias prévias, de tal modo que nem as
ponhamos em prática e nem as suprimamos. Não
acreditamos, nem deixamos de acreditar em nossos
pressupostos.

23
Vozes internas de resistência: voz do julgamento

MAS COMO FAZER ISSO?

Quando penso em curiosidade, me lembro de um


momento marcante que vivi com o Cláudio Thebas, em um
curso incrível de palhaçaria conduzido por ele em 2019 em
Belo Horizonte.

No segundo dia de curso, fomos convidados a caminhar


pela sala livremente, sendo que ao parar, de forma
aleatória, em frente à outra pessoa, oferecíamos
verbalmente o que quiséssemos para ela. E aquela pessoa
que recebia. agradecia da forma que lhe parecesse melhor.

Após interagir com algumas pessoas, em um dado


momento, parei diante do Claudio e quis lhe oferecer a
minha curiosidade.

Ele amorosamente me respondeu: - eu aceito a sua


curiosidade, porque acredito que o mundo precisa de mais
perplexidade.

Me lembro de sair entusiasmada e levemente confundida


com esse momento de troca. A princípio, “estar perplexa”
me remetia a “estar indignada, paralisada, sem reação”.

Muitas vezes linkamos a perplexidade com indignação,


com situações que são tão inesperadas que não sabemos
como reagir a elas. Comumente escutamos: - Estou
perplexa com tamanha injustiça!

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Vozes internas de resistência: voz do julgamento

Foi só depois que consegui compreender que, estar


perplexa diante de uma situação, também permitia me
surpreender, me admirar, me deixar tomar de encanto ao
ponto de não reagir de imediato.

Você pode se deparar com uma situação que te deixa


perplexo e, depois, curioso. Ou se deparar com algo que
de tão curioso, te deixa perplexo.

Seja qual for o caminho, existe um ponto de toque entre a


curiosidade e a perplexidade.

E, após processar por um tempo esses sentidos,


compreendi que, estar perplexa diante de uma situação
significa, dentre outras coisas:

• não reagir imediatamente a partir de uma racionalidade


prévia;
• se espantar por não ter uma resposta automática para
aquilo;
• se perceber tão surpresa diante de uma situação ao
ponto de não conseguir tomar uma decisão ou mesmo de
emitir uma opinião (julgamento).

E poder se surpreender profundamente diante das coisas


é algo que praticamos pouco. Afinal, em regra, buscamos
ter respostas, reações e opiniões imediatas “para tudo”

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Vozes internas de resistência: voz do julgamento

QUAL A ÚLTIMA VEZ QUE VOCÊ FICOU PERPLEXA(O)?

Curiosamente, o mundo atual nos oferece cada vez mais


situações complexas e que deveriam nos deixar perplexas.
Podemos ficar perplexas de espanto ou perplexas de
admiração. E por isso, nos sentir profundamente indecisas
ou maravilhadas.

Se reagirmos no automático, julgando as situações,


podemos até alcançar respostas para elas, mas, em regra,
são respostas superficiais e limitadas, que não conseguem
“dar conta” de sua complexidade.

Essas questões complexas que nos surpreendem


diariamente, se olhadas com os mesmos “olhos do
passado”, aplicando as mesmas regras e parâmetros que
um dia elencamos para endereçar as questões e
sentimentos para suas devidas “caixinhas”, serão
engessadas e parecerão irresolutas.

Exercer a curiosidade é o que nos permite aceitar aquela


situação complexa como algo novo, como algo ainda “não
sabido”. Permitir se espantar diante de uma situação é
que nos ajuda a ver com os “olhos do presente”.

E isso fortalece o meu entendimento do porquê a


curiosidade é o antídoto para o julgamento. Porque
somente quando conseguirmos “suspender” a voz do
julgamento, conseguiremos realmente agir a partir do

26
Vozes internas de resistência: voz do julgamento

novo, do que emerge diante de nós, e não a partir dos


nossos padrões e parâmetros antecedentes.

MAS POR QUE CONTINUAMOS JULGANDO?

Talvez o julgamento parta de uma necessidade de


simplificar e de encaixar “a vida” e as situações. De setorizar
os acontecimentos e as pessoas para que consigamos
entender, dar sentido e oferecer valor. Só que, muitas
vezes, acabamos dando um sentido racional e analítico
para as situações que poderiam ser muito mais amplas e
criativas.

Nas palavras da Teoria U, suspender a Voz do Julgamento


é ponto de partida crítico, porque sem ele desligamos o
poder criativo da mente aberta.

Gostei bastante da definição trazida no livro Core Skills


escrito por Alex Bretas, Conrado Schlochauer, Alexandre
Santille e Tonia Casarin, que diz: Curiosidade é o desejo pela
descoberta sem necessariamente haver uma razão. A
pessoa curiosa alimenta a vontade de buscar experiências

27
Vozes internas de resistência: voz do julgamento

para construir e reconstruir continuamente sua visão de


mundo. E eu acredito que é essa busca, essa abertura da
mente, que nos permite ser criativos.

Quando fechamos nossa mente para o novo, acreditamos


que já sabemos a resposta ou que carregamos algum tipo
de verdade. Só que, claramente, julgar uma situação não
significa evidenciar qualquer “verdade” daquele cenário.
Entretanto, parece que nos esquecemos disso toda vez
que julgamos.

A convicção que embasa o julgamento imprime verdades.


Só que, julgamentos, opiniões, análises e críticas não são
verdades.

DIANTE DISSO, COMO SEGUIR?

No olhar da filosofia, é a curiosidade que permite que


sigamos com uma postura de investigação. Somente se
nos sintonizarmos essencialmente com nossa ignorância e
reconhecermos que a verdade é sempre sinfônica - que
ninguém detém o saber total de nada - é que poderemos
acessar novos conhecimentos.

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Vozes internas de resistência: voz do julgamento

Não sei se conseguimos nos desapegar completamente


dos códigos que construímos para nós, mas o importante é
estarmos curiosos o suficiente para atualizar esses
códigos, conforme crescemos e amadurecemos, e
conforme o zeitgeist.

E nesse processo de abertura da mente o que acontece?


Cada um de nós tem a possibilidade de conhecer o mundo
e também a si mesmo.

29
texto cinco

Vozes internas
de resistência:
Voz do cinismo

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Vozes internas de resistência: voz do cinismo

Na perspectiva da Teoria U, a mente aberta, o coração


aberto e a vontade aberta são os 3 instrumentos que nos
ajudam a estar no campo social do “presencing” (que em
inglês combina sensing com presence = sentir/perceber +
presença).

Mas esses instrumentos nem sempre são de simples


compreensão. Um caminho interessante para acessá-los é
conhecer quais são os “três inimigos (como diriam os norte
americanos) ou três vozes internas de resistência (como
diriam os europeus)” que nos atrapalham nesse processo
de abertura.

A mente aberta, o coração aberto e a vontade aberta são


bloqueados, respectivamente pela Voz do Julgamento,
pela Voz do Cinismo e pela Voz do Medo.

A Voz do Cinismo bloqueia o coração aberto e, de acordo


com a Teoria U, o seu “antídoto” seria a compaixão.

MAS AFINAL, O QUE É O CINISMO?

Desde a primeira vez que participei do Laboratório da


Teoria U essa voz foi uma das vozes que mais me deixou
intrigada, pois não estava tão claro pra mim o que é o
cinismo, e como ele se apresenta no nosso dia a dia. Ao
longo dos anos, levei essa pergunta para amigos e para
grupos do Hub do U.Lab, nos quais trabalhei como
facilitadora: “o que você entende por cinismo?”

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Vozes internas de resistência: voz do cinismo

E ouvi respostas variadas:

• “Ser cínico é ser sarcástico com as pessoas“


• “Ser cínico é ser falso, agir de forma dissimulada”
• “Ser cínico é dizer o contrário do que a gente pensa com
ironia”
• “Ser cínico é ser hipócrita”

Me ocorreu que, assim como eu, a maioria das pessoas não


entendia exatamente o que era cinismo. E que todas as
respostas continham um pouco do seu significado, mas
não havia consenso, e nenhuma delas satisfazia
plenamente, especialmente quando eu tentava levar a
conversa para um exemplo prático: “Mas quando é que
você se reconhece sendo cínico?”

As respostas também variavam muito:

• “Quando eu brinco com a verdade de maneira ruim”


• “Ah, eu nunca sou cínico”
• “Quando eu estou sem paciência com a pessoa com
quem estou conversando eu uso do cinismo para fazê-la
se sentir mal”

Enquanto corrente filosófica, o cinismo pregava desprezo


pelos bens materiais e pelo prazer. Para os cínicos, as
pessoas têm que “ser exemplos vivos daquilo que
afirmam”. Mas isso não parece de todo ruim, né? Afinal, ser
exemplo daquilo que se afirma é algo coerente.

32
Vozes internas de resistência: voz do cinismo

Então, o que faria com que o cinismo impedisse nossa


abertura de coração?

No dicionário o significado de cinismo é: “comportamento


ou ação de cínico, de quem demonstra desprezo pelas
normas sociais ou pela moral estabelecida; atrevimento,
descaramento, despudor.”

Essa explicação também não me ajudou muito, porque


não trouxe clareza sobre a presença do cinismo em
situações reais.

Fui buscar a diferença entre o comportamento do cínico e


do hipócrita:

De acordo com Moysés Pinto Neto, “o hipócrita


diz uma coisa e faz outra. O cínico é o inverso do
hipócrita. O hipócrita reconhece a validade da
norma moral, afirma a validade da regra moral,
mas ele não cumpre, portanto falha na
performance. Já o cínico não reconhece a
validade da norma moral. Ele faz exatamente
aquilo que ele diz, só que o que ele diz pode ser
um absurdo.”

33
Vozes internas de resistência: voz do cinismo

Compreendi, assim, que o hipócrita aceita as convenções


sociais e fica envergonhado quando é pego em uma
mentira. O cínico, porém, não sente vergonha e, em seu
discurso, busca desconstruir todo tipo de convenção social
que, para ele, são baseadas em mentiras.

Os cínicos, desapegados das convenções sociais e


percebendo-as como fraudadas, se sentem superiores. E
é essa superioridade ou indiferença perante “o outro” que
faz com que a pessoa imbuída de cinismo atue com frieza,
insensibilidade, apatia, desatenção e distância.

Compreender essa diferenciação começou a iluminar


melhor esse conteúdo, mas, acreditando que as citadas
“vozes de resistência” habitam, com certa frequência, as
nossas atitudes, não consegui reconhecer com tanta
facilidade como o cinismo poderia estar presente na vida
das pessoas (inclusive na minha).

Até que um dia, numa conversa com uma participante de


um processo de facilitação que estava conduzindo em
uma empresa, finalmente consegui acessar a essência
desse conceito, e compreender porque o cinismo era uma
voz de resistência para acessar o coração aberto. (Como
ela me autorizou, compartilho essa história abaixo).

34
Vozes internas de resistência: voz do cinismo

AFINAL, COMO PRATICAMOS O CINISMO NO DIA A DIA?

Aqui cabe um breve contexto: essa mulher trabalhava há


10 anos em uma mesma empresa, e era líder do RH, ou
seja, ficava a cargo dela ouvir questões envolvendo as
pessoas que compunham a empresa e tomar algumas
decisões. Todos os sábados havia um plantão de
atendimento a clientes e os funcionários faziam um rodízio
para cobrir esse horário de trabalho.

Ao longo dos anos, essa mulher lidou com todo tipo de


argumento das pessoas para não trabalharem aos
sábados, e passou a acreditar que todos os pedidos para
alteração deste horário eram “desculpas” para escapar do
plantão.

Para um dos funcionários essa era uma situação


especialmente complicada, pois nos últimos 3 meses
estava com um familiar doente em casa, e os sábados
eram dias difíceis para ele, que seguia comparecendo ao
plantão.

Um dia, almoçando juntos, esse funcionário mencionou


com ela o seu contexto familiar, compartilhando a sua
situação pessoal e a doença do ente querido. Ela
imediatamente pensou que ele estava usando da doença
do familiar para sensibilizá-la, porque queria ser
dispensado de cumprir o plantão, se fechou e não quis
aprofundar no assunto para não “dar abertura” para

35
Vozes internas de resistência: voz do cinismo

nenhum outro pedido nesse sentido.

Ao compartilhar essa história comigo, ela me disse que se


sentiu mal, mas que teve que agir de acordo com o que ela
tinha aprendido na sua experiência ao longo dos anos e
descredibilizar a história do funcionário. A meu ver, ela
trouxe uma racionalidade que talvez estivesse
desconectada do que realmente sentia, mas que estava
alinhada com o que acreditava. E foi aí que eu entendi a
presença do cinismo.

Por mais que as normas sociais e morais apontem para o


acolhimento da dor, e das pessoas que tenham familiares
doentes, por mais que que aquela pessoa estivesse
buscando apenas um momento de conexão, ou um apoio
emocional, ela reagiu com insensibilidade e apatia por
acreditar que existia um motivo secreto por trás da atitude
dele e se afastou.

Foi assim que eu percebi quando é que somos cínicos em


nosso dia a dia.

Não é um puro desprezo pelas convenções sociais:


• é um posicionamento de acordo com o que você pensa
sobre o mundo
• mesmo que esse seja um posicionamento contrário
àquilo que você realmente sente
• ou que seja um posicionamento que descredibiliza o que
as outras pessoas sentem

36
Vozes internas de resistência: voz do cinismo

E QUANDO É QUE FAZEMOS ISSO?

Em diversos momentos podemos atuar de forma cínica.


Quando pensamos que os defensores do meio ambiente
têm intenções secretas por trás de sua causa ou que todas
as ONG´s extraviam dinheiro para interesses pessoais, ou
até que o gato do seu amigo só gosta dele porque recebe
comida e um abrigo quentinho em troca.

O cinismo reforça a si mesmo, alimentando inseguranças


e falsificando afetos, que fortalecem a descrença e
promovem o distanciamento.

Na sua raiz estão a desconfiança, a insegurança e a baixa


autoestima. E não se engane: em alguma medida somos
todos desconfiados, inseguros e com baixa autoestima.

Agimos, portanto, de forma cínica, quando


desconsideramos o outro por acreditar que nosso

37
Vozes internas de resistência: voz do cinismo

pensamento carrega maior lucidez ou verdade e nos


achamos superiores por isso.

Em razão disso, o cinismo é uma voz interna de resistência


ao Coração Aberto, porque nos impede de ser empáticos e
de acessar o lugar do outro. Para fazer isso, precisamos
incorporar mais compaixão às nossas atitudes e usá-la
como uma lente para ver o mundo.

Bom, foi essa abordagem “sociopsicológica” do cinismo


que me ajudou a compreender um pouco mais desse
mecanismo que dificulta as relações interpessoais, e que,
na perspectiva da Teoria U, nos afasta de experimentar o
presencing (presenciamento). Espero que também te ajude
a reconhecer quais são as suas atitudes emocionais de
distanciamento - em contextos pessoais e profissionais -
que te atrapalham a acessar a abertura do coração.

38
texto seis

Vozes internas
de resistência:
Voz do medo

39
Vozes internas de resistência: voz do medo

Na perspectiva da teoria U, a mente aberta, o coração


aberto e a vontade aberta são os 3 instrumentos que nos
ajudam a estar no campo social do “presencing” (que em
inglês combina sensing com presence = sentir/perceber +
presença).

Mas esses instrumentos nem sempre são de simples


compreensão. Um caminho interessante para acessá-los é
conhecer quais são os “três inimigos (como diriam os norte
americanos) ou três vozes internas de resistência (como
diriam os europeus)” que nos atrapalham nesse processo
de abertura.

A mente aberta, o coração aberto e a vontade aberta, são,


bloqueados, respectivamente pela Voz do Julgamento,
pela Voz do Cinismo e pela Voz do Medo.

A Voz do Medo bloqueia a vontade aberta e, de acordo


com a Teoria U, o seu “antídoto” seria a coragem.

QUEM É QUE NUNCA SENTIU MEDO, NÃO É MESMO?

Ao contrário das outras duas vozes, que costumam ser


mais dissimuladas, a Voz do Medo é fácil de ser percebida.
Inclusive, muitas vezes, ela fala tão alto que não
conseguimos ouvir mais nada.

Temos muitos motivos para ter medo. O maior deles, e


possivelmente o que se esconde atrás de todos os outros,

40
Vozes internas de resistência: voz do medo

é o medo da morte. Por isso, sentir medo e se nortear por


ele, muitas vezes, é o que garante a nossa sobrevivência.

Mas não confunda medo com cuidado!

A palavra cuidado é oriunda do latim [cogitātu, "reflexão;


pensamento"] e significa, entre outras coisas, atenção,
cautela, precaução.

Quando analisamos um cenário, meditamos sobre uma


situação ou refletimos antes de agir impulsivamente,
podemos dizer que estamos atendendo a algum tipo de
cuidado. Estamos trazendo atenção para um contexto
específico que demanda de nós alguma consciência
antes da ação.

Por sua vez, quando sentimos apreensão diante de um


cenário, uma preocupação com o futuro, ou uma
incerteza de como agir, podemos dizer que estamos
ouvindo algum tipo de medo. Nesse sentido, o medo se
revela como um receio diante da possibilidade de um
acontecimento desagradável.

De toda forma, acredito que a voz do medo pode sim ser a


bússola norteadora para algumas noções de cuidado, mas,
com alguma frequência, deixamos de ouvir essa voz
apenas para atender a demandas de cuidado, e passamos
a ouvi-la como mentora para tomar grande parte das
nossas decisões (o que, muitas vezes, nos leva a não

41
Vozes internas de resistência: voz do medo

decidir, e por fim, a não agir).

Às vezes o medo leva à ação de cuidado. E às vezes o


medo leva à inação paralisadora.

Temos medo de terminar um relacionamento por medo de


não encontrar uma pessoa melhor, temos medo de
empreender um negócio por medo de não ser bem
sucedido, temos medo de morar sozinho por medo de não
conseguir pagar as contas, temos medo de dizer o que
pensamos por medo de sermos julgados (hoje em dia
medo de sermos “cancelados”).

São medos somados a mais medos que se baseiam em


medos e se norteiam por outros medos. Nu! Que medo!

Temos medo de perder o que já conquistamos, temos


medo do que os outros vão achar, temos medo de arriscar
e acabar numa situação pior do que a que estamos no
momento atual. Tudo isso nos prende “no passado” e nos
afasta de conectar com as possibilidades futuras.

O medo, na esfera individual, é mais facilmente


compreendido, mas, e nas esferas organizacionais,
corporativas, globais?

42
Vozes internas de resistência: voz do medo

COMO É QUE O MEDO IMPACTA AS ORGANIZAÇÕES E O


MERCADO ?

John Hagel, em seu texto “From the Gig Economy to the


Guild Economy” aborda um caminho pelo qual as
organizações e as pessoas poderiam aprender mais
rápido - no sentido de criar novos conhecimentos através
da ação e da reflexão sobre o impacto alcançado - como
forma de responder à crescente pressão de desempenho.
De acordo com ele, aqueles que dominam a capacidade de
aprender mais rápido conseguirão um impacto muito maior
em um mundo em rápida mudança.

Por isso, as organizações precisariam encontrar uma


maneira de ir além do medo da competição e fomentar a
excitação que pode emergir das oportunidades em
expansão exponencial.

Na visão do autor,

...quanto mais pessoas se unirem,


impulsionadas por um compromisso de
aprender mais rápido, mais oportunidades
haverão para a criação de valor. É uma
mentalidade e um coração muito diferentes dos
gerados pelo medo que está engolfando cada
vez mais a população mundial.” [tradução livre]

43
Vozes internas de resistência: voz do medo

Acredito que essa colocação exemplifica o fato de que o


medo é contaminante, está presente nas esferas sociais e
organizacionais e, ao mesmo tempo, promove decisões de
um lugar “esgotado”, ou seja, que não atende às
necessidades emergentes (das pessoas, do mercado e do
mundo).

Também me chamou atenção a interessante interseção


entre a análise corporativa do medo e seus impactos na
aprendizagem, trazida por John Hagel, e a compreensão
da Teoria U, que elenca a mente aberta, o coração aberto
e a vontade aberta como elementos essenciais para a
mudança.

Mas, voltando para a esfera individual, devemos, então,


tentar calar essa voz?

Não acredito que devamos “calar o medo”. Afinal, não há


nada de errado em sentir medo. Ele é um mecanismo de
sobrevivência e pode cuidar de questões importantes em
determinados contextos. A questão é saber quando esse
medo te impede de seguir em frente, quando ele te
bloqueia de agir, de alcançar o seu maior potencial futuro
(tanto pessoal quanto profissionalmente).

44
Vozes internas de resistência: voz do medo

O medo pode ser fundamentado ou inconsciente. O ponto


central é que, normalmente, ele nos faz paralisar diante
das situações. E, ao paralisarmos, não conseguimos
caminhar em direção ao futuro, ou seja, cerceamos a nossa
vontade ou, na linguagem da Teoria U, “fechamos a nossa
vontade”.

Será que basta um tampão de ouvido para parar de ouvir


esses pensamentos paralisantes ou precisamos de algo
mais?

Na abordagem da Teoria U, e de Guimarães Rosa,


precisamos de coragem.

O correr da vida embrulha tudo.


A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.

Nessa mesma linha, quando analisa as


transformações culturais do mundo, Charles
Eisenstein, afirma que uma nova “mitologia” está
acenando para nós, e para que ela se torne real,
devemos desenvolver a coragem de libertar a
antiga, mesmo que ela já tenha parecido ser a
própria realidade absoluta. [tradução livre]

45
Vozes internas de resistência: voz do medo

Gosto dessa abordagem diante da coragem, por dois


motivos:

Primeiro, porque me parece agradável a noção de


desenvolver a coragem, ao invés da ideia de ter a
coragem. Quando tratamos a coragem como algo possível
de ser desenvolvido, ou seja, da qual podemos “tirar aquilo
que a envolve ou cobre”, ampliamos a possibilidade para
que qualquer um possa “desembrulhar a sua coragem” e,
aos poucos, tornar-se mais corajoso.

Segundo, porque muitas vezes, o mais difícil não é


desenvolver a coragem para deixar vir o novo. O mais difícil
é desenvolver coragem para deixar ir o velho. É preciso
coragem para caminhar rumo ao desconhecido, mas
talvez o mais desafiador esteja em alcançar a coragem
necessária para abrir mão daquilo que já está posto.

A coragem necessária para se desapegar daquilo que não


faz mais sentido pra nós, mas que muitas vezes seguimos
sustentando. Muitas vezes o convite é para que tenhamos
coragem de “deixar ir”, de abrir mão daquilo que ocupa
espaço em nossos sistemas e nos impede de acessar o
novo.

De alguma forma, quando você decidir seguir, quando a


sua vontade te fizer um convite rumo ao futuro, o seu maior
medo vai se apresentar! Por que? Para você desapegar e
perceber que não precisava daquilo que te prendia.

46
Vozes internas de resistência: voz do medo

Não acredito que devemos seguir impulsivamente em


direção aos futuros que se apresentam para nós, e sim que,
diante de um incômodo com o lugar que estamos e
imbuídos de uma necessidade de agir, ou de uma vontade
de mudar, não devemos nos apegar ao receio de perder.

Toquinho, em uma composição sua, descreve com clareza


esse medo que “fecha a nossa vontade”:

Vem a vontade de crescer.


Vem a coragem de gritar.
Aí, eu fecho os olhos,
Tranco a porta, calo a boca
Pra me guardar.

Medo, tenho medo, muito medo


Quando vem a vida e obriga
A gente a se decidir.
Tenho medo, muito medo
De enfrentar a morte e a má sorte
E eu tenho medo de seguir.

Por isso, penso que devemos observar: Quando é que a voz


do medo fica mais alta do que as outras?

47
Vozes internas de resistência: voz do medo

Há uns 3 anos atrás ouvi uma explicação do Oswaldo


Oliveira que me tocou: ele disse que todos nós carregamos
características inertes por natureza (ex: ser uma pessoa
minuciosa): quando vibramos medrosamente, elas se
materializam como defeitos (ex: controladora), e quando
vibramos amorosamente, elas se materializam como
qualidades (ex: caprichosa).

Não é uma explicação muito racional sobre a presença do


medo em nossa vida, mas me pareceu uma percepção
sensível sobre como nos relacionamos com o medo.

Eu tinha muito medo de escrever, de colocar meus


pensamentos para o mundo e para as pessoas, porque
tinha medo do julgamento, tinha muito medo de errar.
Essas vozes ainda falam comigo, eu não perdi esse medo;
elas, inclusive, norteiam algumas das minhas decisões e
cuidados na hora de escolher as palavras. Mas foi a
coragem que viabilizou a abertura para a vontade interna
que eu tinha de colocar minhas ideias para o mundo. E
esse texto é fruto disso.

E você? Em quais âmbitos da sua vida a voz do medo te


impede de seguir a sua vontade?

48
texto sete

INICIANDO A
JORNADA do U:
o CONTÊINER
e o GRUPO

49
Iniciando a Jornada do U: o contêiner e o grupo

Um ponto chave dentro do Co-iniciar (primeira etapa da


Jornada da Teoria U) é a construção de um contêiner.

Quando você tem um grupo de pessoas comprometidas


com a Jornada da Teoria U, o contêiner pode ser
entendido com as “paredes” ou “estruturas mínimas”
que acolhem ou sustentam esse grupo. Esse é o ponto de
partida que cria as bases para a jornada e irá impactar
diretamente no processo coletivo e, consequentemente,
no de cada um.

Gosto de pensar no contêiner como a membrana fina e


invisível que protege uma célula e que permite a troca com
o meio externo, mas, ao mesmo tempo, torna aquela célula
única e coesa.

Na Teoria U, a composição dessa membrana passa pela


intenção compartilhada do grupo.

50
Iniciando a Jornada do U: o contêiner e o grupo

Nesse sentido vale ressaltar 2 pontos:

1. Ter uma intenção compartilhada não significa que todas


as intenções individuais precisam ser iguais. Ter uma
intenção compartilhada significa que existem valores e
entendimentos que, em algum nível, unem aquelas
pessoas.

2. Ter uma intenção compartilhada também não parte da


necessidade de uma uniformidade entre os integrantes
daquele grupo. Muito pelo contrário: acolher e incluir a
diversidade é potencializador da experiência do grupo.
Mas ser diverso não significa incluir todos, pois, se assim
for, a existência de um grupo não pode se distinguir da
ausência de um grupo.

A alteridade de um grupo permite alcançar diferentes


pensamentos e perspectivas, o que, em alguns casos,
pode evidenciar conflitos. Mas, se tivermos um contêiner
“bem construído”, teremos a estrutura necessária para lidar
com o conflito que emerge dessa diversidade. E, para isso,
precisamos praticar a escuta coletiva das diferentes vozes e
do todo.

O contêiner oferece o fio invisível que une aquela


comunidade de pessoas. É pela noção clara da intenção
compartilhada que as pessoas do grupo são capazes de
conviver e acolher a diversidade necessária para criar
coletivamente o senso de pertencimento. Nas palavras da

51
Iniciando a Jornada do U: o contêiner e o grupo

Teoria U, o contêiner é um espaço de acolhimento que


molda e que nutre a rede de relacionamentos.

Além disso, a criação do contêiner se relaciona com a


mudança na forma de liderar. Aqueles que facilitam e
auxiliam a construção desse espaço criam as bases, mas,
ao mesmo tempo, oferecem muito “espaço vazio” para
que cada integrante possa trazer suas contribuições.

Isso muda a forma de liderar o grupo e muda a forma de


integrar um grupo, pois a construção do contêiner passa
pela própria transformação da dinâmica de poder,
passando da propriedade individual para a propriedade
compartilhada. Os integrantes saem da posição de ter um
grupo para a posição de ser parte de um grupo. Ou seja,
passam do possuir para o pertencer.

Seguindo a mesma lógica ofertada por Bill O´Brien, da


mesma forma que a qualidade de uma intervenção
depende da condição interna do interventor, podemos dizer
que a qualidade da intenção compartilhada depende em
grande parte da qualidade do contêiner.

52
Iniciando a Jornada do U: o contêiner e o grupo

De forma complementar, na minha visão, a construção do


contêiner também é poderosa porque se alinha com o
entendimento do John Hagel e de outros estudiosos, de
que o aprendizado acontece de forma exponencial
quando compartilhado com outras pessoas.

E isso acontece principalmente por três razões:

1. Flexibilidade: quando estamos em grupo, nós temos


mais chance de alcançar a flexibilidade necessária para
aprendermos [afinal estar com outras perspectivas e
formas de se ver o mundo nos ajuda a transformar os
nossos pensamentos].

2. Acesso: quando estamos em grupo podemos nos


conectar com aqueles recursos e capacidades que
precisamos, mas que individualmente não possuímos.

3. Velocidade: quando aprendemos em grupo podemos


ajudar os outros integrantes a acelerar o processo deles.
Nesse sentido, aceleramos também o nosso aprendizado,
pois é no “intercâmbio com o outro” que a gente se
percebe e “se vê”.

Ou seja, é no grupo que as capacidades de cada um e os


recursos de todos podem evoluir mais rapidamente.

53
Iniciando a Jornada do U: o contêiner e o grupo

Para ser mais específica, o grupo é ainda mais proveitoso


quando estamos em um número pequeno, que se reúne
com uma certa frequência e que passa a compartilhar não
só uma certa linguagem, mas também relações de
confiança (como acontece no Hub para aprendizagem e
prática da Teoria U que facilito anualmente).

Essas relações são realmente importantes, porque


aprender envolve errar e eu vou estar mais disposta a
errar se eu estiver em um grupo que confio.

Aprender em grupo não tem só a ver com ter colegas, dar


suporte ou ter conversas legais. Aprender em grupo tem a
ver com toda uma mentalidade e uma forma diferente de
se organizar para acessar os conhecimentos.

E quando isso acontece, temos não só a chance de acessar


o conhecimento que já existe, mas de criar novos
conhecimentos e entendimentos que anteriormente não
existiam.

Por fim, é interessante perceber que, em alguma medida, a


construção do contêiner conversa com a pergunta
norteadora da Teoria U [Por que nós criamos
coletivamente resultados que individualmente não
queremos?], e nos faz questionar:

54
Iniciando a Jornada do U: o contêiner e o grupo

• Como cada um de nós contribui para a existência do


sistema que queremos criar?

• Qual o nosso papel individual na construção de um


sistema coletivo?

• Qual o meu papel na construção do contêiner do qual


faço parte (seja ele a minha família, equipe de trabalho ou
sociedade)?

Assim, se refinarmos os nossos sentidos, conseguiremos


notar que há algo para além de uma concepção objetiva
em torno do entendimento do contêiner, e que abarca
conceitos de construção de comunidade, de
aprendizagem e percepções metalinguísticas da Teoria U
como um todo.

55
texto oito

Escuta:
quantas vezes
você entra numa
conversa disposto
a não ter razão?

56
Escuta: quantas vezes você entra numa conversa disposto a não ter razão?

Acredito que quando o assunto tem algum grau de


relevância para os envolvidos, a necessidade de ter razão
tem predominado nas conversas que “travamos” com as
pessoas. Parece mesmo que entramos para um campo de
batalha argumentativo, no qual buscamos “armas” para
impor ao outro a nossa opinião.

Nesse processo, muitas vezes esquecemos de alguns


princípios básicos, como o fato de que “opinião não é
argumento”, e que o “argumento não é a verdade”, e
principalmente, esquecemos que, quando alguém sai
“vencedor” de uma conversa, as duas pessoas perdem.

E por que essa constante necessidade de ter razão?

Muitas vezes isso acontece não apenas pelo conteúdo


envolvido naquela conversa, mas pela estrutura de
pensamento que norteia a escuta e a fala das pessoas
envolvidas. Passamos muito tempo nos dedicando a
compreender o conteúdo das nossas trocas e pouco
tempo analisando como é a estrutura de pensamento e
comportamento que sustenta essas trocas.

57
Escuta: quantas vezes você entra numa conversa disposto a não ter razão?

De acordo com David Bohm “o diálogo é um processo


multifacetado, que vai muito além das noções típicas de
linguajar e do intercâmbio coloquiais. É um método que
examina um âmbito extraordinariamente amplo da
experiência humana: nossos valores mais intimamente
arraigados; a natureza e a intensidade das emoções; os
padrões dos nossos processos de pensamentos; a
função da memória, a importância dos mitos culturais
herdados; e por fim, a maneira como a nossa
neurofisiologia estrutura a experiência do aqui e agora.”

Dentro dessa estrutura, um ponto central é a forma e


qualidade da escuta que oferecemos à outra pessoa. A
Teoria U criou uma classificação bem simples
sistematizando em 4 níveis a nossa escuta.

De forma bem resumida são os seguintes:

1. RECONFIRMAÇÃO: Nesse nível de escuta eu capto


apenas aquilo que já sei, que já concordo. Ouço a partir “do
passado” e não busco saber nada de novo.

2. FACTUAL: Nesse nível eu já percebo fatos novos, mas


tenho a tendência de descartar aquilo que difere da minha
opinião, porque quero confirmar que estou certo. Na
escuta factual, a minha opinião se funde com quem eu sou,

58
Escuta: quantas vezes você entra numa conversa disposto a não ter razão?

e se alguém discorda de mim, sinto que está discordando


da minha existência, me sinto ofendido e com necessidade
de me defender.

3. EMPÁTICA: Nesse nível eu não só percebo o que é novo,


mas exerço uma curiosidade genuína e busco investigar
“porque aquela pessoa pensa o que ela pensa”. Eu posso
não alterar a minha opinião, mas, no mínimo, saio da
conversa com um novo ponto de vista.

4. GENERATIVA: Nesse nível já não importa quem trouxe


qual pensamento. Se dissolve a noção de “propriedade
sobre as ideias” e com isso a noção do Ego sobre quem
está certo ou pensa de determinada maneira. Estou aberto
e deixo de ouvir a partir do passado, do que eu já sei, e me
coloco a serviço daquele momento e do que posso criar
de novo junto com a(s) outra(s) pessoa(a).

Apesar de não existir um nível de escuta certo ou errado,


existem os níveis mais superficiais (1 e 2) e níveis mais
profundos (3 e 4) de escuta.

Muitas vezes nós operamos em um nível que não


contribui para nosso objetivo ou intenção. Por exemplo,
quando queremos criar algo novo ou construir uma
solução para um problema e nossa atenção (e escuta)
estão voltadas para “ganhar” a discussão, ou defender o
nosso ponto de vista, provavelmente estamos operando
em um nível de escuta que está desalinhado ao que

59
Escuta: quantas vezes você entra numa conversa disposto a não ter razão?

estamos buscando, e precisamos tomar consciência disso


para conseguirmos realinhar nossa atenção com nossa
intenção.

As transformações e desafios com os quais nos deparamos


hoje, enquanto sociedade, se intensificam
exponencialmente a cada dia. Penso que isso acontece,
em parte, porque não estamos sendo capazes de
aprofundar nosso nível de escuta e de troca uns com os
outros.

Questões pessoais e sociais muitas vezes nos mantém no


nível 1 e 2 de escuta, tais como, a necessidade de
autoafirmação, a busca por aceitação, a urgência por ter
razão ou a falta de abertura para compreender aquilo que
parece distante do nosso entendimento pessoal. Quando
escutamos, não ouvimos apenas o outro, mas também, os
nossos pressupostos e crenças que “falam conosco
internamente” e que vão sendo construídos ao longo de
nossa vida.

No livro O Palhaço e o Psicanalista, Cláudio Thebas e


Christian Dunker afirmam que escutar o outro é escutar o

60
Escuta: quantas vezes você entra numa conversa disposto a não ter razão?

que realmente ele diz, e não o que nós, ou ele mesmo,


gostaria de ouvir. Escutar o que realmente alguém sente ou
expressa, e não o que seria mais agradável, adequado ou
confortável sentir. Escutar o que realmente está sendo dito e
pensado, e não o que nós ou ele deveríamos pensar e dizer.

Mas, como podemos melhorar a nossa qualidade de


escuta? Praticando! Afinal, o que não falta são
oportunidades para ouvir.

Na terça-feira passada (13.10.20), foi o segundo encontro do


Hub Húmus para aprendizagem e prática da Teoria U. Após
um tempo de reflexão sobre esse conteúdo, convidamos
as pessoas a fazer uma virada de câmera, olhar para si
mesmas, para buscar responder a pergunta: o que eu
ganho me mantendo em um nível de escuta que não está
alinhado com a minha intenção?

Essa pergunta buscava compreender quais são as


“recompensas” que obtemos quando não escutamos com
abertura o que o outro realmente nos oferece. Podemos,
por exemplo, impor a nossa opinião, conseguir fazer as
coisas do nosso jeito, e até evitar desgastes em nossas
relações, mas talvez, no fundo, só estejamos sustentando
uma ilusória sensação de controle, de poder, de
segurança ou de superioridade. Porque na prática o que
acontece é que, quando eu “protejo os meu pensamentos”
naquilo que eu escuto, eu me distancio do outro e reforço
as minhas crenças como a única verdade possível.

61
Escuta: quantas vezes você entra numa conversa disposto a não ter razão?

Ao final do encontro, conduzimos uma conversa coletiva


entre os participantes e ficou reverberando em mim uma
pergunta trazida por uma das participantes: qual sociedade
ganha com pessoas que escutam sem conexão? Essa
pergunta gerou em mim outro questionamento: Que tipo de
sociedade estamos potencializando com nosso nível atual
de escuta e troca?

Se a cada conversa estamos buscando “ganhar”, pautamos


nossa sociedade em egos e pressupostos individuais e
exercemos cada vez menos a vulnerabilidade necessária
para construirmos juntos.

Nas palavras de Brené Brown, vulnerabilidade é


incerteza, risco e exposição emocional, e se não
estamos dispostos a exercitar esse desconforto
em nossas interações com o outro,
potencializamos uma sociedade na qual o
individualismo predomina e a vaidade se
fortalece.

Pra completar: se, em regra, estamos todos muito


preocupados em “ganhar” as conversas, e se, quando
alguém ganha, todos os envolvidos perdem, pelos meus
cálculos, a “soma” da nossa sociedade está dando
“altamente negativa”. Por isso, acredito que cabe a cada um

62
Escuta: quantas vezes você entra numa conversa disposto a não ter razão?

de nós individual e coletivamente examinar quais “razões”


estamos batalhando para manter, e como estamos
fazendo isso.

63
texto nove

Conselhos:
boa intenção,
péssimo hábito

64
Conselhos: boa intenção, péssimo hábito

Quem é que nunca pediu ou ofereceu um conselho, não é


mesmo? Em nossas trocas e dinâmicas é muito comum
compartilharmos nossa opinião diante das situações
alheias.

Provoca em nós, inclusive, uma certa animação quando


alguém nos procura para dizer: “- preciso de um conselho
seu!”. Internamente podemos até pensar: “oba! Taí uma
bela chance de compartilhar toda a minha sabedoria e
conhecimento sobre a vida”. Uma espécie de convite para
emitir sua opinião sobre um assunto.

Mas, outras vezes, somos convidados apenas a ouvir uma


situação e o conselho parece que “brota de dentro de nós”
sem pedir licença e, quando percebemos, já estamos
oferecendo uma opinião que não foi requisitada. É como
se, diante de um desafio, ativássemos uma resposta
padrão: - preciso resolver essa situação!

É muito difícil aconselhar alguém sem julgar. Podemos


julgar com a melhor intenção possível, mas ainda assim é
um julgamento (do que achamos justo, do que é o melhor
para aquela pessoa, do que consideramos o mais
vantajoso ou zeloso). E, em regra, para julgar partimos das
nossas experiências anteriores, do nosso passado, do que
apreendemos ao longo de nossa história. E não que isso
seja ruim, mas muitas vezes não atende à necessidade
existente.

65
Conselhos: boa intenção, péssimo hábito

Como podemos ajudar alguém sem dar conselhos?

Ajudar alguém não significa resolver o problema ou


entregar uma solução. Muitas vezes a melhor forma de
ajudar alguém é oferecendo escuta, diálogo, ou
simplesmente trazendo perguntas que ajudem a clarear
uma situação.

Mesmo porque, aconselhar alguém pode nos levar para


um lugar de superioridade, como se a nossa “sabedoria” ou
experiência pessoal pudessem “salvar” a outra pessoa, ou
facilmente resolver o seu problema. É muito comum
simplificarmos o problema do outro e, consequentemente,
oferecermos uma resolução superficial. Acredito, assim,
que precisamos ter atenção e desconstruir o nosso padrão
automático de aconselhar as pessoas.

Após ouvir a situação ou o desafio de uma pessoa, uma


simples checagem já pode ser o suficiente para entender
se você deve aconselhar ou não: “-você quer ouvir o que eu
penso sobre isso?” ou ”-você quer saber o que eu faria?”

A pessoa pode responder que: “-sim, por favor, gostaria de


te ouvir” Ou “-agora não, estou com a cabeça muito cheia,
só precisava desabafar”, ou até mesmo “não, na verdade eu
já sei o que eu preciso fazer.”

Sabendo que nosso conselho é requerido, podemos


escolher a melhor forma de trazê-lo.

66
Conselhos: boa intenção, péssimo hábito

Existe uma diferença entre:


- “eu já vivi essa situação e o que você TEM que fazer é…”
[é impossível que você tenha vivido exatamente a mesma
situação que a outra pessoa viveu, simplesmente porque
se o protagonista muda, toda a história é diferente, seguido
pelos coadjuvantes, roteiro, etc]

E, por outro lado:


- “eu experimentei algo muito parecido, não sei se serve a
você, mas o que eu fiz foi…. e o que eu aprendi foi…”
[quando compartilhamos a nossa experiência e os nossos
aprendizados, estamos cientes que eles podem ou não
servir de inspiração para a outra pessoa]

Me lembro de um trecho da obra "Wear Sunscreen", escrita


por Mary Schmich e publicada no Chicago Tribune que
ficou famosa na década de 90. Ela é antiga (e um pouco
piegas), mas traz uma reflexão interessante sobre os
conselhos:

Cuidado com os conselhos que comprar


Mas seja paciente com aqueles que os oferecem
Conselho é uma forma de nostalgia
Compartilhar conselhos é um jeito
De pescar o passado do lixo, esfregá-lo
Repintar as partes feias
E reciclar tudo por mais do que vale
[tradução livre]

67
Conselhos: boa intenção, péssimo hábito

MAS ENTÃO CONSELHOS SÃO UMA COISA RUIM?

Não cabe aqui um juízo de valor a respeito da “bondade” ou


“ruindade” do conselho.

Ele pode ser extremamente valioso para quem recebe.


Muitas vezes, receber uma perspectiva externa à uma
situação com a qual estamos muito envolvidos nos ajuda a
enxergar com outros olhos essa situação. Além disso, pode
ser uma oportunidade para aquele que aconselha
ressignificar experiências anteriores (às vezes não muito
agradáveis) e sentir que, a partir delas, (ou apesar delas) foi
possível ajudar alguém. O conselho pode, então, ser
benéfico para ambas as partes.

O que acredito que seja ruim é o hábito automatizado de


oferecer conselhos: quando não abrimos nossa mente e
nosso coração suficientemente para ouvir e sentir o que a
outra pessoa de fato está precisando.

De acordo com Charles Duhigg, os hábitos surgem porque


o cérebro está o tempo todo procurando maneiras de poupar
esforço. Se deixado por conta própria, o cérebro tentará
transformar quase qualquer rotina num hábito, pois os
hábitos permitem que nossas mentes desacelerem com
mais frequência. Este instinto de poupar esforço é uma
enorme vantagem. (...) Mas preservar o esforço mental é uma
questão complicada, pois se nossos cérebros desligam no
momento errado, talvez deixemos de notar algo
importante.

68
Conselhos: boa intenção, péssimo hábito

Quando transformamos o ato de aconselhar em hábito


podemos deixar de notar sentimentos e detalhes
importantes de uma história, oferecendo uma presença e
uma escuta de pouca qualidade. Se, automaticamente,
“pulamos” para a resolução ou fixamos nossa mente em
nossa experiência pessoal, ou em como resolveríamos
aquela situação, não conseguimos oferecer o nosso
“melhor conselho”.

É importante perceber que, em determinadas situações,


ajudamos muito mais quando não oferecemos um
caminho ou uma resposta, mas sim, uma escuta ou um
espelhamento.

E qual o meu conselho para tudo isso? (rsrs)

Antes de partir direto para o conselho, busque clarear mais


a situação. Ofereça perguntas simples que ajudem a
pessoa (e inclusive você) a compreender mais
profundamente aquele contexto. Perguntas simples como:
“- como você se sente?” “-Quais alternativas você enxerga
para essa situação?”

Esteja presente, suspenda a voz do julgamento e busque


acessar quais pensamentos e sentimentos emergiram em
você enquanto escutava aquela pessoa. E quais você
poderia compartilhar com ela.

69
Conselhos: boa intenção, péssimo hábito

Antes de dar um conselho, pense em algumas coisas:

• Escute profundamente o que a pessoa está te dizendo.


Esteja atento a expressões, sentimentos, “as coisas não
ditas” daquela história;
• Prefira ajudar a pessoa a construir um caminho a oferecer
o caminho pronto. Existem maiores chances daquele
conselho fazer sentido, se a pessoa for parte da sua
elaboração;
• Pergunte-se: Esse é um conselho que você daria a você
mesmo? Você também coloca isso em prática na sua vida?
Às vezes aconselhamos as pessoas a partir de um campo
teórico interessante, mas pouco prático;
• Escolha bem as palavras. Se a pessoa te procurou
provavelmente ela está numa posição vulnerável; por isso,
tenha cuidado com a forma que você entrega os seus
pensamentos e opiniões sobre a situação;
• Não espere que seu conselho seja seguido. Lembre-se de
que você ofereceu o seu ponto de vista, está sugerindo
uma atitude ou posicionamento, mas cabe à pessoa que
recebe decidir seguir ou não.

70
Conselhos: boa intenção, péssimo hábito

Quando receber um conselho:

• Não absorva rapidamente: tome um tempo para


processar e entender se aquelas sugestões realmente
fazem sentido para você.
• Tenha abertura para ouvir e, quando for preciso, o
discernimento necessário para desconsiderar.
• Mesmo que não vá segui-lo, busque compreender o que
você pode aprender a partir daquele conselho.

As nossas experiências de vida, quando compartilhadas de


um lugar de oferta e não de imposição, podem realmente
ajudar a outra pessoa a resolver uma questão ou evitar
desgastes em situações delicadas.

Eu já recebi conselhos maravilhosos, que realmente


tiveram impactos positivos nas minhas decisões e sou
muito grata às pessoas que me ofereceram tempo e
presença. Por outro lado, já cai no hábito de dar conselhos
que não me foram pedidos.

Acredito que aconselhar é um hábito social e, muitas vezes,


isso passa pela expressão de amor e cuidado pelo outro,
mas descobri que existem formas ainda mais cuidadosas
de oferecer esse acolhimento.

71
texto dez

Quer
aprender
com o FutuRo?

72
Quer aprender com o futuro?

De acordo com a Teoria U, existem duas formas diferentes


de aprender, que variam conforme a fonte de
aprendizagem que você utiliza. Uma delas é aprender
refletindo sobre as experiências do passado, e a outra é
aprender se conectando com possibilidades futuras
emergentes.

Em regra, aprendemos com as experiências do passado,


pelo que já está escrito, pelo que já foi testado, pelo que já
ouvimos ou experimentamos ao longo do curso de nossas
vidas. Esse tipo de aprendizagem nos ajuda, por exemplo,
a não repetir os mesmos erros.

Mas, se queremos descobrir algo novo, mudar um sistema,


ou transformar a nossa consciência, o ideal é que
consigamos aprender com o futuro. E, para isso, é preciso
seguir um ciclo de aprendizagem diferente, que ative um
processo “mais profundo” de acesso ao conhecimento,
fazendo o sistema ver e sentir a si mesmo.

Ver e sentir a si mesmo não significa encarar


profundamente o sistema, significa acessar a realidade a
partir dos limites do sistema, ou seja, mudar “o ângulo” a
partir do qual nos colocamos perante aquela realidade.

73
Quer aprender com o futuro?

MAS, COMO ASSIM?

Muitas vezes o que nos ajuda a perceber a nossa própria


atuação no mundo é justamente “tomar” um pouco de
perspectiva. Alguma vez você já teve a oportunidade de
morar um tempo longe da sua cidade ou do seu país? E,
como que num passe de mágica, a sua vida ficou mais
clara e fácil de ser compreendida? Isso, de alguma
maneira, é acessar as bordas do sistema.

É como se, ao sair da nossa própria bolha, daquele


contexto em que estávamos imersos, conseguíssemos ver
e sentir com mais clareza o sistema que estamos nos
dedicando a conhecer.

Uma história muito simples, e que também ilustra esse


conceito de acessar as bordas do sistema, é a história de
quando o astronauta saiu da Terra e, ao olhar “pra trás”, viu
o planeta de fora pela primeira vez.

Ao sair “da sua bolha”, o homem teve a clareza de que havia


um limite, e que a Terra não era infinita e inesgotável.
Parece óbvio, mas a verdade é que, por estarmos imersos
nesse planeta, que para nós é tão grande, muitas vezes
somos tomados por uma sensação de infinitude, quando,
na realidade, a finitude está posta por uma borda bem
delimitada.

74
Quer aprender com o futuro?

Quando experimentou essa “nova perspectiva”, ele mudou


a forma com que via os seres humanos e o sistema ao qual
pertencia. Dentre outras coisas, ficou claro que somos um
ecossistema único que depende do equilíbrio de trocas
constantes para continuar existindo e, também, o quanto
esse sistema é vulnerável, pois existe uma fina camada
que protege a nossa existência do restante do universo.’

Sair do planeta e conseguir ver a Terra sob uma nova


perspectiva permitiu que o homem conseguisse
redescobrir a forma como sentia aquele sistema.

Por isso, a melhor forma de um sistema ver e sentir a si


mesmo é acessando lugares potenciais que nos ajudem a
entrar em contato com a “nossa ignorância” e aprender.

Isso significa que precisamos nos afastar da nossa


realidade?

Não. Significa que precisamos acessar outros “ângulos”


dessa realidade. Para conseguir ver e sentir a si mesmo, a
Teoria U propõe “jornadas de aprendizado” que, de forma

75
Quer aprender com o futuro?

mais direcionada, convidam os participantes a acessar


lugares, pessoas e experiências que sejam valiosos para
sua investigação. Para pensar uma jornada é importante
se conectar com os contextos e ideias relevantes para a
criação do futuro possível.

Três passos simples podem te ajudar a nortear uma


jornada de aprendizagem:

1. Tenha clareza da sua intenção: o que é que você está


querendo explorar? Procure esclarecer a sua pergunta, não
para limitar sua percepção, mas sim, para “afiar sua
observação”

2. Explicite as suas suposições: o que é que você acredita


que vai descobrir, quais são as suas premissas ou ideias
prévias desse futuro?

3. Ressalte as contradições: após realizar a jornada, o que


você encontrou de diferente do que havia previsto? Quais
dados “desconfirmaram” suas expectativas?

A intenção é que, ao “sair da sua bolha” você consiga ver o


problema, o desafio ou o sistema que você quer conhecer
sob uma nova perspectiva. E, ao fazer isso, você se coloca
em contato com os lugares de maior potencial, que te
expõem e te conectam com algo novo, com aquilo que
você ainda não sabia, com o futuro.

76
Quer aprender com o futuro?

Mas lembre-se: você não sai do sistema, porque você é


parte dele. O que você faz é acessar aquele sistema por
outra perspectiva, por outra parte. O homem, ao sair da
Terra, pode até ter mudado momentaneamente o seu
lugar, mas ele continuava sendo parte inerente ao planeta.
Da mesma forma, quando você se afasta da sua cidade
natal você não deixa de ser parte inerente da sua própria
vida.

Henri Bartoft em seu livro Wholenees of Nature traz uma


visão emergente da ciência, na qual o observador vive e
participa do fenômeno.

Para o autor, o caminho para o todo está nas


partes e pelas partes. Não deve ser encontrado
recuando-se para obter uma visão geral, pois
não está além das partes, como se fosse alguma
entidade ampla superior. Nesse sentido, a
intenção é que consigamos analisar as partes
componentes do sistema.

E COMO É QUE FAZEMOS ISSO?

Para conseguir fazer isso precisamos desenvolver uma


nova forma de sentir, que alcance o movimento dinâmico
da realidade.

77
Quer aprender com o futuro?

Deixar de aprender somente pelo passado (olhando de


fora - e com a razão) para passar a aprender, também, pelo
futuro (olhando de dentro - e com o coração).

A aprendizagem não é passiva, é algo que você precisa


realizar com todo o seu corpo, ativando todos os seus
sentidos. Não adianta projetar o seu olhar sobre o mundo,
lançando sobre ele seus paradigmas, é preciso ir além.

O coração é o órgão que nos permite acessar o campo dos


insights intuitivos, por isso, para aprender com o futuro,
precisamos ver com o coração. Consequentemente,
precisamos abrir o coração e lidar com a nossa voz interna
do cinismo.

De acordo com a Teoria U, abrir o coração significa


acessar e ativar os níveis mais profundos de nossa
percepção emocional. Ouvir com o coração significa
literalmente usar o coração e a capacidade de avaliar e
amar como um órgão de percepção.

E a ciência também corrobora com esse entendimento de


que o coração nos ajuda a aprender. Um artigo publicado
em maio de 2020 na iScience revela o que os especialistas
da Thomas Jefferson University (EUA) descobriram ao
mapear os neurônios de um coração humano: o coração
possui um sistema nervoso intrínseco, com uma rede
neuronal que funciona de forma independente do sistema
nervoso central, o que possibilita que o coração aprenda.

78
Quer aprender com o futuro?

Mas só conseguimos aprender com o futuro quando


reconhecemos e suspendemos os nossos velhos hábitos
de percepção e sentido do mundo.

As nossas opiniões e percepções são o resultado de


pensamentos passados, que podem descender de nossas
experiências ou do que ouvimos de outras pessoas. E, se
nos atemos exclusivamente à elas, não conseguimos
acessar o novo, porque o novo é resultado de
“pensamentos futuros”, que só podem emergir quando
abrimos o nosso coração.

Goethe expressa que “o homem só se conhece na


medida em que conhece o mundo; torna-se
consciente de si mesmo dentro do mundo, e
consciente do mundo apenas dentro de si mesmo.
Todo objeto bem contemplado abre um novo órgão
dentro de nós”.

O convite, então, é para que você redescubra “suas


verdades” por outra perspectiva e experimente aprender
pela fonte do futuro.

79
texto onze

a Fonte da
Criatividade:

como acessar o
seu “Eu-futuro”?

80
A fonte da criatividade: como acessar o seu “eu-futuro”?

Quem é que nunca viveu um daqueles momentos da vida,


quando damos uma “empacada” e não sabemos para onde
ir? Nessas horas parece que os nossos conhecimentos e
entendimentos do passado já não são suficientes para nos
levar adiante e, normalmente, passamos a “buscar” algo
que nos ajude a acessar uma mudança, um futuro possível.

A Teoria U nos oferece um caminho para “desempacar”.

O “presencing” é a etapa do fundo do U, que pode ser


definido como: sentir, sintonizar-se e agir a partir do nosso
mais alto potencial de futuro - o futuro que depende de nós
para se concretizar.

O termo “presencing” (que em inglês combina presence


com sensing = presença + perceber/sentir) tem a ver com
permitir que o conhecimento interior emerja ao acessar
nossa fonte mais profunda.

Parece muito complicado, né? Mas, na verdade, não é tão


complicado assim. É como se você acessasse um lugar de
alta criatividade, e o caminho para chegar lá não exige
tanto esforço, mas sim, muita atenção, porque é algo sutil.

MOMENTO EUREKA

Alguma vez você já vivenciou uma “virada sensível” que


mudou a sua percepção sobre quem você realmente é
ou o que deseja criar em sua vida?

81
A fonte da criatividade: como acessar o seu “eu-futuro”?

Pode ter sido uma conversa, a leitura de um livro, uma


música ou uma peça de teatro (a meu ver a arte tem uma
forma poderosa de nos ajudar a acessar esse lugar) que te
dá vontade de dizer “eureka!”.

Nesse tipo de momento somos tomados por uma energia


alta e uma vontade de gritar de satisfação, porque
descobrimos algo novo ou relevante para nós. A
descoberta não precisa ser algo extremamente inovador,
mas, em regra, é algo “essencial”, que tem um poder de
transformação, e traz uma clareza maior sobre aquilo que
você deseja realizar.

Na concepção da Teoria U, esse tipo de evento acontece


quando libertamos a nossa percepção do passado e
passamos a operar a partir do campo do futuro, quando
nos abrimos para a nossa maior possibilidade futura, a
ponto de permitir que ela “chegue” ao presente. Nem
sempre esse momento vai ser um “momento eureka”
imediato, pode ser que leve um certo tempo, mas,
provavelmente, o sentimento que te acomete seria similar
a de uma epifania.

Essa mudança que experimentamos na base do U não é


um evento singular. É uma consciência e presença sempre
acessíveis a nós. É quase como uma contemplação
filosófica, e qualquer pessoa que dedique atenção
suficiente pode fazê-la.

82
A fonte da criatividade: como acessar o seu “eu-futuro”?

MAS COMO ISSO ACONTECE NA PRÁTICA?

Percebo que esse tipo de evento é algo sutil e, por isso,


muitas vezes difícil de ser explicado. Vou compartilhar um
momento de “virada” no qual reconheci que estava no
fundo de “um dos meus Us” e tive mais clareza sobre o
meu Eu (e sobre o meu Trabalho).

Em 2017, participei da formação do Art of Hosting (A Arte de


Anfitriar) voltada para liderança pessoal e sistêmica, com
práticas de facilitação e diálogo. Vivi uma imersão de
quatro dias na Serra do Cipó, interior de Minas Gerais. Foi
uma experiência profunda que me gerou muita reflexão e
novos insights.

No último dia, uma das facilitadoras que estava


conduzindo a formação e, com a qual eu havia tido um
contato mais próximo, se despediu de mim e disse: - “você
é uma artista do invisível”. Eu me lembro de ouvir aquilo e,
mesmo sem compreender, na época, a profundidade do
trabalho de Allan Kaplan ou Goethe, consegui sentir com
clareza que aquela frase revelava algo para mim e, como

83
A fonte da criatividade: como acessar o seu “eu-futuro”?

que num passe de mágica, trouxe clareza cristalina para


algo que eu já podia sentir, mas não sabia ainda como
pronunciar.

Aquilo tinha relação com uma habilidade (futura) que eu


começava a reconhecer em mim mesma: de observar os
processos e mudanças dos organismos sociais - me
reconhecendo como parte - e de conseguir intervir nessas
mudanças, revelando significados e sentidos e, ao mesmo
tempo, aquela frase misturava as características -
filosófica, criativa, observadora - que eu já reconhecia em
mim de maneira dispersa, passando a dar forma,
significado.

Nesse momento, foi como se o meu “eu-passado” se


encontrasse com o meu “Eu-futuro” e pudessem interagir.
Eles se ouviram e se fortaleceram. As minhas experiências
passadas puderam “ouvir” a maior possibilidade futura que
emergia naquele momento presente para mim e, como
que numa epifania, eu soube para onde deveria seguir.

ENTÃO O “PRESENCING” É SEMPRE UM PROCESSO


INDIVIDUAL?

O “presencing’ não é apenas pessoal, exclusivo para


autodesenvolvimento. Ele pode ser utilizado em qualquer
sistema que queira e precise recorrer a fontes diferentes
(daquelas que estão presas ao passado).

84
A fonte da criatividade: como acessar o seu “eu-futuro”?

Otto Scharmer e a sua equipe utilizam desse olhar para


facilitar processos de inovação e mudança, tanto dentro
das empresas e organizações, quanto nos sistemas da
sociedade.

Claro que todos esses sistemas são compostos por


pessoas e são elas que se relacionam com o sistema que
desejam alterar e, consequentemente, que constroem o
caminho para aprofundar e alcançar “o fundo do U”.

Na perspectiva da Teoria U, a mente aberta, o coração


aberto e a vontade aberta são os três instrumentos que
nos ajudam a estar no campo social do “presencing”. Mas
esses instrumentos nem sempre são de simples
compreensão. Um caminho interessante para acessá-los é
conhecer quais são os “três inimigos (como diriam os norte
americanos) ou três vozes internas de resistência (como
diriam os europeus)” que nos atrapalham nesse processo
de abertura.

A mente aberta, o coração aberto e a vontade aberta, são


bloqueados, respectivamente, pela Voz do Julgamento,
pela Voz do Cinismo e pela Voz do Medo.

São essas vozes que provavelmente vão te impedir de


acessar a sua maior fonte de criatividade; por isso, tenha
atenção na sua atenção, pois, em inúmeras situações, o
conhecimento intelectual não é o conhecimento que irá
promover a mudança necessária.

85
texto doze

PROTÓTIPO:

Pensamento
sem ação vs.
Ação sem
Pensamento

86
Protótipo: pensamento sem ação vs. ação sem pensamento

Uma forma muito boa de testar uma ideia é realizando um


protótipo. A ideia de prototipar passa por colocar seus
conhecimentos e/ou hipóteses em prática. Ou seja,
planejar e executar alguma ação que permita descobrir
erros e aprender com eles. Na Teoria U usamos a
expressão: trazer da mente e do coração para as mãos.

Ao cuidar da ideia em torno da prototipagem, a Teoria U


aponta dois principais desafios:

• O primeiro é evitar ações irracionais, quando


implementamos cegamente ideias abstratas sem nenhum
aprendizado.
• O segundo desafio é o oposto do primeiro: evitar uma
mente sem ação, ou a “paralisia da análise”, quando
pensamos demasiadamente e não agimos.

Portanto, o ideal é conseguir evitar uma ação irrefletida, ou


seja, sem um pensamento (conhecimento, reflexão,
aprofundamento) prévio e, ao mesmo tempo, evitar um
pensamento que, na busca desesperada por encontrar o
caminho “certo”, não consegue agir.

PARALISIA DA ANÁLISE

Para as pessoas que já estão refletindo e buscando uma


investigação mais profunda em torno de um assunto, a

87
Protótipo: pensamento sem ação vs. ação sem pensamento

paralisia da análise talvez seja o maior inimigo de toda a


prototipagem: discutimos as coisas até à morte, em vez de
“explorar o futuro fazendo”.

Essa paralisia pode acontecer tanto em processos


individuais, quanto de grupos. E, ao meu ver, fazemos isso
por alguns motivos principais:

• Sobrecarga de alternativas: uma situação que oferece


demasiadas alternativas, somada a uma análise excessiva,
pode levar a uma paralisia da ação.

• Medo de errar: muitas vezes buscamos encontrar a


solução ou o caminho perfeito e temos medo de tomar
uma decisão que possa resultar em erro.

• Para preservar opções: você acaba suprimindo a sua


escolha, por medo de escolher “mal”. Inconscientemente,
quando você não escolhe, você “preserva” todas as opções
(pelo menos na teoria, porque, na prática, mesmo quem
não escolhe também está escolhendo).

Nessas situações, nenhum curso de ação é tomado,


nenhuma solução é proposta; é como se o próprio
movimento travasse. Em suma, acredito que o medo de
errar talvez seja o principal ponto, o qual, em alguma
medida, permeia os outros motivos.

88
Protótipo: pensamento sem ação vs. ação sem pensamento

Ninguém gosta de errar, pois a necessidade de se sentir


valorizado é um desejo humano intrínseco. Buscamos
“acertar” para alcançarmos reconhecimento e,
provavelmente por isso, gastamos tanto tempo analisando
a situação, estudando as opções, revisando os caminhos:
para garantir que estamos tomando a escolha “certa”.

Em alguma medida, a escola serve para nos treinar, desde


cedo, a acertar o máximo possível, mesmo que isso não
gere nenhum aprendizado real. Se você colar do
coleguinha e tirar 10 na prova vai ser mais valorizado do
que aquele que se esforçou e tirou 6, mesmo que ele
tenha aprendido com cada um de seus erros. Na família ou
no mundo do trabalho isso não é diferente e, assim, a
crucificação do erro vai percorrendo toda a nossa vida.

NOITE DE FRACASSO

De 2016 a 2019 fui embaixadora do Fuckup Nights na


cidade de Belo Horizonte. O Fuckup é um evento voltado
para o compartilhamento de histórias de fracasso. Os
convidados são pessoas “de sucesso”, mas que, durante o
evento, sobem ao palco para contar sobre
empreendimentos, projetos ou iniciativas que deram
errado e o que aprenderam com isso. É uma oportunidade
rara de ouvir e de se libertar dos erros, ressignificando
essas histórias.

89
Protótipo: pensamento sem ação vs. ação sem pensamento

O sucesso não vem na primeira tentativa. As pessoas que


foram bem sucedidas em suas empreitadas
provavelmente experimentaram um ou vários erros no
caminho e muitas vezes nos esquecemos de olhar para
isso.

Tanto na nossa vida pessoal, quanto em organizações,


errar ainda é um tabu. Fracassar então… uma vergonha! Em
regra, quando erramos, temos a tendência de esconder
os erros bem escondidinhos para que ninguém possa
descobrir o quão humanos nós somos. Quando fazemos
isso perdemos a chance de aprender individual e
coletivamente com aquela situação, e vendemos uma
imagem ilusória de perfeição.

É importante conseguir aceitar e acolher o conceito de


fracasso para aprender e evoluir. O erro é algo que
acontece em dissonância com nossa intenção, mas serve
para que possamos continuamente revisar e melhorar
nossa atuação em qualquer contexto que seja.

Claro que a proposta em torno do protótipo não é sair


“fazendo sem pensar” ou agir irracionalmente. Afinal, tomar
uma decisão com base em um julgamento precipitado ou
ter uma reação instintiva pode ser extremamente danoso. A
proposta é agir, a partir de um pensamento de base, para
aprender com a “resposta” do mundo a respeito dessa
ideia.

90
Protótipo: pensamento sem ação vs. ação sem pensamento

Trabalhe na versão 0.8 de seu protótipo ao invés de


trabalhar na versão 1.2. O que isso significa? Não elabore
tanto sua “solução” ao ponto de se apegar a ela. Se você
tomar uma decisão que considera perfeita, provavelmente
vai ter a tendência de “defendê-la” diante de incoerências
ou defeitos. Para evoluir no ritmo das mudanças, são
necessárias decisões adaptativas que podem ser iteradas
e aprimoradas constantemente.

RECONHECENDO A INCOERÊNCIA

O protótipo serve para você aplicar o seu conhecimento. O


mais belo de prototipar é ter a liberdade e, ao mesmo
tempo, o “objetivo” de errar.

Não há razão para esconder o erro e defender que o seu


conhecimento estava certo. Isso é perda de tempo.
Quando passamos muito tempo investigando uma
determinada situação, podemos nos apegar àquelas ideias
e tentar “provar” que elas estão certas, mas somente
quando o conhecimento é aplicado (colocado em prática)
é que as incoerências se revelam.

91
Protótipo: pensamento sem ação vs. ação sem pensamento

Não existe um conhecimento perfeito, todo conhecimento


é limitado porque é uma abstração do todo. Por isso, um
certo grau de incoerência em nossos pensamentos é
inevitável, e precisamos prototipar para que essa
incoerência se revele, para que consigamos ir além do
que já aprendemos até aquele ponto, e avançar.

Nesse sentido, lembre-se que nunca haverá um


“alinhamento perfeito dos planetas”. Ou seja, não importa
quanto conhecimento você já tenha, sempre haverá mais
para aprender. Por isso, prototipar é uma ótima forma de
testar, acessar outros conhecimentos, reconhecer as
incoerências, chegar a uma nova conclusão e se adaptar a
uma nova ideia.

92
texto treze

Responsabilidade
e Culpa:

primas distantes

93
Responsabilidade e culpa: primas distantes

Uma confusão muito comum é achar que a


responsabilidade e a culpa são irmãs muito parecidas
entre si ou que uma é consequência imediata da outra. Ao
meu ver, a responsabilidade é erroneamente confundida
com a culpa.

A culpa, muitas vezes, decorre de uma responsabilização


por algo que “deu errado”. É como se ela fosse uma cota de
sofrimento que pagamos, uma espécie de penalização
pelo erro.

Temos uma tendência de sentir culpa por tudo: desde a


culpa católica, passando pela “culpa de mãe”, até a culpa
existencial! Sentimos que estamos fazendo “algo errado”
mesmo quando não estamos fazendo nada errado.
Sentimos culpa por: comer, amar, dormir, receber elogios,
estar bem (pessoal e profissionalmente), e por aí vai. Existe
uma verdadeira “cultura da culpa”.

Em um dado momento da história fomos todos


considerados culpados. Seja de origem religiosa ou civil, a
culpa está arraigada em todas as instituições que os seres
humanos pertencem (escolas, organizações, estado,
família, comunidades, negócios) e permeia nossas
relações diariamente, tanto com o outro, quanto com nós
mesmos.

E, na rotina do dia a dia, acabamos por não fazer uma


distinção entre culpa e responsabilidade quando

94
Responsabilidade e culpa: primas distantes

afirmamos com a mesma veemência:

“- Isso é sua responsabilidade!”


“- Isso é sua culpa!”

Pode ser que, como era sua responsabilidade, você se


sinta culpado. Mas não significa que por você se sentir
culpado, o acontecimento era de sua responsabilidade.
Se refletirmos um pouco mais, iremos perceber, tanto no
nível da razão, quanto no nível do sentimento, a grande
diferença que existe quando pensamos sobre o que é
nossa responsabilidade e o que é nossa culpa.

A culpa e a responsabilidade podem ser parentes, mas, no


máximo, são primas distantes. E acredito que, em geral,
temos muita dificuldade em assumir a responsabilidade
pelas coisas, porque temos medo da sua “prima distante”
acabar sendo convidada para o “rolê”.

Preferimos não correr o risco de nos sentirmos culpados.


Afinal, a culpa está tão presente em nossas dinâmicas, que
muitas vezes a vida vira um jogo de “escape” da culpa.
Mas penso que existe um paradoxo nessa história: quanto
mais entendemos a nossa real responsabilidade nas
situações, mais podemos “nos livrar” da culpa correlata. É
como que se o antídoto da culpa fosse a própria
responsabilidade.

95
Responsabilidade e culpa: primas distantes

A CULPA EM MIM

Ao longo da minha vida percebi que tinha uma relação


desgastante com a culpa, ela invadia minhas escolhas e,
muitas vezes, norteava minhas ações. Reconheci que eu
tinha tanto medo da culpa que, inconscientemente,
acabava terceirizando a decisão diante de algumas
situações, para reduzir as possibilidades de me sentir
“culpada” posteriormente.

Se, por exemplo, eu estava com outra pessoa e tínhamos


que decidir “ir para a direita ou para esquerda” - ou seja,
entre as opções A ou B - eu buscava decidir
conjuntamente ou abdicava de decidir. Me dei conta que
esse medo que eu tinha de tomar decisões, de assumir a
responsabilidade por uma escolha, tinha relação com a
culpa. Eu compartilhava a responsabilidade para, caso
fosse necessário, poder compartilhar também a culpa.
Foi um esforço consciente conseguir perceber em quais

96
Responsabilidade e culpa: primas distantes

momentos eu deixava de seguir o caminho que queria ou


desejava, para evitar encontrar com a culpa.

Então, resolvi me divorciar da culpa. Já fazem uns 5 anos


que a culpa não entra no meu vocabulário. As pessoas
mais próximas de mim conhecem o jargão que eu uso
quando alguém vem me dizer: “- ah, mas eu não tive culpa”
ou “- a culpa não foi sua”, a minha resposta é sempre, - eu
não “trabalho” com culpa, eu “trabalho” com
responsabilidade.

Parece apenas um jogo de palavras, mas é muito mais do


que isso. A linguagem não é somente algo semântico, ela
carrega sentidos e significados coletivamente
compartilhados, a língua de um povo é capaz de
transportar poder, violência e acredite .... culpa!

Na dinâmica social, isso fica muito claro no português com


a palavra desculpa. Quando pedimos desculpa estamos
tentando nos livrar de uma culpa, estamos pedindo para
que a outra pessoa “retire de nós” a culpa que sentimos
pela atitude que praticamos (independentemente do
motivo: seja reconhecendo a culpa, seja dizendo que ela
não deveria existir).

Perceber em quais momentos “colocamos a culpa” (nos


outros e em nós mesmos) e, em quais momentos
“assumimos a responsabilidade” em nossas interações, diz
muito sobre como nos relacionamos.

97
Responsabilidade e culpa: primas distantes

Reduzir o consumo de culpa, envolve assumir doses


diárias de responsabilidade.

Se você souber até onde vai a sua responsabilidade, você


pode “se livrar” da culpa: se você não é responsável por
determinada situação, não tem porque se sentir culpado.
Para isso é preciso um alto nível de abertura e
conscientização de sua responsabilidade, inclusive nas
situações nas quais você gostaria de não ser
responsável.

Gosto da diferenciação que Christian Dunker e Cláudio


Thebas trazem em seu livro quando afirmam que a
responsabilidade aponta para a solução, e a culpa para o
problema:

Responsabilidade é um termo jurídico relacionado ao nível


de autonomia que dispomos para criar, seguir e justificar
nossas regras de ação. Culpa é um termo moral ligado à
violação de preceitos, ideais, ou expectativas.(...) a
responsabilidade produz compromissos e reparações, já a
culpa produz vítimas, carrascos, santos e vilões.

Experimente trocar a culpa pela responsabilidade. Para


isso, observe em quais momentos você acusa a si mesmo
ou os outros de serem culpados e, em que medida, a culpa
“está andando” sem a responsabilidade correlata. A
responsabilidade remete à consciência, ao pensar, ao agir,

98
Responsabilidade e culpa: primas distantes

a mudanças. A culpa é egóica e não promove o


movimento, a ação.

Na Teoria U, existe um convite e um esforço consciente


para dedicarmos nossa atenção ao momento presente - ao
agora - e existem quatro distrações, ou obstáculos que
podem nos atrapalhar nesse processo, que são o futuro, o
passado, o outro e o eu -. Nesse sentido, quando tratamos
da nossa relação com o passado, a culpa é um grande
obstáculo, porque nos faz remoer as situações e não
promove aprendizado ou mudança, somente flagelação.

Ao adotarmos a culpa perdemos a liberdade de


aprender com os acontecimentos, porque a culpa acaba
neutralizando a responsabilidade e nos impede de
reconhecer o erro.

Na minha percepção, ao longo do anos aplicando a


metodologia da Teoria U, muitas vezes o grande desafio
para indivíduos e organizações conseguirem experienciar
o “lado direito” do U — o prototipar, o agir, o comodelar — ,
passa pela dificuldade de (auto) responsabilização do
processo, e pelo hábito de encontrar “desculpas” externas
impeditivas (culpar as pessoas, o grupo, as ferramentas, o
contexto). Por isso, acredito que precisamos esvaziar a
culpa e “rechear” a responsabilidade.

99
Responsabilidade e culpa: primas distantes

A CONSCIÊNCIA DA CULPA X CONSCIÊNCIA DA


RESPONSABILIDADE

A culpa caminha de mãos dadas com o arrependimento. É


muito fácil se sentir culpado quando olhamos para o
passado e nos arrependemos daquilo que fizemos, ou
achamos que poderíamos ter feito diferente.

Imagino que se a culpa fizesse uma festa, além do


arrependimento, provavelmente ela iria convidar a
condenação, a penitência, a vergonha, o remorso, a
acusação, a raiva dentre outros convidados muito
“simpáticos”. A responsabilidade, por sua vez, talvez
convidasse o compromisso, a consciência, a reflexão, a
consequência, a autonomia, o cuidado, o discernimento,
dentre outros.

Brené Brown, ao abordar o tema, afirma que quando


culpamos estamos apenas descarregando desconforto,
raiva e dor. A responsabilidade é um processo de
vulnerabilidade e tem uma relação oposta à relação de
culpa.

Pra mim, a diferença central é que a responsabilidade


anda de mãos dadas com a consciência. Quanto mais
conscientes nós somos de nós mesmos, dos outros e do
mundo, mais responsáveis nós somos.

100
Responsabilidade e culpa: primas distantes

Nesse mesmo sentido, quando trata do antirracismo,


Grada Kilomba ressalta que o processo de conscientização
não é um processo moral, mas é um processo de
responsabilidade (...) No seu estudo ela aponta que o
Antirracismo não tem a ver com moralidade, tem a ver com
responsabilidade. Não tem a ver com culpa, tem a ver com
responsabilidade. Não tem a ver com vergonha, tem a ver
com responsabilidade.

Enfim, a culpa não serve a nada, a não ser para nos


penalizar diante de uma situação. A responsabilidade por
sua vez, passa pela conscientização, pelo compromisso e
reparação. A partir do momento que eu sei de algo, o que
eu faço com isso? Esse é o ato de responsabilização.

Mudar a minha relação com a culpa e a utilização desta


palavra, mudou muita coisa pra mim. Por isso, te faço esse
mesmo convite. Repare em sua vida, qual lugar a culpa
ocupa: quantas vezes você assume ou terceiriza a culpa
para outra pessoa? Qual é a intenção que emerge em seu
pensamento quando você faz isso? Do que você está
cuidando ou o que você está tentando proteger? Como
você se sente?

Talvez você descubra uma enorme culpa dentro de você.


Talvez você descubra em quais momentos você “escapa”
das suas vontades - e da sua responsabilidade - para tentar
escapar da culpa. Talvez, assim, você consiga se libertar e
ter mais autonomia em suas escolhas.

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Inspirações
e Referências
Otto Scharmer Bill O´Brien
Kurt Lewin John Hagel
David Bohm Allan Kaplan
Bruna Viana Brené Brown
Cláudio Thebas Mary Schmich
Goethe Charles Duhigg
Grada Kilomba Henri Bartoft
Américo Galvão Moysés Neto
Marshall Rosenberg Thais Muchon
Ana Maria Almeida Joanna Macy
Charles Eisenstein Christian Dunker
Oswaldo Oliveira John Hagel
Marcelle Xavier Daniel Wahl
Conrado Schlochauer Zygmunt Bauman
Alex Bretas

Obrigada!
Marina.

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