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Capítulo II

Uma nova cultura


política emancipatória

As grandes teorias às quais nos acostumamos - de


alguma maneira, o marxismo e outras correntes e
tradições - não parecem nos servir totalmente neste
momento. Servem-nos em parte, e acredito que hoje
há uma volta ao marxismo em todo o mundo. Isso
não me surpreende porque a crise do marxismo, de
alguma maneira, coincidiu com a "marxização" do
mundo: a idéia de que o mundo era cada vez mais pa-
recido com o que Marx havia diagnosticado. As difi-
culdades aparecem ao passarmos do diagnóstico para
uma visão do futuro, questão que rio marxismo nos
traz muitos problemas.
Mas há outras dificuldades. O materialismo his-
tórico converteu o capitalismo em um fator de pro-
gresso, em uma fase de progresso da humanidade, e
isso nos trouxe problemas pelo fato de essa idéia ter
deixado de fora uma questão que, para nós, é fun-
damental: a questão colonial. O colonialismo não
tem sido bem tratado nessa teoria e, além disso, em
alguns textos de Marx vemos uma justificação - so-
bretudo na Índia - do colonialismo como fator do ca-
pitalismo: colonialismo é capitalismo, e é muito i m-
portante que recordemos isso.
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A outra conseqüência foi tornar invisíveis, esconder CR vai do caos à ordem. Saber é pôr ordem nas coisas, na
outras formas de opressão, de discriminação e de exclu- realidade, na sociedade. Mas houve na matriz da socie-
são que, para nós, hoje são muito importantes: o racismo, dade ocidental outro conhecimento, o CE, que tem um
o sexismo, as castas etc. Outra conseqüência problemá- ponto A chamado colonialismo, ou seja, a incapacidade de
tica é que o marxismo, de alguma maneira, compartilha reconhecer o outro como igual, a objetivação do outro –
o ideal da unidade do saber, da universalidade do saber transformar o outro em objeto –, e o ponto B, que é o que
científico e de sua primazia. Se propomos hoje a neces- poderíamos chamar autonomia solidária. Aqui o conhecer
sidade de uma ecologia de saberes, estamos falando de vai do colonialismo à autonomia solidária.
algo distinto. Finalmente, toda a teoria crítica tem sido Esses dois modelos estão inscritos na matriz da
bastante monocultural, e hoje estamos cada dia mais modernidade ocidental: mas o CR dominou por inteiro
conscientes da realidade intercultural de nosso tempo. quando a modernidade ocidental passou a coincidir com
Por essa razão, chegamos à conclusão de que, provavel- o capitalismo. As potencialidades da modernidade oci-
mente, a razão que critica não pode ser a mesma que pen- dental pertencem à matriz colonial, mas poderiam ima-
sa, constrói e legitima o que é criticável. ginar outros horizontes distintos – o capitalismo e o so-
Necessitamos de outro tipo de racionalidade, e aí cialismo são um bom exemplo. Entretanto, o CR passou
começamos a pensar um tipo de racionalidade mais a dominar, e quando o fez foi recodificando o CE em seus
ampla, precisamente para reinventar a teoria crítica de próprios termos. O que era conhecimento-saber (auto-
acordo com nossas necessidades hoje. Uma coisa clara nomia solidária) passou a ser no CE uma forma de caos (a
para nós é que não há conhecimento geral; tampouco solidariedade entre as classes é perigosa, a solidariedade
há ignorância geral. Somos ignorantes de certo conhe- no povo é uma forma de caos que é necessário controlar),
cimento, mas não de todos. Todo conhecimento se dis- portanto o que era "conhecimento" passou a ser no CR
tingue por seu tipo de trajetória, que vai de um ponto A "ignorância". E, ao contrário, o que era "ignorância" no
chamado "ignorância" a um ponto B chamado "saber", e CE passa a ser "saber" no CR, ou seja: o colonialismo pas-
os saberes e conhecimentos se distinguem exatamente sa a ser uma forma de ordem.
pela definição das trajetórias pelos pontos A e B. Po- Essa é a maneira com que tento ver o que se passou
demos dizer que na matriz da modernidade ocidental e por que é necessário reinventar o conhecimento-eman-
há dois modelos, dois tipos de conhecimento que po- cipação. Porque de alguma maneira a ciência moderna se
dem se distinguir da seguinte maneira: o conhecimento desenvolveu totalmente no quadro do conhecimento-re-
de regulação e o conhecimento de emancipação. A tensão gulação que recodificou, canibalizou, perverteu as possi-
política é também epistemológica. bilidades do CE. E é por isso que o CE tem de ser uma
Tanto o conhecimento-regulação (CR) como o co- ecologia de saberes, não pode ser simplesmente o saber
nhecimento-emancipação (CE) têm um ponto A, que é científico moderno que temos: este é importante, ne-
de ignorância, e um ponto B, que é de saber. A ignorância cessário, mas tem de estar incluído em uma ecologia de
no CR é caos, ser ignorante é viver em um caos da rea- saberes mais ampla. É muito importante fazer essa mu-
lidade incontrolada e incontrolável, seja na natureza ou dança, de uma epistemologia baseada somente em uma
na sociedade; e conhecer, saber, é ordem. A trajetória do forma de conhecimento para outra de ecologia. Quando
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há uma ecologia de saberes, a ignorância não é necessa- porque a hegemonia mudou. Até agora ela se baseava na
riamente um ponto de partida, pode ser um ponto de idéia do consenso, de que algo é bom para todos e näo
chegada. Quando um estudante da Índia entra na uni- somente para os que diretamente se beneficiavam dele;
versidade norte-americana, provavelmente vai aprender é bom inclusive para os que de fato vão sofrer com isso.
muitas coisas, mas vai desaprender muitas outras. A hegemonia é uma tentativa de criar consenso basea-
Devemos fazer uma nova pergunta: o que você da na idéia de que o que ela produz é bom para todos.
aprende vale o que desaprende ou esquece? Há conheci- Mas houve uma mudança nessa hegemonia, e hoje o que
mentos próprios, e isso que pode parecer uma coisa mar- existe deve ser aceito não porque seja bom, mas porque é
ginal é um problema absolutamente central na África, na inevitável, pois não há nenhuma alternativa. Isso, a meu
Ásia e também na América Latina. Existe outra maneira ver, torna ainda mais importante a necessidade de uma
de ver a ignorância, porque a utopia de uma ecologia de utopia crítica, mas tem também algumas dificuldades.
saberes é que possamos aprender outros conhecimen- Há dois problemas teóricos muito importantes: o do
tos sem esquecer nossos próprios conhecimentos. Mas silêncio e o da diferença. O silêncio é o resultado do silen-
nosso ensino nas universidades, nossa maneira de criar ciamento: a cultura ocidental e a modernidade têm uma
teoria, reprime totalmente o conhecimento próprio, o ampla experiência histórica de contato com outras cultu-
deslegitima, o desacredita, o inviabiliza. Portanto, temos ras, mas foi um contato colonial, um contato de desprezo,
de enfrentar desafios exigentes, como estou propondo e por isso silenciaram muitas dessas culturas, algumas
neste seminário. das quais destruíram. Por isso, quando queremos tentar
O primeiro desafio é reinventar as possibilidades um novo discurso ou teoria intercultural, enfrentamos
emancipatórias que havia nesse conhecimento emanci- um problema: há nos oprimidos aspirações que não são
pador: uma utopia crítica. Vivemos hoje em um mundo proferíveis, porque foram consideradas improferíveis
dominado por utopias conservadoras. Franz Hinkelam- depois de séculos de opressão. O diálogo não é possível
mert as definiu muito bem como a "radicalização do simplesmente porque as pessoas não sabem dizer: não
presente". A utopia do neoliberalismo é conservadora, porque não tenham o que dizer, Mas porque suas aspira-
porque o que se deve fazer para resolver todos os proble- ções são improferíveis. E o dilema é como fazer o silêncio
mas é radicalizar o presente. Essa é a teoria que está por falar por meio de linguagens, de racionalidades que não
trás do neoliberalismo. Ou seja: há fome no mundo, há são as mesmas que produziram o silêncio no primeiro
desnutrição, há desastre ecológico; a razão de tudo isso momento. Esse é um dos desafios mais fortes que temos:
é que o mercado não conseguiu se expandir totalmente. como fazer o silêncio falar de uma maneira que produza
Quando o fizer, o problema estará resolvido. Temos de autonomia e não a reprodução do silenciamento.
mudar essa utopia conservadora para uma utopia críti- A diferença é outro desafio muito importante, porque
ca, porque também as utopias críticas da modernidade - a tradução tem alguns problemas -além da reciprocidade -
como o socialismo centralizado - se converteram, com o como, por exemplo, a idéia da incomensurabilidade. No
tempo, em uma utopia conservadora. diálogo intercultural, temos de produzir uma luta con-
Estamos em um contexto em que é necessário ten- tra duas frentes. Uma é a política de hegemonia: não há
tar outras aprendizagens de utopia crítica. Sobretudo outras culturas críveis. A outra é a política de identidade
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absoluta: há outras culturas, mas são incomensuráveis. temos de ir além disso. O debate hoje é como reconhecer
Não nos serve nem uma política de hegemonia nem uma isso, quais são as idéias na filosofia africana que não po-
política identitária fundamentalista, mas, como sempre, dem ser expressas na ocidental. E há muitíssimas idéias:
uma via nova não é fácil, porque às vezes temos de en- a de que "nós" somos toda a humanidade, por exemplo,
contrar o que é semelhante, e o semelhante é um ponto em uma unidade muito concreta com a natureza; isso se
de partida, não de chegada. vê muito também na filosofia andina. É preciso encon-
Um debate interessante hoje na filosofia versa sobre trar outro tipo de diálogo entre as diferentes filosofias, e
a possibilidade de uma filosofia africana. É um grande de- também aqui aparece o desafio. É preciso conversar mui-
bate entre tradicionalistas e modernistas. Há os que dizem to mais, dialogar muito mais, buscar outra metodologia
que há uma filosofia africana conectada com sua cultura de saber, ensinar, aprender.
e como tal não é uma filosofia que pode dialogar com a O terceiro desafio é distinguir entre objetividade e
filosofia ocidental: são os tradicionalistas. E há outros que neutralidade. É a idéia de que devemos ter uma distância
dizem que não há uma filosofia africana, há uma filosofia crítica em relação à realidade, mas, ao mesmo tempo,
universal, o fato de ter começado no Ocidente (o que é um não podemos nos isolar totalmente das conseqüências
erro; como sabemos, começou na África) é só uma questão e da natureza do nosso saber, porque ele está contex-
de tempo, amanhã os africanos estarão com Aristóteles, tualizado culturalmente; todo saber é local, todos os
Platão: são os modernistas. Aqui o problema é ver como sistemas de saber são locais, inclusive as ciências. Aqui
vamos desenvolver uma posição entre os que querem, por o desafio vem de algo muito concreto que faz parte da
um lado, reconhecer a filosofia africana e, por outro, poder ciência moderna, uma discrepância que provavelmente
pensar que há um diálogo entre as filosofias. passa despercebida mas é muito importante: a capaci-
Qual é a dificuldade para nós? Temos de nos acostu- dade de ação científica é muito maior que a capacidade
mar a ser interdisciplinares. Começamos com um concei- de previsão das conseqüências da ação científica. Temos
to muito simples, que é um princípio fundamental para muitos problemas ecológicos, sociológicos, políticos,
toda a filosofia cartesiana: "Penso, logo existo". Um gran- que derivam dessa discrepância: a ação científica de um
de filósofo africano, Kwasi Wiredu, diz: veja só, eu venho economista em um país é uma coisa; a análise científica
da Nigéria, meu povo é o akan e em minha língua africa- das conseqüências dessa ação é outra; as conseqüências
na eu não posso traduzir isso; pensar, em minha língua, fazem muito mais ruído. Hoje, na ciência moderna, as
é medir algo. Então esse conceito não tem sentido. Além ações científicas são sempre mais "científicas" que as
disso, o "sou" também não existe em minha língua, nós conseqüências dessas ações. Se queremos ter uma ati-
sempre "estamos num lugar", tenho de dizer sempre que tude pragmática para observar as conseqüências, para
estou em um território, em um lugar, em uma posição, e intervir na realidade, temos de enfrentar essa discre-
essa localização reduz de imediato o pressuposto univer- pância que existe na ciência moderna, mas não existe,
salista do "penso, logo existo". por exemplo, da mesma maneira em outros saberes.
Aqui existe uma incomensurabilidade, e muitos pen- O quarto desafio é a necessidade de nos concentrarmos
sam que é uma debilidade da filosofia africana não poder em como desenvolver subjetividades rebeldes e não apenas
dar um conceito tão simples como o cogito ergo sum. Mas subjetividades conformistas. Assim, a questão fundamen-
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tal é como intensificar a vontade, um problema também Será que podemos dizer que o colonialismo passou, e
complicado para nossa construção teórica, porque há uma que com poucas exceções só há países independentes? Não.
dimensão que chamamos racional dos argumentos; mas há Em nossas teorias temos de incluir a perspectiva pós-colo-
também uma dimensão mítica em todos os saberes, que é nial, que tem duas idéias muito categóricas. A primeira é que
a crença, a fé na validade de nossos conhecimentos. Todos terminou o colonialismo politico, mas não o colonialismo
os nossos conhecimentos têm um elemento de logos e um social ou cultural; vivemos em sociedades nas quais não se
elemento de mythos, que é a emoção, a fé, o sentimento que pode entender a opressão ou a dominação, a desigualdade,
certo conhecimento nos proporciona pelo fato de o termos, sem a idéia de que continuamos sendo, em muitos aspec-
a repugnância ou o amor que nos provoca. tos, sociedades coloniais. Não é um colonialismo politico,
Há uma dimensão emocional no conhecimento que é de outra índole, mas existe. Aníbal Quijano, sociólogo pe-
costumamos trabalhar muito mal, e então devemos ver ruano, fala da colonialidade do poder. O outro princípio do
o que distingue as duas correntes de nossa vida, tanto pós-colonialismo é uma primazia na construção teórica das
nas sociedades como nos indivíduos: a corrente fria e a relações Norte-Sul para tentar pensar o Sul fora dessa rela-
corrente quente. Todos temos as duas: a corrente fria é ção. É preciso analisar muito detalhadamente essa relação
a consciência dos obstáculps; a corrente quente é a von- para tentar criar alternativas, porque o Sul imperial é um
tade de ultrapassá-los. As culturas distinguem-se pela produto do Norte. Há um Sul imperial e um Sul antiimpe-
primazia que dão à corrente fria ou à corrente quente. rial, contra-hegemónico, emancipatório.
Acredito que a corrente fria é absolutamente necessária Por isso, para uma Epistemologia do Sul é necessário
para que não nos enganemos, e também a corrente quen- saber o que é o Sul, porque no Sul imperial está o Norte. É
te é muito importante para não desistirmos facilmente. preciso criar esse Sul contra-hegemónico, e o pós-colonialis-
Hoje, temos a idéia de que é necessário encontrar qua- mo é, a meu ver, muito importante, pois tem também uma
dros teóricos e políticos que continuem tentando não ser terceira idéia: das margens se vêem melhor as estruturas de
enganados, mas ao mesmo tempo sem desistir, sem en- poder. Devemos analisar as estruturas de poder da socie-
trar no que chamamos a razão cínica, a celebração do que dade a partir das margens, e mostrar que o centro está nas
existe porque não há nada além. Esse é outro desafio. margens, de uma maneira que às vezes escapa a toda nossa
Finalmente, existe um quinto desafio. O objetivo da análise. Para essa concepção, colonialismo são todas as tro-
Sociologia das Ausências e do procedimento da tradução cas, todos os intercâmbios, as relações, em que urna parte
é a tentativa de criar uma Epistemologia do Sul. Essa mais fraca é expropriada de sua humanidade. Há muitas
epistemologia tem uma exigência que não incluímos sociedades hoje que não podemos entender de verdade sem
muito facilmente em nossas teorias, o pós-colonialismo. essa idéia de privação da humanidade das pessoas.
É a idéia de que a modernidade ocidental tem uma vio- Dessa teoria pós-colonial advém outra coisa impor-
lência matricial - a violência colonial - e nem sequer as tante: é preciso provincializar o Norte. Um autor da Índia,
correntes mais críticas de um pós-modernismo de oposi- Dipesh Chakrabarty, escreveu um livro com esse nome',
ção como as que defendi no passado se dão conta (é uma
autocrítica que faço de minhas primeiras formulações) ' Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe: postcolonial thought and
dessa violência matricial que é o colonialismo. historical difference (Princeton, Princeton University Press, 2000).
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mas acredito que para nós – os de língua espanhola ou por- uma só forma de opressão ou dominação: a do capital-tra-
tuguesa - ele não serve, porque essa idéia de provincializar balho. O FSM nos ensinou que há diferentes formas de
a Europa a essencializa, e muitos dos estudos pós-coloniais opressão e de poder, e que talvez não seja possível deter-
dominantes vêm de autores que pertencem à diáspora do minar, em geral, para todo o mundo, o que é sempre mais
colonialismo inglês. Nosso colonialismo é ibérico, muito i mportante em uma luta. Os que estão nos movimentos e
diferente do colonialismo anglo-saxão. Portugal, ao mesmo nas associações sabem que, às vezes, a prioridade de uma
tempo que centro de um império, foi uma colônia informal luta e de uma forma de opressão não pode ser determina-
da Inglaterra. Em nossas sociedades, o pós-colonialismo se da de maneira geral, mas apenas contextual, nas condições
aplica, em alguns aspectos, tanto aos colonizadores como concretas. Aprendemos bastante com os zapatistas, por
aos colonizados. Por outro lado, o colonialismo ibérico na exemplo: quando, em 11 de março de 2001, chegaram à
América Latina conduziu a processos de independência Cidade do México, eles eram o movimento hegemônico ali,
- as independências foram conquistadas pelos descenden- a contradição hegemônica do México, porque é uma luta
tes dos colonos e não pelos povos originais - que nos obri- indígena que tenta envolver todas as outras formas de luta
gam a dar uma atenção muito especial aos colonialismos no país, que tem ele próprio outras formas de opressão. E
internos. Temos de ver como distinguir nossa história, a quando finalmente conseguem falar no Congresso, quem
do colonialismo ibérico, para descobrir quais são as raízes fala é uma mulher, a comandante Esther, porque os zapa-
de uma luta pós-colonial em nossos países. E esse também tistas querem mostrar uma articulação muito forte entre a
é um desafio complicado. opressão indígena e a opressão das mulheres.
Com isso encerro os desafios que estão diante de Devemos ver de forma mais ampla. Entre os cientistas
nós, e vamos tentar ver que avanços teóricos são possí- sociais, cada um tem sua opção. A minha é que não se deve
veis à luz desses desafios. Não estamos tentando criar ficar tão centrado na estrutura ou na ação e sim na rebeldia
um pensamento de vanguarda; o que estamos fazendo ou no conformismo. As estruturas pertencem à corrente
é compreender o mundo e transformá-lo junto com os fria, que é necessária, mas tem havido até agora uma manei-
movimentos e as associações que compartilham essa ra reducionista de ver esses obstáculos estruturais. Por isso,
paixão conosco. É uma paixão, uma emoção, uma cor- no trabalho eu faço distinção entre seis espaços estruturais,
rente quente que tem de ser introduzida na nacionali- nos quais se geram seis formas distintas de poder. São es-
dade ocidental. Por isso não se pode avançar muito se a paços-tempo, formas de sociabilidade que implicam lugares
prática não avança. mas também temporalidades, duração, ritmos:
O Fórum Social Mundial tem sido muito importante
para permitirmos alguns avanços na teoria. Ajuda-nos a o espaço-tempo doméstico, onde a forma de poder
renovar a teoria social e política em diferentes níveis. é o patriarcado, as relações sociais de sexo;
Um nível é uma concepção mais ampla de poder e de ▪ o espaço-tempo da produção, onde o modo de po-
opressão. Durante muito tempo - e este é também um dos
der é a exploração;
li mites de nossa tradição marxista, que continua sendo ▪ o espaço-tempo da comunidade, onde a forma de
muito importante, mas deve ser objeto de uma ecologia poder é a diferenciação desigual entre quem per-
de outros saberes - fomos obrigados a nos concentrar em tence à comunidade e quem não pertence;
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• o espaço estrutural do mercado, onde a forma de estejam presentes, e saber que uma luta pela igualdade
poder é o fetichismo das mercadorias; tem de ser também uma luta pelo reconhecimento da di-
• o espaço-tempo da cidadania, o que normalmente ferença, porque o importante não é a homogeneização
chamamos de espaço público: aí a forma de poder mas as diferenças iguais.
é a dominação, o fato de que há uma solidariedade Isso não é fácil, temos de tentar também uma re-
vertical entre os cidadãos e o Estado; novação teórica: as sociedades capitalistas têm vários
• o espaço-tempo mundial em cada sociedade, que sistemas, mas os seis espaços diferentes podem ser re-
está incorporado em cada país, onde a forma de po- duzidos a duas formas de domínio hierarquizado. Os
der é o intercâmbio desigual. dois sistemas são o sistema de desigualdade e o sistema
de exclusão. Eles são distintos, e muito freqüentemente
Essas são as seis formas fundamentais de poder. só vemos o sistema da diferença porque o sistema de
Provavelmente há outras, mas patriarcado, exploração, desigualdade é um sistema de domínio hierarquizado
fetichismo das mercadorias, diferenciação desigual, do- que cria integração social, uma integração hierarquiza-
minação e intercâmbio desigual são, a meu ver, instru- da também, mas onde o que está embaixo está dentro, e
mentos analíticos que podem ser vistos como modos de tem de estar dentro porque senão o sistema não funcio-
produção de poder e de saber. Há um sentido comum que na. O sistema típico de desigualdade nas sociedades ca-
se cria em cada um desses espaços-tempo, cada um tem pitalistas é a relação capital/trabalho: os trabalhadores
sua lógica de desenvolvimento. Esse trabalho está expos- têm de estar dentro, não há capitalistas sem trabalha-
to no livro A crítica da razão indolente. Mas o importante é dores, e Marx foi um grande teorizador disso.
que, se estamos tentando fazer uma teoria política nova, Mas há um sistema de exclusão, de domínio hierar-
uma democracia radical de alta intensidade, sabemos quizado, onde o que está embaixo está fora, não existe: é
que isso será somente por meio da democratização de to- descartável, é desprezível, desaparece. A Sociologia das
dos os espaços. Então, minha definição de democracia é: Ausências tenta trazer para o centro de nossa discussão
substituir relações de poder por relações de autoridade o sistema de exclusão. Michel Foucault foide grande im-
compartilhada. É um trabalho democrático muito mais portância, com seus estudos sobre a normalização, para
amplo do que se pensava até agora. ver como se cria exclusão: um sistema em que alguém
A segunda inovação teórica é: necessitamos cons- fica totalmente de fora. Neste momento temos de ana-
truir a emancipação a partir de uma nova relação entre lisar essas duas formas de desigualdade/exclusão, por
o respeito da igualdade e o princípio do reconhecimento da várias razões. Primeiro, porque o que está acontecendo
diferença. Na modernidade ocidental, seja nas teorias hoje - sem que o saibamos muito bem, ainda não teori-
funcionalistas conservadoras seja nas teorias críticas, até zamos - é que cada vez mais gente passa do sistema de
agora não tratamos isso de maneira adequada, porque - desigualdade ao sistema de exclusão; de estar dentro de
sobretudo na teoria crítica - toda a energia emancipató- uma maneira subordinada a estar fora, a sair do contra-
ria teórica foi orientada pelo princípio da igualdade, não to social, da sociedade civil: são os desocupados que não
pelo princípio do reconhecimento das diferenças. Agora têm esperança de voltar a ser ocupados; e os jovens em
temos de tentar uma construção teórica em que as duas milhares de guetos urbanos das grandes cidades.
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O trabalho é atualmente um recurso global sem que detectá-lo, e no Brasil eles têm agora a função de iden-
haja um mercado global de trabalho. Esse é para mim tificá-lo, porque existe uma determinação de que todas
o fator sociológico que está por trás desse intercâmbio as propriedades agrícolas onde haja trabalho escravo po-
cada vez maior entre o sistema de desigualdade e o sis- dem ser expropriadas para a reforma agrária. Imaginam
tema de exclusão, porque essa discrepância permite, de a luta política que isso significa?
fato, que o trabalho deixe de ser um fator de cidadania e Nós também tivemos uma idéia errônea - e por isso
de inclusão (ainda que subordinada) e possa existir com me expressei contra o conceito de progresso -, a idéia
a mais total exclusão. Por outro lado, o segundo fator ao dessa forma linear que fazia pensar que tudo passava
qual também não temos dado importância - devemos re- de uma fase para outra fase melhor. Não: a opressão, tal
construir a teoria por meio dele - é que há formas híbri- como a emancipação, a subjetividade, é um palimpsesto
das que se identificam com elementos de desigualdade em que as formas mais extremas de desigualdade e de
e de exclusão: as duas mais importantes para nós são o exclusão convivem com outras mais inclusivas e menos
racismo e o sexismo. extremas. Por isso é preciso ter uma teoria sociológica,
O racismo é uma forma de exclusão, mas cada vez política, que dê conta dessas especificidades.
mais está no sistema de desigualdade: é a racionalização O terceiro avanço teórico que o FSM nos permite ver -
da força de trabalho, primeiro no colonialismo, depois o primeiro é um conceito mais amplo de opressão, o se-
na emigração. Sabemos que hoje a etnização da força de gundo é essa nova relação entre o princípio de igualdade
trabalho, ou a racialização - importar imigrantes de ou- e o do reconhecimento da diferença - é toda a relação
tras culturas na Europa, por exemplo -, é uma forma de entre inconformismo, rebeldia, revolução e transformação
desvalorizar a força de trabalho, e os trabalhadores imi- social. E aqui há um aspecto importante, a relação entre
grantes compartilham a exclusão com o sistema de desi- ação direta e ação institucional, entre as ações ilegais
gualdade porque trabalham para ele. E no sexismo ocorre pacíficas e as ações institucionais. Entre a legalidade e a
o mesmo: o papel da mulher primeiro na reconstrução ilegalidade temos de reconstruir uma dialética, porque as
da força de trabalho do homem, e mais tarde sua entrada classes dominantes sempre a tiveram: impõem a legalida-
subordinada no mercado de trabalho. de mas nunca a cumpriram, sua hegemonia se baseia em
Esses dois sistemas têm autonomia, mas muitas ve- uma dialética às vezes nada sutil entre legalidade e ilega-
zes se confundem e têm formas extremas de destruição. lidade, entre legalidade e impunidade, entre legalidade e
O sistema de exclusão tem um extremismo que todos nós imunidade. Creio que se queremos pensar a emancipação
conhecemos: foi, por exemplo, o extermínio dos judeus social temos de entrar nisso.
e dos ciganos no Holocausto, e que hoje acontece no Su- A outra questão que o FSM nos traz com bastante
dão, como ocorreu em Ruanda e Burundi. O sistema de força é que, provavelmente, não devemos nos martirizar
desigualdade também tem uma forma extrema: a escra- tanto - porque isso não é muito produtivo - em discus-
vidão. O problema é que as formas extremas continuam sões gerais sobre as vantagens relativas de uma estraté-
existindo, não são parte do passado mas do presente: sa- gia reformista ou uma revolucionária. As duas estão em
bemos hoje que o trabalho escravo é cada vez mais flores- crise em sua forma moderna, é preciso repensá-las, e
cente no mundo. Há escritórios das Nações Unidas para provavelmente necessitamos de outros padrões. Os mo-
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vimentos que se reúnem no FSM se dizem revolucioná- parte dos bens que foram privatizados depois de o FMI
rios, se dizem reformistas ou nem uma coisa nem outra, ter obrigado Moçambique a privatizar tudo. Na África
porque os dois são eurocêntricos, produto do Ociden- do Sul temos também algo semelhante, com a African
te. É preciso criar outra forma de insurgencia. Quando Renaissance, que é de fato a criação de um capitalismo
começamos a ter um conhecimento da prática global, negro, um fenômeno interessante: a idéia de reconstruir
da globalização alternativa, é que nos damos conta de uma classe capitalista racializada para revalorizá-la, pe-
que o que antes acreditávamos ser universal de fato é rante a desvalorização dos imigrantes negros na Europa.
local, é ocidental. Participei de debates que me causa- A outra idéia que nos obriga a trabalhar bastante em
ram grande impacto, porque coisas que eu considerava termos teóricos e políticos é a desestatizaçäo da regulação
um patrimônio universal não o são, e isso, a meu ver, é social. A crise da regulação social ocorre para substituir
algo que também temos de discutir. uma forma de regulação centrada no Estado por outra em
Finalmente, o outro grande desafio em que nos ajuda que o Estado é um sócio. Está se desestatizando, por exem-
o FSM - porque isso é uma reconstrução teórica minha plo, por meio de institutos públicos de regulação. Muitos
e de outros companheiros, mas baseada em toda a práti- paises têm essa característica: os reguladores são regen-
ca que vai emergindo no mundo - é que estamos vivendo tes dos regulados, e isso dá outra idéia da importância do
uma nova forma de internacionalismo, e as teorias sociais Estado hoje. A debilidade do Estado é produzida por um
não estão preparadas para isso: não são internacionais, e Estado suficientemente forte para produzir sua própria
menos ainda internacionalistas; ao contrário. Então, se há debilidade. Essa centralidade do Estado em seu processo
um novo internacionalismo em curso, é preciso se dar con- de descentramento é algo que nos escapa. É necessário um
ta dele, e ver como pode ser contra-hegemônico, é aquilo trabalho teórico muito importante sobre essa questão.
pelo que eu luto. É preciso conviver e entrar em conflito A outra dimensão desse novo universalismo que está
com o internacionalismo da globalização neoliberal. em curso é a idéia de que temos de produzir teoria e prá-
Aqui os movimentos partem de duas idéias que me ticas transescalares, em que as escalas locais se articulem
parecem muito importantes: uma é a desnacionalização com as escalas nacionais e com as globais. Em relação a
do Estado. O papel do Estado é um campo de disputa, isso, a teoria e a prática nos têm demonstrado que, às
mas hoje de fato há um processo muito claro de desna- vezes, as trajetórias são distintas: de alguma maneira,
cionalização: cada vez mais as políticas nos países pa- em 1994, os zapatistas passaram quase diretamente do
recem ser imposições externas. Se realmente o são é às local ao global e depois ao nacional. Outros vão do local
vezes duvidoso, porque as classes dominantes internas ao nacional e depois ao internacional, como é o caso do
se aproveitam dessas imposições para ter uma nova acu- MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)
mulação primitiva, como foi a última forma em muitos no Brasil. Há diferentes trajetórias, mas é muito impor-
países: a privatizadoo de bens públicos. Se vocês vão à tante que consideremos em nosso trabalho teórico a ne-
Africa - provavelmente na Argentina ocorra o mesmo - cessidade de relacionar as diferentes escalas.
vêem isto: como é possível que o presidente de Moçam- E aqui concluo: se esses são os desafios e os avan-
bique seja o homem mais rico da África? Trata-se de um ços que é possível ter em conta, temos de ver como ar-
ex-guerrilheiro da luta anticolonial, que comprou grande ticular essa teoria que estamos tentando desenvolver
68 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 69

com uma nova política, e em um contexto no qual só celência, e hoje a confrontação é entre produzir conheci-
nos restam instrumentos hegemônicos. Estamos em mentos exemplares, sofisticados, e ao mesmo tempo ter
um contexto no qual legalidade, direitos humanos e de se democratizar com o acesso de mais gente ao ensino
democracia são realmente instrumentos hegemônicos; público como um direito. Essa confrontação não tem per-
portanto não vão conseguir por si mesmos a emanci- mitido que a universidade cumpra seus objetivos, o que
pação social; seu papel, ao contrário, é impedi-la. O levou a uma crise de legitimidade. E há uma crise insti-
central em nossa questão é saber se os instrumentos tucional: a idéia de que, por um lado, a universidade foi
hegemônicos podem ter um uso contra-hegemônico. criada na autonomia e, por outro, agora se busca cada vez
Como criar e fazer um uso contra-hegemônico da le- mais que seja conduzida e administrada como uma em-
galidade? Como fazer um uso contra-hegemônico dos presa, com critérios de eficácia que são típicos do mundo
direitos humanos e da democracia? empresarial. Isso está degradando as relações entre estu-
Eu acredito que a ecologia de saberes que lhes pro- dantes e professores, e está também proletarizando toda
ponho vai ter muitas possibilidades de enfrentar esse a comunidade universitária com a criação de um merca-
problema, sobretudo para ultrapassar algumas tradi- do global de serviços universitários. Por isso creio que o
ções funestas e nefastas na teoria e na prática crítica mundo vai caminhando sobre o que, me parece, é a solu-
da modernidade. ção: penso que a crise de hegemonia é irreversível, não
é preciso resolvê-la; o que é preciso resolver é a crise de
DEBATE COMO PÚBLICO legitimidade e a crise institucional, e devemos começar o
quanto antes. A crise de legitimidade tem que ver com a
Sou da Universidade de Fortaleza, no Brasil. Um dos princi- criação de uma universidade de proximidade, de um bem
pais desafios que vimos trabalhando a partir do direito como público que realmente seja acessível, com qualidade, que
fator de mudança social tem que ver com a legitimidade. Em esteja relacionado com os problemas da sociedade onde
nossa intervenção em um projeto de cidadania ativa percebe- está situada. A torre de marfim passou; quando as uni-
mos uma assimetria de pautas que dificulta a busca de legiti- versidades começaram, foi necessário certo isolamento,
midade, porque na universidade temos nossas próprias pau- porque com as estruturas do poder religioso - na Europa
tas e a comunidade tem um ritmo diferente do nosso. Mais sobretudo - era muito importante dizer que o conheci-
além da tradução bilateral - em duplo sentido - da qual o mento que estavam produzindo era neutro, não tinha
senhor fala, queria ter indicações, sinais, de como trabalhar que ver com a sociedade, era uma maneira de defender a
a legitimidade dos saberes da universidade com os saberes e universidade das autoridades religiosas, das inquisições.
as necessidades da comunidade. Mas hoje as condições são absolutamente distintas; ao
A legitimidade é para onde vai hoje meu trabalho contrário, necessitamos de um compromisso político da
sobre a universidade. Paço distinção entre três crises na universidade com a sociedade que a envolve. E por isso
universidade pública contemporãnea: a crise de hegemo- a crise de legitimidade assinalou cinco áreas fundamen-
nia, a de legitimidade e a institucional. A crise de hege- tais: 1) o acesso (muitos países têm de fazer ações afir-
monia tem que ver com o fato de que a universidade era mativas, como sistemas de cotas); 2) uma nova forma
a única instituição na produção de conhecimento de ex- de extensão universitária, que em muitos países está se
70 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 71

concentrando em todas as formas rentáveis de serviços inclui alguma novidade interessante, porque em alguns
universitários para a comunidade; é uma forma com a países, como a Dinamarca, os estudantes podem fazer
qual a universidade pública ganha recursos extras, mas a seu curso ou programa de estudos da universidade em
meu ver é uma perversão do que deveria ser a autêntica um science-shop, ou seja, seu trabalho é de contribuição
extensão, que é solidária com as comunidades; 3) a pes- a essa associação, com um projeto em que os diferentes
quisa-ação: vocês têm uma grande tradição na América conhecimentos estão se unindo. Em meu livro sobre a
Latina, o homem que melhor teorizou a pesquisa social universidade, analiso uma transformação, que me pa-
(um grande amigo e um grande sociólogo), Orlando Fals rece interessante, do conhecimento universitário para o
Borda, quase não passou às gerações mais jovens e era z
que chamo conhecimento pluriuniversitário . E isso está
muito importante nos anos 1960 e 70. A meu ver, não ocorrendo de muitas formas.
passou porque era muito forte a idéia do positivismo
científico que, de alguma maneira, as ditaduras contri-
buíram muito para impor nas universidades; e também
podemos dizer que, em condições de ditadura, o positi- Sou de Ciências Sociais, e minha pergunta refere-se às
vismo foi uma defesa, quase como nos tempos religiosos, múltiplas facetas da opressão que postulava e que têm que
contra as inquisições. Mas os tempos são outros, e às ve- ver também com a idéia de identidade-fortaleza, quando
zes os povos perdem a memória de suas forças, das coi- identidades de raça ou de gênero simultaneamente são cons-
sas inovadoras que fizeram no passado e que poderiam titutivas, mas no desenvolvimento de um movimento social a
assumir de novo; 4) outra é a ecologia de saberes, que é identidade de gênero, por exemplo, fica incluída nos objetivos
a inversão da extensão: é trazer outros conhecimentos mais gerais do movimento. Como é possível interpretar esse
para dentro da universidade; e S) buscar uma nova re- tipo de identidade-fortaleza?
lação entre a universidade pública e a escola pública: há Esta segunda pergunta refere-se, se a entendi bem,
em todos os países uma degradação da escola primária e às situações em que temos projetos e movimentos com
secundária, e as pessoas não se dão conta de quanto es- componentes identitários muito fortes; as identidades as-
sas coisas estão relacionadas; a universidade pública não sumem a forma de certo fundamentalismo e se transfor-
vai se legitimar se não fizer uma aliança estratégica com mam em identidades-fortaleza. Eu faço distinção entre as
o ensino primário e secundário. Em muitos países, a pre- identidades-força e as identidades-ameba; as últimas são
paração de professores do ensino fundamental e médio as que realmente se misturam e procuram se articular com
saiu do controle da universidade, e muitas vezes está em outras identidades. As identidades são identificações em
escolas privadas. Há experiências como as butiques de curso; não devemos ter uma concepção cristalizada de
ciência (science-shops), uma nova forma de pesquisa-ação identidade, e isso é muito importante nos movimentos
em que os projetos não são iniciativas dos universitários porque há conflitos muito fortes. Por exemplo, as discus-
mas de associações cívicas, de cidadãos que não podem sões entre o movimento feminista e o movimento operá-
pagar por serviços caros e buscam as universidades para -
por meio de um trabalho interdisciplinar - resolver pro-
' A universidade no século XXI: para urna reforma democrática e eman-
blemas como aids, emprego, questões ecológicas etc. Isso cipató ria da universidade (São Paulo, Cortez, 2004).
72 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 73

rio são significativas para saber como podemos compa- seus financiadores e não para suas bases comunitárias. E ou-
tibilizar na luta uma perspectiva de gênero nas relações tra coisa ligada ao FSM: chegaram notícias de que estaria se
sociais de sexo com uma luta pelos direitos humanos, formando uma direção do Fórum, e que muitos movimentos
por emprego ou em uma greve. Às vezes há a idéia de são contra certa burocratização do FSM. Como está se pro-
que alguma das demandas identitárias pode pôr em pe- cessando essa espécie de institucionalização do Fórum?
rigo as demandas principais. Penso que deve haver uma Contesto ambas: diz-se que o FSM pode acabar sendo
análise concreta do que é prioritário em certa demanda, uma coisa burocrática e gerenciada pelo Banco Mundial.
mas também que as demandas são mais capazes de criar Essa é uma crítica que se faz e me parece extremamente
potencialidades transformadoras se se combinam, se se injusta. Eu e todos os outros que nos sentimos envolvidos
articulam, se perdem sua pureza, sua identidade total, e com o FSM - não falo em nome do FSM porque ninguém
se abrem para as lutas. Hoje, por exemplo, o movimento pode fazê-lo, ninguém o representa - podemos contestar
feminista, que está muito fragmentado, se divide - e não com diferentes concepções. A meu ver, o que está por trás
me parece uma coisa mim - quando as mulheres negras das críticas mais radicais é essa tradição na esquerda bas-
não se identificam com as mulheres de classe média, e tante dogmática, sempre em busca da luta pura; e as lutas
quando as mulheres indígenas também não se identifi- não são puras, são impuras, têm elementos de perversão,
cam com elas. Estas últimas buscam transformar uma e é preciso ter uma vigilância epistemológica, teórica e po-
agenda que no final possa integrar as diferentes perspec- lítica sobre os movimentos. É preciso distinguir os que re-
tivas de gênero para incluir um componente de classe e chaçam completamente a idéia do FSM dos que o criticam
um componente racial ou étnico; se não os têm, não vão construtivamente. Creio que rechaçar a idéia do FSM vem
conseguir se articular em uma luta social. de diferentes formas e tradições da esquerda. Por exem-
plo, em alguns dos fóruns tivemos coisas interessantes:
críticas muito radicais se transformaram em fóruns alter-
nativos. Ou seja: a idéia de fórum vai ultrapassar as dife-
Sou da Faculdade de Ciências Sociais e queria perguntar renças. Em Mumbai, onde se realizou o IV Fórum Social
a respeito do FSM e todo esse movimento de internacionali- Mundial, formou-se um fórum alternativo que ficou do
zação dos movimentos sociais. Como o senhor vê essa passa- outro lado da rodovia, o Mumbai Resistence, composto de
gem da idéia de movimento social ã "oenegeização" deles, e divisões dos partidos comunistas da Índia que não aceita-
a configuração de uma espécie de "altruísmo internacional" ram o rechaço da luta armada como um instrumento poli-
que produz ressentimento em nível local, por exemplo, ao ver tico da Carta de Princípios do FSM, e criaram seu próprio
uma burocracia do feminismo, do movimento gay, do movi- FSM. De fato, eu também participei desse fórum alterna-
mento de luta contra a aids ou do movimento indígena? Fala- tivo e fui ver o que se passava ali. No Fórum Temático de
se até de uma indústria dessas conferências das Nações Uni- Cartagena sobre Democracia também houve um fórum al-
das. E a suspeita de que essa insurgência, definitivamente, ternativo, de gente que pensava que o FSM estava "oene-
é financiada pelo Estado com as fundações internacionais - geizando": ou seja, a idéia de que os movimentos perdem
até pelo Banco Mundial -, ou seja, a idéia de que o ativismo e autonomia e as ONGs prevalecem. Isso é parte, do proble-
a liderança social acabem passando a responsabilidade para ma, que não é só essa passagem de movimentos para
74 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 75

ONGs, mas sim o papel das organizações muito podero- que é um campo de disputa muito forte. Penso que é uma
sas, internacionais, quase todas do Norte. Em meu livro luta e uma disputa produtiva que é preciso continuar ten-
sobre o FSM, faço uma análise das organizações que com- tando realizar, sobretudo para saber se o FSM vai ser um
põem o Conselho Internacional: mais de 50% vêm da Eu- movimento de movimentos ou se vai se institucionalizar
3
ropa e da América do Norte . Então, o FSM não é mundial. como qualquer outra entidade socialdemocrata; há uma
É preciso fazer um projeto, e minha contribuição - anali- luta e ela é aberta. E há uma tensão entre a Assembléia dos
sando o que fazem as organizações e de onde vêm - é para Movimentos Sociais e a organização do FSM, porque o
mostrar que é necessário impulsionar uma mundialização FSM não produz declarações finais e a Assembléia sim. Às
do próprio FSM, é uma crítica construtiva para poder am- vezes as declarações finais da Assembléia são consideradas
pliar o FSM. E por isso hoje a Comissão de Expansão do no mundo como decisões do FSM, e isso cria uma tensão
Conselho Internacional do Fórum é fundamental, porque interna. Dentro do FSM há gente com diferentes visões:
sabemos que as organizações da África estão ausentes, e as por exemplo, acredito que há uma posição dominante, que
da Ásia também, e, quando vêm da África, são represen- é a idéia de que o Fórum é um espaço de reflexão que não
tantes de organizações ou movimentos que estão articula- deve tomar decisões demais para não expulsar gente. Eu
dos com as grandes ONGs do Norte, que têm seus subsi- vejo nisso um grande perigo, e tenho discutido isso com
diários, suas franquias no Sul; os que estão fora das muitos, porque creio que não devemos transformar o FSM
franquias não vêm. Aqui também aparece a Sociologia das em um partido mundial - o que é impossível - porque o
Ausências, que realmente é preciso produzir no FSM. A poder de inclusão do FSM é algo novo, sua capacidade de
mundialização é um dos desafios; o outro é a democracia agregação é mais rica - mas não compreendo como o FSM
interna: não tenho uma visão de burocratização ou insti- não possa vir a ter, por exemplo, uma posição sobre a dívi-
tucionalização do FSM. E. um campo de disputa. Houve da, a reforma das Nações Unidas, a privatização da água;
um Secretariado Internacional em que o grupo brasileiro ou seja, sobre as questões em que há consenso. Dentro do
teve um poder muito forte, porque foi ele quem o iniciou. FSM deveria haver posições sobre isso, mas dentro do CI
Neste momento, o Secretariado está constituído porbrasi- há diferentes posições, é um campo de luta. A questão do
leiros e pessoas da Índia, mas sabemos que pelas próprias financiamento tem sido muito discutida; um grupo anar-
condições - trazer os indianos a São Paulo é muito difícil quista - creio que argentino - expôs uma análise com os
- não é possível que as tarefas sejam totalmente divididas. detalhes financeiros de todas as organizações que finan-
Há um Conselho Internacional (CI), e um processo pelo ciaram o FSM para deslegitimá-lo. Creio que é impossível.
qual esse CI tentou ter mais poder para configurar o FSM O FSM não é um processo revolucionário autônomo, é
e para que o Secretariado seja mais executivo. Mas a demo- uma tentativa de pensar, de criar uma escala de resistência
cracia interna se articula com a idéia da mundialização. política que se ajuste ã globalização de hoje, porque nossas
Ter democracia interna em um fórum que, apesar do resistências, até agora, eram locais e nacionais. Em 1994
nome, não é mundial é uma questão que também devemos os zapatistas começaram com a idéia de que era necessário
incluir. E depois vem a tensão entre movimentos e ONGs, ter uma resistência global, depois temos Seattle, e em se-
guida aparece o FSM. Então, a idéia de globalizá-lo, como
0 Fórum Social Mundial: manual de uso (São Paulo, Cortez, 2005). se faz isso? Trazendo gente. Mas não há dinheiro que pos-
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sa trazer as pessoas; o problema não é tanto o financia- zuela seja um FSM do presidente Chávez, mas um temáti-
mento mas suas condições, e aqui nem tudo é claro e co hemisférico, que tem de ser acolhido em Caracas, mas
transparente. Na Índia, por exemplo, há organizações com com autonomia. Todas essas questões são, a meu ver, coi-
uma vasta tradição de resistência às fundações ocidentais, sas que estão sendo discutidas. Fez-se um estudo sobre a
e com muito boas razões. A Fundação Ford foi, na Índia, o composição social dos participantes do FSM de 2003 e eu
grande agente de esterilização de mulheres e da "revolução analisei os resultados: 73% têm curso universitário com-
verde". Como as pessoas do FSM na Índia podem estar sa- pleto ou incompleto. Onde estão os oprimidos? É um pro-
tisfeitas se as fundações ocidentais vêm com dinheiro para cesso, e também não conseguimos trazer as pessoas que
esse processo? Compreende-se, e se respeitou isso, mas vivem nos bairros pobres de Porto Alegre. Agora o que falta
em outros países houve casos em que o financiamento não é saber se - porque a idéia não é pura e tem problemas -
criou condições de controle sobre o que se ia fazer. As devemos abandoná-la. Esse é o erro que a esquerda come-
ONGs mais poderosas podem ter uma presença maior. Por teu durante muito tempo. Neste momento não podemos
exemplo, neste último Fórum tentou-se uma nova meto- desperdiçar experiências, é preciso lutar, por isso meu
dologia para que todas as atividades fossem autogestiona- convite aos grupos mais radicais é que entrem e se organi-
das: sabemos que as organizações mais fortes trouxeram zem e permitam um diálogo. Em Cartagena fui a La Bo-
as estrelas e outras pessoas e as hospedaram nos melhores quilla, que é um bairro popular, para trabalhar com as pes-
hotéis. Não vamos acabar com isso de imediato. Hebe de soas que estavam promovendo um fórum social alternativo,
Bonafini - que é uma amiga muito querida - disse e escre- porque diziam que estavam retirando os afrodescendentes
veu: há dois fóruns, o das estrelas e o dos soldados... Real- do Caribe colombiano para atrair o turismo a essas praias,
mente essa tensão existe. Penso que até agora o financia- e eu lhes disse: "Estou contente de estar aqui, mas se vocês
mento não o destruiu, mas é o mesmo que acontece com organizassem isto num lugar com três mil pessoas seria
os partidos: tivemos uma grande influência do PT no FSM, muito mais fácil chamar a atenção da imprensa internacio-
e acredito que o PT não pôde manipular o FSM, que cres- nal sobre a luta de La Boquilla". Claro que há tensões - na
ceu muito mais. Na Índia tivemos três partidos comunis- Colômbia, naturalmente, quanto a conexões ou não com a
tas, dois partidos socialistas e os movimentos gandhianos guerrilha. Tudo é complexo, nada é puro, e por isso é pre-
por trás do FSM. Houve negociações muito difíceis, mas ciso lutar com essas contradições.
finalmente se chegou a um acordo e Mumbai foi um dos
fóruns mais bem-sucedidos que tivemos. Neste momento
está se discutindo no CI como vamos fazer para que orga-
nizações da África e da Ásia possam ir ao FSM sem perten- Me parece que seria bom avançar sobre que atra-
cer às ONGs mais poderosas da Europa e dos Estados Uni- tivos tem o pensamento monocultural, a metonimia, o
dos, para que mais pessoas que não estão conectadas pensamento linear, o conhecimento científico, porque me
possam fazê-lo. E temos agora essa idéia de descentralizar recordo daquela idéia de Rousseau de que os homens nas-
o FSM em 2006, que também é um pouco isso: haverá um cem bons e as instituições os tornam maus, e aqui pare-
na Venezuela, outro na África e outro na Ásia. Sempre são ceria que as ideologias ou a hegemonia fazem mal a um
condições políticas: e também não queremos que na Vene- homem que nasce bom.
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Sobre o atrativo do monoculturalismo, creio que zapa tistas se dizem rebeldes, por exemplo. Como convivem
você tem razão. Quando tentamos fazer uma crítica é essas distintas formas de poder alternativo?
com base na idéia ecológica de que a tradição ocidental Temos ações que surgem como revolucionárias e
pode ser resgatada no que tem de positivo: concepções depois parecem reformistas, como para muitos são os
de Estado, de espaço público, de cidadania, de seculari- zapatistas; ações reformistas que depois parecem re-
zação. São elementos ao mesmo tempo indispensáveis e volucionárias, como é o caso de Chávez; e ações refor-
inadequados se você tem como quadro uma luta global mistas que nem sequer parecem reformistas, como o
que, além disso, deve estar ancorada na realidade cultu- caso de Lula... E vamos ver o que vai acontecer com o
ral de cada país e cada comunidade. Mas a idéia ecológica Uruguai, que é um país com uma tradição belíssima e
é que não se apresente como monocultural, porque o mo- que está em uma situação muito difícil, com um proces-
noculturalismo é sempre uma idéia de força. Realmente, so maravilhoso de movimentos sociais e que realizou
o mundo é diverso, e por isso quando uma idéia mono- uma das conquistas mais importantes ao garantir que a
cultural tem atrativo é porque tem por trás uma força. água não seja privatizada, por meio de um plebiscito e
Quando o cristianismo chegou a este continente tinha uma nova lei constitucional. Há aqui uma criatividade
um atrativo, mas veio com canhões, essa é a força da idéia enorme, e o movimento indígena tem uma importân-
de força. Hoje, quando Condolezza Rice diz que vai impor cia que não é suficientemente respeitada nas teorias da
a democracia em todos os países, pode criar uma situação esquerda. Trabalho muito na América Latina há vários
colonial em um país como o Iraque para impor a demo- anos e me choca como os movimentos comunistas, so-
cracia. Seria interessante para os doutorandos atuais fa- cialistas, estão tão distantes das lutas dos movimentos
zer uma distinção entre os missionários do século XVII e indígenas. Meus colegas socialistas do Equador me di-
os missionários do Banco Mundial da democracia e dos ziam que "os indígenas são racistas às avessas e deve-
direitos humanos: os do século XVI e XVII teriam vanta- mos nos defender disso"; claro que é preciso levar em
gens porque, pelo menos, aprendiam as línguas, estuda- conta o Movimento Pachakutik' com todas as divisões
vam o lugar e os costumes - para controlar, claro - mas
os de hoje impõem suas leis e vão embora.
"O Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik -Novo Pais
(MUPP -NP) se formou em 1995, numa década marcada pela emer-
gência do movimento indígena e por sua configuração como prin-
cipal ator político do Equador. Seus eixos centrais eram a oposição
Sou da Faculdade de Ciências Sociais, também, e fiquei ao neoliberalismo e a construção de uma alternativa nacional que
pensando no que o senhor dizia sobre os movimentos que se possibilitasse uma forma diferente de desenvolvimento econõmi-
proclamam reformistas ou revolucionários, e como naAméri- co, político, social e cultural, centrado no ser humano e na defesa
da vida. Desde 1996, o Pachakutik participa de eleições para al-
ca Latina há diferentes formas de alternativas políticas e mo-
caides (presidentes de câmaras municipais que exercem também
vimentos sociais: o zapatismo com a autonomia e sem aspirar
o Poder Executivo), prefeitos, vereadores, deputados provinciais
ao poder; outros com outra relação com o Estado, além de di- e nacionais" (verbete escrito por Alejandra Santillana Ortiz, em
ferentes opções políticas, como o caso da Venezuela, Uruguai Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do
etc. Alguns se dizem reformistas, outros revolucionários, e os Caribe [São Paulo, Boitempo, 20061, p. 887-8). (N. E.)
80 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 81

internas do movimento indígena e a globalização do mundo atual. Em que lógica você está pensando? Uma lógica
"que se vayan todos"' argentino. Penso que é um cam- dialética, ou uma mais ligada ao hermenêutico, ao paradoxal
po no qual é preciso trabalhar, também neste país: uma ao estilo desconstrucionista, ou uma nova lógica que seria ne-
das coisas que mais me interessam é como se faz arti- cessário incorporar a estes novos tempos?
culação política, a distância entre a vitalidade do movi- Creio que hoje uma das coisas mais interessantes
mento social e um sistema político que não muda. Na epistemologicamente é ver o impacto das teorias da
Argentina, a gente podia imaginar que depois da crise complexidade: as teorias do caos e a lógica informal. Isso
de 2001 haveria uma mudança total do sistema políti- está mudando todos os conceitos anteriores da lógica
co; o que estou observando é que, ao contrário do que dialética, hermenêutica, analítica. Está criando outra
aconteceu na Itália com as mãos limpas da corrupção, maneira que, a meu ver, tem uma potencialidade enor-
aqui não há realmente articulação. Há uma criatividade me de entender um pouco melhor o mundo em termos
enorme do movimento social - que provavelmente está políticos e epistemológicos. Por exemplo, a questão do
em refluxo, não sei - e uma grande dificuldade na arti- construtivismo de que se falou era um dos debates da
culação política, porque os partidos não mudam, e sem razão indolente. Nós no Ocidente temos debates furio-
isso podemos estar criando duas inércias paralelas que sos, enormes, que no contexto do mundo não significam
seriam muito prejudiciais a um processo de democra- quase nada, são indolentes, por exemplo entre realismo e
cia de alta intensidade. Ou seja: uma inércia dos movi- construtivismo. Nas duas posições há matizes enormes,
mentos que não conseguem se multiplicar e acumular porque em todos os movimentos sociais nada pode ser
energia transformadora, e uma inércia dos partidos totalmente construtivista: quando a polícia vem e nos
que continuam no poder mais ou menos oligárquico, espanca, qual é a construção social da polícia? Há uma
mais ou menos dominante, que sempre tiveram. É uma dor física no corpo, o real se opõe a nós, e então não po-
questão complexa. demos ter uma atitude construtivista total diante das
ações repressivas, temos de ter o que chamamos hoje um
realismo pragmático. Há representação real nos termos
em que a realidade se opõe, mas não temos uma maneira
Sou da Faculdade de Ciências Sociais. A questão da dife- imediata de conhecer a realidade, e por isso somos sem-
rença nos leva ao problema das lógicas às quais recorrer para pre construtivistas. O que não é possível é ser descons-
interpretá-la e para enfrentar os desafios ou as novidades do trutivista: essa é uma luta muito grande minha com as
tradições filosóficas da desconstruçäo, porque, até certo
"Fora todos" poderia ser a tradução. Em 21 de dezembro de 2001, limite, é um produto típico da teoria crítica ocidental. O
mais de um milhão de argentinos saíram às mas num protesto indig- problema é que não podemos desconstruir até o ponto de
nado contra a politica neoliberal, que provocou recessão, desemprego desconstruir a capacidade de resistência. Então, toda a
e pobreza. Foi uma espécie de "Basta!" do povo contra todos os polí- desconstrução de alguém, de grupos, de movimentos ou
ticos de todos os partidos, burocratas, corporações multinacionais,
de teorias que queiram reconstruir a emancipação social
FMI, Suprema Corte etc. "Que se vayan todos!" foi o Lema do protesto
tem de ter um elemento construtivista e realista, um ele-
que derrubou quatro presidentes em duas semanas. (N. T.)
mento de desconstrução e um elemento de reconstrução;
82 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Derrida demonstrou muito bem nos últimos livros sobre


Marx como a desconstrução o deixava sem resistência, e
o mesmo aconteceu com Foucault. Penso que temos de
sair desses debates se quisermos realmente enfrentar a
questão do sofrimento humano ou da resistência às cau- Capítulo III
sas do sofrimento humano.

Para uma democracia


de alta intensidade
Quando o senhor falou em pensar a Sociologia do Sul
e trabalhar com outra dinâmica que não seja a da oposição,
me ocorreu pensar no estruturalismo, que justamente pro-
põe a diferença em relação à oposição. A sua proposta leva
em conta a diferença? As perspectivas epistemológica, teórica e política estão
Com respeito à questão do estruturalismo, não estou muito conectadas nesses desafios que identificamos para
dizendo que não seja uma discussão importante. Prova- a reconstrução de uma utopia crítica, para passar de uma
velmente é indolente, porque para mim hoje o mais eficaz teoria crítica monocultural a outra multicultural, para
é a distinção e o trabalho de como criar subjetividades distinguir entre objetividade e neutralidade, para passar
rebeldes contra a banalização do horror, que cria subjeti- da problemática estrutura/ação à problemática ação con-
vidades conformistas e resignação. Mas, claro, eu mesmo formista/ação rebelde, para analisar a questão do pós-
faço distinção entre seis espaços estruturais, então há a colonialismo, e também a dos dois sistemas de domínio
presença do estruturalismo. É um debate que podemos hierarquizado que existem no capitalismo. Dessas pro-
ter: se o estruturalismo trabalhou bem os dois princípios blemáticas surgiam alguns desafios importantes para a
da igualdade e do respeito às diferenças. A meu ver, não: teoria: uma concepção ampla do poder e da opressão; os
o estruturalismo trabalhou bem o princípio da igualdade, seis espaços-tempo estruturais e suas formas de poder; a
mas não trabalhou bem o princípio do reconhecimento equivalência entre o princípio de igualdade e o princípio
da diferença. Esse é um debate teórico importante que de diferença, quando falamos dos sistemas, o da desi-
é preciso discutir no contexto desses outros debates aos gualdade e o da exdusão, assim como a mescla que exis-
quais os convido. te entre os dois. Nós nos referimos às formas de ação e,
continuando, vamos nos concentrar na questão da ação
institucional e da ação direta. Por outro lado, nos referi-
mos também à emergência do Fórum Social Mundial e à
necessidade de um novo internacionalismo descentrali-
zado, multicultural.
Essas são as exigências teóricas das quais viemos, e
devemos ver quais são as conseqüências politiéas e quais

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