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Estamira, dentro do documentário, se define como “perturbada, mas lúcida”.

Sua
filha, eventualmente, fala que a mãe “não é louca, só não é 100%”. Essas colocações,
que trabalham com duas ideias que são, a priori, dicotômicas, criam um estranhamento
no outro, fugindo de um padrão esperado. A fuga desse padrão acarreta em diversas
situações vividas, ou melhor, sobrevividas por Estamira.
Os anos 80 e 90 no Brasil foram de suma importância para uma discussão sobre
a reestruturação psiquiátrica no país. A Declaração de Caracas foi um norteador para tal
mudança. Em 2001, por exemplo, nasce uma lei que protege pessoas portadoras de
transtornos mentais. Contudo, mesmo com anos de luta, persistem reflexos daquela
época que ainda estão contidos ao nosso redor. Existe um desafio dentro da sociedade
de conviver com o que é diferente, de entender que muitos podem trabalhar, podem ser
harmônicos, podem ter seu lugar.
Ainda não se tem local de fala para essas pessoas, muito menos se tem posições
de equidade para integrá-las à sociedade (visto que muitas das “soluções” se baseiam
em afastá-los da sociedade, e não reintegrá-los). O filme de Estamira se mostra como
um ponto fora da curva. Não só o filme dá voz a Estamira, como demonstra como a
solução de afastamento só trouxe dor à família, seja pela própria Estamira internando a
mãe, seja a internação da Estamira pelo filho. A filha mais velha de Estamira diz, sobre
isso, que “é melhor ela viver 2 anos livre do que viver 5 anos presa na clínica. Ela fica
mais feliz.”
Michel Foucault mostra que o biopoder dá permissão ao estado para decidir
quem vai morrer e quem vai viver. O racismo é, de acordo com Foucault, um elemento
essencial para fazer essa escolha. Para além disso, o poder foucaultiano carrega, em
essência, uma brutalidade que influencia a subjetivação do indivíduo (FOUCAULT,
2002). Dito isso, Estamira, mulher negra, foi perdendo parte de seu ser por conta de
abusos de poder masculinos (como os estupros que sentiu, como as traições que
enfrentou, seja do marido, seja do filho), e viveu, também, uma institucionalização do
seu ser quando foi internada. A complexidade da situação é entender que, mesmo que
Estamira tenha perdido parte de seu eu no processo, ela continua sendo, continua
existindo, continua Estamira. Ela persiste e quer persistir. Mas seu querer pouco parece
importar para a estrutura biopolítica, para o racismo e o machismo, para ode à
destruição do que não segue um padrão esperado.
Estamira sobreviveu e o filme não só mostra isso, como deixa com que ela fale
disso e de tudo o mais que ela quiser. A voz para uma pessoa como ela ajuda a
normalizar o dito “esquisito”. Ou, ao menos, ajuda num âmbito social e político a
enxergar o diferente como vivo, como sujeito, como pessoa que pode se reintegrar na
sociedade, que merece respeito e oportunidades, que merece uma vida do lado de fora.
Coisas como “direitos humanos” são o básico, mas parecem ser esquecidos quando se
trata de pessoas que “não são 100%”. A exclusão é um caminho mais fácil e cruel que
não deve ser tomado. Estamira é um exemplo disso.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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