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sobre as modalidades e o “ser” do silêncio, o seu estatuto na conversação,

a mudez autista, o mutismo da análise ou a “dissolução da linguagem


a
no horror” até à “estreita conveniência” entre o silêncio e o sofrimento,
o silêncio e a agonia.»
Liberation, Paris

David Le Breton é doutor em Antropologia e professor na Universidade de


Estrasburgo.

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DAVID LE BRETON

DO SILÊNCIO

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INSTITUTO
PIAGET
«Se tivesse de morrer agora, diria: “E tudo?”
E: “Não percebi muito bem.” E ainda: “Foi um
bocado barulhento”.»
KurT TucHOLSKY

Título original: Du silence


Autor: David Le Breton
O Editions Métailie, 1997
Colecção: Epistemologia e Sociedade, sob a direcção de António Oliveira Cruz
Tradução: Luís M. Couceiro Feio
Capa: Dorindo Carvalho

Direitos reservados para a lingua portuguesa:


INSTITUTO PIAGET - Av. João Paulo II, lote 544, 2.º - 1900-726 LISBOA
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Fotocomposição: M. G. Carmo Pereira


Montagem, impressão e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Depósito legal: 131 667/99
ISBN: 972-771-093-X

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INTRODUÇÃO

«Não podemos imaginar um mundo onde apenas existisse a


palavra, mas não podemos imaginar um mundo onde só
existisse silêncio.»
Max PICARD, Le monde du silence

ASPIRAÇÃO AO SILÊNCIO
O único silêncio que a utopia da comunicação conhece é o silêncio
da avaria, da falha da máquina, da paragem da transmissão. É mais
um cessar da tecnicidade do que o aparecimento de uma interioridade.
O silêncio passa então a ser um vestígio arqueológico, um resquício
que ainda não foi assimilado. Anacrónico na sua manifestação, produz
o mal-estar, a tentativa imediata de o estrangular como um intruso.
Sublinha os esforços que ainda falta fazer para que o homem possa
finalmente aceder ao estado glorioso do homo communicans. Mas,
simultaneamente, o silêncio ressoa como uma nostalgia, apela ao de-
sejo de uma escuta incessante do murmurar do mundo. A embriaguez
de palavras inviabiliza o repouso, o prazer de pensar finalmente o
acontecimento e falar dele, marcando o tempo ao ritmo de uma con-
versa que progride a passos humanos, que finalmente se detêm diante
do outro. E o silêncio, antes reprimido, adquire então um valor infi-
nito. Por vezes, é grande a tentação de opor à «comunicação» profusa
da modernidade, indiferente à mensagem, a «catarse do silêncio»
(Kierkegaard) à espera que seja plenamente restaurado o valor da
palavra.
Cada vez percebemos menos este mundo explicado por inu-
meráveis discursos. A palavra, que a multiplicidade dos meios de
comunicação pretende libertar, acaba por se perder na profusão. Por
fim, impõe-se a melancolia do comunicador, sempre forçado a retomar

1!
uma mensagem perdida na esperança de que a próxima terá final- gulag. Norbert Wiener é um dos construtores deste paradigma que,
mente eco. Quanto mais a comunicação se alarga, maior é a tentação pouco a pouco, transtorna as sociedades ocidentais. Wiener pretende
que gera a calar-se, ao menos por um instante, para escutar o agitar lutar contra a desordem provocada pelo homem e pelo mundo, define
das coisas, ou para reagir à dor do acontecimento antes que este seja a cibernética como «uma ciência do controlo e da comunicação». Num
substituído por outro, imediatamente substituído por outro, e depois texto inicial, longamente estudado por Philippe Breton (1995),
ainda outro... numa espécie de sideração do pensamento. Dilúvio de Wiener sugere que as relações entre os componentes de um objecto são
emoções familiares cuja obsolescência acaba por se tornar tranqui- mais importantes do que o seu respectivo conteúdo. O mundo é sus-
lizante por causa do modo como elas são fornecidas, mas que é inquie- ceptível de ser interpretado em termos de informações e de comuni-
tante em relação ao estatuto de uma determinada palavra que con- cação. O sentido é secundário em relação à estrutura, é um efeito da
dena ao esquecimento tudo aquilo que designa. A saturação da palavra organização. O objecto torna-se transparente, sem profundidade, e
induz o fascínio do silêncio. Kafka di-lo à sua maneira: «As sereias resolve-se completamente nas relações que lhe dão forma. Para
têm agora uma arma mais fatal ainda do que o seu canto, o seu silên- Wiener, tal constatação é igualmente aplicável ao mundo mecânico ou
cio. E embora tenhamos dificuldade em imaginar tal coisa, alguém às sociedades humanas. A informação e a comunicação são conceitos
talvez tenha quebrado o encanto das suas vozes, mas o do seu silêncio, essenciais. Apoiando as suas reflexões numa metafísica da perda gra-
nunca.» dual das energias, Wiener passa do registo da formulação científica ao
O imperativo de comunicar é uma acusação contra o silêncio, bem dos valores: a informação é contrária à desordem, a comunicação é um
como uma erradicação de toda a interioridade. Não deixa que sobre remédio face à entropia que grassa no mundo. Wiener escreve logo a
tempo para reflexão ou lazer porque o dever da palavra o leva. O pen- seguir à guerra, «depois de Bergen Belsen e de Hiroxima», como ele
samento exige paciência, deliberação; a comunicação é sempre feita com próprio afirma. Os cientistas recebem a incumbência de reforçar o
urgência. Transforma o indivíduo em interface ou retira-lhe os atri-
domínio das sociedades por máquinas, de suprimir o poder, sobretudo
butos que não estão imediatamente relacionados com as suas exigên- o do aparelho do Estado, uma vez que ninguém sabe em que mãos
cias. Na comunicação, no sentido moderno do termo, já não há lugar
poderá cair. As máquinas de comunicar também participam na
para o silêncio, há uma coacção da palavra, de ser obrigado a falar, de redução da entropia, opõem à desordem a réplica permanente da infor-
dar testemunho, porque a «comunicação» é tida como a resolução
mação, a palavra significativa. As ideologias modernas da comuni-
de todas as dificuldades pessoais ou sociais. Neste contexto, o pecadoé o
cação prosperam sobre este pano de fundo histórico, a memória (sem
comunicar «mal» e, ainda mais repreensível, mais imperdoável, é ficar
dúvida esquecida pelos seus actuais protagonistas) do segredo que pre-
calado. A ideologia da comunicação assimila o silêncio ao vazio, a um
sidiuà shoah e à necessidade de nunca deixar que o silêncio se insta-
abismo no seio do discurso, não compreende que, às vezes, é à palavra
que forma a lacuna do silêncio. Mais do que o ruído, o silêncio é o lasse. Mas há palavras e palavras, silêncio e silêncio. Além de que os.
media, ao escolherem dar prioridade a determinados acontecimentos,
inimigo reconhecido do homo communicans, a sua vocação. Implica,
na verdade, uma interioridade, uma meditação, uma distância assu-
deixando outros na sombra, não falam necessariamente daquilo que
mida em relação à turbulência das coisas, uma ontologia que não tem seria essencial para o público e esclarecem factos sem sempre darem a
tempo de aparecer, se não estivermos atentos a ela. palavra a testemunhas ou aos implicados nas suas consequências.
Confundem o mundo com o discurso que lhes diz respeito. O impera-
tivo de dizer «tudo» dissolve-se na ficção de que tudo foi dito, mesmo
O IMPERATIVO DE DIZER «TUDO» se deixar sem voz aqueles que teriam coisas diferentes a dizer, ou teriam
escolhido um discurso diferente. Dizer não é suficiente, nunca é sufi-
Nos anos do pós-guerra, a comunicação moderna estabelece os ciente, se o outro não tiver tempo para ouvir, para assimilar, para
seus princípios sobre os escombros do nazismo e sobre a vitalidade do responder.

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O SILÊNCIO IMPOSSÍVEL DA COMUNICAÇÃO palavra desacredita-se ou enfraquece perante o imperativo de dizer,
de dizer tudo, de que nada fique por dizer, de que reine uma
A modernidade é a chegada do ruído. O mundo faz ressoar, cons- transparência impecável que não possa deixar em suspenso nenhuma
tantemente, instrumentos técnicos cujo uso acompanha a vida pes- zona de segredos, nenhuma zona de silêncio. O homem virado do
soal ou colectiva. Mas a palavra, em si mesma, não tem fim, trans- avesso, como uma luva, uma vez que exteriormente ele é totalmente
mitida por tantos porta-vozes. Não aquela sempre renascente e igual a si mesmo. A proliferação técnica da palavra torna-a inaudí-
contente da comunicação quotidiana com os nossos próximos, com os vel, intermutável, desqualifica a sua mensagem ou exige uma atenção
amigos ou com desconhecidos com quem se estabeleceram contactos, especial para a ouvir, por entre os outros sons que a envolvem ou a
essa permanece e dá corpo à sociabilidade. Mas há outra palavra que confusão de sentidos das nossas sociedades. A dissolução mediática
muda de estatuto antropológico: a dos media, das redes, dos tele- do mundo conduz a um ruído ensurdecedor, a uma equivalência gene-
fones, dos telemóveis, etc. Esta prolifera, já não sabe calar-se e corre ralizada do banal e do horror que anestesia os sentidos e couraça as
o risco de deixar de ser escutada. Invasora e tranquilizante, institui sensibilidades. O discurso dos media é menos pródigo em sentido do
uma comunicação baseada no único contacto em que a informação é que uma voz tagarela e sem consequência, está sempre esbaforido pela
secundária, onde é mais importante manifestar a continuidade do rapidez da sua elocução e da sua desactualização, dispensando, sem
mundo. Como a música, ela transforma-se em elemento ambiental. dar por isso, um disfarçar do acontecimento. A hemorragia do dis-
Barulho regular e sem consequência no seu conteúdo, essencial ape- curso é causada pela impossibilidadede suturar o silêncio. A comu-
nas na forma. A sua mensagem não deixa de recordar que o mundo nicação, que tece interminavelmente os seus fios na malha da trama
existe ainda e sempre. A «comunicação», enquanto ideologia moder- social, não tem lacunas, apresenta-se no modo da saturação, não sabe
na, é uma confirmação reiterada dos indivíduos nas suas posições calar-se para poder ser ouvida, falta-lhe o silêncio, que lhe daria um
recíprocas de locutores e de receptores, uma maneira de colocar limi- peso, uma força. E o paradoxo deste fluxo interminável é que ela
tes que garantam a uns e outros o modo de um serviço prestado: «Tu encara o silêncio como sendo o seu inimigo principal: não há espaços
estás aqui, tu existes, uma vez que me ouves e eu existo, uma vez que vazios na televisão ou na rádio, por exemplo, é impossível deixar
falo contigo.» O teor da mensagem é muitas vezes acessório. Resulta passar, por batota, um instante de silêncio, impõe-se sempre um fluxo
daqui o paradoxo, referido por Philippe Breton, de uma «sociedade permanente de palavras ou de música, como que para esconjurar a
altamente .comunicante e fracamente coincidente» (1995, 12). Uma ameaça de ser finalmente escutada.
palavra sem presença permanece sem efeito concreto sobre um Esta palavra sem fim não tem réplica. Não entra na ordem da con-
ouvinte sem rosto. versa, prefere ocupar o terreno sem se preocupar com respostas. É certo
Os media ou as redes dão a cada pessoa a sensação de se lhes diri- que não é, necessariamente, um monólogo, mas tende, por vezes, a ser
girem familiarmente. São uma interrupção permanente do silêncio da uma forma palavrosa de autismo. Lucien Sfez propõe, para a caracte-
vida, o seu ruído ocupa o lugar das conversas antigas. A sua eterna rizar, a noção de tautismo, sublinhando a dimensão tautológica (a
litania recorda que o mundo continua o seu caminho, com o seu confusão entre o facto real e a sua representação) e fechada do discurso
cortejo de tragédias e de tranquilidade, mas que ainda não temos (Sfez, 1982). Os seus protagonistas são anónimos e podem mudar
muito com que nos preocupar. O verdadeiro drama seria o silêncio entre si, mesmo quando, provisoriamente, lhes conseguimos atribuir
dos media, uma avaria generalizada dos ordenadores, em resumo, um rosto. Uma palavra faz-se simplesmente escutar, falta-lhe o con-
um mundo entregue à palavra dos mais próximos, só com avaliações teúdo mundano, tanto na sua emissão como na recepção, não conhe-
pessoais. A modernidade transforma o homem em lugar de trânsito cendo, portanto, nem a reciprocidade nem o silêncio que alimentam
destinado a receber uma mensagem infinita. Impossível não falar, qualquer conversa. Palavra sem presença e, assim, sem a preocupação
impossível calar, a não ser para escutar... A força significante da de uma voz de resposta e de uma atenção à escuta da mensagem.

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O ELOGIO DA PALAVRA silêncio, mas também em sentido inverso, porque o significado de uma
palavra nunca aparece como absoluto, mas na forma em que faz reagir
Se a modernidade leva a mal o silêncio, não devemos, contudo, aquele que escuta.
esquecer nunca que todas as intenções ditatoriais começam por matar
a palavra. Uma e outra procedem da redução da cidadania plena. Mas
não as devemos colocar lado a lado. Os efeitos não são os mesmos. NÃO EXISTE PALAVRA SEM SILÊNCIO
O palavreado não tem a mesma virulência da faca ao peito. Se o silên-
cio alimenta muitas vezes o sentido quando testemunha uma vontade Pensar o mundo é torná-lo inteligível, graças a uma actividade
essoal no encaminhamento da conversa, quando, imposto pela violên- simbólica que tem o seu terreno de eleição no uso apropriado da língua.
cia, passa a encarnar uma paralisação do sentido, um deslocamento da O mundo desvenda-se através da linguagem que o nomeia. O pensa-
ligação social. A ditadura esmaga a palavra à nascença, a moder- mento é uma matéria de palavra cuja função é relatar os acontecimen-
nidade fá-la proliferar na indiferença, depois de a ter esvaziado de sen- tos que assinalam constantemente o fio da existência ou das coisas em
tido. Se lutamos constantemente contra as veleidades, sempre presentes, que ela se enreda. Fora da linguagem é impensável ou, pelo menos,
da primeira, somos, por outro lado, mergulhados no meio ambiente da inacessível, fechado dentro do indivíduo, que não dispõe dos meios para
segunda. A única saída indiscutível, elementar, no sentido em que o poder formular ou transmitir aos outros. O pensamento procura num
fornece uma base, é a de uma partilha entre o silêncio e a palavra, uma fundo inesgotável de imagens, ultrapassa inegavelmente a linguagem,
ética qualquer de conversação, que sabe claramente que qualquer mas, para se exprimir, tem de voltar a ela. As palavras desenham o sig-
enunciado suscita uma resposta, qualquer afirmação, a ponderação da nificado do mundo, formam uma grelha que permite a sua compreen-
sua pertinência, qualquer diálogo, uma deliberação mútua. A restau- são, a sua apreensão, um utensílio para o tornar comunicável, mesmo
ração do sentido traz necessariamente consigo a da palavra que, por se a sua influência for limitada, por vezes desajeitada, porque o mundo
sua vez, arrasta a do silêncio. Se o empolamento do discurso, na comu- está em constante movimento e recusa, pela sua complexidade e o seu
nicação moderna, confere ao silêncio uma atracção crescente, este úl- claro-escuro, qualquer tentativa de o fixar a conceitos unívocos. Mas
timo, tão assustador em outros contextos, é mortífero face à violência transformar a linguagem ou a actividade simbólica em geral, no con-
ou à ditadura. Torna-se então numa figura da cumplicidade ou da teúdo do pensamento ou no seu modo de comunicação, não significa
impotência. Noutros termos, o significado da palavra ou do silêncio é opor-lhe o silêncio da mesma forma que o vazio se distingue do pleno.
apenas percebido através das circunstâncias que lhes dão origem. «Nem é mesmo perseguir a quimera de um pensamento puro, sem lin-
A palavra é o único antídoto para as múltiplas formas de totali- guagem», escreve Joseph Rassam (1988, 21). O silêncio e a palavra não
tarismo que procuram reduzir a sociedade no silêncio, para impor uma são contrários, um e outro são activos e significantes, o discurso
mão de ferro sobre a circulação colectiva do sentido, neutralizando qual- não pode existir sem a sua ligação mútua. O silêncio não é um resíduo,
quer pensamento. A deliberação comum cuida da vitalidade dos laços uma escória a ser rejeitada, um vazio a preencher, mesmo quando a
sociais e liberta das imposições ou dos aspectos mortíferos do silêncio. preocupação do demasiado cheio da modernidade se esforça incansavel-
Calar seria consentir, seria reduzirmo-nos ao mutismo. Se o subtrair- mente por erradicá-lo para induzir uma permanência sonora. Da
mos ao silêncio num enunciado ou se o retirarmos à palavra forçando-a mesma forma que uma mímica ou um gesto, ele não incarna uma súbi-
ao silêncio, o mesmo efeito levará ao descrédito do sentido, quer seja pela ta passividade da língua, mas sim um registo activo do seu uso.
proliferação ou pela mordaça. Não existe palavra sem silêncio, mas a Participa na comunicação no mesmo plano da língua e das manifes-
ideologia moderna da comunicação não suporta este facto. Cada palavra tações do corpo que a acompanham. A palavra tem mesmo mais difi-
proferida tem a sua parte de ruído e a sua parte de silêncio e, de acordo culdade em passar sem o silêncio do que o inverso.
com as circunstâncias, soa com mais ou menos força segundo a dosagem Se linguagem e silêncio se misturam na expressão da palavra,
de um ou outro. O sentido pode ser abafado pelo ruído e valorizado pelo podemos dizer também que todo o enunciado nasce do silêncio interior

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do indivíduo em permanente diálogo consigo mesmo. Todaa palavra, próxima afirmação com a sua ressonância. Quando a conversa acaba e
com efeito, é precedida por uma voz silenciosa, por um sonho acordado cada um se separa, o silêncio que se instala está impregnado do
repleto de imagens e de pensamentos difusos que estão sempre actuantes devaneio interior, do eco das coisas que foram ditas.
no nosso íntimo, mesmo quando o sonho nocturno lhes perturba as
coordenadas; mistura de fantasmas e de pensamentos claros, de lem-
branças ou desejos, essa voz enfeita a linguagem e fornece-lhe, ao ENCAMINHAMENTO
mesmo tempo, o seu terreno fértil. Toda a palavra se alimenta neste
lugar sem espaço nem tempo a que, na falta de melhor explicação, No primeiro capítulo vamos tratar do estatuto do silêncio na con-
chamamos a interioridade do indivíduo. Este mundo caótico e silen- versa. A palavra que se troca alimenta-se de pausas, de suspensões
-cioso que nunca se cala, carregado de imagens, de desejos, de medos, de que penetram naquilo que se quer dizer e que se torna inteligível
emoções minúsculas ou avassaladoras, prepara uma formulação que para quem escuta. Uma conversa é um passeio mútuo, por um caminho
surpreende por vezes quem a emite. Se o pensamento não existe sem a de linguagem, não é concebível sem o silêncio que lhe faz companhia e
linguagem, não seria capaz de gerir a economia do silêncio que o anun- evita que os protagonistas se afoguem num fluxo incontrolado de
cia. «Aquilo que nos faz acreditar num pensamento que existiria por si palavras. Os usos sociais e culturais conferem à palavra e ao silêncio
próprio antes da expressão», escreve M. Merleau-Ponty, «são os pen- uma alternância que varia de lugar para lugar. Surgem mal-entendi-
samentos já elaborados e já expressos de que nos podemos lembrar dos quando os tempos de pausa e os ritmos de conversa variam entre
silenciosamente e através dos quais temos a ilusão de uma vida inte- os indivíduos presentes. As opiniões recíprocas tornam-se então
rior. Embora, na realidade, este pretenso silêncio tenha o ruído das azedas, uns evocando a «lentidão» do seu interlocutor, enquanto outros
palavras, esta vida interior é uma linguagem interior» (Merleau- se queixam da sua «fluência», que nem deixa espaço para uma pausa.
'-Ponty, 1945, 213). Na verdade, cada um e, mais além, cada grupo social, cada cultura,
* Sea possibilidade da linguagem caracteriza a condição humana e atribui um estatuto especial à pausa e ao silêncio na conversa. Nas
fundamenta os laços sociais, o silêncio, esse, preexiste e perdura no nossas sociedades surge o embaraço quando o silêncio se instala num
labirinto das conversas que, inelutavelmente, começam e acabam pela grupo ou entre duas pessoas. «Vai um anjo a passar», costuma-se
necessidade de se calarem. A palavra é um fio tênue que vibra por sobre dizer, para sublinhar o facto e ultrapassá-lo de forma risonha, que per-
a imensidão do silêncio. As palavras enraízam-se neste solo, são o mita o retomar da conversa. Mas há outras sociedades que não dão
rizoma que se alimenta deste húmus, escapam à profusão de sentidos uma importância tão grande à palavra dita, bastando a presença
por uma escolha de linguagem que poderia ter sido outra. E acontece mútua e um uso moderado da linguagem. Do estatuto social da
que uma palavra, proferida a despropósito, inútil, se separa de si palavra e do silêncio decorrem as figuras do «calado» e do «palrador»,
própria na sua insignificância e soa então como uma deformação do transgressões por defeito ou por excesso a um regime comum da lin-
silêncio, uma contrariedade à sua exigência que dá justamente o seu guagem (capítulo 1).
prémio à linguagem. O silêncio questiona-os limites de qualquer A questão da parte que o silêncio tem na conversa implica os dife-
palavra, recorda que o sentido está contido entre barreiras estreitas em rentes significados do silêncio em relação aos outros. Trata-se então das
face de um mundo inesgotável, que está sempre atrasado em relaçãoà figuras políticas do silêncio, numerosas, das quais apenas o contexto da
complexidade das coisas. Apesar da impaciência em compreender, em enunciação esclarece o sentido, porque o silêncio, por si só, não tem
nada deixar por cuidar, o homem acaba sempre por esbarrar com o significado, sendo a sua ambiguidade um utensílio de múltiplos usos
silêncio. Numa conversa, o silêncio é sempre a conclusão da palavra: na vida corrente: controlo da comunicação através de um maneja-
quando esta última sai dos lábios de quem fala e desaparece no acto da mento hábil da palavra que sabe esperar o momento propício, suscitar
sua enunciação, transforma-se, graças à escuta, num significado inquietação; instrumento tremendo nas mãos de quem o sabe usar; con-
determinado para o interlocutor que se apodera dela e alimenta a sua trolo de si mesmo, para não se desmascarar, para refrear uma emoção

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que transborda, para ganhar tempo de reflexão. O silêncio transfor- ambivalências a seu respeito. Face ao silêncio, uns experimentam uma
ma-se numa forma de oposição quando nos calamos deliberadamente sensação de recolhimento, de felicidade tranquila, ao passo que outros se
cms
para traduzir uma recusa, uma resistência pessoal a alguém ou a uma assustam e procuram no ruído ou na palavra uma maneira de se defen-
situação. Mas a possibilidade de nos calarmos desaparece sempre que derem do medo. Neste sentido, e Otto (1969) cita-o como exemplo, o
uma sociedade é subjugada e reduzida ao silêncio: o vigiar das popu- silêncio participa na dialéctica do sagrado. Mistura confusa de angús-
lações, as prisões, o exílio, a quarentena, são meios de condenar a tia e de atracção, de terror e de júbilo, de perigo e de abrigo, destinado,
palavra à insignificância, à solidão. O silêncio também tem a ver com consoante as circunstâncias, a sossegar ou a inquietar, o silêncio é uma
a aquiescência, com a conivência dos amantes ou dos amigos que não forma que nunca foi definitivamente apresentada sob um único aspecto.
temem calar-se juntos. Sem qualquer necessidade de preencher o tempo A produção do ruído é muitas vezes um modo de defesa, confirma-o a
com palavras, sendo a simples presença suficiente. O silêncio é também música ambiente, que actualmente é difundida na maior parte dos
comunicação, sobretudo quando é cúmplice. Evidentemente que tam- lugares públicos. Mas o ruído é cada vez mais entendido como um
bém testemunha indiferença em relação ao outro, o negar-lhe a palavra atentado ao direito que cada um tem de usufruir um conforto acústico
sem mesmo tomar precauções morais. Quanto ao mutismo trata-se de adequado, é muitas vezes encarado como um transtorno. O valor
uma forma ofensiva de ficar calado, traduz a recusa de participar na adquire então um valor comercial importante, torna-se raro e transfor-
correspondência, a dor de não ter aí lugar: mutismo selectivo dos ma-se numa exigência, num motivo de luta social ou de marketing
filhos de pais migrantes ou do autista, ou ainda da pessoa traumati- (capítulo 4).
zada que repudia a palavra que representa uma ameaça de arrastar a A maior parte das religiões mantém uma relação privilegiada com
memória do acontecimento. Finalmente indizível na shoah, separação o silêncio. Deus escapa aos limites estreitos da língua, o crente tem
entre a necessidade de dizer e a incapacidade de encontrar as palavras dificuldades em nomeá-Lo e em descrevê-Lo, refugia-se frequentemente
para o fazer, dissolução da linguagem no horror e, contudo, a impos- no diálogo silencioso que tem lugar na interioridade. O místico leva ao
sibilidade de ficar calado (capítulo 2). extremo a sede de dizer que esbatra com a insignificância das palavras
Outra forma política do silêncio é o facto de, se certas coisas são para traduzir a sua experiência do divino, mergulha no inefável. Mas
próprias para serem ditas, outras são menos, ou nem são, em função as figuras religiosas do silêncio são numerosas, ligadas ao relaciona-
das situações e dos protagonistas. Os laços sociais deveriam dispor de mento com Deus, à oração, ao culto, à transmissão, à disciplina, à
uma palavra que não tivesse um resguardo. O segredo, por exemplo, é sobriedade da palavra, etc. (capítulo 5).
uma disciplina de linguagem que se exerce a favor ou em detrimento É igualmente estreita a conivência entre o silêncio e a morte. A dor,
daqueles que ignoram a sua existência. Protege ou danífica, às vezes o encaminhamento em direcção à morte, a própria morte, a confrontação
destrói. O segredo, em certas mãos, é às vezes um poder. Há uma com os restos mortais, muitas vezes os rituais funerários, o luto, incitam
parte de sombra em qualquer pessoa. A terapia analítica permite ao à suspensão da palavra. Acontece o mesmo com a doença grave, a seropo-
analista caminhar num espaço protegido, bastante longe das regras da sitividade, a sida, levam a que se viva com uma dolorosa quantidade de
conversa e da alternância dos sentidos da palavra. O analista está silêncio (capítulo 6).
quase sempre calado, numa postura de escuta, enquanto o analisado se
debate com as dificuldades do seu discurso. O silêncio é uma pedra
angular da cura, baseada não no mutismo do analista, mas na parcimó-
nia de uma palavra que sobressai quando é dita e que permite ao ana-
lisado exprimir-se sem reservas (capítulo 3).
O silêncio é um sentimento, uma modalidade do sentido, e não uma
medida da sonoridade ambiental. Está relacionado com a atitude do
homem face ao seu ambiente. Os imaginários sociais revelam as

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CAPÍTULO 1
SILÊNCIOS DA CONVERSAÇÃO

«Enfim, temos de ponderar a palavra antes que seja pronun-


ciada, o fundo de silêncio que não cessa de a cercar sem o qual
ela não teria significado, ou mesmo pôr a descoberto os fios de
silêncio em que ela está enredada.»
M. MERLEAU-PONTY, Signes

AS PALAVRAS NA SUA TEIA DE SILÊNCIO


Se a presença do homem é, antes de tudo, a sua palavra, tam-
bémé inelutavelmente a presença do seu silêncio. A relação com
o mundo não é tecida apenas na continuidade da linguagem,
mas também nos momentos de suspensão, de contemplação, de
retiro, isto é, nos inúmeros momentos em que o homem se cala.
A língua latina distingue duas formas de silêncio: tacerê é um
verbo activo cujo sujeito é uma pessoa, assinala uma paragem ou
uma ausência de palavra relacionada com alguém. Silere é um
verbo intransitivo, não se aplica apenas às pessoas, mas também
à natureza, aos objectos, aos animais, designa de preferência a
tranquilidade, uma tonalidade agradável da presença que não
é perturbada por nenhum ruído!. A língua grega, com sidpân
(calar-se) e sigân (estar calado) também distingue o facto de mer-
gulhar no silêncio ou de estar calado. Manter-se calado ao ca-
minhar no passeio, ao contemplar uma paisagem ou a descansar,
não implica necessariamente uma posição em relação aos outros.
Em princípio, ninguém se sente atingido por uma reserva que
parece provocada pelas circunstâncias e que é geralmente aceite.

1 A. Emout, A. Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine, Paris, 1951,


p. 1103.

23
Silere está principalmente relacionado com a solidão do indiví- capaz de absorver, na sua tonalidade, as pausas, as maneiras de
duo ou com a sua inserção num grupo onde a sua presença não falar ou de calar, os silêncios sendo igualmente decisivos. A voz
tem qualquer afinidade. Ninguém se preocupa com o seu silên- interrompe-se às vezes, retoma o fôlego, deixa ao outro o tempo
cio. Em contrapartida, no facto de se calar existe como que uma para uma réplica. Os silêncios curtos que polvilham a discussão
supressão que ultrapassa a linguagem, uma vontade de não permitem instantes de reflexão, antes de continuar o raciocínio,
voltar a falar e dá-lo a entender ao outro. Tacere aparece no verificam o acordo do outro sobre determinado assunto suscep-
quadro de uma troca, subentende que um dos protagonistas fica tível de provocar uma divergência de opinião, ou gerem um
silencioso provocando, assim, um sentido directo susceptível de instante de devaneio. Equivalentes orais da pontuação, que
levantar questões a outros. tornam um texto legível, destacam as palavras ou as frases,
Nos movimentos incessantes da conversa, silere e tacere alter- preparam para o outro as condições da melhor compreensão.
nam e participam no jogo do sentido, conjugando-se com um Criam a medição dos termos mais apropriados para transmitir
terceiro aspecto, mais técnico, relacionado com a necessidade uma ideia e os arranjos relacionados com o estilo das palavras.
das pausas, para que a língua não fique submergida no excesso Quando a voz diminui de intensidade e se prepara para parar
de palavras. As palavras e o silêncio misturam-se para ou para retomar fôlego, o outro sabe que tem a possibilidade de,
chegarem a um intercâmbio. Quando o homem se cala, não por sua vez, usar a palavra, avançar com os seus argumentos ou
deixa de comunicar. O silêncio nunca é o vazio; mas um sopro as suas próprias divagações. Longe de os amordaçar, o fio con-
entre palavras, a curta pausa que permite a circulação do sen- dutor do silêncio faz a ligação dos assuntos e ajuda à sua com-
tido, a troca de olhares, emoções, a ponderação breve dos assun- preensão e à fluidez da conversa. Abre um espaço de liberdade
tos que saiam dos lábios ou o eco da sua recepção, o tacto que no seio do diálogo, dando a cada um dos interlocutores a possi-
permite o modelar a palavra através de uma ligeira inflexão bilidade de poderem, se quiserem, modificar o curso da corres-
da voz, imediatamente aproveitada por quem esperava o mo- pondência, de a relançarem ou terminarem. O silêncio é um mo-
mento favorável. «É o tecido intersticial», escreve J. de Burbon- delador da comunicação, um pêndulo cujos movimentos per-
-Busset, «que salienta os sinais que foram passando ao longo do mitem o encaminhamento tranquilo da palavra de um indiví-
tempo, sinais que, em si mesmos, valorizam a qualidade e a duo para outro, quando existe acordo sobre o seu sentido. Com
pureza do silêncio» (Burbon-Busset, 1984, 13). Cada palavra efeito, a clareza semântica da linguagem assenta no encadea-
organiza o silêncio à sua maneira e dá um impulso próprio à mento coerente da voz e do silêncio, de acordo com as orien-
troca. Da mesma forma, o silêncio organiza a palavra fornecen- tações de um regime cultural da palavra adequada a um grupo
do-lhe um ângulo particular; não poderiam estar um sem o social determinado.
outro sem se perderem, sem romperem a ligeireza da lin- Sem um reverso de silêncio, a comunicação é impensável,
guagem. . ficaria obstruída num fluxo contínuo de palavras que con-
Qualquer conversa é composta pelo encadeamento do silên- duziriam à impotência da palavra condenada à partida. É nas
cio e das palavras, da pausa e das frases, criando a respiração da pausas do discurso que se liga a elaboração da mensagem para
troca, num vaivém sobre o fio do sentido entre pensamento aquele que fala, e a sua recepção para quem dialoga com ele.
difuso e assunto concreto. As palavras e o estilo do discurso uti- Pesquisas realizadas sobre a economia da conversação dis-
lizado não constituem o essencial da conversa; o ritmo da troca, tinguem formas diferentes de pausa: o silêncio «rápido»,
a voz, os olhares, os gestos, a distância a que estamos do outro, inscrito na horizontalidade da linguagem, inferior a dois segun-
contribuem para a circulação do sentido. Nenhum homem é, na dos, mas frequente, traduz a hesitação na escolha das palavras
verdade, redutível ao seu discurso; o conteúdo da palavra é ape- ou na estrutura gramatical da frase. Em princípio, a continuação
nas uma dimensão do processo da comunicação e não seria da frase fá-lo desaparecer logo, a ponto que quase não se dá

Ohaz

24 Se OR
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25 8 Biblioteca
Geral É
be:
por ele, a não ser que se verifique um defeito de elocução, ou a o fôlego. Um dia em que David Lepoutre se encontra com um
utilização pelo outro de uma língua estrangeira. E pouco signi- jovem no átrio de entrada do seu prédio, nem um nem outro
ficativo no decurso da correspondência, a não ser que procure conseguem efectuar a correspondência. Samir mostra imedia-
um embaraço que prejudique o conforto -da recepção da men- tamente o seu mal-estar que acaba por explodir: «Após alguns
sagem. O silêncio «lento» tem outro significado, marca princi- pesados segundos e perante o meu silêncio persistente,
palmente uma pausa na tonalidade da correspondência entre acabou por me intimar, não sem uma ponta de ironia, dando-me
indivíduos, ao nível do conteúdo da palavra. Acompanha a uma ordem brutal e libertadora: “Fala!”» (Lepoutre, 1977, 132).
procura de expressão, de argumentos, de raciocínios, mobiliza O impacte de uma troca, tal como é sentido pelos interve-
memórias e marca a afectividade posta em acção pelos dife- nientes, independentemente do seu conteúdo, depende rigoro-
rentes protagonistas (Bruneau, 1973, 23 segs.). samente do ritmo, da alternância entre tempo de fala e tempo
de pausa de que cada um tem necessidade.
A distribuição do silêncio necessário para a claridade da fala
HÁBITOS CULTURAIS DO SILÊNCIO e para a percepção do discurso não corresponde ao mesmo
estatuto cultural de um grupo para outro. Há hábitos distintos
A linguagem não existe sem a pontuação do silêncio, que a que, por vezes, provocam mal-entendidos, interpretações diver-
torna inteligível. Esta requer competência na sua utilização ou gentes. É menos, então, o conteúdo da palavra e mais a repar-
na sua ruptura, sob pena de introduzir o mal-estar2. Deve ser tição e duração do silêncio que provocam o mal-estar mútuo. As
feita ao ritmo dos interlocutores, de acordo com a sua modali- diferentes práticas da língua, quando há contactos entre grupos,
dade de fala, de decisão, porque qualquer disparidade dá lugar as pausas mais ou menos longas, provocam juízos de valor
a um mal-estar mais ou menos sensível. A irritação nasce, às naqueles que têm outros ritmos ou se preocupam em manter
vezes, perante aquele que «demora», que manifesta uma «exas- uma linha suficiente de fala no decorrer das correspondências.
perante» lentidão, que impõe silêncios que provocam a Os índios Athabascan, por exemplo, são vistos pelos seus vizi-
impaciência ou o aborrecimento daquele que está acostumado nhos americanos como «passivos, enfadonhos, fechados, sem
a um ritmo diferente. Sucede o inverso com quem debita com conversa, preguiçosos, atrasados, destrutivos, hostis, não coope-
demasiada rapidez ou cuja recusa em escutar exclui qualquer rantes, anti-sociais e estúpidos» (Scollon, 1985, 24). Estes atribu-
pausa e torna difícil uma atenção prolongada. David Lepoutre, tos negativos estão essencialmente ligados a diferenças de ati-
no seu estudo sobre os jovens dos arredores do Norte de Paris, tude na conversação. A sobriedade do Índio, as suas pausas
sublinha a rapidez da fala bem conhecida em certos adoles- mais longas, o seu uso da palavra, que não engrena de imediato
centes. As conversas decorrem a um ritmo que afasta e sujeita a no silêncio do interlocutor, desarmam quem não está acostu-
troças aquele cuja palavra é lenta ou que hesita, que tem difi- mado a este modo de discurso e incitam-no a criar estereótipos
culdade de expressão. O silêncio tem apenas o tempo de retomar negativos sem conceber, por um só momento, que ele próprio
poderia ser alvo de estereótipos inversos: de ser, por exemplo,
tagarela, abusador, superficial, nervoso, agressivo, etc. A sepa-
2 Ao inverso, uma situação de urgência não dá qualquer espaço ao silêncio, ração entre o tempo de pausa e o de fala sujeitam um dos inter-
cada palavra soa como um imperativo. As ordens têm de ser executadas
locutores a ser classificado como volúvel e o outro como taci-
sem demora para que a coordenação dos movimentos se possa efectuar sem
estorvo. Igualmente, durante um conflito, a ocupação do terreno mental do
turno. Basso faz notar que os Apaches, conhecidos pela sua
outro impõe que ele não consiga falar e possa estabelecer dúvidas sobre os circunspecção, dizem que os Brancos têm o sangue quente, são
assuntos em discussão. Cada corte de palavra tem o peso da réplica con- tagarelas, além de outros aspectos, aos seus olhos, negativos
tundente, já pronta a saltar. (Basso, 1979). Os que falam rapidamente ou lentamente,

26 27
atribuem-se mutuamente más intenções. Uns acham que os seus Dentro do mesmo grupo social as diferenças induzidas pelos
companheiros são fechados e pouco cooperantes, outros jul- diferentes usos individuais do tempo de pausa e do estilo de
gam-nos como dominadores e têm dificuldade em encontrar a fala dão origem a juízos positivos ou negativos, de acordo com
ocasião para se exprimirem (Tannen, 1985, 108). Os Navajos têm o grau de proximidade com os hábitos próprios. Uma pesquisa
tempos de pausa prolongados. Em grupo, quando se lhes per- abrangendo um grupo de mulheres culturalmente homogéneo
gunta algo, são muitas vezes os não navajos, impacientes com numa faculdade do Maryland veio mostrar o facto de que as
uma espera que ultrapassou o seu ponto de tolerância, quem dá mulheres que fazem pausas breves são preferidas pelos seus
a resposta (Saville-Troike, 1985, 13). Segundo R. Carroll, os companheiros, que as consideram cooperantes, simpáticas,
americanos das classes médias queixam-se bastante de que interessadas pelos outros, calorosas, sociáveis, etc. Inversa-
os Franceses os interrompem continuamente sem respeitar as mente, as suas companheiras que manifestam pausas mais lon-
pausas. Contudo, este tipo de comportamento faz parte da ritua- gas são encaradas como reservadas, desinteressadas, taciturnas,
lidade das conversas francesas, cujo princípio consiste não sóbrias, tímidas, rígidas, frustradas, etc. (Feldstein, Alberti,
em cortar a palavra ao interlocutor a meio de uma frase, mas em BenDebba, 1979). Em igual regime de fala, fora da conversação
aproveitar uma ligeira inflexão de voz para tomar a sua vez de corrente, as singularidades pessoais desempenham e orientam
falar. O americano, que não está habituado a este ritmo e a estas avaliações mais ou menos propícias, segundo as sensibilidades
maneiras, tem dificuldade em terminar a sua exposição, sente-se em presença. Nas classes médias da sociedade americana da
frustrado e considera superficial o seu interlocutor, que faz per- costa leste é preferível falar do que estar calado e, no caso de
guntas sem se preocupar com as respostas (Carroll, 1987, 62). falar, evitar perder tempo e recorrer a pausas com muita fre-
Dentro de um determinado quadro social, cada membro de quência. As opiniões sobre o outro remetem aqueles que as for-
uma interacção beneficia de um «estatuto de participação» mulam, sem que o saibam, para valores culturais implícitos que
(Goffman, 1991, 223 segs.) relacionado com a sya idade, o seu legitimam a palavra ou o silêncio, a necessária sobriedade da
sexo, a sua posição social, familiar, etc. E-lhe dado um certo fala ou, inversamente, a vivacidade de uma conversa que nada
nível de contribuição em troca, de acordo com o seu registo de interrompe. Nenhuma regra universal rege as manifestações da
actividade ou o seu grau de familiaridade. Mas também os fala ou do silêncio nas conversas, os mal-entendidos ou as pro-
direitos e os deveres inerentes a uma determinada margem de jecções negativas em relação ao outro têm curso livre quando os
silêncio. O outro é abordado a partir desta avaliação que define protagonistas, enraizados em regimes diferentes de fala, consi-
os seus direitos e os seus deveres implícitos no decorrer do deram que a sua forma de falar é a única a ser normal. Estas
encontro. O estatuto de participação distribui as preferências e as regras de uso do encadeamento da fala ou do silêncio têm
exclusões na escolha dos participantes e fornece a hierarquia do origem num processo de educação e num ritmo pessoal, que
controlo da discussão, distinguindo as prioridades para tomar a esbate o seu carácter arbitrário e se apresenta como «natural»,
palavra, orienta os assuntos que vão ser abordados e aqueles que alimentando a suspeita em relação àqueles que alteram a sua
convém evitar e dá uma ideia da duração provável da reunião. evidência. A arte quotidiana da conversação, orientada por
Passam os tempos de silêncio lícitos, com que ninguém se esquemas culturais que os protagonistas redefinem a cada
preocupa, e aqueles que, inversamente, suscitam confusão e instante, não consiste apenas em saber falar, mas sobretudo em
impaciência. Segundo os interlocutores em presença e o quadro ficar calado quando for caso disso, a permitir que se instale, no
do seu encontro, todas as situações exigem uma dose subtil de centro da correspondência, uma qualidade de silêncio capaz de
palavras e de silêncios. Uma infracção às regras implícitas da gerir as pausas necessárias à fala, à repartição dos tempos
conversação, num determinado contexto, provoca o mal-estar, mútuos de discurso. Os interlocutores aproveitam estes interva-
pelo menos num dos participantes, e a procura de uma solução. los para reflectir, avaliar o nível de empenhamento exigido pela

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29
conversa e decidir a conduta a seguir. Não há discurso sem efeito com pares adulto-criança, chegaram a resultados seme-
pausas, sem escolha de palavras, sem um reverso de silêncio. lhantes, em que a criança tinha um tratamento igual ao da
Saber em que altura calar ou falar depende da «competência de mulher. Zimmerman e West concluíram daí que a disparidade
comunicação» (Hymes, 1974) dos intervenientes, de acordo com de condição entre o homem e a mulher alimenta uma desigual-
os seus conhecimentos dos hábitos e da sua interpretação das dade.em relação à fala. M. Yaguello encontra as mesmas moda-
circunstâncias da conversa. «Todas as línguas têm o seu próprio lidades de funcionamento nos diferentes quadros institucionais,
mutismo», escreve E. Canetti (1978, 34). como aulas de liceu, entre rapazes e raparigas, ou nas assem-
bleias plenárias da universidade, entre colegas masculinos e
femininos (Yaguello, 1992, 49). Os processos de comunicação
O SEXO DO SILÊNCIO oral dão, em princípio, uma margem de acção maior ao
homem, sem que ele tenha, necessariamente, consciência disso.
A fronteira do sexo está culturalmente encerrada num deter- A mulher permite-se falar menos e fica mais vezes constrangi-
minado estilo de comunicação a que é difícil escapar. De acordo da ao silêncio. Curiosamente, a mulher costuma estar associada
com as sociedades e de acordo com o seu estatuto, a mulher não à tagarelice, aos ditos insignificantes, embora a permissão de
dispõe da mesma amplidão de fala que o homem e esta é, falar lhe seja restringida, por vezes mesmo interdita. «Vou
muitas vezes, inferiorizada. Já o Novo Testamento lhe dizia, aprender a calar-me, a observar, a fazer alusões, a fazer sinais,
pela boca de Paulo, para se calar: «Durante a instrução, a mulher a interpretar. E a esperar», escreve, por exemplo, E. G. Belotti
deve manter o silêncio em submissão total. Não autorizo que a (1983, 13). O que provocou a réplica de Annie Leclerc sobre a
mulher ensine nem faça leis para os homens. Que fique em necessidade das mulheres «inventarem uma fala que não seja
silêncio» (Timóteo, 2, 11-13). A fala das mulheres, nas nossas opressiva. Uma fala que não corte a palavra, mas que desate as
sociedades, parece ser um complemento da fala dahomem, su- línguas» (Leclerc, 1974, 11).
bordinada a uma primeira enunciação. Em relação aos factos, A mulher sente-se, às vezes, amarfanhada no silêncio, sem
ela não tem sempre uma igualdade de estatuto. Os homens têm encontrar legitimidade para se exprimir. Um universo de coisas
tendência, sem darem por isso, a desempenhar um papel deter- não ditas, de recalcamentos, dificulta as relações de certos casais
minante no curso da conversa, tomando mais facilmente a e, por vezes, repercute-se nos filhos. Mal-entendidos muitas
palavra, não a cedendo sempre de boa vontade, interrompendo vezes dolorosos para o próprio homem que se fechou em deter-
mais facilmente uma mulher no uso da palavra do que um minada atitude e não consegue modificar o relacionamento que
homem. Dois investigadores americanos (Zimmerman e West, ajudou a criar, ao passo que a mulher desistiu de alterar as
1975), estudaram dez conversas de grupos de mulheres sozinhas, coisas. Belotti conta a história de um homem que vive penosa-
de homens sozinhos e de casais. Os registos analisados foram mente a ausência de comunicação com a sua companheira e com
obtidos durante conversas em locais públicos, numa comu- a sua filha, que nunca falam com ele e o deixam sem saber como
nidade universitária. Os dois autores notaram que os homens reatar uma comunicação que se foi desfazendo com o correr do
são responsáveis por 98 por cento das interrupções e pela tota- tempo, sem que ele se tenha apercebido como. Um dia, em que
lidade dos casos de sobreposições. Nos duos masculinos e nos ele chega mais cedo do que o costume, ouve risadas a ecoar no
duos femininos apenas se verificaram sete interrupções. Nos apartamento, uma correspondência contente e sem fim, entre a
casais mistos, foram em número de 48, praticamente todas pro- mulher e a filha. Quando elas, de repente, o vêem, calam-se.
duzidas pelos homens. E as mulheres nem protestaram nem A mulher, embaraçada, desculpa-se por ter feito tanto barulho,
procuraram, depois, retomar a palavra, aceitando a situação por não saber que ele estava ali. O homem descobre com pavor
(ver também West, 1983). Experiências análogas, levadas a até que ponto tinha sido afastado de qualquer cumplicidade

30 31
com uma e outra. Ele julgava-as silenciosas, apagadas. Dá con-
sigo duplamente excluído de um universo que gostaria apaixo- condição que, às vezes, aparece no casal. O silêncio torna-se,
então, em sofrimento ao qual o homem não consegue escapar,
nadamente de partilhar, mas teria de voltar a viver a sua
sempre sem saber como restaurar uma relação onde mede a sua
história e as suas relações com a esposa. Recorda-se dos
primeiros tempos do casamento, quando a mulher lhe dirigia
própria solidão. O silêncio tem um sexo privilegiado, mesmo se
ninguém tem o privilégio ou o drama dele. De forma pertur-
palavras e gestos de ternura a que ele não ousava responder.
badora, numerosas referências tradicionais insistem sobre o
«As manifestações de ternura sempre me aterrorizaram, me
aspecto palrador das mulheres, sobre a insignificância dos
puseram em pânico, afastava-as sempre como se me fossem pôr
assuntos que tratam, sobre o seu abuso de linguagem. Mesmo
em perigo grave, não sei bem qual, nunca percebi. Talvez se ela
quando a mulher não diz nada, continua manifestamente a falar
tivesse insistido... Mas ficou imediatamente bloqueada» (Belotti,
de mais. Postura paradoxal que torna a língua o monopólio de
1983, 38). O silêncio enquista-se, então, como um sofrimento
um sexo.
inconfessável do casal, provocado por uma escuta inicial
indiferente ou agastada do homem.
Belotti, mais uma vez, recorda com amargura a sua infância
com uma mãe definhada e petrificada pelo silêncio. «Ela não
A ENTRADA NA CONVERSA
sabia reivindicar os seus direitos, debatia-se, a torto e a direito,
A iniciação de uma conversa implica romper o silêncio,
como tantas outras mulheres da sua idade e da sua situação,
solicitando portanto hábitos sociais, dependentes das situações
para escapar a esta condição de impotência e de sofrimento
e dos indivíduos em presença. A entrada no assunto faz-se de
característica das mulheres, que sua mãe lhe tinha transmitido e
imediato entre indivíduos que se conhecem ou tratam em con-
que ela tinha confusamente vivido, com o sentimento das mal-
junto de uma transacção bem definida. Em contrapartida, os
dades e das injustiças que tinha sofrido, mas sem conseguir
encontros entre pessoas estranhas umas às outras, reunidas por
encontrar explicações que ultrapassavam a sua pessoa. E agora circunstâncias mais ou menos decididas com antecedência,
transmitia-me a herança... Mas eu, finalmente, recusei-a, re-
originam um breve momento de silêncio, com vista a uma aco-
cusando o silêncio» (Belotti, 1983, 64-65). A repressão da palavra
modação mútua, à procura dos termos adequados para come-
é um fechar-se em si mesmo, o preço de uma desigualdade de
çar a comunicar. Muitas vezes, o embaraço é imperceptível.
Fórmulas estereotipadas acerca do tempo que faz ou da quali-
dade da viagem ou, mais simplesmente, uma apresentação
3 Há um personagem de Dostoievski que se parece, como um gémeo, com o
homem encontrado por Belotti. Casa com uma mulher jovem que ele pre-
recíproca, provocam a entrada no assunto e apagam, de ime-
tende manter no seu lugar (no seu estatuto de mulher). Encena uma atitude diato, a ameaça do silêncio. Pelo contrário, a comunicação é
e quando a mulher se põe à volta dele, à noite, a contar-lhe com vivacidade mais difícil de encetar quando um indivíduo de aparência nor-
os seus sonhos ou como passou o dia, ele «deita água fria sobre essa fervu- mal aos olhos da sua comunidade social é, pela primeira vez,
ra», responde com o silêncio («um silêncio indulgente, entenda-se»). «Ela colocado em frente de alguém que tem um defeito físico ou sen-
teve, duas ou três vezes, arrebatamentos em relação a mim, deitou-se-me ao
sorial, é desfigurado ou tem qualquer particularidade que salte
pescoço. Porém, como esses arrebatamentos eram doentios, histéricos, e
aquilo de que eu precisava era de uma felicidade sólida e de respeito, aco- à vista. O «normal» hesita um instante, com o espanto a
lhi com frieza as suas iniciativas. E tinha razão, porque de cada vez, no dia embaraçar-lhe a palavra. Por vezes, instala-se um breve silêncio
seguinte, havia discussões. Para dizer a verdade não havia propriamente de confusão. O outro está habituado a dispor de uma margem
uma discussão, mas ficávamos calados.» E o silêncio instala-se, lentamente, de acção diminuída em relação a estas reacções correntes. Para
entre eles e, depois, o drama (F. Dostoievski, «La douce», em Le rêve d'un
dissipar o embaraço habituou-se a tomar precauções, a fim de
homme ridicule et autres nouvelles, Paris, 10-15, 1966, p. 100.)
não incomodar as pessoas que se cruzam no seu caminho.

32
33
io,
Aproximar-se lentamente, fingir que se hesita, consultar o reló- pequena saudação, as circunstâncias permitiriam o começo do
gio, observar a paisagem à volta, tudo isto são sinais enviados ao diálogo, mas provisoriamente o contacto não vai mais longe
seu interlocutor para assinalar a sua chegada, bem como vias de por falta de um conhecimento mais aprofundado do outro, que
acesso ponderadas que preservam as suas defesas, dando-lhe só poderia ser autorizado pela confiança necessária à coesão
tempo para digerir a sua surpresa e agir, depois, como se nada se social. O silêncio torna-se então numa forma de ritualização da
passasse. Desta forma, é subtilmente gerido um silêncio de ajus- estranheza, e cria ao mesmo tempo um espaço de avaliação
tamento para acalmar a susceptibilidade do «normal». O outro, próprio para dominar as circunstâncias que têm de ser poride-
habituado a este género de situações, toma geralmente a inicia- radas. Marca uma posição de espera e de observação quando
tiva de romper o silêncio com um dito de humor ou com alguma surge uma questão ambígua ou os papéis tradicionalmente esta-
fórmula clássica de entrar no assunto para «quebrar o gelo». belecidos encontram dificuldades em encontrar o seu lugar.
Qualquer ruptura do quadro habitual leva, assim, a uma Desta forma, os membros de uma comunidade apache, do
paragem provisória da fala, salientando a hesitação, a dúvida, a Centro Este do Arizona, usam este tipo de silêncio no primeiro
inquietação daquele que a observa. A testemunha de uma encontro com um estranho, seja ou não apache, que não é ime-
declaração inesperada ou inconveniente fica momentaneamente diatamente identificado. Se este tomar a iniciativa de forma
reduzida ao silêncio, desconcertada perante a transgressão do demasiado rápida e abordar o seu interlocutor sem tomar as
estatuto de participação de um interlocutor que obriga a pro- precauções habituais, esbarra com o mutismo. Fica sob suspeita
curar um motivo para tal derrapagem. Rompe-se o caminho de ter intenções duvidosas ou de ir pedir dinheiro ou algum
habitualmente sem problemas da comunicação por ter sido uti- favor. À sua atitude demasiado franca é perturbadora, porque o
lizado um desvio lateral por um dos participantes, o espanto estabelecimento de relações sociais é algo grave que exige
obrigando a recuperar referências que permitam voltar à via prudência e tempo. A incerteza também invade os primeiros
comum sem perder a face, nem eventualmente deixar ficar mal momentos da relação amorosa entre os jovens apaches, a quem
o causador da perturbação. Uma singularidade de conduta, um a consciência aguda da distância faz afastar um do outro, à
acidente de trânsito perto de nós, uma altercação entre dois procura de uma atitude. São precisas semanas de aproximação
automobilistas, um barulho fora do vulgar, suspendem a mútua antes que possam conversar sem embaraços. Acontece o
palavra, aguçam uma curiosidade por instantes muda, mas que, mesmo com o regresso de um parente após longa ausência,
em seguida, se transforma numa atitude adaptada às circuns- sobretudo de um jovem, sendo habitual os pais ficarem silen-
tâncias, com comentários mais ou menos pródigos, conforme a ciosos depois de algumas palavras de saudação. Escutam-no
gravidade dos factos. Se a cena é dramática dá origem a poucas atentamente sem provocar conversa. A família domina uma
palavras, uma vez que a emoção fecha cada um dentro desi. situação ainda ambígua, carregada de inquietações. Receia-se
O silêncio condiciona o transbordo e torna as palavras incon- principalmente que o jovem tenha contraído, junto dos Brancos,
gruentes ou insuficientes. Qualquer forma de insólito, arras- tendências más e que já não seja exactamente aquilo que erá
tando a ameaça do desconhecido, provoca um recuo cheio de antes da sua partida. Observam-no durante vários dias, antes de
interrogações, dando tempo ao indivíduo implicado ou ao reatarem com ele as relações habituais (Basso, 1972, 67-87).
público para refazer uma atitude apropriada. Assim, o silêncio é um modo de diferimento do encontro na
De sinal de embaraço, o silêncio torna-se, às vezes, uma altura de situações incertas, acompanha uma observação difusa
forma habitual de acolher o outro que não preocupa ninguém. que mede a pertinência, ou não, da palavra. É mais ou menos
Algumas sociedades instituem um silêncio prévio antes de longo e pesado conforme as circuristâncias, mas apresenta-se
entrarem no assunto, para melhor identificarem o desconhecido como uma peneira, estabelecendo a transição entre dois mundos.
a quem se dirigem. Os olhares cruzam-se, pode trocar-se uma De facto, a eritrada no assunto, sob as suas diferentes formas,

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vistador branco, amável e caloroso, pouco experimentado nos
linguareiras ou silenciosas, é um ritual de conjuração de um outro métodos da psicologia, conversa com uma criança numa sala de
silêncio, aquele que é prelúdio do encontro. Se temos de afastar as aulas. Mostra-lhe um brinquedo e pede-lhe que fale sobre ele
ameaças da tomada de contacto, porque a iniciativa de romper a conforme lhe apetecer. Contudo, face ao artifício da situação, a
reserva não se toma sem precauções, é igualmente preciso assi- criança hesita, atrapalha-se, faz longos períodos de silêncio,
nalar com sinais familiares o momento da separação, porque o enquanto o entrevistador fica impotente para suscitar um debate
silêncio é a meta necessária de qualquer conversa, mesmo da de maior alcance. Segundo Labov, as curvas de entoação
mais apreciada ou mais amorosa. Uma série de formas rituais traduzem implicitamente a submissão da criança a uma expec-
marcam o encaminhamento do diálogo em direcção à sua con- tativa cujo sentido não percebe, significando simbolicamente:
clusão: interjeições («Bem!» «Bom!» «Temos de ir» «neste ponto», «Está bem assim?» Sente-se observada, julgada, receia dizer
etc.); um discurso mais espaçado; uma maior duração entre o
palavras que se possam voltar contra si. Fica reduzida a uma
retomar da palavra; o desviar dos olhos para outro lado; a apre- relação de autoridade que provoca o mal-estar e a desconfiança.
sentação de uma ideia de valor geral, de alcance mais ou menos O seu discurso é entrecortado por silêncios que marcam igual
sem conteúdo («não se pode fazer nada» «pois!» «a vida é assim», número de zonas de recuo no seio da linguagem, onde procura
«veremos», etc.); um dos interlocutores que se afasta ligeiramente um refúgio desastrado e provisório. Em contrapartida, a situa-
ou que, pelo contrário, se aproxima para se despedir. Fórmulas ção muda radicalmente se a mesma criança estiver em confronto
simbólicas que anunciam o termo da correspondência. com um adolescente negro, proveniente do gueto, e se a con-
versa se efectuar em sua casa ou em casa de um amigo, se lhe
falarem de objectos familiares e relacionados com a sua vida
SILÉNCIOS DE CIRCUNSTÂNCIA quotidiana, em presença de um companheiro da sua idade.
t Neste contexto, em que reina a confiança, onde a familiaridade
O silêncio pode ser uma escolha, valorizada pela cultura, ali- das coisas dissipa a desigualdade e a estranheza da conversa, o
mentando uma sobriedade de linguagem característica, mas é silêncio desaparece completamente: «A criança que falava por
também, por vezes, uma consequência das circunstâncias que monossílabos, que não dizia nada sobre nada e que não se lem-
levam o indivíduo a refrear a sua fala, com medo de uma situação brava do que tinha feito na véspera, desapareceu por completo.
em que não domine os assuntos. Quando uma conversa se desen- No seu lugar temos dois rapazes que têm tantas coisas a contar
rola fora das normas habituais, o indivíduo fica desconcertado e que não param de se interromper e que, aparentemente, não
reage com constrangimento, com afirmações estereotipadas, lon- têm qualquer dificuldade em usar o inglês para se exprimirem»
gas hesitações ou respostas lacónicas. Intimidado pelo seu inter- (Labov, 1978, 123).
locutor, desequilibrado por uma situação que não domina, O mutismo ou os assuntos estereotipados a que se agarram
receia cometer um erro ou sofrer as consequências de uma reve- algumas crianças ou adultos estão ligados a condições sociais,
lação desacertada da sua parte. Ou então não sabe o que dizer, nas quais eles se sentem sem qualquer apoio, em ruptura com a
afligindo-se para descobrir o que o outro espera de si. A reserva sua capacidade normal de comunicação. A criança que é muda,
passa então a ser um sistema de defesa adequado, mas, muitas ou simplesmente silenciosa, adopta uma posição de refúgio
vezes, é interpretada como sendo uma insuficiência pessoal. para se proteger daquilo que não compreende ou de uma situa-
A situação é vulgar quando põe em confronto indivíduos de ção que exige tempo para ser apreendida. Por isso, nas escolas
estatuto social diferente ou uma criança em relação a um adulto. americanas, as crianças ameríndias têm fama de serem silen-
Um estudo clássico de Labov sobre os relacionamentos ver- ciosas, tímidas, indiferentes às actividades escolares, pouco
bais com as crianças do Harlem mostra as variações do seu côm- interessadas com a competição que reina na aula. Os jovens
portamento consoante o contexto da comunicação. Um entre-

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36
sioux, principalmente, resistem ao encorajamento dos profes- reduziu ao mínimo. O ruído incansável da televisão fornece
sores para falarem, contrariando os esforços que estes desen- a minima os estímulos que bastam à existência. O reino parado do
volvem para os fazer participar na aula. Frases lacónicas ou silêncio é frequentemente produto de uma demissão por parte
estereotipadas são os únicos resultados que conseguem obter. do pessoal, de uma falta de participação nas preocupações ou
Ora estas crianças, da mesma forma que as do Harlem descritas no contacto, de uma carência na animação dos locais. À suspen-
são da palavra, o-silêncio pesado, por vezes interrompido por
por W. Labov, não mostram qualquer dificuldade de comuni-
cação no seu meio social ou mesmo entre si, durante os recreios. um grito ou pelo solilóquio persistente de um dos internados,
Não se trata, portanto, de uma carência linguística ou de pro- traduzem o vazio, o abandono, o desinteresse social. Um pes-
soal pouco atento aos cuidados ou às actividades da instituição,
blemas psicológicos de que sofram, mas antes do contraste entre
formas de comunicação muito diferentes uma da outra. A sobrie- enredado na mesma roda de um tempo paralisado e sem valor,
onde todos os dias se repetem os mesmos acontecimentos,
dade de palavra da cultura sioux ajeita-se mal com uma cultura
escolar que é principalmente palavrosa e que esvazia a lin- não proporciona conversas personalizadas. Uma série de frases
guagem, devido às necessidades do ensino. O regime da apropriadas marcam os tempos de referência e são suficientes
palavra, na escola, retira à criança O domínio das regras habitu- para que não haja vontade de acrescentar outras. A palavra deixa
ais de comunicação próprias do seu grupo (Dumont, 1972). Em de ter valor de troca. O silêncio passa a ser o sintoma de uma
Warm Springs, Philips descreve uma comunidade em que a instituição doente que não é capaz de vitalizar as relações sociais
palavra de qualquer homem tem o mesmo valor que a de outro, devido à rotina em que caiu o pessoal ou às suas carências.
Uma Uma fala sem interlocutor é então retida na origem: «Falar,
em que ninguém é afastado das actividades comuns.
sociedade onde não existe hierarquia social. Ao passar pela faz mais mal do que bem», diz um velho. «Se não nos respon-
experiência da escola, a criança é surpreendida pelo estatuto dem, ou se os outros não ligam, se nos falam a pensar noutra
especial do professor, pela importância do que diz, pela sua coisa, não serve para nada!», acrescenta outro. Um falar sem
autoridade, que contrariam as formas de relação social e os atenção, destituído de valor social, acaba por preferir calar-se,
princípios morais da sua comunidade. O sucesso escolar da cri- fixar-se numa espécie de retiro. O silêncio transforma-se em
ança obriga a que ela aprenda a dominar outras regras de comu- refúgio para evitar um fim de não vir a receber uma resposta ou,
nicação que a vão diferenciar das regras da sua família e do seu então; uma resposta convencionada. Com o decorrer do tempo,
grupo ou que a vão obrigar a uma existência dupla, baseada em a raridade da palavra torna-se mesmo num valor reivindicado,
sistemas de conduta incompatíveis uns com os outros e que como foi constatado por Stuart Sigman (embora a observação
alternam, com o passar do tempo, de acordo com as circunstân- seja corrente) num estabelecimento geriátrico americano. «É inte-
cias (Philips, 1972; Devereux, 1966). ressante reparar que, numa ou outra ocasião, todos os meus
São raras as conversas mantidas entre os internados em informadores de base exprimiram uma opinião negativa em
instituições reguladas pela espera ou pelo desinteresse pelas relação à palavra “demasiado abundante”. Os pensionistas
actividades da vida, com a submissão tranquila a um ritmo estavam contentes pelo facto de, se não tivessem nada a dizer,
imutável, como em certos hospícios ou certos serviços em hos- não se sentirem obrigados a manter um fluxo de conversa com
pitais psiquiátricos. As relações com o pessoal também pouco as pessoas à sua volta» (Sigman, 1981, 259). Nesta instituição, as
incitam à fala, a não ser que se trate de um comentário a qual- trocas verbais não passam de uns vinte minutos por dia e isto
quer coisa que se tenha feito. Aliás, muitas vezes, a televisão fica entre pessoas que estão juntas de manhã à noite. Frases sem
permanentemente ligada, acompanhando a monotonia do consequência, sobre o tempo, a comida, o facto de se aproximar
tempo, reunindo espectadores indiferentes, coagulando o abor- a hora de deitar, etc., marcam o correr do tempo e passam a
recimento e o silêncio face a um mundo imóvel, cujo sentido se mensagem tranquilizante de uma vida sem choques. Basta

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a palavra provocar, em intervalos regulares, uma presença con- «VAI A PASSAR UM ANJO»
fiante para o silêncio surgir como uma escolha, como a elegân-
cia de uma moral comunitária que parece vizinha da sabedoria. Quando aparece naturalmente no discurso, o silêncio aclara
O tempo dissipa-se na repetição e conjura o risco de que apareça passagens de sentido que alimentam a fala e a tornam inteli-
subitamente algo de inédito que obrigue a modificar condutas gível e transmissível. Dá corpo à linguagem. O silêncio que
bem enraizadas. O manto de silêncio que envolve os pensio- atravessa, muitas vezes, a conversa pode provocar ou não con-
nistas é o sinal mórbido de uma instituição onde ninguém já não fusão, conforme as convenções de linguagem que regem o
tem nada para dizer. A repetição incansável das rotinas pro- grupo e o grau de empenhamento de uns e outros. Se a palavra
voca a evidência da sua necessidade, e a ausência da palavra é de abertura, qualquer derrogação ao seu uso suscita um incó-
leva a um sentimento de um ideal de conduta que é testemunho modo que traduz a ruptura das expectativas mútuas. Se os par-
de uma filosofia deliberadamente escolhida. Estamos, contudo, ticipantes não tiverem uma cumplicidade que permita longas
longe de uma cultura do silêncio ou de uma relação com 07 pausas, a questão do silêncio é um assunto delicado que exige
mundo de tal plenitude que torne a palavra inútil. tacto. Se tiverem pouco a dizer, uma grande parte das suas preo-
Para poder falar é preciso ter qualquer coisa a dizer ou um cupações é evitar que o silêncio se instale. Este é como a
interlocutor interessado para ouvir aquilo que se diz e respon- armadilha que estraga a comunicação e cuja ameaça é preciso
der. Daí as conversas inesgotáveis que surgem entre os pen- afastar. A gestão das pausas e dos reatamentos transforma-se
sionistas quando chega um novato, um estagiário, por exem- num pólo de obsessão em certas conversas que se arrastam sem
plo, ou um funcionário novo, ainda impregnado da importância que ninguém consiga encontrar uma saída decente. Uma con-
da sua missão. Para espanto dos habituais, o doente silencioso versa em que ninguém se sente mal é aquela cujos contornos
-ou o idoso indiferente despertam às vezes para um diálogo ines- respectivos do silêncio de uns e outros apresentam aspectos que
perado. Aí, quando o pessoal procura estabelecer um contacto, se harmonizam.
observando a singularidade do pensionista, tratando-o pelo Em princípio, o dever do anfitrião é o de manter uma re-
nome, então estabelecem-se as conversas, e os rostos já não serva relativa, enquanto os seus convidados alimentam por si a
espelham o vazio que o visitante encontra, quando percorre conversa; o seu papel implícito é o de intervir, por seu lado, ao
esses lugares abandonados à rotina dos cuidados e onde já não menor sinal de quebra, para assegurar a manutenção de um
há história. As visitas dos parentes também desatam as línguas. fluxo de palavra suficientemente aceitável. A circulação fluida
Os sítios onde os pensionistas abandonam o seu papel habitual das frases é como uma vela cuja chama tem de ser vigiada sob
e se entregam a actividades em que se descontraem (cerâmica, pena de se apagar. Se o silêncio ameaça prolongar-se e provoca
teatro, cozinha, tecelagem, arte terapêutica, passeios, etc.) ou um começo de embaraço, o reatamento é imperioso. Uma pausa
beneficiam de cuidados especiais (fisioterapia, cuidados estéti- no diálogo nunca deve eternizar-se. Se o anfitrião está atrapa-
cos, etc.) libertam a palavra e ouvem-se por vezes risadas, lhado, outro convidado ajuda a transpor o mal-estar nascente
momentos de júbilo ou de cólera, voltam a aparecer discursos com uma piada convencional sobre «a passagem de um anjo»?,
acalorados ou afectivos. Sinal de que os indivíduos estão
empenhados na acção e que encontram nela um valor e um
significado. Se o silêncio, muitas vezes, é uma escolha, a marca 4 Para explicar o silêncio abrupto de uma assembleia, os antigos Gregos
de uma distância propícia ou prudente, em relação ao mundo, é diziam: «Hermes acaba de chegar». Alusão à capa de silêncio que envolve o
deus em diversas circunstâncias: quando caminha não se ouve qualquer
nestas instituições, em contrapartida, um sinal de vazio e da
ruído, os cães não ladram à sua passagem, e Hermes é igualmente famoso
falta de um interesse próprio nos outros ou na sociedade, sin- por causa de um roubo que fez na sua juventude em prejuízo de Apolo
toma doloroso de uma carência de sentido. (Orlandi, 1986, 91, segs.).

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ou um gracejo sobre o espírito «moroso» da assembleia. O riso, O vazio que então se cria, fora de qualquer ritualidade, é como
forçando a conivência, dá a oportunidade de retomar a con- que um confronto brutal com a intimidade do outro. A sua pre-
versa. É uma maneira ritual de dissipar o embaraço. À seguir ao sença é pesada, embaraçosa, impossível de apagar ritualmente
risco de desmembramento que ocorreu, o grupo volta a encon- através de uma acção vulgar ou de uma palavra que desfaça o
trar a sua unidade no riso, bem como as rotinas da conversa. Ou mal-estar (Le Breton, 1990). Cada um se sente desastrado,
então, como quem não quer a coisa, uma pergunta sensata, apanhado no embaraço da situação, como que posto a nu, a des-
dirigida a um dos membros, permite a continuação da comuni- coberto na sua leviandade. «O silêncio escrutina o homem», diz
cação. Após um momento de dúvida, a ligação é restabelecida. M. Picard (1953, 3). Não há mais nada a dizer ou então, qualquer
Nas suas regras do saber-viver, destinadas às mulheres e aos palavra que seja dita será uma diversão grosseira incapaz de pro-
homens de posição, a baronesa Staffe consagra várias páginas duzir comunicação. O silêncio tem então o valor de um abismo
aos muitos pormenores da conversação e preocupa-se especial- cavado no caminho, até então tranquilo, da conversa. Abre, no
mente em dar, à dona de casa, conselhos propícios para lutar efi- centro da comunicação, uma brecha de sentido difícil de col-
cazmente contra o silêncio, imperdoável falta de gosto durante matar, porque acusa, sem remissão, a insignificância das
uma recepção. Depois de ter sublinhado a necessidade de dis- palavras precedentes, a rotina que presidia ao encontro, a pura
crição por parte da anfitriã, a baronesa faz ver que «contudo, se mundanidade das frases trocadas. O outro encontra-se ali como
recebe pessoas tímidas ou pouco faladoras, deve agir pessoal- um obstáculo, quebra o domínio pessoal ao impor uma réplica
mente, fazendo todos os esforços possíveis e imagináveis para que não pode deixar de ser senão uma palavra que provoca o
não deixar esmorecer a conversa. Pode conversar com o seu inter- vazio, e dita com o sentimento desagradável de que acaba de ser
locutor sobre a profissão deste, se tiver reparado que ele tem um dita apenas para sair do embaraço e ficar ainda pior se o outro
prazer exclusivo na ocupação principal da sua vida». Se estiver não acompanhar o jogo. «O silêncio súbito no meio de uma con-
muita gente «é necessário convencer uma amiga íntima amável a versa traz-nos subitamente de volta ao essencial: revela-nos o
desempenhar este papel de benevolência e caridade mundana». preço que temos de pagar pela invenção da palavra», afirma
Deste modo, qualquer pessoa isolada da conversa geral beneficia Cioran. Miguel Torga confessa as suas próprias dificuldades em
de uma atenção especial e é discretamente levada à satisfazer o manter uma conversa e a confusão que sente: «Não há nada a
imperativo da palavra. O silêncio é o inimigo a abater, a peste fazer, a conversa arrasta-se penosamente, cheia de silêncios, de
difusa de qualquer manifestação mundana. Emergência negativa, interjeições, de reticências. Mas, assim que chega um terceiro
está associado a um vazio que mergulha o grupo na confusão, a participante, amigo do meu interlocutor, subitamente tudo
menos que alguém encontre uma palavra salvadora.- muda. A partir de então o diálogo parece deslizar sobre carris.
Um embaraço profundo nasce, com efeito, do silêncio que subi- É uma amável troca de factos, de recordações, de anedotas. Eles
tamente interrompe uma conversa e se instala sem que conhecem as mesmas pessoas, frequentaram as mesmas praias,
ninguém consiga encontrar uma diversão feliz ou perder-se, de admiram as mesmas mulheres... Ao passo que eu, esquecido,
repente, na contemplação da paisagem vizinha. O silêncio esta- aborrecido, marginalizado, olho impotente este tecido verbal em
beleceu-se quando os interlocutores falavam de várias coisas, que não tenho lugar».
deixando-se levar pela tendência da linguagem e, de repente, No decorrer da conversa, o silêncio, se perdurar, é uma forma
o discurso encrava, sem conseguir encontrar outros pretextos. exterior da intimidade. Calar-se é o mesmo que apresentar o
rosto, as mãos, é oferecer o corpo à indiscrição do outro, sem se

5 Baronesa Staffe, Usages du monde, rêgles de savoir-vivre, Paris, 1927,


pp. 149-150. 6 Miguel Torga, En chair vive. Pages de journal 1977-1993, Paris, José Corti, 1997.

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poder defender da sua atenção, real ou imaginária (Le Breton,
1990). O silêncio que-cai de repente numa conversa avoluma o presente na tomada da palavra por um deles que se arrisca
decorrer do tempo, rompe a fluidez anterior do sentido que tinha a provocar o embaraço ou o refúgio numa resposta lacónica.
a palavra. É como se o espaço ficasse coagulado, a comunicação É contudo possível trocar frases amáveis e curtas sobre o tempo
torna-se emperrada, inoportuna. O tímido fica sem saber onde se que faz lá fora, sobre o conforto discutível dos assentos ou
meter. Precisa de falar, acaba por dizer qualquer coisa, para criar desejar bom proveito ao outro, que tira uma sanduíche do saco.
uma diversão, criar um invólucro de sentido à sua volta que neu- A duração da viagem, a temperatura do compartimento, as dia-
tralize o embaraço e consegue, in extremis, salvar a face. Charles tribes do revisor, são pretextos para frases pouco compromete-
Juliet conta que, no seu primeiro encontro com o pintor Bram Van doras que dispensam uma versão atrapalhada de silêncio, mas
Velde, devido ao mal-estar provocado por uma mútua timidez que não têm qualquer consequência. A reserva silenciosa pode
que provoca no outro uma atenção ainda mais embaraçosa: ser uma forma deliberada de defesa, marcando uma intenção
«Sentei-me, ele oferece-me um copo, mas não é capaz de suportar declarada de não querer entrar em contacto com o outro, de
o meu olhar e está sempre a sentar-se e a levantar-se. Tal atitude manter a distância. Visa evitar a preocupação de ter de entrar
ainda me intimida mais e tenho a maior dificuldade em balbuciar num diálogo que iria interferir com a vontade de repousar, de
algumas perguntas. Para fugir ao embaraço que nos invade e ler, de admirar a paisagem, de reflectir sobre um problema pes-
interromper o nosso face a face quase silencioso, propõe-me que soal. Também é provocada pelo receio de provocar uma inti-
passeemos na rua. Lá fora, libertos dos nossos olhares, midade posteriormente difícil de terminar. A solidão, nestas
começamos a falar»?. Libertar-se de uma atenção excessiva com o circunstâncias, só se defende eficazmente com um muro de
próprio corpo e mergulhar de novo no centro das solicitações do silêncio que ninguém deve ousar transpor. Se o outro está deci-
dido a «quebrar» o silêncio, prefere abster-se, em vez de provo-
mundo que os rodeia desata a palavra, e os dois homens falaram
seguidamente durante horas, jantaram juntos, sem voltar a ter o car um mal-estar.
embaraço inicial. O silêncio também é provocado pela ruptura que um inter-
Para ser possível ficar calado, face ao outro, é conveniente locutor faz da regra da reciprocidade do discurso, aquele que
conhecê-lo já intimamente e sentir-se ao abrigo do seu olhar e não responde às perguntas insistentes que lhe fazem está
da sua apreciação. A cumplicidade da amizade ou do amor repentinamente a recusar a «comédia da disponibilidade»
dispensa a necessidade de estar sempre a falar e proporciona (Goffman). Melville conta, da seguinte maneira, a história de
numerosos momentos de abandono. Os estranhos também Bartleby, um empregado de escritório que, depois de ter desem-
podem usufruir da serenidade de poderem partilhar longos penhado todas as suas funções durante semanas, decide, de
silêncios sem se sentirem mal. Acontece com as viagens de repente, só se ocupar de algumas tarefas. O patrão encarrega-o
um dia de uma missão modesta, mas Bartleby nega-se. Com uma
comboio ou de avião, com os trajectos de metro ou de auto-
carro, que fazem justamente funcionar um ritual de comuni- frase lacónica: «Prefiro não o fazer», rejeita as tarefas que lhe
pedem que faça. Depois, apesar da insistência do seu patrão, ou
cação baseado no mutismo recíproco das pessoas que estão em
frente umas das outras, mesmo quando a viagem dura algumas dos outros empregados, não diz mais nada, mergulhado num
horas. A discrição que isola os passageiros é uma forma silêncio impenetrável que provoca um mal-estar crescente.
rotineira de silêncio (Jaworski, 1993, 56 segs.)8, está claramente Bartleby inverte o estatuto de participação que obriga o empre-
gado a cumprir uma ordem razoável do patrão ou, pelo menos,
a justificar o motivo por que não quer obedecer. As tentativas
7 C. Juliet, Journal I, (1957-1964), Paris, Hachette, 1978, p. 308.
para o levarem a sair da sua reserva falham, umas atrás das ou-
8 R. Carroll é da opinião que os Americanos, inversamente, suportam a dis-
tância através da conversa (Carroll, 1987, p. 53 segs.).
tras: a ameaça, a sedução, e mesmo a comiseração, esbarram com
a mesma litania que sucede a um silêncio que ninguém consegue

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dissipar. Bartleby recusa-se mesmo a sair do gabinete onde se Fazendo disso o seu estilo de relacionamento com o mundo, sem
instalou, mudo perante as intimações, tranquila muralha de que os seus parceiros tenham alguma vez a possibilidade de uma
silêncio em relação aos seus companheiros espantados, impo- réstia de entendimento para o perceberem, Bartleby torna-se dis-
tentes para se livrarem dele. Todas as tentativas para compreen- sidente e destrói os laços sociais. Transforma o silêncio numa
der a sua atitude, para procurar explicações no seu passado, recusa radical da linguagem, e a sua posição, com o decorrer do
esbarram com o fracasso. O silêncio, que não pode ser, durante tempo, torna-se insustentável. Uma medida de fuga à comuni-
muito tempo, uma resposta numa discussão, sem incomodar cação de tal forma definitiva suscita uma reacção colectiva de
imenso quem pergunta, mesmo de o fazer perder a paciência, é igual amplitude, e Bartleby acaba exilado em Les Tombes, um
o único modo de que Bartleby dispõe para se apresentar. Se estabelecimento penitenciário onde também se guardam os
alguém está em desacordo com uma missão que lhe confiam, ou loucos. Af, ele continua com a mesma abstenção da palavra e de
com uma pergunta que lhe façam, tem oportunidade de participação nas ligações sociais. Alcunhado de «silencioso» pelo
resmungar ou de se insurgir, mas jogando com os recursos do seu carcereiro, acaba por se deixar morrer de fome.
silêncio torna-se numa fonte incontrolável de problemas.
Obriga os outros a longas interrogações, não sem confusão,
como prova a atitude do patrão, que procura desculpá-lo, numa OS REGIMES DE SILÊNCIO
tentativa de manter a relação social de Bartleby, mesmo cor-
rendo o risco de lhe atribuir um estatuto de coisa tranquila e ino- Contudo, a Bartleby só lhe falta a palavra quando se trata de
fensiva: «Está bem, Bartleby, pensei, fica quieto no teu lugar, não normas de interacção, que dão à fala uma importância especial.
voltarei a incomodar-te; tu és tão inofensivo, tão silencioso como Para uma sociedade que considere o silêncio ou a raridade de
uma destas velhas cadeiras; em resumo, sinto-me contente quando expressões uma virtude, o espanto não seria tanto o mutismo
sei que estás aí. Pelo menos sinto, vejo, alcanço a razão de ser de Bartleby, mas a obsessão dos seus colegas em o fazer falar. Só
da minha vida predestinada... Há outros que podem ter papéis existem «silenciosos» ou «tagarelas» em função do estatuto cul-
mais importantes a desempenhar; quanto a mim, a minha missão tural do discurso. As regras sociais de participação implicam um
neste mundo, Bartleby, é fornecer-te um escritório pelo tempo regime de palavras próprio de um grupo e das diversas situações
que tu queiras lá ficar»?. O patrão faz do escriturário o possuidor da vida comum, que solicitam, à partida, a capacidade do indi-
de uma verdade que lhe continua vedada. Projecta na reserva de víduo em se submeter sem rodeios às regras implícitas da comu-
Bartleby um significado que justifica a sua rejeição da fala e o iliba nicação. A distribuição do silêncio e da fala na conversação corres-
legitimamente das regras da conversação ou dos seus deveres ponde a um estatuto social e cultural diferente de outro, em
para consigo. A dúvida está também do seu lado: por qualquer relação ao lugar e ao tempo, igualmente variável de acordo com as
razão misteriosa, que só ele conhece, O escriturário mantém-se situações e os seus protagonistas!O. Já Plutarco considerava a fala
afastado dos rituais da comunicação. Mas essa atitude não é sus-
tentável durante muito tempo. Ao quebrar as regras da recipro-
cidade de comunicação e ao fazer do silêncio o seu único modo 10 «A nossa civilização trata a linguagem de maneira que poderíamos classi-
de comunicar, Bartleby fica condenado à exclusão porque, na ficar de imoderada: falamos a propósito de tudo, qualquer pretexto nos
vida quotidiana, o silêncio não passa de uma resposta provisória serve para falar, interrogar, comentar... Esta forma de abusar da linguagem
não é universal; nem mesmo é frequente. A maior parte das culturas, que
apoiada em mótivos subentendidos pelos membros da interacção. consideramos primitivas, usam a língua com parcimónia; não falam em
qualquer altura nem a propósito de nada. As manifestações verbais são
muitas vezes limitadas a circunstâncias prescritas, fora das quais se
9 H. Melville, “Bartleby V écrivair”, Bénito Cereno, Paris, Gallimard, 1951, pp. 73-74. poupam as palavras» (C. Lévi-Strauss, 1974, p. 84).

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silêncio acompanha as refeições, em vez do ruído das conversas.
dos Espartanos, sem palavras supéríluas, clara e cortante como
Estas ficam-se por algumas palavras (Lehtonen, Sajavaara, 1985,
uma lâmina «porque a tendência bem conhecida deste povo pelos
200)!!. No Norte da Suécia, numa comunidade de lapões,
aforismos, a sua habilidade em réplicas rápidas e certeiras, são O
K. Reisman lembra o silêncio extremo que rege as relações entre
fruto de um longo hábito de silêncio» (Plutarco, 1991, 97). James
os indivíduos. Instalado, durante uns dias, numa casa que lhe
Agee, entre os camponeses pobres do Alabama, foi muitas vezes
emprestaram, recebia todos os dias a visita de vizinhos que iam
confrontado com longos períodos de silêncio, por vezes inter-
saber se tudo estava em ordem. «Oferecíamos café. Depois de
rompidos por algumas frases lacónicas, sem que ninguém se sen-
assim», escreve «a
vários minutos de silêncio, a oferta era aceite. Tentámos fazer
tisse obrigado a «fazer conversa». «E mesmo
uma pergunta. Um silêncio ainda maior e depois, um “sim” ou
nossa fala é esporádica, e desaparece em longos silêncios que não
um “não”. Ainda mais dez minutos, etc. Cada visita durava
provocam embaraço: frases, comentários, monossílabos saídos do
cerca de uma hora — cada um de nós sentado, delicadamente.
mais profundo do seu íntimo, sem reflexão, com um ritmo brando,
Durante todo este tempo a sós, trocavam-se seis ou sete frases.
como a carga de um poço, transbordando, aqui e ali, vozes arras-
Seguidamente os nossos convidados levantavam-se para par-
tadas, claras, frescas, respostas calmamente dadas, e um silêncio; e
tirem. A mesma situação repetia-se no dia seguinte» (Reisman,
novamente algumas palavras; mas não se trata verdadeiramente
1974, 112-113). O silêncio é preferido a uma palavra sem conse-
de falar, nem de querer exprimir-se, mas de uma comunicação
quência que apenas vem avolumar a duração de um encontro.
diferente, em espécie, mais profunda, um ritmo completado pela
Para Lebra, a parte destinada ao silêncio na comunicação japo-
resposta e que se cumpre no silêncio» (Agee, 1972, 84-85).
nesa é completamente distinta da das sociedades ocidentais e
O «tagarela» ou o «silencioso» são chamados assim apenas
mesmo da dos seus vizinhos asiáticos (Lebra, 1987, 344). Segundo
em função de um regime cultural da fala, devido à ruptura que
ele, esta situação está relacionada com o sentimento que cada
introduzem nos hábitos. Não estando já inseridos naquilo que
indivíduo tem de estar ligado aos outros e encaixado numa
vulgarmente se espera, são censurados, de acordo com as trans-
dependência estreita em relação a eles, que inibe o tomar da
gressões que os caracterizam, por falarem de mais ou por fala-
palavra. O Japonês dá mostras de uma sobriedade de gestos e
rem pouco. Noutros lugares, a sua relação com a linguagem
de palavras e sai dificilmente da sua reserva. Interioriza as suas
estaria de acordo com as normas de convivência. A relatividade
emoções e permanece, na aparência, impassível, apesar das con-
do regime da palavra traduz-se pela relatividade das reputa-
trariedades ou dos impulsos afectivos que possa sentir.
ções, em determinadas circunstâncias é preciso pouco para que
Encontramos o mesmo gosto pelo silêncio na cultura
um indivíduo seja suspeito de ser «tagarela» ou «silencioso» e
quacre, devido a uma visão do mundo que atribui o essencial a
fique exposto à reprovação do grupo. Nos países escandinavos,
Deus e pouca coisa à linguagem, pelo menos à linguagem da
por exemplo, preencher um encontro com frases ininterruptas
carne (carnal language). A experiência religiosa não é vivida
para colmatar o silêncio, acabaria por ser malvisto. Num jantar
num plano formal, através de um sacerdote ou de ritos, mas é
entre amigos reina «o silêncio da mesa», que é costume cortar
conseguida na intimidade do homem. Uma «luz interior» assi-
com «discursos». Neste caso não há escapatória, é preciso
nala a presença de Deus em cada indivíduo. A Igreja, os padres,
aceitar, mantendo um silêncio religioso, até chegar a sua vez,
os sacramentos, são recusados pelo quacre que não tolera
sem procurar ser inteligente ou divertido. Da mesma forma não
é necessária uma troca de frases para que seja criada uma inti-
midade. No decurso de uma viagem de comboio, por exemplo,
11 Estes dois autores, contudo, notam que os finlandeses que vivem na Suécia
«durante a qual nem uma só palavra foi trocada com o vosso
têm de estar atentos durante as conversas em sueco, pois os tempos de
vizinho, este, à chegada, agradece a vossa companhia (tack fôr pausa são mais rápidos que os das conversas finlandesas (p. 195).
sillskapet)» (Gras, Sotto, 1981). Na Finlândia, uma trama de

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nenhum intermediário para se aproximar de Deus e comunicar outra pessoa fala, por sua vez, da mesma maneira. Mas toda a
na Sua presença. «Deus é espírito e aqueles que O adoram devem palavra deve nascer da profundidade do silêncio e voltar a ele,
adorá-Lo em espírito e em verdade», dizia George Fox. À assem- a palavra não é um ruído que venha interromper a comunhão.
bleia espera, em recolhido silêncio, a criação, em cada fiel, de Os contemporâneos dos primeiros quacres consideravam
um caminho propício à vinda de Deus que o conduza por ini- estas liturgias silenciosas vazias de sentido, reuniões ridículas
ciativa própria. A aceitação de um rito fixado anteriormente iria de mudos que provocavam a troça, com uma recusa de lin-
ao encontro dessa preocupação de uma presença divina, livre guagem que parecia não conduzir a lado nenhum. A comunhão
por essência e à qual o homem não tem outra escolha senão silenciosa dos fiéis inspira-se na tradição mística cristã preo-
submeter-se. Uma liturgia baseada no silêncio e na interioridade cupada com uma procura da unidade com Deus e consciente da
marca a oração quacre. Mas este silêncio não é um fim em si incapacidade das palavras para exprimir uma experiência com-
mesmo, não representa nada por si mesmo, é um meio privile- pletamente estranha às percepções humanas. Os primeiros
giado, a possibilidade de um abandono espiritual de si próprio, quacres, principalmente, manifestavam a sua desconfiança em
aproximando a alma de Deus. Cada um é livre para desenvolver relação à linguagem, insuficiente, na sua opinião, para garantir
a graça própria que tem, homem ou mulher. Esta oração colec- uma comunicação capaz entre os homens e inapropriada para
tiva reúne os fiéis na mesma comunhão, mas cada um encontra contactar com Deus. A imperfeição espiritual do indivíduo obri-
Deus à sua maneira, favorecido pelo silêncio que reina na sala ga-o a utilizar este instrumento útil para as relações sociais, mas
onde estão reunidos. O silêncio aqui não é nunca uma ausência inferior e desastrado em comparação com um silêncio sem man-
da palavra, mas um esforço sobre si próprio, que prepara a alma chas, que coloca imediatamente o homem perante Deus, sem
para escutar, para um acolhimento propício da «luz interior». que a palavra venha diminuir a união experimentada. Se for
É activo e testemunha a diluição do ser e a aspiração do encon- preciso recorrer à linguagem, então amplos espaços de silêncio
tro directo com Deus. Calar sem motivo é tão insuportável e uma moderação da palavra tornam-na menos imperfeita. Nas
como falar para não dizer nada. «Assim que, numerosos, nos reuniões entre quacres, se as tensões começam a dividir o grupo
reunimos em silêncio e que as nossas almas estão orientadas e há uma subida brusca de tom, é costume pedir silêncio e uns
do mesmo modo, sentimo-nos em comunhão, escreveu John momentos de recolhimento. Desta forma altera-se o clima rela-
W. Graham. É um coro de almas, se não de vozes. Cada um dos cional e o debate pode prosseguir, geralmente de maneira mais
nossos espíritos se recolhe... concentra a consciência num único tranquila. Uma conferência, um debate, uma refeição, começam
ponto interior, em direcção ao ponto de encontro com o Eterno. por um tempo de silêncio. São as circunstâncias em que a «luz
Fazemos o nosso inventário espiritual, rejeitamos o que não tem interior» é solicitada para que o encontro se realize sob os
valor, verificamos as nossas convicções e finalmente — talvez melhores auspícios. A sobriedade da palavra é uma virtude
depois de um duro combate com o homem natural — alcan- cardeal em todos os encontros de quacres, mesmo quando se
çamos a paz» (Van Etten, 1960, 160; Bauman, 1983). Palavra e trata de reuniões de negócios. «E algo importante falar numa
silêncio são apenas meios, a intenção que os dirige está reunião de negócios, sublinha John Woolman. Em 300 minutos,
primeiro, apenas a sua fidelidade a Deus lhes confere valor. Mas há cinco horas e aquele que, indevidamente, faz perder um
a preferência vai para a interioridade, porque o silêncio é a minuto a 300 pessoas comete uma violência igual à de encar-
via privilegiada que conduz a Deus e todas as palavras ditas cerar um homem, sem razão, durante cinco horas» (Dommen,
durante o culto pretendem apenas aprofundar o recolhimento. 1990, 43).
São algumas frases que sublinham um acontecimento da vida Marcada da mesma maneira pelo puritanismo religioso, a
quotidiana ou um pensamento especial que o orador liga à cultura amishe, sobretudo no seu ramo mais tradicional (Old
relação entre Deus e os homens. Passa um longo momento, Order Amish), manifesta um rigor ainda maior na vida quoti-

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olhos de quem ele ressoa como um vazio, um fim inoportuno
diana e na liturgia. A fala é utilizada com parcimónia. Os ruídos,
do não-receber. Mas o silêncio também é, entre os Manouches,
incluindo as palavras inúteis, são considerados como algo que
uma maneira airosa de nunca ficar sem resposta, de não dar
desagrada a Deus e proscritos com severidade. A maior parte
oportunidade, de escapar sem danos, nos interstícios da
das vezes bastam algumas palavras para manter as relações cor-
rentes, nem que seja apenas um «sim» ou um «não». Prolongar
sociedade, por caminhos transversais. Exceptuando as coisas do
quotidiano, a necessidade de falar é pouco sentida numa
mais é prova de ligeireza, representa o abuso de uma língua que
sociedade cheia de pudor e de coisas não ditas. No seu diário
- é sempre considerada inferior em relação a Deus. O silêncio é
de estudo P. Williams descreve o despedir-se de um amigo
uma forma de comunicação, bastando um mínimo de palavras
manouche que ele não sabe se voltará a ver: «É sempre o mesmo
para assegurar a ligação entre os indivíduos. As palavras supér-
com eles: tem-se intenção de fazer grandes declarações, repeti-
fluas, ou as causadas pelo despeito ou pela cólera, serão cen-
mo-las na mente e, depois, quando estamos ao pé deles, não
suradas aos seus autores no momento do Juízo Final. As
dizemos nada ou quase nada. E depois de termos partido, quando
orações, antes e depois das refeições, são períodos de silêncio
voltamos a pensar no assunto, temos consciência de que as
sem interrupção. O domingo, passado em casa, é um dia em que
grandes declarações foram feitas. Sem dizer nada» (p. 81).
se não trabalha, com receio de fazer barulho com os trabalhos do
Voltamos a ver-nos, depois de meses de ausência, sem trocar
campo. Confrontados com a intolerância, mesmo com o insulto,
muitas novidades. Uma pergunta desastradamente feita pro-
ou com os vexames de um funcionário público, os amishes
voca o afastamento ou uma afirmação de desconhecimento,
calam-se obstinadamente. Os sermões insistem na passagem da
mesmo que este não pareça ter fundamento. O equilíbrio do
epístola de Tiago sobre a intemperança da palavra, «Aquele que
mundo assenta sobre um mínimo de palavras que convém usar
não comete excesso de palavras é um homem perfeito, é capaz
com parcimónia para não o desmoronar. Ao cumprimenta-
de dominar todo o seu corpo» (Tiago, 3-2). Mas os amishes
rem-se, observa P. Williams, nunca dizem «até à vista», empre-
recordam também uma frase mais incisiva: «A língua...
gando uma expressão manouche que se pode traduzir por «não
ninguém a consegue dominar: é um flagelo que não dá tréguas.
dizemos nada» (p. 96). O silêncio em relação a si próprio surge
Está cheia de um veneno mortal» (Tiago, 3-8) 12.
como um modo de defesa e de preservação de uma identidade
Embora a sua legitimidade não seja religiosa, a cultura
pessoal e colectiva, uma maneira de se enraizar, para lá do dis-
manouche também é caracterizada por uma grande economia
curso, que absorve todas as perguntas e, portanto, todas as
de palavras. O silêncio levanta uma barreira dificilmente trans-
ameaças. Conduta desconcertante, para as nossas sociedades
ponível entre si e o outro, entre Manouche e Gadjé, sem hipótese
perseguidas pela transparência e pelo controlo, ávidas de asse-
de ficar no meio: ou se está num campo ou noutro. O silêncio é
gurar a continuidade da palavra.
uma linha de separação de dupla eficácia: une a comunidade
Muitos outros exemplos de sobriedade de palavra podem
manouche no seu ideal de «tomar posse do universo sem per-
ser encontrados em diversas sociedades. Vejamos um último
turbar nada» (Williams, 1993, 2); é igualmente uma defesa con-
caso, na África Central, onde os Gbeya demonstram a sua faci-
tra o olhar ou a curiosidade do outro. Exclui rigorosamente
lidade em se calarem quando falta a vontade de continuar a
aqueles que não têm meios de cultura para o dominarem e aos
comunicação. A palavra nunca se impõe. Pelo contrário, nunca
é preciso demonstrar habilidade para encontrar um assunto de
12 Ver também Hostetler (1989, pp. 7-8). A propósito da educação de crianças, conversa ou pronunciar uma frase consagrada para seguir tran-
Christopher Dock, o «piedoso mestre-escola de Skippack», escreveu em quilamente o seu caminho. Samarin, um linguista americano,
1770: «Embora as conversas das crianças entre si não tenham más mostra o seu espanto perante rituais de palavras tão afastadas
“intenções, é impossível obter resultados frutuosos se a palavra e o silêncio
não tiverem, cada um, o seu tempo» (id., p. 145).
das usadas na sua cultura de origem. «A forma como os Gbeya

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lizador. Façamos um curto desvio na direcção de um outro
utilizavam sem vergonha o silêncio, espantava-me. Não pare-
ciam sentir qualquer embaraço ao fazer terminar uma conversa. regime de linguagem, antes de analisar o estatuto social do
Tudo se passava como se nunca se sentissem na obrigação de «silencioso» e do «tagarela». Sociedades que efectivamente
falar. E, contudo, não se podia dizer, de forma alguma, que fos- receiam o silêncio e dão valor à palavra, com os rituais de comu-
sem taciturnos» (Samarin, 1965, 117). O silêncio é entendido nicação mais preocupados em manter o murmúrio regular de
como uma medida de salvaguarda pessoal, de não comprometi- uma linguagem, que às vezes tem valor próprio, satisfazendo-se
mento, de preservação da relação ao não expressar um desa- com a sua emissão. A vida colectiva alimenta-se no prazer tran-
cordo, etc. Os laços sociais ficam mais protegidos, na sua cober- quilo de uma fala que surge naturalmente. Um facto curioso:
tura de silêncio. O conflito nasce com a intrusão de uma palavra uma etnóloga efectua pesquisas sobre uma comunidade
que não devia ter sido dita. A reserva impera na altura das refei- humana da ilha de Nukuoro, um atol no Pacífico. Ela mergu-
ções, onde não se ouve uma palavra. Acontece o mesmo quando lhou no seio do grupo e, na maior parte do tempo, não consegue
um dos membros da comunidade está doente. A vítima, contudo, usufruir de alguns momentos de solidão que deseja. Uma vez,
está bem rodeada, porque qualquer ausência seria interpretada vários meses depois da sua chegada, os habitantes abandonam
como confissão de culpa num ataque de feitiçaria em relação a a aldeia para irem passar o dia a uma ilhota próxima. A etnó-
ela. Vêm visitá-lo, ficando silenciosos ao seu lado. Samarin, loga fica encantada por finalmente se encontrar sozinha. Saboreia
forçado a ficar na cama, em diversas ocasiões, confessa o seu a calma que reina na aldeia deserta quando, subitamente, uma
mal-estar perante esta situação: «Para um ocidental, semelhante voz interrompe os seus devaneios. Uma vizinha vem ter com ela
atitude de conforto suscita antes a inquietação, por ver os visi- trazendo um prato de frutas. Algo irritada, a etnóloga receba-a,
tantes ficarem a olhar fixamente o espaço... Combalido como contudo, efusivamente. A mulher explica que veio fazer-lhe
companhia por ter descoberto que ela estava sozinha.
estava pelas dores, teria preferido ser aliviado por conversas.
Contudo, os meus amigos gbeya não tinham vindo para sepa- Oferece-se então para passar o dia com ela até ao regresso das
rarem o meu moral da minha condição física. Estavam ali ape- gentes da aldeia. A sua anfitriã agradece-lhe a boa vontade e
nas para me recordarem a sua solidariedade. E isso fazia-se em conversa um momento com ela, para salvar as aparências,
silêncio» (p. 118). Na situação em que o Ocidental, de modo e depois diz-lhe, cuidadosamente, que se sente cansada e que
geral, se sente obrigado a fazer perguntas e a explicar longa- vai com certeza repousar. Mas a vizinha não se dá por achada,
mente ao doente a pena que sente com o seu estado, os Gbeya é curandeira e apressa-se a oferecer os seus serviços. Nessas
contentam-se em estar presentes e partilharem as suas dores condições recusa completamente abandoná-la nesse estado e
com a sua presença muda. Não vale a pena «enfeitar» a conver- instala-se para passar o dia. A vida no atol de Nukuoro só faz
sa, os Gbeya calam-se e caminham juntos, sem precisarem de sentido na sociabilidade de uma fala que circula sem descanso,
palavras para terém a certeza dos sentimentos do outro. tornando inconcebível a solidão e o silêncio que a acompanha
Acabamos de fazer referência a uma série de culturas em (Carroll, 1987, 111-112).
que a economia da palavra está em primeiro lugar, sociedades Entre os Tuaregues de Kel Ferwan e os seus vizinhos das
em que é permitido estar-se colectivamente calado sem que os serras de Agadez, a poesia, o gosto da frase trabalhada, o pra-
laços sociais sofram com isso, precisamente porque a palavra zer da conversação, são essenciais ao convívio social. No deserto
não é um fim para esse efeito; acompanha a presença, mas O vivem «os do esuf», seres negativos, que frequentam os sítios
facto de se estar junto não implica necessariamente a obrigação cheios de solidão, vazios de toda a presença humana. A noite,
de falar, porque a comunicação passa também por outros principalmente, é propícia à sua chegada e também o crepús-
culo, em que um mundo se transforma noutro. Ataca de
canais. É evidente que há outras sociedades que não concebem
que a palavra possa deixar de emitir o seu zumbido tranqui- mutismo ou de loucura aqueles com quem se cruza e que não

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sabem defender-se disso. As situações em que os esuf são de «silencioso» nunca aparece numa cultura em que a palavra
ameaçadores são aquelas em que domina o silêncio. Um homem é rara e o silêncio entendido como uma virtude primordial.
cai no esuf quando está sozinho, afastado dos seus, presa da tris- O termo qualifica antes o indivíduo que, com a sua abstenção,
teza pessoal ou da melancolia de um lugar desolado. Nas fron- provoca uma turbulência no regime habitual da fala. Aí, quando
teiras da comunidade dos homens o risco de dissolução exige se espera a sua intervenção, ele cala-se, desliga os argumentos
precauções especiais. O silêncio é um mundo completo e peri- da conversa e provoca o espanto dos participantes. Recusa a
goso que apenas exorciza a ligação com o outro, O murmúrio da «comédia da disponibilidade» que implica uma atenção especial
palavra. Os que estão doentes, na razão ou na linguagem, bene- à troca verbal, uma consideração em relação aos que falam e
ficiam de uma terapêutica ritual que consiste na escuta de can- uma exigência implícita de alimentar regularmente a conversa.
tos tradicionais entoados pelas mulheres. Se ela não tem êxito, a O silencioso, embora se preste à escuta, não diz nada ou, de uma
comunidade solicita a palavra de Deus através da leitura do maneira tão sóbria, aquilo que diz é algo ambíguo. Num grupo
Alcorão. A linguagem dos homens ou a palavra de Deus é uma onde reina a verbosidade ou, pelo menos, um diálogo normal,
arma contra o terrível silêncio que abre a porta «aos do esuf». causa espanto ou provoca uma atrapalhação, na proporção da
Não há salvação fora do convívio social, fora, sobretudo, da sua reserva. Será desculpado se estiver doente ou de luto,
partilha da palavra entre os homens. A conversa fluida escon- fazem-se esforços para lhe facilitar a palavra, pedir-lhe uma
jura os enredos nefastos do esuf. A ligeireza da linguagem, opinião, se nada justifica a sua reserva e, se ele persiste na ati-
mesmo a insignificância do assunto, não embaraçam, muito pelo tude, sublinha-se-lhe severamente que não está nada «falador»,
contrário. A comunicação supérflua não é desprezada porque con- o que sempre tem o ar de uma censura. As suas opiniões, em
tribui para dissipar o silêncio. Às vezes, as pessoas desculpam- contrapartida, são esperadas com mais impaciência, escutadas
-se, diz D. Casajus, com uma expressão de cortesia, repetida mil com mais atenção, porque a sua raridade lhes conferiu um valor
vezes: «É para afastar o esuf», da mesma forma que diríamos em que as faz sobressair na conversa do grupo.
francês «é só para falar». Quando estão juntos, os homens não Mesmo que não seja essa a sua intenção, o silencioso é
param de conversar, recorrendo a inumeráveis assuntos que muitas vezes encarado com desdém, como alguém que procura
proporcionam o poder saber de uns e outros ou, de uma ma- dar a entender que sabe muito ou que as suas ideias próprias já
neira mais elementar, para preencher o silêncio. Homens que ultrapassaram há muito as questões levantadas pelos seus inter-
não se conhecem mergulham no repertório dos assuntos con- locutores. Provoca o mal-estar ou a desconfiança com a sua
sagrados, que dissipam o embaraço e mantêm, pelo menos, um reserva, que ameaça romper-se e, talvez, revelar o disparate dos
nível satisfatório de comunicação. A palavra tem de ser prote- assuntos discutidos até ali. Mas o silencioso é capaz de não ter
gida, como a chama de uma vela, na hora de dormir ou ao nascer nada a dizer, aborrece-se ou não consegue aproveitar a sua
do dia. «Aquele que se abstrai numa conversa entre amigos e dá oportunidade de falar, por ter um ritmo de discurso mais sóbrio
mostras de se afundar nos seus pensamentos é imediatamente que o dos seus companheiros, por estar intimidado ou, então,
solicitado, entre risos, a sair do seu silêncio» (Casajus, 1989, 287). por preferir escutar os outros. Causa mal-estar, ao interromper
a boa unanimidade da conversa, ao denunciar involuntaria-
mente a aparência em que ela se baseia, fazendo suspeitar, com
O SILENCIOSO a sua abstenção, que o debate tem pouco interesse. Mesmo que
não seja essa a sua intenção. Para que serve então excitar-se ou
A relatividade do estatuto social da palavra suscita, evidente- pedir o apoio do vizinho quando um dos participantes na con-
mente, a relatividade das classificações de tagarelice ou silêncio versa demonstra um desvio de conduta semelhante? O silen-
que, no plano crítico, se atribuem aos indivíduos. A denominação cioso afasta-se do convívio social e não deixa de incomodar, se

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a palavra é comum e circula com fluidez. Na Bélgica francófona, perturbação do grupo face ao mutismo de um dos seus e à sua
o «calado» é uma pessoa taciturna. Outras sociedades usam ter- irresolução que leva à ambivalência de um comportamento que
mos parecidos, para designar aquele que não diz nadalS, oscila entre a sedução e a violência. O silencioso provoca, por
O homem que não abandona o seu mutismo inquieta os vezes, a súplica de uma palavra ou a agressividade que se
outros e provoca a sua reacção, parece considerar a linguagem esforça por lhe arrancar uma expressão, através de uma pressão
uma coisa insignificante, uma ilusão, ou mesmo uma impos- física ou moral. Um outro exemplo, tirado de outro contexto cul-
tura. Com a sua atitude defensiva, instala um grão de areia na tural, o da Argentina de Eduardo Malléa, em que um operário
discussão, um mal-estar que se quer explicar quando o espanto silencioso é alvo da hostilidade dos seus companheiros, que o
do grupo chega ao máximo. Interrogam-no então de maneira acusam de «se julgar um grande senhor»14. A enorme reserva
mais explícita, para lhe perguntar a sua opinião sobre o assunto de Chavês, relacionada realmente com um drama pessoal, é
da conversa, ou para o levar a explicar-se, a dizer o que pre- confundida com «uma injúria, uma ofensa, com um sinal cons-
tende ou a esclarecer o seu mutismo. Aos olhos dos outros, ele ciente de um sentimento de superioridade claro e bem definido.
incarna um mistério a desvendar, uma distância que impede a Era atribuído a uma segunda natureza, cheia, por assim dizer,
boa inserção na conversa. Num texto destinado ao teatro, de intenções inconfessáveis, secretas, desagradáveis. Achavam-
Nathalie Sarraute mostra de maneira exemplar o mal-estar cres- -se todas estas explicações possíveis, sem pensar que outrora, tal
cente de um grupo em que um dos membros se cala. Pedem-lhe como os outros, ele tinha falado» (p. 24).
para tranquilizar os seus interlocutores, pois, «não é preciso Na descrição de N. Sarraute, toda a gente é obrigada a tomar
muito, apenas uma palavra... Eles têm receio... Nunca abusam, posição: «Sabe, a mim, as pessoas caladas não me impressio-
compreende?... Participam como dizem, julgam-se obrigados a nam. Penso simplesmente que talvez não tenham nada para
fingir». Os outros dão a sua contribuição à conversa, à alternân- dizer»!5, A pessoa mais afectada pela sua abstenção acaba por
cia da vez de falar, contribuem para o avanço, sem problemas, observar atentamente o silencioso e pensa que o ouve assobiar
da discussão, mesmo quando se sentem obrigados a uma comu- e mesmo rir. O mal-estar acaba finalmente por invadir todo o
nicação no limite do enfado. Porém, o ritual implica «jogar o grupo, paralisado por aquele membro que recusa o seu estatuto
jogo». Contudo, o silencioso encontra porta-vozes que defen- de participação. O silencioso acaba por ser posto de lado pela
dem o seu direito a ficar calado e gabam a sua paciência perante rejeição real ou simbólica dos seus companheiros, se não for
a agressividade de que é objecto. Atribuem-lhe pensamentos possível explicar a sua conduta, relacioná-la com algum des-
elevados, a economia de palavra de um sábio que se não deixa gosto pessoal, ou com uma timidez excessiva. O mutismo é vivido
desviar pela insignificância. Mas a sabedoria tem limites quando como uma deserção culpável ao meio social. O texto de Nathalie
perturba demasiado as rotinas de conversação. Com o correr Sarraute mostra as projecções de que o silencioso é objecto, que
do tempo, o seu mutismo torna-se intolerável, a sua atitude sus- aliás explicam tanto sobre quem as formula como sobre aquele
peita, é então acusado de não ter qualquer consideração pelos que se cala. Toda a dinâmica de grupo acaba por ser dominada
seus companheiros. O argumento do desprezo é frequente em pelo silêncio, o geral, que suscita a pertinência de falar ou não,
relação ao silencioso. Ele não fala por causa do sentimento da e o silêncio eventual de um dos membros que, infalivelmente,
sua importância pessoal, não se dá ao trabalho de se compro- suscita a posição conciliadora ou agressiva de uns e outros
meter com os outros. Virulência de propósitos que traduz a e acaba por obrigar o culpado a explicar a sua atitude. Em

13 Por exemplo, os índios Kaska (Bachman, Lindenfeld, Simonin, 1991, p. 81).


Taciturno provém da raiz latina tacere, que significa calar-se, embora a 14 Eduardo Mallea, Chavês, Paris, Autrement, 1996, p. 67.
palavra só recentemente tenha adquirido um sentido pejorativo. 15 Nathalie Sarraute, Le silence, Paris, Gallimard, 1967, p. 28.

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princípio, existe na sociedade ocidental e, principalmente, nos
gera perturbação, tenta-se obrigá-la a falar, multiplicando as
ritos de conversação, um dever implícito de falar que qualquer
pressões ou carinhos sobre ela. O silêncio revela-se então como
reticência imediatamente revela, para grande confusão dos
uma superfície de projecção que revela a psicologia pessoal
que são confrontados com o facto. A palavra não é portanto
apenas um direito, mas também uma exigência, que assegura dos membros do círculo familiar ou profissional: Z. Dahoum
os laços sociais, dissipando o mistério encarnado por aquele
faz notar a forma como os terapeutas, que têm a seu cargo
crianças silenciosas ou revelando um mutismo selectivo (isto é,
que se cala.
falando em casa, mas ficando mudas no exterior), sentem uma
A ambiguidade do silêncio na comunicação funciona em
dificuldade em permanecer calmos e a portarem-se com elas
cheio para criar uma reputação de sobranceria, de desprezo, ou
como com os outros pacientes. Actuações, formas diversas de
então de sabedoria, de sobriedade, mas, mais frequentemente, o
chantagem, de pressões morais, etc., são por vezes necessárias
mal-estar provocado pelo calado leva a que seja posto de parte
perante um silêncio da criança considerada como «persegui-
ou a evitar encontros com ele quando não há outra solução.
dora». A angústia, o mal-estar sentido face à ausência da fala,
O calado parece estar sempre de reserva, numa acusação muda
em relação à palavra. Na medida em que indispõe ou inquieta, leva a querer «desalojá-la» da sua reserva sem sempre se con-
seguir dominar as sensibilidades em jogo. A transferência em
acaba por criar o vazio à sua volta e fechar-se ainda mais na sua
relação ao terapeuta é sujeita a rude prova (Dahoum, 1995,
solidão. Bauman recorda como a oração silenciosa dos quacres
185 segs.)!6. Os movimentos de impaciência, provocados sem
provoca inicialmente uma reacção de embaraço e de desdém, ou
dar por isso, pela criança atacada de mutismo, sublinham a
de troças animadas por parte dos outros fiéis, que não encon-
tram no facto mais do que uma assustadora ausência de importância da linguagem nas representações do humano nor-
palavras, um vazio que não conseguem perceber como é pos-
mal e a amplitude da ruptura que é provocada por aquele que
podia e devia falar, mas escolheu calar-se, ou se vê impossibi-
sível ser suportado (Bauman, 1983, 123). O silencioso carrega,
litado de usar a palavra, como se voltasse ironicamente as
sem o saber, com o enigma da palavra ausente e faz passar a
costas à espécie.
imagem do horror de uma sociedade sem linguagem.
O receio do mutismo da criança traduz-se, em certas socie-
dades, por uma intervenção simbólica à nascença, «cortando o
freio» da língua com uma unha ou passando o dedo. É a mãe
O SILÊNCIO DA CRIANÇA que o faz mas, às vezes, em determinadas regiões, são as par-
teiras ou as curandeiras que procedem à operação, com eficácia
O silêncio e, ainda mais, o mutismo, quando seria de esperar
ou, noutros sítios, é o barbeiro, com uma faca ou uma navalha.
uma participação faladora, surpreende e destrói a segurança
da conversa e mesmo os laços sociais, suscitando a vontade de
Van Gennep coloca no início do século o desaparecimento
o quebrar, de arrancar, finalmente, uma palavra que renove a
deste hábito”. Ao libertar simbolicamente a língua do obstá-
comunicação num terreno conhecido, para dissipar a angústia.
culo carnal que arriscaria atrapalhá-la, está-se a trabalhar para
O calado põe às vezes os nervos em franja e provoca brutali-
a possibilidade da palavra. G. Charuty (1985, 123) salienta que
dade ou sedução em relação a si, para o obrigar a romper o sor-
a libertação da língua é seguida, pouco depois, pela cerimónia
tilégio. O mistério que ele parece trazer consigo, a obstinação
do baptismo, que remata o aperfeiçoamento da fala futura.
em nada dizer, que está tanto em contradição com as normas
sociais da conversação e do tomar da palavra, provocam a 16 O exemplo espantoso da terapia conduzida por Sophie Morgenstern com
emoção, a cólera, a vontade de que, pelo menos, uma palavra uma criança padecente de mutismo psicogénico.Ver em S. Morgenstern,
dissipe o embaraço da situação. A criança, principalmente, «Un cas de mutisme psychogêne», in ]-. Nasio (1987, 43-60).
17 A. van Gemep, Manuel de folklore, T1, p. 143.

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de outras crenças atestam o medo que então existia, nos meios
Porém, em contrapartida, um desvio no desenrolar da cerimó-
populares, de ter um filho incapaz de falar?8.
nia expõe a criança a consequências nefastas para o seu enca-
Em diversas regiões europeias, o acesso ao mundo da cul-
minhamento em relação à fala. Atitudes precisas da mãe e do
tura também parece estar ligado à presença de um instru-
pai em relação aos padrinhos; a obrigação de seguir fielmente e
mento sonoro. O baptismo é muitas vezes realizado sob os sinos
mesmo meticulosamente os procedimentos: o credo tem de
da igreja e incumbe então, como na Gasconha, ao padrinho ou à
ser recitado sem erros, nem hesitações, a madrinha e o padri-
o ritual religioso, etc. madrinha, de os fazer tocar: «Uma parente ou uma amiga se-
nho têm de se beijar assim que termina
vai repercutir-se no acesso à lin- gura a criança, o mais perto possível do sino que se toca ale-
Uma falha na cerimónia
gremente. Em certas regiões, é o próprio padrinho quem toca.
guagem ou na voz da criança. Deste modo, na Catalunha, «era
agoiro o padrinho não pronunciar os nomes muito Quanto mais o sino faça ouvir a sua voz, menor é o risco da
de mau
criança ficar surda e muda: o repicar dos sinos passa para a fala
claramente e muito correctamente. Em Puigcerda, se o padri-
do recém-nascido» (Charuty, 1985, 125). Noutros lugares da
nho se enganava, acreditava-se que a criança ia ser doente e
França, nomeadamente na Bretanha, não são apenas os sinos
infeliz; em Castello de Farfanya, que ela não falaria claramente
e seria gaga... Em Barcelona, os antigos pensavam que da
da igreja que ajudam, mas também as «rodas de sinetas», pre-
decisão e do tom de voz com que os padrinhos diziam o nome
gadas ao muro do edifício religioso e que formam um carrilhão
ao padre, dependiam a força e a boa voz do baptizado» quando se puxa com uma corda. O uso não se perdeu completa-
(Charuty, 1985, 126). A obsessão da comunidade é o silêncio, a
mentamente, ainda hoje. Pierre Jakez Hélias recorda-se da capela
gaguez, a loucura, isto é, um mau uso da palavra que coloque de Tréminou, perto de Pont-l'Abbé onde um dos seus tios, que
tinha dificuldades na fala, ia em peregrinação. «Mas», escreve
a criança fora do meio social. Padrinho e madrinha, substitutos
as expectativas colectivas em relação à ele «é preciso ter moedas no bolso para as meter na caixa das
dos pais, incarnam
esmolas, depois de ter tocado o mais claramente possível.» Se
criança. A sua facilidade de elocução provém da sua qualidade
a cura tarda, «resta a possibilidade de ir, em carroça, à Igreja de
de voz. A sua hesitação, a sua indiferença, o seu erro, a sua
Comfort, que tem uma roda de carrilhão à entrada do coro.
ausência de firmeza ou de exigência, conduzem ao mutismo ou
à fala desastrada da criança, de quem, maus emissários da
A criança muda agita o carrilhão, fá-lo tocar cem vezes mais
sociedade, eles assinalaram mal os caminhos da linguagem.
alto do que a moeda trazida. E conta-se a história daquele que
cujo sucesso está li- nunca tinha pronunciado uma palavra na vida e que, ao ouvir
G. Charuty regista ainda outros hábitos,
o barulho das sinetas, gritou repentinamente: “Sell ta! Pegemend
gado ao reforço da fala da criança. Na Catalunha, segundo ele, o
a drouz!” “Olha! Que barulho que isto faz!"»19, O tocar o sino,
tratamento das crostas que se formam na cabeça do lactante,
instrumento sonoro que liga o homem a Deus, confere uma
o primeiro corte de cabelo ou mesmo o corte das unhas,
antecedência simbólica à fala da criança. A claridade do som
obrigam a respeitar o período propício, sob pena de provo-
carem o mutismo ou a gaguez. A criança não deve ser con-
vai engendrar a facilidade de uma fala que passa a ficar livre do
silêncio ou do embaraço. Por vezes, o sucesso ultrapassa
frontada precocemente com a sua imagem no espelho, porque
corre o risco de se perder. A oferta de uma taça, ou de um copo,
de um prato ou de uma tigela, segundo as regiões, favorece a 18 Num contexto cultural diferente, G. Devereux (1966, 85-128) descreve, entre
prontidão em aprender a falar. Os objectos específicos do lar os Mohave, um povo particularmente apreciador da língua e do prazer da
aceleram o descolar da criança em relação ao corpo maternal e conversação, uma preocupação igual de defender a criança do mutismo,
prefiguram a sua autonomia pessoal, que vai encontrar na lín- observando um respeito meticuloso pelos rituais e pelos tabus da primeira
gua o seu instrumento privilegiado. O seu manejo visa escon- infância.
19 P. Jakez Hélias, Le cheval d'orgueil, Paris, Pon, 1975, p. 124.
jurar o mutismo ou um uso indesejável da fala. Uma quantidade

62 63
mesmo todas as esperanças; um especialista de folclore conta
A LIGEIREZA DA TAGARELICE
que conhece «uma boa mãe de família que, por várias vezes, Numa conversa, o silêncio tranquilo pode ser um privilégio
tinha recorrido a este meio por causa do seu filho mais velho; nascido da cumplicidade ou o sinal de uma completa indife-
teve tanto sucesso, por fim, e o seu filho tornou-se tão falador rença. Qualquer outra situação exige dos indivíduos, mutua-
que ela foi obrigada a virar a roda ao contrário para moderar mente em presença, que sacrifiquem ao ritual imperativo das
um pouco a sua loquacidade» (Chatury, 1985, 125). Na sua palavras, sem contudo cair na tagarelice que, também ela,
Histoire de Homme, Buffon cita a cura espontânea de um depressa se torna incomodativa. O regime de fala próprio de um
homem de uma vintena de anos, filho de um artesão de grupo social está ameaçado por defeito, isto é, pelas reticências
Chartres que, «surdo e mudo de nascença, começou de repente na fala ou pela abstenção de um dos membros que encontra no
a falar, perante o espanto da cidade toda; soube-se dele que, silêncio ou na retenção um refúgio propício; mas também o é
três ou quatro meses antes, tinha ouvido o som dos sinos e por excesso, por um uso da palavra maior do que o requerido
tinha ficado extremamente surpreendido com essa sensação pelas circunstâncias. Nas conversas da vida corrente, é fácil
nova e desconhecida; foi depois, durante três ou quatro meses, recorrer às eternas astúcias que permitem lutar eficazmente
escutar, sem dizer nada, acostumando-se a repetir, muito baixo, contra as ameaças do silêncio, ou contra a impressão de não ter
as palavras que ouvia, esforçando-se na pronúncia e nas ideias nada para dizer. O tempo que faz, notícias sobre a saúde de uns
ligadas às palavras; finalmente julgou-se pronto a romper o e de outros, os mexericos do bairro, os últimos acontecimentos
silêncio e declarou que falava, embora ainda apenas imper- desportivos proporcionam uma fonte constante para as comu-
feitamente»20, nicações vulgares da vida social. O valor informativo do assunto
O léxico que nomeia os componentes do sino, em francês, é residual, ou mesmo nulo, uma vez que se trata de assuntos
bem como nos dialectos occitanos, italianos ou espanhóis, uti- que toda a gente conhece, sem que, no entanto, vá pensar que o
liza o corpo humano: cabeça, cérebro, testa, orelhas, boca, gar- outro é idiota. Esta fala destituída de conteúdo é uma forma
ganta, goela, pança, costas, etc. E o próprio sino pode estar ritual de oposição ao silêncio ou uma entrada no assunto, marca
afectado por problemas de fala, quando o som claudica, um reconhecimento social sem ambiguidades de que o inter-
enrouquece, etc. (Charuty, 1985, 129 segs.). Tal como a criança, locutor se aproveita para estabelecer o contacto e começar a
tem de ser baptizado antes que consiga fazer ouvir um carri- conversa. À sua comodidade consiste na facilidade com que
lhão que é só seu, com a sua particularidade de timbre que a o convite ao diálogo pode ser feito com a simples concordância
vizinhança é capaz de reconhecer entre mil. O ritual marca do interlocutor em relação ao facto, por exemplo, «que realmente
um afastamento progressivo do silêncio, tem por objectivo o está um óptimo dia» e prosseguir ou ficar por aí, sem recear
nascimento sonoro do sino. No pensamento tradicional, as deixar ficar mal quem tomou a iniciativa da conversa. O falatório
cordas vocais e as que fazem mexer o badalo do sino não estão é uma fala sem responsabilidade, que não compromete em nada
nada afastadas. Sem dúvida, as diferentes formas de sinetas quem nele participa: palavra sem risco, já desligada de si, mas
miniatura ou de guizos, para além do prazer da brincadeira e contudo essencial, como o sal no pão, para dar valor à existên-
do estímulo sonoro, executam também a mesma função sim- cia e criar a amplitude afectiva do contacto.
bólica de provocar, com o seu exemplo, a fala sem obstáculos À tagarelice é uma forma corrente da comunicação sem con-
da criança. teúdo (Malinowski, 1923; Jakobson, 1964, 217 segs.), suscita O
prazer do contacto sem outro comprometimento e preenche
a função antropológica da confirmação de si e do outro, do for-
20 Buffon, «Histoire de YHomme» in Histoire naturelle, Paris, T3, 1804, talecimento dos laços sociais. Palavras supérfluas, sem dúvida,
p. 231.

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mas cuja ausência retiraria qualidade à relação, reduzindo a lin- palavra prolífera.» Ele desconhece a necessidade das pausas no
guagem a um mero instrumento utilitário. Uma grande parte do discurso e os efeitos da palavra, ocupa o tempo da comunicação
facto de existir tem origem no reconforto esperado com essas e satura as possibilidades do silêncio com a sua indigência de
conversas sem consequências, mas que afastam o silêncio e assunto, impondo ao outro o desconforto de o escutar. Reduz o
explicam implicitamente o valor mútuo das pessoas em presença. seu parceiro a um simulacro, porque a sua impossibilidade de
A fala encontra nisso a sua própria finalidade, perpetua as se calar torna-o naturalmente inapto para escutar ou para sim-
relações sociais mantendo a reserva, sem contudo medir o prazer. plesmente sentir a obrigação de cortesia a que esta está ligada.
Os assuntos delicados são afastados, para permitir a fluidez de Invade o espaço mental do seu interlocutor, cobre-o com uma
uma palavra que passa sem prejuízo de um tema e de um inter- chuva de pormenores sem interesse, que só a ele dizem respeito,
locutor a outro, porque, na verdade, ela não se destina a dar e, não se contentando em fazer de condutor da comunicação,
testemunho do mundo, mas a satisfazer a arte tranquila do quo- retira todas as possibilidades de réplica e fica satisfeito com um
tidiano que faz da conversa um dos aspectos refinados da confronto desarmado e obrigado à aquiescência, «A floresta
existência. A tagarelice faz parte de uma estética da banalidade continua aqui?», escreve Kafka. «A floresta ainda estava relati-
do quotidiano, é uma espécie de poética da enunciação, assina- vamente lá. Mas assim que o meu olhar se afastou dez passos
lando o privilégio, pelo menos nas nossas sociedades ocidentais, abandonei a partida, apanhado, mais uma vez, pela conversa
da palavra sobre o silêncio. É um modo de cuidar do vínculo fastidiosa»21,
“social, uma maneira de verificar que a vida continua e não Assustando-se assim com o silêncio e rompendo a regra da
prepara nenhuma surpresa desagradável. «O essencial», escreve reciprocidade do diálogo, o tagarela corre o risco da repetição
Maurice Blanchot, «não é que aquele homem fale e aquele outro infindável do inútil. A sua retórica incansável do insignificante
escute, mas que, não estando ninguém em especial a falar e expõe-no ao aborrecimento ou à impaciência de um interlocutor
ninguém em especial a escutar, haja todavia fala e como que submergido por um fluxo verbal fechado sobre si mesmo, sem
uma promessa indefinida de comunicar, garantida pelo inces- pausas, sem silêncios, cuja única razão de ser é afirmar: «Existo,
sante vaivém das palavras soltas» (Blanchot, 1969, 358). continuo a existir e sempre.» O tagarela fala só consigo, mas pre-
cisa do pretexto de um outro, de um duplo, de rosto indiferente
porque, curiosamente, apesar da sua sede de discurso, não é
O PESO DO TAGARELA capaz de falar sozinho, diante de um muro ou de um espelho,
precisa da sombra do outro para dar corpo à sua verborreia.
Em contrapartida, o tagarela abusa da tagarelice e, sobre- E contudo, o seu interlocutor é praticamente passível de ser tro-
tudo, não deixa qualquer espaço ao outro. Leva ao limite o cado, suscitando apenas diferentes orientações de discurso. Por
recurso à comunicação sem conteúdo, faz mesmo uma caricatura vezes, tem mesmo a tranquila audácia de se confessar tagarela,
dela, pela destruição simbólica do seu parceiro, a quem apenas desarmando antecipadamente qualquer tipo de queixa, tomando
pede um ouvido atento. Na sua luta obstinada para vencer o a iniciativa, reivindicando, sem falso pudor, essa fala profusa
silêncio, mantém valorosamente a sua vida num fio de uma e destituída de interesse, «como se desejasse anular a sua
enunciação inesgotável, procurando saturar o tempo, cortejan- relação com o outro, no momento em que o faz existir, lem-
do-o com um discurso cujo destinatário é indiferente, porque a brando (implicitamente) que se faz confidências, faz uma con-
sua palavra não é vazia de sentido, mas sem qualquer efeito fidência inessencial, dirigida a uma pessoa inessencial, através
para quem a escuta; tem apenas valor na reiterada afirmação de
si mesmo. O cogito do tagarela podia ser assim formulado:
21 F. Kafka, Journal, Paris, Grasset, 1954, p. 1.
«Existo porque rompo continuamente o silêncio com a minha

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de uma linguagem sem responsabilidade e que recusa qualquer tensão muscular. Este mínimo de escuta encoraja a sua loquaci-
resposta», escreve M. Blanchot (1963, 171). dade e, às vezes mesmo, desde que sinta o despertar de uma
O tagarela manifesta uma paixão singular pela função sem atenção, as suas frases inflamam-se em estilo de debate forense,
conteúdo da linguagem e proclama-a. Os personagens, Clamence,
tanto mais seguro de si mesmo porque não tem consequências.
em La Chute, de Camus, ou Le Bavard, de Louis-René Des Forêts,
«O palavreado destrói a linguagem ao mesmo tempo que
ilustram a fúria de uma fala sem interlocutor real, o solilóquio
impede a palavra», escreve ainda M. Blanchot. «Quando se fala
disfarçado que apenas exige do outro uma aparência de atenção por falar, não se diz nada de verdadeiro, mesmo quando não se
e onde as mesas de taberna são o lugar de eleição. Falar, falar diz nada de falso, porque, na verdade, não se está a falar»
sem descanso para se opor ao silêncio, para atestar que O vín- (p. 177). Mas a palavra não é inesgotável, como o silêncio, e
culo social não está completamente dissolvido e afirmar, por compreende-se que uma atitude destas conduza à inflação verbal.
este escasso meio, a sua importância pessoal. «Falar depressa», O nada é infinito e sempre a crescer. Se a tagarelice é uma com-
S. Beckett «palavras, como a criança solitária que se
escreve
ponente necessária e boa da vida quotidiana, uma forma ele-
junta em número, dois, três, para estarem juntos, e para falarem
mentar da cumplicidade, o tagarela, por sua vez, ataca a língua
juntos, durante a noite»?2, naquilo em que ela contribui para o convívio social. Ao recusar,
O tagarela provoca às vezes a dispersão do grupo, quando se
sem dar por isso, o seu lugar ao outro, faz disso um espelho de
aproxima, ou o súbito afastamento daquele que ia ao seu encon- si próprio, ocultando a sua capacidade para comunicar e inte-
tro sem se dar conta. Perante o tagarela, o silêncio tem repenti-
ressar o seu interlocutor. Porque não tem silêncio, a palavra do
namente um valor inesperado, mesmo para quem nunca tinha tagarela é fechada e asfixiante, sem reciprocidade. Procura
pensado nisso. Plutarco, com graça, fala do vazio que se produz preencher as ameaças do silêncio e condena-se a ser vazia e
à sua volta, no teatro ou na praça, quando ele se avizinha, o
incansável porque nunca é a última.
súbito mutismo do grupo surpreendido pela sua chegada, com
receio de ser apanhado pelas suas palavras antes de descobrir
motivos válidos para abandonar o lugar, «cada um receando O SILÊNCIO É DE OURO
o furacão e o enjoo... Também ninguém sente boa disposição
em relação a essas pessoas: nem os vizinhos de mesa, nos ban- Toda a palavra introduz no mundo um suplemento difícil de
quetes, nem os companheiros de tenda, no exército, nem nenhuns gerir, uma energia que muda a ordem das coisas, mas deixa o
daqueles que encontram, nas suas viagens por terra ou por mar» homem desguarnecido de poder para controlar as consequên-
(Plutarco, 1991, 65-66). A proximidade do tagarela é uma garan-
cias. Daí a desconfiança de que várias sociedades dão prova em
tia de ruído, uma impossibilidade de procurar dentro de si uma relação à linguagem, a invocação de provérbios, contos ou mitos
interioridade propícia. A sua fala sem fim é uma declaração de sobre a necessária prudência que deve existir na palavra e fazer
guerra que não dá descanso ao silêncio. com que o silêncio seja muitas vezes preferido. Vale mais pen-
Sem dizer nada, o tagarela diz milhares de coisas, o assunto
sar duas vezes antes de falar. Já a Bíblia, em várias passagens,
é irrelevante, uma vez que se trata apenas de manter a distância,
ensina as virtudes do silêncio. O Eclesiastes recorda que há «um
de ocupar o tempo, de esconjurar a vinda do silêncio. Na momento para falar e um momento para estar calado» (3, 7).
condição, contudo, de um assentimento regular, ou de um olhar
Mais adiante, exorta o fiel: «Não dês pressa aos teus lábios, que
que não deixe escapar, com risco de provocar uma dolorosa
o teu coração não se apresse a proferir uma palavra diante de
Deus, porque Deus está no céu e tu estás na terra: assim, que as
tuas palavras sejam escassas» (5, 1-2). «Quanto mais palavras
22 S. Beckett, Fin de partie, Paris, Minuit, 1957, pp. 92-93. mais vaidade: Que vantagem tira o homem disso?» (6, 11,

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e o seu conteúdo de acordo com a posição do indivíduo na
insiste. Os Provérbios dizem que aquele «que sabe conter as linhagem, na família, na classe etária, quanto ao sexo, as
suas palavras conhece o saber, um espírito frio é um homem de circunstâncias, o estatuto do interlocutor, etc. Refrear a língua é
inteligência» (17, 27). Como consequência: «Protegendo a boca e manter a sua posição, é juntar, sem dissonâncias, a sua voz ao
a língua protegemo-nos a nós próprios da angústia» (21, 23). tecido social. A aprendizagem da fala, por exemplo, consiste,
Mais ainda «mesmo o louco, se estiver calado, passa por sábio, antes de tudo, para a criança reconhecer o estatuto dos seus
por inteligente, aquele que fecha a boca» (17, 28). «Com o apoio companheiros, a zona legitimada da fala, que os cerca, as regras
dos homens justos nasce uma cidade, pela boca dos maus ela é da sua distribuição. Penetrar nos hábitos da língua impõe saber
destruída... O homem inteligente cala-se. É um propagador de em que alturas e diante de quem nos devemos calar. Entre os
maledicência aquele que revela segredos, é um espírito forte o hábitos que a criança tem de adquirir está em primeiro lugar o
que esconde as coisas» (11, 11-13). O silêncio é penhor da segu- de ter a «língua curta», ou seja, de não falar demasiado, de saber
rança colectiva, qualquer palavra impensada é portadora de manter-se discreto. À criança deve também aprender a ter a
corrupção, semeia a confusão, se não for cuidadosamente pon- «mão curta», o «olhar curto», o «pé curto» e as «orelhas curtas»:
derada. «Na abundância de palavras tem de haver erros, aquele tantas necessidades relacionadas com a sobriedade da palavra.
que fecha a boca é prudente» (10, 19). Os tempos de desgraça Com efeito, escreve J. Rabain, «aquele que olha de mais, fala a
ensinam igualmente a prudência ao sensato que finalmente torto e a direito daquilo que vê; o que anda de mais, espalha por
prefere calar-se (Amos, 5-13). Voltaremos ao assunto, a propó- aqui e por ali palavras impensadas; aquele que tem a mão curta
sito do pecado da fala. submete-se à palavra dos mais velhos e espera as suas ordens
Numerosos provérbios finlandeses insistem no valor social para agarrar um objecto». Quanto à escuta, visa ensinar à criança
do silêncio: «Escutai muito, falai pouco», «Basta uma palavra o discernimento que consiste em «escutar» o chamamento dos
para causar muitos problemas», «Uma boca, duas orelhas», mais velhos, continuando surdo em relação às coisas que não
«Cão que ladra não apanha lebre», «Uma palavra vale tanto lhe dizem respeito. As regras do silêncio não são menos obri-
como nove» (Lehtonen J., Sajavaara, 1985). M. Saville-Troike gatórias do que as regras da palavra (Rabain, 1979, 143 segs.).
cita, por sua vez, provérbios espanhóis («Pela boca morre O
Pronunciada de acordo com a tradição, a palavra é propícia,
peixe»), Farsi («O homem que escuta torna-se sábio»), etc. visa a acalmar uma ferida, a dar sentido a um acontecimento
(Saville-Troike, 1985, 11). «Não abras a boca a não ser que penoso, a restabelecer a ordem, mesmo quando às vezes o faz
tenhas a certeza que o que vais dizer é mais belo do que o silên- com alguma brutalidade, quando volta a pôr no seu lugar o
cio», diz um provérbio árabe. Outro explica que : «Tu és senhor agressor e o agredido (Jamin, 1977, 43).
das palavras que não pronunciaste e escravo daquelas que te A palavra está no centro da comunicação, saboreamos a elo-
escaparam.» Um adágio valão lembra judiciosamente que quência, a facilidade de assunto de quem sabe discorrer de
«Aquele que se cala não fala mal». No Japão, onde a sobriedade acordo com as regras e ir buscar a ponderação do grupo, a sua expe-
da palavra é uma virtude, a reserva de um homem político não riência, as suas tradições, etc. Gostamos de ouvir os contistas.
prejudica nada a sua popularidade nem a sua carreira, um Mas o valor da palavra atinge a sua medida plena com a cober-
recente primeiro-ministro era conhecido pelo «seu silêncio e tura de silêncio que a acompanha. Um saber-dizer implica um
pela sua paciência» (Lebra, 1987, 348). saber-fazer, um conhecimento agudo dos poderes de uma lín-
As sociedades africanas valorizam a linguagem. Para os gua que convém utilizar da melhor forma em relação à comu-
Dogon, que assimilam a palavra à tecelagem: «deixar de falar nidade. Não existe a inocência da palavra. Em numerosas cul-
seria deixar de tecer o mundo e as relações dos humanos entre turas africanas ela é um laço de força e de vulnerabilidade,
si» (Calame-Griaule, 1965, 85). O sussurro regular das palavras ajuda a dominar o mundo exterior, mas é também susceptível
anima o vínculo social. Uma ordem rigorosa distribui a palavra

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de abrir brechas, de meter um indivíduo sob a influência ne- fortalece o vínculo social e corrige os excessos da palavra. Não
fasta de um outro. Uma criança Tammari conhece logo a neces- se trata, para os Bambara, como para outras sociedades
sidade de baixar a voz, no fim do dia, para não incomodar africanas, de um processo ao encontro das insuficiências ou da
os espíritos subterrâneos que se apoderam do ambiente: as superficialidade da língua, e de um elogio inequívoco do silên-
árvores, as rochas, os pântanos. Os espíritos horrorizam-se com cio, mas antes de uma chamada de atenção sobre o facto de que,
o ruído dos humanos, sobretudo com as suas manifestações de se a palavra é essencial à comunicação social, não deixa de ter
voz, só as toleram sabendo que eles tomam precauções para ten- perigos, nem deixa de ser ambígua. Todavia, calar em excesso
tar que os esqueçam (Smadja, 1996, 15). Nas sociedades africanas ou envolver em demasiadas sombras aquilo que se diz, também
a palavra pode matar, tornar doente, provocar o ciúme, causar a não é melhor conduta. O homem deve encontrar uma medida
desgraça, etc. A preocupação com o silêncio e o segredo enraíza- justa entre o ouro do silêncio e a prata da palavra, porque um
-se na ambivalência que marca a experiência da palavra, traduz e outra são indissociáveis. «A palavra», dizem os Bambara
a necessidade de se proteger, de comunicar tendo o cuidado de «faz perder o homem, o silêncio salva-o» ou ainda «o silêncio faz
não dar oportunidades sobre si mesmo. É preciso segurar a lín- amadurecer os frutos, a palavra faz com que caiam» (Zahan,
gua para não ficar à mercê do outro. O silêncio passa a ser 1963, p. 155). Calamo-nos na dor, para preservar os segredos da
uma protecção, uma reserva face ao risco em que se pode cair. iniciação ou evitar palavras inoportunas. Os Dogon têm ati-
«A palavra só é eficaz e só se valoriza plenamente», escreve tudes parecidas. O tagarela condena a palavra a tornar-se
D. Zahan, «na condição de se revestir de sombra:.. Só conserva insignificante e expõe-se, ele próprio, ao descrédito por não
a sua integridade em proporção com o seu grau de carência. saber controlar melhor a fala, tornando-se um «fazedor de
Levando as coisas ao paradoxo, poderíamos mesmo dizer que, ruídos». Quem não sabe calar-se é como a chuva, que afoga
para os Bambara, o verdadeiro verbo, a “palavra” digna de as colheitas e apodrece as raízes (Calame-Griaule, 1965, 374).
veneração, é o “silêncio”» (Zahan, 1963, 150). Estes usam a O silêncio fortalece a autoridade, é a qualidade apreciada do
palavra cautelosamente e desconfiam, porque ela pode «tornar-se homem ou da mulher que nunca dizem uma palavra a mais.
manhosa, pode revelar o que não devia, pode trair. O silêncio é Suster a língua e não falar senão quando necessário é uma vir-
sempre igual a si mesmo e nunca incorre em censura. Entre dois tude. Como em várias outras culturas, o silêncio está ligado à
extremos — o melhor e o pior — se o verbo pode oscilar, como meditação de um assunto, à sua consideração judiciosa, ao
as línguas de Esopo, o silêncio é o meio justo, ao qual o Bambara passo que a palavra é muitas vezes apressada, insuficiente-
recorre com frequência, tanto para se confrontar consigo mente reflectida; ganha em profundidade quando pára um
mesmo, como para alcançar e conservar o poder sobre o seu ser» momento. O silêncio introduz o discernimento na escolha dos
(p. 13). O silêncio está ligado ao domínio de si, o seu uso apro- assuntos. Permite, além disso, ao homem continuar a olhar o
priado está ligado a uma ética social que participa no enraiza- mundo à sua volta, mesmo quando tem dificuldade em com-
mento propício dos homens na sociedade. «Se a palavra constrói preender determinado facto; o silêncio é, na verdade, a hipótese
a-aldeia, o silêncio constrói o mundo», diz um provérbio bam- do simbólico, provoca uma suspensão que permite agarrar as
bara, reúne-o ao encontro de uma linguagem que por vezes o circunstâncias no seu ritmo próprio, a não perder o pé,ea
tomar
dispersa, semeia a confusão, divide o grupo, se lhe faltar este o tempo da reflexão. A arma da linguagem é assim preparada
antídoto. «A palavra», dizem ainda «destrói a aldeia, o silêncio pela tensão do silêncio.
fortalece-lhe as bases» (p. 153). «O silêncio é o contraveneno de
todas as coisas», dizem ainda os Bambara.
Ao introduzir uma distância propícia, um princípio de con-
trolo sobre si próprio, de atenção em relação à comunidade, ele

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CAPÍTULO 2
POLÍTICAS DO SILÊNCIO

«O silêncio possui a sua própria ossatura, os seus próprios


labirintos e as suas próprias contradições. O silêncio do
assassino não é o mesmo da vítima, nem o do espectador.»

EL WigseL, Contre la mélancolie

AMBIGUIDADES DO SILÊNCIO
Vimos que o silêncio é o intervalo preciso para as modu-
lações da comunicação, a respiração do sentido, mas não tem
apenas significado na sua forma, o seu conteúdo desenha, no fio
do discurso, figuras carregadas de sentido: fecho, abertura,
interrogação, expectativa, cumplicidade, admiração, espanto,
dissidência, desprezo, submissão, tristeza, etc. É imediatamente,
nos limites dos assuntos a que se refere, uma forma de discurso
para além da palavra. É um poder ambíguo. O silêncio não se
refere nunca a um significado permanente, os seus movimentos
correspondem à circulação social do sentido. Dando lugar a
todas as possibilidades, ele coloca o homem na indecisão ou no
mal-entendido quando as circunstâncias não permitem chegar a
uma conclusão inequívoca.
O silêncio diz aquilo que as palavras não seriam suficientes
para traduzir, inscreve a emoção no período em que uma frase
não teria salientado a importância. Marca a reserva de alguém
que procura ainda uma decisão, embora noutras ocasiões seja
também a sanção clara do aborrecimento. O silêncio adquire um
significado que não pode ser concebido fora dos hábitos cultu-
rais da fala, fora do estatuto de participação de quem fala, fora
das circunstâncias e do conteúdo da comunicação e da história

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retomar de posição ou a dar livre curso a um momento de
pessoal dos indivíduos em presença. O mutismo súbito de um emoção. O silêncio impõe-se, então, na fuga da palavra. Uma
indivíduo acostumado a falar ou a fala de um silencioso só se regra implícita obriga o parceiro a não insistir, a calar-se, por
compreendem na trama de uma situação precisa. sua vez, antes de seguidamente expressar a sua solidariedade
Uma escuta está cheia da presença do outro, completamente através de um comportamento, de um olhar, de uma palavra,
a recolher a sua palavra, mas também é, por vezes, indiferença, do tom de voz... Mas a emoção que obriga ao silêncio vai bus-
se testemunha uma ausência ou uma rotina que apenas dão à car a sua força também no prazer do momento, no anúncio de
palavra um valor residual ou nulo. Calar-se, ao caminhar com uma boa nova, no alívio de uma preocupação, no prazer de um
a sua companheira na nave da catedral de Estrasburgo ou no reencontro. A serenidade de circunstâncias em que se chegou
templo de Kali, em Calcutá, não responder a uma pergunta ou ao ponto final de uma grande espera é, muitas vezes, sabo-
permanecer surdo quando chamam o seu nome, não são situa- reada em silêncio.
ções equivalentes. O silêncio está carregado de intenções quando Não há qualquer significado anterior ao silêncio, este não
a palavra esperada não surge; é sinónimo de segredo se um incarna nenhuma verdadeira evidência que seja suficiente, por
facto permanece na sombra, fora das investigações; é sinal de si para impor uma realidade incontestável. A sua ambi-
oração, quando o crente se recolhe sobre si mesmo para se guidade expõe os seus hábitos ao mal-entendido ou move-se
reunir com o seu Deus. É também criação, se o músico joga com numa área de projecção susceptível de provocar reacções ines-
uma particularidade especial do som ou procura suspender a peradas. Os nómadas Maraziq, do Sul da Tunísia, de acordo
acção de um instrumento, ou de todos, propondo a escuta de com Louis Massignon, dizem: «Quem se cala recusa, quem se
espaços de silêncio, como Anton Webemn ou, de outro modo, cala consente.» Tristeza ou júbilo contido, passos prudentes do
John Cage. Se o escritor deixar em branco a página onde o leitor assassino ou caminhada tranquila de namorados, cólera ou
esperava uma resposta, se abandona os seus personagens no serenidade, indiferença ou escuta, a ambivalência preside ao
segredo das suas deliberações interiores, esquecendo por destino social do silêncio. A sua polissemia torna-o disponível
momentos o seu poder ilimitado sobre eles, se usa frequente- para usos múltiplos, compreendê-lo exige o apreender a situa-
mente pontos de suspensão ou elipses, como na literatura ção concreta em que ele se insere. Sem dizer palavra, o silêncio
japonesa, ou ainda se usa uma escrita branca, como Camus no não deixa de ser um discurso sugestivo, quando a sua
L'Étranger. As figuras estéticas do silêncio abundam (Van Den ressonância entra numa conversa. À sua eficácia em agir sobre
Heuvel, 1985; Sontag, 1969; Jaworski, 1993; Jankélévitch, 1961; o outro, em transmitir sentido e em alimentar os comporta-
Cage, 1970). Na pintura também existe, através dos equivalentes mentos não é menor do que a da linguagem. A eloquência não
simbólicos da monocromia (Klein), o vazio em que mergulham consta apenas de palavras, mas também de silêncios que
as formas, ou a criação de um ambiente evocador de silêncio, dizem muito. Jensen enumera deste modo uma série destas
próprio da situação representada, dando-lhe uma ressonância «funções» no decorrer da vida quotidiana, insistindo sobre a
metafísica (De Chirico, Hopper, etc.). sua ambivalência. O silêncio une e separa; trata as feridas ou
Ainda outro aspecto do silêncio, quando a emoção trans- aviva-as; revela uma informação ou esconde-a; assinala um
borda na voz, obrigando-a a interromper-se. A perturbação desacordo ou um acordo; indica o vazio ou a actividade
interior espelha a emissão clara da palavra e mergulha o indi- (Jensen, 1973; Baldini, 1989, 11 segs.). A lista poderia continuar,
víduo numa outra dimensão da realidade. Não consegue precisamente porque o silêncio não é uma substância, mas
encontrar as palavras para se exprimir. A fala fragmenta-se uma relação. Este capítulo avança uma série de figuras do
perante conteúdos demasiado poderosos que varrem tudo à silêncio tal como as podemos encontrar nas comunicações
sua passagem. O aparecimento de uma lembrança dolorosa, no entre os indivíduos.
decorrer de uma conversa, corta o fôlego e obriga a um

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O CONTROLO DA INTERACÇÃO uma razão do aumento dessa autoridade. Se «não existe grande
homem para o seu criado de quarto», é porque a palavra, quan-
A linguagem é poder, poder de obrigar o outro, de lhe impor to mais trivial for, dissipa o mistério necessário à autoridade,
ideias, de lhe dar ordem de se calar ou de falar. A palavra não é enraizada nas preocupações quotidianas. Todo o poder se ali-
inocente naquilo que implica que um outro se cale e se subor- menta no banho fertilizante de uma zona de segredo, real ou
dine a ela, principalmente às suas consequências que podem ser relacionada com uma eficaz ficção, que mistura as suas modali-
mais ou menos pesadas. É muitas vezes um monopólio ou uma dades de influência, juntando um suplemento de imaginário
prioridade que aproveita ao detentor do poder ou da autoridade que torna mais activa a autoridade exercida. Ao calar-se, o
hierárquica. Numa instituição, a distribuição do tempo de palavra homem de poder procura aumentar o seu carisma, prodigalizar
ou de silêncio depende da distância social que separa os dife- uma melhor imagem de si mesmo, com o fim de construir o seu
rentes membros. O empregado não dispõe da mesma latitude poder!. O silêncio faz supor um saber que é muitas vezes
de palavra ou de silêncio que o patrão ou o quadro e, às vezes, sobrestimado por fantasmas. Mas entrincheirar-se no silêncio
tem apenas «o direito de se calar». O seu interlocutor orienta e não seria nada eficaz, a longo prazo, e o superior também deve
dá o ritmo das conversas e tem sobretudo o privilégio de esco- fazer uso da palavra para dar as orientações necessárias, lem-
lher um determinado uso do silêncio. Um exemplo: um jornal- brar as regras da instituição ou os deveres daqueles que estão
ista e um fotógrafo da costa leste dos Estados Unidos vão vis- sob as suas ordens, etc. O domínio da autoridade sobre si
itar a casa do administrador de uma plantação de algodão do própria é favorecido pela deferência e pela capacidade de re-
Sul. O mal-estar instala-se e torna-se pesado, tanto mais que serva do subordinado. O domínio do silêncio e da palavra é um
nesse domingo os trabalhadores estão presentes para traço da autoridade institucional. A reivindicação do «direito à
almoçarem juntos. «O proprietário e o administrador estavam a palavra» assinala precisamente a tentativa de quebrar esse
conversar. Os convidados do administrador mantinham-se na monopólio da fala, com o fim de estabelecer a paridade. Uma
periferia da conversa; quase sempre silenciosos, respeitosos até vez adquirido esse direito, ele transforma o estatuto do silêncio.
verem o que convinha que fizessem, e depois afastaram-se para De coacção transforma-se em escolha.
o outro lado da casa, esperando atentamente o olhar do pro- A retenção da palavra traduz muitas vezes a tentativa de
prietário» (Agee, 1972, 45). conservar o controlo da comunicação, de não se achar impli-
Qualquer sistema hierárquico implica uma canalização da cado num intercâmbio não desejado, é uma postura de obser-
palavra, uma manipulação do silêncio que se apresenta como vação, de escuta. Permite ver a chegada, esperando o momento
uma zona estratégica de refúgio e, simultaneamente, em relação
aos que lhe estão sujeitos, como que uma reserva perigosa de
ameaças. Se o subalterno fica muitas vezes reduzido ao silêncio, 1 Outras sociedades, mais comunitárias, insistem, inversamente, na
transparência do chefe e na necessidade da sua palavra interminável.
perante o seu superior, este último não usa necessariamente do
A inocência do chefe deve ser incansavelmente proclamada. À sua parti-
privilégio da palavra que o seu estatuto lhe confere, porque cularidade é a de não exercer qualquer autoridade, mas de ser «o autor da
ignora as vantagens psicológicas da distância e, portanto, do paz», um homem que dá mais do que recebe, um mediador. «É que, se nas
bom uso político da sua palavra. A autoridade é um dosea- sociedades do Estado a palavra é um direito do poder, nas sociedades sem
mento sábio de sombra e luz. Não dizer nada quer às vezes Estado, pelo contrário, a palavra é o dever do poder», escreve P. Clastres.
dizer muito, dizer é prova do seu ascendente para pôr as coisas «Ou, dizendo de outro modo, as sociedades indianas não reconhecem ao
chefe o direito à palavra por ele ser chefe: exigem que o homem destinado
no seu lugar. Qualquer autoridade moral ou institucional é se- a ser chefe prove o seu domínio sobre as palavras. Falar é, para c "hefe, uma
nhora da palavra e do silêncio, reserva-se a iniciativa da comu- obrigação imperativa, a tribo quer ouvi-lo: um chefe silencioso não é um
nicação. Esta faculdade é não apenas um atributo, mas também chefe» (Clastres, 1974, p. 134).

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favorável, sem mostrar a sua eventual vulnerabilidade ou as sobre si, suscitado por uma preocupação de prudência.
suas dúvidas. É também um poder temível, como lembra Susan B. Gracián, ao traçar o perfil do homem de corte, descreve a lín-
Sontag ao analisar o filme Persona, de Bergman, onde o silêncio gua como «uma besta selvagem que é muito difícil voltar a
obstinado de um dos protagonistas lhe confere «uma posição prender quando se escapa». Vale mais, sugere ainda Gracián,
virtualmente inviolável de força com a qual manipula e descon- «imitar a conduta de Deus, que tem todos os homens em sus-
certa a sua companheira, a única a carregar com o fardo da penso»t. Qualquer palavra é perigosa, na medida em que
palavra» (Sontag, 1994, 17). O silêncio do outro, nas circunstân- mostra as cartas, quando o silêncio continua a deixar pairar a
cias que exigem a sua palavra, introduz uma posição penosa de dúvida. «Nunca o homem está mais seguro de si do que no
espera, a repercussão de uma subordinação difícil de contornar. silêncio», escreve o abade Dinouart: «fora disso, parece desfa-
Ao calar-se, o outro manifesta o pleno poder da sua posição, zer-se, por assim dizer, e dissipar-se no discurso, de modo que
deixa a sua vítima na dúvida sobre o que lhe convém fazer, se torna menos seu que dos outros» (Dinouart, 1987, 65). Em
reduze-a à impotência. Proust dá um exemplo impressionante determinadas circunstâncias, o silêncio é de ouro. Num grupo
em Le Côté de Guermantes. Robert acaba mais uma vez de se onde a desconfiança é habitual, a ponderação meticulosa
zangar com Rachel, está arrependido e espera desespera- daquilo que convém ser dito aproxima-se, às vezes, da
damente um sinal de reconciliação da sua parte, mas ela não obsessão. Há maior latitude de ajustamento no silêncio do que
se manifesta. E Robert vê a sua dor a aumentar, sem ter qual- na frase já dita, que fixa o sentido e obriga cada um a tomar
quer domínio sobre a situação.«Robert comentava para si posição. Não que a prudência exija sempre o silêncio em vez da
próprio: “O que é que ela faz, para se calar desta maneira? Sem palavra, por vezes o inverso é verdadeiro, quando uma des-
dúvida, engana-me com outros?” E dizia mais: “Que fiz eu para culpa é conveniente, como desligar-se publicamente de uma
que ela se cale desta maneira? Talvez ela me odeie e para sem- opinião revoltante, por exemplo. Requer principalmente um
pre.” E acusava-se. Também o silêncio o deixava louco, na ver- uso correcto do silêncio, segundo as circunstâncias, em função
dade, pelo ciúme, e pelo remorso... Há explicação mais cruel que de uma espécie de medida que saiba contemporizar, sentir as
o silêncio que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada oportunidades. «O silêncio político é o de um homem pru-
uma a ponto de cometer uma traição?» O mutismo, aqui, é uma dente, que se domina, que se conduz com circunspecção, que
posição de autoridade, sujeita o outro às angústias da espera e não está sempre aberto, que não diz tudo aquilo que pensa,
dos fantasmas. Robert fica espiando o menor sinal, em vão, que nem sempre explica a sua conduta e os seus propósi-
e «encontrava-se desesperado, no deserto real do silêncio tos; que, sem trair os preceitos da verdade, não responde sem-
sem fim»2, pre claramente, para não ficar descoberto» (Dinouart, 1987, 61).
O silêncio é também um modo de defesa, de domínio sobre É conveniente não falar senão a propósito, quando se segue
si, um recuo provisório que permite testar a determinação ou uma qualquer estratégia de valor próprio, de salvaguarda ou
avaliar os argumentos do outro. A linguagem passa então a ser de demonstração de excelência num domínio particular ou de
entendida como «um local de excesso»? que desvenda, quando salvaguarda de si próprio. O silêncio protege a intimidade
um silêncio bem pensado permite o controlo da situação. A me- de quem não pretende revelar os hábitos tradicionais da sua
dida rigorosa da palavra obedece a uma vontade de domínio comunidade ou dos elementos da sua vida privada. À questão
levantada esbarra então com o mutismo ou com um gesto de
2 Marcel Proust, Le Côté de Guermantes, Paris, Classique Français, 1974, impotência, um riso que marca a recusa de se deixar pôr a nu.
pp. 126-127.
3. Cf. os comentários de J.-L. Courtine e Cl. Haroche no seu prefácio a 1 Abbé
Dinouart (1987, p. 39). 4 B. Gracián, L'homme de cour, Paris, Champ Libre, 1980, pp. 9 e 19.

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A capacidade do silêncio, para dizer várias coisas ao mesmo enfurecida do outro que uma palavra, sempre desastrada, que
tempo, permite uma resposta hábil a uma pergunta delicada ou ele pode facilmente utilizar para envenenar a situação. Ao
uma formulação ambígua. Trata-se então de recorrer às formas recusar escutar o outro, ou mesmo de lhe responder, cortam-se
tradicionais do implícito, de sugerir sem chegar à revelação e, os seus argumentos, invalidando, de imediato, a sua defesa.
deste modo, descartar a responsabilidade de ter mantido uma Ao afirmar a sua autoridade na matéria através do silêncio, o
conversa comprometedora. Uma retórica minimalista mantém- indivíduo pretende economizar uma discussão penosa, que
-se na fronteira do não-dito, jogando com as capacidades do não conduzirá a nenhuma mudança de opinião do seu lado.
ouvinte para completar o que ficou meio dito ou mera alusão. A recusa em discutir funciona como uma arma sem réplica para
Com economia de meios, mesmo sem o recurso à palavra, reduzir justamente o outro ao silêncio, por não ter outra esco-
trata-se de dizer muito e-de se retirar como quem não quer lha. Refugiar-se no mutismo, quando surgem situações tensas,
a coisa, dando a impressão de nada ter dito: «Ora», escreve torna-se então uma estratégia de controlo de uma emoção que
O. Ducrot «dizer qualquer coisa, não é apenas fazer com que o só espera palavras para se espalhar, como uma hemorragia, e
destinatário o pense, mas também fazê-lo de modo a que uma ameaçar por muito tempo, nas suas consequências, a estima
das razões por que o pensa seja o ter reconhecido em quem fala própria ou as relações com os outros (Saunders, 1985).
a intenção de o levar a pensar. E, justamente, pode acontecer O emprego judicioso do silêncio, como sistema de controlo
que se deseje simultaneamente dizer (neste sentido forte) e da afectividade, encontra uma explicação, quase experimental,
poder ter como defesa o ter querido dizer» (Ducrot, 1972, 15). nos modos de narração do contista ou do orador político, ou na
A vantagem do implícito consiste, assim, em jogar em dois arte dos «conversadores brilhantes», quando uns ou outros pre-
tabuleiros ao mesmo tempo: «beneficiar da eficácia da palavra tendem manter o auditório em suspenso, não ignorando a força
e da inocência do silêncio« (p. 12). O indivíduo que toma a ini- emotiva da expectativa. A palavra subitamente hesitante ou que
ciativa de comunicar procura controlar a situação desvendando pára, cria o desejo impaciente de saber mais, dramatiza a narra-
meias palavras e meios silêncios. Joga sobre veludo, sem se tiva, joga com os sentimentos do público. O imaginário mostra-se
comprometer, preparando já a retirada em caso de falha, porque sem obstáculos e faz «agarrar» a narração. Ao mesmo tempo, o
poderá sempre afirmar que nada disse, embora pensando bene- narrador está também a testar a qualidade de escuta do seu
ficiar das recaídas da sua acção cheia de subtileza. auditório, a verificar a sua atenção. Quando se cala, toda a gente
suspende o gesto com receio de fazer um ruído que o possa
incomodar.
O CONTROLO DE SI PRÓPRIO
Controlar a troca de comunicação, certamente, mas também OPOSIÇÃO
controlar-se a si próprio, para evitar uma tensão com o outro.
A palavra tem uma capacidade de arrebatamento que evita o O silêncio de recusa, na medida em que suspende a comuni-
silêncio. Ficando calado, para pesar bem a frase, acalmar cação normal através da fala, é um acto positivo no que respeita
a cólera ou a indignação, para dominar uma emoção que ameaça às convenções sociais. Marca uma reprovação sem equívoco.
manifestar-se e invadir a área total da consciência, o indivíduo Um tal silêncio passa então a ser «um acto de não falar, que oca-
evita o conflito ou mantém as aparências; não se deixa intimidar siona uma falha no que foi dito», e é dirigido «quer contra o dis-
e não revela nada. O silêncio apresenta-se como uma técnica de curso social cujo assunto não se compadece com estereótipos,
controlo da emoção, deixando claro, aos olhos de quem observa, quer contra aquele que fala, de quem se recusa a oferta de comu-
a reprovação ou a recusa da situação. Dá menos espaço à réplica nicação» (Van Den Heuvel, 1985, 67). Mas tal atitude traz poten-

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cialmente consigo o perigo de uma réplica social carregada de corar». Com o passar do tempo, a jovem sente-se tocada pela
consequências. Elias Canetti sublinha bem esses riscos. «O mu- sinceridade do oficial e, sem que nada tenha sido dito, aproxi-
tismo, em resposta a uma pergunta, é como o ricochete de uma mam-se um do outro. Constrói-se um ritual singular entre estes
arma num escudo ou numa armadura. Calar-se é uma forma três protagonistas, dos quais dois estão calados, enquanto o ter-
extrema de defesa, em que se equilibram vantagens e inconve- ceiro fala e faz confidências, sem nunca tentar quebrar a capa-do
nientes. Aquele que se cala, sem dúvida que não se entrega, mas silêncio. «Pelo contrário, quando às vezes deixava que o silêncio
dá a impressão de ser mais perigoso do que é. Um silêncio obsti- invadisse a sala e a saturasse até aos cantos, como gás pesado e
nado leva à questão criminal, à tortura» (Canetti, 1966, 305). irrespirável, ele parecia, de nós os três, ser aquele que estava
O silêncio apresenta-se, por vezes, como uma forma organi- mais à vontade» (p. 47). E quando o jovem oficial descobre subi-
zada de resistência, de recusa em conceder ao outro a mínima tamente, durante uma curta estada em Paris, todo o horror da
palavra que pudesse, involuntariamente, legitimar os seus Alemanha nazi, o ritual é destruído. Pela primeira vez, quando
desígnios, banalizar uma conduta que se espera de aprovação. regressa, bate à porta, à espera da resposta do velho, que o
Protesto passivo, mas poderoso, na medida em que nega qual- manda entrar. Destroçado, confessa as suas ilusões, a sua repul-
quer reciprocidade com o outro, mata a linguagem na origem, sa por aquilo que descobriu junto dos seus antigos condiscípu-
recusando o seu reconhecimento pleno como parceiro no inter- los. Despede-se dos seus anfitriões, anunciando a sua vontade
câmbio. Impõe-se uma situação ao seu corpo, impedindo um de se oferecer como voluntário para uma divisão em campanha.
indivíduo privado dos meios de se defender, ou de fazer ouvir Antes de deixar para sempre a casa, o oficial volta-se para a
os seus direitos, a quem resta apenas a arma dos pobres, a reti- jovem e despede-se. Fica longamente à espera que ela lhe
rada simbólica para o seio de um silêncio que indicia a dig- responda: «Ouvi: adeus. Foi preciso espiar a palavra para a
nidade injuriada. Em Le Silence de la mer, Vercors apresenta ouvir, mas, enfim, ouvi-a» (p. 76). O entendimento estabele-
um exemplo clássico desta atitude. Um velho e a sua sobrinha ceu-se para além das circunstâncias e dos papéis desempe-
são obrigados a alojar um jovem oficial alemão durante a nhados por uns e outros, com o laconismo das palavras trocadas
ocupação. Apesar do seu requinte, da sua sensibilidade à flor da a não deixar menos de expressar, com força, uma reciprocidade
pele, a sua mágoa por impor assim a sua presença, a sua con- encontrada no último momento, e estas poucas palavras, sobre
vicção ingénua numa Europa próxima sob a égide de uma o pano de silêncio das semanas precedentes, traduzem o res-
Alemanha e uma França reconciliadas, apesar das suas tentati- peito mútuo dos compromissos, com um pudor que chega ao
vas para desenvolver o diálogo, esbarra com o mutismo dos essencial. Não há nada a acrescentar, mas era necessário que a
seus anfitriões. Porém, ele compreende e respeita o silêncio dignidade do silêncio fosse atravessada por uma palavra, que
deles, sem procurar forçá-lo. Todas as noites, o oficial vem era como que a coroação da sua exigência.
cumprimentar o velho e a sobrinha e demora-se em contacto, a A recusa traduz também rancor. A tristeza ou o despeito de
falar disto e daquilo, do seu amor pela cultura francesa, da sua ter sido humilhado ou escamnecido, esconde-se no silêncio,
paixão pela música; sem esperar resposta, mas com o secreto maneira simbólica de réplica à dor sentida. A indignação fecha-
sonho de conquistar a confiança deles e de os levar a falar. A boa -se sobre si mesma, provoca a fuga e envia uma mensagem
vontade do oficial não desarma perante a calma obstinação dos acusadora aos antigos parceiros de conversa. Em Les Muetsó, por
seus anfitriões. Uma noite, o velho sente-se culpado por esse
silêncio perante um homem que não lembra em nada um ini- 5 Vercors, Le Silence de la mer, Paris, Poche, p. 36.
migo. «É talvez desumano recusar-lhe o óbolo de uma palavra. 6 A. Camus, «Les muets», L'exil et le royaume, Paris, Gallimard, 1958. Camus
A minha sobrinha ergueu a face. Arqueava as sobrancelhas, por é, sem dúvida, o escritor que tratou a questão do silêncio de forma mais
cima dos olhos brilhantes e indignados. Quase me senti a obcecante. Cf. as análises, a este respeito, de H. Mino, (1987).

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exemplo, A. Camus conta um episódio da vida de uma fábrica satisfação moral da comunicação ostensivamente interrompida.
de tanoaria condenada a desaparecer, a breve trecho, devido à Esta negação da comunicação é uma marca de hostilidade fran-
evolução das técnicas. As relações dos operários com o patrão camente declarada, uma vez que o silêncio é uma arma, uma
são calorosas. O homem é paternalista, atento à família deles, ao posição de força, um acto de eloquência, que fala por si mesmo.
bom andamento da sua pequena empresa. Contudo, rebenta O alferes Trotta experimenta-o. Designado para comandar
uma greve quando, confrontado com uma baixa sensível nas uma secção de caçadores destinada à repressão próxima de uma
encomendas, diminui os salários. Desfaz-se uma prova de força greve, num momento em que a tensão na cidade é grande, entra
com os tanoeiros, rapidamente privados de recursos. Retomam num bar para beber uma aguardente e ganhar coragem: «Toda
então, amargamente, o caminho da fábrica, mas chegados ao a gente se calou quando ele entrou, tilintando, cingido no seu
local têm a surpresa de ver, pela primeira vez, os portões fecha- uniforme. Lentamente, demasiado lentamente, o empregado
dos à sua chegada. O patrão, querendo marcar ostensivamente agarrou na garrafa e no cálice. Atrás das costas de Trotta, esta-
a sua vitória, não mediu as consequências do seu gesto sobre belecia-se o silêncio. Ele tinha a percepção de que eles estavam
estes homens humilhados, que não compreendem. Quando o todos à espera que ele voltasse a sair... Acabou por abandonar o
contramestre abre as portas, eles entram de cabeça baixa, agar- bar e teve a impressão de que contornava um duro rochedo de
ram nas ferramentas, mas a estima que tinham pelo patrão des- silêncio. E centenas de olhos fixavam-se na sua nuca, como
fez-se. Quando este vem, como de costume, saudar os operários lanças»”. O silêncio de desprezo é muitas vezes acompanhado
e saber notícias deles, ninguém lhe responde. Os mais antigos por um olhar que diz muito, que deixa entender um juízo sem
são chamados ao seu escritório, o homem tenta justificar-se, mas remissão, ostensivo. A sua intenção é de magoar, de marcar
não há nada a fazer, eles continuam calados. À noite, quando a uma altura de posição, um afastamento sem equívocos em
pequenita do patrão, que toda a gente conhecia, desmaia vítima relação com os acontecimentos de que se supõe que o outro está
de uma doença, sem dúvida grave, o seu silêncio, à espera do a par. Declara as hostilidades, expulsando do círculo das rela-
diagnóstico, é pesado. Terminado o dia, os operários estão às ções sem conceder à vítima a possibilidade de se defender,
voltas na fábrica sem ousarem confessar a sua angústia em dando-lhe a entender que, a partir de agora, a sua palavra deixa
relação à criança e a pena que têm do pai. Encerrados na sua ati- de ter peso, devido à sua conduta passada ou ao boato que a
tude, impotentes para encontrarem uma saída, não respondem sujeita à reprovação colectiva. No extremo, este silêncio equi-
às despedidas do patrão desfeito, e voltam todos para casa com vale a um banimento da sociedade, por uma recusa em re-
o peso de um silêncio de onde não sabem sair. conhecer a existência do outro.
Uma súbita abstenção de palavra entre indivíduos que têm
o hábito de conversar entre si marca uma ruptura de relações,
aumenta O «frio» que surgiu com uma recusa de comunicação. REDUZIR AO SILÊNCIO
Um indivíduo que tenha tido uma conduta reprovada pelos
seus é objecto de uma reticência em dirigir-lhe a palavra ou em O poder tem meios para reduzir ao silêncio a oposição,
responder-lhe. Para traduzir o desacordo com tal conduta, resta matando ou aprisionando os seus adversários, amordaçando a
o recurso ao silêncio, anular a possibilidade da fala com quem imprensa ou os intelectuais, quebrando qualquer vontade de
precisamente parece insensível ao valor do vínculo social. «Não luta. Destrói toda a palavra susceptível de o pôr em dúvida
digo mais nada», «não te falo mais»: recusa reivindicada de (Jaworski, 1993, 115 segs.). Os media são vigiados, toda a comu-
recorrer à fala com alguém que parece já não ser digno e obriga
à sua exclusão da fala comum. Amuo da criança, a quem os pais
proíbem de sair ou cuja conduta desaprovam. Apenas resta a 7 Joseph Roth, La marche de Radetsky, Paris, Seuil, 1982, p. 223.

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nicação é dissimulada, os locais de diversão são fechados, as pela impossibilidade linguística de produzir uma frase contrária
produções estéticas censuradas. O silêncio é um instrumento de à ortodoxia. Reduz, sem o querer, a inteligência a ficar calada.
resistência, mas também de poder, de terror, uma forma «Por fim», diz um dos personagens, «tornaremos literalmente
de controlar uma situação com mão de ferro. A censura é uma impossível o crime de pensamento por já não haver palavras
obrigação de calar ou de ver aquilo que se diz desfigurado. Ao para o exprimir. Todos os conceitos necessários serão formula-
interditar todas as manifestações hostis, ela estrangula a palavra dos exactamente por uma única palavra, cada um, cujo sentido
à nascença acantonando-a no autismo, ou seja, impedindo-a de será rigorosamente delimitado». Há figuras que se impõem
se espalhar para além da deliberação íntima. A censura produz aos membros do Partido, como a do duplopensamento que auto-
silêncio em negativo, um defeito de comunicação, retira valor à riza que se conservem no espírito duas crenças opostas, que
palavra, privando-a de consistência, por não ter ninguém para devem ser docilmente aceites, sem questionar a sua compatibi-
ouvir e transmitir. O poder procura, desta forma, desenraizar a lidade. A paragem do crime é outro processo mental que obriga à
propagação da dissidência, forçando-a a ir por caminhos obri- paragem de um raciocínio no caso deste contradizer as palavras
gatórios, impossibilitando-a de utilizar outros. O pensamento já de ordem em uso. Estes dispositivos, que visam reduzir o pen-
não está perante o infinito do sentido, mas sujeito à obrigação de samento ao silêncio, fechando-o à chave, tornam simultanea-
se calar ou de consentir o pior. Impedindo a circulação da mente impossível o silêncio interior, que estaria em confronto
palavra, o poder baralha as conivências, provoca a suspeição com o infinito do mundo e com uma postura conforme a ele.
mútua, porque às vezes não é cómodo pronunciar claramente O poder não se contenta em restringir o uso e o sentido das
uma objecção de consciência diante de pessoas cujas posições palavras, televisores espiam sem descanso os membros da
pessoais se desconhecem. O silêncio impõe-se então como uma sociedade, difundem mensagens apologéticas ou informações
forma de salvaguarda de si próprio, pela ignorância das amea- tranquilizantes, distilam os seus sons ao longo do dia.
ças escondidas no auditório. A censura provoca a desconfiança, A primeira dissidência de Winston é manter um jornal para
fazendo temer a denúncia, a traição. Num contexto de sedição, tentar traduzir momentos de existência, acordar recordações,
O interdito contorna-se pela discrição, pela cumplicidade ou encher de sentido um universo mental cujo único alimento tinha
pelo uso de metáforas que deslocam o sentido literário, mas que de ser o slogan. Debruçando-se sobre a mesa para escrever, a
não deixam de transmitir menos a sua mensagem; a rebelião esconder-se do televisor, Winston, por sua vez, impõe silêncio às
usa a voz da poesia, da música, da imagem, da canção, através fórmulas de propaganda, deixa de ser um ventríloquo do poder.
de alusões específicas que toda a gente percebe. O fio condutor Reencontra o silêncio interior, um pensamento que já não está
do sentido ultrapassa a necessidade do silêncio no momento impregnado pelas palavras de ordem. O recolhimento que nasce
rápido da sua formulação. dentro dele leva-o a percorrer o seu passado, a desenterrar uma
1984, a obra de G. Orwell, apresenta uma parábola sobre as memória completamente escondida sob a propaganda do Partido,
utilizações perversas do silêncio. A novlangue, a língua ideal do a olhar a sua existência a outra luz. A possibilidade do silêncio ali-
Partido, impossibilita a expressão de um pensamento rebelde à menta um jogo com o real, uma deslocação pequena que destrói a
ordem, por falta da capacidade de o formular através de uma evidência esmagadora das mensagens dos televisores ou das ma-
linguagem coerente e comunicável. O controlo absoluto do sen- nifestações colectivas a favor do poder. Winston deixa de estar
tido das palavras, a supressão daquelas que podem ter a menor saturado de ideologias, mas abre os olhos para o mundo e a sua
ambiguidade, a sua assimilação rígida por correias de transmis- sensibilidade cresce, na proporção do silêncio que faz dentro de si.
são de uma verdade provisória, enunciada pelo Partido, a
rigidez de regras gramaticais, que não toleram qualquer flutua-
ção de sentido, fazem da novlangue uma grelha de pensamento, 8 G. Orwell, 1984, Paris, Folio, p. 79.

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O vencido é reduzido ao silêncio. Os deuses não são poupa- fazendo dele mudo, por ter duvidado, em determinada altura,
dos, quando derrotados, calam-se. A Bíblia opõe o silêncio das que a sua companheira Isabel, estéril e idosa, pudesse dar à luz
pedras ou da madeira, em que são fabricados os ídolos, à palavra um filho. Um anjo tinha aparecido para anunciar o nascimento
de Deus (Neher, 1970, 78 segs.). Afeiçoados pelas mãos do próximo de João Baptista, mas Zacarias ficou na dúvida e pediu
homem, os primeiros são descritos como coisas inertes. «O ídolo ao emissário um sinal de confirmação de um acontecimento
tem uma boca, sim, mas que não fala! Olhos? Mas que não vêem! completamente inesperado. «Eu sou Gabriel, que está junto de
Ouvidos? Mas que não escutam! Narinas? Mas que não Deus, e fui enviado para falar contigo e dar-te esta boa notícia.
cheiram! Mãos? Mas que não tocam! Pés? Mas que não andam!» E tu vais ser reduzido ao silêncio e não poderás falar até ao dia
(S., 115, 5-7). Num dos episódios do Livro dos Reis, o profeta em que estas coisas aconteçam, porque não acreditaste nas
Elias convoca o povo para o monte Carmelo e desafia o deus minhas palavras» (Lucas, 1-19, 20). A mão pesada de Deus
Baal para que se manifeste. Durante todo o dia os sacerdotes abateu-se sobre Zacarias que saiu mudo do santuário. Alguns
invocam o seu deus, através da palavra, da dança, de sacrifícios, meses mais tarde nascia a criança. No momento da sua circun-
mas nada acontece, o ídolo continua de mármore. Elias então, cisão levantou-se o problema do nome a dar-lhe. Os próximos
faz troça deles: «Gritem mais alto, porque é um deus: ele está sugeriram, de acordo com o uso, que se chamasse Zacarias,
preocupado ou tem que fazer, ou então está de viagem; talvez como o pai. Isabel opõe-se e quer que se chame João. Zaca-
esteja a dormir e acordará!» Eles gritaram mais alto e golpea- rias, interrogado por sinais, pede uma ardósia e confirma a
ram-se, com espadas e lanças, até fazerem sangue. «Quando escolha da esposa. «Nesse mesmo instante a sua boca abriu-se,
passou o meio-dia, puseram-se a vaticinar até à hora da apre- a sua língua soltou-se e ele falou e bendisse a Deus» (Lucas, 1-64).
sentação das oferendas, mas não houve qualquer voz, nem Zacarias tinha voltado às boas graças de Deus que lhe devolve
resposta, nem sinal de atenção» (I Reis, 18, 27-29). Elias triunfa, a fala.
perante o silêncio de Baal, e invoca Jeová que imediatamente O exílio é outra forma de invalidar a palavra, reduzindo-a ao
testemunha a sua presença. Está feita a demonstração da ine- silêncio, por causa do afastamento. Sem proceder ao apresa-
xistência do ídolo. Elias pede ao povo que apanhe os sacerdotes mento dos homens, deixando-os livres nas suas deslocações,
e, ele próprio, degola-os, um a um. Aqui, o silêncio não perdoa, outras sociedades utilizam um recurso não menos terrível de
porque a ausência da palavra equivale à demonstração do proibir qualquer contacto com o condenado, colocando-o
vazio. O deus que se cala é um deus derrotado, destituído de quarentena ou banindo-o da sociedade. A sua fala é oprimida,
das suas antigas prerrogativas, devolvido à sua falsidade. ao ficar privada de imediato de um outro para a ouvir e respon-
O mutismo das divindades astecas é o prelúdio da conquista der. Não suscita qualquer reciprocidade, seja qual for a intensi-
espanhola. Pela primeira vez ficaram mudas, apesar das exor- dade da pergunta. A vítima torna-se muda, devido ao descré-
tações dos devotos: «Pediram aos deuses que lhes concedessem dito que envolve os seus actos e gestos. Condenada a errar
os seus favores e a vitória contra os Espanhóis e os outros inimi- no seio do meio social, estando radicalmente excluída, sendo
gos. Mas devia ser demasiado tarde, porque já não obtiveram apenas reconhecida pelo aspecto negativo, pelas proibições
resposta dos seus oráculos; então consideraram os deuses como que a atingem. Um silêncio de reprovação ou de punição
mudos ou como mortos»º. castiga o culpado, mantendo-o afastado, numa espécie de
A obrigação social priva, às vezes, do direito da palavra um morte civil, definitiva ou provisória. Os membros da Old
dos membros da comunidade. Deus puniu assim Zacarias, Order Amish isolam desta forma o pecador que não se quer
arrepender. Este fica encerrado em casa e pode falar à vontade,
9 Citado in T. Todorov, La conquête de |" Amérique. La question de Vautre, Paris, mas ninguém lhe responde nem se senta com ele à mesa. A pa-
Seuil, 1982, p. 82. lavra do homem condenado ao exílio interior no seio da sua

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cidade transforma-se numa forma abastardada de silêncio, que administração penitenciária. O seu uso da palavra perdeu a
é insignificante por não produzir qualquer resposta. legitimidade. Encerrado na cela, ou com companheiros de infor-
Outros sistemas prevêem uma graduação no afastar do túnio, está condenado a uma linguagem sem consequência.
infractor, como a regra monástica de São Bento, que original- A sua palavra está contida num emprego de tempo e numa dis-
mente instituiu uma atitude de rigor perante o «irmão opina- ciplina que o obrigam ao silêncio, projectando-o para fora de
tivo, ou desobediente, ou soberbo, ou intriguista, ou habitual uma comunicação livremente escolhida. Em Outubro de 1937,
transgressor da santa regra, em qualquer ponto, ou desobe- Evguenia Guinzbourg, na sequência de um processo viciado, foi
diente às ordens dos mais antigos» (R. 23). A reprimenda é a condenada a dez anos de prisão, com isolamento severo, «por
primeira medida que, em princípio, incita o monge a uma emenda actividades anti-soviéticas», por ter trabalhado com um histo-
honrosa, permitindo-lhe reocupar o seu lugar na comunidade. tiador acusado de trotskismo. «Dez anos de isolamento: dia
Mas, se esta acção falhar, para além do castigo corporal, que após dia, mês após mês. Os meus filhos, durante esse tempo, vão
continua a ser possível, o faltoso é impedido de comungar até tornar-se quase homens; eu, no fim, serei uma velha. Durante
que peça perdão. Se a transgressão for menor, fica privado de dez anos só ouvirei as palavras: acordar, sopa, retrete, passeio,
tomar assento na mesa comum. No oratório canta os salmos ou silêncio. Vou esquecer como se fala»!0, Condenação ao silêncio
as antífonas, mas não lê as Escrituras enquanto não se tiver da palavra, mas também ao silêncio perante um mundo que vai
arrependido. O abade esforça-se por trazê-lo de volta ao cami- continuar a girar em completa indiferença. E. Guinzbourg refu-
nho recto da regra, por vezes chega a mandar-lhe monges mais gia-se na conversa interior que nasce da leitura, esforçando-se
antigos com a preocupação de o reconfortar na sua solidão e de por não ceder ao sofrimento que se apodera dela, face aos regu-
o exortar a um comportamento melhor. Se o monge se obstina, lamentos duros da prisão: «O mais importante é não desapren-
vê-se então excluído do mosteiro e privado da companhia dos der a falar. Os guardas estão treinados no silêncio mais abso-
outros monges. Poderá, contudo, se quiser, solicitar novamente luto. Durante um dia pronunciam apenas cinco ou seis palavras:
a sua integração se aceitar corrigir os erros passados. acordar, casa de banho, água, passeio, pão... As horas mais difí-
Outro exemplo de ostracismo trazido do continente africano. ceis vêm depois do jantar. O silêncio torna-se então mais intenso.
Os Igbo, da Nigéria, castigam com um silêncio de determinada A tristeza invadia-me, quase que fisicamente. Se ao menos
duração quem tiver cometido uma infracção grave aos hábitos. pudesse ouvir um ruído! Ora, quando um ruído interrompia o
Este castigo é o último recurso para aquele que recusa respon- silêncio era ainda pior. Os passos arrastados de um guarda»
der pelos seus actos e submeter-se à lei comum. «Toda a aldeia (pp. 188-189). O desejo de escutar sons, de escapar, por um
— homens, mulheres e crianças — deixam de falar ao culpado e instante, à perseguição de um silêncio que não é escolhido, mas
à sua família imediata. A rejeição é de tal forma total, que que se impõe como uma privação absoluta das alegrias do
ninguém tem qualquer relação com ele ou com os seus parentes mundo. Quando finalmente lhe juntam uma companheira de
mais chegados. Como não é possível sobreviver muito tempo cela, por falta de lugar na prisão, e não por compaixão, as duas
nestas condições, devido à dependência mútua em que assenta mulheres falam sem interrupção vinte e quatro horas por dia.
a vida da aldeia, o culpado é rapidamente submetido e esfor- Quando não dormem embriagam-se de palavras. Ao cabo de
ça-se por recuperar as boas graças do grupo» (Nwoye, 1985). dois anos de internamento Evguenia Guinzbourg é metida num
À proibição da palavra é então suspensa e o faltoso e a sua comboio para Kolyma. Setenta e seis mulheres são amontoadas
família retomam a plenitude dos seus direitos. num vagão. Mas a palavra voa: «Não parávamos de falar. Estas
Para além, ainda, do exílio ou da imposição de quarentena,
a prisão é uma medida radical que visa subtrair o detido ao vín-
culo social e obrigá-lo a uma comunicação controlada pela 10 Evguenia S. Guinzbourg, Le vertige, Paris, Seuil, 1967, p. 182.

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conversas não tinham quem ouvisse, nem mesmo assunto. Cada preendia. Por esse motivo, tinham passado a chamar-lhe o
uma tinha-se posto a falar para si própria, desde a partida de «mudo». Uma língua que deixa de fazer sentido e deixa de
Iaroslav. Algumas, mesmo antes de se terem instalado sobre as animar o vínculo social é uma forma enviesada de silêncio, já
pranchas, tinham começado a recitar poemas, a cantar, a recitar. ninguém a escuta, mesmo quando se pronuncia.
Cada uma embriagava-se com o som da própria voz. Era a
primeira vez, depois de dois anos, que nos encontrávamos entre
semelhantes. Na prisão nacional de Iaroslav, as condenadas ao ROMPER O SILÊNCIO
isolamento tinham estado caladas durante setecentos e trinta
dias» (pp. 265-266)11. Em cada homem, é a parte do silêncio que o conduz no fio
Mais radical, definitiva, a redução ao silêncio por défaut de ténue da palavra, que acompanha a existência de todos os dias
langue é um encerramento em relação ao mundo imposto a pes- e as suas relações com os outros. Determinadas circunstâncias
soas transferidas ou migrantes, que não têm qualquer capaci- revelam uma orientação insuspeitada de si próprio que poderia
dade para usarem a língua das sociedades onde se encontram. nunca ter aparecido. A palavra então liberta-se e traduz o fervor
A sua própria fala parece destituída de sentido, é um equiva- da descoberta, a impaciência do testemunho, a rebelião contra a
lente ruidoso do silêncio, com o sentimento de já não existir, ordem das coisas. Neste sentido, mesmo nas condições mais
devido a essa privação de um modo elementar de reconheci- agradáveis, existe uma dimensão do próprio ser que fica redu-
mento próprio. Uma forma radical de redução ao silêncio é a do zida ao silêncio, nem sempre por causa de uma autoridade polí-
último homem que ainda sabe utilizar a língua dos seus. Só tica, mas devido à impossibilidade de se realizarem todos os
resta ele, reduzido a calar-se, porque mais ninguém o con- recursos pessoais, porque eles são, sem dúvida, tão infinitos
seguirá jamais entender. Todos os anos desaparecem línguas como as condições sociais e culturais que poderiam favorecer o
no planeta com a morte do último utilizador. Werner Herzog seu uso. O silêncio, neste caso, é antes uma zona de demarcação
evoca, em Le Pays ou rêvent les fourmis vertesl2, um processo na impossível e que reproduz tudo aquilo que um homem ou uma
Austrália, durante o qual um aborígene fala longamente, numa mulher teriam podido viver, se as circunstâncias o tivessem per-
língua que ninguém consegue identificar. O juiz espanta-se mitido, ou se eles tivessem ousado. Marca o recalcamento das
por ver que este homem, apresentado por amigos no início do possibilidades que não puderam vingar por falta de ocasião
processo como sendo «mudo», se exprima com tal abundância propícia. Descoberta de uma causa para defender, de um amor
que pede a um tradutor que intervenha. Este porém recusa, nascente, criação cultural, embevecimento perante uma pai-
desconhece o warora. Na assistência ninguém conhece aquela sagem, ou perturbação política, factos que, repentinamente,
língua. O tradutor, embaraçado, explica ao juiz que o homem criam as condições de uma poética do acontecimento e de reen-
é o último da sua comunidade, que os outros desapareceram e contros com o sentido. O Maio de 68 foi frequentemente
que ele falava agora uma língua morta, que mais ninguém com- analisado desta maneira, por Michel de Certeau (1968), por
exemplo, como «tomar a palavra». Há um ferrolho que salta,
cujas consequências ninguém esperava, mas, de um dia para
1 Soljenitsyne evoca castigos idênticos para os homens: «Innokenty podia o outro, a palavra corre como um furão por toda a cidade, e a
considerar-se feliz se o mandassem apenas para um campo, porque, na
existência, que se desenrolava tranquilamente e que satisfazia
sua situação, bem podiam metê-lo num desses mosteiros transformados
onde não lhe seria permitido sentar-se durante o dia nem falar durante suficientemente as aspirações de prosseguir sem dilemas,
anos. Nunca mais ninguém saberia nada dele e ele nada saberia do torna-se caduca. Dá subitamente por si afogada em silêncio,
mundo.» (A. Soljenitsyne, Le premier cercle, Paris, Poche, 1968, p. 772). refreada sem o saber, dolorosamente inacabada. A palavra
12 W. Herzog, Le Pays oix rêvent les fourmis vertes, Paris, POL, 1985, p. 89 segs. transborda sem tempos mortos, aguenta mal as pausas e revela-se

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a si própria no calor dos debates e no júbilo do seu exercício. então instrumentos de música (matracas, tambores, etc.), mas
É vivida como uma festa, uma descoberta de si, com a sensação utilizados de forma caótica. Uma vez chegados, os membros do
de afastar para longe, no seu entusiasmo, uma capa de chumbo cortejo fazem um barulho ensurdecedor até que lhes dêem de
que, anteriormente, não tinha sido completamente notada, mas beber ou lhes dêem dinheiro. A ruptura do regime sonoro e,
que faz o indivíduo pensar como foi possível viver tanto tempo principalmente, do silêncio da noite, é uma maneira acústica de
abafado debaixo dela. Nos momentos de efervescência social, assinalar uma desarmonia das relações sociais para lhe fazerem
vários indivíduos fazem a descoberta perturbante de uma voz, face, de causar uma maior humilhação aos prevaricadores, ou
a sua ou de um próximo, que inicia uma experiência do inédito para os integrar, apesar de tudo, através de uma acção simbó-
e pode ser escutada e reconhecida. «Toda a gente tem o direito lica. Cantos, sequências representadas, caricaturam os factos
de falar», insurgem-se as Assembleias Gerais, se alguém pre- denunciados. A algazarra exibe os sinais da crítica social através
tende desqualificar uma proposta ou fazer calar outrem: «nada de uma mímica da desordem.O ruído da reprovação rompe o
de censura». Nos anfiteatros, nas ruas, nos escritórios ou nas silêncio culpado, que confirmaria tacitamente a infracção às leis
fábricas, as línguas soltam-se, aparecem experiências, fazem-se mudas e não escritas do grupo. O falatório ritual não impede os
variados encontros, no desfiar de uma palavra libertada. Até os obstáculos aos usos, mas «assinala-os objectivamente» e «con-
muros têm a palavra. trabalança-os metaforicamente», diz Lévi-Strauss. O ruído, na
Num outro contexto social, em que se trata, antes, de uma medida em que se opõe ao silêncio, é mediador da desordem.
conformação com as modalidades correntes de viver em Para além dos casos de matrimónio serve também, sem dúvida,
comum, as nossas sociedades conheceram, em tempos, uma para apaziguar os manes do defunto, acompanha as «con-
maneira tradicional de romper o silêncio, no sentido literal do junções difíceis» (Lévi-Strauss, 1964, 193) sublinhando a sobera-
termo, através de uma algazarra organizada!3. A barulheira nia do homem nesses momentos delicados. Pelo embaraço que
torna-se então num ritual de escárnio e de obscenidades, convi- causa, a algazarra confere ao acontecimento uma publicidade
dando a uma produção sonora aparentemente desordenada. terrível que sujeita as vítimas a ficarem malvistas aos olhos do
Visa manifestar publicamente uma condenação em relação a grupo. Ao pagar, isto é, ao fazer uma confissão pública honrosa,
condutas moralmente repreensíveis aos olhos da comunidade, estas últimas compram o silêncio do grupo dos jovens, compen-
mas que a lei escrita não condena: casais desiguais (diferenças sam-nos, pagando o preço da sua derrogação às normas.
de idade, de condição, etc.), que levantam suspeitas sobre um
casamento de interesse, o voltar a casar de um viúvo ou uma
viúva, a má conduta do homem ou da mulher, etc. Os jovens da O CONSENTIMENTO
terra reúnem-se e dirigem-se a casa das suas vítimas, numa
marcha tumultuosa, fazendo o maior barulho possível, gritan- A conivência passa muitas vezes por uma ausência de
do, vociferando, cantando, chamando a atenção da vizinhança palavras, devido ao facto dos participantes se conhecerem sufi-
toda. Brandem-se instrumentos de cozinha (caçarolas, tachos, cientemente bem para não precisarem de um entendimento
cafeteiras, etc.) ou de trabalho (foices, enxadas, guizos, etc.), ou oral. Longe de ser um sinal de secura da conversa ou de abor-
recimento, o silêncio testemunha um entendimento tácito.
Figura da cumplicidade, é exemplo da tranquilidade e do pra-
13 De maneira mais contemporânea, E. Orlandi recorda-se que, durante a
zer de estar junto, sem necessariamente recorrer à palavra, uma
ditadura militar no Brasil, os habitantes das cidades batiam nas panelas ou
faziam um barulho ensurdecedor, em determinadas noites. Um concerto vez que a presença do outro é suficiente. O amor ou a amizade
de buzinas saudava a passagem de um comandante detestado pela popu- permitem ficar calado juntamente com o outro, ou serem sufi-
lação (Orlandi, 1966, p. 97). cientes meias-palavras, devido ao conhecimento do comporta-

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mento, dos subentendimentos, das preferências do outro, e isto tempestade numa quinta. Entra numa sala escura, mal ilumi-
sem qualquer embaraço, deixando o tempo passar. A cumplici- nada por um candeeiro de petróleo. Primeiro encontro com uma
dade bem sucedida faz da palavra um complemento, por vezes família que acabou por ter grande importância no seu estudo.
inútil, um recurso supérfluo, quando os olhares são suficientes, O homem e a mulher sentam-se perto da chaminé, as crianças
ou mesmo o jogo do desejo ou o compartilhar de uma activi- estão instaladas no chão ou em cima da cama. A filha mais velha
dade, como fazer cozinha, comer, passear, tratar do jardim, ou a do casal, Louise, tem ao colo o mais novo, um bebé. O pai, que
leitura em comum. Em determinadas circunstâncias, as palavras acaba de trazer J. Agee, não faz qualquer apresentação, nem
causam uma ruptura ou então dissipam-se, da mesma forma qualquer conversa é obrigatória. O tempo passa, enquanto a
que a água se mistura com a água, vindo apenas comentar o chuva cai. Agee deixa-se embalar pelo silêncio e por uma soleni-
silêncio. A comunicação muda, se travada entre interlocutores
próximos um do outro, contentes por estarem juntos, nunca é
| dade tranquila, a que não está nada habituado. Uma espera
inquieta pelo fim da tempestade enche finalmente o casebre. De
sentida como uma falta ou uma inquietação, mas, ao inverso, tempos a tempos, uma palavra anódina rompe a espessura do
como uma espécie de perfeição tranquila que se basta a si silêncio, sem encontrar eco. De repente, Louise e Agee trocam
própria. «Anteriormente, a pobreza junto da mãe tinha doçura», um olhar e a cumplicidade nasce de imediato. O escritor toma
escreve A. Camus. «Quando se reuniam à noite e comiam em então consciência de que a adolescente não tirou os olhos dele,
silêncio, à volta do candeeiro de petróleo, havia uma felicidade desde a sua chegada, e fica incomodado com o facto. Os olhares
secreta nessa simplicidade e nesse recolhimento. O bairro à prendem-se discretamente entre si. Para dissipar o mal-estar
volta deles estava silencioso. Mersault olhava a boca descon- Agee sorri. «Eu deixava... o que sentia por ela, tudo o que lhe
traída de sua mãe e sorria. Ela sorria também»14. poderia dizer, durante horas, se as palavras pudessem dizer
J. Agee descreve o momento escaldante de um encontro, tudo, que tudo isso se reunisse no meu olhar e voltava a cabeça,
num quadro em que as conveniências proíbem qualquer expli- e lançava os olhos sobre os olhos dela e ficámos ali sentados,
cação de sentimentos, ou que seja precisamente conveniente que com uma vibração crescente entre os dois, que me deixava meio
nenhuma palavra seja dita para conservar a intensidade do inconsciente, de modo que eu persistia, em vez de, cego e mudo,
momento e não provocar irreparáveis futuros. Impotência tam- fugir, como acontece na guerra, a continuar assim e a ganhar
bém para exprimir emoção, porque a esfera dos sentimentos uma força nova» (Agee, 1972, 388). A situação continua, não só
requeridos não são provenientes de uma dimensão vulgar da discreta mas invisível aos olhos do outros, embora intensa
existência, mas sim cristalizados numa cumplicidade nascida de para os dois protagonistas. «Eu continuava a olhar para ela e
uma situação propícia ao abandono. J. Agee, oriundo de uma ela para mim, cada um com um olhar “frio”, “sem expressão”,
família anglicana de Bóston, conduz um inquérito sobre as do meu lado com um sentimento de protecção, ela sem medo,
condições sociais de um punhado de famílias pobres de ren- nem espanto, nem admiração, mas com uma extraordinária
deiros do Alabama. Uma noite é convidado a abrigar-se de uma receptividade serena, quase luminosa e também aplicada, sem
revelar a chave distante, fosse ela calorosa ou de raiva ou ape-
nas de curiosidade pura e simples.» Louise por fim baixa os
14 A. Camus, La mort heureuse, Paris, Gallimard, 1971, p. 40, Ou ainda: «Mas olhos. Descontrai-se por um momento, observa as suas roupas,
ele também sabia que não é grande coisa amar alguém ou, pelo menos,
as suas mãos. Agee continua a olhar. Ela levanta novamente os
que um amor nunca é tão forte que consiga encontrar a sua própria
expressão. Por isso, a sua mãe e ele haveriam sempre de se amar em silên- olhos «e, desta vez, sou eu quem muda e demonstra calor, como
cio. E ela haveria de morrer — ou ele — sem que, durante toda a vida, eles se lhe dissesse, se com isto lhe fiz algum mal, se despertei em si
tivessem podido ir mais longe no falar da sua ternura» (La Peste, Paris, qualquer mudança que lhe possa fazer mal, se o meu contacto a
Gallimard, 1947, p. 263). tocou de qualquer forma ofensiva, perdoe-me se for possível,

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despreze-me se tiver que o fazer mas, por amor de Deus, não
Quando o indivíduo solicitado se cala, costuma-se dizer
tem necessidade alguma de ter medo de mim». Agee sente que «quem cala consente». Afirmação de carácter duplo. O silêncio
com esta mensagem «os seus olhos não revelam nem clemência,
vale como aprovação, cauciona o acontecimento para o bem e
nem irritação, nem calor, nem frieza, nem seja que sinal for,
para o mal. De boa ou má vontade dá um aval. Tal atitude pode
indicando se me tinha compreendido ou não, mas apenas a
nascer da cumplicidade afectiva, com o indivíduo a aderir à
mesma exultação sem esforço, neutra e observadora; foi a minha
situação sem sentir necessidade de fazer comentários inúteis.
vez de olhar para os pés» (Agee, 1972, 389). Depois, os olhares
Um eventual sorriso, um-gesto com a mão acompanham, por
afastam-se. O rendeiro vai regularmente à porta, para observar
vezes, a aquiescência. Mas a expressão está também associada
os progressos da tempestade. A chuva abranda lentamente.
à ausência de escolha daquele que é colocado perante o facto
Entre Agee e Louise não foi trocada qualquer frase, pouco mais
consumado, por impossibilidade pessoal de responder de
será dito depois, embora tudo tenha sido dito, sem equívocos.
outra maneira. Ao permanecer silencioso, o indivíduo procura
Houve um reconhecimento mútuo, preso a um momento pre-
salvar a face, é obrigado a calar-se e a aceitar as circunstâncias,
cioso, numa outra dimensão da realidade.
mas não deseja participar. Falar seria uma tagarelice inútil.
O retraimento, a reserva impedem às vezes a expressão ver-
O silêncio, então, revela-se um sinal amargo de uma dignidade
bal da emoção, mas sem a alterar. Referindo-se a um encontro
mal tratada, uma fuga que deixa toda a latitude ao aconteci-
com Jean Reverzy, depois de ter superado o embaraço inicial,
mento.
face a um homem mergulhado no silêncio, Charles Juliet
escreve no seu Journal: «Sempre o mesmo embaraço por me
encontrar sentado diante dele. Olha-me e espera que eu fale.
A INDIFERENÇA
Faço-lhe perguntas e ele esquiva-se. Mas pressinto que sabe
que eu o percebi. Portanto, não vale a pena construir frases»15,
O silêncio está também ligado à falta de conversa de um
Uma vez admitido o pudor infinito do outro, uma vez com-
indivíduo que não arranja interlocutor, desacreditado desde o
preendido que é esse o seu ritmo, a sua relação habitual com
início e que, no fim, não tem outra escolha além de se calar,
a palavra, todo o mal-estar se dissipa e o silêncio envolve o
devido à indiferença com que é tratado. Forma sonora do silên-
encontro, como uma respiração natural. Um afecto partilhado,
cio, por causa da recusa da escuta. As pessoas idosas encon-
amigável ou amoroso, basta-se a si mesmo e não precisa de
tram-se, muitas vezes, reduzidas ao silêncio por este processo.
preencher o intervalo entre as palavras trocadas. O silêncio
Ninguém fala com elas e, se emitem uma palavra, ninguém lhes
incarna, neste contexto, sobretudo «a perfeição da concordân-
presta atenção. Indivíduos destituídos, vagamente mantidos no
cia» (Lavelle, 1940, 140). Expande-se na cumplicidade e não dá
contexto social, mas sem interesse aos olhos das pessoas à sua
lugar a qualquer equívoco. «No amor», escreve Pascal «um
volta, figuras inúteis, cujo desaparecimento um dia não é mais
silêncio vale mais do que uma fala; é bom estar proibido; há
do que o ponto final de um processo já há muito começado. As
uma eloquência do silêncio que penetra melhor do que a fala
saberia fazer.» Nestas condições, o próprio silêncio exerce uma
palavras do ébrio, do louco que delira, da pessoa idosa relegada
para uma instituição ou, por vezes, na sua própria casa, por uma
função sem conteúdo: assegura o contacto entre os interve-
família impaciente e abusiva. Palavras onde não há um outro,
nientes, não estorva em nada a comunicação, pelo contrário, é
imediatamente insignificantes por falta de ouvinte, mesmo se o
o sinal da sua solidez afectiva.
repisar delas demora a parar, esperança perdida, mas sempre
a renascer, de finalmente poder interessar alguém. Palavras
15 Charles Juliet, Journal I (1957-1964), Paris, Hachette, 1978, p. 38.
também do estrangeiro que não encontra quem fale a sua lín-
gua e a quem apenas resta o solilóquio, para não se deixar

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apagar. A impossibilidade de ser ouvido, por falta de valor Zerdalia K. S. Dahoun (1995) recorda-se do seu mutismo na
próprio, conduz ao mutismo ou então à inflação de uma lin- escola infantil da sua Argélia natal, por ser a única arábigo-
guagem que corre como uma hemorragia de existência sem ne- -berbere da classe, entre crianças originárias de famílias france-
nhum ouvido que a consiga parar. sas, que desprezavam a sua língua e faziam troça dela. Recorda
o espanto do seu encontro com a língua francesa sentido como
um choque de culturas, a poucas centenas de metros da sua casa,
O MUTISMO sentindo uma sensação de deslealdade em relação à sua mãe,
de afastamento da família, como se, nessas condições de desar-
O falador contenta-se com palavras para não ser atingido monia social entre os seus e a sociedade, uma das línguas
por elas, o calado afasta-se da linguagem e encara-a como corresse com a outra. No contexto contemporâneo, o mutismo
moeda falsa, cujo uso repudia. Recusando mergulhar no vulgar electivo das crianças imigrantes protege as defesas dos pais de
da comunicação, rejeita o meio. O desgosto, a revolta, o luto tor- língua diferente, em relação a uma sociedade onde têm dificul-
nam a linguagem balbuciante e transformam o silêncio num dade em se integrarem. Recusa inconsciente de participar num
recurso possível face ao intolerável. «O que eu faria seria fingir mundo onde estes não encontraram lugar e de que sentem a
que era um desses surdos-mudos, de maneira a não ter de par- hostilidade. O silêncio da criança é o sintoma de pais que não se
ticipar nessas conversas estúpidas que são habituais com quem conseguem separar das suas origens e apresentam tensões
quer que seja. Quando alguém quisesse dizer-me alguma coisa, por resolver, resistências à sua aculturação. Frequentemente, por
teria apenas que escrever sobre um pedaço de papel e dar-mo. exemplo, as mães destas crianças (por vezes também os pais)
Ao fim de certo tempo, estariam fartos e eu ficaria livre de não falam a língua do país de migração ou de exílio. Obstinados
conversas até ao fim dos meus dias», imagina Holden, o per- contra qualquer tentativa de procurarem uma posição, são a
sonagem patético do Attrape-Cour, de Salinger. Sonho de mu- prova de uma resistência de opinião à sua situação, de uma
tismo, para escapar às obrigações do vínculo social, quando se ausência de projecto de integração. Não tencionam participar de
pondera uma exclusão pessoal. modo nenhum na sociedade de acolhimento: sofrendo entre
Holden imagina nunca mais falar para deixar de participar dois mundos, privam os seus filhos de qualquer confiança em
numa sociedade em que se sente magoado. Outras crianças, relação ao outro, no momento de darem os primeiros passos
muitas vezes de pais imigrantes ou exilados, ou de famílias iso- numa sociedade onde não se reconhecem. Não escolheram ir
ladas, protegem-se da língua do outro, sofrem de mutismo para ali e permanecem enraizadas as lembranças que a nostalgia
electivo. Falam em casa a língua materna, possuem portanto os torna mais belas, não entram por nenhuma via que lhes possa
conhecimentos linguísticos e as capacidades de comunicação melhorar a existência. Depressivas ou ansiosas, trata-se de mães
próprias da idade, mas fora de casa calam-se, na escola, por de pouca capacidade que transmitem os seus medos aos filhos.
exemplo. Permanecem silenciosas durante meses, ou anos, ape- Os pais, muitas vezes insuficientes, mal integrados, sofrem de
sar dos esforços dos professores, ou dos assistentes sociais, sem uma imagem desacreditada, não oferecem um modelo de iden-
conseguirem ultrapassar a barreira da língua do outro que, tificação ou autoridade que ajude a criança a distanciar-se, de
simbolicamente, os afastaria dos pais. Uma longa e precoce modo seguro, da ansiedade materna. A criança não tem qual-
hospitalização da criança imigrante também provoca o quer lugar para existir por si mesma, encostada ao sofrimento
mutismo electivo, quando o encontro com a língua do outro materno ou do pai, dividida entre a língua materna e a do país
acontece sob os maus auspícios da separação dos pais, da de acolhimento, o seu silêncio é um sintoma da comunicação
doença, dos cuidados, do mergulho num meio desconhecido, falhada dos pais com a sociedade, um compromisso desajeitado
encarado como hostil. entre a injunção paradoxal de escolher entre a escola (como

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símbolo do Outro) e os pais. Para atacar a língua, arrancar-se ao esforço em relação a ele, sem uma aprendizagem lenta, uma
silêncio, entrar na língua do outro, é preciso não recear perder a infinita paciência que, por vezes, consegue a emissão das
mãe ou ameaçar o frágil equilíbrio paterno. Passando para o outro primeiras palavras, os primeiros sinais. A psicose é um caminho
lado da fala, deixando a língua materna, a criança deve sentir-se transversal que atravessa a existência para não ser apanhado por
confiante e perceber um encorajamento no olhar dos pais para ela, mas evitando o sofrimento da relação com o mundo também
não ter medo de os perder ou de os pôr em perigo. À projecção provoca a economia da relação com o outro.
no futuro, o investimento do país de acolhimento e da sua lin- O silêncio de um autista é uma fortaleza destinada a evitar
guagem pelos pais, o trabalho de acompanhamento da família e qualquer tipo de comunicação, significa a recusa de maior com-
das crianças, são as condições necessárias para que a criança prometimento, de misturar a sua fala com a do outro, correndo
abandone o seu mutismo. Procurará então a sua própria via o risco de se perder. Qualquer aproximação que lhe façam, aos
entre o lá fora (a escola, o bairro) e o lá dentro (a família). seus olhos é portadora de um perigo e a mordaça que tem na
Inscrevendo-se num projecto de integração social, voltando a boca torna-se, paradoxalmente, numa arma que o protege do
encontrar a alegria de viver, os pais desfazem o aperto que encontro com o outro. O silêncio é uma protecção eficaz, que
deixava-a criança sem voz fora da família. nada revela de si e que o envolve num véu através do qual ele
Contudo, a recusa simbólica do outro está, às vezes, dema- espera tornar-se invisível, inaudível, poder passar entre as
siado enraizada por causa das ameaças que a sua presença deixa malhas de uma realidade que o apavora. Protecção também
adivinhar, em relação ao sentimento da identidade. São raras, contra si mesmo, um ser já ferido pela intrusão original dos
por exemplo, as crianças autistas que acedem à linguagem. outros, e que leva também a recusar a linguagem. «O seu
Comportam-se, em relação ao mundo, como estando perante mundo interior», escreve S. Resnik «é tão penoso, tão persegui-
um vidro transparente que não conseguem transpor. «No dor ou caótico, que ele tem necessidade de o calar e de o
inconsciente psicótico», escreve Denis Vasse «há como que um esconder, negando a existência de um mundo interior habitado...
orgulho secreto, orgulho terrível de uma criança acabada de A omnipotência, neste caso, está ao serviço da negociação da
nascer, que prefere deixar-se cair numa morte psicótica em vez realidade interior» (Resnik, 1973, 110). Trata-se de permanecer
de afrontar o sofrimento intolerável de uma linguagem sem ver- no fio da navalha, entre si e o outro, entre o outro em nós e
dadeiras promessas. Como se as primeiras palavras que estas nós no outro, para manter uma posição precária de defesa que
crianças ouviram as tivessem desesperado ao ponto de não con- qualquer palavra que se diga pode fazer desmantelar.
fiarem naqueles que as pronunciaram. Por primeiras palavras, A destruição do sentido, mas também a confrontação íntima
refiro-me a tudo o que os adultos, debruçados sobre o berço, com o horror, tornam a linguagem caduca, ficando das palavras
dizem com o corpo, os seus gestos, os seus olhares, tudo o que apenas o som, um revestimento vazio que persegue o silêncio.
julgam não estar a dizer, porque o dizem sem saber ou pen- Desapossado da língua, para exprimir a sua dor, o indivíduo
sando que as crianças não os ouvem» (Vasse, 1983, 163). A criança cede ao mutismo. A impotência das palavras é a medida de um
autista não é apenas silenciosa, fica muda, está reduzida a silêncio que se impõe como única forma de resposta possível à
calar-se. A recusa em entrar na comunicação, isto é, em parti- violência sofrida. O acabrunhamento pessoal força os limites da
cipar no mundo simbólico da palavra, leva à exclusão do sofri- linguagem. A fala foi atingida mesmo no centro da sua razão
mento, ou seja, de qualquer compromisso com o vínculo social de ser: a relação com o outro. Perdeu os seus interlocutores
susceptível de o magoar. O mutismo é a consequência dessa possíveis, seria uma palavra sem outro, insignificante, e a dor
fuga. O psicótico está à parte da existência dos outros, mergu- não deixa que seja pronunciada. Assinala a retirada simbólica
lhado num universo de sentidos, cujo paradoxo é o de apenas para fora do mundo. À intrusão, por si, quebrou provisoria-
lhe pertencer a ele, que não é partilhado por ninguém sem um mente o cerne da identidade pessoal, deslocado o sentimento de

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pertença à espécie; o tecido de significado que assegura a afir- que não tolerava demoras. «Há dois anos, nos primeiros dias a
mação própria na relação com o mundo foi atingido, por vezes seguir ao nosso regresso, fomos apanhados, creio que todos nós,
destruído, tornando impossível ou doloroso o retorno ao vín- num verdadeiro delírio. Queríamos falar, ser finalmente escuta-
culo social. A linguagem já não domina uma realidade afogada dos», escreve Robert Antelme. «E logo nos primeiros dias, con-
em sofrimento. Por causa do drama de que foi vítima, o indiví- tudo, parecia-nos impossível preencher a distância que desco-
duo perdeu o gosto pela vida que é apenas mantido pelo desejo bríamos entre a linguagem ao nosso dispor e a experiência que,
da comunicação com o outro; encarcerado na sua dor já não para a maior parte de nós, estávamos ainda a sofrer na carne.
consegue ver o outro, e a fala tem de ser dominada lentamente, Como é que nos podíamos resignar a não tentar explicar como
à medida que o luto se desenrola e restitui o indivíduo ao con- tínhamos chegado aquele ponto? Ainda estávamos. E contudo
vívio social. As crianças de guerra, que assistiram à execução era impossível. Mal começávamos a contar, ficávamos sufoca-
dos seus parentes, que viram homens e mulheres serem tortura- dos» (Antelme, 1957, 9). Primo Levi começa a escrever Si c'est
dos ou violados, indivíduos que sofreram um traumatismo pes- un homme ainda dentro do campo. «A necessidade de contar era
soal, ficam sem voz, escondem-se fora da linguagem, fora de tão grande que comecei lá a escrever este livro, nesse laboratório
alcance, fora de qualquer sofrimento suplementar, mesmo alemão, no meio do gelo, da guerra e dos olhares indiscretos, e
quando este refúgio silencioso se assemelha a um grito entra- sabendo bem que não podia guardar estas notas rabiscadas às
nhado na carne, a uma história condensada na dor. Falar seria escondidas, que tinha de as deitar fora imediatamente, porque
um retorno ao vínculo social e, consequentemente, uma ruptura me teriam custado a vida se as encontrassem» (Levi, 1987, 189).
do sistema de defesa que protege a recordação do horror. Fred Sedel, depois de vinte e dois meses de campo, escreve que,
quando saiu, falava durante horas, sem conseguir parar.
«Debitava em tom monocórdico frases sucessivas sobre essa
O INDIZÍVEL estada nos infernos, com uma necessidade de falar que me era
irresistível e Myriam escutava sem me interromper. Esta cena
Em 1961, foram descobertas, perto dos fornos crematórios de repetia-se, dia após dia, durante semanas e meses» (Sedel, 1990,
Auschwitz, umas notas desagregadas pelo tempo, escritas por 200). Dyonis Mascolo recorda a raiva da palavra de Robert
Zelman Lewental, judeu polaco que tinha sido obrigado a tra- Antelme, no automóvel que o trouxe de Dachau a Paris. «Não
balhar nas câmaras de gaz. Apenas alguns fragmentos das parou, durante todo o caminho, de falar, contar, contar...
frases se conseguem ainda ler: «Aquilo que exactamente se pas- Sentia-se ameaçado de morte e queria talvez contar o mais pos-
sava não pode ser imaginado por nenhum ser humano... Só um sível antes de morrer. Dia e noite, não parou de falar. Talvez
de nós, do nosso pequeno grupo, do nosso círculo fechado, algumas horas de sonolência» (Antelme, 1996, 264). Febre da
o poderá dar a conhecer, se por acaso algum sobreviver»16. palavra para esconjurar o silêncio, preencher o abismo do sen-
A saída do horror, existe em numerosos sobreviventes uma
tido, mas sem nunca o conseguir, deixando-se levar, cada vez
embriaguez da fala, uma febre de testemunhar que quebre com
mais, pelo vazio.
a sua força a cortina de chumbo do silêncio que durante anos Um mundo separa aquele que fala ainda da dor e aquele
caiu sobre a ignomínia. Com a sensação de que a denúncia que o podia escutar, um universo de diferença dificilmente
irá escandalizar o mundo. A experiência dos campos de morte transponível, como aquele que opõe a água e o fogo, ter sido
provocou, naqueles que escaparam, um imperativo de contar, tocado pelo horror e não ter sentido nada na pele. A palavra
que queima esbarra com a opacidade, com a falta de atenção
de um outro cuja boa vontade não chega para conceber o
16 Citado inH. Langhein, Hommes et femmes à Auschwitz, Paris, 1975, 10-18.
inimaginável. Primo Levi descreve um sonho que, diz algures,

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vários outros deportados também tiveram de forma parecida. À linguagem, confrontada com os limites finais do pensa-
A sua irmã, amigos e outras pessoas, que ele não conhecia, mento, chamada a dizer que a shoah já não tem palavras ade-
escutam o seu relato. «Lembro-me em pormenor da nossa quadas para dar testemunho. Seriam precisas palavras que
fome, do controlo dos piolhos, do Kapo que me bateu no nariz contivessem todo o horror do mundo, carregadas de uma viru-
e que depois me mandou lavar, porque sangrava. É uma ale- lência de sentido que não deixassem ninguém intacto. Mesmo as
gria intensa, física, inexprimível, de estar em casa, cercado de palavras mais duras ficam aquém e dizem uma realidade à
pessoas amigas, e de ter tantas coisas para contar: mas é tra- medida do homem, na fronteira do seu entendimento, quando
balho perdido, apercebo-me de que os meus ouvintes não me é preciso ir mais longe, desembaraçarmo-nos de todas as
estão a acompanhar. Estão até completamente indiferentes: ilusões, desligarmo-nos da razão, quebrar a linguagem para a
falam confusamente de outras coisas, entre eles, como se eu poder abrir a novos e terríveis significados. E mesmo isso, para
não estivesse ali. A minha irmã olha-me, levanta-se e sai, sem o elementar da vida quotidiana dos campos. «Dizemos “fome”,
uma palavra» (Levi, 1987, 64). A palavra dissolve-se na indife- dizemos “fadiga”, “medo” e “dor”, dizemos “inverno” e, ao dizer
rença, na sua impossibilidade de ser escutada. O silêncio isto, estamos a dizer outras coisas, coisas que não podem ser
ensurdecedor que envolve o cenário do acontecimento e a sua ditas por palavras livres, criadas por e para homens livres, que
memória é um confronto com o indizível, com a retorsão da vivem nas suas casas e conhecem a alegria e a tristeza. Se os
palavra que se oprime dentro de si, num silêncio que não é Lager tivessem durado mais tempo, teriam produzido uma lin-
mais do que a forma extrema do grito. «E possível queimar guagem de nova dureza. Aquilo que nos falta para explicar o
crianças sem que a noite se altere», escreve Antelme. «A noite que é penar o dia inteiro, ao vento, a uma temperatura abaixo de
permanece imóvel, à nossa volta, fechados na igreja. As estre- zero, tendo como único vestuário uma camisa, uns calções, um
las também estão serenas, por cima de nós. Mas esta calma, casaco e umas calças de tela, e no corpo a fraqueza e a fome e a
esta imobilidade não são nem a essência nem o símbolo de consciência de que o fim está perto» (Levi, 1987, 132).
uma verdade que seja preferível. São o escândalo da última A vontade de testemunhar sobre o horror confronta com o
indiferença. Mais do que qualquer outra, aquela noite foi ter- mutismo, pela impotência da linguagem para descrever uma
rível» (Antelme, 1957, 116). Silêncio metafísico da noite, mas monstruosidade que destruiu a existência e ultrapassou a capa-
também dos homens. A experiência dos campos de concen- cidade de sentido das palavras. Experiência do indizível que,
tração é impensável, é destruidora da língua e do sentido que apesar disso, tem de ser dito, para esconjurar o esquecimento na
a fazia viver e que ela podia formular, não deixa mais do que o esperança de impedir a repetição desses momentos. Nos confins
vazio, o abismo insondável do sentido que atinge o homem da existência, a linguagem esconde-se. Mas o silêncio forçado
com mutismo, perante uma tal extensão de horror. «O abismo, transforma-se em braseiro, de tal forma arde o desejo de contar e
que os acontecimentos abriram entre nós, não pode ter me- a vontade de se arrancar à impotência de nos reconciliarmos com
dida...», escreve Gerschom Scholem. «Porque, na verdade, é a experiência do sentido. Impossibilidade de falar ou de calar,
impossível compreender aquilo que aconteceu. O aspecto incom- partido ao meio entre duas necessidades igualmente poderosas,
preensível está na própria essência do fenómeno: é impossível dor de uma tensão que nada consegue aliviar. Esta é outra expe-
compreendê-lo perfeitamente, isto é, impossível de o integrar riência da shoah, (ou do gulag, noutro contexto) de forçar teste-
na nossa consciência.» Maurice Blanchot, que cita este texto, munhas ainda vivas a uma prova de tortura que prejudica a lin-
continua: «Impossível portanto de esquecer, impossível recor- guagem e volta a perturbá-los. Corte trágico, por não ter saída e
dar. Impossível também falar dele, falar — e, finalmente, como obrigar a viver na ruptura. O silêncio alimenta-se da impotência
nada há a dizer, além desse acontecimento incompreensível, só do sentido. Se fosse possível testemunhar no correr tranquilo da
a palavra o pode levar sem o dizer» (Blanchot, 1969, 200). linguagem e do pensamento, a parte do silêncio seria a mesma

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que domina a existência normal dos homens, não seria o abismo E depois, com o passar do tempo e a morte dos homens,
que a penetra e a desmantela. Manês Sperber recorda-se de um surge uma nova provação que destrói a boa vontade dos sobre-
poema arménio que a sua comunidade transmitia e comentava viventes em darem testemunho às gerações que não conhece-
através de gerações: «Mesmo que todo o firmamento fosse em ram o horror às suas portas ou na sua carne e que escutam, com
pergaminho, que todas as árvores fossem penas, todos os mares compaixão, mas não são capazes de compreender totalmente.
tinta, e mesmo se todos os habitantes da Terra fossem escribas, Outro combate, no interior do silêncio, que tem de prosseguir
e escrevessem dia e noite — nunca seriam capazes de descrever apesar de todos os testemunhos, para que a história não se
a grandeza e o esplendor do criador do universo.» Cinquenta repita. A distância e as dificuldades actuais disfarçam o acon-
anos depois de ter recitado este poema, Manês Sperber descobre- tecimento. Primo Levi nota com tristeza a forma como a comu-
-lhe o sentido. «Volto a sentir a melopeia dessas frases, quando nicação se vai tornando difícil com o correr do tempo. «A expe-
me abandono, uma vez mais, à evidência de que nunca con- riência de que somos depositários, nós, os sobreviventes dos
seguiremos fazer compreender a tragédia, a catástrofe judaica do Lager nazis, é estranha às novas gerações do Ocidente, e cada
nosso tempo, àqueles que virão depois de nós. Inumeráveis do- vez se torna mais, com o passar dos anos. Para os jovens dos
cumentos, devidos à infatigável burocracia dos exterminadores, anos cinquenta e sessenta, era um assunto dos pais, falava-se
muitos relatos de testemunhas que miraculosamente escaparam, disso em família, as lembranças tinham ainda a frescura das
diários, crónicas e anais — esses milhares de palavras, fazem-me coisas vividas.» As gerações contemporâneas estão longe dos
lembrar que “mesmo se todo o firmamento...”»17. O abismo não acontecimentos, encontram-se submergidas noutras preo-
separa apenas aquele que o viveu tragicamente do horror abso- cupações que as atingem todos os dias. «Cada vez temos mais
luto do acontecimento que nenhuma significação poderia satis- dificuldade em falar com os jovens. Encaramos isso como um
fazer, separa também radicalmente aquele que tem um conheci- dever e, ao mesmo tempo, como um risco: o risco de lhes apare-
mento afastado e aquele que sofreu o ignóbil na sua carne e não cermos como anacrónicos, de não sermos escutados. É preciso
consegue encontrar palavras para testemunhar. Como se uns e que o sejamos: para além das nossas experiências individuais,
outros, talvez reunidos à mesma mesa, vivessem em duas fomos colectivamente testemunhas de um acontecimento essen-
dimensões separadas da realidade, utilizando uma linguagem cial e imprevisto, essencial por ser, precisamente, imprevisto
diferente, dois fragmentos da jarra partida da confiança do que ninguém tinha previsto... Aconteceu, pode portanto aconte-
mundo. «Inimaginável», escreve Robert Antelme «é a palavra cer novamente: é este o ponto fulcral daquilo que temos a dizer»
que não divide, que não condiciona. É a palavra mais cómoda. (Levi, 1989, 196)18. O pior, na experiência do indizível, é
Caminhar usando esta palavra como escudo, a palavra do vazio, enfrentar um dia o esquecimento ou a indiferença, formas radi-
e o passo é mais seguro, mais sólido, a consciência reanima-se» cais de desqualificação do sentido.
(Antelme, 1957, 302). Face a uma realidade que ultrapassa o
entendimento, mas que é obra deliberada do homem, as frases
separam-se, como cascas de nozes, e balbuciam coisas sem sen-
tido que apontam uma direcção, fechando os olhos, não por 18 Primo Levi narra uma experiência acabrunhante numa aula onde um
abominar a vista, mas porque a linguagem ainda não é capaz de aluno pergunta ao escritor porqueé que ninguém fugiu de Auschwitz.
encontrar um nome para esta abominação. Primo Levi explica. O aluno, pouco convencido, desenha um plano no
quadro e pede-lhe que indique o sítio onde estavam os guardas, o arame
farpado, etc. e explica-lhe de que modo seria possível fugir. Como Primo
Levi continua com dúvidas, o aluno diz-lhe com vaidade: «Se isto voltar a
17 Manês Sperber, «Hourban ou Vinconcevable certitude», Preuves, n.º 167, acontecer-lhe, faça como eu lhe digo e vai ver que consegue» (Levi, 1989,
1964, p. 3. p. 154).

110 ill
CAPÍTULO 3
AS DISCIPLINAS DO SILÊNCIO
«Nunca uma palavra pronunciada valeu tanto como, em várias
ocasiões, aquela que se conseguiu reter. Porque, se é sempre pos-
sível depois dizer aquilo que calmos, o que foi dito já não pode
ficar em segredo: o som repercute-se e, em breve, toda a gente
está ao corrente. É por esta razão, creio, que se temos necessidade
dos homens para aprender a falar, é junto dos deuses que
podemos aprender a arte de calar, graças à imposição de silêncio
que nos é feita no decorrer das iniciações e dos mistérios.»
PLUTARCO, Le bavardage

A LEI DO SILÊNCIO
O segredo encontra o seu terreno propício no silêncio e o seu
inimigo figadal na palavra, conforme recorda uma divertida
anedota de Plutarco. Um santuário de Atenas, em Esparta, foi
pilhado, a coberto da noite. A multidão está emocionada e fica
indecisa perante os factos, interrogando-se, em vão, acerca de
uma garrafa vazia que apareceu no local do delito. Subitamente
ergue-se uma voz que sugere com convicção uma solução do
mistério. Os ladrões, conscientes do risco que corriam, tinham
provavelmente tomado a precaução de beber cicuta, antes de
cometerem o desacato. O vinho contido na garrafa era o antí-
doto. Se fossem apanhados, morriam calmamente, evitando a
tortura; se saíssem incólumes da sua acção, bastava-lhes beber
o vinho para matar os efeitos do veneno. Evidentemente que
o orador é cercado, perguntam-lhe onde é que ele foi buscar um
conhecimento tão subtil dos acontecimentos, de tal forma que
ele acaba por confessar a sua participação na pilhagem
(Plutarco, 1991, 92-93). Uma fala que não sabe gerir as suas pro-
tecções está sujeita a numerosos perigos. Corre o risco de inco-
modar, pelo seu exagero, aqueles que a escutam ou dá, sem o
saber, as armas ao seu adversário para a destruir. Por vezes, faz
estragos no seu caminho. Não se lhe pode deixar curso livre sem

113
a chamar à responsabilidade, uma vez que também temos de uma abstenção de palavra susceptível de provocar pertur-
responder perante os outros sobre aquilo que foi dito. bações. O detentor da palavra conseguiu manter o silêncio, por
As práticas sociais da língua impõem, nos encontros entre solidariedade ou amizade, ou pela necessidade de salvar a vida,
indivíduos, regras severas sobre aquilo que é conveniente dizer por exemplo. O segredo é, assim, uma forma de poder sobre um
ou calar e como, de acordo com as circunstâncias e com os outro que está excluído dele. Se fosse dito, a sua existência seria
interlocutores. Cada um se defende, de acordo com o seu estilo perturbada, a sua identidade pessoal e social transformada.
pessoal e com a natureza do contacto. Ducrot recorda «que Aquele que se cala dispõe então da faculdade de quebrar o
existem temas inteiros que são considerados interditos e prote- silêncio, de falar ou de calar e de modificar, desta forma, com
gidos por uma espécie de lei do silêncio (há formas de activi- um único traço, as relações sociais.
dade, de sentimentos, de acontecimentos, de que não se fala).
Além do mais, há, para cada um, em cada situação particular,
diferentes tipos de informação que não tem o direito de dar, AS FORMAS DO SEGREDO
não porque sejam coisas proibidas, mas porque o facto de as
fornecer seria uma atitude considerada como repreensível» Uma zona de silêncio envolve cada interveniente na pro-
(Ducrot, 1981, 5-6). As disciplinas sociais e culturais do silêncio porção do que ele pretende esconder, daquilo que defende da
exigem uma aprendizagem do mesmo género que as regras da sua vida privada ou do que sabe da história pessoal dos outros.
linguagem. O conhecimento dos momentos em que é preciso Georg Simmel realça astuciosamente que o desvendar de si
falar, e sobre quê, não é menos importante do que saber próprio, que reduz a parte íntima do segredo, nunca é desti-
quando convém'calar e acerca de quê. tuída de perigo, que aproxima aqueles cuja existência é suficien-
O bom uso da palavra consiste no saber que certas coisas temente plena para que nunca se possam inteiramente dar,
têm de ser caladas fora dos momentos em que será lícito ou van- porque se renovam constantemente. Porém, noutras circunstân-
tajoso dizê-las. O falar tem valor, não apenas nos assuntos esco- cias, é interpretado como «engano», abuso de confiança, dis-
lhidos, mas sobretudo nos retidos. A lógica do tácito é activa, simulação que mudou o encontro para um terreno ilegítimo.
intencional, adaptável, originada mais num não-dizer do que E, finalmente, «o simples facto de saber absolutamente, de ter
num não-dito. Deste modo, é possível calar por consideração esgotado os recursos psicológicos, torna-nos sóbrios, mesmo
por alguém que ficaria atrapalhado com uma informação dada sem termos estado ébrios antes, paralisa as relações vivas e
abruptamente, para não expor um saber adquirido ao desprezo faz-nos pensar que, no fundo, seria fútil prossegui-las» (Simmel,
ou às graçolas dos ouvintes, para não dar nada a conhecer a 1991, 39). Para Simmel a transparência que resulta da quebra
quem não merece, ou para proteger de uma partilha comum demasiado impaciente do silêncio dissipa o mistério e reduz a
alguns aspectos de uma história pessoal ou colectiva. Ou para aura da relação. O segredo é fundador de alteridade, permite
não conferir a certos factos uma existência ou uma importância o exercício de uma liberdade individual ao mesmo tempo que
que não teriam, sem a reserva a que.o indivíduo ou o grupo se dá livre curso à diferença. Se fosse possível dizer tudo sobre
obrigam. Se as coisas não são ditas, permanecem na sombra, não si, ou saber tudo sobre o outro, toda a liberdade seria destruída.
adquirem relevo e desaparecem sem deixar rasto. Determinadas O desaparecimento do segredo é simultaneamente o desapare-
circunstâncias exigem o silêncio de quem possui uma infor- cimento do mistério. A sombra é necessária à luz. «O segredo»,
mação preciosa, com a intenção de proteger alguém ou de, mais escreve ainda Simmel «oferece de certa maneira a possibilidade
tarde, fazer valer a sua discrição para conseguir uma vantagem de existir outro mundo, ao lado do mundo visível» (41). Preserva
moral ou material por parte da pessoa posta ao abrigo de uma um espaço para si, mas também mantém o silêncio sobre acon-
revelação prejudicial. O desinteresse da situação também leva a tecimentos da história pessoal que tornariam problemática a

II4 115
relação com os outros ou, simplesmente, apenas causariam
sobre o facto de que apenas ele está habilitado a decidir aquilo
indiferença ou aborrecimento. O vínculo social implica leveza, a
que quer tornar público a seu respeito.
facilidade.em falar solicita a de calar, para protecção própria ou Se as relações sociais implicam a ignorância parcial dos fac-
para poupar os outros. A saturação do conhecimento do outro,
tos da vida do outro, o segredo prova o esforço particular de um
se fosse humanamente possível, seria como que uma análise em
indivíduo ou de um grupo para proteger uma informação, sobre
que ele se dissolveria completamente. O segredo está ligado à
si ou sobre os outros, susceptível de, se for revelada, perturbar
individuação, na medida em que ela limita uma identidade,
a ordem presente das coisas. É segredo o que está selado pelo
a distingue das outras, confunde as pistas. Secernere, aliás,
silêncio, aquilo que é calado de forma deliberada para salva-
refere-se àquilo que foi separado e, portanto, àquilo que quebra
guardar uma reputação, evitar um desgosto ou uma decepção,
a semelhança provocando a diferença. O mais íntimo é secreto,
impedir a descoberta de factos embaraçosos ou a identificação
o que coloca a existência inteira na esfera de um silêncio que a
de um culpado, dar uma força a uma organização clandestina,
protege. Os primeiros segredos da criança preparam já o seu
etc. Mesmo permanecendo na sombra, o segredo põe a sua
encaminhamento em direcção à idade adulta, são marcos
marca nas relações sociais, pela ignorância de uns e pela dupli-
miliares de identidade em construção. Ao esconder dos pais
cidade daqueles que se esforçam por nada comprometerem da
factos ou pensamentos, está a tomar as suas marcas, a exercer
sua dissimulação. Estabelece uma linha divisória entre os que
uma soberania sobre um mundo de que está a descobrir as sabem e os outros. A conivência à volta de um segredo traça
zonas de sombra e a necessidade, para se proteger, de não dizer
fronteiras simbólicas de pertença, escora solidamente a afi-
tudo, sob pena de desaparecer numa fala demasiado pródiga.
liação, apoiando-se na inocência dos que estão de fora. Separa
O conhecimento do outro é sempre parcial, acontece por
os iniciados dos que não foram julgados dignos, é uma forma
fragmentos que proporcionam surpresas, revelações inespe- poderosa de socialização que torna solidários os que a parti-
radas que mostram à nova luz relações, às vezes, de longa data.
lham. Traz consigo uma disciplina de conduta nas comuni-
O fio de uma existência é tecido por mil acontecimentos que
cações com os outros, o imperativo de manter o silêncio sobre
ficam na sombra se o indivíduo em questão prefere guardá-los
aquilo que, às vezes, queima os lábios, com vontade de dizer.
para si. Nunca ninguém se deixa apreender completamente. Na
Este conhecimento, que podia ter um valor importante se
verdade, a maior parte das relações sociais estabelecem-se entre
estivesse na posse de outros, imprime a tonalidade das relações
indivíduos que permanecem largamente desconhecidos uns
para os outros, com contactos estabelecidos no âmbito de um
sociais, à revelia daqueles que não estão dentro do segredo.
O risco de ver o segredo violado é tanto mais forte quanto o
domínio preciso, que torna supérfluo qualquer outro conheci-
número de pessoas que o conhecem. A tentação de falar pode
mento. Sabemos do parceiro da comunicação apenas o que ele
fazer ceder um dos elos da cadeia e a fraqueza ou a imprudên-
aceita revelar, ou o que a voz corrente julga poder confirmar a
cia de um só destrói, num instante, os longos esforços ante-
seu respeito. À partir de pedaços de informação constrói-se uma
riores. As sociedades secretas exigem dos seus membros uma
percepção do outro que nunca é completamente fundamentada,
disciplina de silêncio; «são uma escola extremamente eficaz da
mas suficiente para permitir o vínculo social. O outro manifesta
solidariedade moral entre os homens», diz Simmel. O segredo
sinceridade ou engano, esconde talvez dados essenciais da sua
pode abranger os objectivos, os membros, as práticas, ou o con-
biografia ou da sua psicologia, é o único dono da verdade no
junto destes elementos. Para sua protecção e dos seus membros
que lhe diz respeito. O vínculo social exige permanentemente
um crédito de confiança. Uma avaliação subjectiva da sua con-
não podem contar apenas com a confiança mútuã, e «procuram
naturalmente o meio de suscitar psicologicamente o silêncio que
duta futura justifica ou não que se liguem a ele num projecto.
não pode ser imposto pela força aos indivíduos. O juramento e
Todo o indivíduo tem uma zona de sombras. Mas há consenso
a ameaça de sanções estão em primeiro lugar e não precisam de

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comentário» (Simmel, 1991, 69). Outro meio consiste em ensinar revela é aquele em que a sua força está no máximo e lança os
o neófito a calar-se em relação ao conjunto dos factos e dos últimos fogos, antes de desaparecer ou se transformar em sim-
gestos. O espaço magnético do segredo ultrapassa então o ples lembrança. O seu poder de metamorfose espalha-se sem
conhecimento dos dados locais e estende-se a toda a palavra, remissão sobre a existência, mas desaparece, por ter perdido
forçando a uma existência à margem da comunicação ordinária. todo o valor de ser sabido. Mas, bem entendido, o segredo só
Durante semanas ou meses, ele tem de ficar calado e viver em tem valor local, noutro sítio seria certamente indiferente ou
reclusão. Pitágoras fazia do silêncio um princípio essencial de anedótico. Abrange um tecido social especial, que modificaria
formação dos seus alunos. Ninguém devia revelar os segredos as suas relações se ele fosse conhecido. Para os outros não passa
partilhados. Diz a lenda que os discípulos tinham mesmo de de uma insignificância. O seu poder apenas se mantém no sen-
ficar em silêncio durante cinco anos. Os mistérios de Elêusis não tido que ele se esconde no seio de uma trama de relações que
eram menos rigorosos, a «chave dos deuses» era colocada na ameaça.
boca dos sacerdotes para lhes lembrar a obrigação do silêncio.
Tal controlo sobre si próprio leva a uma utilização cuidadosa
da própria palavra, à vontade de apenas a proferir quando A PROTECÇÃO DO PRÓPRIO
necessário, uma vez que agora se lhe reconhece o valor. A neces-
sidade de um silêncio total, antes do silêncio parcial que preside O segredo tem, por vezes, uma dimensão estritamente pes-
ao retorno à palavra vulgar da vida, é uma escola de domínio de soal, relacionada com o emprego do tempo, com uma activi-
si e de tomada de consciência do alcance moral e social da lin- dade. Dilui-se na indiferença, aos olhos dos outros, enquanto o
guagem. indivíduo não é obrigado a prestar contas. Neste último caso,
Um jogo social estabelece-se à volta da palavra e do silêncio calar-se sobre as suas acções e gestos tem, às vezes, más conse-
que envolve a tensão do segredo. O secretismo é uma modali- quências. É o caso do suspeito que opõe um silêncio tenaz às
dade de descarga regular, que lembra o valor do não-sabido, perguntas daqueles que o acusam e que vê crescer as suspeitas
estimula a curiosidade ou a sede de saber. Com habilidade ou levantadas a seu respeito, quando uma simples palavra teria
com um espírito retorcido, o depositário fornece pedaços de talvez sido suficiente para o ilibar. O seu silêncio funciona como
informação, rompe parcialmente o silêncio, jogando com o seu a aceitação implícita da acusação, uma recusa duvidosa de se
poder, tentando conseguir benefícios. A. Zempleni fala mesmo defender. Segundo as circunstâncias, o mutismo manifesta uma
de uma «exibição« do segredo (Zempleni, 1996, 24) revelando preocupação desastrada de protecção, sem dúvida votada ao
fragmentos de saber com o fim de fazer subir o preço. O se- insucesso, no caso do suspeito estar exposto a ser claramente
gredo é uma reserva de poder, e a tentação é grande de o utilizar escrutinado, ou então uma forma de salvaguarda, no caso de
para fortalecer uma posição pessoal, ganhar dinheiro, ou des- se tratar do testemunho desastroso de uma acção delituosa
frutar simplesmente o poder que se tem sobre o outro. que provoque represálias. A lei do silêncio, a famosa omertã
No momento em que o silêncio se desfaz, em que a revelação siciliana, é uma forma histórica de protecção dos seus interes-
é feita, a igualdade é estabelecida e apaga a separação entre ses que a máfia utiliza, através do terror. Os arrependidos que-
detentores e interessados. Uma vida, às vezes, tomba no horror bram hoje este princípio, correndo o risco de pagar as suas reve-
e vê-se obrigada a uma mudança radical de orientação, ou a lações com a própria vida ou a dos seus familiares. O poderio
romper com os mais chegados. Ou então o encantamento de mafioso assenta sobre esta ameaça de morte que paira sobre
finalmente saber que vai poder viver uma existência propícia, qualquer testemunho, depois de um crime ou de um roubo.
desafogada. O segredo é uma cristalização de energia cuja força Ninguém viu nada, ouviu nada, cada um olhava para outro
de acção depende das circunstâncias. O momento em que se lado, quando os factos se deram, as testemunhas escondem-se e

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submetem-se à ordem implícita de calar ou morrer. A perpe- Em princípio, o indivíduo continua senhor das informações
tuação do crime está assim assegurada pela cumplicidade força- que podem legalmente circular a seu respeito. Várias profissões
da da população. Esta capacidade de se calar, apesar das pressões estão obrigadas ao segredo: médicos, mas também advogados,
ou de anos de prisão, é para os seus membros directos a regra e o notários, banqueiros, polícias, assistentes sociais, analistas,
ponto de honra que cimentam a perenidade da organização. psicólogos, padres que ouvem confissões, etc. Existe uma pre-
Podemos, portanto, refugiar-nos no mutismo para ficarmos sunção de confiança em relação a profissionais que possuem
ao abrigo de eventuais represálias, mas de forma mais conven- informações susceptíveis de prejudicar os seus clientes. Deter-
cional temos o direito de esperar, por parte de certos profission- minados funcionários superiores estão sujeitos ao segredo de
ais, uma discrição sem falhas em relação aos assuntos que Estado e a um dever de reserva. Nem toda a verdade é conve-
tratam. Se a justiça implica a confissão do criminoso ou o teste- niente, expõe às vezes aquele, que não foi capaz de guardar o
munho de testemunhas ou vítimas decididas a fazer luz sobre segredo que o seu estatuto lhe impunha, a represálias jurídicas,
um acontecimento penoso, se persegue a retenção de infor- políticas ou sociais. Um dever de discrição é inerente às suas
mação ou de provas, o direito não deixa de reconhecer a legi- ligações com os outros, sob pena de invalidar todas as possibi-
timidade do silêncio, se for para proteger a vida ou a honra lidades de ter êxito, devido ao receio que os clientes poderiam
de um indivíduo (Atias, Rials, 1984, 97 segs.). O juramento de ter de se lhe confiarem. O princípio da chantagem baseia-se na
Hipócrates impõe o silêncio ao médico sobre aquilo que a sua ameaça de uma ruptura no contrato de silêncio estabelecido em
profissão lhe revela sobre o estado de saúde do seu paciente, ou relação a determinados factos socialmente perigosos para uma
sobre a sua intimidade: «Seja o que for que veja ou oiça na. reputação ou uma carreira. O preço do silêncio não é apenas
sociedade, durante o exercício ou mesmo fora do exercício da uma metáfora, às vezes é uma espécie de dinheiro contado. Sem
minha profissão, calarei aquilo que nunca será necessário divul- confidencialidade, numerosos contratos profissionais ou pes-
gar, considerando a discrição como um dever, em casos seme- soais seriam prejudicados ou forçados a prosseguir disfarçados.
lhantes.» O artigo 11 do código de deontologia médica lembra Uma reserva de silêncio está tacitamente no centro de todas as
que «o segredo profissional, instituído no interesse dos doentes, relações sociais. Ao mesmo tempo, o segredo profissional traça
impõe-se a todos os médicos, nas condições estabelecidas por um limite simbólico que separa os seus beneficiários do resto da
lei. O segredo abarca tudo aquilo que chegou ao conhecimento população, outorgando-lhes um poder, um conhecimento inaces-
do médico no exercício da sua profissão, isto é, não apenas sível aos outros, mas cuja divulgação não deixaria de ter conse-
aquilo que lhe foi dito mas também aquilo que viu, ouviu ou quências. A profissão organiza-se e tece uma parte do seu
compreendeu». Ele garante que o seu estado de saúde, mesmo prestígio, à volta deste privilégio. Da mesma forma que dantes
sendo grave, não será divulgado; igualmente certos factos da o mestre artesão guardava ciosamente um segredo de fabrico,
sua história, da sua situação presente, que o conteúdo da sua para o confiar aos filhos ou aos seus discípulos, apenas na últi-
correspondência só a si diz respeito, etc. A sua vida privada não ma hora. O segredo profissional é um poder.
pode ser exposta sem o seu consentimento. Esta lei do silêncio
garante a qualquer doente, seja pelo que for, a possibilidade de
recorrer a cuidados médicos sem recear ser denunciado, SEGREDOS INICIÁTICOS
atraiçoado ou lançado à curiosidade públical.
«O segredo é o irmão uterino do silêncio», dizem os
1 Com excepção de determinados factos que mostrem a existência de vítimas: Bambara (Zahan, 1963, 150). Nas sociedades do mesmo sangue,
maus tratos a uma criança, incesto, por exemplo, que desligam o médico da da África negra, onde a tradição ainda tem força de lei, os seg-
obrigação do segredo profissional. redos revelados no momento da iniciação reúnem os grupos de

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neófitos, opondo-os âqueles que ignoram o seu conteúdo, sabem e os outros, que são mantidos afastados. O silêncio, li-
sabendo contudo que uma série de informações essenciais lhes gado ao segredo, hierarquiza o grupo. No contexto da concorrên-
escapa. Há um acordo tácito na comunidade em relação à cli- cia de classes de idade e de linhagem, no seio das sociedades de
vagem que alimenta as relações sociais e contrapõe, por exemplo, sangue da África Ocidental, por exemplo, Jean Jamin insiste no
os homens às mulheres, os jovens e os outros, etc. Para os ini- jogo de poder que mantém a existência dos segredos iniciáticos.
ciados um saber-calar enriquece o saber-dizer das conversas «Quer seja pelo processo ou pela fraude», escreve Jamin «pela
correntes. As leis do silêncio, ali como noutros lugares, repartem táctica ou pela estratégia, ou ainda pela confiscação, o segredo
o lícito de uma palavra cujas implicações sociais nunca são tem uma função distanciadora e um valor hierárquico. Ao man-
anódinas. O ritual de passagem exige a revelação dos dados ter ou estabelecer zonas de sombra ou de incerteza, desmulti-
em que se baseia o vínculo social, a propósito de máscaras, de plica os vínculos sociais de reprodução cultural, quer ao reser-
ornamentos, de ritos, dos seus protagonistas, dos mitos, etc. var certos conhecimentos para determinadas categorias sociais
O noviço acede de modo privilegiado ao sistema do sentido do quer censurando a sua expressão» (Jamin, 1977, 124)2. Neste
seu grupo, aprende a tornar-se membro pleno da comunidade, contexto sociológico, o silêncio é um guardião da tradição.
sendo-lhe transmitidos conhecimentos cujo acesso não está ao Baralha as pistas e, sobretudo, compartimenta os grupos.
alcance de todos. O ritual classifica os jovens segundo os seus O segredo transforma um saber em privilégio. O silêncio que
laços de sangue e distingue-os uns dos outros através de segre- está associado com ele é um poder, um posicionamento à dis-
dos guardados que não são os de outros grupos, ou então reúne- tância do outro, que ignora, sem mesmo saber da sua existência,
-os em conjunto, de acordo com o seu grupo etário, dando-lhes ou então, pelo contrário, que procura apropriar-se dele por ter
o mesmo ensinamento. Mas o privilégio do saber paga-se com o sabido da sua existência. Consolida uma posição relacional ou
desprezo dos que não sabem ou são detentores de um segredo estatutária, mantendo os outros afastados de um dado que
de outro tipo. . modificaria a sua existência, se fosse conhecido. Controlo eficaz
O segredo tanto vale no seu conteúdo como na sua forma e sobre aqueles que estariam interessados em desvendá-lo, mas
no seu objectivo que consiste, antes de tudo, em unir à sua volta, que nada sabem. Mais subtil ainda, se o segredo for conhecido
separando os que sabem de um grupo mais alargado. Marca de formalmente, mas.o seu conteúdo ignorado, o que dá um meio
reconhecimento e de filiação, cria ligações entre aqueles que o de pressão acrescido ao seu possuidor, um poder suplementar,
detêm, distinguindo-os dos outros. O segredo ensina-os a calar, apoiado num compromisso simbólico. M. Houseman distingue
a dominar a fala. Evidentemente, é por vezes fútil, provocando entre os segredos iniciáticos «dissimulados» e os outros que
mesmo a ironia, mas este quase nada dirige uma estrutura onde são «declarados». As mulheres têm por vezes conhecimento do
cada um tem o seu lugar, de acordo com o seu grau de iniciação segredo que, por exemplo, diz respeito às máscaras, em deter-
Jamin, 1977, 104 segs.; Zahan, 1963, 150-1). E assim, embora minadas sociedades, sabem que não estão lá espíritos mas sim
irrisório no seu conteúdo, a sua forma é cheia de consequências. homens da aldeia. Tacitamente elas «fazem de conta». A lei do
Favorece a aspiração de se tornar respeitável àqueles que ainda silêncio tem aqui menos a ver com o conteúdo do segredo
são demasiado jovens, mas ainda para os que não lhe têm aces-
so (nomeadamente as mulheres). O nível de conhecimento ou
de acesso ao segredo marca uma ordem estatutária rígida que 2 Jean Jamin observa, por exemplo, que a marginalização dos iniciados tem a
alimenta a organização da sociedade. Ensinar, revelar o ritual ver com noções de passagem, de transição, de impureza, etc., mas tem
igualmente o carácter de uma «tentativa, uma técnica de submissão, de
de passagem, torna-se simultaneamente numa marca, numa
coerção dos grupos mais novos que se encontram, segundo os casos e
partilha do segredo, na outorga de um privilégio. Estabelece a durante um certo período, sujeitos ritual e economicamente aos seus par-
divisão da sociedade (principalmente sexual) entre os que ceiros sociais mais velhos» (p. 96).

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do que com a sua enunciação (Zempleni, 1996, 36). O saber-
não-dito, da paralisação do sentido que comanda a sua existên-
-calar é uma figura social do silêncio que protege a organização
cia, sem que ele tenha a noção disso.
social e tem em vista a sua perenidade.
Pedra angular do desconhecimento de si próprio, o segredo
familiar fomenta, muitas vezes às escondidas, todo o esforço
psíquico de alguém que é obrigado a representar, noutro cenário,
OS ESTRATAGEMAS DO INCONSCIENTE uma história que apenas lhe diz respeito pelos ricochetes mór-
bidos de que ele nem sequer é contemporâneo. O inconsciente não
No limite do segredo, um facto do conhecimento comum
pode ser intencionalmente calado, devido à dor que eventual-
tem história, está fora do tempo, alberga factos candentes que
respeitam a gerações anteriores, mas que ele recria, no presente,
mente voltaria a despertar, se fosse falado: a morte de uma
criança, um luto que ainda não acabou, um «deslize» moral
na forma de sintoma ou de sofrimento. Há uma patologia do
segredo. Maneiras desastradas de proteger o outro com o silêncio
cometido por um dos membros do grupo (incesto, abandono,
acabam por se revelar como contendo forças terríveis de destrui-
adultério, etc.), um drama familiar (suicídio, crime, etc.), cio
Uma obrigação de silêncio apaga desajeitadamente uma parte
ção. Longe de proteger a identidade, acabam por abrir brechas por
onde sai um sofrimento difuso, uma vulnerabilidade especial,
da história comum, para esconjurar um sofrimento que, por ser
uma saúde vacilante, etc. A preocupação de proteger os que virão
constantemente negado, condiciona o conjunto das relações depois enquista nos laços genealógicos zonas de perturbação, que
sociais. Aqueles que conhecem esta história continuam a apoiar
formam «criptas» (Abraham, Torok, 1978; Dumas, 1985), escon-
Os seus pensamentos e acções na necessidade de a escond
er. . dendo «fantasmas» que vêm ensombrar a existência e libertar
A proscrição do acontecimento aparece com a impossibilid
ade correntes mórbidas nas relações do indivíduo com o mundo.
de ouvir falar dele, por causa do desgosto, sempre à flor da
pele Silenciando o drama, não fazemos com que ele desapareça.
que ele provoca. Como se lembrá-lo por palavras tivesse o
pe- Ele continua a perturbar aqueles que têm conhecimento dele e,
rigo de fazer repetir os factos. Apoiando-se no drama, a intenç
ão por conseguinte, a alimentar, sem seu conhecimento, a sua con-
é de Teduzi-lo ao silêncio, de o empurrar para o fundo da duta em relação aos que, ingenuamente, desejavam proteger.
memória, com a esperança de que o tempo lhe reduza o sofri-
mento. E sobretudo que o seu conhecimento fique longe A recusa é uma forma perversa e psicologicamente custosa de
dos defesa. O inconfessável continua com o seu trabalho de sapa no
membros da família, mantidos afastados «para seu bem», inconsciente, o fantasma dá sinal de si em actos ou pensamentos,
porque são pequenos, por exemplo, ou porque ainda
não por palavras ou por imagens que são impostas ao sujeito com
nasceram, quando os acontecimentos se deram. A conservação
uma aparência de ruptura em relação ao seu comportamento nor-
do segredo tem o objectivo de impedir a introdução de inter-
pretações que poriam em risco os próprios fundamentos mal, traduzindo-se em acidentes ou doenças cujo aparecimento
da está simbolicamente ligado com o acontecimento que a família
sua relação com o mundo. A barreira de silêncio é uma pro-
procura dissimular (repetição do drama, aniversário de uma
tecção a favor de uma ordem das coisas que implica relaçõe
s morte, etc.). À «cripta» é um espaço ensombrado do inconsciente
afectivas identificadas e duradoiras que, se fossem postas
em onde se interpõe, em equilíbrio instável, o «impensado genealó-
dúvida, provocariam um desmantelamento brutal e irreme-
diável. O levantar do segredo é entendido como contendo uma gico» que, por esta forma, mantém o seu poder de morte em
força destruidora, que ameaçaria a definição de si própri relação às gerações futuras, através de inumeráveis fugas. O silên-
o cio de chumbo que pesa sobre uma origem, sobre um aconte-
daquele que ainda o ignora. Pelo menos é nisto que acreditam
cimento, um falecimento, contém o germe não apenas do sofri-
aqueles que se esforçam por o proteger, sem que ele o saiba,
mento, mas também, em certas circunstâncias, a psicose, o
fazendo dele, por vezes, sem o quererem, uma vítima do autismo, ou ainda os maus tratos da criança, a impossibilidade de

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dar amor suficiente, e isto sem que este consiga compreender as Freud leva em conta a exigência legítima da sua paciente de ser
razões da reticência em relação a si. O indivíduo não deixa de se escutada para ser entendida e, portanto, poder chegar ao fim da
libertar com sacrifícios de uma dívida-que lhe não diz respeito, sua exposição sem ser interrompida. O analista tem de conhecer
mas cuja repercussão, ao longo das gerações, o atinge em cheio. bem a trajectória pessoal do seu paciente e o seu debate íntimo
O fantasma transforma a existência em destino totalmente orien- com o inconsciente, antes de pretender intervir, sem dar uma
tado para um acontecimento antigo que, por nunca ter sido con- nota falsa e sem apresentar induções. Contudo, vai ser preciso
tado, conserva toda a sua força desintegradora. Apenas o quebrar tempo para que a escuta venha a ocupar um lugar de importân-
do silêncio dá ao indivíduo os meios de se opor, com conheci- cia terapêutica decisiva na psicanálise. O silêncio em que Freud
mento de causa, às forças que travam a sua vontade de viver:a se mantinha durante as primeiras análises, com o homem dos
confissão ou, ainda às vezes, o processo analítico fornecem um ratos ou o homem dos lobos, evoca sobretudo a reserva. Freud
corpo e um rosto ao acontecimento anteriormente proscrito, intervém sem parar, não hesita em estimular os seus pacientes
podendo então o sentido reconstruir a coerência passada de quando se retraem. Depois de ter sido operado ao maxilar,
uma história, tendo a identificação expulso o fantasma. devido a um cancro, incomodado com a sua prótese, prefere
calar-se, ficando mais disponível para escutar; mais tarde, por
força das circunstâncias, tendo dificuldades em ouvir, descobre,
PSICANÁLISE E SILÊNCIO. ao mesmo tempo que os seus pacientes, que a análise afinal não
precisava tanto das interrupções regulares do terapeuta para
A história da psicanálise assemelha-se a uma longa con- surtir efeito (Mannoni, 1974).
quista de um silêncio que vem perturbar o regime anterior da * O silêncio do analista não é nem mutismo nem vazio, não é
fala em psiquiatria e, mais amplamente, a sua relação com o um nada da palavra ou do sentido, uma vez que a sua presença
sofrimento. O recurso ao silêncio torna o terapeuta mais dis- não deixa de ter os significados que o doente lhe confere. Não
ponível à escuta daquilo que diz o paciente, seguindo os mean- se trata de não fazer qualquer ruído, de estar ausente, mas de se
dros do seu encaminhamento na linha do inconsciente. O evi- calar, isto é, de desempenhar um silêncio activo, carregado de
denciar das virtudes do silêncio numa operação terapêutica uma tensão que mantém o doente desperto. O analista poderia
resulta, antes de mais, de uma pergunta de Emmy von M,, falar, mas prefere abster-se para poder escutar melhor, e para
numa época em que Freud ainda usa o método catártico. que a sua palavra tenha mais expressão quando dita. Freud
Quando Emmy lhe conta as suas dores gástricas, Freud dá-lhe chama a atenção para o facto de o seu subconsciente se dever
de imediato uma interpretação da sua causa. Mas a jovem não colar ao do paciente, através de uma atenção «flutuante», evi-
se contém e diz ao seu terapeuta que se cale e a oiça. «Ela diz-me tando uma fixação demasiado rígida sobre aquilo que está a ser
então, em tom autoritário», escreve Freud «que não é preciso dito, para não exercer uma influência demasiado pessoal no
estar sempre a perguntar-lhe de onde vem isto ou aquilo, mas processo da cura. «A regra imposta ao médico», segundo Freud
deixá-la contar o que tem para dizer» (Freud, Breuer, 1956, 48). «deve ser enunciada assim: evitar permitir que qualquer
influência possa ser exercida sobre a sua capacidade de obser-
vação e confiar inteiramente na sua “memória inconsciente” ou,
3 Diferentes analistas têm-se empenhado em evidenciar o acto de falar nos em linguagem técnica simples, escutar sem a preocupação de
estratos particulares de imagem do corpo. Assim, o silêncio passa a ser saber se vai guardar memória de alguma coisa» (Freud, 1970, 62).
entendido como uma inibição em relação a um assunto que tenha uma
A abertura ao outro, deste modo criada, destina-se a ajudar
referência muito próxima a uma erotização específica. A palavra estaca
devido a uma resistência que se opõe à irrupção de um movimento instinti- a chegar ao inconsciente. A abstenção dá uma oportunidade a
vo (Fliess, 1987; Ferenczi, 1970, 1984; Nasio, 1987). quem está no uso da palavra. O terapeuta tenta agarrar o paciente,

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a sua função não é apenas de escutar, o que apenas daria valor interesse, sem efectuar censuras. Mas ele próprio mantém a dis-
à palavra dita, mas também de perceber, o que abre caminho a tância e a discrição em relação ao seu universo íntimo. É o esta-
que funcionem outros sentidos e também a uma atenção muito belecimento de uma relação cuja reciprocidade não é clara e faz
especial ao silêncio que, à sua maneira, também diz coisas e salientar a angústia, o medo, os traumatismos simbólicos. Falar
exige uma atenção que não se limita apenas a ouvir. Em análise, sempre deles, continuamente, sem ter resposta, sem conhecer a
mesmo quando o paciente fica calado, fala sem dar por isso história íntima de quem ouve, obriga o paciente a agarrar-se
através da sua postura, dos seus gestos, das suas mímicas. A voz a si próprio, a questionar-se sem parar. A assimetria da relação
plena é ultrapassada por aquilo que diz e pelos gestos involun- entre o terapeuta e o paciente incita o segundo a falar, espe-
tários do corpo que denunciam a seu modo a tensão. Em psi- rando poder entrar, por si mesmo, nos arcanos do seu não-ser,
canálise o silêncio é sempre o equivalente a uma fala, a uma pre- conseguir dizer as palavras exactas em relação àquilo que o
sença. «Acho», escreve Searles «que o meu silêncio é a minha impede de se encontrar e obriga a recorrer a outra pessoa.
arma terapêutica mais fraca no tratamento dos meus doentes, O silêncio relativo do analista cria no paciente uma distância
seja qual for o carácter nosológico que revelem... Para cada entre si e ele próprio, impede a distracção, que ajuda à fuga
doente há um momento em que ele verifica com surpresa: “o permanente, obriga-o a olhar-se de frente, a falar de si, a
seu silêncio tem que chegar até mim”, quando todas, ou quase desnudar-se perante um espelho sem piedade. O terapeuta é
todas as interpretações que eu tinha feito verbalmente tinham a garantia de um quadro simbólico sem o qual a conversa seria
fracassado» (Searles, 1986, 11). O silêncio, neste caso, não é impossível. Reserva-se o direito de intervir, não de acordo com
uma lacuna do sentido, está cheio de uma presença activa, de uma a ritualidade normal do usar da palavra nas conversas, mas
abertura ao outro, é uma disponibilidade em relação ao sentido. segundo o que a sua técnica lhe diz para fazer.
Não estando submetida às regras da conversação, a análise O silêncio é uma matéria de sentido que assinala uma
inclui permanentemente uma diferença entre a habilitação da resistência ou uma abertura do paciente, mas que não é pro-
palavra do terapeuta, quase sempre calado, e a de um paciente priedade privada sua, sendo o próprio analista posto à prova
que, em princípio, mantém o cuidado do seu discurso de um deste silêncio em que a sua intervenção para o quebrar ou a sua
modo que não teria oportunidade noutras circunstâncias. A psi- abstenção para o deixar instalar não indicam apenas o seu grau
canálise convida a falar num quadro definido que é imposto ao de profissionalismo, a sua intuição sobre a maneira de conduzir
indivíduo fora das rotinas da vida quotidiana, uma vez que se a sessão, mas também a sua própria psicologia. Mais ainda, se
trata de falar de si, sem censura, face a um terapeuta que fica o silêncio tem um significado diferente, para um e outro, afir-
calado e escuta, que se apaga enquanto pessoa, e cujas raras ma-se igualmente entre eles, liga-os entre si e apresenta uma
intervenções consistem em encorajar a fala ou a pedir um maior terceira faceta. O silêncio da cura faz ressoar os comportamen-
esclarecimento, ou a relançar um assunto ou a interpretar um tos corporais da sua presença mútua. Se o paciente se revela,
dado que apanhou no ar. pela sua atitude, pela sua mímica ou pelos seus movimentos, o
Outra ruptura introduzida pelo dispositivo não se refere analista também se mexe, escuta com maior ou menor atenção,
apenas à forma da troca de palavras, mas ao seu conteúdo: não fica muitas vezes na expectativa ou luta contra o aborreci-
se trata de falar disto e daquilo, ao sabor do momento, mas mento, toma notas, não se mantém sossegado ou fica sonolento,
de dar livre curso à interioridade, àquilo precisamente que é hesita em intervir, o seu olhar examina o paciente, medita sobre
calado nas conversações vulgares: traumatismos de infância, o próximo assunto ou fixa-se na janela. Lamenta não ter con-
sexualidade frustrada ou fantasmas eróticos, associações livres seguido agarrar bem um ponto revelador, ou esforça-se por
(frier Einfall), etc. O analista exige que o paciente fale sem conciliar uma opinião com uma intuição que nem sempre estão
resistências daquilo que lhe vem à ideia, sem considerar o seu de acordo. O silêncio do terapeuta, fazendo eco ao do paciente,

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por vezes, é o reflexo de uma agitação interior à procura de mas de uma outra maneira de trazer em si a questão da pre-
uma saída propícia. sença no mundo.
O silêncio não é apenas uma resistência, uma maneira de se O silêncio do analista não tem o mesmo significado durante
esquivar, um valor negativo a ultrapassar ou um sintoma a o desenrolar da cura e menos ainda de acordo com a ressonân-
rejeitar, a cura não passa apenas pelo domínio da linguagem. cia interior das assuntos apresentados pelo paciente. Este úl-
O silêncio é a garantia de um domínio de um ritmo necessário timo manifesta uma atenção mais ou menos viva segundo as
que protege a economia psíquica de um paciente que receia ser circunstâncias. Lutando contra o sentimento agudo da sua pre-
maltratado sem benefício ou de correr o risco de perder os seus sença, o sujeito não costuma ter outra escolha senão calar-se,
contactos com o mundo. Face a uma precipitação que o assus- diz Lacan, e «recua mesmo, perante a ameaça da sua pergunta»
ta, porque ainda não sabe se está suficientemente protegido (Lacan, 1966, 589). Noutras alturas, quando o paciente está divi-
para avançar, contrapõe a sua reserva que apenas será dissol- dido entre a vontade contraditória de dizer alguma coisa ou de
vida com o tempo e o trabalho do inconsciente. Progredindo se refugiar no silêncio, gira em volta do seu dilema, procura
no seu ritmo próprio, esconjura o medo de se afundar e o silên- ganhar tempo com frases insignificantes, com rodeios que não
cio torna-se, também para ele, numa arma, num ponto de equi- levam a parte nenhuma. Hesita antes de se calar, preocupado,
líbrio, que o ajuda a afastar o medo em relação ao abismo que apesar de tudo o que quer contar. O desconforto da situação
vê em si próprio. Em contrapartida, segundo Freud, o deixar obriga à diversão de uma fala sem conteúdo, ela própria com o
de falar de um paciente indicia muitas vezes uma defesa asso- embaraço da banalidade. A palavra, às vezes, é utilizada como
ciada a um pensamento que solicita a pessoa do terapeuta. sendo uma fortaleza sonora, para afastar o terapeuta, afogar a
«Uma vez dada esta explicação», escreve «o obstáculo é ultra- sua atenção numa profusão de palavras destinadas a provocar
passado e, pelo menos, a ausência de associações transformou- o torpor, ensaiando um falatório incansável para dissipar
-se numa recusa de falar» (Freud, 1977, 52). Citando Elisabeth a angústia, cortar a ligação com o analista, reduzi-lo à impo-
von R., num momento em que ele ainda utiliza o contacto físi- tência. A palavra torna-se então no melhor meio de nada dizer.
co, neste caso uma pressão sobre a testa da sua paciente, Freud «O dia-logos fica cirurgicamente cortado», diz Resnik (1973,
explica que lhe agarrou a cabeça quando ela parou de falar, 108). O silêncio persistente do analista persegue a complacên-
porque «o silêncio podia ser interpretado de duas formas: ou cia ou a resistência do paciente, obriga-o a desvendar-se, é um
bem que Elisabeth examinava a ideia que lhe tinha surgido e a encorajamento a falar, precisamente pelo vazio que mantém,
encontrava com ou sem valor em relação à pergunta feita, o que pela ruptura das convenções sociais do uso da palavra, que
não deveria fazer; ou então receava revelá-la, por essa confis- acaba por tornar penosa a insignificância de um assunto agar-
são ser desagradável para ela. A partir daí, não cedi quando rado pelo calor do acontecimento e que esvoaça por ali, sem
ela dava a entender não ter pensado em nada... Insistindo, que consiga defender-se dele nomeando-o. «Em determinado
fiquei realmente a saber que nenhuma pressão deixava de ser momento da análise», escreve T. Reik «o próprio silêncio do
eficaz» (Freud, 1956, 121-122). Quando se estabelece a comuni- analista torna-se num factor que favorece a reciprocidade das
cação, o silêncio, para além da simples necessidade de escuta forças emotivas. Parece proibir que se deixem ficar para trás os
ou das pausas do diálogo, assume o sentido de uma abertura problemas e obriga a uma tomada de consciência daquilo que
oferecida à atenção do analista (Nasio, 1987, 227). Longe de escondem considerações sobre o tempo ou sobre a biblioteca ali
ser apenas uma defesa a combater é também uma forma apro- à vista» (Reik, 1976, 119-120).
priada de resposta, traduzindo o aparecer de uma signi- Em consonância com a relação de comunicação, o silêncio
ficação que se basta a si própria, sem ter necessidade de do analista funciona como um «quebra-voz» (Reik), confere a
voltar a ser formulada em palavras. Não se trata de um vazio qualquer palavra pronunciada uma densidade que o paciente

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cigarro, e julgava mesmo ouvir cair a cinza no cinzeiro. Afinal
nem sempre esperava. Confere-lhe a sua consistência afectiva ele estava ali»!
deixando-o vazio, disponível para que se tone no Outro, Com o correr do tempo, a própria qualidade do silêncio
superfície pensadora, onde o inconsciente se revela e onde transforma-se, devido à conivência criada pela regularidade das
adquire significado o reprimir de uma história. A pessoa do sessões, com o trabalho da comunicação a defender o paciente.
analista desaparece, para dar corpo a um drama de infância, A escuta do analista transforma-se, com o conhecimento pro-
que nunca é completamente assumido. O facto de arrancar ao gressivo que reúne de quem, incansavelmente, fala ou fica
silêncio uma confissão dolorosa para ser dita nestas circuns- calado, na atmosfera cômoda do seu gabinete. Qualquer modifi-
tâncias, leva a que seja escutada de outra maneira, a que o cação da escuta muda o significado do silêncio e afecta a fala ou
próprio fique ferido pela consequência do assunto. Mesmo que o sentimento do paciente. As condições de cura são afectadas
o analista se cale, nesse momento, a sua presença salienta uma por isso. Searles, bastante atento a esta vertente, fala da sua con-
palavra cujo alcance é incomparavelmente acentuado por ter vicção de que, se descobre «num doente um conflito, em grande
sido escutada num momento de espera sobrecarregada pela parte inconsciente, sobre o qual (ele) guarda um silêncio de
comunicação. «Não há fala sem resposta, mesmo que só encon- vários meses, ou mesmo de vários anos porque sabe que seria
tre o silêncio, desde que tenha quem ouça... e este é o cerne da prematuro formular uma interpretação, esta mesma descoberta
sua função na análise» (Lacan, 1966, 247). A reserva do analista transforma a sua capacidade de reagir ou de participar tacita-
alimenta a crença do paciente de que ele nada ignora dele, mas mente naquilo que sente... Estas modificações poderão jogar no
que apenas espera o momento favorável à revelação. Ela faz sentido de uma maior sedução ou maior distância, ou mesmo de
vibrar a sua atenção, contendo o anúncio virtual do segredo uma combinação das duas, é algo que não sei. Mas é certo que o
pressentido que o «sujeito que devia saber» ainda guarda no paciente tem a percepção delas, pouco importando a que nível
seu íntimo, mas que não tardará a revelar um dia. A comuni- do inconsciente ou do pré-consciente. Também é provável que
cação dá um peso considerável à sua presença e às suas mais elas o ajudem a tomar consciência dos sentimentos e das
pequenas manifestações. Os seus actos e gestos adquirem um recordações em questão, e a escutar e assimilar as interpretações
significado às vezes terrível. Persegue os pensamentos e os verbais referentes a este material anteriormente inconsciente»
sonhos do analisado, ansioso da mínima palavra do seu lado, (Searles, 1986, 12). A capa do silêncio comanda, à sua maneira,
impaciente por lhe contar o seu sonho, por escutar o seu even- o trajecto do analista nos seus múltiplos itinerários de sentido
tual comentário. Se ele ficou calado, a sua atenção mantém-se que se apresentam à sua frente. Ela modula as peripécias do
desperta até à próxima sessão, questionando sem parar as percurso. E a matéria de que se alimenta a ressonância natural
razões de uma tal abstenção, arranjando para ela mil razões dos inconscientes. Entendimento do silêncio, não apenas no
contraditórias. O silêncio do analista mexe com o inconsciente intervalo entre dois usos de palavra, mas também na trama de
do sujeito, obriga-o a reflectir nas incidências da sua palavra ou sentido das palavras, na sua parte muda, contudo audível,
nas imagens dos seus sonhos. Entendido através do filtro da devido ao vazio que revelam.
comunicação, esta reserva é sentida como voluntária e propícia A comunicação liga os inconscientes mas também os corpos,
ou, inversamente, como ameaçadora ou indiferente. Não deixa que trabalha silenciosamente ao ponto de os fazer reter, às
de trazer um trabalho doloroso sobre si. «As horas mais inten- vezes, palavras não pronunciadas, sofrimentos difusos, doenças,
sas e mais úteis da minha análise foram as horas “brancas”, que não costumam poupar o analista. Didier Dumas recorda o
sem qualquer troca de palavras», escreve F. Camon. «Ele ficava
de tal modo silencioso que eu tinha a impressão e, às vezes, a
certeza, de que ele se tinha ido embora. Depois, ao fim de uma 4 F. Camon, La maladie humaine, Paris, Gallimard, 1984, p. 36.
meia hora, apercebia-me do bater do seu indicador sobre o

133
132
mutismo obstinado de uma jovem que lhe causava dores de bar- sionalismo ou mudez e que, portanto, não se preocupa com o
riga ao longo das sessões. Essas dores desapareciam finalmente tempo de quem fala, provoca muitas vezes confissões, desvios
quando o trabalho do silêncio amadurecia uma fala que ousava que permitem uma distância propícia de si mesmo, espelho
formular o seu desejo. A sua paciente confessou-lhe um dia: deformador onde se podem ver melhor as facetas ignoradas.
«Queria dizer-lhe que gostaria de estar dentro do seu ventre.» Também consegue, às vezes, chegar ao sentimento de ser final-
O dar voz à comunicação libertou imediatamente o analista das mente compreendido, de viver uma comunhão sem defeitos.
crispações que o incomodavam insistentemente há meses. Ela O outro, de expressão aberta, absorvido no acto de escutar, sem
simboliza, no ventre do Outro, uma criança morta, cujo signifi- interromper, ou apenas raramente, a sede de falar de si, dispen-
cado, numa história íntima, é preciso depois esclarecer. Mas foi sa compreensão (mesmo que não seja importante). A aquies-
conseguido um avanço significativo, num parto doloroso que cência tem o valor de um reconhecimento próprio, irradiado por
apenas se conseguiu obter através da longa prova do silêncio - aquele que fala. No romance de Carson Mac Cullers, Le Cour est
(Dumas, 1985, 17-25). O tormento do não-dito sacode o corpo, un chasseur solitaire, o personagem Singer, mudo de nascença,
enquanto a sua formulação não atravessou os lábios ou a cons- oferece dessa forma a sua presença tranquila e disponível. O seu
ciência do paciente. O sintoma é uma tradução infeliz do silên- silêncio cristaliza as confissões dos que o rodeiam. Não podendo
cio, uma palavra que falta, um sentido que é preciso agarrar, responder, dispõe de uma paciência infinita perante o dilúvio
cuja procura está semeada de ciladas, de arrependimentos, de de palavras que recebe de uns e outros, cada um ficando com
fugas, de palavras fúteis ou dolorosas. A reserva vigilante do a impressão maravilhosa de ter sido finalmente compreendido
analista é um apelo do sentido para se exprimir, para que possa «e talvez mais». Nenhuma palavra da sua parte dissipa a ilusão.
desaparecer o sintoma de que o solilóquio entrava a existência. Um dos personagens, que regularmente lhe faz confidências,
O silêncio acorda no paciente a réplica do sentido que es- revela o sentimento geral de todos: «A expressão dos seus olhos
tava surda em sua defesa e restaura de seguida um sentimento levava a pensar que ele tinha percebido coisas que ninguém
mais alargado da sua presença no mundo. Pelo menos é esse o tinha percebido antes dele, que ele sabia coisas que nunca
incentivo, um convite a que pegue na palavra e se explique: tinham sido adivinhadas. Não parecia totalmente humano»
«Quem seria capaz de negar que a análise é, antes do mais, isto», (p. 39). A mudez de Singer, a sua incapacidade para dizer uma
escreve F. Gantheret «e principalmente para o analista: a espe- palavra que desmentisse as coisas que, imaginadas a seu
rança louca da palavra certa, vinda das profundezas húmidas respeito, fazem dele o depositário de um segredo, que cada um
do silêncio, que vai falar realmente dessa infelicidade, das suas julga prioritariamente e intimamente seu. O homem acaba por
causas e do seu sentido, que o vai dizer de forma tão perfeita incarnar a peça que lhes falta na sua história e de que esperam
que o vai apagar no próprio momento em que fala, numa ter a revelação. A palavra solícita para com ele, a sede de
explosão de luz» (Gantheret, 1981, 25). A existência só tem sen- estarem ao seu lado demonstram a força da convicção de que o
tido quando falha o encontro com o objecto absoluto do desejo, seu interlocutor «sabe». Nas suas deambulações pela cidade,
e, precisamente por isso, por nunca ser verdadeiramente Singer torna-se, sem o querer, numa tela de projecção. Recolhe'
realizada permanece inacabada e alimenta-se de impaciência e as confidências, os ressentimentos, os desejos escondidos dos
do sonho de que nada está ainda completamente perdido. A psi- que falam com ele. O silêncio de Singer dá a entender todas as
canálise é uma via de eleição para a orientação desta pesquisa e respostas possíveis, as que se sonha ouvir e que a imaginação
daí o silêncio que a acompanha, com a gravidade especial de fornece com abundância sem ter necessidade que sejam ditas.
todas as revelações.
Fora da psicanálise, na vida normal, uma atenção completa-
mente dedicada à escuta, por discrição, generosidade, profis- 5 Carson Mac Cullers, Le Coeur est un chasseur solitaire, Paris, Stock, 1947, p. 123.

134 135
Contudo, Singer não compreende nada destes dramas minús- que os apoiantes manifestam é, contudo, regulada por uma
culos de que lhe falam todos os dias e que consomem a existên- ordem secreta que se lhes impõe sem darem por isso, desde
cia daqueles que lhos contam com entusiasmo. Contenta-se que entram na sala ou no estádio. Se não conseguimos ima-
apenas em estar ali e em receber as suas palavras, sem mesmo ginar um estádio paralisado pelo silêncio, não conseguimos
sentir compaixão por eles. Singer, por seu lado, mantém uma imaginar um teatro com os espectadores a vociferarem ou feli-
relação ambígua com o seu companheiro, também mudo, sem citando-se ruidosamente em homenagem às interpretações dos
dúvida um pouco débil e que conhece mal a linguagem dos actores. Não existe descontracção num lado e contenção no
sinais. Contudo, as mãos de Singer agitam-se incansavelmente, outro: apresentam-se duas formas distintas, mas o contexto em
embora no fundo ignore se está a ser compreendido. Não dá que se inscrevem corresponde a uma necessidade colectiva de
importância ao facto, convencido que a estupidez do seu representação do vínculo social.
amigo mascara uma formidável sabedoria. E a relação singular, No teatro ouve-se respirar, tossir, mudanças de posição nas
que confere ao que se cala e escuta uma penetração moral fora cadeiras, apercebemo-nos de manifestações de aborrecimento,
do comum, acaba por se reproduzir a seu favor. ou a partida eventual de um espectador que, por um instante,
focaliza uma parte da atenção. A cena impõe uma proximidade
física singular, num contexto social em que qualquer manifes-
O SILÊNCIO DAS INSTITUIÇÕES tação corporal se torna embaraçosa, na medida em que inter-
rompe a concentração dos vizinhos ou dos actores. A prática do
Há uma outra disciplina do silêncio, a que preside ao fun- esconder do corpo (Le Breton, 1990 conhece na vida quotidiana
cionamento dos locais da vida social. A ritualidade que carac- condições propícias ao seu exercício; numa sala de teatro,
teriza os movimentos, as mímicas ou as posições dos actores é revestida de silêncio, as manifestações do corpo dos outros são
regulada pelos ritos da comunicabilidade em uso. Ela inscreve, um embaraço, um pouco como num compartimento de comboio
numa forma simbólica do espaço e do tempo, uma simbologia ou num ascensor, onde é conveniente mostrar ritualmente a
de rostos e corpos, um uso característico da palavra. A con- transparência do outro, ensaiando completamente o seu próprio
dução de certas actividades é propensa à suspensão de manifes- desaparecimento. A regra implícita é a da discrição, isto é, o
tações orais. Um filme numa sala de cinema, uma representação esforço ritual de nos unirmos ao vizinho, de não nos separar-
teatral, um concerto, uma coreografia, uma conferência, uma mos, correndo o risco de incomodar. A sala é um corpo único e
aula, etc. implicam, desde o início, um cessar das conversas ou um único rosto, um espelho concordante com os actos e os
das deslocações. A regra não é universal, as salas de cinema, por gestos das personagens. O espectador deve manter-se imóvel,
exemplo, em certos países parecem pátios de recreio, com inter- se muda de posição, estende as pernas ou cruza os braços, é
pelações barulhentas, em que se apoiam com gritos os esforços esperado que o faça sem manifestações excessivas, a menos que
do herói ou se insultam os maus. Em contrapartida, nas nossas pretenda demonstrar a toda a assistência a extensão do seu
sociedades, as condições de acolhimento da obra assentam na aborrecimento. O estatuto da sua presença não escapa à luz dos
contemplação muda dos espectadores. O poder da palavra é projectores que são os olhos dos vizinhos. Qualquer barulho
delegado naqueles que têm por missão dar corpo à obra. despropositado pode desmobilizar os actores e enervar a
Numa sala de desportos, a ritualidade corporal permite o assistência. O silêncio é, portanto, de regra. No teatro, apenas
grito, o insulto, os movimentos bruscos, as aclamações, os o actor dispõe de voz. Na sala, o mais pequeno sussurro
clamores de um e outro grau, com os aplausos a festejar uma invade o espaço como um ruído ensurdecedor, incomoda os
proeza. O corpo aí entrega-se numa alegria que acompanha de espectadores, a quem lembra o artifício da situação e o absurdo
forma barulhenta as peripécias do jogo. A liberdade corporal de se emocionar com uma história qualquer, desempenhada

136 137
por um punhado de actores que repetem todos os dias as acontecimento, a submissão a uma transcendência social que
mesmas cenas, antes de irem para casa. Incomoda o actor, fazen- remete o homem para a sua humildade e lhe lembra a fragili-
do-o recear que a sua interpretação seja medíocre, ou que o dade da sua condição. As instituições regulam também os locais
espectáculo seja aborrecido. No caso de se prolongar, o sussurro ou os tempos de silêncio ou de murmúrio nos sítios onde as
arrisca-se a romper o frágil edifício amparado por uma série de comunicações só se fazem em voz baixa ou por sinais, para pro-
simulacros, ressoa como as trombetas de Jericó. No silêncio teger o trabalho ou a concentração dos outros. As bibliotecas,
especial da sala, que tem origem no suster da respiração, na con- por exemplo, mesmo se têm o barulho de movimentos furtivos,
tenção de movimentos e de emoções, na espera tranquila do que de virar de páginas, de deslocações cuidadosas, de frases tro-
se vai passar, qualquer manifestação intempestiva de um espec- cadas a meia voz, etc. mostram no seu regulamento interno
tador tem o valor de um grito, de uma objecção ao desempenho uma ordem de silêncio. O ruído, sobretudo, é proscrito. As esco-
dos actores ou ao texto da peça, atenta contra os fundamentos las, os liceus, os hospitais, certas administrações ou empresas
da cerimónia, mesmo que não seja essa a sua intenção. E nada também solicitam o silêncio dos utentes ou a sua discrição, em
de reparador se pode dizer no teatro, sob pena de incomodar determinados lugares ou em determinados momentos, com o
ainda mais. Uma desculpa entre dentes da pessoa constipada ou fim de não perturbarem os trabalhos. Uma cerimónia religiosa
agitada, serviria apenas para aumentar a desordem. No má- deixa a palavra para os membros do culto. A assembleia só se
ximo, a irritação de um espectador que imagina no culpado uma manifesta quando solicitada. No Império Romano, um «silen-
manifesta má vontade, traduz-se por um «chut» mais ou menos ciário» velava pelo respeito do silêncio nos lugares onde ele era
discreto, que lembra, de maneira autoritária, ao causador os obrigatório.
seus deveres numa sala de espectáculos. Se não há qualquer
limite às acções dos actores, as dos espectadores são estreita-
mente controladas.
A vingança sobre o silêncio rebenta na altura dos aplausos e
das felicitações gritadas às vezes pela assistência. O libertar
ritualístico do ruído é como que uma réplica ao silêncio e à
solenidade que reinou na sala. A imobilidade do público
desapareceu, os corpos descontraem-se, a palavra liberta-se. Ao
inverso, os actores estão agora retraídos, como que dados de
pasto à multidão, sem o equilíbrio que era dado pelo papel a
desempenhar. Lentamente, a multidão dispersa-se, mas uma
palavra libertada enche agora o espaço onde foi obrigada a
calar-se.
Qualquer instituição tem as suas regras de uso da palavra.
Um tribunal exige o silêncio do auditório com o fim de prestar
justiça em condições favoráveis. Se a assistência se torna desin-
quieta o juiz tem o privilégio de suspender imediatamente a
sessão. Espaços especiais impõem tradicionalmente o silêncio:
os cemitérios, por exemplo, os locais de memória associados a
uma tragédia e que são percorridos em recolhimento por aque-
les que os vêm visitar. O silêncio é uma forma de respeitar o

136 139
CAPÍTULO 4
MANIFESTAÇÕES DO SILÊNCIO

Na floresta escura
Cai uma baga
O barulho da água
Haiku

O SILÊNCIO É UMA MODALIDADE DO SENTIDO


O silêncio não é ausência de som, um mundo sem estreme-
cimentos, parado, onde nada se fizesse ouvir. O grau zero do
som, se puder ser experimentalmente produzido num progra-
ma de privação sensorial, não existe na natureza. Qualquer
meio ressoa com manifestações sonoras características, mesmo
que sejam, por vezes, espaçadas, ténues, longínquas. As exten-
sões desérticas ou as altas montanhas não são completamente
mudas, menos ainda as florestas, os pátios dos mosteiros tam-
bém têm o ruído dos pássaros, do sino da igreja ou, às vezes,
cantos litúrgicos que saem da igreja. Os movimentos do homem
no espaço são acompanhados de um traço sonoro, o dos seus
passos, dos seus gestos, da sua respiração; a sua imobilidade
não anula a respiração ou os ruídos do corpo. A existência pal-
pita sempre e deixa ouvir um rumor que dá conta da existência
dos sinais essenciais. Numa sala insonorizada, os batimentos do
coração, a circulação do sangue, os movimentos do trânsito
intestinal atingem uma amplidão inesperada. A própria morte
escapa ao silêncio, no processo lento da decomposição da carne.
O campo está mais associado ao silêncio no discurso das pes-
soas da cidade, mas por oposição ao mundo barulhento que a
cidade não pára de produzir. Porque ali, também, a sonoridade

Jal
do mundo nunca se interrompe. A própria noite rural é povoada silêncio pesado e sem brechas, algo como o equilíbrio de uma
pelo grito dos animais, dos insectos, dos pássaros nocturnos, balança. Sons de pássaros, o som surdo de uma flauta de três
das rãs, do uivar dos cães. O vento agita as folhas e os ramos, os furos, um tropear de cabras, rumores vindos do céu, todos os
troncos estalam, os animais fogem e escondem-se debaixo das ruídos que compunham o silêncio e a desolação daqueles sítios»1,
moitas; o murmúrio dos ribeiros e das fontes só pára quando A tonalidade do silêncio destaca-se dos ruídos que o cercam e
secam. Às vezes são vozes que a obscuridade e o silêncio trazem lhe dão um relevo especial. O som de um sino de igreja, que dá
de longe, a passagem de um carro, os soluços de uma máquina as horas, variã de acordo com os momentos do dia, de manhã,
que custa a pegar. E mesmo no centro da quinta os móveis ao meio-dia, à tarde, à noite; segundo as estações, se neva, se
mexem-se e os seus rangidos assustam, por vezes, na aparente chove, se o sol queima os campos; segundo a localização da
imobilidade do sítio. A lenha acabou de arder, provocando uma aldeia, da casa, se o ouvimos à beira de um rio, de um lago, de
queda na lareira. E se a quinta beneficia do conforto de apare- um jardim, de um bosque próximo; e, sobretudo, segundo a
lhos eléctricos, conhece o seu barulho ou os ruídos desiguais do qualidade de escuta do homem, que varia em função dos seus
aquecimento central, dos canos da água, etc. Se não deixa de diferentes estados afectivos. O som, em si mesmo, não muda,
existir uma impressão de silêncio, é sobretudo mais por uma mas sim o seu significado e as suas consequências. O silêncio
interpretação afectiva do local do que por uma medida rigorosa nunca é uma realidade em si, mas uma relação, aparece sempre,
dos factos. Cada região, cada meio, cada lugar, apresenta com o na condição humana, no interior de uma relação com o mundo.
correr das horas da noite e do dia uma paisagem de ruídos e O silêncio não é apenas uma certa modalidade de som, é
de silêncios que lhe são próprios. É apenas devido à sua con- principalmente uma certa modalidade de sentido. A graça de
frontação com um mundo sem palavras e sem outro, que o um som desperta às vezes a atenção do passante, cuja sensi-
Robinson de Daniel Defoe diz estar «na relação melancólica de bilidade insuficientemente alertada não teria dado por ele.
uma vida silenciosa», quando descreve no seu diário os episó- Proust recorda os passeios da sua infância, para os lados de
dios da sua existência insular. Guermantes: «Chegava-se ao sítio onde, por entre as árvores,
Há sons que se juntam ao silêncio sem perturbar a sua aparecia o campanário de Saint-Hilaire. E eu gostaria de me
ordem. Às vezes mesmo revelam a sua presença e salientam a poder sentar ali e ficar o dia inteiro a ler, ouvindo tocar os sinos;
qualidade auditiva que antes não tinha sido percebida. Ainda porque era tão belo e tão tranquilo que, quando tocava as horas,
que o murmúrio do mundo não pare nunca, conhecendo apenas poderia dizer-se que interrompia a calma do dia, mas que o
variações de grau, com o passar do tempo, dos dias e das esta- libertava de tudo o que tinha, e que o sino, com a precisão indo-
ções, há lugares que não deixam de dar a impressão da chegada lente e cuidadosa de alguém que não tem nada mais a fazer,
do silêncio: uma nascente que abre caminho entre as pedras, um vinha apenas — para exprimir e afastar as poucas gotas de ouro
ribeiro que vem docemente tocar as areias, o grito de uma coruja que o calor lá tinha lenta e naturalmente reunido — acentuar, no
no meio da noite, o salto de uma carpa sobre o lago, o ranger momento desejado, a plenitude do silêncio». Um caminho
da neve debaixo dos passos ou o estalar de uma pinha ao sol sonoro, pavimentado de afectividade, apaga-se para deixar
aliviam o silêncio. A sua manifestação acentua a sensação de paz ouvir o reverso tranquilo do mundo.
que emana do lugar. São criações do silêncio, não por defeito, O silêncio às vezes é tão intenso que soa como a assinatura
mas porque o espectáculo do mundo não aparece como que de um lugar, como substância quase tangível, cuja presença
coberto de qualquer parasita, de qualquer ruído. «Parece», diz
Bachelard «que para ouvir bem o silêncio, a nossa alma precisa
de algo que esteja calado» (Bachelard, 1942, 258). Albert Camus, 1 A. Camus, Noces, Livre de poche, Paris, 1959, p. 25
passeando através das ruínas de Djemila, repara «num grande 2 M. Proust, Du côté de chez Swann, Paris, Livre de poche, 1954, pp. 199-200.

142 143
o,
invade o espaço e se impõe constantemente à atenção. Quando porque é também uma progressão em direcção ao barulh
aconteceu a noite polar de 1934, Richard E. Byrd hiberna depois de vários meses de paz interior. «Passando ao lado das
de não
sozinho na imensidade da barreira de gelo Ross, no Árctico Sul. colinas de Bheri, nessa tarde, lembrei-me da importância
entos brusco s, a seguir a uma
Em Maio, depois de vários meses de estada, acabam as borras- falar de mais, de não fazer movim
cas e o frio atenua-se, com um enorme silêncio que se estende semana de retiro zen e de silêncio... É fundamental só sair pro-
ainda
sobre a superfície branca. «Ás vezes, embalava-me, hipnotiza- gressivamente dessa crisálida, de deixar secar as asas
uma
va-me, como faria uma cascata ou qualquer outro ruído cons- húmidas na calma, ao sol, como as borboletas, para evitar
tante e familiar. Noutras alturas, despertava-me bruscamente a ruptura psicológica demasiado brutal» (p. 321). A realidade à
m
consciência de um súbito estrondo... No meu abrigo ele soava sua volta não é feita apenas do que o homem vê, mas també
intenso, concentrado. No meio de um trabalho, de uma leitura, daquilo que ouve, um universo onde reina 0 silêncio abre uma
chegava a sobressaltar-me, com os sentidos despertos, como o dimensão especial dentro do mundo. Depois destes meses de
proprietário que imagina ouvir um ladrão... Depois de um forte silêncio, é importante não ter pressa, caminhar lentamente em
vento era, às vezes, arrancado brutalmente a um sono pesado direcção ao vale, deixar-se levar pelas horas, sem as precipitar.
sem me aperceber porquê, até compreender que o meu subcons- Como o mergulhador de águas profundas, o viajante ainda
ciente, habituado aos estalos do cano do fogão, ao martelar da imbuído de silêncio deve ir procurando patamares, para não ser
borrasca lá no alto, tinha sido atingido por essa calma brusca». surpreendido pela algazarra da vida social.
Em oposição à vida ruidosa do citadino, o silêncio apresen- A procura do silêncio torna-se então na procura subtil de um
ta-se como uma ausência de ruído, como um horizonte que a universo sonoro agradável, que satisfaça, por contraste, O reco-
técnica ainda não penetrou com o seu poder, como uma zona lhimento pessoal, a dissolução de si num clima propício. «Uma
em descanso, que a modernidade não absorveu ou, ao inverso, determinada qualidade de penumbra, uma limpidez perfeita e
como um lugar que deliberadamente concebeu como uma um silêncio tal que até o barulho de um mosquito feriria
reserva de silêncio. Às vezes, basta que cesse um ruído contí- o ouvido são as condições indispensáveis», escreve Tanizaki.
nuo, que se interrompa, por instantes, o motor da bomba de «Quando me encontro num lugar assim gosto de escutar uma
água ou do automóvel, para que o silêncio se torne tangível, chuva calma e irregular». O silêncio é um repouso moral de
quase ao alcance da mão, numa presença sensível, simultanea- que apenas o ruído é o inimigo, representa uma modalidade do
mente material e volátil. Fazendo comércio no Dolpo, uma sentido, uma interpretação que o indivíduo faz daquilo que
região do Nepal, na fronteira do Tibete, P. Mathiessen e o seu ouve, e um caminho de reencontro consigo próprio para voltar
companheiro G. Schaller tiveram uma revelação súbita do silên- a encontrar o contacto com o mundo. Mas exige às vezes O
cio em que mergulharam desde que chegaram ao local. «Já esforço de o procurarmos, de o ir buscar propositadamente.
reparou que desde Setembro ainda não ouvimos um único «Uma noite», escreve Thoreau «estava decidido a acabar com
barulho de motor, nem mesmo ao longe”, diz-me G.S. E é ver- esta barulheira fútil, a ir em diferentes direcções, à procura de
dade. Nenhum avião passa por cima'destas velhas montanhas. silêncio aqui à volta... Deixei a aldeia e subi o rio de barco, até
Embrenhamo-nos num século diferente»*. O silêncio transporta- ao lago de Fair Haven... O orvalho que estava a cair parecia que
-nos então a uma experiência anterior à técnica, a um universo filtrava o ar, que o peneirava, e senti o sossego de uma calma
o
sem motor, sem automóvel, sem avião, ao vestígio arqueológico infinita. Era como se, de certa maneira, agarrasse O mundo,
ameaçado de um outro tempo. E o regresso é difícil e amargo segurasse na corrente dos seus próprios elementos, até que ele

3 Richard E. Byrd, Seul, Paris, 1940. de Yombre, Paris, Publications orientalistes de France,
5 J. Tanizaki, Éloge
4 P. Mathiessen, Le léopard des neiges, Paris, Gallimard, 1963, p. 110. 1977, p. 22.

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desaparecesse. Podia então deixá-lo partir, com a maré, como retorno sobre si mesmo. Esses lugares cravejados de silêncio
se fosse um cão motto. Enormes espaços de silêncio abriam-se destacam-se da paisagem, oferecendo-se, de imediato, como
por todos os lados e o meu ser distendia-se, em proporção, para propícios a um recolhimento interior. É lá que nos aprovisio-
os preencher. Só depois disto é que consegui, pela primeira vez, namos de silêncio, antes de voltarmos a enfrentar as agitações
apreciar o ruído e achá-lo musical»é. da cidade ou da nossa própria existência.
Aliado à beleza de uma paisagem, o silêncio é uma via «E agora acordado», escreve A, Camus «reconhecia um a
em direcção a nós próprios, à reconciliação com o mundo. um os ruídos imperceptíveis de que era feito o silêncio: o estri-
Momento de suspensão do tempo onde se abre uma passagem bilho dos pássaros, os suspiros ligeiros e curtos do mar junto
que oferece ao homem a possibilidade de voltar a encontrar o das rochas, a vibração das árvores, o canto mudo das colunas,
seu lugar, de ganhar a paz. Provisão de sentido, reserva moral, o estremecer dos absintos, as lagartixas esquivas»”. A per-
antes do regresso ao ruído do mundo e às preocupações do dia- cepção do silêncio num lugar não tem a ver com som, com a
-a-dia. A incidência do silêncio, experimentada em diferentes ausência de manifestações de ruído, mas com o sentido, uma
momentos da existência, pelo recurso ao campo ou mosteiro, ou ressonância entre o ser e o mundo, que suscita o recolhimento,
apenas ao jardim, ao parque, toma o aspecto de um recurso, de a calma, o desaparecimento de toda a distracção, de todas as
um tempo de repouso antes de mergulhar no ruído, entendido solicitações, é o homem apanhado no espaço. O silêncio é uma
em sentido próprio e figurado, de uma imersão na civilização das emanações temporais da natureza. «Penetramos no silêncio
urbana. O silêncio encontrado desta maneira procura um senti- como num quarto escuro», escreve J. Brosse. «De início não
mento forte de existência. Marca um momento de despojamen- vemos nada, depois aparecem frouxamente os contornos das
to que permite fazer o ponto, marcar limites, voltar a encontrar coisas, claridades incertas, mudanças, momentos ilusórios, o
uma unidade interior, tomar uma decisão difícil. O silêncio espaço divide-se em massas indistintas, que depressa se frac-
desbasta o homem e faz com que ele volte a ficar disponível, cionam, até que, finalmente, as formas se imobilizam e
arruma o espaço em que ele se debate. impõem... A floresta silencia-se, retém a respiração, mas mexe»
(Brosse, 1965, 290). O passeante atento penetra lentamente, se
estiver à escuta, nos diferentes círculos do silêncio, ouve o
RECOLHIMENTO vento, a folhagem, os animais e, em cada instante, apercebe-se
de outros universos sonoros que povoam a consistência do
Os locais de culto ou os jardins públicos, os cemitérios, cons- silêncio. Dá subitamente conta de um sentimento novo, não um
tituem enclaves de silêncio onde se pode procurar um repouso, aperfeiçoamento da escuta, mas um sentido ligado à percepção
uma breve fuga ao tumulto ambiental. Reservas de silêncio do silêncio.
empurradas por todos os lados pelos avanços do urbanismo ou Determinados lugares, destinados a celebrações religiosas
pelo ordenamento do território. Vamos aí para retomar fôlego, ou à meditação, estão cheios de silêncio e tornam impensável a
para recolhimento, saborear a calma que embala o genius loci. emanação de um som ou de uma palavra, atravessamo-los com
O silêncio instala no mundo uma dimensão própria, um peso receio de romper um equilíbrio frágil que não se presta à inter-
que envolve as coisas e incita a não esquecer a parte que cabe ao venção sensorial do homem, mas apenas à contemplação. Na
olhar pessoal com que as vemos. O tempo passa aí sem pressa, floresta, no deserto, na montanha ou no mar, o silêncio penetra
a passos humanos, convidando ao repouso, à meditação, ao às vezes de uma forma tão perfeita no ambiente que faz os outros

6 Citado in Henry D. Thoreau, Paris, L'Herne, 1994, pp. 39-40, 7 A. Camus, L'été, Paris, Livre de poche, Paris, 1959, p. 168.

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mesmo tempo, precisaria de algum tempo para isso, para deixar
sentidos parecerem, em comparação, ultrapassados ou inúteis.
de me sentir esmagado, vencido, fascinado... As palavras que
A fala fica sufocada, incapaz de descrever a força do momento poderia dizer pareciam-me uma má solução, ainda que fossem
ou a solenidade dos sítios. Kazantzaki caminha com um amigo de admiração ou respeito» (Parain, 1969, 20). O paradoxo de
pelo coração de uma floresta, no monte Athos, pela estrada um tal sentimento, descoberto pelo silêncio, acaba por estar no
pavimentada que leva a Karyês. «Parecia que tínhamos entrado
afastamento do outro que ele provoca. A sensação de fusão
numa igreja enorme: o mar, as florestas de castanheiros, as mon-
com o cosmos, a dissolução de todos os limites, manifesta
tanhas e, por cima, como se fosse uma cúpula, o céu aberto.
o carácter profundamente individual de tal experiência, que é
Voltei-me para o meu amigo — “Por que razão não falamos?”
originária num sentimento íntimo, que fica à mercê do mais
disse-lhe, com intenção de quebrar o silêncio que começava a
pequeno falatório. É importante nada dizer para que se não
pesar-me. — “Nós falamos” respondeu o meu amigo, tocando-
quebre o vaso infinitamente frágil do tempo. Plenitude ou
-me ao de leve no ombro, “nós falamos, mas a língua dos
vazio do silêncio, de acordo com a interpretação de cada um.
anjos, o silêncio.” E bruscamente, como que encolerizado:
«Às vezes há coisas no silêncio», escreve L. Lavelle «um convite
“O que queres que a gente diga? Que isto é belo, que temos asas
secreto a ultrapassar as aparências, a penetrar nelas, a dar-lhes
no coração que deseja partir, que nos metemos pelo caminho
uma vida escondida, completamente semelhante à nossa»
que vai dar ao Paraíso? Palavras, palavras! Cala-te”»8. O silên-
(Lavelle, 1942, 6).
cio compartilhado é uma forma de cumplicidade, prolonga a
A conjugação do silêncio e da noite é igualmente propícia à
imersão na serenidade do espaço. A fala vai voltar a buscar
entrada do ser na serenidade do lugar. A obscuridade, vaga-
a separação que procura esconjurar, sem nunca conseguir ver-
mente cortada por uma luz vacilante, desperta em James Agee
dadeiramente lá chegar. O recolhimento defende-se de uma
um vocabulário religioso, estranho contudo à sua sensibilidade,
palavra que o quebra, pela atenção que provoca. O diálogo
mas que subitamente se impõe, criando no espaço uma cena de
torna-se então num descolar da paisagem, numa infidelidade ao
La Tour. A chama da lâmpada, por detrás do vidro, «apresenta-
genius loci, numa satisfação dada às normas sociais e numa
-se com a delicadeza — seca, silenciosa, famélica — das extre-
maneira convencional de assentimento ou de sair de um isola-
midades tardias da noite, uma delicadeza de um silêncio e uma
mento agradável sem medo de incomodar o outro. É conve-
paz tão definitivas e santas que tudo sobre a terra e até aos con-
niente então falar da sua emoção, com frases estereotipadas,
fins da memória parece estar suspenso como num espelho de
libertando-se dela no mesmo momento.
água: e tenho a impressão que se, numa quietude completa, con-
Brice Parain dá exemplo de uma experiência semelhante:
sigo chegar a não incomodar este silêncio, da mesma forma que
«A continuação natural da contemplação deveria ser o silêncio.
me esforço por não tocar nessas águas, sou capaz de contar
Por força desse poder gigantesco, que me atrai e assusta, ao
tudo, no reino de Deus, seja aquilo que for que me dê vontade
de contar e, seja lá o que for, ninguém poderá deixar de com-
8. Nikos Kazantzaki, Lettre au Gréco, Paris, Plon, 1961, pp. 189-190. Kazantzaki preender» (Agee, 1972, 67). O recolhimento é uma das modali-
e o seu amigo chegam de manhã ao mosteiro de Vatopédi, um e outro sur-
dades que o silêncio oferece aos que nele se instalam por
preendidos pela beleza da paisagem. «Não falávamos. Tivemos ambos a
sensação que a voz humana, neste sítio, por mais suave que fosse, teria um momentos. Retorno sobre si, capacidade de se deixar invadir
eco penetrante e despropositado e que o véu de magia que nos cercava se pela paisagem ou pela solenidade do local. Emoção de se
desfaria. Caminhámos, afastando os ramos baixos dos pinheiros, salpican- sentir pertencer plenamente ao mundo, levado pela emoção
do o rosto e as mãos com o orvalho matinal. Sentia-me afundar em felici- da atmosfera reinante. O silêncio proporciona uma densidade
dade; voltei-me para o meu amigo, abri a boca para lhe dizer: “Que ale- que transtorna a consciência e mesmo, às vezes, a modifica.
gria!...” mas não fui-capaz; tive a sensação de que se falasse o sortilégio
desaparecia» (p. 195).
O homem alarga o sentimento da sua presença e tem por

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momentos a intuição do fim possível da separação que, con- derem dele. «De onde vem esse estranho desconhecido que
tudo, renasce à primeira palavra dita. emana do silêncio, da solidão?», pergunta Freud... «Não
Um determinado sítio é, por vezes, uma liturgia tranquila podemos dizer nada, a não ser que é lá que estão verdadeira-
que transporta o homem a uma meditação em que nunca teria mente os elementos a que está ligada a angústia infantil, que
sonhado, antes de ser influenciado pela química do instante. nunca desaparece completamente na maior parte dos
A sua ressonância íntima procura o sentimento forte de existir. homens»10. A questão do silêncio levanta a da ambivalência
Entregando-se ao silêncio das coisas, o indivíduo vai à procura, do sagrado, do poder que entra em acção naquilo que rodeia o
enche-se de si, deixando que o mundo o penetre. O recolhi- homem. Com efeito, o sentimento do sagrado marca a eminên-
mento suspende a dualidade entre o homem e as coisas, mesmo cia ambígua do valor que um indivíduo associa a um objecto,
quando é provisório e ameaçado a qualquer momento. Nesse a um acontecimento, a um ser, a uma acção, a uma situação.
instante privilegiado, o silêncio é um bálsamo que cura a sepa- Destaca-se do vulgar da existência procurando um espaço de
ração com o mundo, a separação entre si e os outros, mas tam- tempo ou um espaço saturado de ser. Destaca-se da experiên-
bém a separação entre si mesmo: restaura de forma simbólica a cia religiosa stricto sensu na medida em que não é administrado
unidade perdida que o regresso do ruído destrói, a não ser que (para retomar a imagem de Hubert e de Mauss) por um sis-
tenha a capacidade de se silenciar dentro de si, apesar dos ruí- tema de normas, por um corpo de mitos ou de textos funda-
dos circundantes. «Dir-se-ia que a tarde se fixou, que o Sol mentais, por um clero. Apoia-se completamente na soberania
parou por um instante incalculável», escreve Camus. «A esta luz do indivíduo, único apto a decidir sobre os momentos impor-
e com este silêncio, esvaíam-se lentamente anos de fúria e de tantes em que a sua existência atinge um ponto de incan-
barulho. Escutava dentro de mim um ruído quase esquecido, descência. O sagrado cristaliza um valor, uma diferença sensível
como se o meu coração, parado há muito tempo, voltasse a bater É que hierarquiza subtilmente momentos ou objectos especiais
devagarinho». O silêncio põe o mundo em suspenso, conserva (uma casa, um jardim, a noite, O silêncio, a festa, um rosto,
a iniciativa do homem deixando-o respirar na calma de um etc.). Entre a santidade e o pecado, a pureza e a impureza, O
sopro que nada faz andar depressa. êxtase e o medo, transtorna o homem, distancia-o das referên-
cias habituais em que o mundo se apresentava, em condições
normais. O mysterium tremendum do insondável é que faz
A ANGÚSTIA DO SILÊNCIO estremecer o homem e sentir a fragilidade da sua condição.
«O sentimento que provoca pode espalhar-se na alma como
Se alguns indivíduos permanecem no silêncio, como num uma onda agradável; acontece então a vaga quietude de um
refúgio, e encontram lá um lugar propício a reencontrarem-se recolhimento profundo», manifestando «o temor silencioso e
a si mesmos, outros ficam receosos e não desistem de se defen- humilde da criatura que fica interdita na presença do que está
dentro de um mistério inefável, para além de qualquer cria-
9 A. Camus, op. cit. p. 168. Outro mediterrânico, Jean Grenier, amigo de tura» (Otto, 1969, 28). Mas outra vertente é a do receio perante
Camus, vê no animal, sobretudo no gato, uma incarnação do recolhimento: esta condição, a impressão de estar perdido perante uma pre-
«O mundo dos animais», diz ele «é feito de silêncios e de saltos. Gosto de os
ver deitados, quando estão em contacto com a natureza, recebendo em troca
desse abandono uma energia que os alimenta. O repouso deles vale tanto 10 S. Freud, «L'inquiétante étrangeté», Essai de psychanalyse appliquée,
como o nosso trabalho. O sono deles é tão confiante como o nosso primeiro Paris, Gallimard, 1971, pp. 202 e 210. Rudolf Otto, de maneira parecida,
amor» (Jean Grenier, Les iles, Gallimard, 1959, p. 33. Rilke fala de «um gato considera que a arte ocidental só dispõe de dois meios, um e outro
que faz crescer o silêncio deslizando pelas prateleiras de livros» (Les Cahiers negativos, para referenciar o insondável: o silêncio e a obscuridade
de Malte Laurids Brigge, Point-Poche, p. 44). (Otto, 1969, p. 107).

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sença esmagadora e ininteligível. A relação com o silêncio tam-. sobretudo quando o dominamos, nos casos em que, ao con-
bém faz apelo, segundo as circunstâncias e os indivíduos, à trário, o silêncio é intocável e ultrapassa infinitamente o indiví-
paz ou à angústia. duo. A rádio ou a televisão ocupam a casa e ficam muitas vezes
ligadas apenas como ruído de fundo, com a função de delibe-
radamente quebrar um silêncio difícil de suportar, porque faz
ESCONJURAÇÃO RUIDOSA DO SILÊNCIO lembrar a ausência, O luto, o vazio de uma existência ou uma
solidão difícil de assumir.
O silêncio da natureza não é sobretudo indiferente. Suscita O barulho, na medida em que se opõe ao silêncio, tem por
reacções opostas de um bem-estar tranquilo, para aqueles que vezes uma função benéfica nos usos tradicionais e, mesmo
mergulham num mar de silêncio e de manifestações ruidosas de ainda hoje, em determinadas ocasiões. As manifestações de
outros, que querem assinalar a sua presença, apropriarem-se do algazarra estiveram durante muito tempo presentes nos casa-
seu significado ou exorcizarem as suas ameaças. Os que têm mentos de muitas regiões europeias. O hábito ainda hoje per-
medo dele ficam à espreita de um som que tornaria o local mais siste nos cortejos de automóveis que atravessa a cidade ou a
humano, têm receio de falar, como se as suas palavras desen- aldeia com grandes buzinadas. Françoise Zonabend (1980,
cadeassem as forças obscuras prestes a cair sobre eles. Outros, 180 segs.; também Belmont, 1978) descreve os casamentos em
para fugirem ao medo, gritam ou assobiam, cantam ruidosa- Minot, na região de Châtillon, insistindo na algazarra ritual que
mente ou levam consigo um rádio ou um magnetofone. As suas não pára de marcar a cerimónia. Barulho e gritos, ao longo do
manifestações ostentatórias, porque o são demasiado, desfazem percurso, exclamações das crianças, sinos, tiros de espingarda,
uma situação insustentável. Restaurando o império do ruído, buzinas, etc. O banquete de casamento dura horas e está igual-
procuram restabelecer os direitos de uma humanidade em sus- mente marcado por risos, aclamações, gritos, canções, etc. Os
penso, voltam a descobrir as suas bases de identidade que habitantes de Minot ficam espantados por verem que os casa-
foram momentaneamente abaladas pela ausência de uma refe- mentos actuais são às vezes silenciosos: «As pessoas já não
rência sonora identificável. Na verdade, o barulho exerce uma sabem divertir-se, há hoje casamentos em que não se houve
função tranquilizante, apresentando sinais tangíveis de existên- nada.» Caem suspeitas em relação a esses casamentos dema-
cia, testemunhando a presença infindável de um mundo sempre siado silenciosos: conflitos entre os pais, mau comportamento
presentel!. Podemos agarrar-nos ao ruído porque ele dá apoio, da noiva? São estas, em princípio, de acordo com F. Zonabend,
as razões tradicionais dos casamentos celebrados de forma
discreta, sem tiros, sem cantigas, sem manifestações de
11 É interessante recordar, a este respeito, que a introdução da música no algazarra. A balbúrdia ritual da boda regista o júbilo e dá publi-
cinema nasceu, sem dúvida, da situação inédita da projecção numa sala, da
preocupação de esconjurar um silêncio contraditório com os acontecimen-
cidade ao casamento, mas também participa na mudança de
tos que se passavam na tela. Um especialista contemporâneo da história do estatuto da jovem, «uma separação cheia de riscos» que a
cinema, Arthur Kleiner, aqui citado por Michel Chion, dá a entender assim algazarra acompanha e simboliza, segundo Lévi-Strauss (1964,
que não é por causa do barulho do projector. «É porque, de outro modo, 293), afastando os aspectos negativos e pedindo fecundidade e
o público ficaria angustiado. A imagem na tela e as condições da sua pro- abundância para o casal. O silêncio, na altura do ritual, seria
jecção, eram insólitas. A sala estava mergulhada no escuro, o espectáculo
um sinal de esterilidade, de perigo, ou a confissão implícita de
aparecia sobre uma superfície de duas dimensões, a preto e branco. Via-se
alguém a correr e não se lhe ouviam os passos... À reprodução do real um comportamento culpável!2,
correspondia, num contraste surpreendente, um silêncio anormal. Nesta
situação, a música servia para tranquilizar, da mesma maneira como uma 12 C. Lévi-Strauss assinala igualmente a algazarra que fazem certas socieda-
criança que assobia no escuro» (Chion, 1985, p. 112). des tradicionais, por altura dos eclipses, maneira de assinalar, também

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Da mesma forma que o silêncio, o ruído é assim levado a próprio silêncio como da peste, numa procura entusiasmada de
assumir um significado positivo, para o indivíduo ou para saturação auditiva.
o grupo, chegando a formar um anteparo que permite um afasta- A muralha sonora levantada pelo auto-rádio ou pelo CD,
mento do mundo e uma defesa contra contactos não desejados. pela discoteca ou pelo walkman, ou a sala de concertos com
A cultura do uso do walkman, leva ao extremo esta preocupação o som elevado ao máximo, formam um isolamento em relação a
de isolamento, na continuidade de uma sonoridade incansável um mundo difícil de entender, fornecendo uma segurança pro-
que acaba por tornar ainda mais intolerável qualquer posterior visória, um sentimento de controlo sobre aquilo que nos rodeia.
confronto com o silêncio. Se continuam a existir, aqui e ali, O ruído, no meio de um grupo de casais, entrava por vezes a
zonas de silêncio, qualquer indivíduo tem ao seu dispor meios comunicação, redu-la a uma forma puramente destituída de
técnicos para se defender delas, se o desejar, até mesmo de as conteúdo, mas impede também que se dê muita importância à
apagar completamente. Usados, frequentemente por isso, pelo solidão ou à confusão. A procura de domínio, pela produção ou
passeante em actividades inesperadas como o jogging ou as contenção de ruído também dá prazer, satisfação, é um modo
caminhadas; o transístor, o auto-rádio, quando em movimento, eficaz da gestão de identidade, um elemento da constituição do
a porta aberta, em lugares em princípio associados com a ideia eu como sujeito. «O mundo exterior», escreve G. Steiner «reduz-
de repouso, com tranquilidade sonora: as praias, por exemplo, -se a um jogo de aparências acústicas» (Steiner, 1973). O indiví-
os campos, que as pessoas da cidade invadem ao domingo, as duo passa, com o seu walkman, de um ambiente sonoro para
margens dos lagos, frequentadas por banhistas ou pescadores, outro, de modo a permanecer num universo hospitaleiro, a que
etc. Se alguns se refugiam no silêncio, outros preferem o baru- esteja ligado e do qual controla todos os aspectos. Contudo, sub-
lho, encontram nele as mesmas possibilidades para se encon- metida a essas agressões regulares, mesmo que elas não sejam
trarem consigo próprios, para se protegerem de um ambiente entendidas como tal, a audição deteriora-se pouco a pouco.
que consideram hostil ou estranho, a esconjuração da angústia, E, curiosamente, o silêncio impõe-se então como consequência
da solidão. O ruído pode fornecer determinada alegria e, ao fisiológica da paixão do ruído.
mesmo tempo, permitir uma estruturação de identidade. Não é O ruído é o sinal tangível de que os outros continuam à
uma natureza, um limiar de sonoridade de conteúdo unânime, nossa volta. Tranquiliza, ao lembrar que para além de nós
é um significado que o indivíduo dá, ou seja, é também um juízo o mundo continua a existir. O silêncio é inquietante porque
de valor. O som, que é tranquilizante para um: o motor de um anula qualquer diversão e coloca o homem perante si mesmo,
camião ou a música de um altifalante à máxima altura é descon- em confronto com amarguras escondidas, com fracassos, com
forto para outro. Mas, do mesmo modo, pode-se fugir do remorsos. Retira qualquer domínio sobre o acontecimento e sus-
cita o medo, o desmóronar das referências que fazem com que,
neste caso, «uma anomalia: na escala sintagmática» (p. 295). Maurice
Godelier descreve uma algazarra ritual dos Baruya da Nova Guiné, por
por exemplo, as pessoas habituadas à cidade não sejam capazes
ocasião de um eclipse: «Percebi, por aqueles gritos, que a Lua “estava a de adormecer no campo ou numa casa silenciosa. A noite faz
morrer”. Imediatamente depois de terem sido gritadas aquelas palavras, aumentar mais o mal-estar, retirando a segurança visual que o
veio de todos os lados da aldeia uma confusão de ruídos de objectos a dia proporciona. Quem se puser à escuta apercebe-se, sobre
baterem e de clamores em altos gritos. Após um longo momento, voltou o este fundo, do menor estremecimento do exterior ou do mais
silêncio...»(in Le Goff, Schmitt, 1981, p. 347). Estes procedimentos acústicos
pequeno estalar de um armário, que são como que uma ameaça.
de esconjuração de uma ameaça pelo barulho encontram-se em muitas fes-
tas do calendário das tradições europeias e, modernamente, na altura da Precisam de se habituar à calma circundante, familiarizarem-se
passagem do ano, que faz assistir, nas cidades, a concertos de buzinas e ao com os sons que os rodeiam e deixarem de considerar a ausên-
lançamento de inúmeros petardos, fogos de artifício, etc. O ruído tem aqui cia de ruído como se fosse uma forma manhosa de aproximação
uma função. de um inimigo. Na verdade, o silêncio liberta a apreensão do

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sentido, desorienta as referências habituais e restitui a iniciativa
ao indivíduo. No entanto, exige os recursos simbólicos para que que preferem disfarçar. A relação com o silêncio é uma prova
os possa utilizar sem ceder ao medo, senão abre as portas a fan- que revela atitudes sociais e culturais, mas também pessoais do
tasmas. «Quando o homem está sozinho, afastado do tumulto indivíduo. Uns assustam-se com um mundo desnudado pelo
das cidades», escreve Marie-Madeleine Davy «escuta as vozes aparecimento de um silêncio que destrói os vestígios sonoros
dos animais selvagens, que o despertam. Sobressaltá-se, sen- que revestiam a sua tranquilidade de espírito, tornando a sua
tindo um certo pânico, difícil de controlar. Com efeito, ignorava existência normal e compreensível. Outros, inversamente,
que trazia dentro de si os animais de que ouve os clamores» encaram o ruído como um elemento de sentido, que os protege
(Davy, 1984, 170). O silêncio proporciona o regresso do que da violência do mundo, escudo contra o vazio que representa,
está recalcado, quando a muralha de sentido feita pelo ruído se aos seus olhos, o silêncio. E o caso existe, de facto, pela manifes-
desmorona parcialmente é como se matasse a palavra na tação do seu ruído, encaixa o silêncio que, pelo contrário, pro-
origem, tornando-a impotente. Daí o grito, de que falava Freud, voca o sentimento de algo plano, sem defeito, sem história,
de uma criança de três anos deitada num quarto sem luz: «Tia, simultaneamente repleto de segurança e de angústia, devido à
fala comigo, tenho medo, porque está escuro.» A tia respon- sua ausência de limites e à sua multiplicidade de sentidos.
deu-lhe: «E para que te serve, se não me consegues ver?» «Não O ruído é sempre razoavelmente identificado a uma origem,
faz mal», respondeu a criança. «Quando alguém fala faz-se enquanto o silêncio inunda o espaço e deixa o seu significado
luz»1!3. A palavra pronunciada é uma objecção ao silêncio assus- em suspenso, por causa desse poder ambíguo de traduzir mil
tador do ambiente, à inquietante suspensão das referências coisas ao mesmo tempo. À casa que tem vários ruídos tranqui-
que deixam antever um local que se esconde sob os nossos pas- liza, porque dá testemunho de coisas normais, de brincadeiras
sos. O silêncio, na verdade, também está associado ao vazio de de crianças, de um rádio a tocar na sala, de uma torneira que
sentido e, portanto, ao vazio das referências familiares, à corre a lavar a loiça, algo que estabelece uma ligação entre as
ameaça de ser mergulhado no nada. A palavra torna-se assim várias divisões, respira uma tranquilidade agradável. A casa
o fio de significação, da marca de uma presença que enche o silenciosa inspira a mesma calma se estivermos à espera de a
mundo com a sua humanidade tranquilizante. No rumor encontrar assim, mas assusta se habitualmente costuma ter os
indiferente da realidade uma voz introduz um centro, organiza sons da vida normal. Qual é então o significado desse silêncio
um sentido à sua volta. que põe um nó na garganta, que ausência ou drama pode escon-
O silêncio abre caminho à profundidade do mundo, pro- der? Neste caso, o significado do silêncio é alterado, em vez do
voca a metafísica, afastando as coisas do murmáúrio que normal- clima agradável que envolve o ambiente, torna-se num grito
mente as envolvem, libertando assim o seu poder reprimido. contido, numa angústia tangível, que apenas desaparece com a
Favorece referências tranquilizantes que ajudam às relações chegada dos ausentes. A multiplicidade de significados do
com os objectos, ou com outros, confrontando o homem com o silêncio faz dele um mensageiro do pior ou do melhor, segundo
concreto dos factos que acaba finalmente por descobrir que lhe as circunstâncias.
escapam, como o sentido que torna o universo familiar não é Contudo, bem entendido, o próprio ruído é muitas vezes
mais do que uma convenção necessária, mas tão frágil que pode mensageiro de angústia quando rompe inopinadamente o silên-
ser destruída por um pequeno nada, uma aparência feliz de cio. O ranger do solo numa casa que julgamos vazia, o ruído de
evidências que faz esquecer o vazio que encerram ou o mistério passos no jardim que está fechado, um grito em campo aberto
representam uma intromissão inquietante, uma vaga ameaça
que mobiliza e provoca a expectativa de melhor compreender a
13 5. Freud, Trois essais sur la théorie de la sexualité, Paris, Gallimard, p. 186. sua origem e, portanto, controlar o acontecimento. Michel Leiris
conta, a propósito, um caso da sua infância. Quando uma noite

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caminha no campo silencioso, pela mão do pai, ouve subita- do crime e da morte parecem estar a par com um mundo expec-
mente um ruído que o intriga e que o assusta, no momento em tante, à espera do irreparável, e esse silêncio ruidoso é um alerta
que a escuridão se fecha à sua frente. O pai, para o acalmar, lançado ao sentido do homem avisado que não vê nada de
fala-lhe de um carro que passa ao longe. Mais tarde, Leiris inter- natural na extinção brusca dos sons. «Talvez», adianta I. Calvino
roga-se se não terá sido antes um insecto. Com medo de um «a ameaça esteja ligada mais ao silêncio do que aos ruídos. Há
lugar ainda desconhecido para ele, esse pequeno ruído faz sur- quantas horas deixaste de ouvir o mudar das sentinelas? E se o
gir uma angústia que «talvez assentasse exclusivamente no grupo de guardas que te são fiéis tivesse sido capturado pelos
facto de representar o estado de alerta em relação a qualquer conjurados? Por que razão não ouvimos, como sempre, o bater
coisa ínfima ou longínqua, única presença sonora num silêncio dos tachos nas cozinhas? Se calhar, os cozinheiros fiéis foram
mais ou menos campestre, em que eu pensava que, aquela hora, substituídos por um bando de assassinos contratados, habitua-
devia estar tudo a dormir ou a começar a dormir»!4. Tempos dos a envolver em silêncio todos os gestos, de envenenadores
depois, numa outra noite, o ruído provocado no empedrado que estão silenciosamente a misturar cianeto nas comidas»?5,
pela passagem de um fiacre faz levantar uma interrogação sobre O silêncio é, então, uma marca tangível de um perigo que se vai
a continuação das confusões do mundo exterior, apesar do sono. acumulando para se projectar depois sobre a sua presa. Rilke
Ruptura do acontecimento, a que o ruído rasga o silêncio nor- conta a mesma experiência em Paris. Quando acaba de estigma-
mal a estas horas e nestes lugares, e faz aparecer uma imagem tizar o ruído, fica de repente preso a «algo que é mais terrível:
de morte. Estas manifestações sonoras insólitas, que desfazem a o silêncio. Julgo que, durante grandes incêndios, deve acontecer
paz circundante, surgem como deslizes que projectam o homem uma coisa destas, um instante de grande tensão: os jactos de
«até à fronteira de outro mundo», colocando-o na posição de água param, os bombeiros já não sobem as escadas, ninguém se
receber uma mensagem disso, «até mesmo de lá ter entrado sem mexe. Sem ruído, uma cornija negra aparece, lá no alto, e um
lá ter chegado ou então abarcar com o olhar o avançar da vida muro grande, atrás do qual o fogo cintila, inclina-se sem ruído.
e da morte, numa óptica de além túmulo» (p. 23). No suporte Toda a gente fica imóvel à espera, de ombros erguidos, rosto
denso do silêncio, percebemos como o ruído é uma ameaça, visivelmente contraído do golpe terrível. E este aqui o silên-
uma espécie de chamada de atenção sobre a fragilidade e a pre- cio»l6,
cariedade que tomam conta do homem e o obrigam a manter as Théodore Reik faz referência a um lugar do Pacífico, perto
suas defesas. da ilha de Vancouver, chamado «a zona do silêncio». Quando se
aproximam, os navios arriscam-se a ficar despedaçados nos
rochedos. As sirertes não passam além do barco, nenhum ruído
SILÊNCIO DE MORTE penetra naquele espaço que se alonga por várias milhas (Reik,
1976, 119). O silêncio é uma imagem da morte, uma força colos-
«E quando o Cordeiro quebrou o sétimo selo, tombou sal que se prepara para esmagar o homem e provoca a angústia.
um silêncio sobre o céu, durante cerca de meia hora», diz o No momento de um assalto, apesar do barulho infernal que os
Apocalipse de São João. Se, de repente, o silêncio ressoa como cerca, recorda Henri Barbusse, os soldados escutam o silêncio
uma ruptura do barulho habitual do mundo, produz angústia. malévolo das balas que silvam à volta deles!”. Depois de uma
O exército inimigo chegou, nas trevas, avança e os animais
calam-se, o próprio vento suspende o seu sopro, a progressão
15 Italo Calvino, Sous le soleil jaguar, Paris, Seuil, 1986, pp. 67-68.
16 R.M. Rilke, Les cahiers de Maite Laurids Brigge, op. cit., pp. 12-13.
14 Michel Leiris, Fourbis, Paris, Gallimard, 1955, pp. 24-25. 17 Henri Barbusse, Le feu, Paris, 1917, p. 268.

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não há silêncio, e a influência da frente é tão grande que não
mortífera fuzilaria e longa caminhada na noite, perdidos entre temos por onde escapar. Mesmo nos postos recuados e nos sítios
as linhas, um grupo de soldados esgotados é atingido por uma onde vamos para dormir, o ribombar e a algazarra do fogo estão
chuva diluviana, mais mortal ainda do que as balas, que afoga sempre presentes nos nossos ouvidos»!8. As lembranças do pas-
os homens nas trincheiras, que os enterra na lama. Nasce o dia sado provocam a nostalgia de um mundo onde, em oposição ao
sobre uma. visão infernal, ultrapassada de horror. Porém, o rolar contínuo dos canhões e da ameaça ensurdecedora da
tumulto dos canhões calou-se, por causa das chuvas, as armas, morte, apenas parece reinar a hospitalidade de um silêncio que
tornadas ineficazes, calaram-se. «Que silêncio é este?», per- nunca ninguém vem romper. O ruído torna-se então numa
gunta H. Barbusse. «É um prodígio. Nenhum ruído, excepto, de manifestação sonora da morte, e o silêncio num porto de abrigo
vez em quando, uma queda de terra na água, no meio desta fan- que nenhuma arma ameaça. Nos sonhos e nas recordações dos
tástica paralisia do mundo. Já não se dão tiros. Não há obuses, soldados, a fome enorme de silêncio provoca imagens visuais
porque já não conseguem rebentar. Não há balas, porque os que apagam todo o som, deixando correr a sua mensagem de
homens...» Longe de ser um momento de paz ou de nostalgia, o paz, mas também uma surda melancolia.
silêncio que rodeia esta paisagem desolada, onde jazem os afo- Em relação ao silêncio, a noite é também um mundo de pro-
gados e os mortos pelas derrocadas das trincheiras, surge como funda ambiguidade. E se uns sentem, nestas circunstâncias, a
uma impossibilidade de ultrapassar o horror, num esgota- impressão de que mergulham numa paz que nada ameaça,
mento radical do sentido que faz parar o tempo. O testemunho outros inquietam-se com essa calma. A qualidade especial dos
impressionante de Barbusse acaba com este silêncio de fim do sons que emanam da noite, suprimindo o murmúário tranqui-
mundo, ao qual os sobreviventes se esforçam, em vão, por dar lizante das actividades diurnas, é propícia ao aparecimento das
um significado. coisas boas ou más, com a angústia ou o recolhimento a mistu-
A guerra dá ao silêncio um estatuto ambíguo. É uma expe- rarem-se ou a sucederem-se. A noite confere ao silêncio uma
riência contínua do barulho, uma incapacidade de encontrar força acrescida, restringindo a claridade dos contornos do
descanso na confiança do amanhã. «Os tiros, os canhões», escreve mundo, transferindo provisoriamente (mas quem pode saber
ainda Barbusse. «Por cima de nós, por todos os lados, ouve-se o por quanto tempo, quando a angústia se instala) todos os limites
crepitar ou então rajadas prolongadas ou tiros isolados. A tem- reconhecíveis para o informe, para o caos. O mundo fica em
pestade sombria e flamejante nunca mais acaba. Há mais de suspenso, mergulhado numa obscuridade que esconde todas as
quinze meses, há mais de quinhentos dias, neste lugar do ameaças, aos olhos de quem está agarrado pelo medo. O silên-
mundo, onde estamos, a fuzilaria e os bombardeamentos não cio e a noite influenciam-se um ao outro, privando o homem de
pararam, de manhã até à noite e da noite até à manhã. Estamos uma orientação, de uma referência de sentido, entregando-o a si
enterrados no fundo de um campo de batalha eterno; porém, tal próprio, submetendo-o à prova terrível da sua liberdade. Em-
como o tiquetaque dos relógios das nossas casas, em tempos põem-lhe uma consciência de não estar completamente aca-
que já lá vão, num passado quase lendário, só os ouvimos quan- bado. André Neher encontra na terminologia bíblica uma asso-
do os escutamos» (p. 11). Tendo também como fundo trágico a ciação estreita entre o silêncio, a noite e a morte, na raiz damô
guerra das trincheiras, E. M. Remarque repara que os soldados (Neher, 1970, 39). «E é através do silêncio que a morte evoca
associam recordações com o silêncio. Relata as suas emoções a noite», escreve A. Neher «da mesma forma que, inversamente,
perante essas «aparições mudas que me falam, com olhares a noite faz lembrar a morte, por causa do silêncio. Se a noite
e gestos, sem precisarem de palavras, silenciosamente» e o
obrigam a endurecer, a apertar a sua arma, para não se deixar
18 E. M. Remarque, À Vouest rien de nouveau, Paris, Livre de poche, 1968,
invadir pela tristeza. «Elas são silenciosas porque o silêncio, jus- p. 105.
tamente, é um fenómeno que não compreendemos. Na frente

161
160
e a morte são intuitivamente sentidas como sendo da mesma o silêncio» (Rosset, 1971, 57). A obra de Lucrécio: De Natura
família, se a natureza de uma faz imediatamente pensar na Rerum, escrita no século I da nossa era, é um empreendimento
outra, se os poetas, nas suas metáforas, os místicos, nas suas radical da eliminação do sentido que poderia fazer da natureza
orações, os miseráveis, nos seus lamentos, se voltam indife- o objecto de uma crença ou mesmo de uma ilusão apazigua-
rentemente para uma ou para outra, com a certeza de que fazem dora. O filósofo pretende acordar o silêncio retumbante do
vibrar apenas uma única corda, é porque a noite e a morte são mundo com uma palavra que comente a inutilidade de qual-
as duas silenciosas» (Neher, 1970, 42)1º. quer tentativa de subordinar as coisas ao homem (ou o homem
às coisas). A natureza é obra do acaso e não de uma intenção
divina ou metafísica, o homem não deve ter esperança de encon-
MUTISMO DO MUNDO trar nela a possibilidade de melhorar a sua condição dando voz
ao silêncio. Lucrécio pretende arrancar o homem à angústia da
A Bíblia evoca o silêncio das pedras (Hab., 2-19), a imensi- dúvida sobre o seu destino, incitando-o à paz.
dão muda do cosmos (Jos., 10-12). «O silêncio eterno desses Contudo, as atitudes em relação ao silêncio são variáveis. Se
espaços infinitos mete-me medo», refere dolorosamente Pascal. Lucrécio encontra nele uma consolação, muitos outros não o
Para o materialista, o mundo cala-se por não ter nada para dizer, conseguem aceitar sem dor. Camus, por exemplo, que fala
indiferente ao homem como a si próprio, nenhuma questão o «dessa confrontação desesperada entre a interrogação humana e
poderia atingir. A filosofia trágica encarregou-se principal- o silêncio do mundo». Ou Le Clézio exprimindo a sua recusa:
mente de desfazer a ordem e o sentido que as culturas ou as «Gritando com palavras... pretendíamos penetrar a cortina do
filosofias davam à natureza e ao lugar do homem no mundo. silêncio eterno» (Le Clézio, 1967, 276). Na verdade, o mundo
«A lógica do pior», escreve Clément Rosset (1971) cujo objectivo cala-se para o bem e para o mal, porque cabe apenas ao homem
é o estudo da taciturna silencia. Toda a transcendência é retirada dar-lhe uma voz. O silêncio do mundo é a própria condição da
à natureza humana que, finalmente, só se baseia nela própria, cultura que cada sociedade inventa para seu uso e que os indi-
na base de uma ausência de sentido ou, antes, na insignificância víduos, por sua vez, questionam, apropriando-se dos seus
das coisas. O mundo existe, mas não é coisa nenhuma, é um dados. Ao denunciar as representações e os imaginários com-
simples cenário, sem nada além dele, está vazio e mudo, mas preendidos na natureza, Lucrécio presta atenção às próprias ori-
com um silêncio que tem de ver com silere, ou seja, sem gens do sentido, onde se elabora a matéria original da vida
intenção, escapando à condição humana. O silêncio das pedras, colectiva, embora ele próprio não consiga escapar a uma outra
das árvores, o sentimento da sua insignificância perante o metafísica, a uma outra proposição do sentido. O mutismo do
infinito de um mundo que não é nem do homem, nem para mundo é também, em verdade, uma interpretação que condi-
o homem. Perante as coisas o homem fica sem voz, privado dos ciona todas as outras, as que as sociedades e os indivíduos cons-
recursos da interpretação. «O trágico», diz €. Rosset «é portanto troem para estarem num universo compreensível e comuni-
cável. Falar do silêncio da natureza é uma forma de nomear
uma ausência, mas originária, Lucrécio não o compreende.
19 André Neher observa ainda que se fosse preciso, segundo ele, juntar o
conteúdo dessa forma bíblica especial do silêncio, proporia o termo de
O silêncio do mundo acaba por fazer do homem um artesão do
«inércia», para com isso designar não a passividade intrínseca desse uni- sentido, porque nada se lhe impõe. Outras culturas, ou simples-
verso de silêncio, mas a sua negatividade em relação ao homem. O silên- mente indivíduos especiais, projectam, numa natureza aberta a
cio-inércia designa um cosmos que tem, incontestavelmente, leis e movi- todas as sugestões, uma teia de sentidos e de valores. Passam
mentos próprios, mas o segredo dessas leis e desses movimentos é então a viver num mundo abundante e já não se questionam
inacessível ao homem. (Neher, 1970, p. 43).
sobre o silêncio por já terem anteriormente respondido. A assi-

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milação da natureza ao vazio e à insignificância marca não só o márias, deparam com duas possibilidades pedagógicas: a de
afastamento dos deuses, mas também o do próprio sentido, que inserirem essa actividade de produção sonora num projecto
incumbe aos grupos ou aos indivíduos, separa social e cultural- de expressão, encorajando comportamentos, mas orientando-os
mente o homem do cosmos, para fazer dele um indivíduo à para uma procura de ritmo, de colaboração mútua, de criação,
parte, desligado das coisas e dos outros (Le Breton, 1990), mas etc. Ou outra modalidade, complementar da precedente, que
esta representação da natureza não deixa de ser uma palavra consiste em entrar na efervescência sonora da classe, libertan-
humana, isto é, a consequência de um imaginário colectivo. do-a, pouco a pouco, através de propostas lúdicas. Maria
O silêncio da natureza ou a sua palavra proliferante não é tanto Montessori foi indubitavelmente a primeira pedagoga a treinar
um acontecimento em si como uma interpretação que se pode as crianças no silêncio como contexto de prazer, eliminando as
fazer, em que o mutismo ou o encantamento sentidos começam possibilidades de angústia que a experiência poderia comportar.
por estar inteiramente nos olhos do homem que se interroga. Um dia, entrou numa aula com uma criança de quatro anos ao
colo. Impressionada pela sua tranquilidade, dirige-se aos alunos,
pouco mais velhos, mostrando-lhes como ela está calma e acres-
RUÍDOS DA INFÂNCIA centa a rir «nenhum de vocês era capaz de estar assim tão ca-
lado». As crianças rodeiam-na, desconcertadas. Continuando com
Na criança o silêncio só é angustiante por via da atitude dos o seu exemplo, ela mostra-lhes como a criança respira suave-
adultos a seu respeito. Por si mesmo é um incansável produtor mente. «Nenhum de vocês era capaz de respirar como ela, sem
de sons desligados de qualquer outra necessidade que não seja fazer barulho», diz ela sempre a brincar. Mas as crianças sustêm
uma emissão lúdica. Já nas primeiras semanas da sua existência a respiração. Pela primeira vez, o ruído do relógio consegue-se
emite pequenos gritos que se transformam em tagarelice mais ouvir na aula, sem ser abafado pelas conversas. Ninguém
organizada, num júbilo vocal que não tem forçosamente valor se mexe. As crianças, encantadas com a situação, pedem
de comunicação, uma vez que cessa muitas vezes, à aproxi- para fazerem exercícios de silêncio. Alguns dias mais tarde,
mação de alguma das pessoas que estão à sua volta. Segui- M. Montessori propõe-lhes chamá-los em voz baixa, devendo o
damente, começa uma exploração mais sistemática das possi- aluno chamado deslocar-se, fazendo o menor barulho possível.
bilidades vocais ao mesmo tempo que se inicia na linguagem. Com uma paciência infinita, os quarenta alunos aceitam o jogo,
A partir dos primeiros passos, assinala o seu percurso com uma recusando mesmo as guloseimas que a professora lhes oferecia,
constante produção sonora, não apenas da voz, mas também como se, pelo seu aspecto prosaico, isso viesse estragar a emoção
com um andar pesado, aos saltos, ou utilizando brinquedos que do jogo (Montessori, 1992, 113-115). O silêncio, quando repre-
chiem ou façam ruídos, organizados ou não, ou então vira-os, senta uma cumplicidade, não tem nada de angustiante, mesmo
para os transformar em instrumentos sonoros, batendo com se tira ao ambiente normal o ruído que serve para tranquilizar os
eles, friccionando-os, etc. Há mil maneiras que permitem à indivíduos. Ritualizado, transformado em jogo, o silêncio passa
criança ser o autor de um universo acústico para acompanhar as a ser um valor. Até a turbulência das crianças pára, quando
suas brincadeiras. Desta maneira exerce um domínio tranqui- entram numa outra dimensão da existência.
lizante sobre o mundo de que descobre reacções agradáveis.
Este ruído é um sossego para a criança, porque o garante na
ausência de adversidade pela emissão à sua volta de um reves- RUÍDOS
timento sonoro protector.
Os professores aproveitam-se desta predilecção pelos sons. O ruído é um som que tem um valor negativo, uma
Quando querem tratar do tema, nas classes infantis ou pri- agressão contra o silêncio. Causa constrangimento a quem o

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ouve, como um modo de entrave a um sentimento da sua liber- intimidade. A vítima do ruído sente-se como que expulsa de
dade e o faz sentir agredido por manifestações que não con- casa. Na maior parte das vezes, só suportamos as informações
trola e que lhe são impostas, que o impedem de descansar, de acústicas que chegam até nós quando as fornecemos ou contro-
gozar tranquilamente o seu espaço. Representa uma interferên- lamos. Os ruídos que nós próprios produzimos não nos pare-
cia desagradável entre.o mundo e o eu, uma distorção da comu- cem incomodativos, fazem sentido. São sempre os outros que
nicação através da qual se perdem significados, substituídos fazem barulho.
por uma informação parasita, que suscita o desacordo ou a irri- A sensação de ruído expandiu-se, sobretudo, com o nasci-
tação. A sensação de barulho surge quando o som ambiente mento da sociedade industrial e os tempos modernos alar-
perde a sua dimensão de sentido e se impõe como uma garam-no desmesuradamente. A extensão da técnica fez-se
agressão que deixa o indivíduo sem defesa. O seu sentido é a par da penetração acrescida do ruído na vida quotidiana e a
então função das actividades do indivíduo. O barulho das impotência crescente para lhe controlar os excessos. Conse-
actividades familiares no apartamento pode ser vivido quência inesperada do progresso técnico, o ruído é a sombra
dolorosamente por Kafka, incapaz de concretizar o seu desejo que veio com o conforto. Mesmo não sendo um problema
de escrever, na perpétua agitação doméstica que o cerca. «Estou recente, as suas proporções aumentaram no decorrer dos anos
sentado no meu quarto, ou seja, no quartel-general de barulho cinquenta e sessenta (Thuillier, 1977, 23421. Barulhos novos
de toda a casa. Oiço bater todas as portas, graças ao que apenas entraram nos apartamentos, com o rádio, a televisão, os instru-
os passos das pessoas que correm entre portas me são poupa- mentos da lide caseira, o telefone, o portátil, o fax, os grava-
dos. Até oiço o barulho do fechar da porta do forno, na cozi- dores, os equipamentos de alta fidelidade, os CD, etc. Ao
nha. O meu pai abre as portas do meu quarto e passa, vestido mesmo tempo, as ruas e as estradas vão tendo um tráfego cres-
com um robe que lhe chega aos calcanhares, oiço raspar as cin- cente. Se nos conseguirmos abster dos outros sentidos, a não
zas da lareira na sala ao lado, Valli pergunta, pelo sim pelo não, ligar a um cheiro ou a fechar os olhos, o ouvido resiste à expe-
berrando através do corredor, como se estivesse numa rua de riência, sendo o sentimento do ruído a consequência disso. Nas
Paris, se o chapéu do meu pai foi bem escovado, um schiu!, que cidades, os ruídos misturam-se e acompanham permanente-
me aparece como aliado, corta os gritos de uma voz que se mente a marcha do cidadão: automóveis, camiões, motorizadas,
prepara para responder»20. O mesmo tipo de barulho seria, transportes públicos, eléctricos, estaleiros de obras, sirenes de
inversamente, entendido por outra pessoa como um agradável ambulâncias ou de polícia, alarmes que disparam sem razão
envolvimento sonoro. Uma relação simbólica preside à per- aparente, animação comercial de ruas ou bairros, casas com as
cepção dos sons vindos do exterior. No limite, o ruído cons- janelas abertas por onde sai música em altos berros, etc. Obras
tante da rua, que o indivíduo integra sem que faça parte da sua de restauro, de conservação, construção de prédios, demolições
área de influência, é finalmente escondido, ao passo que as de imóveis antigos, etc.
agressões sonoras da vizinhança são consideradas como inde-
sejáveis, como uma violação da intimidade pessoal. Nume-
rosas queixas feitas nas esquadras de polícia referem-se a con- 21 Em comparação com a actualidade, este texto de Théophile Gautier, em
flitos entre vizinhos, respeitantes ao barulho: disputas, gritos 1867, de visita a Issoire, que cita Guy Thuillier: «Uma coisa me impres-
ou choros de crianças, televisão, rádio, aparelhos de alta fideli- sionou, o profundo silêncio que reina na cidade. Não se ouve absolu-
dade demasiado altos, festas nocturnas, etc., que invadem a tamente nada, nem um barulho de carro, nem um ladrar de um cão,
nenhum ruído de água corrente, nenhum movimento de algo que esteja
vivo. É uma sensação bizarra, para mim, habituado ao tumulto
parisiense... Contudo, essa ausência de sonoridade impõe-se, apesar de
20 F. Kafka, Journal, Paris, Grasset, 1954, p. 121. tudo: escutamos o silêncio.»

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Os bairros ao lado das estações de caminho-de-ferro sofrem vezes indispõem, mas cujo interesse é o de deixar passar uma
os inconvenientes das chegadas e partidas dos comboios, a agi- mensagem tranquilizadora. Um antídoto contra o medo difuso
tação dos carros, dos táxis, dos autocarros, enchendo de ruídos de não ter nada a dizer, uma infusão acústica de segurança cuja
numerosos lares, às vezes mesmo com a gritaria ou manifes- súbita ruptura provoca um redobrado mal-estar. A música
tações alegres de alguns foliões que sabem haver ali cafés que ambiente tornou-se numa arma eficaz contra uma certa fobia do
estão abertos até tarde. À volta dos estádios ou de pistas de cir- silêncio. Este universo insistente isola as conversas privadas ou
cuitos, onde se ouvem os gritos dos apoiantes ou as rotações encobre os devaneios, limita cada um a um espaço próprio,
ensurdecedoras das motos, dos carros ou dos kartings. Os equivalente fónico dos biombos que proporcionam encontros
espaços da cidade são ruidosos e as casas resistem mal às infil- reservados, criando uma intimidade pela confusão que suscita à
trações sonoras das ruas vizinhas ou mesmo simplesmente às sua volta. O regresso do silêncio, no fim de uma gravação, por
dos apartamentos próximos. As conversas dos vizinhos, os seus exemplo, torna sensíveis as palavras ditas, o seu conteúdo,
movimentos, uma torneira aberta, o funcionar de um aspirador, destrói a discrição anterior, proíbe o devaneio, e trava mesmo as
um uso exagerado da rádio ou da televisão, discussões even- pausas nas conversas, com receio de que esses momentos sejam
tuais, etc., não se confinam na intimidade do círculo familiar, confundidos com um vazio ou uma indiferença. É mais fácil
infiltram-se nos outros e às vezes têm repercussões directas no estar calado quando há música ambiente do que no silêncio de
seu ritmo de vida, alterando a tranquilidade de quem está em uma sala de espera onde o apagar ritualístico do corpo, princi-
casa. «Agora a riqueza mede-se pela origem dos ruídos, pela palmente, é mais difícil de conseguir, o embaraço mais tangível,
gama de ruídos que um particular tem à sua disposição» a menos que se mergulhe na leitura de uma revista ou de um
(Brosse, 1965, 296). O conforto acústico é um luxo. livro e se consiga chegar ao silêncio interior (Le Breton, 1990).
Para o citadino, habituado a viver metido num ambiente Desligando-o das origens através da gravação e recorrendo
sonoro ruidoso, um momento de silêncio não se reveste do a instrumentos apropriados, o som adquire uma utilidade ilimi-
mesmo significado que tem para o rural. Uma ligeira atenuação tada?2, Uma vez gravado, o som pode ser ouvido repetidas
do ruído da circulação urbana ou dos trabalhos da obra ao vezes sem que o indivíduo saia de casa, sem que a orquestra
lado são suficientes para dar a impressão de que o silêncio se volte a trabalhar. Um mesmo canto de pássaro ou de baleia está
instalou; enquanto o rural continua a sentir o desagradável à disposição do amador, apesar de ter sido captado muitos anos
do fundo sonoro. Mas o citadino, habituado à permanência do antes. Podemos escutar a voz de um parente muito tempo
barulho urbano, sente-se desconfortável num lugar mergulhado depois da sua morte. O amador tem à sua disposição, em per-
em silêncio, chegando a assustar-se, e apressa-se a preenchê-lo manência, uma imensa fonoteca. O tumulto do mundo pode
com sons que o tranquilizem, falando alto e forte, deixando o encher a sua sala a qualquer hora do dia ou da noite. Os sons
rádio do carro a tocar ou ligando o walkman. Um mundo silen- podem ser reproduzidos infinitamente, podemos mesmo ima-
cioso acaba por se tornar num mundo inquietante para aqueles ginar que vão sobreviver muito tempo após o desaparecimento
que crescem no meio do ruído e acabam por se encontrar sem dos homens. A modernidade inventou a permanência da
referências. sonoridade e a capacidade de a desmultiplicar através de alti-
À profusão do ruído vindo da cidade, à passagem incessante falantes. O indivíduo que não é capaz de suportar o silêncio tem
dos automóveis, as nossas sociedades juntam novas fontes a possibilidade de recorrer, no conjunto dos factos e gestos da
sonoras, com as músicas de ambiente nas lojas, nos cafés, restau-
rantes, aeroportos, etc., como se fosse necessário afundar o 22 Franklin Murray-Schaffer chama esquizofonia a esta separação que per-
silêncio dos locais onde as palavras se trocam no interior de mite ouvir um concerto, o canto de uma baleia ou o ruído de uma festa,
uma massa constante de ruídos que ninguém escuta, que às estando dentro de casa (Murray-Schaffer, 1979).

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vida quotidiana, a um ruído de fundo. Os programas de rádio rença dos habitantes. K. G. Durkheim avança com uma inter-
ou de televisão nunca param, nem ambientes musicais bana- pretação desta atitude a propósito do Japão, um país que
lizados dos espaços públicos, dos átrios de hotel, dos cafés, das domina simultaneamente o ruído e o silêncio. À vida quoti-
lojas, mesmo, às vezes, dos meios de transporte. Arrancada às diana. faz eco aos barulhos da cidade, altifalantes repetem
raízes do silêncio, a própria palavra dissolve-se em ruído de incansavelmente as suas mensagens, os seus anúncios, os seus
fundo. No decorrer do dia, o homem é acompanhado por uma conselhos; a música envolve num ambiente viscoso todos os
litania sem fim que lhe fornece, sem parar, referências tranqui- locais públicos: dos transportes públicos aos ascensores, dos
lizantes. E, quando chega a casa, no meio do silêncio relativo da restaurantes às casas de banho, numa espécie de perseguição
sua residência, vai ligar o rádio ou a televisão, ver um vídeo ou obstinada ao silêncio; as casas são ensurdecidas por televisores
ouvir cassetes ou CD. O barulho tem um efeito narcotizante no omnipresentes. Uma emissão sonora contínua, de manhã à noite,
ambiente do apartamento ou na rua, garante a permanência chega a pôr violentamente à prova a paciência do Ocidental.
de um mundo que continua indemne. Projecta uma linha de Contudo, os Japoneses encaram tranquilamente este constante
audição que é controlável e reconhecível, em estilo de uma tela martelar que não os afecta minimamente. Um professor con-
que acaba com a turbulência e a profundidade perturbadora do segue trabalhar indiferente à algazarra dos alunos no recreio, os
mundo. Exercício de esconjuração para obstar à rarefacção clientes nas salas de espera não são incomodados pelos gritos
do sentido. das crianças que correm ruidosamente atrás umas das outras.
Quanto à tranquilidade no meio da algazarra exige uma ati- K. G. Durkheim analisa a uniformidade de espírito do Japonês
tude pessoal, uma disciplina interior daquele que atingiu um perante o barulho como sendo consequência de uma educação
domínio próprio. O próprio Kafka, depois de ter sofrido bas- moral. Este fecha-se sobre si próprio e a agitação das vagas de
tante, conforme atesta o seu Journal, acaba por notar: «Creio que superfície do seu universo quotidiano não o incomodam nada.
o ruído já não me consegue incomodar. É certo que, neste O recolhimento interior é uma protecção contra os ruídos do
momento, não estou a trabalhar. Contudo, quanto mais fundo mundo. A cultura japonesa não se separa, por causa do ruído,
cavamos o fosso, mais o silêncio aumenta, tornamo-nos cada das reservas morais que alimentam a sua atitude perante as
vez menos ansiosos e o silêncio aumenta». O incómodo é coisas. Nos casos em que o Ocidental, segundo Durkheim, pri-
muitas vezes exorcizado por um manto de sentido, um delibe- vilegia a exterioridade, abandonando os outros meios, ou usan-
rado distanciamento do incómodo pela decisão de já não do-os apenas com parcimónia, nos casos de encontrar um
o ouvir ou pela utilização de um artifício imaginário que o momento de sossego, o Japonês, pelo contrário, preenche a sua
desarma. Bachelard, por exemplo, conta como consegue neu- relação com o mundo com um silêncio que lhe confere uma
tralizar a batida dos martelos pneumáticos transformando-os certa distância.
mentalmente em picanços dos campos da sua província natal.
Numerosas sociedades parecem receber particularmente
bem ruídos que seriam classificados noutros sítios como baru- O FIM DO SILÊNCIO
lho. Altifalantes nas ruas, difundindo permanentemente uma
música em alto som, televisões, rádios em altos berros, algazarra «Parece que o último resquício existente de silêncio tem de
de tráfego nas ruas, etc., são experiências vulgares nas grandes ser arredado, que foi dada ordem de parar o silêncio em cada
cidades do Oriente, por exemplo, perante a manifesta indife- homem, em cada casa, de o tratar como inimigo e de o destruir.
Os aviões correm o céu à procura do silêncio que se esconde
por detrás das nuvens, as rajadas das hélices são como que dis-
23 F. Kafka, op. cit., p. 445. paros contra o silêncio», escreve Max Picard (1953). As zonas de

170 1
silêncio são particularmente vulneráveis às agressões sonoras. à espera, não passa de pura perda. Anacrónico, domínio onde o
O menor dos ruídos é como que uma mancha de óleo espalhan- ruído ainda não penetrou, é um arcaísmo que tem de encontrar
do-se por grandes distâncias. Uma serra eléctrica, um automóvel remédio. «O silêncio», escreve M. Picard «aparece apenas como
ou uma moto nas estradas de terra batida de uma floresta, um um defeito de construção no desenvolvimento contínuo do
fora de borda num ribeiro ou num lago, ferem o encanto do ruído» (Picard, 1953, 66). Ressoa como um desarranjo ensurde-
lugar adicionando-lhe um elemento estranho que esses espaços cedor do sistema. O silêncio é um resto, aquilo que o ruído
não conseguem integrar. Ofendem-nos porque reduzem brutal- ainda não penetrou nem alterou, aquilo que os meios ou as con-
mente o seu uso, fazendo dele um simples resíduo de ruído. sequências das técnicas ainda poupam.
Nestas circunstâncias, a contradição entre a natureza e a técnica
é clara. Onde o ruído está ligado à velocidade, à força, à energia,
ao poder, o silêncio, inversamente, é uma cristalização da COMERCIALIZAÇÃO DO SILÊNCIO
duração, um tempo parado ou infinitamente lento, aberto à sen-
sibilidade do corpo humano, batendo ao ritmo tranquilo da O contexto ruidoso das sociedades ocidentais e a mudança
marcha do homem. Podemos pensar, com Jacques Brosse, que das sensibilidades colectivas a este respeito, desde há várias
«não existem ruídos na natureza, mas apenas sons. Nenhuma dezenas de anos, provocam um incómodo crescente nos utentes.
discordância, nenhuma anarquia. Mesmo o rimbombar do tro- Uma legislação mais atenta regulamenta o ruído e esforça-se por
vão, mesmo o fragor de uma avalanche ou a queda de uma o conter dentro de limites precisos, visando proteger aqueles
árvore na floresta, correspondem a leis acústicas e não as trans- que trabalham num ambiente sonoro doloroso ou manejam
gridem» (Brosse, 1965, 295-296). utensílios barulhentos, atenuando os ruídos de um estaleiro, de
As empresas de liquidação do silêncio abundam, não são modo a reduzir os incómodos dos habitantes do bairro, regula-
deliberadas mas fazem aumentar os ruídos do ambiente urbano mentando a circulação dos transportes nas cidades, enquadran-
ou simplesmente técnico; entram por sítios ainda preservados, do-os em horários severos, fornecendo um enquadramento
em terrenos de pousio entregues a um silêncio gratuito. São efi- jurídico aos problemas de vizinhança sempre que se fazem usos
cazes, nas suas consequências ruidosas ou no seu intuito de inapropriados de instrumentos sonoros a determinadas horas,
interpor permanentemente uma cobertura sonora entre sie o ou manifestações incómodas (barulho nocturno, por exemplo).
mundo, estabelecendo um rumor contínuo que distrai de si ou Os planos de urbanismo são actualmente mais cuidadosos em
de preocupações pessoais. A modernidade representa uma ten- incluir zonas de silêncio. Os utentes mobilizam-se frequente-
tativa difusa de saturação do espaço e do tempo através de uma mente contra projectos de auto-estradas, aeroportos, etc., que
emissão sonora sem repouso. O silêncio, sendo uma zona não destruiriam o equilíbrio acústico da zona. E a legitimidade
trabalhada, em expectativa, liberto de usos, provoca uma social de tais reivindicações já hoje não encontra quaisquer
reacção de preenchimento, de animação, de modo a que, final- objecções. O direito ao conforto acústico (a preservação de uma
mente, seja quebrado este desafio do «inútil» que ele escondia. parcela de silêncio) tornou-se um domínio sensível da socie-
Isto porque, numa lógica produtiva e comercial, o silêncio não dade, um valor unânime como resposta ao aumento do ruído
serve para nada, ocupa um tempo e um espaço que poderiam ambiental. Pouco a pouco, o silêncio passou a ser considerado,
ser utilizados para maior rendimento. Para a modernidade, o no decurso dos últimos decénios, e sobretudo depois dos anos
“silêncio é um resíduo que espera uma utilização mais lucrativa, oitenta, como uma referência comercial de peso na promoção
é uma imagem de um terreno vago no centro da cidade, uma turística de uma região, de uma estada, de uma excursão. As
espécie de desafio a um imperativo de ser rentabilizado, de o empresas ou as agências publicitárias também se aperceberam
obrigar a fornecer uma qualquer utilidade, uma vez que, da necessária valorização do silêncio numa vida quotidiana

172 13
encurralada no ruído. Actualmente, salienta-se o silêncio do CAPÍTULO 5
motor de um automóvel, dos aparelhos domésticos, das
máquinas de cortar relva, etc. O argumento é um recurso eficaz AS ESPIRITUALIDADES DO SILÊNCIO
de marketing. A indústria de insonorização teve um grande
desenvolvimento nos últimos anos. Isolam-se as casas, os
escritórios, as máquinas, atenuam-se os ruídos inevitáveis; já
não se suporta que o ruído do motor do carro, do avião ou do
comboio impeçam as conversas. Em princípio, cada um se
esforça por atenuar a sua produção sonora e espera que, em con-
trapartida, os vizinhos tenham a mesma preocupação. Tornado
mais raro, acossado por todos os lados, o silêncio transforma-se In magno silentio cordis
em importante valor comercial. Chega-se ao ponto de haver SANTO AGOSTINHO
produtos que compram blocos de silêncio num programa de
difusão e os oferecem, em seu nome, aos ouvintes. O silêncio
transforma-se em riqueza moral, comercial, turística, ecológica,
etc. Espécie em vias de extinção, o seu preço aumenta cada dia A LÍNGUA DE DEUS
mais e mobiliza uma atitude de preservação mais ou menos efi-
caz e interessada.
A fala divide o mundo e introduz a separação (e a ligação)
do sentido, da mesma forma que o rosto distingue a singulari-
dade do indivíduo e permite que seja reconhecido pelos
outros. Mas, para o crente, Deus não poderia ser resumido a
um significado limitado, Ele escapa à fala porque está para
além das palavras, fora de todos os limites do sentido. A fala ou
o rosto são mesmo contraditórios dos atributos divinos, são
características essencialmente humanas, na medida em que
representam uma separação. Deus não tem rosto porque repre-
senta a infinidade de rostos possíveis e não poderia participar
na separação individual, da mesma forma que uma palavra não
bastaria para esgotar o apelo do homem em relação a Ele, não
só para Lhe falar como para O nomear. «O silêncio, por vezes,
está tão carregado de significados que anula as palavras»,
escreve Lavelle, «não apenas por as tornar inúteis, mas ainda
pelo facto de as dispersar, dividindo-as, e levando-as para além
dessa essência finíssima que o caracteriza, sem permitir, por
assim dizer, de lá chegar. O silêncio é uma homenagem da
palavra ao espírito. Deste modo, a palavra de Deus, à qual nada
falta e que é revelação total, não se distingue do silêncio per-
feito» (Lavelle, 1942, 129-130).

174 175
Se os monoteísmos nunca renunciaram à autoridade da insinua-se e não deixa nunca de soar à porta de cada um de nós.
e talvez: não encontre
palavra ou dos cânticos, há uma certa predilecção pelo silêncio Está a falar, neste preciso momento,

que impregna as diferentes teologias. Mesmo no fervor reli- ninguém que a ouça», escreve Bernardo de Claraval.
gioso, o homem não é capaz de se libertar da sua condição para O recolhimento do fiel na interioridade torna inútil o balbu-
dar testemunho da sua fé, e a linguagem torna-se muitas vezes ciar da linguagem. João da Cruz afirma que «o Pai só pronun-
necessária, nem que seja para afirmar, como os místicos,
a ciou uma Palavra: é o seu verbo. Disse-a para toda a eternidade
impossibilidade de falar. Mas, por vezes, a escolha do silêncio e num silêncio eterno. É em silêncio que a alma escuta». Mestre
impõe-se, mesmo que seja oportuno falar, porque uma tonali- Eckhart faz eco dele: «O Pai celeste pronuncia uma Palavra e
dade especial de silêncio embaraça a palavra que se quer dirigir pronuncia-a eternamente, e nessa Palavra consome todo o seu

a Deus. «O silêncio místico honra os deuses porque imita a sua poder, exprime toda a Sua natureza divina, absolutamente, e
natureza», diz Apolodoro de Atenas. Face à imensidade de todas as criaturas. A Palavra repousa escondida na alma, de
Deus, o crente pleno de fervor não tem outras possibilidades maneira que não a conhecemos nem ouvimos a não ser que nos
senão deixar-se inundar por um «hino de silêncio», afirma seja possível descobri-la no íntimo; anteriormente ela não foi
Gregório de Nazianzo!. «Quando estás em silêncio, transfo
r- escutada; mas logo foi necessário que todas as vozes e todos os
da nature za e da criação do ruídos desaparecessem, que viesse uma calma límpida, um
mas-te naquilo que Deus foi, antes
homem e naquilo de que Ele formou a natureza e O homem.
silêncio... Em silêncio e em repouso... Deus fala na alma e
E vês então e ouves aquilo com que Ele via e ouvia em ti, antes exprime-Se inteiramente na alma»?. O silêncio é a língua de
que tivessem começado o teu querer, O teu ver e O teu ouvir», Deus porque contém todas as palavras, é uma reserva ines-
escreve Jacob Boehme. «O amigo do silêncio vem para perto de gotável de sentido. O homem é convidado a provocar o silêncio
Deus. Em segredo, fala com Ele e recebe a Sua luz», escreve por em si mesmo, a defender-se das condições normais das conver-
sua vez João Clímaco, monge do Sinai, do primeiro século. Para sas, para escutar uma frase que já não passa pelo recorte das
André Neher, que evoca a tradição judaica: «Assim como o palavras. Mas o escutar das palavras divinas não se pode fazer
silêncio constitui a forma mais eloquente da revelação, também sem uma inclinação propícia do crente que fica inteiramente
o instrumento mais eloquente da adoração é o silêncio. Ao disponível. «Ama o silêncio», escreve Isaac de Nínive «ele vai
infinito corresponde e reage o inefável, tema religioso que a trazer-te um fruto que a língua não é capaz de descrever.
Bíblia, mais uma vez, foi a primeira a colocar nas profundezas Primeiro, somos nós que nos obrigamos a calar. Na sequência
da alma humana» (Neher, 1970, 15). E Neher cita o Salmo 62: do nosso silêncio nasce qualquer coisa que nos obriga ao
«Para Ti, apenas o Silêncio serve de Louvor.» «A palavra trai e silêncio. Que Deus te permita entender aquilo que nasce do silên-
apenas o silêncio respeita essa ligação orgânica estabelecida cio» (Miquel, 1981, 838). Deste modo, numerosos crentes se
pelo Inefável perante o infinito», conclui A. Neher. A mística dirigem a Deus, com uma fala interior, cujo estatuto aparente é
muçulmana não fica atrás, ao declarar com Rúmi: «Fica em o silêncio, mas cuja intenção é activa. Há o sentimento geral de
silêncio para ouvires aquilo que Deus te inspira» (Miquel, 1981, que Deus não tem necessidade de ouvidos para escutar a
832). «Exorto-vos a que tenhais os ouvidos do vosso coração oração de um fiel. Os votos dirigidos a Deus ou aos santos são
atentos a esta voz interior e a que vos esforçais por escutar Deus, silenciosamente formulados no foro íntimo do crente, na con-
dentro de vós próprios, porque essa voz ressoa nos locais mais vicção de que serão, apesar de tudo, satisfeitos. Interessamo-
desertos, entra nos cantos mais secretos do coração. Esta voz -nos, antes de mais, pela tradição cristã, mas veremos seguida-

2 Mestre Eckhart, Sermons, TI, Paris, Seuil, 1974, pp. 166-167.


1 Gregório de Nazianzo, Poêmes dogmatiques, Patrologie Grecque 37, pp. 507- 508.

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mente que o gosto pelo silêncio e a percepção da sua relevância
sociedade, na solidão e no silêncio, muito antes dos monges
soberana na relação com o divino também respeitam às outras
cristãos.
religiões.
O monaquismo cristão nasce no século Iv, no deserto egípcio.
Antão, figura emblemática, «Pai dos monges», escuta na sua
infância uma frase do Evangelho que lhe indica o caminho: «Se
DISCIPLINAS DO SILÊNCIO
queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuis, dá-o aos
pobres, depois vem e segue-me» (Mateus, 19, 21). Nessa época a
A fascinação do silêncio e da solidão nos lugares inóspitos
Igreja está triunfante, usufrui da protecção imperial, é rica, foi
do deserto egípcio não vem dos primeiros cristãos. Podemos
dotada de inúmeros privilégios, entra numa fase nova da sua
igualmente encontrá-la em finais do segundo milénio. Na sua
história. Acabaram as perseguições e, com elas, a atracção
busca espiritual, os grafitos das montanhas tebaidas teste-
ambígua pelos mártires. Com o fim de preservarem as exigên-
munham a atracção do isolamento. O escriba Anii ensina aos
cias da sua fé, há homens que escolhem sair do mundo. São
seus alunos: «Não multipliques as palavras. Guarda o silêncio,
solitários, votados a uma existência de eremitas, inteiramente
se pretendes ser feliz. Não faças soar a tua voz (no interior) da
voltados para Deus, num clima de penitência de enorme rigor.
casa pacífica de Deus. Ele detesta os gritos. Quando rezas, com
Sabemos deles através de uma colectânea de textos, pequenos
um coração puro, em que todas as palavras estão escondidas...
e densos, Os Apotegmas, que pretendem auxiliar os jovens mon-
Ele recebe a tua dádiva»3. Chamamento à oração interior numa
ges a encetarem o caminho monástico, apresentando-lhes
atitude silenciosa, humildade da palavra e procura de salvação
maneiras exemplares de se virarem para Deus: conselhos, casos
são as características destes solitários do deserto. Um pouco
exemplares ou frases ligadas a aspectos dos diferentes eremitas
mais tarde, outro escriba liga, de maneira explícita, a pureza e
que marcaram a espiritualidade do deserto. Estes homens
a modéstia do esforço interior, da espera paciente da salvação:
escolhem lugares de difícil acesso e agrestes, povoados de
«Nunca sujeites Deus a um interrogatório. Deus não gosta que
se aproximem Dele pela força: é um ser que recusa mostrar
demónios, para porem à prova a sua fé e acabarem por sair vito-
riosos, com a ajuda de Deus. O deserto exterior propicia um
a Sua forma aos curiosos. Tem cuidado em não levanta-
deserto interior, encoraja a libertação espiritual pela rejeição dos
res a voz na Sua casa. Porque Deus gosta do silêncio.» O
sentidos, a rejeição activa do peso corporal. O eremita transfor-
nome da deusa Meret-Seger queria dizer «aquela que ama
ma-se inteiramente em oração, em louvor. Pelo seu comprome-
o silêncio.» O sábio Amenemopé fala, por imagens, do retiro
timento espiritual, sem concessões, pretende transformar aque-
espiritual: «O silencioso autêntico põe-se de lado. É como a
les locais áridos em terra de Deus. Em si mesmo, evidentemente,
árvore que cresce num pomar. Cresce e duplica os seus frutos.
o deserto não proporciona qualquer ensinamento, é uma
Está à beira do seu Senhor. Os seus frutos são doces, a sua
condição de exercício da fé, um revelador do fervor que anima
sombra é agradável»t. O recolhimento silencioso, no meio do
o eremita. O confronto com o silêncio, com a solidão, com o
deserto, tem uma longa história na tradição egípcia, mas tam-
vazio, é uma prova de verdade, um terrível face a face com Deus
bém na essénia. Da mesma maneira que, no Oriente, os dis-
e, sobretudo, com os seus inimigos.
cípulos de Buda popularizaram o retiro espiritual longe da
A espiritualidade do deserto solicita todos os recursos
morais do eremita, não apenas devido às condições de existên-
3 Citado por F. Daumas, «La “solitude” des thérapeutes et les antécédents cia material, mas também porque Satã estabeleceu o seu reino
égyptiens du monachisme chrétien», in Philon d'Alexandrie, Lyon, CNRS,
1967, p. 355.
no deserto e persegue aqueles que o vêm combater no seu
4 Ibidem, pp. 356-357. próprio terreno. O que torna a vitória do anacoreta mais
valiosa. Na sua solidão faz profissão de silêncio e entrega-se

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inteiramente a Deus. Antão não encontra ninguém durante recebe a visita do patriarca Teófilo, e os irmãos que o cercam
pedem-lhe uma palavra de salvação, em honra do hóspede.
vinte anos: «Aquele que mora no deserto e vive em recolhi-
Mas Pombo cala-se e, finalmente, diz: «Se ele não fica honrado
mento fica livre de três combates: do ouvido, da conversa e da
vista.» Quando a sua fama atrai os discípulos, os eremitas ensi-
com o meu silêncio também não ficará por eu falar.» «Ele não
nam-lhes a sobriedade da palavra ou o silêncio. É preciso fala com facilidade até que Deus o inspire», explicam os seus
companheiros. O silêncio não é um fim em si mesmo, é mais
recuar cada vez mais dentro de si, penetrar mais longe no
deserto interior. Arsénio é um alto funcionário, que dirige a
importante a sua qualidade, não vale nada se não representar
uma aproximação a Deus. Nesse sentido, a palavra tem o
Deus uma oração: «Senhor, guia-me no caminho da salvação.»
mesmo valor do silêncio, desde que um e outro estejam impreg-
Escuta uma voz que o manda afastar-se dos homens. Obedece
nados de amor. «Há um homem que parece estar calado mas,
e instala-se na solidão. Mais tarde, repete a mesma oração e tem
no íntimo, condena os outros; outro que fala sem cessar. Mas há
como resposta: «Foge, cala-te, continua em recolhimento: são
outro ainda que fala de manhã à noite e, contudo, respeita o
estas as formas de evitar o pecado.» Arsénio chega um dia a um
silêncio: isto é, não diz coisas inúteis», explica Poemen. Zenão
lugar onde o vento agita o caniçal que está por perto. Ele inquie-
aceita receber um discípulo, passa dois anos ao seu lado, sem
ta-se com a origem do barulho e os irmãos que vivem ali expli-
mesmo lhe perguntar o nome, nem de onde vem. Para o ensi-
cam-lhe. «Na verdade», diz ele «se alguém está sentado em
nar a fazer entrançados limita-se a mostrar-lhe o trabalho, sem
repouso e se ouve o canto de um pássaro, o seu coração não pequena palavra (Lacarriêre, 1975,
nunca pronunciar a mais
repousa. Quanto mais vós, que tendes o ruído do caniçal.»
O silêncio da alma é precedido do silêncio do mundo.
249). O exemplo vale mais do que o discurso. «Um jovem vai
procurar um velho asceta para que lhe ensine o caminho para
Qualquer barulho é uma fonte de perturbação que afasta o
eremita de Deus, recordando-lhe a sua condição. Ao inverso,
a perfeição. Mas o velho não dizia nada. O outro pergunta-lhe a
razão do seu silêncio: “Sou um superior, para te dar ordens?
contudo, a amplitude do silêncio interior de Poemen abarca
Não vou dizer nada. Faz, se quiseres, aquilo que me vês fazer
qualquer manifestação sonora à volta da sua cela. Isaac, senta-
a mim”. A partir daí o jovem imita em tudo o velho asceta e
do a seu lado, ouve o cantar de um galo e volta-se indignado
aprende o sentido do silêncio.» Dois discípulos perguntam
para o seu companheiro, para se queixar do incómodo no
a José se as numerosas visitas que recebe não o importunam
decurso da oração. Poemen responde-lhe: «Isaac, porque me
nas suas orações. Ele não responde, desaparece no fundo da
obrigas a falar? Tu e os teus semelhantes ouvem ruídos, mas o
gruta, volta a sair, vestido de andrajos e caminha em silêncio.
homem que está de vigília não dá por eles.»
Segundo o costume, na altura de se despedir de um ancião, Volta novamente, com vestidos religiosos e recomeça a andar
sem dizer palavra. Os discípulos compreenderam que o ves-
um discípulo (ou um visitante) pedia ao eremita uma palavra
tuário não muda o asceta, que não deixa de rezar, sejam quais
de orientação. Abba Moise responde assim ao seu interlocutor:
forem as circunstâncias. Uso expressivo do corpo, para preser-
«Continua sentado na tua cela, ela te ensinará tudo.» À hora da
var o silêncio dos lábios! A procura da apatheia, isto é, de uma
morte, Arsénio diz: «Arrependi-me muitas vezes por ter falado,
insensibilidade que anule o corpo para o tornar semelhante
mas nunca por ter ficado calado.» Agaton viveu três anos com
à alma, encontra no silêncio o melhor instrumento para dar
uma pedra na boca, para aprender a ficar em silêncio. Carion
lamenta-se: «Castiguei-me muito mais que meu filho Zacarias e,
força às orações. Uma vez conseguida esta, quando o silêncio
interior domina a existência do eremita, as visitas deixam
contudo, não consegui atingir o seu grau de humildade e de
silêncio.» Moise, à hora da morte, pergunta ao mesmo Zacarias:
de o distrair do seu trabalho, dá conselhos aos viajantes que
vieram pedir um conselho, mergulhado na sua oração perpé-
«Que vês?» Ele responde: «Não será melhor eu ficar calado,
tua, nenhum pensamento, nenhuma palavra o faz abandonar
Pai?» O outro diz: «Sim, meu filho, cala-te.» Uma vez, Pombo

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o seu estado. «Se o homem não disser no seu íntimo: Deus e nhamento da alma ou por necessidade absoluta, no decorrer de
eu estamos sós no mundo, nunca terá repouso», diz Abba um trabalho, ou ainda por ter sido interrogado de urgência»
Alonios>. (GR 13). Outras regras governam o uso da palavra e denunciam
Os eremitas agrupam-se, por vezes, com o objectivo de con- principalmente as palavras vãs. A grande regra 17 condena o
jugarem os seus esforços contra o demónio que está presente riso, mas encoraja o «sorriso beatífico». As regras de Basílio
nestes lugares propícios a todas as provas e, sobretudo, a todas ainda hoje influenciam o monaquismo oriental.
as projecções imaginárias. Os anciãos vêem os discípulos crescer Bento de Núrsia redige, no fim da sua vida (547) um con-
à sua volta. Surge então a necessidade de organizar a existência junto de regras, setenta e três capítulos, em que são reagrupadas
comum. Pacómio, no Alto Egipto, estabelece as primeiras regras as instruções morais e práticas que regulam de forma prepon-
cerca de 320, em Tabennêsi. As celas dos religiosos estão derante o monaquismo europeu, fazendo dele um modo de vida
reunidas num perímetro à volta dos edifícios comunitários: a em comum submetido a uma disciplina severa. Trata-se, em
igreja, a cozinha, o refeitório, etc. Os monges não fazem relação aos monges, de viver em comum e de fazer com que
qualquer voto, mas comprometem-se em submeter-se à regra. cada actividade seja uma oração dirigida a Deus, mas sem ceder
Pacómio modera as paixões ascéticas dos religiosos, procurando à paixão ascética dos Pais do deserto. Bento está próximo de
não desencorajar os jovens e mantê-los assim sob a tutela de Pacómio, o fundador da vida cenobita, ou seja, o reagrupamen-
Deus. Por várias vezes insiste na necessidade do silêncio. to dos monges numa comunidade unida no ideal pelo amor de
Nenhuma conversa durante as refeições ou durante a noite, Deus, a caridade, a obediência, a pobreza. A regra de Bentoé
nenhuma algazarra ou riso deve perturbar os ofícios, nem aplica-se a homens simples, orientados para a oração, mas tam-
mesmo o trabalho manual. Dentro do perímetro é exigido «não bém votados a uma partilha fraternal das suas condições de
abusar das palavras». Silêncio de disciplina e de recolhimento. existência. «Nesta instituição», escreve «esperamos não estabele-
Nessas condições de vida comunitária, o silêncio é um modo efi- cer nada de rude nem de pesado. Se, contudo, se encontrar algo
caz de manter a solidão, que alimenta a oração, sem contudo com bastante rigor, que foi imposto pela equidade com o fim de
renunciar às ligações com os outros e, portanto, com as virtudes corrigir os nossos vícios e salvaguardar a caridade, toma bem
da obediência e da humildade. Basílio, morto em 379, bispo da atenção, dominado por um súbito receio, de não saíres da via da
Cesareia, redige novas regras com o fim de organizar a vida dos salvação, cujo início é sempre difícil» (prólogo). O abade dispõe
monges na Capadócia, na Ásia Menor. Também para ele o silên- de uma autoridade absoluta em relação aos monges, «é suposto
cio impregna a atmosfera do mosteiro. A sobriedade domina a ocupar o lugar de Cristo» (R. 2), mas terá de responder pelos
palavra: «E bom que os recém-vindos se exercitem no silêncio. seus actos perante Deus. A cada um dos monges é dada uma
Ao mesmo tempo que darão uma prova palpável do domínio tarefa diária e precisa, que ajuda ao bom funcionamento do con-
sobre si próprios, ao dominarem a língua, vão aplicar-se com junto. O trabalho manual é valorizado, considerado como um
zelo, mantendo um silêncio constante e perfeito, aprendendo motivo de aperfeiçoamento mortal, ascese tranquila que, em
com aqueles que sabem manejar a palavra, como fazer pergun- nada, deve tornar-se enfadonha nem impedir a oração ou o
tas e como responder... é por isso que, excluindo evidentemente recolhimento. O mosteiro participa numa transfiguração da
os momentos dos Salmos, se deve manter o silêncio e só falar existência sob a égide da fé e da simplicidade, sendo, aos olhos
quando for preciso, seja por utilidade pessoal, como o encami- dos religiosos, «a casa de Deus e a porta do céu». A menor das
ocupações do monge é propícia a ir na direcção do divino, ele

5 As referências aos aforismos citados anteriormente foram, na maior parte,


tiradas das obras de Jean-Claude Guy (1976) e de Olivier Clément (1982).
6 Citamos aqui a tradução e edição de Jean-Pie Lapierre (1982).

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sabe viver sob a exigência desse olhar que permanentemente lhe boas, santas e edificantes» (R. 6). No decorrer da vida monás-
recorda as suas obrigações. Os imperativos da vida comunitária, tica, o silêncio é, portanto, de rigor e a palavra severamente
a necessidade de também estar aberto ao mundo exterior, fazem medida. A contenção dos sentidos implica nada dizer, nada ver
funcionar virtudes essenciais do monaquismo: a caridade e a e nada ouvir, de permanecer completamente na humildade
obediência. «Que nada seja preferível à obra de Deus», a liturgia da presença, interiormente atento à única realidade de Deus.
está no centro da vida espiritual do mosteiro: o monge é, antes O monge está obrigado ao silêncio até que o interroguem e, se
de mais, um homem que reza. Bento dá ao silêncio um lugar é levado a falar, fá-lo com modéstia e sobriedade, porque todo
principal. Consagra-lhe um capítulo inteiro, inserido entre os o excesso é presa do pecado.
que se referem à obediência e à humildade e insiste nele várias A facilidade de calar é uma virtude, e o monge é incitado a
vezes. A palavra de abertura da regra é «Escuta», é a primeira desenvolver, em todas as circunstâncias, a procura do silêncio.
atitude. As estátuas de Bento representam-no muitas vezes com As refeições são tomadas em conjunto, não se deve cochichar
o dedo indicador sobre os lábios, apanhado na vigilância atenta nem falar, mas escutar a voz do leitor. Cada um se encarrega
da palavra de Deus. a que nada falte ao outro. Um objecto de mesa esquecido é
O silêncio acompanha o recolhimento, chama o monge à pedido por sinais. Após o último ofício da tarde, «não será per-
solidão da sua relação com Deus, à sua humildade e incita-o mitido a ninguém que fale de outra coisa seja qual for. Se
a desenvolver a sua espiritualidade. Examinando as «instruções alguém for apanhado em infracção a esta regra do silêncio, deve
das boas acções» (R. 4), Bento incita os monges à moderação do ser submetido a um castigo muito severo. Exceptua-se o caso em
discurso: «Não falar muito», «Não dizer coisas vãs ou que ape- que seja necessário receber visitas, ou ainda se o abade tem algo
nas provoquem o riso.» Antes de tudo, trata-se de evitar os a ordenar e, mesmo nesse caso, deve haver uma conduta inteira-
«pecados da linguagem». Noutro ponto, cita uma passagem dos mente séria, reservada e honesta» (R. 42). As noites são votadas
Salmos onde o profeta dá testemunho da sua humildade ao repouso e, se um monge deseja ler, deve fazê-lo interior-
permanecendo mudo e calando «mesmo as coisas boas». Até mente, de modo a não perturbar o sono ou a oração dos seus
que ponto, então, «a dor do pecado deve fazer evitar as pala- companheiros”. O silêncio é também uma disciplina. O abade
vras más» (R. 6). A própria oração não se pode conceber com fala e ensina, o monge cala-se e escuta. A vocação do monge é a
4
palavras supérfluas, a sobriedade também ali é importante, procura em cada instante da união com Deus, pela oração,
assim como a qualidade do silêncio interior que fortalece a afastando-se do mundo, o retraimento dos sentidos, a pureza
comunicação com Deus. «Não é pela quantidade de palavras interior, o afastamento de tudo o que seja um obstáculo à espi-
que seremos premiados, mas pela pureza do coração... A oração ritualidade. Para o monge (monos: só), o mosteiro (e ainda mais
deve ser, portanto, curta e pura, a não ser que a graça da inspi- a cela) é um deserto, uma fonte de renúncia e de solidão. Não
ração divina nos leve a prolongá-la» (R. 20). Volta a falar das está porém «só com o Único», conforme escreve Évagre,
palavras desnecessárias, ou propícias a provocar Oo riso, e
recusa-as com firmeza: «No que respeita às brincadeiras, às
palavras ociosas, que só servem para provocar o riso, conde- 7 Na antiguidade, a leitura, mesmo para si próprio, requeria a voz alta. Nas
namo-las para sempre e em qualquer lugar e não autorizamos Confissões, Agostinho manifesta o seu espanto quando encontra Ambrósio,
bispo de Milão, por vê-lo mergulhado numa leitura muda. «Os seus olhos,
que o discípulo abra a boca para dizer coisas dessas.» Final- enquanto lia, seguiam as páginas e o seu coração rebuscava o pensamento,
mente, qualquer palavra que, por um momento, se desvie de mas a sua voz e a sua língua estavam em repouso... Ora sempre o vimos ler
Deus, é considerada suspeita. «Não devemos, dada a importân- em silêncio, nunca de outra maneira» (Confessions, Paris, Poche, p. 137). Ler
cia do silêncio, senão raramente, permitir aos discípulos, mesmo em silêncio era, na altura, um acontecimento raro. A leitura era, na época,
aos perfeitos, que entre eles conversem, embora sobre matérias um recitar em voz alta.

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«é monge aquele que está separado de tudo e unido a todos». gelo sem descanso. Está repleta de um veneno mortal. Através
A observância do silêncio é o assunto que permite a cada um dela bendizemos o Senhor e Pai, assim como através dela
a manutenção da solidão e de ligação com os outros e com o amaldiçoamos os homens feitos à imagem de Deus. Da mesma
divino. «Assim se estabelecem, em celas bem ordenadas, comér- boca saem a bênção e a maldição» (Tiago, 3-8, 12). Mateus não é
cios santos, estudos admiráveis, ocupações ociosas, repousos menos virulento: «De toda a palavra sem fundamento que os
laboriosos, uma caridade bem ordenada, um silêncio mútuo que homens proferiram, darão contas no Dia do Juízo. Porque é
é linguagem, uma separação recíproca que é afinal uma recipro- através das tuas palavras que serás desculpado e através das
cidade de regozijo e de proveito; é assim que, sem se verem tuas palavras que serás condenado» (Mateus, 12-36). O domini-
um ao outro, vêem no outro aquilo que deve ser imitado e, em cano Guilherme Peyraut acrescenta à soma dos sete pecados ca-
si próprio, aquilo que deve ser lamentado»8. O silêncio monás- pitais um oitavo, decorrente dos sete primeiros, que consiste no
tico não é apenas a ausência de palavras, mas a soberana calma pecado da linguagem. Bernardo de Claraval, entre muitos outros
do coração à escuta tranquila de Deus, é precedido pelo silêncio autores da época, salienta que a língua pode ser dissoluta, impu-
do Cristo e pelo exemplo dos Pais do deserto. Com o correr dos dica, grandiloquente, enganadora, difamante (Casagrande,
séculos, o rigor da bona taciturnitas é, por vezes, aliviado, segundo Vecchio, 1991, 23). Tantos pecados que pesam duramente na alma
os lugares. Alguns estatutos fazem referência a recreações, ou do pecador. O dominicano Jacques de Voragine não deixa de
seja, a momentos em que é permitido aos monges que se dis- recordar um episódio da vida de São Domingos. O diabo
traiam entre si, durante breves períodos, devidamente regula- esforçou-se em vão para o tentar, sub-repticiamente censura-lhe
mentados, com a reserva de tratarem apenas de assuntos a sua quebra da regra do silêncio e leva-o ao parlatório de um con-
edificantes e não de conversa amena. vento. «Então o diabo começou a dar voltas na boca com a língua,
As regras monásticas da alta Idade Média insistem nos peri- a grande velocidade, fazendo um ruído confuso e estranho».
gos inerentes ao mau uso da língua: a boca é uma porta perigosa Os religiosos, desligados, naquele lugar, da regra do silêncio,
que é preciso vigiar para que não ceda à intemperança. Entre o entregam-se a uma euforia de conversas ociosas. A tagarelice é,
fim do século xr e meados do xr, e seguidamente de modo mais de forma consensual, um pecado incontestavelmente denun-
aligeirado, a cristandade ocidental preocupa-se particularmente ciado, uma abundância inútil da palavra, em relação ao outro ou
com os pecados da língua, e esforça-se por promover na vida ainda em relação a Deus, por exemplo, numa oração que se dis-
monástica, mas também no conjunto da sociedade, uma severa persa em assuntos supérfluos. Mas o pecado da língua não se
disciplina de linguagem. O pecado da língua consiste nas resume às palavras ociosas ou más que foram pronunciadas.
palavras impróprias que um homem diz ou que pensa no seu Aos excessos de linguagem correspondem também os exces-
foro íntimo. Os teólogos fazem referência a uma profusão de tex- sos de silêncio. A mala taciturnitas é uma ofensa a Deus por
tos do Antigo ou do Novo Testamento, que insistem na haverem circunstâncias em que o homem é culpado de se calar.
necessária sobriedade do discurso para aquele que pretende Pierre le Chantre distingue quatro que se dirigem mais ao clero
agradar a Deus, nomeadamente o Salmo 38: «Manterei o meu secular ou aos pregadores do que aos monges: o silêncio na con-
caminho, sem permitir que a minha língua se perca.» Mas as fissão dos pecados e o louvar a Deus, a indiferença perante os
penas mais duras estão na epístola de Tiago onde ele diz, princi- erros do próximo, a renúncia em dar conselhos aos que necessi-
palmente, que «a língua, ninguém a pode dominar, é um fla- tam e o silêncio na prédica (Casagrande, Vecchio, 1991, 36). Pela

8 Guillaume de Saint-Thierry, Lettre aux Frêres du Mont-Dieu (edição de 9 Jacques de Voragine, La légende dorée, T2, Paris, Garnier-Flammarion, 1967,
N-M. Davy), Paris, Vrin, 1940, pp. 264-265. p. 58.

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mesma razão, ficar mudo perante o sofrimento do outro ofende Salmo 118: «Sete vezes por dia te louvo pelos teus juízos justos.»
a caridade. Para Gregório, o Grande, a mala taciturnitas não deve Vida comum e vida solitária conjugam-se e alimentam-se mu-
nada à tagarelice, no domínio do pecado da língua, uma e outra tuamente, numa alternância regular entre a oração, O estudo e o
apagam toda a espiritualidade e desagradam igualmente a trabalho, ou seja, exercícios da alma, do espírito e do corpo,
Deus. Robert de Sorbon explica deste modo que é grave ficar segundo a linguagem religiosa. O trabalho manual dura várias
calado diante do mal e, portanto, consentir nele, menos grave horas, não sendo menos propício ao recolhimento do que as
calar-se perante alguém que pratica o bem sem convicção, mais outras actividades, mesmo as litúrgicas, é também obra de fé, se
grave não aconselhar aquele que oscila entre o mal e o bem. for efectuado com esse espírito, sendo igualmente uma ocasião
Denuncia esses homens silenciosos que incarnam, aos seus de melhor enraizar a obediência e a humildade. Os cistercienses
olhos, os «monges do diabo», mais fiéis à regra do silêncio do vivem em comunidade, mas o silêncio é rigorosamente obri-
que os «monges de Deus». Como observam C. Casagrande e gatório, proíbe qualquer tipo de conversas e preserva a solidão
S. Vecchio, a cultura monástica privilegia em demasia a bona ta- do monge, apesar da presença dos seus companheiros. A palavra
citurnitas, para se preocupar com falhas na sua actuação. No só é utilizada se for para ajudar ao bom andamento das coisas,
interior dos mosteiros e dos conventos, os usos da palavra e do principalmente durante o trabalho manual. Mas os recreios são
silêncio estão de tal forma regulamentados que o risco de pecar raros, e mesmo os encontros requerem uma autorização do
por ficar calado é muito limitado. O pecado da taciturnidade abade. Os cistercienses falam, às vezes, entre si, mas com
não existe na avaliação dos monges. E a equivalência feita entre condições. O estabelecimento regular do silêncio permite gozar
o excesso de palavra e o excesso de silêncio não encontra eco a presença dos outros, sem lhe sofrer os inconvenientes e sem ser
entre eles, aplica-se antes fora dos muros dos mosteiros. A regra afectado pela promiscuidade. «Cada um», escreve Guerrie
do silêncio tende a atenuar-se com o correr dos séculos. Os cos- «pode aqui sentar-se, silencioso e solitário, sem que ninguém o
tumes cistercienses proporcionam momentos em que os monges interpele; e, contudo, não tem de recear estar sozinho, privado
podem falar, com moderação, nos claustros: depois do capítulo da amizade que o conforte, ou da mão que o levante, se vier a
da manhã e depois da sexta, ou da nona (Salmon, 1947, 32). cair. Estamos aqui em companhia dos homens e, contudo, afas-
Cluny, que deste modo inventa as recitações, concebe também a tados da multidão: vivemos como na cidade, sem sermos
linguagem por sinais. Graças a este sistema simbólico, os mon- molestados pelo tumulto que nos impediria de escutar a voz
ges permanecem fiéis à observância do silêncio de boca, mas Daquele que prega no deserto»1º. O silêncio insistente, das pare-
conseguem, apesar de tudo, comunicar entre si, um pouco de des e dos homens, não é um orgulhoso recinto fechado que os
acordo com o espírito, senão com a letra, da imposição de reco- separe, mas uma medida de precaução que os impede de serem
lhimento pessoal em silêncio ou da conversa muda com Deus. incomodados uns pelos outros e que evita as tensões eventuais
As diferentes ordens monásticas respeitam usos específicos que poderiam nascer. É uma partilha comum e não um sinal de
do silêncio. No século xi, a ordem cisterciense foi formada a tristeza, porque os monges que não gostam de comunicar não se
partir da ordem beneditina. Desejando voltar à letra da regra de tornam em bons monges (Hartley, 1982, 22). O rigor da vida em
Bento, os fundadores insistem numa via monástica dividida Cister reúne os homens que vieram à prócura de Deus numa
entre as diferentes actividades litúrgicas e o trabalho manual. atmosfera de oração, de pobreza, de ascetismo. A vida em
O claustro que abarca a vida cisterciense está isolado no meio comum purifica todos os egoísmos, convida à humildade e à
da natureza, basta-se a si próprio, de maneira que o religioso caridade. É evidente que os conflitos não deixam de existir,
fica dispensado de procurar no exterior aquilo que «não tem
utilidade nenhuma para a sua alma» (R. 66). A igreja do mos-
teiro acolhe-o sete vezes por dia, segundo a palavra do 10 Guerrie dTgny, Sermons, I, Paris, Cerf, 1970, pp. 137-141.

188 189
o silêncio não é uma garantia de felicidade comum. Ali, onde os nas quais passam umas vinte horas por dia. Durante um dia
homens estão reunidos, mesmo na partilha da espiritualidade, inteiro, os cartuxos encontram-se por três vezes, na igreja con-
continua a haver tensõeslt. Mas a prova, escreve Merton (1953, ventual, para o prolongado ofício da noite, a missa da manhã e
130), está menos nos jejuns ou nas austeridades físicas do que no as vésperas da tarde. Uma vez por semana, têm uma refeição
confronto interior com a solidão e o silêncio, uma vez que nem em comum, no refeitório, mas sem conversas. Na parte da tarde
um nem outro desaparecem por si e, às vezes, é necessário o fazem um pequeno passeio nas cercanias da Cartuxa. O «espa-
sacrifício pessoal para os suportar. Um código gestual permite çamento» permite-lhes então falar dois a dois, mudando de
um entendimento sobre pequenas coisas, através da utilização companheiro todas as meias horas, mais ou menos, alturas em
de uma meia dúzia de sinais, embora estes sejam insuficientes que fazem confidências e se escutam mutuamente. O resto do
para a manutenção de uma conversa comum. Guilherme de tempo passam-no sozinhos nas suas celas a rezarem, traba-
Saint-Thierry (1085-1149) registou, noutros tempos, a sua lhando manualmente, lendo, escrevendo ou celebrando os dife-
emoção ao aproximar-se de Claraval: «Penetrando de seguida rentes ofícios previstos na regra. A vida cartusiana é uma
naquele vale abençoado, onde ninguém podia ficar ocioso, reclusão voluntária, que desnuda o homem perante Deus, no
via-se que ele estava cheio de uma multidão toda ocupada em longo silêncio da cela. A oração continua a liturgia exterior e
qualquer trabalho e o que causava espanto aos estranhos era o ajuda a atenuar as paixões, a procura da hesychia, da pura con-
encontrar, a meio do dia, um silêncio igual ao do meio da noite. templação na alegria do coração. À escuta de si, o silêncio está
O ouvido só se apercebia do ruído do trabalho e do canto de à escuta de Deus. «Quem não é solitário não pode ser silen-
hinos sagrados. A harmonia deste silêncio, no meio de uma cioso; quem não faz silêncio não é capaz de ouvir aquele que
actividade prodigiosa, era um espectáculo de tal forma impo- fala», escreve Guignes II, nono prior da Grande Cartuxa, morto
nente, de tal forma solene, que os estranhos, mesmo os mun- em 1188 (Davy, 1996, T2, 129). A vida comunitária é reduzida,
danos, tomados de respeito, não ousavam já nem digo proferir a correspondência escrita limitada. A família próxima tem
uma palavra feia ou ociosa, mas mesmo ter um pensamento que autorização para, uma vez por ano, fazer uma visita de dois
fosse menos sério e digno deste retiro santo. E, embora fossem dias. O cartuxo toma sozinho, pela manhã, a sua única refeição
em grande número, não deixavam de estar todos solitários» do dia. Se tem necessidade de um livro ou de outro objecto,
(Louf, 1980, 136-137). deixa um recado no postigo da sua cela. O rigor da sua solidão
Os cartuxos, cuja origem remonta à fundação
de Bruno, são é extremo, apaga-se em Deus, num espírito de humildade e
eremitas que vivem em comunidade. Ao entrar na ordem austeridade. A palavra não tem razão de existir num ambiente
renunciam ao mundo e perdem a sua antiga identidade, sendo- destes, inteiramente votado a afastar-se das preocupações da
-lhes atribuído um nome novo. No cemitério os seus túmulos vida profana. Um silêncio repleto de orações e de recolhimento
são anónimos. Fixam-se em lugares solitários e de difícil reina entre os muros da Cartuxa. «Aquilo que a solidão e o
acesso, principalmente em montanhas, onde o Inverno os isola silêncio do deserto trazem de útil e de fruição divina aos que os
durante longos meses. Próximos da regra de Bento, dividem amam, esses, só sabem aqueles que o experimentaram. Neles,
igualmente o seu tempo entre o trabalho manual, a liturgia e o com efeito, os homens fortes podem recolher-se tanto quanto
estudo. Por ficarem no interior do mosteiro, a sua existência desejarem, permanecer consigo mesmos, e alimentar-se gos-
quase que se passa completamente na solidão das suas celas, tosamente com os frutos do paraíso», escreve Bruno a Raoul le
Verd12,

11 No contexto da vida quotidiana de um ashram indiano, consultar Godman


(1997). 12 Lettres des premiers chartreux, Paris, Cerf, 1962, p. 71.

190 191
camaldulenses, fundada em 1012 por tica oferece um quadro, que varia segundo as ordens, em que o
A ordem dos
iva e religioso se entrega de corpo e alma a uma higiene espiritual
Romualdo, proporciona um refúgio para a vida contemplat
para um que satisfaz o seu voto de não voltar a ser sobrecarregado com
solitária. As celas dos eremitas camaldulenses não dão
os, estão afasta das uma coisas materiais e profanas, com o objectivo de se reconstruir
claustro comum, como as dos cartux
melho r preser - rigorosamente de acordo com o seu amor por Deus. Ela suprime
dezena de metros umas das outras, com o fim de
o homem velho para fazer nascer um homem novo, purificado
var a solidão de cada um. Para estes homens, nisto próximos das suas antigas ligações e dos hábitos vulgares da existência,
ao recolhi-
dos cartuxos, o silêncio interior, se é necessário
mundo ambien te, de agora dedicada ao diálogo incessante com Deus, no curso de
mento, tem também de ter o silêncio do
m- uma vida organizada nos seus mais pequenos pormenores, à
modo a que nada interfira com a prática da oração. À conte
volta da oração e regida por uma regra severa que não dá qual-
plação perfeita implica um aproximar do «deserto», o mergu-
quer espaço à fantasia individual.
lhar numa fervorosa solidão onde nada se interponha entre o
A vida monástica realiza uma imitação da vida de Cristo,
homem e Deus. O eremita camaldulense consagra os seus dias
na renúncia que o monge faz à sua vontade própria. Toda a
a uma adoração silenciosa, desligada de qualquer outra preo-
sua existência é uma ascese e uma longa oração que assume
cupação material. A ermida oferece as vantagens da vida
em comum sem prejudicar em nada a existência de eremita.
formas múltiplas de acordo com as actividades do dia, mas
que nunca acaba. A integridade do tempo é dada a Deus, aliás
O eremita vive sozinho a sua relação com o silêncio, prosse-
de acordo com o voto feito pelo monge, pelo sacrifício da sua
guindo a sua busca espiritual de uma união com Deus através
humanidade mais normal, o uso da fala. A sua humildade con-
da oração solitária, na austeridade da sua cela. A ligação à regra
siste na dissolução de si na permanência do diálogo com Deus.
de S. Bento recorda-lhe a sua condição de homem e incita-o em
se é É certo que os ofícios, as orações, o recolhimento, o silêncio,
tudo à moderação. Contudo, a seu pedido, o camaldulen
já não concedem de imediato a graça, predispõem apenas à
autorizado a entrar em reclusão, depois de uma experiência
seio da comun idade da ermida . união. O silêncio é um instrumento essencial da oração, os
bastante sofrida da solidão no
monges não são mudos. «A língua renuncia às palavras inúteis
A partir daí vive só na sua cela, sem voltar a sair, com excepção
ou perversas. O corpo abandona os actos ociosos ou prejudi-
de alguns dias do ano, nomeadamente nos três últimos dias da
o, o ciais. O coração purifica-se libertando-se dos pensamentos
Semana Santa. Durante todo o dia, cercado pelo silênci
salmos , celebr a as missas no supérfluos ou maus. Para que serve o tumulto da língua, se um
recluso consagra-se à oração, recita
tumulto de paixões provoca a tempestade nos actos e no
seu oratório privado.
espírito? O silêncio não é apenas negativo: é uma força cons-
A vida monástica repete-se da mesma forma em bastantes
trutiva em toda uma vida de orações», escreve Merton (1957,
lugares, apesar das diferenças de sensibilidade e de organiza-
168). Uma vez adquirido permite a caminhada pelo centro do
ção. É uma renúncia às paixões e aos bens da vida profana para
tumulto sem nunca mais voltar a ser incomodado. «No
aceder a uma comunhão mais perfeita com Deus. Apagando-se
de todas as posses, subordi- mundo, muitas coisas obscurecem a vista, perturbam o ouvido
na vida comum, desfazendo-se
ou o gosto», escreve João Crisóstomo. «E por isso que é pre-
nando a sua vontade à do abade, votando-se à oração e ao
uma ciso... fugir de toda a agitação ou procurar refúgio no deserto,
serviço de Deus e da sua comunidade, o monge ambiciona
lá, onde a calma é completa, a serenidade total, o barulho nulo,
riqueza espiritual mais alta. Vota a integridade da sua existên-
lá, onde os olhos estão fixados apenas em Deus e os ouvidos
cia à obra de Deus. Raramente deixa os lugares do seu recolhi-
espiritual e permanece anos, mesmo a sua existência atentos à escuta apenas das palavras divinas. Os ouvidos
mento
os deleitam-se a escutar a sinfonia do Espírito, cujo poder sobre a
inteira, sem conhecer a aldeia ao lado, por vezes sem ler
monás - alma é tão forte que aquele que foi uma vez tocado por essa
jornais, indiferente às turbulências do mundo. A vida

192 193
música nunca mais pode preferir a ela nem repastos, nem
A IGREJA DO ORIENTE
bebidas, nem sono. A partir daí nem o ruído das coisas do
mundo, nem as multidões, conseguem distrair esta atenção... A Igreja do Oriente dá o mesmo papel fundamental ao silên-
Do mesmo modo que aqueles que subiram aos cumes das cio, no encaminhamento da alma em direcção a Deus, faz da
montanhas não ouvem aquilo que se passa nas cidades... mais oração íntima, do coração, o hesicasmo, a via privilegiada.
do que um barulho insignificante e desagradável que parece Originalmente, os Pais do deserto, sujeitos às mil tentações de
um zumbido de vespas»!3, Satã, vítimas de uma luta terrível contra as paixões corporais,
A capacidade de se abstrair do mundo, através da paz não têm outro recurso que não seja a oração: «Rezar sem cessar»
interior, não é válida apenas para os monges. O mosteiro faz (I Thess., V-17). Através da sua oração incansável, o monge man-
muitas vezes lembrar a imagem de um enclave de paz, cujas tém-se em contacto com Deus e repudia as armadilhas que, sem
portas se fecham à algazarra do mundo. Muitos séculos depois, parar, o demónio lhe prepara. É assim que forja o seu carácter e
a observação de Guilherme de Saint-Thierry sobre o espanto fortalece a sua fé. Mas o eremita tem de provocar o vazio dentro
dos seculares espantados com a sua disciplina do silêncio e pela de si, criar um silêncio propício à espiritualidade: «Esforça-te por
interioridade que ela manifesta, continua válida, não apenas fazer da tua inteligência, nas alturas da oração, surda e muda, e
em Claraval mas nos outros mosteiros, onde o visitante é assim poderás rezar», escreve Évagre le Pontique (Petite philo-
imediatamente colhido pela densidade de um silêncio que não calie, 39). Os eremitas, ou os monges do Oriente cristão, man-
é apenas a consequência do aspecto do sítio, mas uma parte têm-se em conversa permanente com Deus, graças à oração. Éva-
integrante da sua matéria. O recolhimento é um dado tangível gre provém de uma tradição neoplatónica para a qual o corpo é
que emana dos muros, que incita a baixar a voz e a uma lin- um entrave e a oração um modo de contactar com Deus que con-
guagem mais comedida do que o habitual. torna o obstáculo. Para o seu mestre Macário, o homem é uma
A austeridade não está necessariamente associada com a criatura corporal que o dualismo não divide. A oração constante
melancolia ou as coisas sérias, a alegria está muitas vezes pre- não tem o objectivo de libertar o espírito das suas raízes corpo-
sente nos mosteiros, misturada com o silêncio. «Recordo-me do rais, porque o homem, feito à imagem de Deus, é um ser de
que foi um dos meus primeiros motivos de espanto no passado, carne. Esta é uma via desenhada no homem para o levar a Deus.
no decorrer de leituras públicas ou de conferências, se ouvíamos Para a mística hesicasta, para Gregório Palamas, por exemplo, o
algo de divertido, então, por cima dos capuzes de oitenta mon- corpo, o espírito e a alma misturam-se, e apenas o pecado pode
ges sentados lado a lado passava e propagava-se um riso abso- romper essa aliança (Meyendorff, 1959). Segundo Macário, para
lutamente silencioso. Este facto, que em si não tem importância, os místicos do Oriente, o corpo não é um peso da alma; o Cristo,
produziu em mim uma impressão extraodinária»!4. O silêncio pela sua incarnação, voltou a estabelecer a unidade humana e a
em si e no exterior é uma pedra angular de toda a vida monás- carne transformou-se em «templo do Espírito Santo». Deus está
tica, sem ele nada se faria sem entraves: é ao mesmo tempo uma no seio do homem e não para além dele. A oração do coração,
disciplina e um caminho em direcção a Deus. Mas, nas dife- incansavelmente repetida, espevita a luz interior do monte Tabor
rentes formas da tradição cristã, o silêncio nunca é mais do que que os apóstolos só conseguiam ver do exterior antes da morte
um meio. e ressurreição de Cristo. «O hesicasta é aquele que aspira a
circunscrever o incorporal num receptáculo de carne», escreve
13 João Crisóstomo, Deuxiême sermon à Stélechios sur sa componction, Patrologie Jean Climaque... «Fechai a porta da vossa cela ao vosso corpo, a
Grecque 47, p. 411. porta dos vossos lábios às palavras, a porta interior aos espíri-
14 Cf. P. «Jérome, Saint Benoit à nouveau suívi«, in L'art d'être disciple, Paris, tos... A solidão é um culto e um serviço sem interrupções» (Petite
Fayard, 1988, p. 106.
philocalie, 88-89). «Mais do que qualquer outra coisa, ama o silêncio.

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Ele traz um fruto que a língua é impotente para descrever. mundo que há-de vir; a palavra é o órgão do mundo presente...
Antes de tudo, somos nós que nos obrigamos a ficar calados. Através do seu silêncio contínuo e do seu jejum, o homem
Depois, a partir do nosso próprio silêncio, nasce em nós algo que percebe que, nesse estado acabrunhado, fica permanentemente
nos atrai para o silêncio. Que Deus te dê o sentimento desse algo ocupado no serviço de Deus. Por estes mistérios, por estas
que nasce do silêncio. Se te entregares a esta prática, não sei virtudes invisíveis, cumpre-se o serviço do Ser que governa
quanta Luz surgirá em ti em consequência», escreve Isaac de o mundo», escreve Isaac de Nínive (Miquel, 1981, 839). Se o
Nínive. A «oração de Jesus» é uma oração de que o coração é o homem que reza conquista a impassibilidade, fazendo desa-
fermento. Utiliza uma técnica do corpo e da respiração e implica parecer todas as preocupações materiais ou morais, mistura-se
a persistência do silêncio, porque nada deve perturbar o homem com a oração que sobe a Deus. Para o homem que atingiu uma
em oração, com todo o seu ser voltado para Deus. tal perfeição em desligar-se das coisas do mundo, o próprio
A imagem do Cristo, assim evocada, não é um símbolo, aos silêncio é uma oração.
olhos da tradição ortodoxa, é a sua própria presença, na forma O hesicasmo assenta numa mística do coração: «O coração,
de uma teofania luminosa que renova, em si mesma, a do monte com efeito, é dono e senhor de toda a organização corpórea e,
Tabor. Aparição divina no âmago de si mesma, de uma carne quando a graça toma conta das pastagens do coração, reina
transformada no ponto sensível da graça. A oração de Jesus, sobre todos os membros e todos os pensamentos; porque é ali
associada a uma experiência da virtude e da fé, restaura o «espí- que está a inteligência, que estão todos os pensamentos da alma
rito no coração», graças a um método respiratório, é o cadinho e é dali que ela espera o bem. Por essa razão, a graça penetra
que proporciona a metamorfose espiritual de um homem cuja em todos os membros do corpo», escreve Macário (Meyendorff,
carne não esconde qualquer degradação e que, ao invés, permite 1959, 28). A iluminação espiritual, através do silêncio e da
esperar por Deus. «É conveniente procurar o silêncio de espí- oração perpétua, é o objectivo procurado pelo crente. Em 1782,
rito», resume Nil de la Sora «evitar todos os pensamentos, Macário, bispo de Coríntio e Nicomédio, o Hagiorita, um monge
mesmo aqueles que parecem lícitos, fixar constantemente as do monte Athos, publicam uma colectânea de textos patrísti-
profundezas do coração e dizer: “Senhor Jesus Cristo, Filho de cos sobre a oração de Jesus, a Philocalie, que proporciona uma
Deus, tende piedade de mim”... Recitando cuidadosamente esta vasta audiência aos textos místicos de Evagre, de Macário, de
oração permanecerás de pé, ou sentado, ou mesmo deitado, Nicéphore e de outros espirituais dos desertos do Egipto, desde
retendo a respiração, na medida do possível, com o fim de não o século Iv até aos monges do monte Athos, do século xv. Esta
respirar muito... Invocar o Senhor Jesus Cristo com um desejo obra está, portanto, na origem da preferência do hesicasmo na
fervente e com paciente expectativa, abandonando todos os Rússia e nos países em que a religião ortodoxa existe. Em 1860,
pensamentos» (Meyendorff, 1959, 158). A hesychia é um estado Les récits d'un pelerin russe testemunham o empenho popular na
de solidão e de repouso, de silêncio dos pensamentos e dos oração perpétua. O autor, desconhecido, apresenta-se como
movimentos do corpo, de paz ao redor de si, de modo a que sendo um camponês russo, que procura, pelos caminhos, saber
nenhum obstáculo estorve a contemplação. Importa, antes de coisas sobre a oração do coração. Esforça-se por rezar continua-
mais, defender-se do mundo e relaxar o corpo, calar no mais mente, enquanto caminha, enquanto trabalha, quando está
profundo do ser, abandonar-se a uma respiração regular e acordado, mas também quando dorme. O peregrino conta assim
deixar a alma cismar na oração!º. «O silêncio é o mistério do a sua felicidade de acordar de manhã já com uma oração nos
lábios. Alojado uma vez em casa de uma família ortodoxa,
15 À criação dentro de si, de um silêncio do pensamento e do corpo, através
da repetição infinita de uma mesma fórmula, faz lembrar o dhikr da
Alá (infra) (Gardet, 1952, p. 642 segs.) ou ainda o método de ioga do japa
tradição muçulmana, a invocação, «com o coração ou a fala» do nome de
(M. Eliade, Le Yoga. Immortalité et liberté, Paris, Payot, 1954, p. 72 segs.)

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piedosa mas indiscreta, «sem tranquilidade nem silêncio», mais ainda para o místico, Deus está para além das palavras ou
pensa nos seus exercícios espirituais e sente «uma fome de do pensamento, não é à medida do homem, e qualquer palavra
orações». «Compreendi então», escreve «por que razão os verda- a seu propósito reduz-lhe a dimensão. Tudo o que se diga sobre
deiros adeptos da oração perpétua fogem do mundo e se Deus é uma redução à escala humana de um infinito que é
escondem longe de todos; compreendi também por que razão o familiar. O silêncio torna-se então a maneira menos desajeitada
bem-aventurado Hésychius diz que a conversa mais elevada de preservar a imensidão do sentido. «O acto de silêncio está no
não passa de uma tagarelice, quando se prolonga por muito início do nosso conhecimento de Deus», escreve J. Rassam (1988,
tempo, e recordei as palavras de Santo Efrém, o Sírio: «um 112). A emoção que faz a experiência do místico é uma renúncia
bom discurso é de prata, mas o silêncio é de ouro puro» (p. 140). à palavra, é provocada por um excesso de sentido, por uma
Para o hesicasta é importante calar-se, abandonar-se a uma hemorragia interior de fé e de amor, cujo extravasar deixa a
respiração regular, relaxar o corpo e cismar nas suas orações, língua inferiorizada. O arrancar-se a si mesmo torna irrisórios
mas, sem o silêncio do coração e condições exteriores favo- os meios humanos usuais para descrever o poder do aconteci-
ráveis, não consegue rezar. A hésychia está no centro da espiri- mento. A loquacidade de que fazem prova os místicos não está
tualidade monástica oriental, é a tendência de todos os monges. em contradição com a sua afirmação de que só o silêncio tem a
Dom Lialine, contudo, sugere que um solitário chega lá mais última palavra da experiência pessoal de Deus. A palavra
perto do que outro monge. «Mais alto do que a condição monás- suprime a distância, é a tentativa, por fazer apelo ao sentido, de
tica comum, está a hésychia, que é a sua coroação... O hesicasta reconstruir indefinidamente a ligação com o mundo, mas acaba
é o cristão feito oração, é o monge tornado caridade» por ficar aquém, suficiente para assegurar a comunicação com
(Hauscherr, 1961, 400; Leclercg, 1963). Os monges do monte os outros, mas insuficiente para satisfazer a plenitude do
Athos vivem com o mínimo de palavras que deixam a alma sentimento. Deus deixa de ser um objecto puro de fé, é sentido,
disponível para a oração. «Ê o silêncio», escreve Hiérothée tocado, as faculdades da alma transformam-se repentinamente,
Vlachos «que, especialmente sobre a Montanha santa, é o dis- às vezes, para dar corpo ao impalpável, mas não conseguem
curso mais eloquente, uma “exortação silenciosa”. Ali não falam resolver a questão lancinante da linguagem.
muito, mas vivem, “em silêncio”, os mistérios de Deus... É em O silêncio habitado pelo sentimento da presença de Deus
silêncio que escutam a voz de Deus e que adquirem a virtude» é inefável, afirma Jankélévitch; o que opõe o homem à morte é
(Vlachos, 1988, 23). O ícone é também um substituto do silêncio: indizível, não há palavra que chegue aos lábios. «O inefável
«Quando os Pais sentem a impotência das palavras, aconselham é inexprimível por não termos palavras que possam exprimir ou
a veneração do mistério através do silêncio. É justamente o caso definir um mistério tão rico, porque haveria infinitamente que
do ícone. O ícone de um santo nada diz sobre a sua anatomia, dizer a seu respeito, imensamente a sugerir, interminavelmente
não nos dá qualquer pormenor histórico, biográfico ou socio- a contar... O inefável é inexprimível pelo facto de ser exprimí-
lógico. Deixa-nos ver a projecção de um homem para além da vel até ao infinito... A poesia ou criação, que suscita em nós a
história» (Evdokimov, 1964, 107). inspiração do inefável, é promessa apaixonante de um futuro
de poemas e meditações» (Jankélévitch, 1977, 83-84). O inefá-
vel dá livre curso ao infinito de uma fala que não pode deixar
MÍSTICOS de prosseguir no seu testemunho. Incansavelmente, trata-se de
falar sobre a impossibilidade de dizer, de nos entregarmos com
«Deus, blasfemo, se O nomeio», diz Angêle de Foligno, emoção e júbilo a uma torrente de palavras e de perífrases que
destacando a insuficiência da palavra para chegar ao fervor reli- nomeiem a imensidão divina, para patentear uma radiosa
gioso que atinge o seu ponto de incandescência. Para o crente, e impotência pessoal, um amor transbordante que queima as

198 199
palavras e deixa sem voz, apesar da abundância dos adjectivos. a sensação de ter preenchido, o silêncio, deixando então a fala
Mas é preciso comentar, sem demora, a ausência de voz, o fogo em suspenso, é o sítio onde a transparência tem o vagar de se
da queimadura, o apelo ao silêncio para não trair Deus. Em instalar. Face à turbulência ou ardor que sente, o recurso ao
relação à exigência de se calar, o místico é inesgotável. Perante silêncio restaura a unidade de si próprio. Mas, se for necessário
Deus, a língua solta-se e atinge cumes de eloquência para deixar descrevê-lo, apesar de tudo, convém então inventar uma forma
escapar à volta de uma frase, depressa esquecida, que final- de narração que lhe dê a parte do fogo. «Há uma espécie de
mente nada vale mais do que o silêncio para não encerrar a sua silêncio que nasce da desproporção entre a insignificância das
relação íntima com Deus num significado demasiado restritivo. palavras e o excesso do seu significado. Vimos, então, as
A mística alimenta-se de silêncio, é um murmúrio da palavras mudarem pouco a pouco de sentido e acabar por desa-
palavra, o resto de uma linguagem parcialmente dissolvida na parecerem completamente» (Lavelle, 1942, 143). Para Michel de
iluminação ou.no sentimento fascinado da presença de Deus. Certeau, «A frase mística é um artefacto do silêncio. Produz
O místico é inundado pela graça e a sua palavra voa sob a sua silêncio no rumor das palavras» (De Certeau, 1982, 208). O mís-
pena para contar o inefável da sua experiência, sem dúvida tico é confrontado com a dolorosa inadequação entre a sua
inconcebível, mas que continua a penetrar na alma da sua bea- linguagem urdida na carne e um Deus que transcende todas as
titude. O testemunho é um dilúvio de palavras, embora categorias de pensamento. Não se convence a ficar calado.
apoiadas no silêncio, emanação paradoxal de um não dizer que
desequilibra majestosamente a inanidade do dizer, mas pelo
meio inelutável da linguagem. Traduzir Deus em palavras deixa REFERÊNCIAS DE SILÊNCIO
ficar o essencial fora do discurso, mas sem completamente NA TRADIÇÃO CRISTÃ
libertar o místico dos meios humanos que ele persiste em uti-
lizar para dizer aquilo que sente. A retórica mística deixa passar Em Parménides, Platão já sublinha as limitações da lin-
uma impotência que é, aos seus olhos, a melhor prova da pro- guagem para descrever o Uno: «Não existe, portanto, qualquer
fundidade do sentimento, desenha uma «apologia do “imper- nome para o designar e não o podemos definir, nem o conhecer,
feito”» (De Certeau, 1982, 201). Porém a falta de jeito é criadora, nem o sentir, nem o avaliar» (142a). Perante a imensidade do
marcando os efeitos da dissolução da língua pela proximidade Ser o homem cala-se. Platão põe de parte o sentido comum
do divino, que arranca ao homem os utensílios normais da fundamentado na linguagem e nas sensações, encurralado no
comunicação. A escritura mística é confrontada com o paradoxo peso do corpo. A intuição do mundo das Ideias é o único
de ter de se exprimir sem o conseguir e, desse modo, manter-se conhecimento válido, prova de um universo imutável. O apego
sobre o fio da navalha de uma impossibilidade de dar teste- terrestre ao corpo é um obstáculo à apreensão conceptual das
munho, sem deixar, contudo, de atestar a experiência real. Daí Essências. Proclo, nos seus comentários sobre esta obra, chegou
as palavras novas, que se rebelam contra as estruturas da à conclusão que Platão deixou a última palavra ao silêncio:
língua, as perífrases, as metáforas, etc., mas sobretudo o silêncio Silentio conclusit. Porfírio cita um taumaturgo do final do
tantas vezes invocado pelo místico que, desta forma, realiza século 1 para quem o culto de Deus só se pode efectuar pelo
o compromisso delicado entre a abundância da experiência silêncio. «Ao Deus supremo... não oferecemos nada do que é
e o sentimento da indigência daquilo que se diz. sensível, nem em holocausto, nem em palavras. Com efeito,
A evocação longamente comentada do silêncio é uma nada de material existe que para o ser imaterial não seja ime-
maneira elegante de não ceder completamente à impotência. Se diatamente impuro. Por isso, a linguagem de voz também não é
as palavras são as servidoras de uma interpretação dispersa e apropriada, nem mesmo a linguagem interior quando estiver
desajeitada, mantendo uma distância que o indivíduo tem agora impregnada pela paixão da alma. A nossa única homenagem é

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um silêncio puro e rodeado de pensamentos puros. Temos de único conhecimento verdadeiro. Pela comoção, o homem mer-
nos unir com Deus, de nos tornarmos parecidos com Ele e gulha no Uno de onde nasceu o mundo, graças a uma série de
oferecer-Lhe a nossa própria elevação como um sacrifício sa- cristalizações. É então solicitado a renunciar às diversas formas
grado, porque ela é simultaneamente o nosso hino e a nossa sal- do testemunho. A memória, as acções, o discurso, são apenas
vação» (Miquel, 1981, 831). A linha neoplatónica abunda em um balbuciar face à Unidade pressentida, perdem-se na insig-
filósofos perseguidos pela dualidade dos mundos humano e nificância. No fim de uma purificação moral e de um esforço de
celeste, e pela dificuldade de atingir a unidade aqui em baixo. interioridade, o êxtase suprime a dualidade entre o sujeito e o
Fílon faz uma junção entre o pensamento grego e judaico. Pelo objecto do conhecimento. O inefável traduz a pura alegria da
espírito considera que o homem existe à semelhança de Deus, União. Plotino fez essa experiência, várias vezes, na sua existên-
mas, pelo corpo, prende-se na dualidade. Numa perspectiva cial”, «Estamos unidos com o Deus presente no silêncio», diz
platónica, Fílon associa Deus à Ideia suprema, de onde emanam Plotino (Miquel, 1981, 831). Porfírio, discípulo de Plotino,
o sensível e o inteligível. O conhecimento de Deus não tem a ver reconhece-se nestes propósitos e acrescenta: «O sábio, mesmo
com conceitos, mas com a união com Ele, no êxtase. Fílon re- quando está em silêncio, honra a Deus.»
corda o episódio de Moisés no monte Sinai, chamando por O cristianismo dá uma forma doutrinal ao Uno de Plotino e
Deus, para O ver. Ele responde, mas cobrindo Moisés com a Sua continua a servir-se dele. Dinis, o Areopagita, enuncia o teste-
mão, quando veio envolvido em nuvens, permanece fora de munho inaugural que passou a ser uma inesgotável posteridade
alcance. Deus está ali, mas não é visto; a inteligência não tem desta aliança com o neoplatonismo. O êxtase plotiniano trans-
poder e deve resignar-se ao abandono de todo o saber positivo; forma-se no contacto com a nova religião, torna-se na procura
a alma deve seguir o caminho das Trevas, porque a tran- apaixonada do homem que se esforça, pela ascese, a reunir-se
scendência divina é incomensurável para ser compreendida por com Deus, graças ao trabalho em relação à alma. As obras de
meios humanos. O místico é como Moisés, atingindo uma con- Dinis exerceram uma influência considerável na mística cristã e
templação de Deus sem poder falar dela, banhado numa nuvem principalmente sobre Mestre Eckhart e João da Cruz18, Nas suas
de desconhecimento. Dividido entre a acção e a contemplação Hiérarchies Célestes, Dinis demarca um caminho bem conhecido
na sua juventude, Fílon vai para o deserto à procura de uma da mística cristã: primeiro a purificação, depois a iluminação e,
purificação dos sentidos e da alma, com o fim de se aproximar finalmente, a perfeição. Primeiro, o fiel é conduzido pela oração
de Deus através da disciplina do silêncio e da meditação. Mais a libertar-se de tudo o que não seja Deus, a despojar-se daquilo
comprometido com a vida política do seu tempo, fala da sua que não é essencial e entrava a sua caminhada em direcção àz
nostalgia da existência retirada dos essénios ou dos terapeutas, interioridade. Então, a sua visão do mundo transforma-se, é
votados apenas à contemplação. Estes últimos, dos quais des-
creve o modo de vida na sua Vita Contemplativa, formam,
segundo Eusébio de Cesareia, o modelo da primeira comu- 17 Plotino fala dos momentos em que desperta desligado do seu corpo, imer-
so numa beleza majestosa. «Identifico-me com o Divino», escreve «nele
nidade cristãl6. tenho a minha morada: chegado a essa actividade suprema, é ali que me
Para Plotino, a essência dé um ser individual encerra no seu fixo; transcendo qualquer outra realidade espiritual; mas, após este
seio uma parcela do Uno do qual é uma manifestação. A hierar- repouso no Divino, voltando a cair por intuição na reflexão e no raciocínio,
quia dos seres depende da profundidade de alma que os carac- pergunto-me como foi possível, e mais uma vez agora, descer desta
teriza. Plotino faz do afastamento de si, na intuição de Deus, o maneira, como é que a minha alma pôde vir para o interior de um corpo se
já, quando está num corpo, me apareceu desta forma» (Ennéades, texto
fixado e traduzido por E. Bréhier, Paris, 1938, T. IV,8,1, 1).
16 A. Guillaumont, Philon et les origines du monachisme, in Philon d' Alexandrie, 18 Sobre este ponto: «Denys I'Aéropagyte», em Dictionnaire de spiritualité ascé-
Lyon, CNRS, 1967, p. 333. tique et mystique, T. 3, Paris, 1954, p. 244 segs.

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tomado pela iluminação, está no caminho, tornado já num podemos aproximar de Deus por uma série infinita de negações
outro, sentindo a seu lado a presença de Deus, com cada e pelo uso frequente da metáfora e do silêncio.
objecto, cada acontecimento transfigurados. Em breve chega ao As «Escolas» místicas são numerosas e, ainda mais, a especi-
fim: a semelhança e a união com Deus. Como falar da contem- ficidade dos homens e das mulheres que mantêm com Deus
plação divina? Há dois caminhos: uma via positiva de teste- uma relação privilegiada, que levanta a questão do silêncio, nas
munho, em que se podem nomear, com precisão, os atributos de suas diferentes formas. Vamos limitar-nos a fixar aqui algumas
Deus, mas que fica muito aquém da segunda, em que Deus só referências na imensidade do continente religioso. No século xII,
se apresenta através de uma série de negações. «Vamos agora as beguinas flamengas e renanas conhecem um florescimento
penetrar na Treva que está para lá do inteligível, nem sequer se místico. A abolição do Eu no inefável da Essência Divina ou a
trata de concisão, mas antes de um cessar total da palavra e do mística nupcial dos esponsais com Deus, estão no centro das
pensamento. Onde o nosso discurso descia do superior ao infe- conversas. Entre as mulheres, Hadewijck d'Anvers. Observa
rior, à medida que se afastava das alturas, o seu volume crescia. num poema: «Mergulhada na nesciência, para além de qualquer
Agora que subimos do inferior para o transcendente, à medida sentimento, devo ficar em silêncio e ficar onde estou. Como
em que nos aproximamos do cume, o volume das nossas num deserto, a que nem palavras nem pensamentos con-
palavras contrai-se; no final da ascensão estaremos totalmente seguem chegar. É nesta simplicidade densa e selvagem que
mudos e plenamente unidos ao Inefável» (Diniss, 1943, 182). habitam, na unidade, os pobres de espírito. Não encontram
O místico atinge o cúmulo da ignorância, mas uma tal pene- nada lá, além do silêncio livre, que corresponde sempre à
tração marca o dissipar de todas as distâncias e a alegria pura da eternidade» (Poême Il. Poderíamos acrescentar outros teste-
aliança. É aí que se revela «a Treva mais que luminosa do Silên- munhos ao de Hadewijck. Algures, na região de Assis, uns vinte
cio: é no Silêncio, com efeito, que aprendemos os segredos dessa anos depois da morte de Francisco, nasce Angelo de Foligno,
Treva de que o menos que se pode dizer é que brilha, com a luz que conta os seus êxtases ao seu director de consciência, frei
esplendorosa no seio da mais negra obscuridadee que, conti- Arnaud, embora sempre com a sensação permanente de blas-
nuando a ser completamente intangível e perfeitamente invisí- fémia, porque tudo que diz lhe parece diminuir o conteúdo da
vel, enche de esplendores mais belos que a beleza as inteligên- sua experiência. O tema do inefável reaparece muitas vezes nas
cias que sabem fechar os olhos... E abandonando tudo e a ti suas palavras. «As intervenções divinas que se operavam na
próprio, de forma irresistível e perfeita, que tu te elevas, em minha alma eram demasiado inefáveis para serem descritas por
êxtase puro, até ao raio tenebroso da última essência divina, qualquer santo ou anjo. À divindade destas operações e a pro-
tendo abandonado tudo e estando despojado de tudo» (Dinis, fundidade do seu abismo esmagam a capacidade e a inteligên-
1943, 177-178). A União é portanto realizada no mistério, porque cia de qualquer alma e de qualquer criatura. Se falo delas, as
o entendimento humano não tem inteligência suficiente para minhas palavras têm sobre mim o efeito de uma blasfémia»!9.
abarcar Deus com palavras. A imagem foi retirada do episódio A mística renana, por sua vez, insiste no silêncio para o rela-
da subida de Moisés ao monte Sinai, descrita no Éxodo (24, cionamento com Deus. Eckhart é um dominicano, influenciado
12-18). Deixa atrás de si o povo, na base da montanha e chega ao pela sua ordem, mas também pelo neoplatonismo e principal-
cume, onde é envolvido por uma nuvem: a Treva. Para Dinis, mente por Dinis. Eckhart caminha para Deus seguindo o
-esta representa a «mística do desconhecimento» (p. 179), em que caminho de Cristo, mas sem parar, e consegue chegar à afir-
todo o saber deixa de existir em contacto com ela e cede à
transcendência do encontro com o divino. Em a «Treva mais
luminosa que o silêncio» o homem confunde-se com Deus. 19 Angelo de Foligno, Visions et instructions, Stein Am Rhein, Christiana, 1976,
p.73.
Dinis abre a via fecunda da teologia apofântica, pela qual só nos

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mação de uma não-dualidade que lhe causará alguns problemas para ele, não como um dom ou um proveito, mas na pura
com a ortodoxia. Deus está para além do conhecimento, é infini- Essência que Deus é em Si mesmo»22, Mas a transfiguração no
to, informulável. O mundo é uma emanação sua. Há portanto Todo Outro separa-se definitivamente da palavra, é um regres-
uma parcela de divino em todas as criaturas. O retorno a so ao silêncio. «Em silêncio, quer dizer: no fundo simples, no
Deus, retomando a via da alma, faz-se pelo abandono do sen- deserto silencioso onde já não há diferença, nem Pai, nem Filho,
sível, daquilo que faz parte da vida material, mas também da nem Espírito Santo, no recanto mais íntimo, onde não mora
vida espiritual que, em si mesma, não é suficiente, apesar da ninguém» (Dupuy, 1981, 846).
vontade de conhecer, da oração ou dos sacramentos. O homem Tauler e Suso acrescentam o pensamento do seu mestre.
procura Deus em si mesmo, «Estive ontem num lugar onde pro- Sobretudo o primeiro, que insiste, em várias ocasiões, na
nunciei uma frase que, na verdade, parece incrível; disse: necessidade que o crente tem de criar o silêncio interior para
Jerusalém está tão perto da minha alma como o lugar onde me poder receber Deus. Na união mística, escreve Tauler, «o
encontro agora. Sim, na verdade, aquilo que está a mais de mil espírito é transportado para cima de todos os poderes, numa
léguas longe de Jerusalém está tão perto da minha alma como o espécie de vasta solidão. É a misteriosa treva onde se esconde
meu corpo»20, A expansão da alma chega ao êxtase, onde então o Deus sem limites. Somos admitidos e absorvidos por algo de
se perde em Deus, juntando-se às três pessoas divinas. Assim uno, de simples, de divino, de ilimitado, de tal forma que,
como está no pensamento, o homem está na separação, no falar segundo parece, já não nos conseguimos distinguir»23. Na sua
sobre Deus. Se não estiver em silêncio permanece na dualidade, Cantate de la nudité, pede ao pensamento que se mantenha de
não está fundido em Deus. «Deus não tem nome, porque fora: «Foi assim que eu perdi tudo aquilo que tinha. Fiquei
ninguém é capaz de falar Dele nem de O compreender... Se digo reduzido a nada. Quem se descartou de tudo... já não pode ter
Deus é bom, não é verdade. Eu sou bom, Deus não é bom... preocupações... Foi preciso esvaziar-me de mim mesmo...
A este respeito, diz Santo Agostinho: “Aquilo que de mais belo Desde que me perdi neste abismo, deixei de falar, fiquei mudo.
o homem pode dizer sobre Deus, é que saiba estar calado pe- Sim, a divindade absorveu-me.» O homem constrangido à dis-
rante a sabedoria da riqueza interior (divina).” Por isso dizemos ciplina do silêncio e da oração deixa que a palavra de Deus o
cala-te e não digas mal de Deus, porque se o fizeres, mentes e impregne. «Então, o Verbo desse nascimento poderá falar em
cometes pecado... Também não deves (querer) compreender ti e ser escutado em ti, mas se quiseres falar, certamente que ele
nada sobre Deus, porque Deus está para além de qualquer terá de ficar em silêncio. Só é possível servir bem o Verbo
entendimento. Um mestre afirma: “Se eu tivesse um Deus que calando e escutando. Se saíres inteiramente de ti, Deus entrará
conseguisse compreender, nunca o consideraria deus.” Se com- completamente, sem qualquer dúvida, nem mais nem menos,
preenderes o que seja de Deus, não é nada disso e, pelo facto de porque tanto quanto tu sais, entra ele» (citado in Ancelet-
compreenderes seja o que for Dele, acabas por cair na incom- -Hustache, 1978, 150). Suso recomenda aos fiéis que «ponham
preensão»2!. Para além de Deus ainda está o Ur-grund, o Todo um cadeado na boca... Habitua-te a nunca a abrires a não ser
Outro. «A suprema renúncia, para o homem, é o renunciar a que tenhas um motivo necessário e útil». A mística renana está
Deus por amor de Deus. Ora São Paulo renuncia a Deus por sedenta de silêncio, acha que, para que Deus fale, os homens
amor de Deus: abandona tudo aquilo que podia receber de Deus têm de se calar e manter-se em posição de escuta, de recolhi-
e tudo aquilo que Deus lhe poderia dar... E Deus ficará então mento.

20 Mestre Eckhart, Sermons, T. 2, Paris, Seuil, 1979, p. 77 (apresentação e 22 Mestre Eckhart, Traités et sermons, Paris, Aubier, 1942, p. 177 (tradução de
tradução de Jeanne Ancelet-Hustache). M. de Gandillac).
21 Mestre Eckhart, op. cit., T. 3, p. 152. 23 Centuries sur la charité, 1, 10.

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Bastante mais tarde, Angelus Silesius é outro exemplo interior, para poder dar livre curso ao fervor. Teresa de Ávila
importante da teologia negativa, que encontra no silêncio uma e João da Cruz são as figuras dominantes da mística do seu
via privilegiada do diálogo com Deus. O encontro da alma com tempo, encarnam nela uma espécie de idade de ouro e de
o divino elimina, segundo ele, todo o conhecimento, em bene- ponto final. Teresa, nascida em 1515, é a reformadora do Carmelo.
fício do amor. «Quanto mais conheças Deus, tanto mais ficarás Le Château intérieur descreve, de facto, a sua experiência pessoal
a saber que és incapaz de lhe atribuir um nome.» Em primeiro de progresso em direcção à interioridade. A alma está aí com-
lugar, o homem destaca-se de si próprio, renuncia a toda a inte- parada a um castelo, dividido em sete salas, correspondentes
rioridade. A oração silenciosa traça o encaminhamento espiri- aos sete patamares de oração que levam a alma ao casamento
tual. «Deus excede tudo, a ponto que não saberíamos falar. espiritual, ou seja, à perfeita união mística. A oração, para
Nada mais vale, para O adorar, do que o silêncio» ou ainda: Teresa, é essencial. A primeira sala do castelo é a da oração da
«É através do silêncio que ouvimos. A palavra tem mais valor meditação, exercício dos novatos: é acompanhada por senti-
em ti do que noutras bocas; se por ela te calares, imediata- mentos de paz, de alegria, exigindo, por vezes, um esforço
mente ouves»24. A oração proferida na linguagem de Deus de concentração, de apreensão de uma situação ainda invulgar.
é silenciosa e recolhida. «Pobre homem, que pensas que o A oração de quietude prescinde da inteligência: «o entendi-
grito da tua boca é o bom louvor da divindade silenciosa» mento cessa de discorrer quando está inteiramente ocupado em
(Laporte, 1975, 19). usufruir Deus». A alma mergulha no silêncio, repousa em Deus.
Os textos místicos abundam na Espanha do século xv, vão Este estado não exclui dúvidas: quando é experimentado, o mís-
ao encontro da filiação de Dinis na sua afirmação da impossi- tico sabe que está na órbita de Deus, mas não deixa de acontecer
bilidade de atingir o conhecimento de Deus, sendo apenas a fé, que se interrogue sobre a natureza de tal experiência. A oração
na sua humildade e no seu amor, que pode claramente conduzir de união marca o afastamento das coisas do mundo e uma
a Ele. Osuna volta a dizer que a oração se define como «uma vigília mesmo no seio de Deus, sem mais dúvidas, mas não é
busca de Deus, no coração, por via negativa». O entendimento obtida para sempre, é uma graça. O êxtase é a última etapa, não
deve desfazer-se de toda a especulação e abandonar-se ao silên- diferindo da precedente a não ser pela intensidade e duração
cio, de acordo com as indicações da fé. Contudo, trata-se de dos seus efeitos. De imediato a linguagem é impossível, a alma
um silêncio suave, que se derrama na alma com a doçura do mantém-se em silêncio, usufrui de Deus. A oração, bem enten-
mel. De maneira diferente dos renanos, já não é um abismo, mas dido, não é, para Teresa, um momento do dia incluído num
«como que uma comunhão de pensamento com Deus, cuja plen- emprego de tempo, é uma conversa permanente com Deus.
itude torna as palavras inúteis» (Dupuy, 1981, 848). Forma de Obriga também a uma postura de silêncio exterior, para não
linguagem própria do divino e da qual o místico soube tornar- prejudicar a oração. A regra primitiva do Carmelo insistia na
se digno. Em Osuna, Laredo, Teresa ou João da Cruz, para só observância do silêncio na vida comunitária e chamava a
referir estes exemplos, o silêncio é quietude, júbilo doce, uma atenção contra todas as palavras inúteis. Teresa é especialmente
outra forma de entendimento. Em 1527, Osuna publica em rigorosa a este respeito: «Durante o tempo em que as monjas
Toledo um método de oração que vai profundamente marcar não estejam ocupadas em actos da comunidade, nem nos tra-
Teresa de Ávila. Os recogidos passam a ser o seu pão quoti- balhos da casa, que cada uma fique de lado, na sua cela ou na
diano. Esta oração pessoal consiste num recolhimento em ermida que a prioresa lhe tenha destinado.» Proíbe igualmente
si mesmo, com os sentidos fechados ao mundo, em silêncio a existência de uma sala comum que pudesse incitar as reli-
giosas a romper o silêncio. À vida em Deus é sobretudo con-
duzida através da oração mental e do ofício divino. A contem-
24 Angelus Silesius, La rose est sans pourquoi, Paris, Arfuyen, 1988, pp. 27 e 31. plação é filha do silêncio nascido da disciplina e do recolhimento.

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João da Cruz ficou profundamente marcado pelo seu encon- dar. A incapacidade interior, ou seja, a do sentimento interior da
tro com Teresa de Ávila. As suas obras fornecem uma des- imaginação, ao mesmo tempo que a incapacidade exterior ou
crição da ascensão progressiva do homem em direcção a da linguagem, também nos é transmitida por Moisés, quando se
Deus. A experiência mística é uma experiência de amor em Deus. encontra em presença da sarça ardente. Não apenas diz a Deus,
Abundam imagens platónicas em João da Cruz e, principal- que acabava de falar com ele, que já não sabia falar e que não era
mente, a do encaminhamento da alma para um Deus inefável, capaz mas, como dizem os Actos dos Apóstolos, já não ousava
através da dissolução do sensível e do pensamento. Na linha da mesmo olhá-lo interiormente com a ajuda da sua imagi-
teologia mística de Dinis, escreve: «Deus é incompreensível e nação»27, A mística da travessia da noite dos sentidos e da noite
está acima de tudo: é por isso que temos de caminhar até Ele do espírito chega ao inefável do encontro com a treva luminosa
pela negação»2º, Numa carta às carmelitas de Beas (22-11-1587), que dissipa qualquer palavra. Mas a falta de entendimento é um
faz igualmente notar que «a maior necessidade é a de obrigar a triunfo da fé, que apenas uma experiência semelhante está em
calar o apetite e a língua junto deste grande Deus, Ele, que só condições de receber.
escuta a linguagem do amor silencioso». O silêncio para estar à
escuta de Deus, para estar disponível à Sua presença, é essen-
cial: «É melhor aprender a calar os poderes e acostumá-los a MULTIPLICIDADE DOS SILÊNCIOS
calarem-se, para que Deus fale... O que acontece quando a alma
chega, em solidão e que Deus fala ao seu coração»26. A mística O silêncio é um fio condutor no vasto espaço da mística,
são-joanina está dominada pela impossibilidade de chegar a mesmo quando assume aspectos bem diferentes, de acordo com
Deus através de conceitos ou mesmo de sentimentos, prossegue as tradições religiosas. A análise das suas inúmeras formas, den-
em direcção à união de amor com Deus, tomando a noite dos tro das múltiplas espiritualidades, daria lugar a infindáveis
sentidos e do espírito. A alma, no seu avanço em direcção a exemplos que ultrapassariam o nosso objectivo. Teremos de nos
Deus, fica na impossibilidade de compreender, avança na contentar apenas em dar algumas indicações de pesquisa.
noche oscura. O mistério da transcendência de Deus é simboli- O islão professa a unidade e inacessibilidade de Deus a
zado por João da Cruz na montanha tenebrosa cujo cume é quaisquer meios humanos. Deus mantém-se estranho à inteli-
escalado pelo místico. Deus está lá no alto, cercado de nuvens, gência. Os místicos que entendem aproximar-se Dele por méto-
na obscuridade do nada. A noite é uma imagem do silêncio, dos particulares colocam-se à margem da ortodoxia. O próprio
do desaparecimento de tudo o que é materialmente sensível. profeta condena o ascetismo e dá o exemplo do casamento, o
O homem está despojado perante a majestade divina. «Quanto que significa, em última análise, a procura da salvação no nor-
mais elevadas e luminosas são as coisas de Deus, mais elas são mal da vida. O sufismo é a via muçulmana da mística, chamada
desconhecidas e obscuras para nós.» O místico conhece, por sua assim devido à vestimenta de lã que usam os seus adeptos,
vez, a experiência de Moisés no Sinai ou de Elias no monte embora seja difícil falar dele no singular, de tal forma está divi-
Horeb, uma iluminação de que a inteligência nada sabe dizer e dido e de tal forma a sua própria história lhe multiplica os ângu-
que deixa sem voz. «Jeremias mostra-nos a incapacidade de los de análise. Sob a orientação do mestre, no seio de uma
manifestar (a presença de Deus) e de falar dela no exterior quan- confraria, cada uma com o seu estilo próprio, o sufista mergulha
do, tendo escutado Deus, não sabe as respostas que Lhe deve na concentração espiritual e diversas formas de ascetismo visam
desligá-lo das ligações com o mundo. O dhikr dos sufistas, tal

25 João da Cruz, La montée au Carmel, Livro UI, cap. 24.


26 Ibidem, Livro III, cap. 3. 27 João da Cruz, La nuit obscure, Paris, Seuil, 1984, p. 175.

210 211!
como o hesicasmo, assenta na repetição muda ou oral, contínua, literatura sobre mística considera a fusão com Deus» (Keller,
do nome de Deus ou de uma fórmula que ateste o Seu carácter 1996, 45). O acesso à esfera de Deus também consegue chegar ao
todo-poderoso, acompanhadas de movimentos regulares do inefável. Mas o silêncio tem seguramente menos importância
corpo e de uma respiração que envolva a enunciação. Procura na tradição religiosa muçulmana do que na do cristianismo,
da purificação de tudo que não seja Deus, pelo silenciamento da porque.o apego ao Alcorão e à língua árabe, considerada como
actividade mental e da oração (Gardet, 1952, 642 segs.). A instau- a língua de Deus, privilegia a palavra, na relação com o divino.
ração de um silêncio radical em si próprio, para não ser mais do Contudo, a recitação do Alcorão proporciona zonas de silêncio
que a escuta de Deus. A oração emana do coração e enuncia-se entre os vários versículos, para que o crente se possa impregnar
com o sentimento da presença divina, de modo solitário e mer- melhor do texto e o medite em profundidade.
gulhado no contágio afectivo do grupo. A preparação mística, A tradição judaica confere um lugar mais importante ao
sob a orientação do cheikh, é difícil, exigindo jejuns, vigílias, silêncio. Fílon é o primeiro marco da mística judaica, principal-
votos de silêncio, exercícios de meditação, solitários ou colec- mente pela importância que teve, a seus olhos, o episódio de
tivos, feitos em condições de extrema pobreza, de rudeza em Moisés no Sinai (Êxodo, 24-12, 18), o confronto ditoso com a
relação às necessidades do corpo. O místico conduz uma guerra invisibilidade de Deus e a necessidade de passar pela Treva
santa contra si mesmo. Louis Gardet (1970, 113) distingue duas para nos aproximarmos. O místico encontra inelutavelmente o
grandes vias no sufismo: a da «unicidade da presença teste- inefável no seu caminho. Há duas correntes dominantes, a este
munhal« (wahdat al-shuhid), a união com Deus no êxtase, mas propósito, na tradição judaica, segundo Scholem (1977), uma
por amor e não por essência ou por substância. O exemplo mais que privilegia o esoterismo e a gnose, e outra que se baseia
famoso desta procura é dado por al-Hallãj. «A essência da sobretudo no sentimento religioso, na devoção. A primeira é
Essência de Deus é o amor», escreve ele. A personalidade do marcada pelos capítulos do Génese e, sobretudo, pelo episódio
místico apaga-se e deixa-se inteiramente revestir dos caracteres da visão de Ezequiel, do carro cósmico de Deus. À travessia dos
divinos. A experiência é inefável. «Tenho um Amigo», diz ainda sete palácios celestes termina, depois de uma série de peripé-
al-Hallãj «visito-O na solidão. Presente, mesmo quando escapa cias, no silêncio da contemplação. Porém, para os místicos
aos olhares, nunca me verás estender-Lhe o ouvido para escutar judeus, a distância que separa o homem do seu criador nunca é
a Sua fala através do ruído de palavras. As Suas palavras não preenchida. A última procura não é a da fusão, mas a da Adesão
têm nem vogais nem dicção, nem nada da melodia das vozes.» à divindade toda-poderosa, que ultrapassa o êxtase. Todavia,
A segunda via descrita por Gardet é sobretudo exemplificada determinados místicos esquadrinham esta última. Abulafia,
por Bistâmi e refere-se a uma procura de intensa «unicidade do por exemplo, em finais do século xn, prossegue no afastamento
Ser» (wahdat al-wujhd), que deixa de parte o amor e prefere do sensível através da meditação sobre as letras do alfabeto
chegar a Deus através da negação. O espírito é abolido (faná), hebraico, na medida em que formam o nome de Deus, com o
mas para alcançar a «nuvem primordial». «Arranquei-me ao objectivo de provocar um estado de consciência, a partir do qual
meu eu, da mesma forma que uma serpente se desembaraça da o homem consegue dar o «salto» que o desembaraça das suas
pele; e observei depois a minha essência, e estava ali, eu, Ele» raízes terrestres para o levar ao êxtase. Para a cabala, a lingua-
(Gardet, 1970,102). Identificação com Deus no acto da existência gem divina é a própria condição do mundo; as coisas só existem
e unidade, não com Deus, mas com o indizível que o reveste. pela sua participação no Nome Divino, do qual colhem a sua
«Gozamos a “perfeição da chegada” e encontramo-nos no “mar substância. Ao concentrar-se nas letras, o místico consegue criar
do ser”. Isto quer dizer que estamos unidos a Deus existindo um novo estado de consciência virado para o regozijo de Deus.
nEle e que chegamos assim ao termo da nossa busca mística: o Nas múltiplas correntes de pensamento que marcam a mística
sufista nunca irá mais longe e nunca alcançará aquilo que certa judaica, o silêncio traduz, de preferência, o sentimento do

212 213
inefável. «Todos os filósofos afirmam: ficamos perturbados com aquele que sabe que o Um é um e único... O silêncio é bom,
a Sua beleza, e Ele esconde-se de nós pela própria força da Sua mesmo vazio; as palavras não: se são vazias estão a mais»
manifestação, da mesma forma que o Sol se esconde dos olhos (Wiesel, 1981, 207). O rabi Nahman, de Bratzlav, de quem se
demasiado fracos para o receber... Aquilo que de mais eloquente dizia que o seu silêncio, no meio de uma multidão, se ouvia no
se disse a este respeito, foram as palavras do salmo... “Para Tio fim do mundo, pedia aos seus discípulos uma hora por dia de
silêncio é louvor” (S. 65, 2). Essa é uma expressão muito elo- solidão e de silêncio. O rabi Levi-Ytzahak, de Berditchev,
quente sobre o assunto; porque, seja o que for aquilo que dis- mandou um dia chamar um jovem professor chamado Aharon.
sermos, com o objectivo de O exaltar ou de O glorificar, sempre O emissário teve dificuldade em o convencer a vir. O rabi rece-
encontraremos algo de ofensivo em relação a Deus, e veremos be-o calorosamente com «bem-vindo, rabi Aharon». O jovem
sempre uma certa imperfeição. Vale, portanto, mais ficar calado fica siderado com tamanha honra, mas corresponde ao convite
e limitado às percepções da inteligência, como foi recomendado do Mestre para se sentar à sua frente. Passam duas horas sem
pelos homens perfeitos, ao dizerem: “Falai dentro do vosso que uma única palavra seja trocada entre os dois homens. Num
coração, no vosso leito e permanecei silenciosos”» (S. 4, 5). momento, sem acordo prévio, um sorriso ilumina-lhes o rosto.
escreve Maimónides. Separam-se, sempre sem uma palavra, nem um nem outro
O hassidismo é um movimento de fervor, cheio de palavras, revelam o conteúdo da sua conversa silenciosa, mas Aharon
de cânticos, de danças, de gritos, de orações, de contos, mas torna-se, em breve, rabi Aharon (Wiesel, 1972, 110). Wiesel
também de silêncio. Deus está próximo do homem e não o conta quanto se sente perto de Worke pelo seu silêncio, que faz
abandona nunca, é amado com paixão e celebrado em todos lembrar outro silêncio, «o de comunidades inteiras que, através
os gestos da vida quotidiana. Esta corrente, nitidamente popular, de um continente em chamas, num planeta de cinzas, se diri-
não recusa as gnoses esotéricas, até se inspira nelas, embora giam para a morte, lentamente, silenciosas e recolhidas, como
imprimindo-lhes um movimento de torção no sentido da que desesperando das palavras e, talvez, mesmo do silêncio...
piedade. E. Wiesel, descreve assim a comunidade de Worke, Os sonhadores, os operários, as crianças — não gritavam, não
pequena aldeia próxima de Varsóvia, onde os fiéis se dirigiam, choravam. Caminham e caminham, deixando atrás de si um
para ficarem calados, para se recolherem em silêncio junto do silêncio que lhes vai sobreviver. Silêncio inteiro, absoluto... E sei
rabi e regressarem com o coração repleto de orações. Um convi- o que ele incarna: um apelo, um grito forjado por um povo para
dado relata o desenrolar de um banquete de Shabbat, durante o o dar como oferenda à noite e ao céu — oferenda de uma
qual nenhuma palavra é pronunciada. A sombra invade, pouco humanidade que chegou ao fim da linguagem, ao fim da
a pouco, as caras dos hassidim. Subitamente, «apenas se ouvia O criação, para além de um segredo que permanece indecifrável»
silêncio emanado do rabi, ao qual se juntava o nosso, grave (Wiesel, 1981, 208).
e nobre, perturbador e vibrante de beleza, de amizade; raramente O pensamento budista numa dimensão espiritual comple-
conhecemos uma comunhão igual». O rabi pede que se recite, tamente diferente recusa qualquer referência a um absoluto e
em comum, a bênção que encerra o repasto. E o homem que sublinha, antes, a procura da vacuidade, o apreender da não-
conta esta história termina: «Que lição aprendi nesse dia... -substancialidade dos fenómenos e da própria pessoa.
O Mestre submeteu-me a um interrogatório severo e rigoroso, A existência é sofrimento e libertar-se dele é o objectivo, esca-
ao ponto de eu sentir o coração a comprimir-se e as minhas pando à lei das reincarnações sucessivas. O adepto é convidado
veias parecia que iam rebentar... Mas passei no exame, consegui a apreender o mundo na forma de um fluxo desprovido de sen-
responder à suas perguntas... Que lição, que lição...» (Wiesel, tido, efémero nas suas manifestações, e a afastar-se dele ras-
1981, 189-190). O rabi Menzel reúne discípulos à sua volta e cala- gando o véu da ignorância. O sábio é aquele que se liberta das
-se, enquanto a noite passa. De manhã levanta-se e diz: «Feliz suas amarras terrestres através da contemplação e consegue

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fundir-se na ordem cósmica através do Despertar. Todo o O zen apoia-se nesta doutrina, renuncia também à impu-
homem é «natureza-de-Buda» e susceptível de se libertar da tação de um sentido às coisas e reconhece nelas apenas formas
forma empírica presente que lhe atribui um rosto e uma identi- de vazio. Não se transmite através da inteligência de um dis-
dade social. O Buda não é uma pessoa, mas um estado de curso, mas antes sob a égide de um mestre. A iluminação assen-
Desperto, de não dualidade. O Ser dissolve-se no nirvana, forma ta sobre elementos por vezes irrisórios, banais, como, por exem-
de silêncio absoluto que o próprio Buda se recusa a definir. plo, um som, subitamente apreendido com um significado que
«O Buda estava um dia no monte de Vautours a pregar a uma impressiona o homem e o desperta: uma pedra que cai, o piar de
congregação de discípulos. Não utilizou uma grande exposição um pássaro, uma tempestade, etc. Mas o satori também é
verbal para explicar o assunto de que estava a tratar. Limitou- preparado pela relação especial estabelecida entre mestre e dis-
-se a levantar, perante a assembleia, um ramo de flores que um cípulo, principalmente através do kôan, isto é, um enigma, apa-
dos discípulos lhe tinha oferecido. Nem uma palavra saiu da rentemente absurdo, sobre o qual aquele que medita tem de se
sua boca. Ninguém percebeu o sentido desta atitude, a não ser concentrar, mobilizando todos os seus recursos intelectuais e
o venerável Mahãkâsyapa que sorriu calmamente para o morais. «Qual é o som de uma única mão», por exemplo.
Mestre, como se compreendesse plenamente o sentido desta Submetido a um paradoxo ou a uma impossibilidade de res-
lição silenciosa. Este, percebendo isso, proclamou solenemente: posta, o noviço fica profundamente perturbado. O objectivo é o
«Tenho aqui o mais precioso tesouro espiritual que, neste desorientamento da inteligência, a criação íntima de um caos do
momento, vos transmito, venerável Mahãkãâsyapa»28. O silêncio sentido. Porém, a resolução de um enigma corresponde à reso-
está para além da pergunta ou da resposta, na transcendência lução de todos. As perguntas devolvem-se como num espelho,
da linguagem e fora de qualquer ilusão. Um dia, um discípulo ao mesmo tempo essenciais e vás, afirmam que só o silêncio tem
perguntou ao Buda se ele podia exprimir a verdade sem pro- a última palavra e que inundar o mundo de palavras não é
nunciar a menor palavra. Mantendo-se em silêncio, o Buda suficiente. Uma história zen conta as tentativas obstinadas de
demonstrou-lhe pela sua edificação. Toyo, um noviço, para esclarecer o kôan do ruído que faz uma
O domínio da palavra é uma das regras principais exigidas única mão. Do seu quarto, enquanto medita na questão, ouve
aos noviços budistas quando entram no mosteiro. Controlo dos a música das gueixas e pensa que encontrou a resposta. No dia
sentidos, retiro fora da turbulência do mundo. O monge seguinte, corre para o seu mestre, apresentando-lhe a chave
budista, por um uso moderado da palavra, está submetido às do enigma como estando nas melodias que ouvira na véspera.
regras do silêncio que regem a organização do seu mosteiro. E começa a cantá-las. O mestre responde-lhe que essa não é a
Pela sua meditação liberta-se da palavra e do sensível, e o solução e zanga-se com o discípulo. Pensando que um ruído
silêncio parece-lhe cada vez mais necessário. «É bom controlar assim não deveria ser audível, o jovem instala-se ao ar livre para
a vista. É bom controlar o ouvido. É bom controlar o nariz, é meditar. Ouvindo o ruído de um regato entre as ervas, pensa ter
bom controlar a língua. É bom controlar o espírito... O Bikkhu finalmente a solução. Mas, novamente, o mestre o manda
(monge) que se controla de todas as maneiras, está livre do embora. O jovem continua muito tempo à procura, imaginando
sofrimento. O Bikkhu que controla a língua, que é comedido nas escutar no pio de um mocho ou no abanar das folhas o ruído de
palavras, que não está inchado de orgulho, interpreta a uma só mão. Contudo, o mestre não o deixa explicar e manda-o
doutrina esclarecendo-a e as suas palavras são doces» sempre voltar a procurar. Finalmente, atingindo a maturidade,
(Mayeul, 1985, 168). o noviço entra em meditação e esquece todos os sons. Ouve
então o barulho de uma só mão (Wilson Ross, 1976, 84).
O mestre Rinzi costumava ajudar os seus discípulos que
27 D.T. Suzuki, Essai sur le boudhisme zen, T. 1, Paris, Albin Michel, 1972, p. 299. ficavam imobilizados na pesquisa ansiosa de uma resolução do

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kôan, dando subitamente um grito que produzia neles um satori. A história de um filósofo alemão, E. Herrigel, a viver no
Chamava ao grito «silêncio». Não há aqui nenhuma con- Japão e desejoso de se iniciar no tiro ao arco, revela a sobriedade
tradição, na medida em que a surpresa desfaz uma forte tensão da palavra, a qualidade da presença de um mestre, quase sem-
intelectual que termina no silêncio mental do discípulo. A ilu- pre silencioso, que não fornece qualquer verdade, mas ajuda nas
minação libertadora faz brotar um outro estado de consciência, faltas de jeito, nas hesitações de um homem que sai lentamente
que se escancara sobre a vacuidade do mundo. O satori é uma da sua própria verdade no manejo do arco. A experiência
abertura sobre o infinito, «compreensão no saber do não-saber» humana exige uma tensão, um esforço sobre si que lhe fixa de
(Ueda, 1995, 13). Aquele que medita liberta-se da ilusão da forma duradoira os efeitos e assimila a formação a uma inicia-
consciência pessoal, do tempo psicológico, de todas as paixões, ção, ao empenhamento numa via que não tolera qualquer recuo
liberta-se de todos os desejos e vê-se como um elemento do porque, no seu progresso, ela perturbou a visão antiga que o
cosmos. O Despertado atinge então o silêncio mental, cujo homem tinha das coisas. A construção de uma relação com
escalão mais elevado é o do moku, palavra japonesa que signi- o mundo não tem nada em comum com a repetição de uma ver-
fica «absolutamente calado», falando às vezes, mas no seio da dade já feita que não dá qualquer possibilidade de escolha ao
abertura sem limites (Ueda, 1955, 15-16). Não se encontra seu adepto. No ponto em que o Ocidental considera o tiro ao
ausente do mundo, mas antes com uma outra qualidade de pre- arco como uma afirmação puramente técnica de destreza, a
sença. À entrega opera-se aí, onde o indivíduo se encontra, seja tradição japonesa faz dele um desvio que conduz a si próprio.
qual for o seu trabalho habitual. Pescador, camponês, pintor, O erro enorme de Herrigel foi o de ter.sido levado a escolher o
mestre-escola, vive a sua existência com uma consciência tiro ao arco por já ser um atirador credenciado de espingarda
alargada e encontra a sua liturgia bem no centro de cada acto da e pistola. Porém, a tradição zen concebe o caso «não como uma
sua vida quotidiana. capacidade desportiva que se adquire com um treino físico pro-
Os mestres zen desencorajam todas as tentativas de apropri- gressivo, mas antes como um poder espiritual decorrente de
ação do exterior, através do discurso e da inteligência, um sig- exercícios nos quais é o espírito que ajusta o objectivo, de tal
nificado que escapa sempre a quem não sabe deitar a rede na forma que, olhando bem, o archeiro se visa a si próprio e talvez
tumultuosa torrente do mundo. Não há verdade sem conteúdo. venha a conseguir atingir-se» (Herrigel, 1981, 14). O tiro ao arco
«A ideia dos mestres é mostrar a via pela qual deve ser experi- não é um fim em si mesmo, mas um meio de conseguir que o
mentada a verdade do zen, mas essa verdade não se pode homem saia de dentro de si, de levá-lo a uma tomada de cons-
encontrar pela linguagem que eles empregam, e que todos nós ciência das suas capacidades interiores. Trata-se, realizando a
empregamos, como meio de comunicar ideias. Quando acontece experiência, de «fazer qualquer coisa em si próprio» (p. 18). Não
eles recorrerem a palavras, a linguagem serve para exprimir se trata de um exercício de paciência para conseguir a habili-
sentimentos, estados de alma, atitudes interiores, mas não dade requerida, mas de um caminhar que é penoso em si mesmo,
ideias: torna-se portanto inteiramente incompreensível quando em que se trava uma luta terrível entre as múltiplas coisas
procuramos um sentido nas palavras dos mestres, julgando que a que o homem está ligado, é um caso de vida ou de morte.
essas palavras correspondem a ideias... O sentido não deve ser «Nós, Mestres do arco, dizemos: Um tiro, uma vida!» O homem
procurado na própria expressão, mas em nós mesmos, no nosso não sai disto incólume, empenha-se nessa via justamente para
próprio espírito, despertado para a mesma experiência» se mudar. O desenrolar do acto é mais importante que o seu
(Suzuki, T. 1, 1972, 370-371). Sem apreensão concreta da verdade objectivo, estando o essencial menos ligado ao resultado do
singular, esta permanece um reflexo de superfície, a palavra do que à maneira de actuar. Aquilo que se procura é a perfeição que
mestre ou o seu silêncio sendo apenas sinais, eles próprios uma apaga todas as futilidades possíveis do gesto. Não importa qual
experiência do acontecimento e não um juízo sobre ele. é o acontecimento da vida quotidiana que leva à porta estreita

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aberta sobre um essencial próprio de cada indivíduo que a do-se como modelo, ou antes como uma superfície de projecção
atravessa. A sacralidade que se apodera, desta forma, do mais idealizada pelo adepto. Não se apresenta como um fim em si,
pequeno gesto, assenta na qualidade do silêncio que se liberta como um objectivo a atingir, mas como um simples meio,
da acção. A cerimónia do chá é um exemplo. «Torna-se em nós», caminho de muda para outro, na estrada que cada um escolhe
escreve Okakura Kakuzo «mais do que uma realização da ma- para os seus próprios passos. O essencial, para os mestres zen,
neira de beber: torna-se numa religião da arte da vida... A ceri- não é entesourar um saber, mas conhecer-se a si próprio,
mónia foi um drama improvisado cujo argumento foi cons- escapar ao aniquilamento e às contradições, transformando-se
truído à volta do chá, de flores e de sedas pintadas. Nenhuma na parte da multiplicidade que está dentro de cada homem, com
cor perturbava a totalidade da peça, nenhum ruído destruía o o fim de se movimentar com conhecimento de causa. À edu-
ritmo das coisas, nenhum gesto quebrava a sua harmonia, cação da lucidez, que ensina a abrir os olhos cada vez mais
nenhuma palavra quebrava a harmonia circundante, todos os sobre um mundo sempre crescente, deixando o melhor lugar ao
movimentos se faziam simples e naturalmente»?º. silêncio.
Ao aplicar a sua vontade sobre determinado ponto, As tradições orientais evocam por vezes a imagem de uma
procurando aí uma perfeição interior, o homem chega ao senti- música silenciosa, dirigida ao espírito, incitando ao recolhimento,
mento do universal, liberta-se de condicionamentos anteriores a deixar livre o encaminhamento interior. As sonoridades do
para atingir uma outra dimensão da realidade. Neste sentido, o silêncio desvendam uma outra dimensão da realidade, uma via
tiro ao arco, ou a arte floral, a cerimónia do chá, a realização de espiritual cuja escuta é de outra ordem, separada do orgânico e
uma obra de arte ou de algo do quotidiano, podem ser também do mundo. Os músicos do silêncio incarnam apenas a porta
caminhos, porque, na medida em que o silêncio acompanha a estreita que se abre para um além das aparências. Na China dos
procura, esta põe o homem em confronto com significados que anos trinta, a busca de Kazantzaki leva-o até um templo de
só a ele pertencem. O domínio de uma técnica local é uma aber- Pequim, onde assiste a um concerto silencioso. Os músicos
tura ao mundo, se ela se efectua numa qualidade especial do tomam os seus lugares, ajustam os seus instrumentos. «O velho
olhar. Se for acompanhada por um mestre, como na experiência dono da casa esboça o gesto de bater as palmas, mas as mãos
de Herrigel, este acaba por se impor menos pela palavra do que param, antes de se tocarem. É o sinal de abertura deste espan-
pela sua presença silenciosa e exigente, menos pelas suas lições toso concerto mudo. Os violinistas levantam os seus arcos e
do que pelo seu exemplo. Não é um mestre de verdade, mas um os flautistas levam os instrumentos aos lábios, à medida que os
mestre do sentido (infra). Os seus gestos e o seu olhar impreg- seus dedos se deslocam rapidamente sobre os furos. Silêncio
nam o espírito do noviço devido ao seu envolvimento em profundo... Não se ouve nada. Conforme se tratasse de um
silêncio. Não que seja mudo (ainda que o possa ser), mas o seu concerto que decorre ao longe, do lado das sombras, na outra
uso da fala limita-se apenas a indicações de pormenor, a frases margem da vida, de que, contudo, vemos os músicos a tocar,
sibilinas, modo de fazer lembrar de que está rigorosamente pre- num silêncio impávido»30, Contudo a inquietação apodera-se
sente, que não se furta ao seu trabalho, mas que ainda não do escritor, demasiado desterrado para se juntar de imediato à
chegou a hora do discípulo. Abstraindo de algumas indicações comunidade solene do seu auditório. Assim que termina o con-
enigmáticas, cala-se, e a força do seu silêncio espalha-se sobre o certo, Kazantzaki interroga o seu vizinho. Sorrindo, o homem
noviço, incitado a descer ainda mais em si próprio. Com fleuma,
paciência, sem levantar a voz, cumpre a sua tarefa, oferecen-
30 N. Kazantzaki, Du mont Sinaià Ile de Vénus, Paris, Plon, 1958, pp. 106-107.
Sobre a «música celeste» da tradição cristã ocidental remetemos
29 O. Kakuzo, Le livre du thé, Lyon, Derain, 1958, pp. 39-40; v. também Pezeu- para Jacques Viret «Musique céleste», Connaissance des religions, vol. IX,
-Massabuau (1984). n.º 2-3, 1993.

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responde-lhe: «Para ouvidos treinados, o som é supérfluo. As libertação: as práticas ascéticas, a procura do conhecimento, a
almas libertadas não precisam de acção. O verdadeiro Buda devoção a um guru. A experiência espiritual da Índia é mar-
não tem corpo.» O virtuoso oriental toca em silêncio a corda do cada pelo ioga, «técnica da imortalidade» (Éliade) pela qual o
seu instrumento, emitindo um som que os ouvidos da carne místico procura atingir a libertação. loga significa «união». O ioga
não conseguem escutar, faz apelo a uma audição interior, mais de Patanjali exige principalmente o cessar «das actualizações
subtil, mas que exige, segundo a tradição, uma educação e uma flutuantes da matéria pensante», ou seja, O silêncio mental, asso-
pureza espiritual que não se obtêm de imediato. Um monge, ciado a uma existência virtuosa, a uma higiene de vida, ao
que pediu a Chou-Chan que lhe tocasse uma ária na sua domínio da respiração, um adestramento corporal através de
harpa sem cordas, lamenta nada ouvir. «Porquê», pergunta-lhe diferentes asanas. A meditação, sobre um ponto situado no
Chou-Chan «não me pediste que tocasse mais alto?» J. Pezeu- próprio corpo ou no exterior, deve conduzir ao samadhi, um
-Massabuau faz igualmente referência a antigas festas japone- estado em que a dualidade entre o mundo e o ser é abolida. Mas
sas em que se faziam concertos de silêncio em segredo: «Os o próprio êxtase é progressivo, a vida intelectual apaga-se, a
músicos ajustavam os seus instrumentos e, de acordo com um vida afectiva, depois o sentimento da própria existência, na últi-
sinal, imitavam, sem produzir qualquer som, os gestos da exe- ma fase da caminhada espiritual. De acordo com as doutrinas, a
cução, porque a santidade da ocasião não podia ser perturbada, libertação raramente se atinge de imediato, mas sim, mais fre-
nem que fosse pelo mais harmonioso dos murmúrios. Cada quentemente, de modo progressivo, para se concretizar depois
qual escutava e, aquilo que ouvia dentro de si, ninguém saberia da morte. O «Libertado-vivo» é uma espécie de santo sobre
repetir» (Pezeu-Massabuau, 1984, 84). quem o mundo não tem domínio, que está além do desejo, além
O induísmo distingue, no interior da pessoa empírica, um de qualquer preocupação. «Goza sem descanso da Libertação,
princípio de permanência: o âtman (o Seu) aparentado ao brah- mergulhando e voltando a mergulhar num lago de beatitude
man (o Absoluto). O mundo é apenas aparência, uma ilusão dos inata que é a realidade suprema de Xiva» (Renou, 1970, 64).
sentidos e do pensamento. A personalidade é um sonho. O mís- Porque a multiplicidade dos seres é uma emanação progressiva
tico serve-se, portanto, do seu ser empírico com o objectivo de de brahman, o princípio primeiro, a libertação consiste num
libertar o seu ser verídico e de se realizar, na sua relação com o regresso à unidade primordial em que o místico se apaga como
absoluto. O objectivo é desembaraçar-se da samsára, a transmi- pessoa. Já não subsiste qualquer traço de carma. As palavras
gração infinita de todos os seres vivos, escapando assim à deixam de ter sentido, o Libertado incarna o silêncio da não
sujeição da necessidade de renascer, esgotando o karman (a lei diferenciação com o brahman?1.
de retribuição dos actos que comanda a qualidade das sucessi- Na caminhada em direcção ao despertar, o guru muitas
vas reincarnações) através dos méritos espirituais acumulados. vezes é uma fase necessária, mesmo quando, na verdade, só
Se, no decorrer sem fim dos nascimentos e das mortes, o indiví- aparece no momento em que o discípulo está preparado para O
duo não existe, encontra neste ponto a sua importância pessoal.
O objectivo último é o de reconhecer em si uma identidade
essencial entre o âtman e o brahman. «Este átman que está acima 31 Louis Renou faz o inventário das diferentes formas de silêncio no culto
do meu coração é mais pequeno que um-grão de arroz, que um védico: recitações em voz baixa, com murmúrios inaudíveis, de puras
grão de cevada, que um grão de mostarda, que um grão de recitações mentais, etc. Destaca domínios de aplicação do silêncio de modo
geral ou metódico e, sobretudo, a intenção manifesta do oficiante, sobretu-
milho, que o núcleo de um grão de milho; o mesmo âtman que do a que faz do silêncio uma modalidade de acção eficaz na dimensão mís-
se encontra dentro do meu coração é maior que a terra, maior tica, cósmica, em que qualquer palavra seria votada à insignificância.
que o céu, maior que todos os mundos... É o próprio brahman» Muitas vezes, o acto silencioso é dirigido a Prajâpati, «o inexprimível por
(Monchanin, Le Saux, 1956, 29-30). Há diferentes vias para a excelência e, como tal, devolvido ao silêncio» (Renou, 1978, 66-80).

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escutar ou seguir. É o mestre espiritual (gu: treva, ru: suprimir) finalmente, já se não ouvia nada... Passou-se assim uma hora
que ensina o caminho aos seus discípulos, através da palavra sem termos uma impressão de passado nem de futuro — num
mas também pelo silêncio. Na verdade, dá muitas vezes as suas presente que se estava a prolongar sem qualquer interrupção»
lições sem pronunciar uma palavra: «Presto a minha home- (Grenier, 1982, 111-112). «Que devemos pensar de um homem
nagem a Shri Dakshinâmúrti, presente na forma do meu guru, que escuta, durante uma hora, uma arenga espiritual e depois se
sentado directamente no solo, à sombra desta árvore sagrada. vai embora, sem ter ficado impressionado e sem sentir necessi-
Como é bela esta visão: à sombra da árvore sagrada sentam-se dade de mudar de vida. Compare isto a outro que se senta em
os discípulos idosos com o seu guru juvenil. Os comentários são silêncio, aos pés de um Sábio, e que volta a casa com uma visão
feitos sem palavras e as dúvidas dos discípulos são dissipadas» completamente diferente da vida. Qual é o melhor método de
(Keller, 1996, 394)º2, São as acções do homem que falam, o seu comunicação: pregar em voz alta, sem obter qualquer resultado
saber-ser, a radiação que o envolve e que, de imediato, suscita ou permanecer em silêncio espalhando à sua volta uma corrente
a adesão (ou o repúdio). O seu ensino oral, quando existe, é de força espiritual que influencie os outros» (Maharshi, 1972,
apenas a consequência em palavras daquilo que a qualidade da 228). A iniciação, através do silêncio,é corrente na Índia e o seu
sua presença no mundo já ensina. Ramana Maharshi, por exem- poder é famoso. Mesmo que o guru entenda que deve transmi-
plo, é conhecido pela sua insistência no silêncio para atingir a tir uma mensagem oral, a sobriedade da sua palavraé essencial.
edificação do eu: «O Silêncio», afirma «é uma eloquência inin- A Brihadarayaka Upanishad quer dizer que «os sábios, aqueles
terrupta. É a emissão vocal que faz obstáculoà outra voz, à voz que conhecem e atingem o brahman, põem em prática a sua
do silêncio. No silêncio entramos em contacto íntimo com o que sabedoria, que não se sobrecarregam com muitas palavras,
nos cerca... A Verdade aparece no silêncio... O silêncio é a forma porque na fala só existem aborrecimentos».
mais poderosa do trabalho espiritual. Seja qual for a extensão e O sannyási, o monge errante, é um solitário que erra sem
a profundidade dos Shástras, falham nos seus efeitos. O guru companhia, muitas vezes isolado numa floresta ou numa gruta
é tranquilo e a Paz prevalece no fundo de cada um de nós. O silên- afastada, sem contacto com os outros homens, em absoluto
cio do guru é mais poderoso, mais vasto do que todos os despojamento. «Tem de viver sem fogo, sem casa, sem prazeres,
Shástras juntos... O silêncio do guru é a lição espiritual mais nem protecção, permanecendo em silêncio, só abrindo a boca
deslumbrante. É também a forma mais elevada da graça... para recitar os Vedas, pedindo de esmola nas aldeias apenas o
Quando o guru permanece em silêncio, a mente do que procura necessário para se manter vivo, levando uma vida errante sem
purifica-se por si mesma» (Maharshi, 1972, 77-346-457). Jean se preocupar com coisa nenhuma» (Mayeul, 1985, 164). O silên-
Grenier conta do seguinte modo um encontro com um monge cio do sannyási é um coroamento da sua solidão, embora ao
de Ramakrishna. O homem assumiu uma posição de ioga. calar-se não o faça apenas por ascese, mas por saber que tem
A assistência espera que ele fale, mas fica calado. «Acontece que dentro de si uma plenitude que o dispensa do uso das palavras.
o brâmane não fala durante os primeiros minutos, passa um Monchanin cita o testemunho de um religioso hindu que dis-
quarto de hora, ele continua calado e, quanto mais se calava, tingue três formas no silêncio do sannyási. A primeira é um
mais era escutado em silêncio religioso. “Escutado”, sim, é a silêncio de ascese, a que o homem se obriga para dominar a sua
palavra certa, estava-se atento àquilo que se ia ouvir... Toda fala e permanecer na interioridade. A segunda é antes desti-
a gente parecia que participava nesta serenidade risonha e, nada aos outros, para se livrar das suas acções importunas ou para
os dissuadir de fazerem perguntas fúteis. A terceira é o silêncio
supremo, o que é fruto de uma radical fixação na interioridade
32 Dakshinâmúrti (Xiva) faz a iniciação dos quatro filhos de Brama através do
silêncio, adoptando uma posição de ioga, numa atitude de imobilidade (Monchanin, Le Saux, 1956, 129). Na Índia encontramos ainda
perfeita. Ao vê-lo assim os quatro irmãos entraram em samáâdhi. os munivar, isto é, os monges votados ao silêncio, quer para

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sempre quer por períodos especiais. Gandhi mantinha-se e do discernimento. Se o mestre respondesse à pergunta (par-
silencioso durante todas as segunda-feiras. Mesmo quando o tindo do princípio que sabe a resposta), privaria o discípulo da
sannyási é, às vezes, obrigado a falar, quando, por exemplo, vai prova de verdade que dá valor ao seu progresso. Uma palavra
de um ashram a outro, ou quando responde a perguntas de um que dispensa procura dá um conforto moral que não é, neces-
visitante, não se desliga do silêncio interior que o impregna, que sariamente, um serviço prestado. O aparecimento do eu implica
permanece essencial, e que não impede as palavras exteriores. o fervor e a dor do afrontamento com o mundo. O mestre que
R. Maharshi apresenta o exemplo de mulheres que levam potes aceita humildemente ser uma-simples escala na procura, afasta-
à cabeça, ao voltarem do rio ou do poço. Falam entre si, mas têm -se de si para se oferecer a modos de um reagente na alquimia
o cuidado de não entornarem a água. Da mesma maneira, o do encontro. Cabe ao outro encontrar no silêncio uma resposta
sábio que se entrega a diversas actividades, que conversa com que lhe pertence, cabe-lhe a ele discernir uma orientação no ca-
os discípulos, não está a ser afectado, «porque a sua mente está minho que só ele tem de seguir. O mestre não é, neste caso,
continuamente concentrada em brahman, o Espírito supremo» mestre de verdade mas mestre de sentido, porque sabe que a sin-
(Maharshi, 1972, 177). gularidade de um percurso não se deve cristalizar num dogma,
cujas soluções foram já cuidadosamente relatadas. A ausência de
resposta à pergunta é a oportunidade do caminho a percorrer e
O DOMÍNIO DO SENTIDO não o seu obstáculo.
E O DOMÍNIO DA VERDADE Na procura do eu, conforme o atesta a própria etimologia do
termo?3, o pavimento do caminho só pode ser feito de incan-
Uma fala que pretenda chegar ao outro, atingi-lo em pro- sáveis perguntas relacionadas umas com as outras. O mestre de
fundidade, ao ponto de modificar o seu pensamento ou a sua verdade é, de certo modo, um mestre de preguiça, dizendo
relação com o mundo, é muito mais carregada de silêncio. aquilo que convém fazer e pensar, dispensando todas as preo-
Rejeita a conversa fácil, muito mais a insignificância. Atingida cupações. O silêncio, por outro lado, suscita a escuta e, por-
neste ponto, está marcada de uma gravidade que a torna mais tanto, a vigilância, a tensão em relação a um mundo, cujas respostas
incisiva, mais íntima na sua ressonância. A reserva do mestre estão ainda escondidas, mas de que cada pista representa um
explica este momento em que a palavra é uma modelação do indício. A ausência de resposta incita à procura. O mestre
silêncio e o silêncio uma modelação da palavra. «Este homem é procura a revelação do seu aluno, do qual ele próprio ainda não
capaz de falar», escreve M. Picard «contudo o silêncio aparece» conhece a natureza, a não ser que se trata de um receptáculo em
(Picard, 1953, 99). O mestre tem a arte de gerir a parte do fogo potência e que a sua atitude aberta é a única possibilidade de o
que pertence ao silêncio e a que diz respeito à fala. Se a sua fazer revelar. Se enunciasse uma palavra de verdade, fixaria
palavra rompe o silêncio, é como se fosse da mesma matéria, para sempre , a menos que não fosse escutado, um processo que
não o esconde nem se aproveita dele para se tornar mais iria prosseguir sem tréguas. Se a verdade é sempre singular, não
audível. pode ser reduzida a uma lição ou à repetição de uma fórmula.
O silêncio do mestre, ou antes, a qualidade do silêncio que O silêncio ou o laconismo do mestre é um apelo a existir, a
reveste as suas palavras, condiciona o início. Uma pergunta do deixar brotar dentro de si, mesmo que isso implique dor ou
discípulo origina outra pergunta do mestre ou o seu mutismo, dúvida, um empenho próprio em alcançar sentido. Promover a
para que se mantenha a tensão de uma pesquisa que se vai for-
jando com o decorrer das experiências, das dúvidas, das emen-
das do discípulo. A fórmula íntima de uma existência, a sua ver- 33 «Inquérito» e «questão» são termos provenientes da mesma raiz latina,
dade infinitesimal, não se atinge sem a experiência da liberdade quaestio, que significa «pesquisa».

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existência, não é encerrá-la numa fórmula já feita, susceptível de casa, nem o céu, nem as árvores, até as pessoas lhe parecia que
se tornar objecto de um ensino especializado. Trata-se sobre- tinham outro aspecto (ele desculpa-se de não saber explicar
tudo de um trabalho de iniciação, de uma formação do homem melhor, mas confessa tratar-se de algo indefinível, mas não
e não, como para o mestre da verdade, do inculcar de um sis- tenho qualquer dificuldade em perceber porque é a mesma
tema cujos protagonistas se podem trocar entre si, na medida coisa que eu sinto na presença de Bram van Velde)»?*.
em que só interessam as fórmulas que transitam por eles. A vida quotidiana também tem às vezes palavras de autori-
Quanto maior for a latitude de espírito do discípulo, mais o dade, que dão ordens, que impõem, rígidas, sem darem opor-
mestre recorre ao silêncio ou a um punhado de frases enigmáti- tunidade a réplicas e palavras plurais, que libertam, abrem,
cas. Por aquilo que ele mobiliza, através de uma atitude global convidam (Blanchot, 1969). Palavra de verdade e palavra propí-
e do cerco de que é objecto, o mestre consegue transformar cada cia ao sentido. Do mesmo modo seria preciso distinguir, no
situação de fala ou de silêncio num acontecimento pessoal de decorrer do quotidiano, de acordo com as situações, o silêncio
quem o recebe. da autoridade que pretende terminar o discurso, cuja arrogân-
O mestre de sentido ensina uma verdade particular, o cia não considera qualquer resposta, e o silêncio aberto que dá
mestre de verdade uma via única, cuja apropriação é a intenção lugar à conversa. Falando de uma parente, Charles Juliet
do discípulo. O primeiro desenvolve a necessidade interior de escreve: «ela tem uma espécie de silêncio, uma tal abertura ao
uma perspectiva que o discípulo já trazia consigo, mas que outro, é capaz de criar uma atmosfera de paz, de bem-estar, que,
apenas o seu silêncio era capaz de revelar como uma evidência junto dela, consigo ficar calado ou dizer apenas banalidades e,
até então insuspeitada. O mestre de sentido sabe não ser mais contudo, sentir que o contacto se estabeleceu profundamente.
do que um ponto entre duas condições do discípulo que, uma Suponho mesmo que, se as circunstâncias o provocassem, talvez
vez transposto o limiar, vai prosseguir o seu caminho singular não tivesse necessidade de lhe falar de uma maneira um tanto
num passo próprio. O ensino debruça-se sobre uma relação com íntima»35. A qualidade de presença dispensa todas as palavras
o mundo, com uma atitude moral, mais do que sobre uma supérfluas, mas confere também uma sensação renovada de
colecção de verdades embrulhadas num invólucro imutável. viver, proporciona sentido. Convida a encontrar um lugar
A finalidade não é a aquisição de uma quantidade de saber, mas próprio, utilizando uma fala sóbria e um silêncio que permitem
a indicação de um saber-ser. O silêncio do mestre de sentido espelhar a plenitude dos significados possíveis.
baseia-se na consciência da sua humildade e da sua convicção
de que a única verdade é individual e que é preciso que cada
homem, que quiser ser modificado, aceda por si próprio a essa MÍSTICA PROFANA
conquista. O paradoxo do seu ensino é o estar, sem dúvida,
mais ligado àquilo que não diz do que àquilo de que fala. À pre- A mística profana mantém-se afastada dos sistemas reli-
sença silenciosa do mestre de sentido é uma garantia de exigên- giosos, permanecendo na esfera do sagrado. Conhece também
cia para o caminhar confuso do adepto que avança de modo duas formas de silêncio de que já tratámos, a do silêncio que
inseguro por um caminho que apenas ele pode tomar. Um belo permite ao homem atingir uma experiência invulgar e a do
exemplo de mestre tranquilo e que se ignora mesmo neste sítio, inefável daquilo que se sente e que leva a calar ou glosar sobre
é apresentado por €. Juliet. Um dos seus amigos contou-lhe a o silêncio. A experiência interior de Bataille é profunda a este
visita ao campo, onde possui uma casita, de Beckett, um homem respeito. Bataille teve a experiência de vários êxtases que vivia
que não fala muito, mas cuja palavra marca profundamente.
Toda a tarde um e outro tinham falado de pássaros. «Mas, assim 34 Charles Juliet, Journal II, 1965-1968, Paris, Hachette, 1979, p. 62.
que Beckett partiu, tudo mudou, ele já não reconhecia a sua 35 Charles Juliet, Journal III, 1968-1981, Paris, Hachette, 1981, p. 325.

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espontaneamente ou dos quais preparava cuidadosamente a noite, sem lado de lá, um derramamento sem fim do não-sen-
chegada. Depois de ter evocado um deles, explica a sua origem: tido: «uma ruptura extrema, tão profunda que apenas o silêncio
«Sobre o muro da aparência projectei imagens de explosão, de do êxtase lhe pode valer». Quando o místico sente a distância
aflição. Para começar tinha criado em mim o maior silêncio. de Deus, num momento de alegria, Bataille perde-se num abis-
Pude fazer isto sempre que quis. Neste silêncio, muitas vezes mo do não saber, de despender em perda pura, sem encontrar
insípido, pensava todas as tristezas imagináveis. Sucediam-se qualquer consolação discursiva no termo da caminhada, mas a
imagens obscenas, ridículas, fúnebres. Imaginava as profun- incandescência da angústia, do medo. «Na experiência interior»,
dezas de um vulcão, a guerra ou a minha própria morte. Já não afirma «o enunciado não representa nada, apenas um meio e,
tinha dúvidas que o êxtase podia contentar-se com a represen- mesmo assim, enquanto meio, um obstáculo; o que conta não
tação de Deus». O místico profano também tem necessidade é o reconhecer o vento, é o vento» (Bataille, 1954, 25). Mais
do silêncio mental, de parar com o entendimento e a fala para adiante, Bataille explica ainda: «O domínio da experiência é todo
deixar surdo o silêncio, que é o viveiro do êxtase. A procura de o possível. E na expressão que ela apresenta de si própria, por
um vazio saturado de plenitude, de um entorpecimento do ser fim, necessariamente, não é menos silêncio que linguagem. Não
para libertar forças escondidas e quebrar as algemas da identi- por impossibilidade. Tem à sua disposição toda a linguagem e o
dade. Uma das modalidades da renúncia de si próprio está nas poder de a utilizar. Mas silêncio desejado não para esconder,
imagens, mas outro recurso é a meditação sobre frases ou mas para exprimir mais um grau de afastamento. A experiência
palavras e, principalmente, sobre palavras «arriscadas». «Vou não pode ser comunicada se as ligações com o silêncio, com o
dar um só exemplo de palavra arriscada... a palavra silêncio. eliminar das distâncias, não mudarem aqueles a quem ela dá
Em relação à palavra, já foi dito, trata-se da abolição do ruído protagonismo» (Bataille, 1954, 42).
representado pela fala; entre todas é a palavra mais perversa e
a mais poética: ela própria é a garantia da sua morte» (Bataille,
1954, 28). O SILÊNCIO E O SAGRADO
A experiência interior é uma procura deliberada do êxtase
fora de qualquer referência confessional, na aceitação de que o A experiência do sagrado, quando apanha inteiramente o
universo da noite do sentido não se dissolve, em última instân- homem, deixa-o sem voz, sem palavra, penetrado pelo Outro
cia, no sentimento de Deus, ou seja, numa maneira última em e, portanto, arrancado ao vulgar, que a linguagem está habituada
que o pensamento discursivo possa ressaltar e salvar in extremis a relatar. Qualquer forma de transcendência pessoal apresen-
a linguagem. O nada do Ser escavado em si mesmo não deve ta-se assim ao homem, que deseja comunicá-la, num desafio à
descobrir um nome, nem qualquer retórica para esconjurar o linguagem e num recurso ao silêncio. Contudo, o místico recusa
poder corrosivo da sua interrogação. Mergulhado em soberania, o impensável, anda à volta da sua experiência como uma bor-
«esta experiência resultante do não saber permanece para sem- boleta à volta da luz, se descreve a luz está longe de se queimar,
pre» (Bataille, 1954, 15). Bataille recusa o encerramento final da mas se estiver no centro da queimadura, já não vê a luz. Tem
experiência que encontra no inefável de Deus um refúgio final- então de descrever a queimadura com os meios inferiores da
mente tranquilizador. Existe, para o místico, um outro lado da luz, ou então realizar dentro de si o luto do testemunho. O sen-
noite, um desígnio a atingir, um caminho traçado que conduz timento do sagrado incita a uma longa descrição acerca do
até ao divino. Para Bataille existe apenas a experiência pura da inefável do acontecimento ou a ficar calado perante ele. O silên-
cio é a primeira atitude do homem perante um brilho que o
ultrapassa e o perturba. Esta observação também é válida em
36 G. Bataille, Le coupable, Paris, p. 39. relação às experiências religiosas que codificam, em princípio

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com rigor, o sentimento do sagrado. Vimos já a expressão privi- Poderíamos citar numerosos testemunhos, como o de Massignon:
legiada do silêncio na mística comparada e, principalmente, a «Temos de pensar que, em todos os meios religiosos, onde exis-
do inefável. A dualidade desaparece, a elevação da alma atinge tem almas verdadeiramente sinceras e reflectidas, podem ser
o concreto absoluto do mundo, que reside no seio de Deus. encontrados casos místicos. O misticismo não poderia ser apaná-
O abarcar da interioridade torna desajeitada a transmissão oral gio exclusivo de uma raça, de uma língua, de uma nação; é um
do acontecimento e dissolve a própria linguagem na insigni- fenómeno humano, de ordem espiritual, que estas limitações
ficância. Pela prática do silêncio interior, o crente procura físicas não seriam capazes de limitar» (Massignon, 1968, 63-64).
tornar-se mais disponível à presença de Deus e desembara- Ou ainda Van der Leeuw dizendo que «para a mística, qualquer
çar-se do peso profano do mundo que o cerca. Daqui nasce o pormenor, todas as particularidades, todos os elementos
silêncio de escuta da palavra divina perante a qual o homem só históricos das religiões são finalmente indiferentes. Porque a
tem de se calar. Os religiosos respeitam a exigência da sobrie- abdicação do devir afecta por igual todas as imagens, represen-
dade que deve presidir ao exercício da linguagem nas comunidades tações, pensamentos a que as religiões dão importância. A mís-
humanas marcadas pela referência ao divino. As conversas tica fala a linguagem de todas as religiões, mas nenhuma
fúteis são condenadas ou consideradas como uma mostra de religião é essencial para ela. O vazio continua vazio e o nada
falta de espiritualidade. A fala deve vibrar sobre um fundo continua nada, quer seja na Alemanha ou na Índia, no islão ou
de silêncio, que a torne menos imperfeita e a transforme num no cristianismo» (Van der Leeuw, 1955, 494). Contudo a expe-
testemunho mais fiel do divino. Na relação entre mestre e dis- riência mística não é uniforme, apesar das semelhanças e dos
cípulo ou na fala de certos eleitos, encontramos uma quarta seus territórios comuns, perde-se nas tradições religiosas a que
forma de silêncio. Em determinadas circunstâncias, o encontro diz respeito, vai buscar uma língua e uma tradição cultural
entre os homens leva a um ultrapassar da linguagem que, que contribuem também para a modelar. Como qualquer obra
contudo, veicula um absoluto da comunicação através da plenitude de criação, inscreve-se no seio de uma condição social e cultural
do silêncio. A vida religiosa faz funcionar uma disciplina especial do que lhe confere o seu conteúdo e os seus meios de expressão,
silêncio na oração, na liturgia, ou na organização da vida monás- mesmo se a mística a ultrapassa por vezes e vai além das mani-
tica. O silêncio ascético é fruto da penitência, participa no domínio festações normais da fé ou segue por uma via que ainda
do sentido, no controlo rigoroso exercido sobre as necessidades ninguém percorreu. Otto faz ver, com rigor, as semelhanças que
corporais, que afastam de Deus. Mas há ainda uma forma última, reúnem, em primeira análise, as experiências místicas cristãs de
a que prescinde de palavras, que afasta definitivamente a um Mestre Eckhart ou hindus de um Shankara. Principalmente
linguagem e que deixa o místico mergulhado num absoluto que já nas suas relações com o silêncio: «Deus é principalmente silên-
não implica com a imperfeição da linguagem. Martin Buber, no cio e não discurso”, “este âtman é silêncio”, “a palavra mais bela
começo das suas notas sobre a literatura mística, fala dele numa que o homem possa pronunciar sobre Deus, é que consiga calar-
frase: «Acredito nos êxtases que não foram tocados por qual- -se no conhecimento da sua riqueza interior”, ainda “não falo,
quer som como sendo um tesouro invisível da humanidade; com ligeireza, sobre Deus”, falavam desta maneira Eckhart e
tenho à minha frente os documentos referentes aos que Shankara» (Otto, 1996, 42). Um e outro vivem no sentimento da
chegaram à fala» (Buber, 1995, 21). exclusividade do ser e do Uno, no transbordar do sentido que
A incapacidade em relatar a experiência de Deus é comum conduz ao inefável de Deus ou do brahman. Contudo, bem
às diferentes formas de espiritualidade, mesmo quando existem entendido, quando Mestre Eckhart e Shankara descrevem uma
numerosos pontos de desacordo que conferem a cada uma delas experiência de fusão com o divino, não estão a pensar exacta-
uma orientação própria. O silêncio é uma característica comum mente na mesma coisa, uma vez que o inefável abrange reali-
da experiência religiosa (Stace, 1960; Keller, 1996; Baldini, 1988). dades diferentes. O encontro pessoal com Deus, da forma como

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Shankara o parece descrever, não é o mesmo de Eckhart que, CAPÍTULO 6
mesmo na sua dissolução em Deus, não deixa de sentir a alma
como diferente de Deus, mesmo na sua união mais perfeita, O SILÊNCIO E A MORTE
uma vez que o Ser é um devir permanente, mesmo se eterna-
mente realizado, ao passo que Shankara entende a dissolução de
si no Ser, Ser estático, que é o brahman. As semelhanças e as
diferenças tecem os fios enredados da mística e dos costumes «Logo à partida a morte cerca-nos de um silêncio sem fim,
religiosos do silêncio. como que uma ilha cercada pela água. Mas é precisamente
nisso que reside o indizível. Que valor têm palavras que não
rompem esse silêncio. De que vale falar de um “momento de
sepulcro» quando cada palavra é um nada, uma vez que não
alcança para lá das palavras.»
BATAILLE, La Tombe de Louis XXX

A DOR

O aparecimento de uma recordação dolorosa, no decorrer de


uma conversa, corta o fôlego e obriga a uma recomposição ou a
deixar caminho livre a um momento de emoção. Há então uma
regra implícita que obriga o interlocutor a não insistir, a calar-se
por sua vez durante um momento, antes de exprimir a sua soli-
dariedade através do seu comportamento, por um olhar, uma
palavra, pelo tom da sua voz... A dor interrompe a ligação
social, criando uma solidão difícil de romper, a não ser pelo
lento retorno ao prazer de viver. O sentimento dela é um factor
pessoal, íntimo, que escapa a qualquer medida, a qualquer ten-
tativa de a limitar ou descrever. As palavras, em relação aos
outros, perdem o seu peso de conteúdo. É o embaraço de viver
à margem de si próprio sem conseguir encontrar-se. A dor é um
luto provisório ou durável do próprio eu, arrasta consigo a
palavra. Fechada na obscuridade do corpo, a dor fica reservada
à deliberação íntima do indivíduo. Há um indizível que esconde
a linguagem, que prejudica a facilidade da palavra: o sofrimento,
a separação, a morte não encontram palavras para se exprimir
com intensidade suficiente. A língua fragmenta-se por momen-
tos perante os conteúdos afectivos, demasiado poderosos, que
varrem tudo à sua passagem (Le Breton, 1995, 37 segs.). A dor

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quebra a voz e torna-a irreconhecível, suscita o grito, o lamento, que nasceu e lançar a Deus as suas lancinantes perguntas sobre
o gemido, as lágrimas ou o silêncio, tanto por insuficiências da o sofrimento dos justos. Nessa altura Elifaz, Bildade e Cofar per-
fala como do pensamento. Provoca uma dissidência entre eu e o dem-se em exortações vãs, sem que as suas palavras consigam
eu. O «Eu sou um outro» deixou de ser uma figura de estilo prender a atenção do amigo, por falta de compaixão e silêncio,
e tornou-se numa relação com o mundo de cada instante. O grito não conseguem ser escutadas. E Job pede-lhes várias vezes
nunca está longe do silêncio, duas formas próximas de assumir que se calem. «Calem-se, sou eu quem vai falar, seja o que for que
o luto da linguagem quando o sofrimento persiste. Assim, por diga» (XIIL 13). Mas a ortodoxia dos três homens é posta em
exemplo, a palavra de Beckett é minada pelo silêncio, pela causa, se Job estiver inocente dos males que o atormentam.
abstenção dos personagens. Na sua obra há frases incisivas que A desgraça deve continuar a ser uma retribuição justa do pe-
tropeçam no sentido impossível de formular ou de ser desco- cado: atacam-no sem tréguas «Se falar contigo aguentas? Mas
berto. O editor alemão Rowohlt recorda uma conversa com o quem é que pode ficar calado?» (IV, 2) ou então «Até quando
escritor, à data hospitalizado. Uma noite, este ouve gritos ter- vais falar da sorte e falar de coisas parecidas com um vendaval.»
ríveis. De manhã, pergunta à enfermeira que espécie de doença Porém, Job não deixa de lhes opor a sua recusa em se submeter
podia fazer sofrer âquele ponto. Ela responde-lhe: «Um cancro a uma decisão divina que não compreende: «Porque não ficam
da língua.» Algum tempo depois, Beckett recebe em casa um calados», censura aos seus companheiros demasiado faladores,
jovem autor, tímido, ainda desconhecido, Pinter, que o felicita «seria mais sensato» (XVIII-22). Diálogo de surdos que apenas a
pelo seu estilo. Beckett interrompe-o e diz-lhe: «O meu estilo, o intervenção de Deus consegue resolver. Mas Job fala também da
meu único estilo, é o cancro da língua»l. posição insustentável do homem dilacerado pelo sofrimento:
O desânimo, reduzido ao silêncio, provoca um afastamento «Se falo, a minha dor não é mitigada; se me calo fica aliviada?»
das actividades normais da existência, a começar pela fala, que
o indivíduo utiliza de forma reticente ou rigorosamente repu-
dia. A dor já não consegue encontrar as palavras capazes de a OS LUGARES DA MORTE
descreverem. Transforma a linguagem em impotência, só lhe
resta calar-se, o que de si já é expressivo. Job, atingido na sua Nos locais da morte, a palavra falha, mostra-se hesitante, os
descendência e na perda dos seus bens, depois atingido na gestos perdem segurança. O silêncio assinala a sua presença
carne, quando na sua concepção moral da desgraça nenhum com invulgar intensidade. A existência passa a ter uma dimen-
erro justifica tal sofrimento, fecha-se em longo mutismo. são de ambiguidade, suscitando a reserva, a ruptura radical com
Chegam amigos de cada uma das suas respectivas regiões. a evidência. O dilema de escolher entre aquilo que se deve dizer
Ficam perturbados ao vê-lo, rasgam as suas vestes em sinal de ou não, à cabeceira de um doente, é por vezes intolerável.
luto, partilham com ele o silêncio, durante sete dias e sete noites. O silêncio preenche o ambiente na altura de um diagnóstico
Depois, o próprio Job toma a palavra para maldizer o dia em desfavorável. Ataca a voz do médico, que por instantes pára, a
medir as consequências da sua eventual opinião, que hesita
entre escapar ou falar por meias-palavras, antes de avançar com
1 Daniel Rondeau, Les fêtes partagées, Paris, Nil, 1994, p. 54. Tema muito pare- particular emoção, ou de deixar para mais tarde, renunciando a
cido em Charles Juliet: «Dantes queria contar o segredo através do grito, só confrontar os olhos do paciente, que ignora ainda a ameaça que
sabia balbuciar através do silêncio» (C. Juliet, Journal, Tome II, 1979, p. 71).
pesa sobre a sua existência. Anne Philippe lembra o modo
No Lenz, de Buchner, também se assimila o grito ao silêncio: «Então vocês
não conseguem ouvir aquela voz atroz, que grita no horizonte que nos
como, no hospital, toma conhecimento da. doença do seu com-
rodeia e que habitualmente chamamos silêncio» (Buchner, Lenz, Paris, panheiro sem que os médicos tenham pronunciado qualquer
Chambon, 1991, p. 57). palavra. «Ouvi passos, entraram os quatro médicos. Um deles

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ofereceu-me uma cadeira. Houve um silêncio. Olhei para eles. Quando a doença grave progride dentro de uma lucidez
Qual deles falou? Qual deles ficou com os olhos postos em mim? partilhada, a impossibilidade de se projectar no futuro à volta
Em cada canto, na pintura enrugada, na lâmpada, nos raios de de uma actividade comum, o peso de cada uma das palavras
luz filtrados através do alto da porta, em todo o sítio estava que se dizem fazem viver outra dimensão do silêncio. Não já no
escrito: ele vai morrer»? recalcamento, mas na consciência da precariedade da situação
As palavras da morte ou da dor esbarram perante a cara do e no sentimento de que cada palavra dita, cada movimento, é
outro, perante a incrível ingenuidade da sua ignorância de que essencial por estar, talvez, destinado a nunca mais ser repetido.
vai morrer, revelam a diferença ontológica entre aquele que as A família deixa de ter a mesma facilidade de palavra e a mesma
pronuncia e aquele a quem são destinadas. É então que muitas ligeireza do olhar. Pressentem-se já nos movimentos, nas vozes,
vezes se calam, com a preocupação de poupar um sofrimento o espanto e a dor perante a desgraça que se aproxima. Porém, a
que finalmente transparece e que alimenta também a má cons- brecha aberta pelo silêncio cristaliza um momento forte de
ciência de quem escolheu nada dizer, o mal-estar de quem está amor. Implica uma rara força de carácter nascida das circuns-
à volta e, por vezes, mesmo do principal interessado, que sabe tâncias, uma aptidão pouco comum para manter entre si e o
que os outros sabem, sem que ele próprio tenha a coragem de mundo as ligações do sentido. E certo que a dor não está
quebrar o conluio que visa desajeitadamente protegê-lo. A invo- ausente, mas é mantida à distância, de olhos abertos. A morte
cação, nestas circunstâncias, de uma «conspiração de silêncio», anunciada desequilibra a existência, para lhe lembrar o preço,
deixa bem transparecer a violência do não dito. O moribundo mas destacando para o sobrevivente a questão da solidão pró-
desliza lentamente em direcção à ausência, na recalcada tristeza xima e para quem morre o luto da alegria do mundo. À situação,
dos seus e na pretensão de que a eternidade está sempre pre- por vezes, é esmagadora, provocando o assombro e a solidão.
sente aos seus olhos. Mas a experiência clínica mostra a impos- Se não é possível descrever a dor, um silêncio de cortar à
sibilidade de esconder conteúdos psíquicos tão poderosamente faca arrisca-se a invadir o espaço mental do casal ou do grupo.
criados. Sistema perverso de comunicação, onde o silêncio. não O sofrimento nasce da repressão das emoções, daquilo que se
desempenha a melhor parte. Anne Philippe dá testemunho da não diz, de rancores antigos que não se ousa lembrar. O des-
dificuldade em ter este comportamento falso perante o outro. gosto ou a dificuldade de comunicar abafam a palavra e a
«Traía-te, com um olhar límpido que, pela primeira vez, mentia. impotência em conseguir dar sentido ao acontecimento, em
Levava-te à beira do abismo e felicitavam-me. Dez vezes por dia recrear a ligação, multiplicam a dor.
vinha com a intenção de te dizer a verdade, porquê e com que No decurso dos anos oitenta a sida liga o silêncio e a morte
direito esconder aquilo que te dizia respeito? Calava-me e ima- de múltiplas formas. Começa por transtornar o sentido das
ginava o que poderiam ser esses segundos, se tivesse falado. palavras, obriga a um uso inferior da língua, desacredita
Gostaria de ter tido o dom da ignorância. Entre a ignorância e o quadros completos de comunicação. Ao dizer «morte», «desejo»,
conhecimento escolhia sempre o último. Não estava portanto de «sangue», «amor», por exemplo, o doente de sida já não se
acordo comigo mesma» (p. 49). Perante aquele que morre, encontra na dimensão vulgar da linguagem, porque, para ele, a
envolto já no silêncio pela discrição dos seus gestos e da sua fala, morte significa uma degradação impensável do corpo, o facto
pelo apelo dos seus olhos, sabemos que não conseguimos men- de morrer jovem com aspecto de velho. As próprias palavras
tir sem nos sentirmos incomodados. Responder com um dis- são contagiadas pelo seu sentido. A morte deixa de ser morte
curso anódino ou tranquilizador provoca uma dilaceração interior. quando caricatura a este ponto o homem e o força ao sofrimento,
não apenas de se encaminhar para o fim com conhecimento de
causa, mas sobretudo por morrer um outro, com um rosto por
2 Anne Philippe, Le temps d'un soupire, Livre de poche, 1968, p. 66. vezes irreconhecível, um corpo desfigurado por alterações ou

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mesmo, nos casos de neuro-sida, pelo desdobramento caótico imaginário mórbido aproveita-se de tudo. Tais episódios são
de si mesmo, pelo delírio ou o coma. Morrer de uma morte que numerosos e marcam a existência de todos os alarmes. A sero-
não é a sua, num corpo que não é o seu, morrer sem ser reco- positividade incarna um movimento pessoal do tempo em que
nhecido. Ao falar de desejo quer dizer o indizível de morrer fisi- a persistência da morte o disputa ainda à intensidade de existir,
camente de amor, de morrer do prazer dado e recebido, de não à resistência obstinada da vontade. Exige aprender a viver na
se poder entregar, sem precauções, à ternura de um outro sem indecisão do desencadear da doença, com uma fragilidade de
colocar a sua existência em perigo, uma vez que transporta, no defesas imunitárias, afastando o medo, forjando um espírito
seu esperma e no seu sangue, um vírus mortal. As palavras para não se deixar cair na deploração, numa depressão que
deixam de ter o sentido comum, agravadas por um peso de enfraquece as resistências pessoais. E uma forma maligna do
silêncio e não existem outras que possam assimilar a carga silêncio, ligada a uma abordagem lúcida da morte ou, pelo
de horror e de tristeza que passam a ter. O doente de sida sente menos, à compreensão da sua vinda.
a desqualificação da linguagem, esse fundo duplo de sentido A seropositividade altera o desfrutar do tempo, na elabo-
que leva a falar num sentido e entendido noutro. ração de projectos pessoais ou comuns: viajar, escrever, viver
A seropositividade, devido à ameaça que contém, é con- uma relação amorosa, etc., mas também ter filhos, criá-los, etc.
frontada com uma experiência particular do silêncio. É per- Traz consigo o fim triste de uma sexualidade aberta e tranquila,
seguida pela perspectiva da morte anunciada, pela destruição uma vez que o risco de contágio impõe precauções de uso e,
do sentimento de cada homem de se sentir levado pelo infinito portanto, uma negociação com o parceiro. Uma confissão de
do tempo, imortal, acreditando nos seus recursos pessoais e seropositividade pode meter medo ou levar à desconfiança:
mergulhado contidamente no seio do mundo. O anúncio da «A sida, diz um homem de quarenta anos, seropositivo, repre-
doença corresponde a uma ruptura da segurança ontológica senta a morte de uma quantidade de coisas: morte da sexuali-
que, em princípio, acompanha cada homem no decorrer da dade, que nunca mais volta a ser igual, porque mesmo prote-
vida. É um desequilíbrio integral de si mesmo, uma fractura do gido, existe sempre aquela angústia de ser “perigoso”; todos os
sentimento de uma identidade pessoal. De um momento para o líquidos biológicos me parecem viciados, tenho mesmo medo
outro tudo se muda, o universo familiar desaparece repenti- da saliva, de modo que o acto de vida fica prejudicado, porque
namente, arrancado em meia dúzia de palavras sem remissão. pode transformar-se em acto de morte. É um vírus que ataca
O solo foge debaixo dos pés, a imagem reaparece muitas vezes a vida até na intimidade do leito» (Saint-Jarre, 1994, 218).
nas conversas, evoca uma ruptura no tecido do sentido que A seropositividade impede de ter um filho e imaginar estar a
mantinha o indivíduo, abre-se repentinamente um abismo na criá-lo, a vê-lo crescer, não apenas pelo risco de contágio, que
familiaridade do caminho, que desmantela totalmente todas as talvez o atingisse, mas por causa da morte possível em que é
antigas referências existenciais e deixa desorientado, inundado preciso pensar e que faria do filho órfão ou ligaria um dia a sua
pela ideia da doença e da morte próxima (Nédelec, 1994, 64 segs.). existência à gravidade da doença. Luto por uma criança que
Contudo, a saúde pode continuar a reinar durante anos, às nunca nasceu, luto da paternidade, da maternidade. A seropo-
vezes já mais do que uma dezena de anos. A seropositividade sitividade provoca o sentimento de que a vida chegou ao fim, de
é prenúncio de uma existência sob ameaça e, portanto, com já não se poder fazer mais nada, perante essa muralha do tempo
a inquietação do menor sintoma que possa ser o começo do que não deixa avistar qualquer horizonte em que se possa ter
pior: fadiga, tosse, manchas na pele, etc., tornam-se motivo de uma projecção. Ocupação mental em tempo pleno, é um luto do
angústia. O fantasma mistura-se com a lucidez e baralha fre- eu, em completa lucidez, diluído na vida quotidiana. «Pressenti
quentemente as cartas, abandonando o indivíduo ao pânico, se a sua vinda no espelho», escreve H. Guibert «no meu olhar no
os recursos psicológicos não forem suficientemente fortes. Um espelho, muito antes que ela se tivesse efectivamente declarado.

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Seria eu já essa morte no meu olhar aos olhos dos outros? Não o lentos entre o casal ou na família. Induz uma transformação
confidenciei a toda a gente. Até então, até ao livro, não tinha radical das ritualidades sexuais ou arrasta a decisão de um dos
contado a todos»3, parceiros de continuar como dantes, por amor ou, por não
Além disso, a descoberta da seropositividade é uma estar ainda infectado, pensar que o sacrifício é demasiado
catástrofe para quem pensava nada ter a divulgar em relação pesado para tomar precauções que talvez não sejam neces-
às suas atitudes perante a vida ou manter em segredo uma sárias. Mas também muitas vezes a ruptura é evidente, sobre-
relação antiga ou apenas um troço da sua história pessoal que tudo se o parceiro continua são. A sexualidade passa a ter
julgava ultrapassado, mas que o vai voltar a agarrar, contra muitas vezes um período mais ou menos longo de eclipse.
aquilo que seria de esperar. Homossexualidade, toxicomania, Rompem-se amizades. A notícia, nos locais de trabalho, provoca
encontros, etc.: o anúncio da seropositividade força a questão às vezes o isolamento ou o despedimento, obriga a ter de viver
tremenda de saber aquilo que convém dizer de si mesmo. com os medos e os fantasmas dos outros. A descoberta da
Coloca sob a luz dos projectores comportamentos que gos- seropositividade é um cataclismo que abala tudo à sua pas-
taríamos de deixar na sombra. A dissimulação é sempre uma sagem, da maneira mais inesperada. Na verdade, alguns
possibilidade, uma vez que nada transparece do seu estado meses depois, acontece que o indivíduo se encontra só, sem
nem das suas causas. O indivíduo permanece provisoria- emprego, com recursos diminuídos, mantido afastado, mesmo
mente senhor do segredo, embora responsável por aqueles estigmatizado pelos que o cercam.
com quem partilha a sua existência, detendo a respeito deles A entrada na sida marca uma vulnerabilidade de cada
uma informação perturbadora e susceptível de o desacreditar momento, que impõe numerosas precauções, um estado de
aos seus olhos, impondo-lhe talvez a obrigação de justificar os alerta perante os menores incidentes de saúde. A doença passa
seus comportamentos, de confessar aos pais uma homosse- a ocupar um lugar insistente, que não deixa qualquer liber-
xualidade de que eles não suspeitavam, à companheira ou ao dade. Sucedem-se altos e baixos, exames, cuidados. O quarto
companheiro a existência de antigas relações que vêm agora torna-se num anexo, ainda personalizado, do hospital, com
separar tudo o mais, ameaçando mesmo a sua vida comum. todos os instrumentos que permitem os cuidados necessários
A sexualidade transforma-se subitamente numa cadeia sem para combater as infecções oportunistas, como, por exemplo, as
fim que reúne, involuntariamente, cada um dos parceiros do perfusões. O tempo encolhe, porque os projectos passam a
mesmo indivíduo. Susan Sontag cita um antigo ministro da curto prazo, o território pessoal estreita-se. O medo do contágio
Saúde, americano, que dizia: «sempre que um indivíduo tem restringe o âmbito das relações. «O diagnóstico renova-se sem
uma relação sexual, tem-na com todos os indivíduos com monotonia: estou para morrer. Como toda a gente. Sem saber
quem o seu parceiro andou nos últimos dez anos» (Sontag, quanto tempo tenho ainda de vida, como toda a gente. A dife-
1989, 95). A admissão da seropositividade não é a mesma coisa rença é que já não posso ignorar, já não posso viver sem pensar
que o comunicar uma doença, mesmo grave. Implica menos, nisso. Podia imaginar desacelerar o tempo, vivendo-o cada vez
porque as aparências de boa saúde ainda são boas e, simul- mais intensamente, até ao último segundo, em que teria atin-
taneamente mais, por revelar um aspecto de personalidade, gido uma plenitude fora do tempo... Ao fim de três anos já não
uma história, um acontecimento, a uma luz que os outros sei se me restam quinze dias ou quinze meses. Em poucos dias
podem considerar desfavorável ou inaceitável. O anúncio é tudo pode desequilibrar-se»4.
por vezes seguido de uma separação brutal, de conflitos vio-

4 Bertrand Duquénelle, L'aztêque, Paris, Belfond, 1993, p. 98 (citado in Hirsch,


3 Hervé Guibert, À "ami qui ne m'a pas sauvé la vie, Paris, Gallimard, 1990. 1994, 275).

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O trabalho do sentido que se faz à volta da doença, de A PASSAGEM
forma individual ou colectiva, permite que não se seja total-
mente submergido por ela, de a manter controlada e dominar A morte é a irrupção brutal de um silêncio esmagador,
assim uma parte do sofrimento que ela cristaliza. A escrita insustentável. O último suspiro é o último som de uma huma-
desempenhou, neste sentido, um papel exemplar de sim- nidade ainda concebível. No momento em que a morte toma
bolização. «Foi através do acto mais solitário que existe, o da conta do homem atinge-o com silêncio. A vontade de sacudir o
escrita», afirma Alain Emmanuel Dreuilhe «que me apercebi cadáver, para lhe restaurar a fala e os movimentos da vida,
que era uma geração inteira que se debatia nas trevas da epi- o grito desesperado de quem testemunha, a sua curta negação de
demia que tão bruscamente caiu sobre nós. Convenci-me, que a morte esteja presente, revelam a perturbação que brotou
então, que se também eu acendesse uma vela nessa obscuri- da penetração gelada do silêncio. A morte apresenta-se então na
dade, talvez conseguisse, através da fraca luz projectada, forma do doloroso mutismo de um ser que conserva ainda
graças a este jornal, fazer recuar um pouco as sombras que nos durante algumas horas o seu rosto de homem e cujos lábios
oprimem. Este cortejo de archotes serviria também para nos con- parecem prontos a revelar o segredo, ou a animarem-se ainda
tar, enquanto estamos vivos, para deixarmos de só nomear para retomar uma conversa interrompida. O espanto sufoca
cadáveres». Hervé Guibert nota, por sua vez, que «a sida é quem assiste à passagem e lança-o numa radical impotência de
uma doença maravilhosa... é uma doença que proporciona linguagem. O silêncio do cadáver enche subitamente o mundo.
tempo para morrer e tempo para viver, o tempo de descobrir A intensidade da dor que se sente não tem relação com a com-
o tempo e de, finalmente, descobrir a vida; é, em certa medida, paixão referente ao desaparecido, submergido no centro mesmo
uma genial invenção moderna, que nos transmitiram esses dessa ausência de tudo que mais lhe interessava. Arruinando a
macacos verdes de África». Pascal de Duve traça o mesmo elo- relação com o mundo dos homens, a morte vai buscar algo ao
gio da doença: «Sida, meu amor, amo-te. Adoro-te tanto como sagrado, especialmente o momento fugitivo da passagem para o
te abomino. Amo-te por seres minha, como nenhum outro. outro mundo. Este tremendum que foge ao vulgar da existência
Amo-te porque cuidas meticulosamente de mim, sem des- e põe o homem em confronto com o mistério da sua condição,
canso. Amo-te porque vamos morrer juntos. E, finalmente, com a intuição do seu fim pessoal.
amo-te porque, graças a ti, a minha vida encurtada torna-se, O silêncio de quem assiste à morte de um outro é a marca,
cada dia, mais extraordinária. Antes, eu não chorava de quase metafísica, da reticência em acreditar na imobilidade de
emoção, ao olhar a beleza do céu; nem sequer reparava nela»ó. mármore daquele de quem buscamos o olhar e cuja fala ou
A esconjuração é individual e, simultaneamente, colectiva. escuta ainda estava presente nos minutos precedentes. Anny
Rompe o silêncio, através de uma actividade de criação, tal Duperey, aterrorizada, descobre uma manhã os seus pais asfi-
como a escrita ou uma actuação militante de acompanha- xiados na casa de banho. Consegue alertar um vizinho. «Ele
mento de outros doentes ou de luta política contra as conse- meteu os ombros de lado, na janela, para poder pôr a cabeça de
quências da pandemia. A níveis múltiplos, no plano real ou fora e gritou. Esse grito. De repente quebrou o silêncio em que
metafórico, a seropositividade ou a sida estão em confronto me debatia, cristalizou essa espécie de nevoeiro de dor que me
com a questão do silêncio e com o modo de o ultrapassar ou de fazia colar à parede, no qual me afogava. Essa voz, subitamente
aprender a viver com ele. soante repercutia-se na pequena casa de banho, pela casa, en-
chendo a rua inteira, e ainda a ouço»?. A angústia que a existên-

5 Alain Emmanuel Dreiulhe, Corps à corps. Journal de Sida, Paris, Gallimard,


1987, p. 123.
6 Pascal de Duve, Cargo vie, Paris, Lattês, 1992. 7 Anny Duperey, Le voile noir, Paris, Seuil, 1992, p. 209.

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cia empresta a esse sopro de voz tão fácil de interromper incita, para acompanhar aquele que morre na continuação de uma con-
por vezes, a dizer algo que tem apenas por legitimidade o afas- versa que a morte não afectaria. Não menos destituído para
tar-se do outro, o deixá-lo atolado no seu silêncio. «Venha», diz escutar as hipotéticas palavras daquele que talvez fale, mas do
Gottfried Benn. «Conversemos, aquele que fala não está morto.» ual não consegue ouvir qualquer mensagem. O que está para
Frase destinada apenas a atestar uma existência que a desapa- além daquele rosto inerte é inaudível. Perante o cadáver de
rição do outro abala por instantes. Tarrou, Rieux ouve o silêncio. «Sentiu pairar a surpreendente
V. Jankélévitch contrapõe o silêncio inefável, promessa calma que, muitas noites antes, nos terraços por cima da peste,
incansável de discurso e de efusões, prelúdio de um desabafo se tinham seguido ao ataque das portas. Já nessa época, ele
que encontra na metáfora um meio de contornar permanente- tinha pensado no silêncio que vinha das camas em que ele tinha
mente o seu objectivo, para o celebrar ou evocar; e o silêncio deixado morrer gente. Era, por todo o lado, a mesma pausa, O
indizível, que volta a lembrar a morte e encerra a palavra numa mesmo intervalo solene, sempre a mesma acalmia que se sucede
carência essencial. «Em oposição ao silêncio de um céu estre- aos combates, era o silêncio da derrota»?.
lado, o silêncio indizível da morte faz antes lembrar o mutismo Ao aproximar-se da morte, a palavra estrangula-se, dissol-
tremendo desses espaços negros que meteram medo a Pascal: ve-se em silêncio ou quebra-se num grito. Perante a impossibi-
neste caso, a nossa interrogação continua sem resposta; neste lidade de voltar a encontrar o Outro, de voltar a tocá-lo, ela
caso, a nossa voz clama no deserto e o diálogo volta a cair de desagrega-se e incita ao mutismo. A morte é o fim de uma fala
imediato na desesperante solidão do monólogo» (Jankélévitch, cujo desenvolvimento estava no rosto atento do outro, agora
1977, 85)8. Perante o cadáver, a fala fica suspensa nos lábios fre- ausente. Perante a destruição irremissível do sentido, a pas-
mentes, receia expor-se ao sofrimento de uma solicitação sem sagem dos limites oprime a linguagem e remete o homem para
resposta, agravando desse modo uma chaga já aberta. Tem a sua nudez, para a sua incapacidade última de compreender
medo de provocar o silêncio e de espevitar a dúvida criada pela o significado da sua existência. O frágil véu das palavras des-
posição ambígua do cadáver em estar ali, ao alcance da mão e faz-se perante o indizível, à altura de uma dor que aperta
algures, aparentemente inacessível a qualquer possibilidade de a garganta, como que para expressar a inanidade da palavra.
se manifestar, mesmo perante o desgosto ou o apelo mais dila- A morte vem mostrar que, para além do silêncio que por vezes
cerante. Não deixa de estar menos tolhida pelo medo, sem dú- afoga a fala da vida quotidiana, se estende um outro silêncio,
vida, que esse grito petrificado, esse bloco de silêncio, não se ainda mais profundo, relacionado com o próprio sentido da pre-
quebre repentinamente para proferir uma palavra inesperada sença do homem no mundo.
que viria quebrar esse tecido de certezas que fazem a existência Na fronteira dos sistemas simbólicos que permitem chegar ao
ainda pensável e comunicável, mesmo nas piores circunstân- significado das coisas, no limiar da linha de sombra, o indivíduo
cias. Faltam as palavras, o homem fica em cheque, impotente está entregue a si próprio, sem referências, como presa da con-
fusão ou do medo. Perante os despojos, já revestidos de ini-
8 «Um taciturno tem facilmente a aparência de profundo», escreve Michel quidade, fica despedaçado entre o universo inteligível da vida
Leiris «e, da mesma forma, o silêncio do cadáver leva a crer que tem muitas corrente e aquele, indizível, em que o outro passa agora a parti-
coisas que contar; da mesma forma que, no lugar do taciturno, a nossa ati- cipar, na fronteira de um para lá do pensamento, entre dois mun-
tude para com ele está carregada de ambiguidade: se ele se calar provoca de suspensão em que, por mo-
dos, conhecendo um momento
mal-estar, mas receamos também que, se desatar a língua, não seja para a
mais incongruente das revelações; vale mais, portanto, que insista em ficar mentos, o coração falha e a emoção brota. O regresso ao banal
calado e que, sem perigo de nos decepcionarmos, fiquemos livres de aturar das situações sociais, ao abandonar o quarto onde repousa o
sejam quais forem as sublimidades que se escondam por detrás daquela
máscara profunda» (Leiris, 1955, 60-61). 9 Albert Camus, La peste, Paris, Folio, p. 262.

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outro, tem o peso de uma espécie de refúgio em si mesmo, de um dinâmicas de grupo, que reúnem participantes durante vários
revestimento de silêncio que torna as palavras difíceis de mane- dias sem outra finalidade que a de estarem presentes e de
lar, mesmo para expressar as coisas mais elementares: pedir um reflectirem em conjunto sobre o significado da sua presença
bilhete de autocarro, indicar a direcção a um taxista, ou cumpri- mútua, os longos silêncios que nascem do insólito da situação
mentar um amigo. O desgosto sentido com a morte do outro são frequentemente interrompidos por soluços ou por momen-
provoca os mesmos silêncios e as mesmas palavras, tantas vezes tos de emoção, sempre que um dos participantes associa este
já ditas, mas primeiras e incómodas para quem trilha um cami- recolhimento sobre si próprio à lembrança da perda de alguém
nho povoado em que, contudo, cada um se encontra só. que lhe era chegado. O mutismo doloroso que paralisa os mem-
Mesmo o confronto com os restos de um desconhecido não bros de um grupo lembra imagens de luto e reaviva uma afec-
deixam indiferente. Quando os estudantes de Medicina entram tividade mais ou menos escondida. André Néher vê no texto
pela primeira vez no laboratório em que estão os cadáveres que bíblico uma ligação estreita entre o silêncio e a morte a partir de
vão ter de dissecar, a turbulência do grupo acalma-se e dá lugar uma mesma raiz damô. «A par de shéol, cuja etimologia é des-
a um silêncio horrorizado, perante os corpos alinhados, pálidos conhecida, a Bíblia utiliza, com efeito, para designar a morada
e, muitas vezes, envelhecidos. Calam-se por momentos, para dos mortos, o termo douma, derivado de damô. Descer ao douma
assumirem a situação. Só mais tarde, quando os trabalhos práti- é, portanto, aceder ao silêncio e inversamente» (Néher, 1970, 40).
cos começam, as graçolas macabras, o humor estudantil surge Nas nossas sociedades, principalmente o silêncio e a morte
entre alguns, como sistema de defesa contra a angústia da trans- formam um conjunto inseparável, quer se trate do mutismo
gressão. Mas primeiro reina o silêncio, como que para significar que atinge aquele que morre quer daqueles cuja fala fica pa-
que não há palavras que expliquem tal situação. Depois a razão ralisada por já não terem interlocutor, ou ainda a metáfora
predomina, as tradições universitárias, o imperativo da forma- que associa O silêncio à carência, ao indizível, à ausência
ção, embora a experiência demonstre que muitos médicos ainda daquele outro que realmente existiu e de tal forma marcou Os
guardam consigo esse silêncio e dão livre curso a antigas emo- que lhe sobreviveram. «O instante da morte, é o silêncio a
ções se os interrogam sobre o assunto (Le Breton, 1993, 18 segs.). colar-se à vida», escreve ainda A. Néher. «A continuação da
No local de um acidente reina o silêncio, por respeito para com morte, é o silêncio, afastando-se infinitamente da vida. Nunca
os feridos ou os mortos, mas igualmente pelo pasmo perante a se conseguiu arrancar à morte mais do que o silêncio. Nunca se
efusão do sangue e da morte que faz lembrar a cada um a expe- conseguiu recuperar a morte, porque somos engolidos pelo
riência tangível da sua precariedade pessoal simultaneamente seu silêncio como em areias movediças» (Néher, 1970, 42).
com o espanto de ainda estar vivo. Existe na morte um arrancar à presença que suscita o estupor
O silêncio entra na morte como que no seu elemento criador, de quem assiste.
parece mergulhar nela uma ou outra das suas raízeslO, Nas

RITUAIS FUNERÁRIOS
10 O minuto de silêncio é bastante revelador deste ponto, visa simbolica-
mente uma suspensão dos acontecimentos do mundo. O recolhimento dos Os restos mortais do homem são uma amálgama de silêncio,
presentes é um mergulho na memória da sua relação com o defunto ou algo que se encontra no interior de uma série de círculos con-
com a tragédia que se comemora. O fluxo de existência é provisoriamente
cêntricos que, à medida que se vão afastando, restituem à fala e
parado em testemunho da dor sentida. O ritual é uma obrigação social em
relação à lembrança, mantendo os corpos e as palavras na mesma postura. ao murmúrio do mundo a sua habitual soberania. Na câmara-
A comunidade como que imita a ausência para reviver mentalmente a pre- “ardente não se ouvem vozes a não ser em sussurros. O recolhi-
sença dos desaparecidos, para os celebrar, para lhes dedicar uma oração. mento é de norma, a recordação, as orações, cada qual virado

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para si mesmo. As palavras não têm a medida plena dos seus rioridade ou um segredo. De acordo com o estatuto de interio-
ecos normais. Os velórios ou os momentos que antecedem os ridade que lhe é conferido pelas representações sociais ou
funerais, quando os mais próximos estão reunidos pela última pessoais, os restos mortais representam simbolicamente o desa-
vez à volta do desaparecido, como que põem as vozes em sur- parecido e persiste, no centro da cerimónia fúnebre ou, pelo
dina; marcadas pelo silêncio ficam como que assombradas pela contrário, torna-se num objecto secundário, num simples resto
proximidade do outro, que está presente ali e simultaneamente que atrapalha, em via de degradação, que deixa de ter qualquer
noutro sítio, estranho à situação mas dominando-a, com a sua ligação com a pessoa que foi.
ausência de ser. Há soluços que perturbam um instante de silên-
cio, como por vezes os ruídos numa sala próxima, onde se
prepara café ou onde se recebem os convidados que se vêm jun- CULTURAS DO LUTO
tar à cerimónia. Junto do corpo, as vozes calam-se ou baixam,
como se o ruído normal da conversa fosse incomodar ou impe- Determinadas culturas associam estreitamente, nos seus
dir o seu repouso. hábitos, o silêncio com a morte. Deste modo, a morte de um
As relações com o defunto dependem evidentemente das manuche provoca simbolicamente o desaparecimento dos
representações ou das sensibilidades que rodeiam o cadáver. Se traços, das lembranças, das referências verbais ao defunto.
os enlutados consideram que o corpo é algo de indiferente, E a ausência é ainda marcada pela queima e destruição dos seus
como que um invólucro desprovido de vida, um nada desti- bens, a sua caravana, por exemplo; se não foram repartidos
nado a apodrecer, podem dirigir o seu diálogo interior para a antes da sua morte, o seu dinheiro e as suas jóias acompa-
«alma» do desaparecido, ou considerar que não resta traço do nham-no e são utilizados nos funerais e na manutenção do seu
seu ser, para além de um conjunto de lembranças e de uma túmulo. As suas coisas são vendidas a um gadjo sem que se pro-
came perecível, embora o diálogo com ele esteja interrompido!!. cure extrair qualquer lucro disso. Se alguns objectos são guarda-
Contrariamente, outras concepções culturais ou pessoais con- dos excepcionalmente (faca, guitarra, relógio, ferramentas, etc.),
sideram que não existe qualquer dissociação entre o homem e o passam a assumir uma gravidade especial, de objecto mullo, mas
seu corpo. Logo à partida, o cadáver não é considerado como quase sempre os outros manuches ignoram este facto que corres-
um resto que foi abandonado pela morte, mas como a própria ponde ao «silêncio que preside às relações entre membros do
pessoa, que foi conhecida por aqueles que estão à sua volta. grupo» (Williams, 1993, 7). Assim, um amigo pede emprestado
A humanidade do cadáver permanece, mobiliza o respeito um conjunto de bolas de pétanque e fica magoado com a recusa
(Le Breton, 1993). Continua assim o diálogo com o defunto, do dono, porque elas pertenceram ao «seu falecido pai», são
falam com ele, interiormente ou em voz baixa, recordam com ele portanto mulle, mas como não se explicou, passa a ter a re-
momentos especiais, lamentam-se os mal-entendidos, as oca- putação de falta de generosidade. «Este silêncio que cerca os
siões perdidas, os momentos em que se esteve em falta com ele. objectos mulle é apenas um aspecto do silêncio geral que rodeia
Despedem-se simbolicamente dele, numa conversa que não foi os mortos», escreve P. Williams. Na verdade, não se fala dos pa-
interrompida, mas que tem muitas vezes relação com uma inte- rentes mortos. Para além do círculo familiar, contudo, fala-se às
vezes de recordações comuns, pronuncia-se o seu nome, mas
11 Cf. por exemplo, Simone de Beauvoir confrontada com a morte de sua acompanhado de uma «fórmula de respeito». Por vezes, os pró-
mãe: «Censurei-me por ter abandonado tão depressa o seu cadáver. Ela ximos deixam de nomear o desaparecido, qualificando-o pelo
costumava dizer e minha irmã também, “um cadáver já não é nada!”, lugar de parentesco que tinha («O meu pobre irmão defunto»).
Contudo era a sua carne, os seus ossos e, durante algum tempo, ainda o Os vivos e os mortos já não partilham o mesmo universo e esta
seu rosto.» (Une morte três douce, Gallimard, p. 139). distinção repercute-se no próprio seio da linguagem pela dis-

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crição de que os segundos são objecto: sobre esse outro mundo rei ilustra a memória de seu pai e do seu próprio reino não
não há nada a dizer. Proíbem-se os pratos, as bebidas de que o abrindo a boca durante os três anos de luto: manifestando deste
morto gostava, deixa-se de contar as suas histórias preferidas, modo e adquirindo uma virtude que faz a dinastia novamente
etc. Ou então deita-se no chão um pouco de vinho ou de cerveja, florescente» (Granet, 1953, 227). Durkheim salienta a recorrên-
«para o defunto», num gesto de partilha. «Todos estes gestos», cia do silêncio das mulheres em numerosas sociedades tradi-
escreve P. Williams «ao mesmo tempo que confirmam o desa- cionais australianas atingidas por um luto, no início do século.
parecimento de um indivíduo, instalam-no entre os vivos, de Entre os Warramunga, uma comunidade aborígene, as mani-
acordo com modalidades especiais. Entre elas, as. que chegam a festações sociais de luto exigem das mulheres que cortem os
estabelecer uma comunidade amnésica, formada por indiví- cabelos e se cubram de terra. É-lhes imposto um silêncio
duos dotados de memória» (p. 13). O silêncio é um sinal deli- absoluto durante um período que pode chegar a dois anos.
berado de abstenção que não deixa de designar o indivíduo no Acontece mesmo, escreve Durkheim, não ser raro que todas as
vazio, criando-lhe um espaço simbólico no centro da coesão mulheres do grupo se obriguem ao silêncio. Por vezes, o fim
social manuche, marcando o seu lugar especial na memória do período de luto não as volta a ver falar. Desenvolvem aliás
familiar ou colectiva. uma linguagem gestual de enorme habilidade (Durkheim,
Muitas outras sociedades associam o silêncio à morte. Um 1968, 559-560).
texto clássico de M. Granet, sobre a China feudal antiga, recorda Noutras sociedades, ruído e silêncio ritualizados conjugam
que os membros da mesma família são obrigados, pelo ritual a sua influência de acordo com as circunstâncias do luto. Na
funerário, a suspenderem toda a actividade social num recolhi- África negra os funerais das pessoas idosas estão associados a
mento de vários meses. Dispersos pelas cabanas construídas à manifestações controladas mais ruidosas: cantos, danças, tam-
volta da casa do morto, deitados sobre a palha, permanecem bores, etc. (Thomas, 1976, 421). Mas não acontece sempre o
num estado de entorpecimento, simbolicamente perto do mesmo com a morte de um homem na força da idade, de uma
defunto. Alimentam-se apenas na medida em que as con- criança ou de uma parturiente. Na cultura Bambara, a morte
venções permitem, negligenciando os cuidados com o corpo. traduz-se por um silêncio severo interrompido apenas pelo
Permanecem silenciosos, privados de contacto oral com os encarregado da família, para anunciar que «fulano já não
outros, salvo em determinados períodos, em que a dor tem existe». «Nessa altura, cada um dos parentes do morto dá um
autorização para se exprimir através de gritos. Os parentes jun- grito de dor, após o qual já se pode falar» (Zahan, 1963, 50).
tam-se de acordo com um repertório convencional de gestos e Não se fala na presença do defunto enquanto o corpo está a ser
de expressões verbais para manifestar o seu sofrimento perante preparado. Silêncio também durante o enterro. Durante três
o grupo. Cada um dos membros, de acordo com o seu grau de dias, o viúvo vive no quarto da sua esposa e não pode pronun-
parentesco, está adstrito a uma classe especial de luto e a um ciar uma única palavra. Aqueles que dançam à volta dos despo-
regime especial de linguagem. O gesto substitui a palavra, a não jos de um sacerdote encarregado dos altares consagrados à
ser que esta seja permitida, mas sem que ele possa tomar terra ficam igualmente obrigados ao silêncio durante a exe-
a iniciativa. O filho, ou seja, o mais chegado ao defunto, o cução do ritual. Da mesma maneira, o atravessar um cemitério
herdeiro, é submetido a uma rigorosa disciplina de silêncio. exige a abstenção da palavra (Zahan, 1963, 157). Na cultura
Um governante de luto tem, contudo, o direito de falar se os Dogon, se for preciso contar o falecimento de um indivíduo
assuntos do reino o exigirem (mas não em relação à sua posi- aponta-se para a terra com um gesto da mão. Se for anunciada
ção pessoal), e um oficial importante ou um nobre gozam da uma morte súbita «põe-se rapidamente a mão diante da boca
liberdade de falar em defesa do seu senhor (mas nunca em para suster as palavras» (Calame-Griaule, 1965, 272). Contudo,
relação aos seus assuntos particulares). Em contrapartida, «um os funerais são ruidosos, entrecortados de cânticos acompa-

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nhados pelos músicos tradicionais, com danças incansáveis de A AUSÊNCIA DO OUTRO
homens e máscaras no terreno do morto, com tiros de espin-
garda, com o fundo de gemidos e lamentos das mulheres, com O silêncio do mundo, depois da perda do ser querido, ocupa
o raspar regular da cabaça partida no chão, para marcar a o lugar aberto pela ausência. Toma o lugar de palavras ou de
recusa da morte, mas também para se purificar com a terra. gestos que se tornaram impossíveis. É uma suspensão da
A produção de ruído tem por objectivo o canalizar da dor, existência, sombra permanente daquilo que desapareceu,
afirma Geneviêve Calame-Griaule (p. 372), deixar que ela se deixando um abismo de sentido, um soluço reprimido. No local
exprima sem reservas, embora de forma ritual. Por outro lado, onde o outro esteve, onde ainda está, devido a uma memória
o grupo fica perturbado pela anomalia da morte de uma partu- que não se deixa perder, continua essa mistura de desgosto e
riente. Os funerais são então silenciosos e realizam-se de noite, de recolhimento, em que falta uma fala que perdeu o seu desti-
sem testemunhas, apenas ao ritmo de um tambor de trazer natário privilegiado. «O silêncio do quarto grita mais do que
debaixo do braço e de objectos de barro que se batem ligeira- o clamor mais vivo», escreve Anne Phillipe. «É o caos na cabeça,
mente um contra o outro. Não há nenhum lamento, nenhum o pânico no corpo. Vejo-nos num passado que não consigo situar.
grito. O marido não recebe nenhuns pêsames, sente culpa e é O meu duplo descola-se de mim e volta a fazer o que eu
obrigado a esconder-se no mato, por momentos, num ritual de então estava a fazer» (p. 40). O silêncio que impregna um lugar
purificação. Nenhuma mulher se aproxima dele, com medo é igual ao silêncio do desaparecido, é a ausência da sua voz, a
de ter a mesma sorte: a purificação implica o violar uma mulher palavra muda, e torna dolorosa a passagem do tempo. O luto
de fora da aldeia (Calame-Griaule, 1965, 339). é uma exclusão do sentido, um esgotamento do valor associado
Myriam Smadja assinala que os Tammari do Norte do às coisas da vida, traduzido por uma carga de silêncio que marca
Togo celebram em silêncio o tibenti, um ritual de luto dedica- o afastamento do laço social habitual. As conversas ociosas,
do aos antigos. O clã do defunto reúne-se à volta da takienta, a tranquilas, os passeios, estão-lhe provisoriamente proibidos ou
casa de muros sem janelas, plantada no meio dos campos e que são difíceis, de tal modo as recordações, o desgosto ou o senti-
tem por cima os celeiros. O clã mantém-se imóvel e mudo. mento de culpa em gozar do tempo que passa quando o outro já
O silêncio é a língua dos mortos, «a verdadeira palavra». lá não está para o partilhar. A linguagem é ferida na origem:
Através dele os participantes comunicam, não apenas com os comunicar para o mais perto e para o mais longe de si. Existe
seus defuntos mas também com os antepassados de toda a um enclave de silêncio no sítio onde falta a palavra do Outro,
linhagem. «Ao subir da Lua, de noite, o sopro dos mortos uma impossibilidade de ver ou escutar o mundo sem encontrar
antigos deixa os túmulos do cemitério e dirige-se para as o apelo lancinante da sua ausência. «Aprendi a levar uma vida
casas, onde cada um deles tem o seu altar. O silêncio do clã é dupla», escreve ainda A. Phillipe. «Penso, falo, trabalho e, ao
um apelo em sua intenção, um convite para ir ao seu encon- mesmo tempo, continuo ocupada contigo; mas uma certa dis-
tro. Instalam-se também diante da casa, preparados para tância torna a tua presença doce, algo suave, como aquelas
guiar o novo morto no caminho “para lá, onde se vai”» fotografias pouco nítidas» (p. 39). A dor leva-nos para longe.
(Smadja, 1996, 15). Um homem sobe para o terraço e, através O Outro já não está ali, para falar e reconciliar a palavra e a
de um buraco que liga o alto e o baixo da casa, murmura o existência no sossego de uma forma diferente de silêncio.
nome do morto, o nome sagrado que não tinha o direito de lhe A relação com o mundo está plena de silêncio, de suspensão, de
chamar enquanto estava vivo. A alma sobressalta-se e fica afastamento, sendo por vezes dividido numa conversa interior
atenta. Os tambores e as flautas fazem a continuação. O sopro mantida com o desaparecido, ao passo que o laço social de
do morto, desligado da sua sombra, é então susceptível de aparência continua a ser alimentado com todos os sinais de boa
entrar numa criança. vontade, salvadas as aparências.

254 255
Uma incansável fala interior mantém viva a memória do escrever para dizer que não vou dizer nada, não escrevo para
outro, reanimando o seu rosto, com o diálogo a prosseguir, no dizer que nada tenho a dizer. Escrevo: escrevo porque vivemos
segredo de uma deliberação íntima. O Outro passa a viver por juntos, porque eu fui um entre eles, sombra no meio das suas
si mesmo, correndo-se às vezes o risco de lhe sacrificar tudo o sombras, corpo perto dos seus corpos: escrevo porque eles
mais. À volta da mesa familiar reina por vezes uma cadeira deixaram em mim a sua marca indelével e porque o traço dela
vazia, um talher diante do qual ninguém se senta, uma ausência é a escrita»!3, escreve Georges Perec, quando criança, acerca de
tangível, inscrita nos rituais comuns ou individuais, que seus pais mortos durante a deportação. Continuar a escrever ou
o outro desperta a emoção, O sofrimento, mas con-
emprestam ao silêncio do defunto um eco ensurdecedor. Lugar a falar com
dedicado a um grito que parou no tempo, que recusa o luto, trapõe-se ao vazio, ao esquecimento, levanta uma memória
encerrando a dor numa repetição que quer negar a morte, mas activa, que se esforça por mudar o tempo e a ausência. Anny
que está condenada ao fracasso. Assombra a existência, toda ela Duperey tem momentos de dúvida: «Todas estas palavras
transformada numa cerimónia secreta centrada no desapare- me fazem mal, tenho a sensação de os voltar a enterrar e
cido, indiferente aos vivos. agarro-me às minhas páginas quase desesperadamente. Dois
Ou então o outro continua a ser uma presença ligeira, que anos de escrita contra trinta e cinco anos de silêncio, é dema-
acompanha os acontecimentos do dia, a quem se pede conselho, siado ou muito pouco?» (p. 193). Mas termina o seu livro com o
por quem se chama nos momentos em que a dor se torna mais sentimento de uma presença renovada. A longa carta de amor e
difícil de suportar. E mesmo isso com o sentimento de que o desespero a seus pais, desaparecidos tão novos, chegou sim-
outro desapareceu e que talvez não ouça. Michel Deguy, roído bolicamente aos destinatários reavivando nela os seus rostos.
pelo desgosto, depois da morte da sua mulher, escreveu um «Não existe silêncio, não existe solidão com tal desgosto no
livro sobre a sua dor, num gesto de comunicação que, segundo coração. Acalenta-me, mantém-me quente, ocupa-me. Desgosto
declara, se dirige apenas a si próprio, uma vez que cada frase por vós, como se fosse uma pequena bola no meu ventre, que
está cheia pela presença da sua companheira com quem final- está ali comigo, como uma criança em perpétua gestação...
mente continua a falar, mesmo tendo o cuidado de não o fazer. A vossa morte tornou-me para sempre grávida de vós. Vós
«Não creio», diz ele «cm nenhuma comunicação com os mortos, morais dentro de mim» (pp. 234-5).
para além daquela que mantenho com a tua impregnação em O luto é simultaneamente, de forma simbólica e real, uma
mim, essa alma estranha que “vive dentro de mim”, essa outra travessia do silêncio, um recolhimento doloroso junto do desa-
verdade que “está instalada no homem interior”, desalterando parecido, que se esbate lentamente e remete o indivíduo para
o ego e tornando-o hospitaleiro em relação à adversidade»12, o mundo dos actos vulgares da própria vida se a tristeza ou
A escrita, prosseguindo um diálogo com o desaparecido, é uma a falta se fazem sentir frequentemente. É um encaminhamento
forma de restaurar a presença através do jogo do sentido, de que vai desde o acontecimento trágico da palavra ausente
manter intacta a ligação, de prosseguir sem descanso a conversa até ao reconhecimento progressivo do som amigo e solidário
um dia interrompida. Esconjura a dor, passando por ela de olhos da fala dos outros, que incita ao prosseguimento da existência.
abertos, colocando uma palavra sobre a queimadura incessante O desenrolar pessoal do luto consiste, por um lado, em tornar
da ausência. «Não vou encontrar nunca, mesmo que me volte a o silêncio do desaparecido menos gritante. Na tradição apache,
interrogar, mais do que o reflexo de uma palavra, ausente da being with people who are sad, isto é, contactar com uma pessoa
escrita, o choque de um silêncio e do meu silêncio: não estou a que está de luto por um próximo, implica uma cortina de silên-

12 Michei Deguy, À ce qui nen finit pas, Paris, Seuil, 1975, sem paginação. 13 Georges Perec, W ou le souvenir d'enfance, Paris, Denoél, 1975, p. 59.

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cio ou de raras palavras de conforto, durante as semanas ou os abaixo uma inscrição em letras berrantes: Silence = death. Este
meses que seguem o falecimento. Parte-se do princípio que o slogan vai ser retomado pelo grupo Act-Up, com o fim de
desgosto está ainda demasiado vivo para que proporcione uma sacudir a inércia social e política, indiferença ou ignorância
troca de palavras. Respeita-se o seu sofrimento não o solicitando que contribuem para a propagação da infecção (Meyer, 1995,
e deixando-lhe a iniciativa (Basso, 1972, 77-79). 60 segs.). Nos sítios onde há uma abundância de morte e dor,
Noutros sítios, entre os Igbo, por exemplo, a morte é enten- com o fim de romper o silêncio que se abate sobre a sucessão de
dida como o fim de um ciclo natural da existência, mas se lutos, apareceram nos últimos anos formas de resistência ao
alguém morre, antes dos seus pais, sem ter chegado à idade esquecimento. Nas instituições de cuidados de saúde ou nas
adulta, nem amadurecer todas as suas possibilidades, a sua associações de acompanhamento, à volta dos familiares dos que
morte é considerada «prematura» e o luto afecta profundamente desapareceram, uns e outros desamparados perante o número
a família. Para não agudizar demasiado o sofrimento, é costume
de falecimentos referentes a pessoas jovens, surgiu a necessi-
os outros membros da comunidade evitarem os enlutados. Os dade antropológica de fixar as amarguras, de instaurar uma
que pretendem assinalar a sua solidariedade instalam-se perto réplica significativa com o objectivo de resistir a um silêncio
deles e participam no recolhimento silencioso que reina à ensurdecedor. Criaram-se cerimónias, improvisadas, mas que
volta do cadáver. Depois retiram-se discretamente, sem uma
seguidamente se renovam e passam a ser simbólicas e ritua-
palavra, não tendo deixado de marcar, com a sua vinda, o seu
lizadas, de incentivo ao prolongamento e sucedendo-se, de um
próprio desgosto por terem perdido um próximo. Fazendo isso lugar a outro, de acordo com calendários próprios. Uma conju-
testemunham ainda, com a sua presença junto do morto, a sua
gação de intensidades de dor faz nascer uma liturgia colectiva.
inocência em relação à sua morte. Uma morte prematura é con- Os participantes nos rituais unem-se no mesmo fervor, numa
siderada como não sendo originária em causa natural, mas de
solidariedade contra a doença que banaliza a morte, que atinge
uma agressão proveniente de alguém com poderes mágicos. sem fazer distinções mesmo os mais jovens, mesmo aqueles cuja
Ora, tal indivíduo não poderia ficar sem perigo junto do espírito vontade de viver nunca tinha sido posta em causa. Arnaud
sempre intacto da sua vítima. Qualquer palavra é supérflua em Marty-Lavauzelle di-lo com veemência: «Os lutos da sida não
semelhante situação e acrescentaria um sofrimento suplementar. são vulgares... São profundamente intensos, vividos por pessoas
O silêncio que envolve os enlutados é uma defesa contra a que são portadoras de estigmas, do opróbrio que recaia sobre 0
ameaça de fazer aumentar a dor pelas condolências ou pela familiar desaparecido; sofrem do funcionamento da discrimi-
dolorosa recordação de lembranças comuns (Nwovye, 1985, 186).
nação e da rejeição. Não são lutos de que se possa falar facil-
mente à nossa volta. São lutos que provocam uma activação
especial nas pessoas enlutadas, uma activação mórbida, quando
A ESCONJURAÇÃO DO SILÊNCIO se é companheiro de um portador de vírus ou quando se é pai e
se lamenta: “Que está a acontecer, o meu filho, a minha filha,
Para qualquer pessoa preocupada, de perto ou de longe, mais novo do que eu, morreu antes de mim!”» (Marty-Lavauzelle,
pela sida, a questão do silêncio é particularmente compromete-
1993, 93). O pensamento siderado procura uma saída. Os rituais,
dora. Em primeiro lugar, devido ao atraso dos poderes públicos nascidos da imaginação sociológica de grupos especiais, sim-
em reagirem contra a pandemia. Foi preciso esperar, por exem- bolizam aquilo que não se pode nomear, dão um significado e
plo, por Maio de 1987 e pela morte de mais de vinte mil ameri- uma conduta para a quebra do silêncio que causaria sufoco,
canos, para que o presidente Reagan evocasse num discurso a fazem sentido, o que quer também dizer que reúnem, que
gravidade da situação. A partir de 1986 aparecem posters em
restauram o valor daquele que morre e o amor, a ternura dos
Manhattan que têm no centro um triângulo cor-de-rosa e mais que ficam afirmam, novamente, a permanência do vínculo.

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Deixam rastos de memória, ou seja, uma arma contra um silên- incipiente, apesar da morte, mostrar deste modo ao defunto que
cio que está associado à indiferença, ao esquecimento, à a sua existência não foi em vão, que ele deixa um rasto de ser
desigual dignidade social dos homens. O ritual é um assumir indelével para aqueles que o conheceram!5. Um movimento de
colectivo de sentido que orienta a atitude em relação ao acon- criação simbólica, mais personalizado, começa em 1988, na
tecimento, que procura um modo de utilização da sua reso- comunidade homossexual de São Francisco, por ocasião de uma
lução, uma maneira comum de esconjurar a desordem, o abismo marcha de archotes organizada pelos próximos de desapare-
do não-sentido, que ameaça o relacionamento com o mundo. cidos, no decorrer da qual alguns tiveram a ideia de escrever os
Também muitas vezes os amantes são afastados dos rituais nomes dos seus amigos mortos de sida e de os colar nas
funerários organizados pelas famílias que, deste modo, se apro- paredes. Foi este o primeiro gérmen dos Names projects ou dos
priam in extremis dos seus filhos e recusam a sua antiga identi- patchwork de nomes que teve por objectivo opor-se à dissolução
dade, as suas relações, numa preocupação de salvar as aparências: da memórialé. Um pedaço de tecido recolhe os traços de um ser,
«Em primeiro lugar tive sentimentos de raiva extrema- os fragmentos de uma identidade, uma frase, uma foto, uma
mente grande, quando morreram os meus amigos», escreve peça de roupa, uma palavra. O nome a dar a cada patchwork, a
A. Marty-Lavauzelle «quando via que a família de sangue sua dedicatória, é um arrancar ao silêncio, em que o nome
recuperava uma criança de quem nunca se tinha sempre ocupado, ressoa como um chamamento, que faz com que o outro esteja
durante a doença, e que, na realidade, toda a cerimónia do simbolicamente presente. A confecção do patchwork é uma fonte
enterro era uma recuperação, uma anulação de tudo o que as escaldante de evocações, a imersão numa história partilhada
pessoas tinham vivido. Eles deixavam de ser reconhecidos nas com o outro, uma deliberação íntima ou tomada com os próxi-
suas condições de vida, o amigo não era mencionado, a doença mos em procurar saber aquilo que ele gostaria de ver figurar no
sida não era mencionada»!4, Os parentes acabam por ser obri- tecido, os emblemas, as palavras, as marcas que o teriam emo-
gados a inventar novas formas de celebração, rituais paralelos cionado. «Tivemos verdadeiramente a impressão que nos
de reapropriação simbólica que marcam a recusa desta segunda roubavam um pouco a imagem de Pierre. É também por isso
morte, ligada com a ruptura do vínculo social e contrária à que não sinto nada quando venho a este cemitério. Porque,
memória do indivíduo, ao estabelecimento do silêncio que vejamos, oficialmente Pierre morreu de uma leucemia fulmi-
envolve o drama, de modo a fazer com que se dissolva no nante. Foi isso talvez que nos levou a fazer o patchwork, porque
esquecimento, uma figura perversa da indiferença. As fórmulas ele era militante do Act-Up. Aqui ele é nada, é apenas um filho
múltiplas de ritualidade, originadas pela dor e pelo espírito de boas famílias que morreu, um erro de percurso»!?. A criação
inventivo comum, são actos de resistência, uma última maneira
de reter o outro, de lhe prestar justiça, de lhe voltar a falar do 15 Há exemplos em B. Paillard, L'épidémie. Carnets d'un sociologue, Paris, Stock,
afecto que se lhe tinha e da falta que faz a sua ausência. 1994, p. 382 segs.; Arnaud Marty-Lavauzelle, op. cit., p. 73 segs. ; Sida, fin de
Participar numa marcha, acender velas em sua intenção, pren- vie, op. cit., p. 15 segs.
der uma mensagem num balão que logo se larga no céu, 16 «O Names Project é um movimento com o objectivo de criar um memorial
enumerar longamente os nomes dos desaparecidos, evocar lem- enorme em memória dos mortos da sida. As mostras visam recrear
cemitérios com as suas avenidas e o seu silêncio. Ora, nos Estados Unidos,
branças marcadas pela emoção e pelo silêncio, são réplicas sim- os cemitérios são afastados das cidades: Portanto, o facto em si, represen-
bólicas ao esquecimento, uma maneira de dar resposta ao dom tava levar o escândalo para o meio da população», escreve J. Forrest, que
do amor ao outro através do contra-dom de uma afeição sublinha o aspecto menos militante e mais pessoal do projecto no contexto
francês (in Sida, fin de vie, op. cit. p. 18).
17 Cleews Vellay citado in Sida, fin de vie, deuil et mémoire, CRIPS et Musée des
14 Citado in Sida, fin de vie, deuil et mémoire, CRIPS et Musée des Arts et
Arts et Traditions Populaires, 1995, p. 16.
Traditions Populaires, 1995, p. 16.

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do patchwork é um acto de comunicação que passa por cima da chorar as crianças quando são atingidas pelo desapareci-
morte para voltar a encontrar o rosto do outro, para renovar mento de um membro da família. A apropriação do acontecimento
emoções intensas. Para além do amor que demonstra e do através da dor que provoca ou dos choros que produz dão livre
esquecimento que esconjura, a cerimónia do patchwork é uma curso à emoção, afirmam a revolta perante os factos. Evita a
afirmação política de solidariedade com os doentes e de revolta mumificação do luto que obriga a viver na sombra de si mesmo.
contra o esquecimento social , contra a indiferença: «Se estar de Aquilo que, a este propósito, escreve Anny Duperey, serve para
luto é esquecer alguém, fazer um patchwork é exactamente o con- qualquer pessoa atingida pelo luto de um próximo: «O desgosto
trário. É testemunhar que a pessoa, realmente, morreu de sida, reprimido não desaparece por si mesmo, aumenta, envenena,
mas que não morreu em vão, que continua a testemunhar, que alimenta-se de silêncio, num silêncio que envenena sem que
está ali para dizer: morri de sida, há outras pessoas prestes a demos por isso» (p. 73). Momentos de conversa com o enlutado,
morrer, chegou talvez a hora em que os vivos devem começar num clima de confiança, liberta a dor, arrancando-a ao silêncio,
a mexer-se um pouco»!8. O patchwork é um grito partilhado, ao permitindo recordar a memória do desaparecido, restituindo
mesmo tempo que é um apelo singular, um gesto de ternura em dessa forma um significado à sua existência, testemunhando o
relação à pessoa amada que desapareceu. «Um patchwork tem impacte perturbador que ele continua a ter sobre nós. É assim
1,80 m por 0,90 cm», diz Hugues Charbonneau, vice-presidente que Chantal Saint-Jarre conta a sua experiência numa conversa
do Act-Up. «E como que uma mortalha, faz lembrar um corpo. de grupo, no Quebeque, com pessoas doentes de sida: «Uma
Aquilo que se pretende dizer com isso é que mesmo que as jovem fala da morte dolorosa recente de um próximo, algumas
pessoas estejam mortas não estão silenciosas... A nossa asso- mulheres falaram do impacte que uma serologia positiva teve
ciação perdeu pessoas, amigos, activistas, que estão aqui. Que nas suas vidas já mutiladas por uma hemofilia grave. O choque
falam. Não estão portanto mortos no silêncio. Criaram para que o grupo sentiu ao escutar estes testemunhos, que rompiam
viver, solicitaram tratamentos, acesso aos cuidados. Uma das um muro de silêncio, foi surpreendente. Quase conseguia tocar
maneiras que temos para dizer que a sua morte não é silêncio a tomada pessoal e colectiva de consciência que, pela primeira
é fazer um patchwork» (citado in Hirsch, 1994, 281). vez, estava prestes a tomar forma» (Saint-Jarre, 1994, 22). A ex-
pressão do grito, do sofrimento escondido, abre a existência a
uma memória mais serena, mesmo quando o esquecimento
A NECESSIDADE DE DIZER é impensável. Falar de grupo ou de locais de conversa lembra
justamente o enraizamento de silêncio que pesa sobre a existên-
Nas formas singulares do luto, o fechar-se na dor enquista a cia. A tradução em palavras é uma tradução de sentido. Ao
ausência, obriga a viver fora de si, com uma distância que afas- escutar, o outro (ou os outros, num grito de apoio) permite
ta os prazeres do mundo. Existe um silêncio de meias-tintas “interrogações tremendas sobre a culpabilidade que sempre
que dissimula a dor e cria uma aparência em relação aos ou- aparece, depois de um desaparecimento ou de uma separação.
tros que, por vezes, dura uma vida inteira. A pessoa enlutada O lembrar de episódios de uma existência comum, naquele
acaba por dar uma aparência de rotina, mantendo-se embora no momento talvez entendidos como circunstâncias, entre outras,
estado de desgosto, permanentemente ocupada com a ausência mas a que a morte vem dar um novo significado, trazem por um
do outro mas sem nunca falar dele, apenas com uma dor incon- momento à vida o desaparecido, dão livre curso à emoção e à
fessável. Anny Duperey sublinha a necessidade de deixar emoção do grupo. A pessoa enlutada aprende a situar-se no seu
drama, a controlar o magma de sentido e de emoções que a
oprimem, as suas ambivalências. Verbaliza conteúdos afectivos
18 Cleews Vellay, op. cit., p. 16. difíceis, que permaneceriam no âmbito do indizível sem a

262 263
presença dos outros ao lado, levanta questões dolorosas que
ficaram em suspenso, ou as de um homem completamente ABERTURA
atingido pelo luto ou pela doença: «Porquê eu?», a injustiça do
acaso, o sentido actual da existência, etc. Se várias pessoas forem
levadas a falar sobre a sua dor, a sua experiência é mutuamente
esclarecedora, compreendem-se por meias-palavras, separam-
-se do sentimento de uma solidão inelutável e trágica ao des-
cobrirem mutuamente um destino comum. Deixar que a dor tome
o seu curso sabendo-se acompanhado, despertando a emoção
própria do outro, permite que não nos afundemos no desgosto,
mas façamos dele um momento paradoxal de partilha. A evo- «Mas tudo o mais é silêncio.»
cação em comum de momentos de vida com o defunto, retiram SHAKESPEARE, Hamlet
este do esquecimento, da ausência, reavivam emoções de outro
tempo. Por momentos, ele entra na memória dos outros.
Dizem-se coisas que não poderiam ser ditas, anteriormente, a
parentes e a vizinhos. O acompanhamento da pessoa enlutada
não consiste em lançar um véu ou em diminuir o seu sofri- Este texto é fruto do silêncio que marcava a brancura da
mento, mas em recolher a gua dor, em encaminhar-se com ela página antes da impressão dos primeiros caracteres, e volta a ele
pela memória pessoal, pelas suas evocações, em atravessar depois do último, uma vez que qualquer palavra é proveniente
juntos uma turbulência de emoções. O luto deixa uma cicatriz dele e nele encontra a sua realização. A imensidão do silêncio
de silêncio, um lugar secreto dentro de si, onde o outro per- rodeia qualquer escrito, qualquer assunto, qualquer existência
manece disponível para uma conversa interior, para ir buscar humana, deixando-lhe justamente a possibilidade do seu
recordações. encaminhamento ao longo de uma margem sem princípio nem
fim. Escrever sobre o silêncio, permitindo que o próprio se deixe
penetrar pelo silêncio, embora com os sentidos despertos para o
rumorejar do mundo sem desconhecer a presunção, embora
feliz, do propósito. Ao escrever sobre o silêncio, assumindo o
paradoxo, sonhei, em vão, ligar as frases num tecido de silêncio.
Ficou-me o espanto de ter escrito tantas palavras, tantas pági-
nas. Agora começa a vigilância perante as ambiguidades sem-
pre possíveis do silêncio, o sentimento de que, para ter o prazer
de ficar calado ou de gozar a tranquilidade de um lugar, não é
necessário ficar reduzido ao silêncio. Se a palavra não é livre,
o silêncio também o não é mais. A alegria do mundo decorre da
possibilidade de escolher sempre. Mas o silêncio tem sempre a
última palavra.

Um livro é sempre um empreendimento colectivo, falamos dele à


nossa volta, recolhemos ideias, críticas, pistas: encaminhamento

264 265
comum, nascido da ética da conversa com os outros. Gostaria de BIBLIOGRAFIA
agradecer àqueles que acompanharam a minha pesquisa na feitura
deste livro. Antes de mais, gostaria de exprimir o meu reconhecimento
a Philippe Breton, a François-Dominique Charles, a Pascal Dibie, a
Alain Gras, a Pascal Hintermeyer, a André Rauch, por terem longa-
mente conversado comigo sobre este livro, por terem relido atenta-
mente vários capítulos. É certo que sou o único responsável pelo
que fica escrito. Gostaria também de agradecer a Christophe Broqua,
Thierry Bignand, Françoise Loux, Denis Jeffrey, Gilles Raveneau,
Pierre Erny, Luc Bernard, Catherine Chalier, Dominique Gros,
as conversas que tivemos juntos sobre este livro, as orientações, os
conselhos que recebi deles. Saudar Anny Bloch (Revue des Sciences
Sociales de la France de Est) e Thierry Goguel d'Allondans (La
Rencontre, Editions Arcanes) por me terem permitido antecipar em
artigos as premissas desta obra. Manifestar finalmente, uma vez
mais, o meu reconhecimento a Hnina Tuil por ter acompanhado este ABHISIKTANANDA S., Guânânanda. Un maitre spirituel du pays tamoul, Chambéry,
projecto durante todos os seu episódios e ter lido e relido os seus Éditions Présence, 1970.
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CAPÍTULO 2 — POLÍTICAS DO SILÊNCIO .....ccciisc ce... 75


Ambiguidades do silêncio ......cccisccssscssarserseseso 75

276 277
O controlo da interacção .....cccccciccsicsistcesercas 78
O controlo de si próprio .........ccccisscsesssseeessento 82 CAPÍTULO 6 — O SILÊNCIO E A MORTE .......cciiistoeoo 235
[O o [o (6: (o EDP 83 ACO .eccccccc src stio o CO FASE CBO o MEMSO 0 o o clio E cp O 235
Reduzir ao silêncio era eras
....ccccsiccccccccc 87 estria
Os lugares de morte .... ...cccsccisss reneo 237
ucreee
mma o sie coESEO CEO GR LENEO HSS 95 A passagem ata
.....cccst ene ear enter e então
cesseesne 245
Romper o silêncio ........
O consentimento cure rer
.....iici serena renas 97
ssiiis Rituais funerários ...ccccicccccccccitascresersseriaeaa 249
A indiferença sa.cgacin Res cdesei dao 8 + areia 101
au anta mmoçião Culturas do luto ......cccccccscctisencererens rente 251
RR PP 102 A ausência do Outro ....cccicic rea aerea
cciciea 255
O mutismo .....ccciiccicsccss teses
Oindizível ...ccccl cics scene ccaes rea ano 106 A esconjuração do silêncio .......cccccccisstise rneseroo 258
A necessidade de dizer ....cicccccicccsscese rseaasesesa 262
CAPÍTULO 3 — AS DISCIPLINAS DO SILÊNCIO ............. 113
A lei do silêncio ...lcllici 113 ABERTURA rec res inca masnes nado 265
.....iueccccescrancena
As formas do segredo .........cccsccctscnaeeaseceareno 115
119 BIBLIOGRAFIA ...icccccccccerr crase rrenan esa nana 267
A protecção do próprio A
Segredos iniciáticos ....s.ssccc ecerme
res emme name mas an 121
Os estratagemas do inconsciente .......cccccicssciisters 124
Psicanálise e silêncio ......ccccicccsiiiicieraserareres 126
O silêncio das instituições .......ccciciciiiccsccrieaess 136

CAPÍTULO 4 — MANIFESTAÇÕES DO SILÊNCIO ............ 141 egONal q


O silêncio é uma modalidade do sentido .....cccicccioo.. 141 e A
Recolhimento ....... E cede DÃO o SG TR O 146 E qildteca &
A angústia do silêncio .....cciccsssicsstrseesesrereros 150 2 Ge
Esconjuração ruidosa do silêncio .......cccisiisciiciioo 152 vç?
Silêncio de morte ........ccccississscaa
esa erre 158
Mutismo do mundo .......ccccicissicestani arena cares 162
Ruídos da infância ......ccccccicissicesincerearcaaa 164
Ruídos ...cccccccccc cercar arara 165
O fim do silêncio ....ccccc cssciciccc
serrana 171
Comercialização do silêncio ......cicciccciicsiccttrerta 173

CAPÍTULO 5 — AS ESPIRITUALIDADES DO SILÊNCIO ....... 175


A língua de Deus ...can comes camiicatociccrerescreaoa 175
Disciplinas do silêncio +... sw. cm. mm 8 ge GR... ah 178
A Igreja do Oriente .....cccsississsccsccssesareranaao 195
Místicos .....cc
aaaccccccs c
eae ane ra 198
Referências de silêncio na tradição cristã ................. 201
Multiplicidade dos silêncios ........ccccciiiicccittetoo 211
O domínio do sentido e o domínio da verdade ............ 226
Mística profana ....... ...cc
imo stato ido 068 ria 6 + E 239
O silêncio e o sagrado ....cccisiccisiecicinecccerarens .231

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