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Sermão de Santo António aos Peixes

0 que é um sermã o?
É um discurso que se prenuncia em pú blico sobre um assunto religioso. Tem um fim moral ou
virtuoso, com o intuito de convencer algo ou alguém. É de natureza argumentativa.
O padre Antó nio vieira, com o seu sermã o, procura captar a atençã o dos ouvintes e a sua
disponibilidade para ouvir, convencê-los do que têm de bom, e aconselhá-los a preservar essa
virtude, e do que têm de mau, para corrigirem ou emendarem esse defeito (docere, delectare); a
persuasã o afigura-se intençã o primeira e ú ltima de um orador (movere).

Intençã o persuasiva e exemplaridade


Intençã o persuasiva
O padre Antó nio Vieira, ao proferir o sermã o, procura alertar os seus ouvintes para a necessidade
e importâ ncia de alterar comportamentos incorretos, persuadindo-os a adotarem outros mais
adequados e corretos.
Como se concretiza a intençã o persuasiva no sermã o?
Para persuadir o seu auditó rio, o padre Antó nio Vieira socorre-se de diversas estratégias:
▪ Inclusã o de citaçõ es bíblicas, muitas vezes em latim;
▪ Recurso a excertos da Bíblia;
▪ Relato de episó dios da vida de santos, nomeadamente de Santo Antó nio, e doutores da Igreja
(por exemplo, Santo Ambró sio);
▪ Exposiçã o das características e dos comportamentos dos peixes;
▪ Recurso à sabedoria popular e a provérbios;
▪ Referência a figuras e acontecimentos da mitologia clá ssica;
▪ Alusã o à pró pria experiência de vida;
▪ Uso de recursos expressivos, como a alegoria, a metá fora, a comparaçã o, a apó strofe, a
interrogaçã o retó rica, etc.
Como se articulam as estratégias de persuasã o do padre Antó nio Vieira com as características da
orató ria?
A persuasã o articula-se com os três objetivos da eloquência: delectare (captar a atençã o e agradar
ao auditó rio), docere (transmitir ensinamentos) e movere (fazer refletir o auditó rio, no sentido de
mudar o seu comportamento).

2. Exemplaridade
Relaçã o entre os exemplos dos peixes, a intençã o persuasiva e a exemplaridade
A apresentaçã o do exemplo dos peixes, sejam os seus louvores sejam as suas repreensõ es, cumpre
a intensã o persuasiva do pregador, visto que se pretende com ele persuadir os homens a
mudarem o seu comportamento.
Assim, pretende-se que os homens adotem as virtudes dos peixes louvados, paralelas às açõ es de
Santo Antó nio:
* aceitaçã o da doutrina divina (Peixe de Tobias);
* moderaçã o e refreamento de apetites (Rémora);
* arrependimento e mudança (Torpedo);
* distinçã o entre o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno (Quatro-olhos);
Por outro lado, pretende-se que os mesmos homens abandonem a prá tica dos vícios
exemplificados nos peixes:
* a presunçã o, a arrogâ ncia, a gabarolice e a soberba (Roncadores);
* o parasitismo e o oportunismo (Pegadores);
* a presunçã o, a vaidade, a ostentaçã o e a ambiçã o (Voadores);
* a falsidade e a traiçã o (Polvo).
Assim sendo, a caracterizaçã o dos peixes e os seus comportamentos e atitudes adquirem um valor
de exemplaridade, isto é, estes animais servem de exemplo a seguir pelos homens nas suas
virtudes, bem como de exemplo a evitar no caso dos vícios.
A exemplaridade no Sermã o de Santo Antó nio
O orador deve ser uma figura exemplar, um modelo de virtudes e de cumprimento dos preceitos
cristã os. O padre Antó nio Vieira enquadrava-se neste perfil e procurou, neste sermã o, exercer a
sua funçã o de «sal» e cativar o auditó rio com o seu talento e a sua integridade moral. No entanto,
quer Santo Antó nio em Itá lia (Arimino) quer o padre Vieira no Brasil (S. Luís do Maranhã o)
encontram obstá culos ao cumprimento da sua missã o evangelizadora, pois os ouvintes nã o se
querem converter.
O exemplo de Santo Antó nio
Tal como Santo Antó nio em Itá lia, o padre Vieira encontra obstá culos à sua pregaçã o no Brasil, por
isso decide adotar o seu exemplo, anunciado logo no Exó rdio, e mudar de auditó rio, deixando os
homens e pregando aos peixes.
Por outro lado, o santo, as suas virtudes e a sua conduta irrepreensível constituem um exemplo
humano, presente em todos os capítulos do Sermã o, através de referências que permitem ao
padre Vieira identificar-se com ele em virtude e na açã o, tornando-se assim um modelo a seguir
pelos homens seus contemporâneos.

Crítica social
Vieira prega aos peixes com intuito de censurar alegoricamente o comportamento dos homens
(destinatá rios reais do sermã o). Ao elogiar as virtudes dos peixes, critica, por contraste, a
ausência dessas mesmas virtudes nos homens. Ao censurar os vícios dos peixes, Vieira critica, por
analogia, os defeitos dos homens.
Exó rdio (introduçã o)
Capítulo I – Apresentaçã o do tema do sermã o de forma breve, iniciando-se com o conceito
predicá vel: “Vó s sois o sal da Terra”, retirado da Bíblia, onde “Vó s” remete para os pregadores,
“sal” para a mensagem evangélica (a doutrina) e “Terra” faz referência aos ouvintes. O conceito
predicá vel é de grande importâ ncia pois é o primeiro passo para captar a atençã o dos ouvintes.
Padre Antó nio Vieira começa por se dirigir aos pregadores (“vó s”) e dizer que eles sã o o “sal da
terra”, pois têm a mesma funçã o – impedir a corrupçã o, no sentido metafó rico, ou seja, têm de
impedir a corrupçã o das almas dos homens. Propriedades do sal: conservar o bom e evitar a
corrupçã o. Propriedades dos pregadores: louvar o bem e impedir o mal. Ele constata que a terra
está corrupta, apesar da existência de muitos pregadores. E aponta duas causas: ou o sal nã o salga
(culpa dos pregadores) ou a Terra nã o se deixa salgar (culpa dos ouvintes). Estabelece-se assim
um paralelismo entre o sal e os pregadores, pois têm as mesmas propriedades. Se o sal nã o salga é
porque: os pregadores nã o pregam a verdadeira doutrina; há incoerência entre palavras e atos e
pregam-se a si mesmos e nã o a Cristo. A Terra nã o deixa salgar porque: os ouvintes nã o querem
receber a doutrina cristã , ainda que verdadeira; preferem imitar comportamentos invés de
seguirem conselhos; servem apetites pessoais em vez de servir Cristo. Seguidamente, afirma que,
infelizmente, tudo isto é verdade pois nã o cumprem as suas funçõ es. Tenta entã o apontar
soluçõ es para o problema anteriormente referido, através de argumentos de autoridade: - Para o
problema de o sal nã o salgar quem dá a soluçã o é Cristo, que diz para tratar com desprezo os
maus pregadores e com estima, admiraçã o e respeito os bons pregadores (“lançado fora como
inú til e pisado por todos”). - Para o problema da terra nã o se deixar salgar quem deu a soluçã o foi
St. Antó nio, que mudou de auditó rio/pú lpito, mas nã o de doutrina e foi pregar aos peixes, que sã o
tudo o contrário dos homens, sã o organizados e interessados. O orador cita Cristo para conferir
autoridade ao seu sermã o, uma vez que as suas palavras sempre serã o sinó nimo de verdade
absoluta. A crítica é bem forte. A palavra de Deus nã o está a fazer fruto, o mal nã o está só do lado
dos homens que nã o ouvem, tal como dos pregadores, que nã o pregam a verdadeira doutrina. Por
fim, Padre Antó nio Vieira elogia Santo Antó nio, e diz que ele foi sal da Terra – pregou aos homens
– e sal do mar – pregou aos peixes. Apresenta-o como um modelo e um exemplo a seguir. Também
mostra a sua semelhança com Santo Antó nio, pois ambos pregaram aos homens sem efeito e
seguidamente, Padre Antó nio Vieira imita-o pregando aos peixes e pedindo inspiraçã o a Virgem
Maria, invocando-a para expor o assunto do sermã o, terminando assim o exó rdio

Aspetos importantes:
-Utiliza conjunçõ es coordenativas disjuntivas “ou” e conjunçõ es subordinadas causais “porque”
para procurar as causas que impedem que a terra se deixe salgar. A conjunçã o coordenativa
adversativa “mas” introduz uma clarificaçã o do que foi anteriormente referido.
-Repetiçã o sistemá tica de certas palavras é com a finalidade de vincar determinadas ideias. -
Enumeraçã o usada para dar a ideia de continuidade das açõ es. -Utiliza argumentos ló gicos e
sucessivas interrogaçõ es retó ricas para atingir a inteligência dos ouvintes.
-Para atingir o coraçã o do auditó rio, usa interjeiçõ es e exclamaçõ es.
2. Exposiçã o/ confirmaçã o
Trata-se do momento mais longo do sermã o, correspondente ao desenvolvimento. É neste
segmento textual que se apresentam os argumentos e a respetiva fundamentaçã o (exemplos), no
sentido de persuadir o auditó rio. Corresponde aos Capítulos II, III, IV e V, em que sã o
apresentadas as virtudes dos peixes no geral e em particular e os vícios dos peixes no geral e em
particular, respetivamente.

Capítulo II
1. Informaçã o sobre a divisã o do sermã o em partes
2. Louvores dos peixes em geral.
É introduzido por uma interrogaçã o retó rica que apresenta o destinatá rio do sermã o (os peixes).
Retoma o conceito predicá vel quando inicia a exposiçã o do seu sermã o. Começa por referir que tal
como o sal tem duas propriedades (conservar o sã o e preservá -lo), o seu sermã o também se
organiza em dois momentos: louvar o bem e elogiar as virtudes dos peixes e repreender o mal e
criticar os seus vícios.
Elogia os peixes no geral quando ouviram St. Antó nio como sendo obedientes, tranquilos e
atentos, funcionando como críticas aos homens, pois os ú ltimos perseguiram-no, em vez de o
ouvirem e seguirem. A histó ria de “Antó nio” realça a natureza distinta dos homens e dos peixes.
Por outro lado, nã o incluindo referências explícitas a Santo Antó nio, pode entender-se que o
orador se serve do nome pró prio e do relato que produz como uma narrativa autobiográ fica, na
qual, dada a semelhança da sua situaçã o no Brasil com a do santo em Itá lia, realça a
incompreensã o de que é vítima. Os peixes sã o melhores que os Homens, pelo que, quanto mais
longe destes tiverem, melhor. A distâ ncia face aos homens (exibida através da aná fora) garante
aos peixes a liberdade que os outros animais nã o têm. Sã o assim animais independentes, livres da
submissã o aos homens. Os exemplos dados comprovam que os animais que vivem perto dos
homens sã o subjugados por eles. Fala de dois tipos de virtudes dos peixes, aquelas que dependem
de Deus: os peixes foram os primeiros seres a serem criados por Deus; foram os primeiros a terem
nome; sã o os mais numerosos e os maiores e sã o também obedientes, ordeiros, calmos e
atentos/interessados e aquelas que dependem da natureza dos peixes: nã o se deixam domar, nã o
se deixam domesticar e escaparam todos do dilú vio porque nã o tinham pecado. Evidencia-se que
os animais que convivem com os homens foram castigados, estã o domados e domesticados, sem
liberdade. O discurso torna-se variado pois umas vezes dirige-se aos peixes na segunda pessoa,
como na terceira pessoa. Isto nã o obscurece a mensagem, mas aumenta a capacidade de denú ncia.
Conclui-se assim que os homens nã o sã o amigos de ninguém e que a melhor terra do mundo era a
mais deserta, porque nela nã o existem homens, segundo um filó sofo. Termina o capítulo com o
exemplo de Santo Antó nio, que deixou Lisboa, Coimbra e Porto para se afastar dos homens e
aproximar-se de Deus.
Capítulo III

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