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PUNK

ROCK
de
Simon Stephens

Escola Dr. Ginestal Machado - Curso de Artes do Espetáculo 2021/2022 – 12º O


Personagens

William Carlisle

Lilly Cahill

1
Bennett Francis

Cissy Franks

Nicole Chatman

Tanya Gleason

Charlie Meade

Dr. Richard Harvey

(A peça decorre nos dias de hoje.

As primeiras seis cenas da peça decorrem na biblioteca dos alunos do


Secundário de uma escola privada em Stockport.

A sétima cena decorre no Hospital Suttons Manor.)

2
CENA 1

(“Kerosene”, dos Big Black.

LILLY CAHILL e WILLIAM CARLISLE estão sozinhos na biblioteca. É


segundafeira, 06 de outubro. São 8h13 da manhã.)

WILLIAM:

Quando é que chegaste?

LILLY:

Na semana passada.

WILLIAM:

Em que zona é que estás a viver?

LILLY:

Heaton Moor.

WILLIAM:

Em que zona de Heaton Moor?

LILLY:

No cimo da Broad Stone Road. Perto do infantário que há lá.

WILLIAM:

É uma rua simpática.

LILLY:

Acho que sim.

WILLIAM:

3
Que número é a tua casa?

LILLY:

23.

4
23. Sim. As casas dessa rua são das mais antigas em Stockport, sabias?

LILLY:

Não.

WILLIAM:

São antigas casas de industriais do século XIX. Algumas das lojas na Heaton
Moor Road são ainda mais antigas. Praticamente medievais. É muito diferente,
isto aqui?

LILLY:

É um bocadinho.

WILLIAM:

Já estás instalada?

LILLY:

Não sei.

WILLIAM:

Teres que te adaptar a uma cidade nova num espaço de tempo tão curto, deve
desorientar um bocado, não?

LILLY:

Não custa assim tanto. Estou habituada a mudar de um lado para o outro.

WILLIAM:

Porquê?

LILLY:

O meu pai trabalhou em quatro universidades diferentes nos últimos doze anos.
Acabei por ficar imune.

WILLIAM:

Cambridge foi o melhor?

5
WILLIAM:

LILLY:

Nem por isso.

WILLIAM:

As pessoas lá eram inconcebivelmente inteligentes?

LILLY:

Não. Eram horríveis e mal-educadas.

WILLIAM:

Tinham testas enormes e cérebros grandes e salientes.

LILLY:

Não. Eram muito ricas e muito estúpidas.

WILLIAM:

Eu quero ir para Cambridge.

LILLY:

Ah queres?

WILLIAM:

Isso ou Oxford. É a minha ambição de vida. Como é que chegaste aqui?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Que meio de transporte é que usaste? Para chegar a Stockport, quer dizer.
Não à escola. Mas podes-me dizer que meio de transporte é que usaste para
chegar à escola se preferires.

LILLY:

Viemos de carro.

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Com tudo enfiado no carro ou contrataram uma empresa de mudanças?

LILLY:

Contratámos uma empresa de mudanças. Tínhamos algumas coisas enfiadas


no carro.

WILLIAM:

Gosto do teu corte de cabelo.

LILLY:

Obrigada.

WILLIAM:

Esse casaco é de pele verdadeira?

LILLY:

Não.

WILLIAM:

É falso?

LILLY:

Exatamente.

WILLIAM:

Que alívio.

LILLY:

Pois.

WILLIAM:

Era horrível se tu fosses aí uma assassina de animais. Imagina o meu


constrangimento.

LILLY:

7
WILLIAM:

Não sou.

WILLIAM:

O comércio de peles abominável. As pessoas que usam casacos de peles


deviam de ser esfoladas vivas, na minha opinião.

LILLY:

Na minha também.

WILLIAM:

Ainda bem. Fico contente. Sou o William.

LILLY:

Olá William.

WILLIAM:

Ando aqui há cinco anos. Conheço este sítio de trás para a frente. Os cantinhos
todos e tal, por isso se quiseres ajuda para alguma coisa.

LILLY:

Óptimo.

WILLIAM:

Conheço partes desta escola que as outras pessoas nem sequer sabem que
existem. Há corredores secretos. Armários de livros abandonados. Caves.
Sótãos. Todo o tipo de coisas. Queres descobrir? Basta perguntares-me. Esta
é a biblioteca do secundário. Não é demais?

LILLY: É.

Está toda ela hermeticamente selada do resto da escola. Eles dizem que é para
manter os do básico afastados. Eu acho que é para nos manterem a nós
controlados. Olha lá para fora.

8
LILLY:

Para onde?

WILLIAM:

Aqueles carris vão dar a Manchester naquela direcção e chegam a Londres


naquela direcção. Passam aqui comboios o tempo todo. Eles precisam de nos
manter cá fechados para o caso de fugirmos. A maior parte dos alunos do
secundário já nem sequer se dá ao trabalho de vir cá acima. Vão para a sala
comum. Ou para a biblioteca principal. Onde passam horas e horas e horas na
internet. Ou a remexer na secção dos DVD´S. Eu gosto mais de estar aqui. É
íntimo. As pessoas já não gostam de livros. Eu sim. Há uma segunda edição do
“Waverly” do Walter Scoot, de 1817, na prateleira de cima. Precisas de
autorização para a ver. Mas eu posso tratar disso facilmente se tu quiseres. Já
tens um cacifo?

LILLY:

Não.

WILLIAM:

Tens que falar com o Edwards. O Edwards é porreiro. O nariz dele tem uma
forma um bocadinho esquisita, coisa em que eu nunca confiei. Posso falar com
ele se quiseres. Sabes onde é que se come?

LILLY:

Estava a pensar ir à cantina.

WILLIAM:

Não. Não faças isso. Ninguém vai lá. Vais morrer muito depressa se começares
a almoçar lá.

(Ela sorri.)

Estou a falar a sério.

(Entram BENNETT FRANCIS e CISSY FRANKS.)

9
WILLIAM:

BENNETT:

E então o gajo põe-se ali no autocarro a contar em altos berros às criancinhas


todas do sétimo como é que deixou de fumar e então quem fumasse naquele
dia ia levar na tromba antes de sair do autocarro. Eu olhei para ele. Saquei de
três cigarros. Acendi-os todos ao mesmo tempo. Fumei-os.

CISSY:

Todos de uma vez?

BENNETT:

Ah pois.

CISSY:

Não doeu?

BENNETT:

Brutalmente.

CISSY:

Não tens ar de quem levou na tromba.

BENNETT:

Claro que não levei na tromba. Ele gosta demasiado de mim. Como é que foi o
resto da tua noite?

CISSY: Lá

se passou

BENNETT:

Como é que estava o teu pai?

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CISSY:

Enfim. Na mesma. Gostava que tivesses ficado.

BENNETT:

Sim.

(Ele repara em LILLY.)

BENNETT:

Quem és tu, caralho?

WILLIAM:

Bennett, esta é Lilly Cahill.

BENNETT:

Ah é?

WILLIAM:

É nova cá.

BENNETT:

Ah és?

WILLIAM:

Chegou hoje de manhã.

CISSY:

Ah foi?

(Pausa. Olham para ela. WILLIAM aguarda o veredito deles.)

BENNETT:

Ouvimos falar de ti?

LILLY:

Não faço ideia.

11
WILLIAM:

WILLIAM:

Houve uma carta.

BENNETT:

Aposto que houve. Há sempre uma carta. Eu sou o Bennett.

LILLY:

Olá Bennett.

BENNETT:

Cahill é um excelente nome.

LILLY:

Ah sim?

BENNETT:

É irlandês. Do condado de Galway. É antigo.

LILLY:

OK.

CISSY:

Eu sou a Cissy.

LILLY:

Olá.

WILLIAM:

A Cissy é namorada do Bennett.

LILLY:

Fixe.

CISSY:

Não és daqui, pois não?

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É de Cambridge.

CISSY:

Dá para ver. Pelo sotaque.

BENNETT:

É para veres como ela é esmagadoramente astuta.

WILLIAM:

Iá. Tens de acordar de manhã cedinho comá merda para a apanhar em falso.

(Um tempo.)

BENNETT:

Vais ficar quanto tempo?

LILLY:

Não sei. Até aos exames acho eu.

BENNETT:

Fantástico.

CISSY:

O que é que estás a fazer?

LILLY:

Geografia, História, Francês e Inglês.

BENNETT:

Quatro disciplinas?

WILLIAM:

Ela é incrivelmente esperta.

CISSY:

13
WILLIAM:

Claramente.

LILLY:

E Estudos Gerais.

BENNETT:

Sim. Toda a gente faz estudos gerais. Ninguém lá vai. Nunca.

WILLIAM:

Eu vou.

BENNETT:

Como é que é Cambridge?

WILLIAM:

E tu também devias ir. É com o professor Lloyd. Ele é óptimo.

LILLY:

Eu detestei.

CISSY:

Ainda bem.

LILLY:

Porquê?

CISSY:

Só confio verdadeiramente em pessoas que detestam a cidade delas.

WILLIAM:

Eu também.

CISSY:

Como estás tu esta manhã, William Carlisle?

Estou fantasticamente excelente, foda-se, muito obrigado por perguntares.

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Como estás tu, Cissy?

CISSY:

Óptima. Feliz por estar aqui. Feliz como uma cotovia.

WILLIAM:

Bom fim de semana?

CISSY:

Emocionante. Fizemos um jantar no sábado. O Bennett cozinhou salmão. A


minha mãe desmaiou. Como foi o teu?

WILLIAM:

Péssimo. Está-se muito, muito melhor aqui.

(NICHOLAS CHATMAN entra. Está a beber uma bebida proteica.)

LILLY:

Porque é que foi péssimo?

BENNETT:

Merda. Esqueci-me de tudo.

WILLIAM:

O quê?

NICHOLAS:

Nem vais acreditar no que eu vi no domingo.

LILLY:

Porque é que o teu fim de semana foi péssimo?

CISSY:

O que é que isso quer dizer, esqueceste-te de tudo?

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WILLIAM:

É melhor nem saberes. A sério.

BENNETT:

Dos meus livros de Inglês, dos meus livros de Francês, dos meus livros de
História. Tudo e tudo. O que é que tu viste?

NICHOLAS:

“One Night in Paris”.

BENNETT:

Jesus.

CISSY:

O que é que vais fazer sem os livros?

BENNETT:

Mentir. Improvisar. Copiar o teu. Roubar o deles. Não vejo esse filme há anos
sem fim.

CISSY:

Eu nunca vi.

NICHOLAS:

Devias ver. É extraordinário.

LILLY:

Porquê?

NICHOLAS:

O quê?

LILLY:

Porque é que é extraordinário?

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WILLIAM:

Lilly, este é o Nicholas Chatman. Joga Lacrosse. Nicholas esta é a Lilly. É de


Cambridge. É nova aqui.

(NICHOLAS avalia-a antes de lhe responder à pergunta.)

NICHOLAS:

Ok.

(BENNETT interrompe-o antes de ele conseguir responder.)

BENNETT:

Gosto do seu casaco Sr. Chatman.

NICHOLAS:

Muito obrigado, Sr. Francis.

CISSY:

Posso experimentá-lo?

NICHOLAS:

O quê?

CISSY:

O teu casaco. Posso? Por favor.

BENNETT:

É Paul Smith?

NICHOLAS:

Moschino.

CISSY:

É lindo.

BENNETT:

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WILLIAM:

Fica melhor ao Nicholas.

Qual é a tua primeira aula?

LILLY:

Geografia. Segundo tempo.

CISSY:

Posso ficar com ele?

NICHOLAS:

Não. Não sejas ridícula.

WILLIAM:

Com quem?

LILLY:

Harrison.

WILLIAM:

Eu também tenho essa aula.

LILLY:

Como é que ele é?

CISSY:

Cheira tão bem. Cheira assim a homem.

(TANYA GLEASON entra.)

WILLIAM:

É um bocadinho perturbador. Em geral é porreiro.

(TANYA pára e olha para LILLY.)

TANYA:

18
WILLIAM:

Tu és a Lilly?

19
:
LILLY

Exato.

TANYA:

Eu sou a Tanya.

LILLY:

Olá.

TANYA:

Tanya Gleason? A MacFarlane pediu-me para vir ter contigo. Ela não te disse?

LILLY:

Não tenho a certeza.

TANYA:

Pensei que ias estar na sala comum. Como é que vieste ter aqui acima?

LILLY: Comecei

a andar

TANYA:

Ela queria que eu tomasse conta de ti hoje.

LILLY:

Que tomasses conta de mim?

TANYA:

Já ando à tua procura há um bocado.

LILLY:

Desculpa.

TANYA:

Recebemos uma carta sobre ti.

20
:
LILLY

Ah foi?

TANYA:

Na sexta-feira passada. Dizia que começavas hoje. Que vinhas de Cambridge.


Que o teu pai trabalhava na Universidade. Que devíamos ser especialmente
simpáticos para ti.

LILLY:

Porque é que dizia isso?

TANYA:

Não faço ideia. Mandam-nos estas coisas. Acho que são todos um bocadinho
disfuncionais. Gosto do teu cabelo.

(Sorri. Entra realmente na sala.)

LILLY:

Do meu cabelo?

TANYA:

É bastante Lilly Allen. Reparei numa coisa nos putos do sétimo.

CISSY:

Reparaste numa coisa no quê?

TANYA:

Nas criancinhas do sétimo ano.

CISSY:

Quando?

TANYA:

Hoje de manhã.

21
CISSY:
Tu às vezes és muito desconexa, Tanya querida, tenho de te dizer.

TANYA:

Quando eles fazem fila. Se os empurrares. Caem em cima uns dos outros.
Como brinquedos.

CISSY:

Isso é cruel. Podem partir os ossinhos deles.

TANYA:

Nós nunca fomos tão mal-educados. Eu tinha pavor dos do secundário. Ficava
literalmente gelada de medo. Costumava pensar que eles nos atiravam tijolos.
Que nos enfiavam a cabeça na sanita. Que nos pegavam fogo à gravata.

NICHOLAS:

Posso te fazer uma pergunta?

BENNETT:

Tenho a sensação de que vais mesmo fazer, não é?

NICHOLAS:

Já começaste a estudar?

BENNETT:

Estás a falar a sério?

NICHOLAS:

Até que estou, na verdade.

BENNETT:

Ah meu Deus do céu!

TANYA:

São só exames de preparação. Não precisas de estudar para os exames de


preparação.

22
CISSY:

Eu nunca preciso. Nunca preciso de estudar para nada. Faço os exames e


pronto.

BENNETT:

E tens Muitos Bons. Puta.

WILLIAM:

Se estudares para os exames de preparação dás cabo da lógica da coisa. São


um barómetro em relação à fase em que estás, em termos educativos, neste
momento particular, que serve para te ajudar a perceber quanto é que precisas
de estudar daqui para a frente à medida que te aproximas dos exames finais.

(Olham para ele; um tempo.)

NICHOLAS:

Porque eu já comecei.

BENNETT:

Como seria de esperar. Marrão.

NICHOLAS:

Não se trata de ser marrão.

BENNETT:

Ai trata, trata.

NICHOLAS:

Não. Trata-se de querer fazer o meu melhor.

CISSY:

A minha mãe matava-me se eu tivesse menos que Muito Bom a alguma


disciplina.

WILLIAM:

23
CISSY:

Matava-te literalmente?

Sim. Literalmente. Queimava-me viva.

BENNETT:

Quando é que começam, exactamente?

(Um tempo.)

CISSY:

Estás a falar a sério?

BENNETT:

Não parece que estou a falar a sério?

CISSY:

Não sabes quando é que começam os exames de preparação?

BENNETT:

Tu nunca acreditas em mim neste tipo de coisas.

CISSY:

3 de novembro. 8h50, Auditório Principal, Francês. 11h55, Auditório Principal,


Geografia. 14h05, Campo de trás, Educação Física. Acabam segunda-feira dia
10, 14h05, Auditório Principal, História.

TANYA:

Tu não estás a fazer Educação Física.

BENNETT:

Alguém está?

TANYA:

Como é que sabes quando é o exame de Educação Física se nem sequer


estás a fazer Educação Física?

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CISSY:

Decorei. Tenho uma memória fotográfica.

NICHOLAS:

Gosto do teu pin.

(Pausa.)

LILLY:

Obrigada.

NICHOLAS:

Gosto dos White Stripes. Acho que eles estão a melhorar. Há bandas que só
fazem merda quando continuam. Os White Stripes não. São mesmo bons,
fodase.

LILLY:

Eu também acho.

WILLIAM:

Ele só tem os dois últimos álbuns.

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

O Nicholas. Ele só tem dois álbuns dos White Stripes. Só comprou o “Elephant”
no período passado. Nem sequer ouviu o “White Blood Cells”. Ou ouviste?

NICHOLAS:

O quê?

WILLIAM:

Alguma vez ouviste o “White Blood Cells”?

25
CISSY:

26
NICHOLAS:

De que é que tu estás a falar?

WILLIAM:

Vês.

(Entra CHADWICK MEADE. Traz um casaco novo.)

BENNETT:

Cum catano, é o Kanye West!

CHADWICK:

Quem?

BENNETT:

Alguma vez pegaste fogo a uma gravata, Chadwick?

CHADWICK:

Não.

BENNETT:

Também me pareceu. Com um casaco desses quem sabe o que poderia


acontecer?

WILLIAM:

Chadwick, esta é a Lilly.

CHADWICK:

Lilly?

WILLIAM:

Lilly Cahill. Veio para a nossa escola. Ela é de Cambridge. Lilly, esté é o
Chadwick Meade.

LILLY:

Olá.

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CHADWICK:

Olá Lilly. Desculpa. Não estava à espera de uma rapariga nova. É um grande
prazer conhecer-te. Bem-vinda à escola. Espero que sejas muito feliz aqui.

LILLY:

Obrigada Chadwick.

CHADWICK:

De que zona de Cambridge é que tu és?

LILLY:

Burwell.

CHADWICK:

Que tem o castelo.

LILLY:

Exacto.

CHADWICK:

Construído no reinado do rei Estevão. Durante a Anarquia. Eu gosto de


Cambridge.

LILLY:

Gostas?

CHADWICK:

Mais do que de Oxford. Não só pela beleza, mas acho que a Universidade é
melhor. O departamento de Matemáticas Aplicadas, de certeza. É a minha
especialidade. O meu herói trabalhou em St, Johns nos anos 20. Paul Dirac.
Alguma vez ouviste falar dele?

LILLY:

Não, lamento.

28
BENNETT:

Chadwick, quem caralho é que já ouviu falar do Paul Dirac?

CHADWICK:

Ele previu a existência da anti-matéria. Desenvolveu a Equação Dirac, que


descreve o comportamento dos electrões. Ganhou o Prémio Nobel em 1933.
Disse “as leis da natureza deveriam ser expressas em belas equações”. Ele é
fundamental para o modo como percebemos o mundo. Esteve em Cambridge.

LILLY:

Não o conheço.

CHADWICK:

Morreu em 1984.

WILLIAM:

Quase dez anos antes de ela ter nascido, Chadwick, não podes propiamente
culpá-la, pá.

LILLY:

O teu nome é mesmo Chadwick?

CHADWICK:

Sim, infelizmente. É de origem americana.

TANYA:

Eu também não acreditei nele se isso te consola. Achei que ele o tinha
inventado.

BENNETT:

Ele inventou foi a cabeça dele. Quem é que te baptizou Chadwick, Chadwick?
Qual dos teus pais?

CHADWICK:

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Eu não fui batizado. Os meus pais são ateus.

30
BENNETT:

Aposto que são ateus. Teriam de ser com um filho destes.

CISSY:

Com uma cara destas.

BENNETT:

(Vira-se para CHADWICK.)

Espanta-me.

CHADWICK:

O quê?

BENNETT:

Espanta-me, Chadwick. Diz qualquer coisa espantosa. Diz qualquer coisa que
eu nunca teria sequer pensado que era possível.

(Os outros olham para CHADWICK.)

CHADWICK:

Sabes quantas galáxias é que há no Universo? Cerca de cem biliões. E há


cerca de cem biliões de estrelas na maior parte das galáxias. Isso dá dez mil
biliões de biliões de estrelas no Universo. O que corresponde a cerca de dez
milhões de biliões de biliões de planetas.

(Os outros olham para BENNETT.)

BENNETT:

É como ter um cachorrinho absurdamente inteligente. Eh. Chadwick.

CHADWICK:

O quê?

BENNETT:

Toma uma goma.

(Saca de uma goma e mete-a na boca de CHADWICK. Ri histericamente.

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CHADWICK tira-a da boca. Olha para ela. Volta a pô-la lá dentro. Vai-se
embora.)

NICHOLAS:

A propósito, já alguém viu a Copley?

CISSY:

A professora nova?

NICHOLAS:

Ela não é professora.

BENNETT:

Claro que é professora, foda-se. O que é que ela é se não for professora?
Polícia sinaleira?

NICHOLAS:

É uma aluna.

BENNETT:

Sim.

NICHOLAS:

As alunas não contam. Vou convidá-la para sair.

(Tempo.)

TANYA:

Vais mesmo convidar uma professora para sair?

NICHOLAS:

Porque não? Ela é só uns seis meses mais velha do que eu, acho. Veio
connosco ver o “Macbeth”. Ficou sentada ao meu lado. Aquilo para ela tem
sido uma tortura, com o nono ano. Estava-me sempre a pedir conselhos.

Nicholas. Tu és lindíssimo. Sabias? Lindíssimo!

32
BENNETT:

WILLIAM:

Estás muito nervosa por vires para a nossa escola?

LILLY:

Não.

WILLIAM:

Não devias estar.

LILLY:

Não estou.

CISSY:

A não ser que tenhas medo de te aborreceres.

TANYA:

Iá.

CISSY:

Porque foda-se, isto é estupidificantemente aborrecido.

WILLIAM:

Não é assim tão mau. Não ligues ao que ela diz. Às vezes é.

(Toca a campainha.)

CISSY:

Chegou a minha hora do adeus, totós.

BENNETT:

O que é que tens?

CISSY:

Matemática, duas.

BENNETT:

33
Tu tens sempre duas de matemática. Não tenho bem a certeza se isso te faz
bem.

(CISSY beija-o. Ele não retribui o beijo. TANYA levanta-se para se ir


embora.)

CISSY:

Onde é que vais?

TANYA:

Inglês.

CISSY:

Um bocado adiantada, não?

TANYA:

Vou falar com o professor Anderson.

BENNETT:

Vais-lhe pedir para te engravidar?

TANYA:

Hã?

BENNETT:

A Cissy contou-me a tua fantasia. Ouviste esta, Nicholas? O maior sonho da


Tanya é viver com o Anderson. Ser a amante secreta dele. Ter um filho dele.
Andar pelo apartamento dele descalça e grávida. E ela está a falar
completamente a sério, já agora.

TANYA:

Vai-te foder.

Não estás?

TANYA:

34
BENNETT:

Tu disseste-lhe isso?

CISSY:

Não acredito, Bennett.

BENNETT:

É verdade. Estou a mentir? Estás-me a chamar mentiroso?

TANYA:

Cissy. Como é que?

(TANYA vai dizer qualquer coisa. Quase começa a chorar. Não diz nada.
Vaise embora.)

CISSY:

Tanya! Tanya, espera!

(CISSY vai atrás dela. Os restantes ouvem-na a chamar pelo corredor.)

LILLY:

Preciso de ir falar com o professor Eldridge.

WILLIAM:

Sabes onde é que ele está?

LILLY:

Está no gabinete dele. Estive lá há bocado. É mesmo ao fundo do corredor,


não é?

WILLIAM:

Segundo à esquerda a seguir à sala comum.

LILLY:

Exactamente.

WILLIAM:

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É isso.

LILLY:

Pronto.

WILLIAM:

Então depois vejo-te em geografia, provavelmente.

LILLY:

Sim. Provavelmente. Diz lá outra vez onde é que é?

WILLIAM:

J3. Sabes ir lá ter?

LILLY:

Não faço a menor ideia. Se vier ter aqui posso ir contigo?

WILLIAM:

Claro que sim.

LILLY:

De certeza?

WILLIAM:

Seria um prazer. Não me importo nada.

LILLY:

Obrigada. Obrigada, William. Estou aqui às e meia.

WILLIAM:

Perfeito. Eu faço-te a rota panorâmica.

36
LILLY:

Está sempre tanto frio aqui?

WILLIAM:

Sempre. Até ligarem o aquecimento. Depois fica insuportavelmente quente.

LILLY:

Mal posso esperar.

WILLIAM:

Diverte-te com o Eldridge.

LILLY:

De certeza. Até já.

WILLIAM:

Sim. Até já.

LILLY:

Até já, Bennett. Nicholas.

BENNETT:

Até já, Lilly Allen.

WILLIAM:

Vai-te foder, Bennett. Deixa-a em paz.

(LILLY sorri para WILLIAM e depois vira-se para NICHOLAS.)

LILLY:

Até logo.

NICHOLAS:

Tchau.

(Ela vai-se embora. Passa algum tempo.)

37
BENNETT:

“Eu faço-te a rota panorâmica”.

(BENNETT e NICHOLAS dão risadinhas para WILLIAM.)

Posso perguntar-lhe uma coisa, Sr. William Carlisle?

WILLIAM:

Diz.

BENNETT:

Já alguma vez tiveste uma namorada?

WILLIAM:

De que é que estás a falar?

BENNETT:

Já tiveste?

WILLIAM:

Para que é que queres saber isso?

BENNETT:

Não tiveste, pois não? Acho isso bastante comovente.

WILLIAM:

Vai-te lixar, Bennett.

BENNETT:

Estás um bocado apanhadito pá, não estás? Ela vai-te despedaçar o coração,
William.

WILLIAM:

Não percebo o que é que estás para aí a cacarejar.

(BENNETT olha para ele. Sorri.)

38
BENNETT:

Não.

(Fim da cena.)

CENA 2

(“Eric’s Trip”, dos Sonic Youth.

São 15:30h. Terça-feira, 14 de outubro. LILLY e WILLIAM estão na sala


comum.)

LILLY:

Sabes no que é que eu reparei em ti? Estás sempre muito quieto. Ficas muito
quieto a maior parte do tempo. Mexes a cabeça muito devagar. Gosto disso.
Também gosto do teu cabelo.

WILLIAM:

Obrigado.

LILLY:

Gosto da maneira como esconde os teus olhos. Parece tímido. Tens um cabelo
tímido.

(WILLIAM sorri. Desvia ligeiramente o olhar.)

LILLY:

Como foi a aula de História?

WILLIAM:

Foi inesperadamente dramática. Tivemos o Lloyd. Estava num estado de


espírito peculiar. Ele entrou. Nós estávamos sentados. Ele olhou para nós
durante uns três segundos. Sentou-se. Estávamos todos a tagarelar. Ele olhou
para nós. Continuámos a tagarelar. Ele olhou mais um bocado. Tagarelámos

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mais um bocado. Ele ficou ali sentado, quieto. Nós tagarelámos. Ele esperou
que nós parássemos. E depois esperou que ficássemos em silêncio. Isto levou
para aí um minuto. E depois ficou à espera. Ficou à espera mais cinco minutos.
Disse que tinha decidido não nos dar aula hoje. Não achava que nós
merecêssemos. Até que lhe pedíssemos desculpa. E nós pedimos. Um por um.
A turma toda.
“Desculpe Professor. Desculpe professor”.

LILLY:

É o teu preferido, ele?

WILLIAM:

Acho que sim. As estratégias de gestão da aula que ele tem são bastante
revigorantes.

LILLY:

Já acabaste o teu formulário de candidatura?

(WILLIAM assente.)

Já o mandaste?

WILLIAM:

Hoje de manhã. E tu?

LILLY:

Vou fazer isso à noite.

WILLIAM:

Acho bem que sim.

LILLY:

Vais-te candidatar a um ano de interrupção?

WILLIAM:

Meu Deus, não.

40
LILLY:

Metade do pessoal vai.

WILLIAM:

Mal posso esperar. Por me ir embora.

LILLY:

Pois. Eu também.

(Ela olha para ele. O olhar dela perturba-o um bocadinho.)

WILLIAM:

Como é que foi Francês?

LILLY:

Un cauchemar sociologuique.

WILLIAM:

Un quê quê quê?

LILLY:

Às vezes não te preocupas com o Chadwick Meade?

WILLIAM:

Agora perdi-me.

LILLY:

Ele está na nossa turma de francês. É um linguista brilhante. Nunca diz uma
palavra. Esteve-se a balançar durante a maior parte da aula. Muito ligeiramente.
Eu estava sentada ao lado dele. Perturbou-me imenso.

WILLIAM:

A balançar?

LILLY:

41
Para trás e para a frente.

WILLIAM:

Parece bastante reconfortante.

LILLY:

Era esquisito. Não tenho bem a certeza se confio nele. Não tenho a certeza se

gosto dele. WILLIAM:

Mas não gostas do quê? Ele é o homem mais inteligente do Universo.

LILLY:

Ele não é normal.

WILLIAM:

Detesto pessoas normais. As pessoas normais deviam ser esventradas. As


coisas para ele aqui são tramadas. Tem uma bolsa de estudos considerável. A
vida familiar dele é bastante medonha, acho eu. As coisas para ele aqui são
muito difíceis. Devias ser simpática para ele.

LILLY:

Detesto a palavra “devias”.

WILLIAM:

A pressão com que ele leva. Os pensamentos que ele tem. As pessoas deviam
ter cuidado ao pé dele.

LILLY:

Era mais ou menos aí que eu queria chegar.

WILLIAM:

Um dia ele ainda se passa, acho eu.

LILLY:

O que é que queres dizer?

42
WILLIAM:

Normalmente ele é demasiado tímido. Devia opor resistência. Levantar o


queixo.
Gostava que ele fizesse isso. Às vezes acontece, eu já assisti.

LILLY:

Assististe ao quê?

WILLIAM:

Pessoas como ele, que são assim maltratadas e depois um dia. Pum.

LILLY:

Pum?

WILLIAM:

Eu gosto dele.

LILLY:

Ainda bem que alguém gosta.

WILLIAM:

Fomos juntos à Universidade de Cambridge nas férias do Verão. Numa visita de


estudo. Ele é muito mais engraçado quando estás só com ele. Acho que fica
com medo de falar demais à frente de pessoas como o Bennett. As pessoas
reparam nele por causa da gravata da bolsa de estudo. Ele diz que é um
lembrete constante. Levou-me ao sítio onde o Isaac Newton estudou. Levou-me
ao Jardim Botânico de lá. Mostrou-me uma árvore que aparentemente é uma
descendente da macieira debaixo da qual o Newton se sentava.

Eu nunca vi nada assim. Ninguém na minha família andou sequer na


universidade. Não somos uma família onde isso aconteça.

Fomos a King’s College. Que é a faculdade a que eu me candidatei.


Perguntámos onde é que devíamos ir. Estava lá um médico. Um cientista. Um
tipo com, ele estava de bata branca. Disse-me que devíamos ir ver a capela

43
que há lá. Disse que era muito bonita. Nunca tinha ouvido um homem usar a
palavra “bonita” assim.

E era bonita, já agora. Algumas partes datam de meados de século XV. O tecto
é espetacular. Tem uma abóbada em leque que é de cortar a respiração. Foi
desenhada pelo Wastell. E construída por ele, na verdade.

Se a minha candidatura for aceite tenho a entrevista no próximo mês. Espero


conseguir uma entrevista. Eles fazem as entrevistas de preparação aqui. É o
Lloyd que as faz. Seria incrível. Só eu e o Lloyd. Aqui. A ter uma entrevista! São
três e meia. Devíamos ir para casa.

LILLY:

Iá.

WILLIAM:

É espantoso como tudo isto fica vazio num instante. Adoro isso. Adoro estar
aqui nessa altura. Vais pelo corredor e és a única pessoa.

Esta sala torna-se uma espécie de casulo.

Está frio hoje. Parece que está a chegar Outono. Penso sempre que se
consegue sentir exatamente o dia em que isso acontece neste país.

Posso-te perguntar uma coisa: como é que te estás a dar?

LILLY:

O que é que queres dizer?

WILLIAM:

Aqui. Como é que foi a tua primeira semana?

LILLY:

Foi bem. Um bocado estranha. Alguns dos professores são um bocado


esquisitos. É esquisito nós sermos tão poucos. Às vezes é um bocadinho
claustrofóbico. O Bennett dá-me cabo do juízo de vez em quando.

WILLIAM:

44
O que eu queria dizer era: o que é que achas de Stockport?

(Ela pensa.)

LILLY:

Sinceramente?

WILLIAM:

Sinceramente.

LILLY:

Já estive em sítios piores. Já vivi em sítios piores. Não é tão mau como
Plymouth. Não é tão mau como Hull. Heaton Moor é simpático. Fomos ao Lyme
Park no fim de semana. É magnífico.

WILLIAM:

O parque de veados é medieval. Se te mexeres muito devagar há gamos que te


deixam fazer-lhes festas.

LILLY:

Mas o centro comercial na baixa dá-me vontade de arrancar os olhos.

WILLIAM:

Ha!
LILLY:

E detesto as pessoas todas.

(Pausa)

WILLIAM:

Todas elas?

LILLY:

Tirando vocês aqui.

WILLIAM:

45
Detestas todas as pessoas que conheceste em Stockport?

LILLY:

Iá.

(Ele olha para ela.)

WILLIAM:

Com aqueles cabelos amarrados atrás. E aquela maquilhagem estúpida e feia e


aqueles hambúrgueres?

LILLY:

E aquelas caras.

(Sorriem um para o outro.)

WILLIAM:

“Para onde é que estás a olhar, caralho?” LILLY:

Estou a olhar para ti, chunguita de merda.

WILLIAM:

Percebo-te perfeitamente.

LILLY:

Todos com o cartão cliente da Poundstretcher.

WILLIAM:

E todos os rapazes são pais aos 17 e proibidos de estar a menos de 2


quilómetros e meio dos filhos aos 19 e presos aos 21.

LILLY:

É o que eles merecem.

WILLIAM:

Porque são burros e são maus.

LILLY:

46
E são gordos e são feios.

WILLIAM:

E têm medo de tudo o que seja diferente deles.

LILLY:

E têm pavor à inteligência e ao pensamento.

WILLIAM:

Angustia-os, pensar, porque se pensarem demasiado podem perceber que a


maneira como vivem as vidas deles com os fatos-de-treino e aqueles cãezinhos
feios e maus não é necessariamente a única maneira de viver a vida.

LILLY:

E mal podem esperar pela merda do Natal. E o mais longe que alguma vez já
foram foi a Espanha.

WILLIAM:

E mesmo isso detestaram.

LILLY:

E queriam comer mais ovos e batatas fritas.

WILLIAM:

Sabes uma coisa?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Sempre pensei que era a única pessoa que tinha estes pensamentos.

Posso-te dizer uma coisa: às vezes penso que sou a melhor pessoa nesta
cidade. Achas horrível?

LILLY:

47
Não.

WILLIAM:

Sou definitivamente o mais esperto. E o mais engraçado. Não achas?

(Ela pensa.)

LILLY:

Iá.

WILLIAM:

A sério?

LILLY:

Iá.

WILLIAM:

Eu também. Acho que sou hilariante. Nunca te acontece pensar na pessoa que
gostavas de ser?

LILLY:

Às vezes.

WILLIAM:

Quando eu penso nessa pessoa, sabes de que é que me dou conta?

LILLY:

De quê?

WILLIAM:

De que sou ele.

Posso-te perguntar uma coisa? O Bennett e o Nicholas e a Cissy alguma vez


conversam sobre mim?

LILLY:

48
Não.

WILLIAM:

Nunca?

LILLY:

Não.

WILLIAM:

Nunca falam da minha família?

LILLY:

Não.

WILLIAM:

Nem do meu trabalho?

Eles contaram-te do meu trabalho?

LILLY:

Qual trabalho?

(Pausa. Ele tem de se conter para não se rir, o que a faz dar uma risadinha
também.)

WILLIAM:

Se eu te contasse, não ias acreditar.

LILLY:

Diz lá.

WILLIAM:

Ninguém acredita em mim.

LILLY:

Eu sim.

49
WILLIAM:

Porquê?

LILLY:

O que é que queres dizer?

WILLIAM:

Porque é que havias de acreditar em mim se ninguém no seu perfeito juízo ia


acreditar?

LILLY:

Eu sou muito crédula.

WILLIAM:

Aposto que sim.

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Disse que aposto que sim.

(Ele pára de rir e fica de repente sério. Ela não consegue parar tão depressa.)

Eu trabalho para o governo.

LILLY:

Ah é?

WILLIAM:

Estás a ver?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Não acreditas em mim.


50
LILLY:

Eu não disse isso. Claro que acredito em ti.

WILLIAM:

Então és doida.

LILLY:

Porquê?

WILLIAM:

Como se um puto de dezassete anos pudesse trabalhar para o governo!

LILLY:

Tu disseste-me que trabalhavas. Eu acredito em ti. Mesmo que agora tentes


negar vou continuar a acreditar em ti.

(Pausa.)

WILLIAM:

É secreto.

LILLY:

Claro.

WILLIAM:

Eles não falam disto a ninguém. As pessoas passavam-se. Iam achar que eu
era um bocadinho novo.

LILLY:

Imagino que sim. O que é que fazes para eles?

WILLIAM:

Observo adolescentes muçulmanos. O objetivo deles são adolescentes


muçulmanos. Portanto obviamente contrataram um adolescente. Seria estúpido
contratar um adulto. Então contrataram-me a mim.

51
LILLY:

Parece emocionante.

WILLIAM:

Não é. Em geral os adolescentes muçulmanos são muito aborrecidos. Tenho de


preencher um formulário de quinze em quinze dias.

LILLY:

Já desmantelaste alguma célula terrorista?

WILLIAM:

Não. Eles é mais jogar futebol e andar na marmelada às escondidas do pais.

(Riem-se os dois juntos.)

Posso-te perguntar alguma coisa?

LILLY:

O que quiseres.

WILLIAM:

Quantas horas é que dormes normalmente?

LILLY:

Desculpa?

WILLIAM:

Em média? Por noite?

LILLY:

Nove.

WILLIAM:

Nove?

LILLY:

52
Dez às vezes. Onze se for para a cama cedo.

WILLIAM:

Ok.

LILLY:

Doze ao fim de semana.

WILLIAM:

Eu durmo quatro. Posso-te perguntar outra coisa?

LILLY:

Claro que sim.

WILLIAM:

Nunca tens medo?

(Ela olha para ele, pensa antes de responder.)

LILLY:

Tenho.

(Ele pensa antes de insistir com ela.)

WILLIAM:

Dizes-me de que tipo de coisas é que tens medo?

(Ela pensa.)

LILLY:

Guerra nuclear.

Pretos.

Cães. A maioria dos cães. Alguns pássaros. Animais da quinta.

De ser violada.

Tenho medo de acordar em minha casa e estar alguém no meu quarto.


53
Às vezes a meio da noite quando os meus pais saem a minha mãe vai-se
embora de rompante. Vem a pé para casa. Chega a casa cedo. Muito bêbada.
O meu quarto é no andar de baixo. Tem sido sempre. Nas últimas três casas.
Eu prefiro. Normalmente ela esquece-se das chaves por isso normalmente bate
á minha janela para eu lhe abrir a porta. Às vezes acho que são mortos lá fora.
Fico apavorada.

WILLIAM:

Porque é que ela se vai embora de rompante?

LILLY:

Fica lixada com o meu pai. Bebe duas garrafas de vinho.

WILLIAM:

A minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos. Não me lembro dela. Nunca
conheci o meu pai. O meu pai morreu antes de eu nascer.

Eu nunca conto isto a ninguém. É segredo. Posso confiar em ti?

LILLY:

Claro que sim.

WILLIAM:

Obrigado.

LILLY:

Lembras-te dela morrer?

WILLIAM:

Um bocadinho.

LILLY:

De que é que te lembras?

WILLIAM:

54
Lembro-me da polícia a beber chá na nossa sala. Chamaram a polícia por
qualquer razão. Lembro-me que um deles pôs quatro torrões de açúcar.
Lembrome do funeral. Toda a gente me deu muitas palmadinhas na cabeça.

LILLY:

Então és um orfãozinho.

WILLIAM:

Exactamente.

LILLY:

Estás numa família de acolhimento?

WILLIAM:

Não. Vivo com a minha tia.

LILLY:

Como é que ela é?

(Ele sorri. Não responde.) Mas não fiques com grande pena de ti próprio

WILLIAM:

Não fico.

LILLY:

Os pais podem ser uns idiotas chapados.

WILLIAM:

Tenho a certeza que sim. O que são essas cicatrizes?

No teu braço?

(Ela olha para ele antes de responder.)

LILLY:

O que é que achas que são?

WILLIAM:

55
Tu cortas-te?

LILLY:

És tão giro.

WILLIAM:

Cortas-te, Lilly?

LILLY:

Vê isto.

(Ela saca de um isqueiro bic. Acende-o. Mantém-no acesso durante imenso


tempo até o metal ficar a escaldar. Desliga-o. Queima um “smile” no braço,
com o metal no topo do isqueiro.)

WILLIAM:

Isso dói?

LILLY:

Não. Sabe muito bem.

(Ele observa-a a acabar. Ela mostra-lhe.)

WILLIAM:

Posso tocar?

(Ela olha para ele; um tempo. Depois assente.

Ele toca. Ela estremece um bocadinho.)

WILLIAM:

Sentiste como eu estou quente? Toca na minha testa.

(Ela toca.)

Sabes o que é que eu acho?

LILLY:

O que é que tu achas, William Carlisle?

56
WILLIAM:

Acho que os nossos corpos são máquinas.

(Ele afasta-se dela. Quebrando o contacto físico.)

Sabes de onde é que vem o calor do nosso corpo. Vem da energia que queima
a levar a cabo todas as atividades diferentes. É por isso que os cadáveres são
tão frios. Porque a máquina parou.

LILLY:

Eu não sou uma máquina. Sou um animal.

WILLIAM:

Que tipo de animal é que és?

LILLY:

Um lobo. Um leopardo. Um rinoceronte. Uma gazela. Uma chita. Uma águia.


Uma cobra.

WILLIAM:

Sinto que te conheço há anos.

LILLY:

Não conheces.

WILLIAM:

Passámos férias juntos ou qualquer coisa do género quando éramos


pequenos?

LILLY:

Acho que não, William.

WILLIAM:

Eu acho que sim. Fomos acampar juntos?

LILLY:

Não.
57
WILLIAM:

Em que escola é que andaste quando eras pequena?

LILLY:

St. Michael’s em Tunbridge Wells.

WILLIAM:

Não pode ter sido isso. Queres sair comigo?

LILLY:

Sair contigo?

WILLIAM:

Um encontro. Podíamos ir ao teatro. Ou eu podia-te levar a comer fora.

LILLY:

Comer fora?

WILLIAM:

Apesar de eu detestar restaurantes.

LILLY:

Detestas?

WILLIAM:

Dão-me um medo de morte.

LILLY:

Porquê?

WILLIAM:

Aquelas pessoas todas a verem-te comer.

LILLY:

Então porque é que me havias de levar a um restaurante?

58
WILLIAM:

Então podíamos ir ao cinema. Ou jogar bowling. Ou nadar.

LILLY:

Nadar?

WILLIAM:

Já alguma vez foste a Chapel?

LILLY:

Onde?

WILLIAM:

Chapel-en-le-Frith? É uma aldeia. Em Derbyshire. É outro sítio que é muito


bonito. Podíamos ir na próxima semana. Nestas férias, se tu quiseres. Podemos
ir de comboio.

Queres?

Queres sair comigo?

LILLY:

Acho que não.

(Um tempo.)

WILLIAM:

Ok.

LILLY:

Não quero sair com ninguém neste momento.

WILLIAM:

Ok.

LILLY:

59
Não tem nada a haver contigo por isso não penses que tem. Eu nem consigo
pensar em ter um namorado.

WILLIAM:

Não.

LILLY:

Lamento.

(Pausa.)

WILLIAM:

Nunca tinha feito isto.

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Convidar alguém para sair. Não correu lá muito bem pois não?

LILLY:

Não foi – WILLIAM:

Fiz mesmo merda.

LILLY:

Não. Estiveste bem.

WILLIAM:

Mas o resultado foi uma desilusão, devo dizer. Uma vergonha completa para
dizer a verdade.

LILLY:

Não achei. Eu achei que foi romântico.

(Fim da cena.)

60
CENA 3

(“Loose” dos Stooges.

12h46, quinta-feira, 30 de outubro. LILLY CAHILL e NICHOLAS CHATMAN


estão na sala comum.)

LILLY:

Olá.

NICHOLAS:

Olá.

LILLY:

Como é que vão as coisas por aqui?

NICHOLAS:

Tudo ok. Como é que te estás a dar?

(LILLY acena com a cabeça para ele durante um bocado.

Sorri. Não diz nada.)

LILLY:

Como é que vai o estudo?

NICHOLAS:

O costume.

LILLY:

Já estás preparado?

NICHOLAS:

61
Eh, acho que sim.

LILLY:

Viste o William?

NICHOLAS:

Hoje de manhã não. Não o vi o dia todo.

LILLY:

Ainda não apareceu desde as férias.

NICHOLAS:

Não reparei.

LILLY:

Vens almoçar?

NICHOLAS:

Vou ao ginásio.

(Ela olha para ele.)

LILLY:

Vem cá.

(Ele vai.)

Tira o blazer.

(Ele tira.)

Faz músculo.

(Ele faz. Ela acaricia-lhe o músculo.)

Obrigada.

(Ela tira uma maçã da mochila. Come-a.)

Queres uma maçã? Tenho uma a mais.

62
NICHOLAS:

Não é preciso.

LILLY:

Ele convidou-me para sair. O William.

NICHOLAS:

Quando?

LILLY:

Antes das férias.

NICHOLAS:

O que é que tu disseste?

LILLY:

O que é que achas?

NICHOLAS:

Não sei. Daí estar a perguntar.

LILLY:

Ele foi muito engraçado. Ficou assim com cara de estúpido. Tive um bocadinho
de pena dele.

NICHOLAS:

Porquê?

LILLY:

Já alguma vez reparaste nisso?

NICHOLAS:

Reparei em quê?

63
LILLY:

Quando achas que alguém é um imbecil completo, de repente descobres


alguma coisa sobre essa pessoa e não podes evitar ter pena dela mesmo que
não quisesses.

NICHOLAS:

O que é que descobriste sobre o William?

LILLY:

Ele contou-me da mãe dele. Já alguma vez te falou sobre ela?

NICHOLAS:

Nem por isso. Pouco. Não somos assim tão próximos. O que é que ele disse
sobre ela?

LILLY:

Está morta. Sabias? O pai morreu antes de ele nascer. Ela morreu quando ele
era pequeno. Tinha quatro anos. Imagina.

NICHOLAS:

Ele contou-te isso, foi?

LILLY:

Imagina teres quatro anos e veres a tua mãe morrer. Tens de admitir que é um
bocadinho de partir o coração.

NICHOLAS:

Foi isso que ele te disse? Que os pais dele tinham morrido?

(Pausa.)

LILLY:

Não morreram?

NICHOLAS:

64
Quando é que ele disse isso?

LILLY:

Há duas semanas. Quando me convidou… Mas não morreram, é?

NICHOLAS:

O pai dele é contabilista. A mãe é educadora de infância em Cheadle. É


simpática. Parece muito nova, para mãe. E por sinal é bem atraente.

LILLY:

Foda-se.

NICHOLAS:

Iá.

LILLY:

Isso é bastante perturbador.

NICHOLAS:

Pois.

LILLY:

Agora estou bastante perturbada. Perturbaste-me.

NICHOLAS:

Foi sem querer.

LILLY:

Porque é que ele havia de mentir sobre uma coisa dessas?

NICHOLAS:

Não faço ideia. Ele tinha um irmão. Acho que isto é verdade. Acho que ele tinha
um irmão que morreu. Quando ele era pequeno. Talvez ele estivesse…

LILLY:

O quê?

65
NICHOLAS:

Não sei.

LILLY:

Confuso? Ninguém fica confuso em relação a uma coisa dessas.

Ninguém baralha uma com a outra. Ele fez aquilo para conseguir atenção.
Como é que se pode ser tão egoísta? Fico com vontade de descobrir onde ele
vive e ir lá dizer-lhes.

NICHOLAS:

Não faças isso.

LILLY:

Não.

NICHOLAS:

Eh.

LILLY:

Eh.

Tenho estado a pensar em ti a manhã toda. Sabias?

NICHOLAS:

Não.

LILLY:

Pois é verdade. E devo dizer que algumas das coisas em que estive a pensar
são um bocadinho porcas.

(Ele vai ter com ela. Beija-a na boca.)

NICHOLAS:

Também estive a pensar em ti.

66
LILLY:

Mentiroso.

NICHOLAS:

Ontem à noite.

LILLY:

Sim? Então?

(Algum tempo.)

NICHOLAS:

Posso confessar uma coisa?

LILLY:

Diz lá.

NICHOLAS:

Eu nunca tinha feito sexo.

LILLY:

Ok.

NICHOLAS:

Tu percebeste?

O quê? Do que é que te estás a rir? LILLY:

Homens. Rapazes. Vocês são tão…

NICHOLAS:

O quê?

LILLY:

Nada. Não. Não percebi. Queria lá saber.

NICHOLAS:

67
Foi incrível comó caralho.

LILLY:

Foi um bocado, não foi?

NICHOLAS:

Tu foste incrível comó caralho.

LILLY:

Totó.

NICHOLAS:

Bom. É verdade. Lilly.

LILLY:

Nicholas.

NICHOLAS:

Acho que não devíamos contar a ninguém.

LILLY:

O quê?

NICHOLAS:

Acho que isto devia ficar entre nos. Que andamos. Acho que provavelmente era
melhor se as pessoas não soubessem.

LILLY:

Porquê?

NICHOLAS:

Tu não achas?

LILLY:

Não sei.

68
NICHOLAS: As pessoas

aqui são tão…

LILLY:

O quê?

NICHOLAS:

Não se calam.

LILLY:

Tens vergonha de mim?

NICHOLAS:

Não. Não sejas estúpida.

LILLY:

Não estou a ser nada estúpida.

NICHOLAS:

Eu não estou a dizer isso.

LILLY:

Queres que eu seja o teu segredinho?

NICHOLAS:

Mais ou menos.

LILLY:

Cretino.

NICHOLAS:

O quê?

LILLY:

Tu. És um cretino.

69
Como é que vão as coisas com a professora Copley?

NICHOLAS:

Estás zangada comigo?

LILLY:

Será que ela já foi apanhada pela tua extraordinária aura sexual, Nicholas?

NICHOLAS:

Tu fazes a menor ideia do que as pessoas iam dizer de ti?

LILLY:

Nicholas Chatman, o Casanova da Nutrição. Um milhão de feromonas em cada


músculo.

NICHOLAS:

Cala-te.

LILLY:

Sinceramente, uma queca e quem lhe dera nunca me ter conhecido. A tua cara!

NICHOLAS:

Vou-me embora.

LILLY:

Vai lá fazer o teu treino. Dá-lhe nos pesos, amor. Faz força por mim.

NICHOLAS:

Vais estar por cá mais logo?

LILLY:

Talvez.

NICHOLAS:

Lilly.

70
LILLY:

Estou a gozar. Desculpa. Sim. Vou estar aqui mais logo. Espero por ti. E está
bem. Eu não digo a ninguém.

NICHOLAS:

Obrigado. Desculpa, a sério. É só porque acho. Vem cá.

(Ele beija-a.)

Até logo.

LILLY:

Até logo. Arnold Schwarzenegger.

(Ele vai-se embora.

Ela fica sentada. Olha para a maçã. Arranca-lhe um bocado com os dedos.
Come-o. Cospe-o passado um bocado.

Lá fora passa um comboio. Ela olha pela janela para o ver.

Entram CISSY e TANYA.

CISSY está a comer uma grande sandes de batatas fritas.)

CISSY:

Foda-se, a quantidade de farinha neste pão é ridícula. Olá.

LILLY:

Olá.

TANYA:

Olá.

LILLY:

Olá.

CISSY:

De que é que acham que estas batatas fritas são feitas?

TANYA:

71
Massa, sobretudo.

CISSY:

Eu não devia estar a comer isto. Eu já nem sequer costumo almoçar. Como só
M&M’s. Já alguma vez comeram quatro pacotes de M&M’s de uma vez. Fica-se
com uma sensação incrível no cérebro.

(As raparigas sorriem perante essa ideia. Algum tempo.)

TANYA:

Acho que isso é mesmo perigoso. Os seres humanos têm de comer. É uma das
coisas que nós fazemos. Cinco peças de fruta e vegetais por dia. Grupos de
alimentos, regradamente. Trinta minutos de exercício três vezes por semana.

Para mim a culpa é dos pais.

(As três raparigas rebentam a rir. Demoram algum tempo a recuperar.)

LILLY:

Alguma vez pensas nisso?

TANYA:

Nisso o quê?

LILLY:

Em ser mãe.

TANYA:

O tempo todo.

CISSY:

Ela não está só a falar de ter filhos com o Anderson.

Está mesmo a falar de ser mãe como deve ser.

TANYA:

Iá.

72
LILLY:

A sério?

TANYA:

A sério.

(Um tempo.)

LILLY:

Eu também.

CISSY:

Meu Deus.

LILLY:

Acho que seria uma péssima mãe.

TANYA:

Não sejas parva.

LILLY:

Os meus bebés haviam de morrer todos. Bem depressa. Não os ia saber


alimentar. Não ia saber o que fazer com eles. Ia acabar por os meter num
armário.

TANYA:

Não ias nada.

LILLY:

Ia pois.

CISSY:

Eles de qualquer maneira não se lembram de nada até aos cinco anos. Bem
que os podias meter num armário. Eles não se iam lembrar.

TANYA:

Eu vou ter quatro.


73
CISSY:

Quatro?

TANYA:

Sim. Vou ser extraordinária. Vou-lhes dar aulas em casa. Levá-los a uma data
de encontros desportivos. No meu carro grande.

CISSY:

No carro grande do Anderson.

TANYA:

No carro grande do Anderson.

LILLY:

Ele não tem um carro grande. Vem para escola de bicicleta.

TANYA:

Aulas de ténis. Aulas de futebol. Aulas de ballet.

O que eles quiserem. Vou-lhes ensinar línguas estrangeiras.

CISSY:

Tu não sabes língua nenhuma.

TANYA:

Aprendia. Montes de línguas e ensinava-as todas aos nossos filhos.

Tens de admitir que ele é amoroso.

Claro que ele tem carro. Só usa a bicicleta para se manter em forma. E para
salvar o mundo.

(Pausa. CISSY come. LILLY tira uma cenoura da mochila e come-a.)

Tu terias filhos com o Bennett?

CISSY:

74
LILLY:

O caralho.

LILLY:

Porque não?

CISSY:

És capaz de imaginar? Haviam de ser impossíveis.

(Comem durante um bocado.)

LILLY:

Alguma vez falaram sobre isso?

CISSY:

Acho que ele havia de se borrar de medo só de pensar em falar do assunto.


Ele ia perceber o que eu penso.

(LILLY olha para ela.)

LILLY:

Como é que ele é?

CISSY:

Em que sentido?

LILLY:

O Bennett.

CISSY:

Como é que ele é, em que sentido?

LILLY:

Tu sabes.

75
:

CISSY

Não.

LILLY:

Na cama.

CISSY:

Deus meu.

LILLY:

O quê?

CISSY:

Preferia não falar nisso enquanto estou a almoçar.

(As raparigas dão risadas. LILLY olha para CISSY.)

CISSY:

Eu não vou ter filhos até tipo aos 42. Vou esperar até ter dinheiro para pagar a
alguém que tome conta deles. Há demasiadas coisas que eu quero fazer.
Demasiados sítios onde eu quero ir. Mal posso esperar por sair da Inglaterra,
para começar. Ir viver lá fora.

E hei-de ir. Logo que acabe isto aqui.

LILLY:

Para onde é que vais?

CISSY:

Edimburgo. Glasgow. Dublin. Paris. Qualquer sítio que não seja aqui.

(Pausa.)

(CISSY embrulha a sandes e guarda-a. As outras raparigas olham para ela.)

CISSY:

Eu sou tão gorda.

76
LILLY:

Tu não és gorda.

CISSY:

Olha para mim.

LILLY:

Tu não és gorda. Não digas isso porque não é verdade e parece mas é que te
estás a exibir.

(CISSY olha para ela. Um tempo.)

CISSY:

Iá.

(Outro tempo. CISSY abre grande sorriso.)

CISSY:

O que é que vocês vão receber no Natal?

(Entra BENNETT FRANCIS.)

BENNETT:

Estou a ficar mesmo farto da Mahon a falar-me dos heróis gay da história da
literatura. Ela apanha-me todos os dias. Parece que fica à minha espera nas
esquinas para me saltar em cima.

Obriga-me a resumir-lhe artigos do “Guardian”.

CISSY:

Só porque ela é demasiado burra para os ler sozinha.

BENNETT:

Está-me sempre a dizer que eu podia ser advogado se quisesse. Eu não quero
ser advogado. Foda-se, quem é que quer ser advogado?

TANYA:

Já alguma vez pensaste que se calhar há uma razão?

77
BENNETT:

O quê?

TANYA:

Para ela te escolher para esse tipo de sugestões?

BENNETT:

Que caralho é que está a insinuar, Sra. Gleason?

TANYA:

Não estou a insinuar nada, Sr. Francis. Estou só a fazer uma pergunta.

BENNETT:

Eles ligaram o aquecimento?

Esta merda de sala.

Tenho de ir lá para fora. Tenho de ir lá para fora correr um bocadinho. Preciso


de fazer Educação Física. Tenho imensas saudades de Educação Física.
Nunca pensei que ia dizer isto algum dia.

TANYA:

Eu não tenho saudades dos professores de Educação Física.

BENNETT:

Isso é porque são uns atrasados do caralho.

CISSY:

Tirando o Cheetham.

BENNETT:

É um atrasado. É um atrasadus primus.

CISSY:

Ele foi muito querido para mim.

78
BENNETT:

Isso era porque ele te queria enfiar um dedinho.

CISSY:

Disse-me que estava muito impressionado com as minhas notas.

BENNETT:

Sim, porque te queria enfiar um dedinho. Já te disse.

CISSY:

Bennett.

BENNETT:

Tu deixavas?

CISSY:

Pára.

BENNETT:

Aposto que sim. Repara, não posso dizer que o censure. As pessoas hoje em
dia exaltam-se tanto em relação a atividades sexuais inter-geracionais. É
ridículo. Devíamos todos mas é acalmar-nos, acho eu. O mais novo que tu
fodias era que idade, Tanya?

(Ela olha para ele. Olha de relance para CISSY. Olha outra vez para ele.)

BENNETT:

Desculpa, tu és de homens mais velhos, não é?

TANYA:

Estás-me a perguntar a mim sobre as minhas experiências sexuais, Bennett?


Isso é bastante ousado da tua parte.

BENNETT:

79
O que é que isso quer dizer?

(Ele sorri. Não diz nada.)

BENNETT:

Eu enfiava um dedinho a uma miúda de oito anos. Se ela estivesse para aí

virada. E se não estivesse de certeza que batia uma com capote a pensar nela.

CISSY:

Os professores não deviam de fazer sexo. São demasiado velhos. Acho isso
muito desconcertante. Toda a ideia da coisa. Aquela pele velha. Ali a dar a dar.

(Entra CHADWICK MEADE.)

BENNETT:

Tu costumavas adorar as aulas de Educação Física, não era Chadwick?

CHADWICK:

O quê?

CISSY:

Lembras-te em natação quando ele mergulhou para ir buscar o tijolo? Quase


que te afogaste, não foi querido?

BENNETT:

Lembro-me dele nos balneários. Lembro-me da pilinha pequenina dele.


Chadwick.

TANYA:

Cá vamos nós.

BENNETT:

É verdade que espremes sumo de limão para o cabelo? Para ficar mais louro?

CHADWICK:

Às vezes.

80
BENNETT:

E funciona?

CHADWICK:

Sim.

TANYA:

Funciona?

CHADWICK:

Sim.

BENNETT:

Tu és um génio, não és, Chadwick. Mas tens de admitir.

CHADWICK:

O quê?

BENNETT:

Ficas com um ar estupido comá merda com esse casaco.

CHADWICK:

Iá.

BENNETT:

Será que tu acabaste de concordar comigo?

TANYA:

Cala-te, Bennett.

CISSY:

Há pessoas que conseguem usar um casaco desses. E há pessoas que


parecem anormais.

(Entra WILLIAM CARLISLE. Está frenético. Vem a beber uma bebida vermelha
de uma garrafa de água mineral.)

81
WILLIAM:

Alguém me roubou o dinheiro.

(Olham para ele; um tempo. Ele dá um golo.)

TANYA:

Qual dinheiro?

WILLIAM:

Tinha umas cem libras.

TANYA:

Para que é que tu tinhas cem libras?

WILLIAM:

Não é assim tanto.

LILLY:

Onde é que tens andado?

WILLIAM:

O quê?

LILLY:

Há dias que não apareces.

WILLIAM:

De que é que estás a falar?

TANYA:

Para que é que trouxeste cem libras para a escola?

WILLIAM:

Estavam na minha mochila.

LILLY:

82
Quando é que foi a última vez que as viste?

WILLIAM:

O que é que queres dizer com isso? Que caralho de merda de pergunta é
essa?

“Quando é que foi a última vez que as viste?” Hoje de manhã. Hoje de manhã
foi a última vez que as vi. Vi-as hoje de manhã quando as pus lá. Alguém as
roubou.
As pessoas estão-me sempre a fazer isso.

TANYA:

Tens a certeza?

WILLIAM:

Tenho ar de quem não tem a certeza?

TANYA:

Eu estou-me sempre a enganar nestas coisas.

WILLIAM:

Tenho ar de mentiroso?

TANYA:

Não.

(Ela aproxima-se dele.

Ele afasta-se dela de repente.)

WILLIAM:

Estavas a tentar beijar-me?

TANYA:

O quê?

WILLIAM:

83
Agora mesmo?

TANYA:

Não.

WILLIAM:

Estavas?

TANYA:

Não, não estava.

WILLIAM:

“Não, não estava.” Foi por isso que te aproximaste.

TANYA:

Não reparei que me tinha aproximado.

WILLIAM:

Mas as pessoas fazem esse tipo de coisas, não fazem?

BENNETT:

William. O que é que estás a beber?

(Ele olha para a bebida.)

WILLIAM:

Campari e sumo de toranja. Queres provar um bocadinho?

BENNETT:

A sério?

WILLIAM:

Porque é que eu havia de mentir sobre uma coisa dessas? É a minha bebida
preferida, por amor de Deus. Toma.

(BENNETT aceita.)

84
BENNETT:

Obrigado.

(Ele bebe.)

BENNETT:

Uau.

(Bebe mais um bocado.)

BENNETT:

Chadwick, tens algum dinheiro contigo?

CHADWICK:

Desculpa?

BENNETT:

Tens, Chadwick?

CHADWICK:

O que é que queres dizer?

BENNETT:

Quero dizer se tens algum dinheiro na carteira ou no bolso ou na mochila ou


enfiado no cu que que possas arranjar ao William. O William perdeu cem libras
e eu acho que tu devias tentar compensá-lo, não achas?

CHADWICK:

Eu não tenho nada a ver com isso.

BENNETT:

Desculpa?

CHADWICK:

Eu disse que não tenho nada a ver com isso.

BENNETT:

85
Ha!

CHADWICK:

William, tenho imensa pena que tu tenhas perdido o dinheiro, mas não me
parece que a culpa tenha sido minha.

BENNETT:

Chadwick. Mostra lá a carteira.

TANYA:

Bennet. Pára com isso. Já.

BENNETT:

O quê? O quê, Tanya? Estarás tu realmente a tentar impedir-me?

Chadwick, mostra a carteira já caralho, meu caralho cara de cu ou eu rebento-


te a mona ao pontapé com toda gente a assistir e a cantar musiquinhas de
acompanhamento Deus é minha testemunha.

CHADWICK:

Toma.

BENNETT:

Quanto é que tens aí?

CHADWICK:

Nada.

BENNETT:

Quanto, meu cabrão mentiroso.

CHADWICK:

Vinte libras.

BENNETT:

86
Tira-as cá para fora.

CHADWICK:

O quê?

BENNETT:

Tira-as da carteira.

CHADWICK:

Não.

BENNETT:

Já. Cabeça de caralho. Obrigado. E dá-as ao William. Ele está um bocado sem
cheta.

(CHADWICK dá o dinheiro a WILLIAM.

BENNETT assiste. Bebe outro golo.

Silêncio.

Algum tempo.

Tentam todos não se mexer, excepto BENNETT, que se movimenta com


algum à-vontade.)

Está mais calor hoje. Parece-me. A ti não, Chadwick? Não reparaste que está
mais calor hoje? Haviam de ligar o aquecimento mesmo quando aparece o sol.
Típico, não é? O Verão de São Martinho. Vamos ao dentista hoje à tarde.
Tenho a tarde livre. Estou com vontade disso. Apanhar sol. A minha mãe já cá
está, veio-me buscar. Eu vi-a. Está à espera na recepção. Decidi passar por ela
sem lhe dizer nada. Está tudo muito caladinho. Como é que vai o estudo, Lilly?
Já começaste?

LILLY:

Sim.

BENNETT:

87
Desculpa? Estás a falar para dentro. Não te ouvi.

LILLY:

Disse que sim. Claro que já comecei. Os exames são na próxima semana.

(BENNETT assente com a cabeça.)

BENNETT:

Óptimo.

(Aproxima-se de CHADWICK.

Olha para ele fixamente. Toca-lhe na bochecha.)

O que é que tiveste hoje de manhã, Chadders? Que disciplina é que tiveste?

CHADWICK:

Matemática.

BENNETT:

Matemática. Muito bem. Muito bem.

E tive Ciência Política.

(Arrota na cara do CHADWICK.

Entra LUCY FRANCIS. Tem onze anos. Está nervosa por estar ali. Os outros
reparam nela.)

LUCY:

A mãe diz que tens de te despachar.

(BENNETT vira-se para ela.)

BENNETT:

Sim. Obrigado, Lucy. Diz-lhe que eu estou a ir.

(Pega na mochila e no casaco. Desenvolve a bebida a WILLIAM.

88
Pára mesmo em frente a TANYA.)

BENNETT:

O que é que se passa contigo?

TANYA:

Nada.

BENNETT:

Tens um ar assim triste. Estás mesmo triste?

TANYA:

Não.

BENNETT:

Estás triste, não estás? Sabes porquê? Queres saber porque é que estás tão
triste? Achas que eu te diga? Estás triste porque és gorda. És gorda porque
comes demais. Comes demais porque estás deprimida. Estás deprimida por
causa da merda do mundo. Pronto. O meu dentista está à espera destas belas
dentuças.

(Arreganha os dentes para CHADWICK. Vai-se embora.

Toca a campainha.

Esperam todos; um tempo. LILLY está a olhar para CISSY.)

CISSY:

O que foi?

Ele estava a disparatar.

Foda-se. Era uma piada.

Ele está só nervoso. Tem pavor do dentista.

Vens a Inglês?

(TANYA olha para ela. Não diz nada.)

89
Eu vou contigo.

(TANYA não reage. CISSY sai.)

TANYA:

Estás bem?

CHADWICK:

O quê?

TANYA:

Se estás bem, perguntei eu.

CHADWICK:

Claro. Sim. Estou óptimo. Claro que estou bem.

TANYA:

Lamento imenso. Tentei impedi-lo.

CHADWICK:

Sim. Eu sei. Não é preciso dizeres.

(TANYA olha para ele um instante, depois vira-se e vai-se embora.)

LILLY:

O que é que vais fazer? Em relação ao dinheiro?

WILLIAM:

Foste tu que o tiraste?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Estava só a pensar se tinhas sido tu a tirá-lo. Podias ter sido. Nunca se sabe.
Podias ter mexido na minha mochila e encontrado o dinheiro.

LILLY:
90
De que é que tu estás a falar?

91
WILLIAM:

Ha!

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Enganei-te!

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Estava-te só a provocar. Era uma piadinha. Queres um bocado?

(Ele bebe mais Campari e oferece-lhe a garrafa.)

LILLY:

Não, obrigada. Vemo-nos mais logo.

WILLIAM:

Sim. Espero que sim.

(Ela vai-se embora. Passa algum tempo.)

CHADWICK:

Como é que correu a entrevista de preparação?

WILLIAM:

Correu bem. Foi com o Lloyd. Ele foi muito perspicaz. É de longe o meu
professor preferido. Deu-me um cigarro no fim, o que provavelmente foi pouco
profissional da parte dele. Mas bastante querido também.

Quando é que tens a tua?

CHADWICK:

92
WILLIAM:

Eu não faço a de preparação. Vou fazer a entrevista directamente.

Ok.

(WILLIAM pega na carteira e dá as vinte libras a CHADWICK.)

CHADWICK:

Obrigado.

WILLIAM:

Não há problema.

CHADWICK:

Ele é…

WILLIAM:

Pois.

CHADWICK:

Eu não acho que mereça algumas das coisas que me acontecem, sabes?

Tu achas?

Não acho que seja assim tão mau. Não sou tão mau como eles me pintam.
Não sou tão estúpido como as pessoas pensam.

WILLIAM:

Não me parece que ninguém pense por um segundo que tu sejas estúpido de
maneira alguma.

(CHADWICK pega no telemóvel. Procura uma mensagem.

Lê-a e mostra-a a William.)

WILLIAM:

Quando é que recebeste isto?

93
WILLIAM:

CHADWICK:

Esta chegou hoje de manhã.

Isto não é do Bennett pois não?

CHADWICK:

Não. Deve ser de alguém lá de baixo. É por isso que eu estou sempre a vir cá
para cima.

WILLIAM:

Já alguma vez tinhas recebido uma coisa deste género?

Devias contar a alguém. Isto é grave, Chadwick.

CHADWICK:

Pois.

Às vezes… WILLIAM:

O quê?

CHADWICK:

Nada.

WILLIAM:

Diz lá. Chadwick, o que é que ias dizer?

CHADWICK:

Há muito, muito menos antimatéria no Universo do que matéria. Sabias?

WILLIAM:

Não posso dizer com segurança que soubesse, Chadwick, não. Era mesmo
isso que tu ias dizer?

CHADWICK:

94
WILLIAM:

Sim. É uma das coisas que as experiências no CERN estão a investigar.

No CERN?

CHADWICK:

O LHC?

O acelerador de partículas?

WILLIAM:

Aquele telescópio estragado?

CHADWICK:

Não é um telescópio. É um acelerador atómico de partículas.

WILLIAM:

Que eles nem sequer conseguiram pôr a funcionar.

CHADWICK:

Mas hão - de conseguir.

(A convicção de CHADWICK detém WILLIAM; um tempo.)

Uma das coisas que as experiências com este acelerador vão permitir testar é
para onde foi a antimatéria. Há pessoas que pensam que tem de estar nalgum
lado. Que não pode simplesmente desaparecer. Dada a sua ausência do
Universo conhecido especulam que isso prove que existam universos
alternativos. E que a antimatéria se encontra nesses universos alternativos. Eu
acho que as experiências que este telescópio permite desenvolver vão provar
que eles têm razão. Se fosse possível dominar a antimatéria e pôr um único
positrão de antimatéria em contacto com um único electrão de matéria, isso
criaria uma explosão de força e energia inauditas. Podiam construir uma
bomba de antimatéria. Seria quarenta mil vezes maior que uma bomba nuclear.

Acho que seria pelo melhor.

95
WILLIAM:

Não achas que seria pelo melhor, às vezes? Acabar com isto e pronto.

96
Eu acho. Penso nisso muito mais do que devia. Às vezes acho que quando
morres é como se atravessasses um limiar.

Atravessas uma porta. Sais daqui.

(Algum tempo.)

WILLIAM:

Há outras maneiras. De sair, sabes.

(CHADWICK assente.)

Quando eu fizer vinte e um anos vou herdar mais de um milhão de libras.


Sabias? Alguma vez te contei isto?

CHADWICK:

Não.

WILLIAM:

O meu pai ganhou mais de doze milhões de libras nos mercados de petróleo da
Rússia no princípio dos anos noventa. Deixou-me meio milhão de libras num
fundo, em testamento. Vou herdá-las quando fizer vinte e um anos. Posso fazer
o que quiser com elas. Vou-me mudar para Nova Iorque. Vou sair daqui e viver
com a Lilly.

(CHADWICK olha para ele.)

Temos tudo planeado. Pergunta-lhe, se não acreditas. Vamos arranjar um loft,


num armazém remodelado no Lower East Side, em Manhattan. Vou comprar
um Lamborghini Esprit. A Lilly deve fazer um penteado tipo Jennifer Aniston ou
qualquer coisa assim. Vamos andar por lá de carro. Há - de ser melhor do que
estar morto, acho eu.

CHADWICK:

O Nicholas não se importa?

WILLIAM:

Hã?

97
CHADWICK:

O Nicholas não se importa que tu vás viver com a Lilly?

WILLIAM:

O que é que ele tem a ver com isso?

CHADWICK:

Ela anda com ele.

WILLIAM:

Quem?

CHADWICK:

A Lilly. Anda a fodê-lo, foi o que eu ouvi dizer.

WILLIAM:

Não anda nada.

CHADWICK:

Anda, anda.

WILLIAM:

Desde quando?

CHADWICK:

Aí desde a primeira semana que chegou cá.

(Pausa.)

WILLIAM:

Ah.

CHADWICK:

Não sabias?

WILLIAM:

98
Não. Não sabia.

CHADWICK:

Foi uma espécie de golpe para ti?

WILLIAM:

Bom. Admito que estou um bocado desapontado.

(Silêncio. Algum tempo.)

Posso ficar em tua casa hoje?

CHADWICK:

O quê?

WILLIAM:

Se posso dormir em tua casa hoje?

CHADWICK:

Não sei.

WILLIAM:

O que é que os teus pais diriam se eu aparecesse lá e pronto?

CHADWICK:

Não sei se iam gostar muito. Com os exames na próxima semana e tudo.

WILLIAM:

Mas não iam fazer nada, pois não?

CHADWICK:

Não sei.

WILLIAM:

99
Eu podia dormir no chão do teu quarto. Podíamos partilhar a cama, cabeça com
pés. Podíamos levantar-nos a meio da noite e fazer tostas de queijo e comê-las.

CHADWICK:

Não.

WILLIAM:

Como é que tu és em casa?

CHADWICK:

Não sei.

WILLIAM:

És diferente?

CHADWICK:

Acho que não.

WILLIAM:

Comportas-te de maneira diferente de aqui? Aposto que sim. As pessoas


gostam um bocadinho mais de ti lá? Aposto que sim, não? Então porque é que
não me deixas lá ficar?

CHADWICK:

A questão não é eu deixar-te ou não. É que a casa não é minha.

WILLIAM:

Então podia aparecer depois dos exames. Não? Sabes qual é o problema da
tua estrutura óssea? Acabei de perceber. É o teu nariz. Está um bocadinho
subido na tua cara acho eu. Não está? Ali um bocadinho subido? Vou chegar
atrasado comó caralho agora. Tenho aulas a tarde toda. Devo dizer que sinto
que me desiludiste, mesmo.

(Fim da cena.)

100
CENA 4

(‘’The Woman Inside ‘’, dos Cows.

São 8h 27 da manhã. Segunda-feira, 10 de novembro.

BENNETT FRANCIS, TANYA GLEASON, NICHOLAS CHATMAN, CISSY


FRANKS, WILLIAM CARLISLE e LILLY CAHILL estão na sala comum.)

BENNETT:

O quê?

TANYA:

Uma vespa!

CISSY:

Onde?

TANYA:

Ali.

CISSY:

Foda-se.

NICHOLAS:

Isso não é uma vespa.

CISSY:

Claro que é uma vespa. Foda-se.

TANYA:

Livra-te dela.

NICHOLAS:

Estamos a meio de novembro. É uma mosca.

101
TANYA:

É uma vespa, idiota do caralho. Abre a janela.

WILLIAM:

Não a estou a ver.

NICHOLAS:

‘’Idiota do caralho’’ é um bocado forte.

CISSY:

Ali. Meu Deus, está ao pé da tua cabeça.

TANYA:

Vai-me picar.

CISSY:

Apanha-a. Mata-a. Foda-se!

WILLIAM:

Não a mates.

CISSY:

O quê?

WILLIAM:

Não a mates.

TANYA:

Já se foi embora?

WILLIAM:

Não a devias matar. É uma criatura viva.

CISSY:

Estás a falar a sério?

102
BENNETT:

É uma merda duma vespa.

NICHOLAS:

Abre a janela e pronto.

BENNETT:

Espera.

TANYA:

William, por favor podes abrir a janela.

BENNETT:

Espera. Olha.

CISSY:

Bennett.

BENNETT:

Confia em mim. Olha.

TANYA:

William, abre a janela.

BENNETT:

Não. Não abras. William. Não abras. Vê isto.

(Ele prepara-se para agarrar a vespa com a mão.

Move-se rapidamente e com alguma elegância.

Mantém o punho fechado.

Abre a mão. Apanhou e

matou a vespa.

Os outros olham para ele e para a vespa. Ele tira-a da mão e segura-a entre
dois dedos.)
103
CISSY:

Meu Deus.

NICHOLAS:

Como é que fizeste isso?

BENNETT:

Magia. O meu pai ensinou-me. Só tens de ver como elas se mexem.

TANYA:

É um bocado marado.

(Ele olha para ela.)

BENNETT:

Queres segurar nela?

TANYA:

Não obrigada. É muito esquisito.

WILLIAM:

Eu não acho que seja esquisito. Acho que é cruel.

(BENNETT olha para a vespa morta. Dá-a a WILLIAM.

WILLIAM pega nela. Olha para ela.

Põe-a no bolso.)

CISSY:

Cruel? Cruel porquê? As vespas são bichos maus que não servem para nada.

NICHOLAS:

É impressionante como o caralho, isso é que é.

CISSY:

Ela não te picou?

104
(Entra CHADWICK.)

BENNETT:

Chadwick. Fica aí. Agora espera aí. Obrigado. Não. Nunca picam. Se fores
suficientemente rápido.

CHADWICK:

O Lloyd teve um ataque de coração.

(Toda a gente se vira para olhar para ele.)

O Eliot acabou de me contar. Está em Stepping Hill. Quase que morreu. Mas
não morreu. Não sabem quanto tempo é que vai ficar lá.

BENNETT:

Uau.

WILLIAM:

O que é que tu disseste?

CHADWICK:

Ontem à noite. O Lloyd. Teve um ataque de coração.

WILLIAM:

Um ataque de coração?

CHADWICK:

Foi bastante grave. Acho que houve complicações. O Elliot disse que lhe
contaram que ele perdeu completamente a consciência durante alguns
segundos.

TANYA:

Meu Deus.

WILLIAM:

O Lloyd?

105
CHADWICK:

Foi o que eu disse.

WILLIAM:

Está morto?

CHADWICK:

Não. Está no hospital.

WILLIAM:

Mas morreu? Durante um bocadinho?

CHADWICK:

Não. Perdeu a consciência, é diferente de morrer.

BENNETT:

Não se pode morrer durante um bocadinho.

WILLIAM:

Eu vi-o ontem.

CHADWICK:

Sim.

WILLIAM:

Não acredito em ti.

CHADWICK:

Não estou a mentir, a sério.

(Pausa.)

CISSY:

Cum caralho, hã?

106
TANYA:

Na idade dele. Com o que ele fuma. É grave.

E hoje à tarde é o exame de História.

(Pausa.)

BENNETT:

Sabem do que é que eu gostava nele?

WILLIAM:

Ele não está morto.

BENNETT:

Sempre gostei da maneira como ele mexia as mãos. Fazia assim uns
movimentos sacudidos. Eram encantadores. Aaaah! Apanhavam uma pessoa
de surpresa.

WILLIAM:

Não fales como se ele estivesse morto. Ele não está morto.

CISSY:

Não me surpreende que os professores tenham ataques de coração. Andam


por aí que nem vítimas de trauma. Se vires os olhos deles. Estão aterrorizados.
Acabam todos com úlceras no estômago. Sofrem todos de suores
descontrolados. Não fazem a menor ideia de quem são metade das pessoas na
escola. É ridículo. E é suposto eles estarem a tomar conta de nós.

WILLIAM:

Vou lá vê-lo. Alguém quer vir comigo? Alguém quer vir comigo vê-lo?

TANYA:

São oito e meia, William.

WILLIAM:

O quê?

107
TANYA:

Se calhar depois das aulas. Podíamos ir. Não sabemos quais são as horas de
visita.

WILLIAM:

O quê?

TANYA:

Não sei se ele pode receber visitas durante uns dias. O meu avô foi assim.
Basicamente puseram-no a dormir.

BENNETT:

Eu por acaso disse-te que te podias mexer, caralho. Disse?

CHADWICK:

Não.

BENNETT:

Então por que caralho te estás a mexer?

CHADWICK:

Queria pôr as minhas coisas no cacifo.

BENNETT:

Pois não podes. Hoje Chadwick, como pequena homenagem ao Lloyd que está
moribundo, vais ser a minha boneca. Percebeste?

TANYA:

Bennett.

BENNETT:

O quê? O quê, Tanya?

TANYA:

Deixa-o em paz. É aborrecido.

108
BENNETT:

Aborrecido? Eu não estou aborrecido. Tu estás aborrecido, Chadwick? Tu estás


aborrecido, Nicky?

TANYA:

Tu és tão… BENNETT:

O quê?

Sou tão o quê, Tanya? Vá lá, diz-me.

Ah. Foda-se. Estou a brincar. Estou a brincar. Estou a ser um cretino.

Chadwick. Entra. Entra, meu rapaz. Guarda as tuas coisas, estou a ser um
idiota.

Como estás tu hoje, Chadders?

CHADWICK:

Estou óptimo, obrigado.

BENNETT:

Preparado para o teu exame de Estudos Gerais?

CHADWICK:

Sim.

BENNETT:

Eu também, excelente, eu também. É o meu último. Sinto-me tentado a fazê-lo


de olhos fechados.

Que raio de notícia mais horrível isto do Lloyd, não é?

Pergunto-me qual seria o aspeto dele. Pergunto-me se ele terá parado de


respirar. Pergunto-me de que cor terá ele ficado. Já alguma vez viste alguém
morrer, Chadders?

CHADWICK:

109
Não.

BENNETT:

Ouvi dizer que se fica com uma erecção. Será que ele é velho demais para ter
uma erecção, achas?

CISSY:

Bennett.

BENNETT:

Aposto que ele tem uma pila gigante comó caralho.

Um barrote grande comó caralho, não achas, Chadders?

TANYA:

És um tarado.

BENNETT:

Já alguma vez tiveste uma erecção, Chadwick?

TANYA:

Pára.

BENNETT:

O quê? Estou só a perguntar. Estou só a perguntar ao meu amigo Chadders.

Então Chadwick? Já alguma vez tiveste uma erecção, Chadwick?

Já alguma vez te vieste?

CHADWICK:

Sim.

BENNETT:

Como é que sabes?

CHADWICK:

110
É óbvio, não? Não sabes?

BENNETT:

Não te consigo imaginar a vires-te. Bates punhetas o tempo todo em casa,


Chadwick? Pensas em quê quando estás a bater uma? Pensas em raparigas
ou em rapazes?

CHADWICK:

Penso em raparigas. Tu não?

BENNETT:

A tua mão não conta, Chadwick, posso só acrescentar?

Ou pensas sobretudo na gorda da nossa Tanya? Estás quase lá amigo, já


agora.
Devias mesmo convidá-la para sair. Iam fazer um belo casal.

Já alguma vez tiveste uma namorada, Chadwick? Chadwick, responde à minha


pergunta meu cabrão cara de cu engasgado.

CHADWICK:

O quê?

BENNETT:

Chadwick, alguma vez tiveste uma namorada na merda da tua vida inteira?

CHADWICK:

Não. Ainda não.

CISSY:

Ah!

BENNETT:

Eles acabam por cair sabes. Secam e caem. Tipo fruta podre.

CISSY:

Isso não é verdade. Não lhe ligues.

111
BENNETT:

O que é que tu achas, Nicky? Nunca ninguém beijou o coitadinho.

(NICHOLAS não responde.)

CISSY:

Meu Deus. Conseguem imaginar. Ir com o Chadwick. Desculpa, Chadwick. Sem


te querer ofender nem nada.

CHADWICK:

Não. Tudo bem.

BENNETT:

Tu devias-lhe dar umas dicas, Nicky. Tu é só fodilhanço, é o que consta.

NICHOLAS:

Quem é que te disse isso?

BENNETT:

Toda a gente sabe, não é Lilly?

(Para TANYA.)

E tu andas para aí a pô-lo em brasa e depois nada. É crueldade, se queres a


minha opinião.

(Para NICHOLAS.)

Não tens aí umas amigas que estejam interessadas em fazer trabalho de


caridade?

NICHOLAS:

Não Bennett. Não tenho.

BENNETT:

Não podias pedir à Copley por ele?

CISSY:

112
Já viste a cara dela?

BENNETT:

Já viste a cona dela? Tem uma cona tão gorda.

TANYA:

Isso é completamente…

BENNETT:

Sabes o que é que isso quer dizer, Chadwick? Uma cona gorda daquelas?

Não sabes, pois não?

Olha lá Chadwick, tu não saberias o que fazer com ela, pois não, meu filho? Se
ela viesse ter contigo e se dobrasse por cima da tua mesa no meio da aula de
Física para corrigir os teus trabalhos tu não ias fazer a mínima por onde
começar.

CHADWICK:

E tu sim?

BENNETT:

O que é que disseste?

CHADWICK:

Disse ‘’ e tu sim?’’. Se saberias por onde começar. Bennett.

BENNETT:

Nem acredito que disseste isso em voz alta.

CHADWICK:

Se ela se inclinasse por cima da tua mesa no meio da aula de Física o que é
que estás a dizer que farias?

BENNETT:

Fodia-a até ela gritar, foda-se.

113
CHADWICK:

Isso quer dizer que és bissexual?

(Pausa.)

BENNETT:

Tanya, tens batom.

TANYA:

O quê?

BENNETT:

Tens? Tens batom, Tanya?

CISSY:

Bennett, a campainha está quase a tocar. Vai sair toda a gente.

BENNETT:

Posso-te perguntar uma coisa Tanya, minha amiga?

Achas que me faz sentir mal o facto de tu estares sempre a defendê-lo? É isso
que tu pensas?

(Ele aproxima-se de CHADWICK. Agarra-lhe uma mecha de cabelo, com muita


força.)

Tanya. Pega no batom ou eu vou magoá-lo a sério.

Isso.

Agora Chadwick, vem aqui para ao pé da Tanya. E ela vai pôr batom para ti.

TANYA:

O quê?

BENNETT:

Anda lá, Tanya.

114
CISSY:

Meu Deus.

BENNETT:

Chadwick, vem para ao pé da Tanya. Estica os lábios.

Tanya.

(Ele cospe na cara dela.)

Vá.

Agora.

Obrigado.

CHADWICK:

É bom.

CISSY:

O quê?

CHADWICK:

Eu gosto. Cheira bem.

BENNETT:

Tens um ar tão gay, Chadwick, que me dás vontade de mijar.

Beija-o

CISSY:

O quê?

BENNETT:

Beija-o. Por mim.

(Ela olha para Bennett. Vai ter com CHADWICK. Beija-o de maneira muito
sensual.)

O que é que estás a fazer, William?


115
WILLIAM:

Só a dançar um bocadinho.

(BENNETT observa CISSY a beijar CHADWICK.)

BENNETT:

Eh Chadwick. Isso é a minha namorada.

(CHADWICK e CISSY param de se beijar.)

Que caralho é que tu estás a fazer a beijar a minha namorada, caralho.

CHADWICK:

Tu mandaste-me.

CISSY:

Ele sabia a batatas fritas.

BENNETT:

Tu não querias? O que estás a dizer? O que estás a dizer em relação à Cissy,
Chadwick? Estás a insultá-la? Primeiro andas aos meles com ela mesmo à
minha frente e depois insulta-la assim. Devia-te arrancar a cara. Devia-te
arrancar as orelhas. Devia-te cortar a pilinha. És um tarado dum cabrão dum
caralho.

WILLIAM:

Pára com isso, Bennett.

BENNETT:

O quê?

WILLIAM:

Pára com isso.

Deixa-o em paz.

BENNETT:

116
Estarás tu a falar comigo, por acaso?

WILLIAM:

És um idiota do caralho. Deixa-o em paz.

BENNETT:

Oiçam lá este.

WILLIAM:

Estou a falar a sério, Bennett. Deixa-o em paz. Já.

BENNETT:

Oiçam lá aqui o mata maninhos.

WILLIAM:

O que é que tu disseste?

BENNETT:

Oh. Acho que tu ouviste o que eu disse, não, William?

WILLIAM:

Anda cá. Anda cá e diz isso.

BENNETT:

Eu disse ‘’Oiçam lá aqui o mata maninhos.’’ Estava a falar de ti. Estava-me a


referir ao teu irmão.

WILLIAM:

Vou rebentar contigo.

LILLY:

William, acalma-te. Ele estava-te a provocar.

WILLIAM:

Pois eu dou-lhe a provocação. Vais ver o que eu lhe provoco.

117
(A campainha toca.

Eles preparam-se para sair.)

WILLIAM:

Onde é que vocês vão, caralho. Fiquem aqui. Fica aqui, Bennett. Eu não tenho
medo de ti. Não tenho medo de ninguém. Queres saber se eu sou mesmo rijo?

LILLY:

William. São as inscrições.

WILLIAM:

Vamos lá, Bennett. Cabrão. Cara de cu. Vamos lá então. A qualquer hora. Eu e
tu. Lá fora. Agora.

BENNETT:

Vocês ouviram isto?

CISSY:

Está a falar como um livro de banda-desenhada.

BENNETT:

Estás a falar como uma personagem de um filme.

WILLIAM:

Eu dava cabo de ti na boa.

BENNETT:

Aposto que sim.

WILLIAM:

Estou-te a dizer. Um dia, não falta muito, vais ter a surpresa da tua vida.

(Para CHADWICK.)

Não lhe dês ouvidos. Ele não vale nada. Não passa de um grande espaço vazio
cheio de nada.

118
CHADWICK:

Eu não me importo.

BENNETT:

A sério?

CHADWICK:

Agora já não me importo muito por tua causa.

BENNETT:

Bom. Que generoso da tua parte.

CHADWICK:

Os seres humanos são patéticos. Tudo o que os seres humanos fazem acaba
mal. Tudo o que os seres humanos bons fazem é construído em cima de coisas
monstruosas. Nada dura. Nós de certeza que não vamos durar. Podíamos ter
feito qualquer coisa verdadeiramente extraordinária e não o vamos fazer.
Andamos aqui há uns cem mil anos. Vamos estar extintos antes dos próximos
duzentos. Sabes o que é que nos espera? Sabes o que vai definir os próximos
duzentos anos? As religiões vão-se tornar violentas; as taxas de crime vão subir
histericamente; toda a gente se vai tornar viciada em sexo na internet; o suicídio
vai estar na moda; vai haver fome; vai haver inundações; vai haver incêndios
nas principais cidades do Mundo Ocidental. Os nossos sistemas educativos vão
ser maltratados. Os nossos sistemas de saúde vão-se tornar insustentáveis; as
nossas forças policiais ingeríveis; os nossos governos corruptos. Vai haver
brutalidade aberta nas ruas; vai haver guerra nuclear; esgotamento massivo de
recursos a todos os níveis; a população do terceiro mundo vai aumentar
loucamente. Já está a acontecer. Está a acontecer agora. Há milhares a morrer
todos os verões com as inundações durante a monção, na Índia. Os africanos
do Senegal dão à costa nas praias do Mediterrâneo e os turistas liberais com
sentimentos de culpa tomam conta deles. Há somalis à espera em pensões em
Malta ou em ilhas-prisão no norte da Austrália. Há centenas de pessoas a
morrer por causa do calor ou dos incêndios todos os anos em Paris. Ou na
Califórnia. Ou em Atenas. Os oceanos vão subir. As cidades vão ficar

119
inundadas. As centrais de energia vão ficar inundadas. Os aeroportos vão ficar
inundados. Há espécies que vão desaparecer para sempre. Incluindo a nossa.
Por isso se pensas que eu me preocupo por tu me chamares nomes Bennett,
meu menino, estás redondamente enganado, caralho.

BENNETT:

Caramba.

Isso é um bocadinho deprimente, Chadwick.

CHADWICK:

Lá por uma coisa ser deprimente não quer dizer que não seja verdade.

CISSY:

Eu não acredito nisso.

CHADWICK:

Mas devias.

CISSY:

Podemos nos educar uns aos outros.

CHADWICK:

Não educamos.

CISSY:

Podemos mudar as coisas.

CHADWICK:

Não podemos.

CISSY:

Podemos sim. Há a ciência. Há a tecnologia.

CHADWICK:

Já não nos vão ajudar.

120
CISSY:

As pessoas sempre disseram que o mundo ia acabar.

CHADWICK:

Estavam enganadas. Eu não estou.

E também tinha razão em relação ao teu batom, Tanya. Sabe mesmo bem.

(Lambe os seus próprios lábios. Sai.)

BENNETT:

Ah! Primeiro tempo! Tentemos então mais uma vez. A que horas é o exame?

10h, não é? Excelente. Foi engraçado, William. Diverti-me bastante. Amanhã à


mesma hora, companheiro?

Vemo-nos no auditório dos exames, meus lindos. Não cheguem atrasados.

(Vai-se embora.)

CISSY:

Temos inglês.

(Não há resposta.)

Vamos chegar atrasadas.

(Não há resposta.)

Ao menos ele vai reparar em ti.

TANYA:

Iá.

(TANYA vai-se embora. CISSY fica de pé um momento. Vai atrás dela.)

NICHOLAS:

Estás bem?

WILLIAM:

Estou o quê?
121
NICHOLAS:

Estava a perguntar se estás ok.

WILLIAM:

Não pareço?

LILLY:

Foi bom teres-lhe feito frente.

WILLIAM:

Vocês estão os dois livres agora?

LILLY:

Até ao exame.

WILLIAM:

Boa. Calha-vos bem.

NICHOLAS:

Nem acredito que nos obrigam a ter aula. Por duas horas…

WILLIAM:

Eles desligaram o aquecimento aqui?

NICHOLAS:

Não. Eu estou com imenso calor.

LILLY:

Eu estou a ferver.

(WILLIAM olha para ela.)

WILLIAM:

Sinto-me um bocadinho desiludido.

LILLY:

122
Porquê? Porquê, William?

123
É complicado porque há coisas que aconteceram que são completamente
culpa minha.

LILLY:

Tipo o quê?

WILLIAM:

Tu sabes tipo o quê.

LILLY:

Não sei.

WILLIAM:

Vocês estão sempre a falar disso. Eu não sou assim tão ingénuo. Sei que
posso ter esse ar. Sei que posso ter ar de oh William. William Billiam. William
Tell. William o estúpido. William o Grande. Acham que eu sou o William
Shakespeare?

(Eles olham para ele.)

Porque até podia ser. É completamente possível. Olhem para as notícias!

NICHOLAS:

O quê?

WILLIAM:

Morreram 190 pessoas ontem num acidente de avião no Brasil. Porque é que
acham que isso aconteceu?

LILLY:

Derrapou. Na pista. A pista estava molhada.

WILLIAM:

Ah pois. Sim.

NICHOLAS:

124
WILLIAM:

É verdade.

WILLIAM:

É o que te dizem que é verdade.

NICHOLAS:

Estás a dizer que tu é que provocaste o acidente, William?

WILLIAM:

Bem gostavas tu de saber, não era? Aposto que ias…

Há quanto tempo é que vocês andam?

NICHOLAS:

William.

WILLIAM:

Por que caralho é que ninguém vem comigo ao funeral do Lloyd, por amor de
Deus!

LILLY:

Ele não está morto. Ele não morreu. O Chadwick disse…

WILLIAM:

Deviam mas é fechar a escola inteira era o que eles deviam fazer, caralho.

Quantas vezes é que a fodeste, Nicholas?

NICHOLAS:

William, cala-te.

WILLIAM:

Ou quê? A pila dele é mesmo gigante?

LILLY:

Está calado. Estás a fazer figura de parvo.

125
O que foi? O que foi?

Disse alguma coisa mesmo embaraçosa?

Peço desculpa.

Meu Deus.

Peço imensa desculpa. Nem sequer dei conta do que disse.

Vem cá. Vem cá, Lilly. Minha melhor amiga.

LILLY:

William, deixa-me.

(Ele beija-a na cabeça, de lado.)

WILLIAM:

Era capaz de te comer. Tenho de me ir embora.

LILLY:

William, onde é que vais?

WILLIAM:

Vou ver o Lloyd. Conversar um bocadinho. Ser um bocadinho estimulado.


Percebes?

LILLY:

Tens exames.

WILLIAM:

Tenho o quê?

LILLY:

Tens o exame de Estudos Gerais. Tens História à tarde.

(WILLIAM olha par LILLY durante um momento, ligeiramente confundido pelo


que ela está a dizer. Depois vai-se embora.

Eles vêem-no a ir-se embora.

126
WILLIAM:

Olham um para o outro.)

NICHOLAS:

Estás bem?

LILLY:

Acho que sim. E tu?

NICHOLAS:

Sim

(Aguentam o olhar um do outro durante algum tempo.)

(Fim da cena.)

CENA 5

(“Fell In Love With A Girl”, dos white Stripes.

São 16h38. Segunda-feira, 10 de novembro.)

LILLY:

O que foi? O que foi? Não vais falar comigo?

Será que vais só ficar a olhar para mim, William? É que me estás a assustar
um bocadinho.

Porque é que as janelas estão todas abertas? Foste tu que as abriste?

O que é que querias? Onde é que andaste o dia todo?

Ouve. Recebi a tua mensagem. Pediste-me para vir aqui por isso eu vim.

Esta a ficar de noite. Se não falares comigo vou para casa.

A sério.

127
O Lloyd morreu. Hoje de manhã. Enquanto nós estávamos aqui.

Fui ao hospital depois de ter saído de ao pé de ti e do Nicholas. Cheguei tarde


demais. Tentei convencer-vos a ir mais cedo. Toda a gente me impediu.

Era um sítio horrível.

Foi a segunda pessoa que eu conheci que morreu. Quantas pessoas é que
conheces que tenham morrido?

Eu supostamente tinha exames, não era? Perdi-me a voltar para casa. Andei
por aí.

Faltei? Aos exames? Faltei a história?

(LILLY assente.)

Enquanto andava por aí percebi uma coisa em relação a ti. Sei o que tu és. Na
vida real. Ocorreu-me. Como uma epifania.

LILLY:

De que é que tu estás a falar?

WILLIAM:

És um robot, não és?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

O que é que te fizeram? Em que laboratório é que te fizeram?

Quando eu te convidei para sair, tu já andavas com o Nicholas?

Andavas, não era? Porque é que não me disseste? Porque é que não me
falaste nisso? Estás a ouvir aquilo?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

128
WILLIAM:

O martelar?

LILLY:

Não.

WILLIAM:

Estás a mentir?

LILLY:

Não sabia o que dizer. Gostava de ti. Gosto de ti. Não te queria desiludir.

WILLIAM:

Boa resposta. Comprei-te um presente quando andava por aí. É um presente


de Natal muito adiantado.

LILLY:

Cum caralho.

WILLIAM:

“Cum caralho.” Se a minha mãe te ouvisse a dizer asneiras.

LILLY:

Não me podes dar isto.

WILLIAM:

“Não me podes dar isto.” Posso, posso. Acabei de o fazer. Comprei um para
mim também. Comprei uns CD´s. Olha, gravei-os para ti.

LILLY:

William, estão aqui umas trezentas canções.

WILLIAM:

“William, estão aqui umas trezentas canções.” Ha!

129
LILLY:

Compraste isto tudo?

WILLIAM:

“Compraste isto tudo?”

LILLY:

Pensei que a tua mãe tinha morrido.

WILLIAM:

A minha madrasta. Não faças isso.

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Olhares para mim assim. Ficas igualzinha a ela. É detestável.

Fazes-me um favor? Em troca do meu presente?

LILLY:

Depende do que for.

WILLIAM:

Vais parar de te queimar? Porque eu não acho que te faça muito bem. Acho
que era melhor parares. Vais, Lilly? Prometes?

(Pausa longa.)

LILLY:

Vou tentar.

WILLIAM:

Vais-te esforçar mesmo.

LILLY:

William, estás bem?


130
WILLIAM:

Estou só um bocadinho.

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Não me consigo lembrar da palavra.

LILLY:

Para quê?

WILLIAM:

Quando não dormiste o suficiente?

LILLY:

Cansado?

WILLIAM:

Sim. Estou um bocadinho cansado.

LILLY:

Não te conseguias lembrar da palavra “cansado.”

WILLIAM:

Sabes o que eu percebi?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Que não sou eu. A culpa não é minha. Não é um problema de genética, é um
problema de geografia. É Manchester. É Stockport.

LILLY:

Que é o quê?
131
WILLIAM:

Vais até a Baixa. Sim? Vais até ao Arndale. Sim? E os putos que lá estão têm
ar de quem era capaz de te abrir a barriga e enfiar as mãos lá dentro e
arrancar-te as tripas. Não?

LILLY:

Não têm nada.

WILLIAM:

Entras numa sala. Sim? Toda a gente sabe que entraste naquela sala. Está
toda a gente à tua espera. Aquelas pessoas todas estão à tua espera. Não
estão? Com as pernas e os braços delas e o cabelo puxado para a frente da
cara quando choram.

Algumas das coisas que tu me disseste não eram verdade.

LILLY:

Que coisas?

WILLIAM:

Tu sabes que coisas. Há muita coisa em ti que é mentira. A maneira como dás
o nó da gravata é mentira. Estás a mentir com a maneira como dás a nó da
gravata.

LILLY:

Isto é muito cansativo.

WILLIAM:

Iá.

LILLY:

Vou para casa.

WILLIAM:

Não vás.

132
LILLY:

Porque é que não havia de ir?

WILLIAM:

Tenho medo do que possa fazer se tu te fores embora.

(Ela olha para ele.)

LILLY:

Pois.

Todos temos medo, William.

Às vezes o mundo é um bocadinho desconcertante. Algumas pessoas fazem


coisas horríveis mas, e precisas de ouvir isto, William, a sério, a maior parte do
tempo, o mundo é porreiro. Precisas de meter isso na cabeça e parar de te
andares a deprimir.

WILLIAM:

Andar-me a deprimir? É isso que tu achas que eu estou a fazer?

LILLY:

A maior parte das pessoas são porreiras.

WILLIAM:

Não são.

LILLY:

São engraçadas. Conversam um bocadinho. Dizem piadas. São simpáticas.


São porreiras.

WILLIAM:

Tu devias mesmo estar numa escola melhor, não era?

LILLY:

Sabes, noventa por cento das pessoas nesta escola são boa gente. Noventa
por cento dos jovens neste país, William, e nunca ninguém diz isto, noventa por

133
cento dos jovens neste país fazem um bom trabalho na simples tarefa de estar
vivo. Vão sobreviver. E ser felizes. Vão crescer. Vão acabar por arranjar
empregos. Casar. Viver vidas que são perfeitamente boas e razoáveis e felizes.
Isso não é uma coisa má, William. Sabes? Porque é que julgas que és
diferente?
Porque é que julgas que és tão especial? Quando eu tinha dez anos…

WILLIAM:

Quando tu tinhas o quê?

LILLY:

Ouve. Estou a tentar contar uma coisa. Quando eu tinha dez anos costumava
ter dores de cabeça.

WILLIAM:

De que é que tu estás a falar?

LILLY:

Eram completamente brutais. Tinha a sensação de que a parte da frente da


minha cabeça estava a ser rachada em duas. Vinham-me lágrimas aos olhos.
Durante semanas não contei à minha mãe …

WILLIAM:

Porque é que me estás a contar isto?

LILLY:

Mas passadas duas semanas disse-lhe.

WILLIAM:

Acho que estás a ficar um bocadinho maluca.

LILLY:

Contei-lhe. Ela levou-me ao médico e o médico deu-me aspirina e disse-me


para beber mais água e apanhar mais ar puro e comer menos açúcar e eu fiz
isso e as dores de cabeça desapareceram.

134
WILLIAM:

Eu não estou a falar de dores de cabeça. Isto é mais do que uma dor de
cabeça.

LILLY:

Se calhar devias contar a alguém.

WILLIAM:

Estás-me a tentar me inspirar com a tua historiazinha da treta? Queres-me


inspirar? Tira a t-shirt. Isso vai-me inspirar. Deixa-me ver as tuas mamas. Isso
seria uma enorme inspiração. Havia de me animar a sério Lilly. Sinceramente.

LILLY:

Lamento, mas não queria sair contigo. Queria antes sair com o Nicholas.

Gosto mesmo dele.

Mas sempre pensei que serias meu amigo. E quero mesmo ser tua amiga
apesar de tudo. Porque acho que tu não estás muito bem e estou preocupada
contigo e quero que tu procures ajuda.

WILLIAM:

Ha!

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Posso-te perguntar uma coisa: Quando fazes sexo com ele, com o Nicholas,
dói?

Dói? Diz-me por favor.

LILLY:

Não.

WILLIAM:

135
Não dói?

136
LILLY:

Não.

WILLIAM:

Como é que é?

LILLY:

É muito bom.

WILLIAM:

Pronto. Ainda bem. Ainda bem para ti. Eu não gosto dele. Pessoalmente. Acho
que ele é uma fraude. Acho que ele é um mentiroso. Acho que ele é só
mentiras e merda. Mas é só a minha opinião.

LILLY:

Não é verdade.

WILLIAM:

Tenho todo o direito à minha opinião. Não te atrevas a dizer que não porque
tenho, caralho.

(Algum tempo.)

LILLY:

O Nicholas disse-me que tu estavas a mentir em relação aos teus pais.

Porque é que mentiste em relação aos teus pais?

WILLIAM:

Não menti, não estava a mentir.

LILLY:

Ele disse-me que os teus pais ainda estão vivos, mas que tu tinhas um irmão e
que foi o teu irmão que morreu quando era bebé.

WILLIAM:

137
LILLY:

Mentiras, mentiras de merda e estatísticas.

É verdade, do teu irmão?

WILLIAM:

Estás a ouvir?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Estou a ouvir outra vez. O martelar.

LILLY:

Não oiço nada.

WILLIAM:

Houve uma vez um rapaz que se matou aqui. Quando era uma escola de
rapazes. Subiu ao telhado que dá para o pátio. Saltou. Foi nos anos setenta.
Talvez seja ele.

Havia muitos ciganos em Cambridge?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Devíamos pô-los na ordem, nós os dois. Fazer uma manifestação.

LILLY:

Pôr quem na ordem?

WILLIAM:

Eu sei que seríamos capazes. Quando duas pessoas se amam tanto como nós
acho que são capazes de tudo.

138
LILLY:

Eu não te amo.

WILLIAM:

Devias.

LILLY:

Não amo, William.

(Pausa longa. Mais longa do que achamos que se aguenta.

WILLIAM apaga as luzes. Fica quieto de pé durante muito tempo.)

LILLY:

Podes voltar a acender as luzes por favor, William?

WILLIAM:

Desculpa. Disseste alguma coisa?

LILLY:

Estás a começar a…

WILLIAM:

Eu não te levo a mal. Já agora. Eu sou lixo. Sou uma perda de tempo. Não
mereço nem o espaço que ocupo. Não mereço sequer o papel que gasto. Não
tenho amigos. Não tenho imaginação. Não tenho ideias.

LILLY:

Pára com isso.

WILLIAM:

Odeio os meus sapatos. Odeio a minha casa. Odeio esta escola. Odeio o meu
cabelo. Cortas-me o cabelo?

LILLY:

O quê?

139
WILLIAM:

Fazes-me um corte de cabelo? Um que me fique melhor. Que não me faça


parecer tão mongo…

LILLY:

Não digas isso.

WILLIAM:

…como este corte de cabelo me faz parecer.

LILLY:

Odeio essa palavra.

WILLIAM:

Corta-me o cabelo.

LILLY:

Com o quê?

WILLIAM:

Quero lá saber. Com as mãos. Com a tua régua. Arranca-o. Quero que isto
pare.

Sabes, quando estou contigo?

LILLY:

Eu só te conheço há um mês.

WILLIAM:

Sinto que estou ligado à terra. Aqui.

(Ele toca-lhe de lado na cabeça com a palma da mão. Aparentemente


não acontece nem muda nada.)

Agora vê o que acontece se eu tirar a mão.

(Tira a mão.)

140
Vês?

(Aparentemente não acontece nem muda nada. Ele sorri durante um


bocado. Pára de sorrir de repente.)

Quem és tu?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Não sei quem tu és.

LILLY: - WILLIAM:

Posso-te dizer uma coisa?

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Queres um conselho? Para bom entendedor?

LILLY: - WILLIAM:

Amanhã.

LILLY:

O quê?

WILLIAM:

Não venhas à escola.

(Fim da cena.)

141
CENA 6

(“Touch Me I’m Sick”, dos Mudhoney.

São 8h57 da manhã. Terça-feira, 11 de novembro.

O palco fica vazio durante um bocado. Entra BENNETT. Depois NICHOLAS.)

BENNETT:

Já corrigiram os exames.

(NICHOLAS olha para ele durante um bocado.)

NICHOLAS:

O quê?

BENNETT:

Acabei de ver a Gilchrist. Disse que nos dizia as notas mais logo.

NICHOLAS:

Foda-se.

BENNETT:

Iá. Tinha uma expressão incrível na cara. Era uma combinação de delícia e
fúria. Tenho a certeza absoluta de que fiz merda em todos. Os meus pais vão-
se passar.

NICHOLAS:

Iá.

BENNETT:

Vão sacar dos mesmos discursos de sempre. Sobre as mensalidades. Tu sabes


o que nós temos de fazer para ter dinheiro para tu andares naquela escola? Tu
fazes a menor ideia de quanto é que aquilo custa por ano? Por acaso não faço.
E tu?

142
NICHOLAS:

Viste a Lilly?

BENNETT:

Não vi ninguém a manhã toda. Se calhar estão todos escondidos. Se calhar


sabem todos qualquer coisa que nós não sabemos. Não estás preocupado com
as notas?

NICHOLAS:

Agora é demasiado tarde para mudar o que quer que seja.

BENNETT:

Bom, isso revela uma grande maturidade, devo dizer.

(Acende um cigarro. Olha para NICHOLAS.)

BENNETT:

Como é que vão as coisas com ela? Com a Lilly?

NICHOLAS:

Vão bem, obrigado.

BENNETT:

Ela é muito fixe.

NICHOLAS:

Pois é. Sim.

BENNETT:

É surpreendentemente inteligente. Gosto dela porque é rija. Ela tem muita sorte.
Sabias que o pai da Tanya veio à escola?

NICHOLAS:

A Lilly disse que o tinha visto.

BENNETT:
143
Ontem à hora de almoço apareceu e falou com o Edwards. Ela deve-lhe ter
telefonado durante o dia. Puta da gorda. Ele obrigou-me a ficar aqui até às seis
e meia ontem. Cabrão. Devia estar a corrigir os nossos exames e eu ali sentado
a fazer a merda da cópia.

NICHOLAS:

Não lhe devias ter cuspido.

(BENNETT olha para NICHOLAS; um tempo.)

BENNETT:

Não. Não devia. Foi estúpido. Mas apeteceu-me imenso. Queria experimentar.
Queria saber qual era a sensação. Nunca te acontece isto?

NICHOLAS:

Não tenho a certeza.

BENNETT:

Alguma vez quiseste pegar fogo a coisas?

NICHOLAS:

Nada de grave. Talvez de vez em quando um caixote do lixo.

BENNETT:

Alguma vez tiveste vontade de rebentar com alguma coisa?

NICHOLAS:

Foda-se, claro. Quem é que não quis?

BENNETT:

Alguma vez tiveste vontade de beijar um rapaz?

NICHOLAS:

Não.

BENNETT:

144
Nunca?

NICHOLAS:

Não.

BENNETT:

Mentiroso.

NICHOLAS:

Não estou a mentir.

BENNETT:

Eu uma vez tive vontade de beijar o Thom Yorke.

NICHOLAS:

A sério?

BENNETT:

E o David Bowie.

(NICHOLAS olha para ele; um tempo. Sorri-lhe. Pausa.)

NICHOLAS:

Estava tão ressacado hoje de manhã que nem queria acreditar.

BENNETT:

Onde é que estiveste ontem à noite?

NICHOLAS:

Fui sair com o meu irmão. Veio a casa para as férias do Natal.

BENNETT:

Já? Estudantes do caralho. Como é que ele está?

NICHOLAS:

Está óptimo. Os nossos pais estão felizes por o ver.

145
BENNETT:

Como é que é Durham?

NICHOLAS:

Ele adora aquilo, acho eu.

BENNETT:

Ainda bem. Vocês vão a algum lado no Natal ou assim?

NICHOLAS:

Acho que não.

BENNETT:

Nós vamos a Reiquiavique, vê lá tu.

(NICHOLAS olha para ele. Sorri.)

NICHOLAS:

Não devia ter bebido. Estou a analgésicos por causa do tornozelo. Sinto-me
uma merda.

BENNETT:

O que é que te aconteceu ao tornozelo?

NICHOLAS:

Torci-o. A jogar rugby.

BENNETT:

Quando é que foi isso?

NICHOLAS:

A semana passada.

BENNETT:

Não me contaste.

146
(NICHOLAS olha para ele.)

Posso ver?

(NICHOLAS mostra-lhe o tornozelo.)

Está vermelho, Nicholas.

NICHOLAS:

Pois. Devia ter ido ao médico na semana passada.

(BENNETT toca-lhe no tornozelo. Estremece ao tocá-lo como se sentisse a dor


de NICHOLAS.)

Não faz mal. Já não me dói.

(Entra CISSY.)

CISSY:

Não digam à minha mãe. Não digam à minha mãe. Não digam à minha mãe.
Não digam à minha mãe.

NICHOLAS:

Não dizemos à tua mãe o quê?

CISSY:

Acabei de ver o Anderson. Tive Bom a Inglês.

BENNETT:

Cum caralho.

CISSY:

Eu sei.

NICHOLAS:

Um Bom não é mau.

CISSY:

Estás a falar a sério?

147
NICHOLAS:

Um Bom é bom acho eu.

CISSY:

Se ela descobre mata-me.

NICHOLAS:

Cissy, acho que estás a exagerar.

BENNETT:

Tu não conheces a mãe dela.

CISSY:

Como é que eu faço para ela não descobrir?

NICHOLAS:

Não lhe digas.

CISSY:

Ela vai receber o relatório.

BENNETT:

Esconde-o. Queima-o.

CISSY:

Foda-se, não sejas estúpido, Bennett. Ela sabe que vai haver um relatório.
Estamos no fim do período. Há sempre um relatório.

BENNETT:

Põe corrector por cima.

CISSY:

Oh, não estás a ajudar nada.

(Entra TANYA GLEASON.)

TANYA:
148
O que é que se passa contigo?

CISSY:

Recebi a nota de Inglês.

TANYA:

Já?

BENNETT:

Teve Bom.

TANYA:

Au! Já alguma vez tinhas tido Bom a alguma coisa?

NICHOLAS:

Ela está com medo que a mãe a mate.

TANYA:

Iá. E vai matar.

CISSY:

Se eu fizer merda… BENNETT:

Já fizeste, querida.

CISSY:

Não, mesmo a sério. Se eu fizer merda mesmo a sério. Se eu não conseguir as


notas que é preciso para aquele sítio no Verão, não é nos exames de
preparação, nos a sério, então vou… não sei o que é que vou fazer.

TANYA:

Não vais fazer merda. Estás a ser muito estúpida. Isso são só exames de
preparação.

CISSY:

149
Nunca vou sair de Stockport. Nunca me vou conseguir ir embora. Vou ficar aqui
presa para sempre. Há todo um mundo lá fora e eu nunca o vou poder ver, nem
uma vez. Todas as coisas que eu quero fazer, nunca as vou poder fazer.

TANYA:

Estás sempre a falar disso.

(CISSY olha para ela.)

A questão não é Stockport, Cissy. És tu. Tu vens daqui. Estás sempre a tentar
fingir que não. É ridículo.

(As duas raparigas olham uma para a outra.)

CISSY:

Não sei o que dizer. E não sei de que é que vocês se estão a rir.

BENNETT:

O que foi?

CISSY:

É suposto tu seres o meu namorado.

BENNETT:

Ah, vá lá!

CISSY:

É suposto tu defenderes-me.

BENNETT:

Teve piada. Ela teve piada.

CISSY:

Tu estás-te sempre a rir de mim.

BENNETT:

Então. E a culpa é minha?

150
CISSY:

O quê?

BENNETT:

Tu és ridícula. Para uma pessoa tão inteligente, és estúpida comá merda. Como
é que eu podia não me rir de ti? Não é? Não é, Nicky?

(Entra CHADWICK MEADE.)

Chadwick, a Cissy não é ridícula comá merda?

CHADWICK:

Não acho que seja. Sempre me pareceu bastante inteligente.

BENNETT:

Eu não estou a negar isso. Não estou a falar da inteligência dela, caralho.

(Entra WILLIAM CARLISLE.)

WILLIAM:

Diz-me lá. Porque é que todas as pessoas nesta escola julgam as outras pelo
nível de inteligência? Não pelo sentido de humor. Não pela aparência. Não pela
maneira como se vestem. Não pelo gosto musical. Mas pelo número de vintes
que tiveram.

(WILLIAM tira uma arma do bolso de dentro do blaser.)

WILLIAM:

Não faço ideia.

(Dispara a arma para as luzes da sala comum. Rebenta com as lâmpadas. A


sala escurece.)

Sempre funciona. Eu avisei-te, Bennett. Não digas que eu não te avisei porque
eu avisei-te, caralho.

(Aponta a arma a BENNETT.)

BENNETT:

151
O quê? Mas que merda? Não. Não. Meu Deus. Por favor. Não faças isso.

(BENNETT encolhe-se, afastando-se dele. Para onde quer que vá, WILLIAM
segue-o com a arma.)

NICHOLAS:

William.

(WILLIAM volta-se para ele. Aponta-lhe a arma, ao fazê-lo.)

WILLIAM:

Sim. O quê?

NICHOLAS:

Não faças isso.

WILLIAM:

Isso o quê?

(TANYA começou a chorar. CISSY aproxima-se da porta.)

Não faças isso. Cissy. Não faças isso, foda-se.

NICHOLAS:

William. Vão aparecer pessoas.

WILLIAM:

O quê?

NICHOLAS:

Alguém há-de ter ouvido o tiro. Vão entrar a qualquer momento.

WILLIAM:

Achas que sim? Não oiço ninguém a chegar. Ouvem alguém?

(Ficam à escuta.)

NICHOLAS:

152
Poisa a arma antes que alguém se magoe.

WILLIAM:

Não sejas estúpido, caralho. É uma sensação estranha. É muito mais leve do
que eu pensava. É muito mais fácil fazer pontaria. Eh Bennett. Eh Bennett.
Levanta-te. Bennett. Pára mas é de chorar e ouve-me, foda-se. Sabes quando
cuspiste para cima da Tanya, qual foi a sensação? O que é que sentiste? E o
que é que tu sentiste, Tanya?

TANYA:

William, pára.

WILLIAM:

Ouvi dizer que ficaste de castigo. Merda. Os teus pais descobriram? Bennett.
Os teus pais descobriram? Os teus pais descobriram do castigo, Bennett?

BENNETT:

Não.

WILLIAM:

Ah não? Como não? O que é que lhes disseste? O que é que lhes disseste,
Bennett?

BENNETT:

Disse-lhes que tive treino de futebol.

WILLIAM:

Ha! A sério? Como é que te lembraste disso? É brilhante. Genial, ah pois é.


posso-te dizer uma coisa, Bennett? Não existe mais animal nenhum no mundo
que policie o seu comportamento através de terceiros. Sabias?

BENNETT:

Sabia o quê?

WILLIAM:

153
Se um macaco roubar as nozes de outro macaco ele não arranja um terceiro
macaco para o pôr na ordem. Se um gato cagar na árvore de outro gato esse
gato não vai a dizer a um terceiro gato enorme para pôr o primeiro gato na
ordem. Ou vai? Não. Claro que não. Só os seres humanos é que fazem isso. Tu
cuspiste em cima da Tanya. A Tanya devia-te ter apunhalado ou qualquer
coisa. Mas não. Telefonou para casa e contou ao pai. É patético. Cá por mim,
isso quer dizer que tu és livre de fazeres o que quiseres com ela. Espancá-la.
Dar-lhe um tiro. Violála. Ela é a única pessoa que te devia poder impedir. Não
achas? Não achas, Bennett? Estão todos muito caladinhos hoje. Não achas,
Nicholas, não achas que o Bennett agora devia ter o direito de violar a Tanya?

NICHOLAS:

Não.

WILLIAM:

O quê?

NICHOLAS:

Disse que não. Não devia. Isso é horrível. É uma ideia de louco.

WILLIAM:

O que é que disseste?

(Olha para ele durante muito tempo.)

NICHOLAS.

Disse que era uma ideia de louco.

WILLIAM:

Não digas isso.

NICHOLAS:

Não podemos funcionar assim…

BENNETT:

154
Nicholas, não.

NICHOLAS:

Não podemos controlar uma comunidade… BENNETT:

Nicholas, está calado por amor de Deus.

WILLIAM:

Ah! Mas que querido. Ela está a proteger-se, olha. Não quero falar mais sobre
isto.

(Dá dois tiros a BENNETT. Ele morre. CISSY grita. Tenta parar de gritar.
Algum silêncio. Parece tudo parado durante um bocado.)

Não vos cheira a queimado?

Há qualquer coisa a arder. Não vos cheira?

NICHOLAS:

Não.

WILLIAM:

Eh. Nicholas.

NICHOLAS:

O quê?

WILLIAM:

Olha para isto.

(Dá um tiro a CISSY. Ela morre.)

NICHOLAS:

William!

(TANYA está a chorar. CHADWICK está a chorar.)

WILLIAM:

155
Disseste alguma coisa?

CHADWICK:

Eu?

WILLIAM:

Iá.

CHADWICK:

Não.

WILLIAM:

Pareceu-me que tinhas dito alguma coisa.

CHADWICK:

Não disse.

WILLIAM:

Pareceu-me que alguém tinha dito alguma coisa. Mesmo agora. Sobre…
disseste alguma coisa sobre um incêndio?

CHADWICK:

Não.

WILLIAM:

Disseste. Eu ouvi-te.

CHADWICK:

Não disse, William.

WILLIAM:

Devo ser só eu. Sou só eu? Fui só eu que o ouvi a falar do incêndio? Está-me
sempre a acontecer.

(WILLIAM aponta a arma a NICHOLAS.)

156
Sabes quando estás a pensar?

NICHOLAS:

A pensar? Sim. Eu sei quando estou a pensar…

WILLIAM:

Quando estás a pensar, sim, e de modo a tomar uma decisão, sim? Às vezes
tens de pesar cada um dos lados da questão e precisas de ter um debatezinho
dentro da cabeça sobre o que deves fazer, sim? E às vezes quando estás a
fazer isto cada um dos lados tem tipo uma voz dentro da tua cabeça. Sabes?

NICHOLAS:

Acho que sim, William.

WILLIAM:

Às vezes quando eu faço isso. Parece que as vozes vêm dali. Ou dali. Às
vezes. Não é muitas vezes. Parecia que vinha do Chadwick. Mas que
embaraçoso.
Lamento.

NICHOLAS:

Não lamentes.

WILLIAM:

Lamento. Vou lamentar. Porque lamento. Não se pode bem escolher estas
coisas, pois não?

(Ficam à escuta.)

Eu bem te disse.

(WILLIAM vira as costas a CHADWICK. Sem WILLIAM reparar, CHADWICK


aproveita a oportunidade para se virar e fugir a correr pela porta da sala.

WILLIAM dá conta demasiado tarde. Faz pontaria com a arma. Poisa-a outra
vez. Ri um bocadinho.)

Fugiu!

157
(Vira-se e dá um tiro a NICHOLAS. NICHOLAS morre. Olha em volta para ver o
que fez. Passa algum tempo. Olha para TANYA. Ela está a chorar
desalmadamente.)

WILLIAM:

Soubeste da Lilly?

TANYA:

O quê?

WILLIAM:

Está morta.

TANYA:

Morta?

WILLIAM:

Não é literalmente. Meteu-se só num sarilho.

TANYA:

Porquê?

WILLIAM:

Fez uma coisa.

TANYA:

O quê?

WILLIAM:

Uma coisa mesmo má.

TANYA:

O que é que ela fez?

WILLIAM:

158
O que é que se passa?

TANYA:

Nada.

WILLIAM:

Estás a chorar.

TANYA:

Sim.

WILLIAM:

És tão bonita. Não chores. Vem cá.

(WILLIAM sorri. Prepara-se para a abraçar. Ela está apavorada. Ele abraça-a.
Solta-a. Senta-se numa mesa. Longa pausa.)

Querido Deus. Por favor… querido Deus… estás aí? Querido Deus por favor
toma conta do bebé Alistair e da mãe e do pai e…

(Rebenta em risadas incontroláveis.)

É-me sempre difícil manter-me sério.

(Prepara-se para se matar. Põe a arma na boca. Passado um bocadinho volta


a tirá-la.)

Peço desculpa. Preciso mesmo de mijar. Achas que mije no chão? Ou mijo-me
nas calças, Tanya? Se eu me mijar nas calças, vais dizer a alguém?

TANYA:

Não.

WILLIAM:

Achas que não vai haver problema?

(Ela assente. Ele mija nas calças, pelas calças abaixo, para o chão da sala
comum.)

Meu Deus. Que alívio.

159
(Abre-se-lhe um enorme sorriso.)

(Fim da cena.)

CENA 7

(‘’Desperate Man Blues’’, de Daniel Johnston.

São 11h59 da manhã, 24 de dezembro.

WILLIAM CARLISLE e o Dr.RICHARD HARVEY estão num gabinete médico


em Suttons Manor, um hospital de segurança média.

As paredes da sala são brancas. Está muito iluminada.

Dr. HARVEY veste um fato castanho, de uma elegância imaculada. WILLIAM


está de calças de fato-de-treino e sweat-shirt.

WILLIAM está a preencher um questionário.

Tem de fazer cruzinhas para assinalar as respostas.

O questionário tem vinte e cinco páginas.

Passa algum tempo antes de o Dr. HARVEY falar.)

HARVEY:

Queres descansar?

WILLIAM:

Não.

HARVEY:

Podes descansar.

WILLIAM:

160
Não quero.

(Responde a mais uma pergunta.)

Gosto deste tipo de testes.

Têm uma certa piada.

Foi você que o fez?

Foi você que inventou estas perguntas?

HARVEY: Com

um colega

WILLIAM:

Quantas é que há ao todo?

HARVEY:

Mil e oitocentas.

(WILLIAM olha para ele. Sorri.)

WILLIAM:

Óptimo.

É como fazer um teste de compreensão. Um bocadinho. Fazer um teste de


compreensão ao cérebro.

‘’Sentes-te confiante em lojas de roupa?’’

‘’Sentes-te confiante em lojas de música?’’

‘’Sentes-te confiante em cafés?’’

‘’Sentes-te confiante em bibliotecas?’’

‘’Sentes-te confiante em supermercados?’’

‘’Sentes-te confiante em jogos de futebol?’’

‘’Sentes-te confiante em salas de aula?’’

161
‘’Sentes-te confiante em lojas de mobília?’’

‘’Sentes-te confiante em lojas de adultos autorizadas?’’ Isto são ‘’sex shops’’?

HARVEY:

Exactamente.

WILLIAM:

‘’Sentes-te confiante em mercearias?’’

‘’Sentes-te confiante em quiosques de jornais?’’

‘’Sentes-te confiante em recreios?’’

‘’Sentes-te confiante em agências imobiliárias?’’

(Continua a preencher o formulário.

O Dr. HARVEY observa-o. Escreve um pouco enquanto WILLIAM fala.

Passado um bocado WILLIAM pousa a caneta.)

WILLIAM:

Não posso fumar, pois não?

HARVEY:

Lamento mas não.

WILLIAM:

Podia fumar só um cigarrinho.

(HARVEY sorri.)

Está-se a rir mas eu estou a falar a sério.

Agora estou a ficar um bocadinho cansado. Não me devia ter posto essa ideia
na cabeça.

É do Droperidol. Do Holoperidol.

(WILLIAM responde a mais uma pergunta. Levanta outra vez os olhos do


papel.)
162
Já é Natal?

HARVEY:

Amanhã.

WILLIAM:

É véspera de Natal?

HARVEY:

Exactamente.

(WILLIAM pensa.)

WILLIAM:

Sabe quem eu sou?

HARVEY:

Desculpa?

WILLIAM:

Eu nunca sei se vos contam quem eu sou antes de nos encontrarmos ou se


tentam manter a coisa neutra.

HARVEY:

Não sei se percebo o que queres dizer.

WILLIAM:

Eles contaram-lhe o que eu fiz? Quer dizer que contaram, não foi? Como é que
se chama?

HARVEY:

Harvey. Dr. Harvey.

163
WILLIAM:
Qual é o seu primeiro nome? Não é Harvey também, pois não? Harvey
Harvey?
Dr. Harvey Harvey?

HARVEY:

Não. O meu primeiro nome é Richard.

WILLIAM:

Feliz Natal, Richard.

HARVEY:

Feliz Natal.

(Sorriem um para o outro.)

WILLIAM:

Posso-lhe perguntar uma coisa: quando soube que me vinha conhecer, ficou
um bocadinho entusiasmado?

HARVEY:

Entusiasmado?

WILLIAM:

Conhecer celebridades é sempre entusiasmante, não? Deve ter ficado a


pensar como é que eu seria, não?

HARVEY:

Já ando neste trabalho há tempo suficiente para saber que nunca se pode
realmente prever como é que um paciente vai ser, ou como é que se vai
comportar. Independentemente do que se saiba do historial dessa pessoa.

WILLIAM:

Ou do que se leu sobre ela nos jornais.

HARVEY:

164
WILLIAM:
Sinceramente não leio jornais.

Mas sabe quem eu sou, não sabe? Sabe o que eu fiz? Sabe o que eu fiz?
Richard, sabe o que eu fiz?

HARVEY:

Sim. Sei.

WILLIAM:

Aposto que há mil e uma coisas que me quer perguntar, não é?

Na verdade há mil e oitocentas coisas, hã?

Mas aposto que quer saber mais do que se eu me sinto ou não confiante em
agências imobiliárias, não é?

Não o assusta um bocadinho, estar aqui comigo?

HARVEY:

Não.

WILLIAM:

Tem um botão de alarme?

HARVEY:

Tenho.

WILLIAM:

Está por baixo da sua secretaria? Tem filhos? Tem, Richard?

HARVEY:

Tenho uma filha.

WILLIAM:

Que idade tem ela?

165
WILLIAM:
HARVEY:

Tem dezassete.

A minha idade. Mete-lhe nojo o que eu fiz? Mete-lhe nojo o que eu fiz?

HARVEY:

Não.

WILLIAM:

Está a mentir. Percebe-se pela maneira como olha para a esquerda. Quando
as pessoas olham para a direita estão a pensar. Quando olham para a
esquerda estão a mentir. Posso beber um copo de água, por favor?

HARVEY:

Certamente.

(Põe-se em pé, preparando-se para sair.)

WILLIAM:

Eu espero aqui.

(O Dr. HARVEY aprecia a piada.

Sai.

Algum tempo.

Entra NICHOLAS CHATMAN.

Senta-se em frente de WILLIAM. WILLIAM quase ri. Olha-o fixamente.)

Nicholas? Nicky?

(Vai-lhe tocar na cara.)

Estás bem? Estás morto?

Dói-te?

Eu magoei-te?

166
WILLIAM:
Eu-

(NICHOLAS CHATMAN põe-se de pé, de repente.

167
Sai como se se tivesse esquecido de alguma coisa e tivesse de a ir buscar a
correr.

WILLIAM CARLISLE fica sozinho.

Tenta recompor-se.

Começa a chorar um bocadinho. Detêm-se e esfrega os olhos furiosamente


para os secar.

O Dr. HARVEY regressa com um copo de água, três cigarros e uma caixa com
três fósforos.)

HARVEY:

Peço desculpa, o garrafão estava vazio. Tive de ir ao segundo andar.

WILLIAM:

Obrigado.

(WILLIAM bebe.)

HARVEY:

Trouxe-te isto. Toma.

(Dá os cigarros a WILLIAM. WILLIAM faz um grande sorriso.)

WILLIAM:

Cum caralho. Obrigado.

(Pega num cigarro e abre a caixa de fósforos.

Repara que só há três. Dá uma única gargalhada. Pega num. Acende o


cigarro com ele. Faz um grande sorriso.)

Isto sabe mesmo bem.

(Fuma.)

Estás a ver, a pergunta principal que as pessoas me têm feito é: porque é que
eu fiz aquilo?

168
Porque é que as pessoas me estão sempre a perguntar isso?

HARVEY:

Acho que as pessoas estão preocupadas contigo.

WILLIAM:

Porque é que fizeste aquilo, William? Para que é que fizeste isto? Porque é que
o fizeste? Foi porquê, que fizeste aquilo?

(Responde a mais algumas perguntas. À medida que responde às perguntas,


vai falando. O modo como faz as cruzes torna-se mais frenético. No fim da fala
está quase a rasgar o papel com a caneta.

O Dr. HARVEY toma algumas notas.)

Não sei. Não quero saber. É uma pergunta sem sentido. É uma pergunta
estúpida. É uma pergunta chata. Próxima pergunta, por favor. Próxima
pergunta, por favor. Foi por causa da minha mãe? Não. Foi por causa do meu
irmão? Não. Foi por causa da minha escola? Não. Foi por causa de
professores? Não. Foi por causa da Lilly? Não. Foi da música que eu andava a
ouvir? Não. Foi dos filmes que eu vi? Não. Foi dos livros que eu li? Não. Foi
das coisas que eu vi na Internet? Não.

(Escrevinha no papel. Poisa a caneta.)

Fiz aquilo porque podia.

(Fuma.)

Ainda havia uma bala na arma. Eu ia-me matar. Cheguei a pôr a arma na boca.
Sabia? A Tanya estava lá, ela pode-lhe contar. Ela está bem, a Tanya?

HARVEY:

Está a recuperar. Ela e o Chadwick Meade esperam os dois voltar à escola no


início do próximo período.

(WILLIAM pensa sobre isto.)

169
WILLIAM:

Eu precisava de mijar. Então foi tipo mijei ali e pronto. Na sala da aula. No
chão. Foi uma sensação incrível. Pensei que se morresse nunca sentiria aquilo,
aquele alívio.

HARVEY:

Isso é provocado pela libertação de endorfinas na corrente sanguínea. Existem


umas hormonas chamadas endorfinas que são libertadas quando urinamos.
Permitem-nos ter essa sensação de euforia.

(WILLIAM olha para ele; um tempo.)

WILLIAM:

Quando foi buscar a água estava a observar-me? Não precisa de responder, já


agora.

(O Dr.HARVEY sorri.)

Vai voltar cá noutro dia?

HARVEY:

Ainda não sabemos. Tenho de terminar o meu relatório até ao fim da próxima
semana.

(WILLIAM assente.)

WILLIAM:

O que é que vai dizer sobre mim no seu relatório?

HARVEY:

Ainda não sei bem.

WILLIAM:

Isso é mentira? Aposto que é mentira. Não o deixam dizer-me quando já


souber?

HARVEY:

170
Tenho a certeza de que vais acabar por poder vê-lo.

WILLIAM:

E depois de si provavelmente vão mandar outra pessoa

HARVEY:

Isso ainda não foi decidido.

WILLIAM:

Mas provavelmente vão. Estão sempre a mandar pessoas novas.

(WILLIAM responde a mais uma pergunta e depois levanta outra vez os olhos
do papel.)

Não tem de ser assim, sabe?

HARVEY:

O quê?

WILLIAM:

Nem toda a gente sente o mesmo que eu.

Há algumas pessoas. Que têm graça. Eu gosto delas. Toleram as outras


pessoas. Há pessoas que toleram as outras pessoas. Gozam com elas
próprias. Esforçam-se imenso por melhorar as coisas.

Vêem-se alguns assim. A gente vê-os no sétimo ano e parecem porreiros. São
espertos. Percebe?

(Responde a mais uma pergunta.)

Quando eu tinha oito anos roubei dinheiro da carteira da minha mãe. Eram
para aí duas libras. Nem sequer as gastei. Só queria saber qual era a
sensação. Vejo pornografia quando não está em casa. Montes e montes.
Arranja-se na internet de graça com toda a facilidade. O que eu gosto mais é
quando são lésbicas.

Às vezes eu não fazia os trabalhos de casa. Às vezes copiava de, há sites


onde se pode ir. Eu copiava.

171
Eu fumo. Já fumei uma data de coisas na verdade. Já bebi álcool. Às vezes
inalo corretor.

(Responde a mais algumas perguntas. Depois pára.)

Eu devia arranjar um emprego. Fazer qualquer coisa decente. Fazer qualquer


coisa que valha a pena acho eu. Não acha?

HARVEY:

A seu tempo.

WILLIAM:

Não. A seu tempo não. Agora.

Oiça. Eu não sou um … não sou. Não sou um idiota. Sei que se passa
qualquer coisa. Sei que há qualquer coisa que não está bem.

Eu quero ser arquitecto. Construir os edifícios mais altos que conseguir. Ter
filhos. Ser normal, só isso. Ir ao hospital um dia e pôr a minha cabeça em
ordem.
Comprar uma casinha. Não gastar muito dinheiro.

(Responde a mais algumas perguntas. Depois pára.

Olha para cima. Olha para o Dr. HARVEY.

A luz diminui de repente.)

Fim da peça.

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