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A heroína Latifa

Eu me chamo Latifa, mamãe escolheu esse nome por causa de uma novela em que a heroína
se chamava Latifa Saher. Como mamãe adorava essa personagem!

Mamãe estava grávida quando Latifa quase perdeu o marido para uma segunda esposa,
quando a bela mulher de cabelos negros conseguiu dominar os impulsos do marido e
reconquistá-lo, mamãe decidiu que eu seria a heroína Latifa da nossa miserável cidadezinha. O
mundo de mamãe era assim, bem simples – conquistar um bom homem para proteger e
sustentar a família. Afinal o que uma mulher analfabeta, nascida no campo, acostumada a
fome deseja além de filhos gordinhos e sorridentes¿

Na beira do fogo, ela me colocava no colo, acariciava meus cabelos sujos e cantava
provocando o ciúme dos meus outros quatro irmãos mais velhos. Um dia papai foi para longe,
um corte de madeira surgiu em outra região, os gêmeos tinham nascido, éramos 7 agora,
muitas brigas, choros, caxumbas, cataporas e pratos... Papai partiu.

Cinco anos depois, mamãe nunca sorria, cabelos quase sempre bagunçados, 12 quilos mais
magra, gêmeos doentes, e nós, mais velhos, trabalhávamos com ela na lavoura. Apesar do
trabalho, adorava o campo, o cheiro das flores ao amanhecer, as pessoas ao redor, tudo ali era
agradável, tinha um sabor de manga docinha, era quieto e aconchegante, a minha própria toca
do tatu.

Que saudade..

Naquela tarde tia Izabel chegou com a cara de abacate estragado de sempre, mamãe chorava
de cócoras.. Corri até ela que me apertou e desabou no chão me abraçando forte. Não sei por
que, tinha que ir com a tia. Pra quê¿ Por quê¿

Na cidade tinha uma boa oportunidade para uma mocinha de doze anos como eu, uma velha
senhora doente precisava de uma empregada, rápida e calada.

“É você!” – disse a abacate azedo...

Nunca mais vi mamãe.

Um tapa na cara, uma gargantilha bem apertada no meu pescoço com um longo cordão, lápis
preto como carvão nos olhos e laque nos cabelos marcaram meu primeiro dia com a senhora
Savana, que era velha e gorda mas ainda servia a alguns clientes. A primeira vez que eu sangrei
tinha sido uma semana antes. Foi o sinal para senhora Savana, estava na hora do leilão, 500
contos ela conseguiu apurar – a danada.

“Imagina, duas semanas atrás a menina de cachos só rendeu 165!” .


Senhora Savana falava que eram meus grandes olhos arredondados em uma pele alva, parecia
mesmo era a nova Capitu! Que maravilha! Hahaha. Todos riam e festejavam na festa que
seguiu o leilão. Não sabia quem era essa tal Capitu, mas devia ser mulher bem bonita.

Assim se deu meu rito de passagem, sem conselhos, sem abraços carinhosos, sem mamãe...
sem nada, só o medo..

- ¨Vadia!¨

Sim, um dos meus nomes além de Latifa e Capitu, bem, mas ‘esse’ homem, esse mesmo que
acabou de gritar comigo, ‘esse’ não me chama mais assim!

Longos 8 anos depois, Sra. Savana não manda mais em mim, sou minha própria empresária,
sim senhor! Alugo meu quartinho, recebo até a hora que quero com todo o dinheiro pra mim e
vou vivendo, até tenho um namorado! As invejosas, é claro, dizem que ele está comigo por
causa do dinheiro que faço, mas não acredito nelas, ele me ama. Assim que aprender a ler e
escrever vou poder arrumar um emprego em um escritório, de secretária ou recepcionista,
vamos ter nossos filhos, nossa casa, seremos as pessoas mais felizes do mundo, ah seremos.

E sobre ‘esse’ sujeito imundo que acabou de me surrar, jamais, nunca meus filhos ouvirão uma
palavra! Nem ele, tampouco, vai pronunciar uma..

Todos os dias, eu saio do quartinho e caminho toda a viela até chegar na rua principal, paro e
espero o cavalheiro me tirar para a dança, uns são gentis, por muito pouco não me apaixono,
porque mulher é boba, outros são rudes e apressados, mas alguns são estúpidos e nada de
bom se pode esperar deles. Às vezes vou até a praça na avenida, mas é muito perigosa, um
ponto muito disputado, não me arrisco muito tempo e volto para a minha rua. Depois de
apanhar feio na avenida nunca mais fique muito tempo por lá, é a vida. No inverno passado,
peguei hepatite, ainda estou fraca então não saio da minha rua por qualquer 50 contos a mais.

8 anos, 8 anos nessa vida e suportei o que hoje não pude mais.. Depois que ‘esse’ verme me
xingou, me humilhou, me bateu, ele teve o que mereceu, o que procurou.. Sou mulher, mas
não sou mula de carga! Sou analfabeta, mas não sou bicho!

A faca enfiada nas suas entranhas vai ensinar isso!

Mamãe, perdão...

***

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