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Em meados dos anos 1960, Natália Correia usa uma metáfora muito forte para
descrever a influência política sobre as vivências íntimas, no Portugal da época. No
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Blog do Projeto: https://umapequenahistoriadosexo.wordpress.com
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Etnografia de uma história sobre direitos sexuais e de género,
contada e debatida no ensino secundário em Portugal
Isabel Freire, socióloga1
Jornadas de Sexologia, Universidade Lusófona, 18 de Abril de 2018
prefácio da Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica,2 escreve que a «moral
sexual» havia sido rebaixada pelo Estado Novo «à situação de esgoto». Não sabemos
ainda muito acerca da forma como transitaram para a democracia, os afetos e as
sexualidades, os afetos e as sexualidades vividos. Desconhecemos que mudanças
concretas se operaram na vida das pessoas, com a chegada de certos direitos, sexuais
e reprodutivos, e uma certa igualdade de género, logo após a Revolução dos Cravos.
Sabemos no entanto, que partir da Revolução dos Cravos, o corpo e a sexualidade
saem à rua, tornam-se visíveis. São pensados, discutidos e reivindicados, por certas
pessoas, em certos contextos.
Um mês após o 25 de Abril, o Expresso (1974, 73) publica uma sondagem realizada
com 800 pessoas entre os 18 e os 65 anos. Pergunta-se-lhes: Gostaria de ter tido
educação sexual? Deseja que os seus filhos venham a recebê-la na escola ou gostaria
que a tivessem recebido? 88% dos inquiridos respondem que sim.
Nos anos 1980, a educação sexual entrou nos programas curriculares das escolas, do
ensino básico ao ensino secundário. A sua abordagem tornou-se obrigatória há 17
anos. Apesar disso, é consecutivamente agarrada, e deixada escapar, numa lógica de
encadeamento frágil, de frágil suporte e controlo. Passa das mãos da tutela, do
Ministério da Educação, para as mãos das Direções das escolas, e destas para as mãos
dos coordenadores dos Programas de Educação para a Saúde, onde é suposto que
ganhe forma. Daí passa para as mãos das Direções de turma, que têm por obrigação
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A Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Dos Cancioneiros Medievais à
Actualidade) é uma obra selecionada e anotada por Natália Correia, com ilustrações de
Cruzeiro Seixas, e edição de Fernando Ribeiro de Mello (Afrodite), que foi publicada em
1966.
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planificá-la, atribui-la, situá-la no contexto da sala de aula, de onde, professores e
professoras, a deixam tantas vezes fugir. Infelizmente, são ainda muitos os casos em
que ninguém a agarra. Para muitos pais a escola trata do assunto. Em muitas escolas,
espera-se que alguém na sala do lado, esteja a fazer qualquer coisa. E em geral,
assumimos que hoje em dia os miúdos e as miúdas já sabem o que precisam. E... se
não souberem, pesquisam. Como se a informação, e não a reflexão e o debate, fossem
o essencial deste processo. Acredito que a educação para a igualdade e diversidade
sexual e de género, em contexto escolar, é ainda, no Portugal de 2018, um assunto
pouco efetivo, continuando para muitos estudantes uma espécie de uma miragem.
Antes ainda de entrar numa pequena história do sexo, queria falar-vos da minha
experiência como mãe. A minha filha adolescente estuda numa escola pública de
Lisboa, situada pelos rankings nos melhores lugares da tabela. Há três anos comecei a
perguntar-me, e a perguntar à minha filha, o que fazia a escola em matérias de
educação sexual? Fui percebendo que nada tinha sido feito. Nas reuniões de pais, em
reuniões com a direção de turma, em emails para a direção da escola, comecei a
perguntar o que estava para vir. Mas ninguém parecia saber, ninguém se sentia
responsável, ninguém estava a cuidar do assunto. O 7º ano terminou em branco. E
depois do 7º veio o 8º. Infelizmente, sem novidades. E eu continuei a perguntar. A
escola não tinha nenhum plano para a educação sexual. Num encontro com o Diretor
de Turma, o assunto foi desvalorizado. Não havia gravidez adolescente naquela
escola, e portanto, o tema não se impunha. Hoje, a minha filha está no 9º ano. A
situação sofreu uma ligeira evolução. A pessoa responsável pelo Programa de
Educação para a Saúde (PES) parece investida em trazer a educação sexual para a
escola. Há poucos meses, num encontro com a sua coordenadora, falei de
organizações com projetos na área do género e da sexualidade. Quando a sigla LGBT
surgiu na minha listagem, fui informada sobre a natureza complexa da temática. Uma
suposta prudência aconselhava esta coordenação a não ir já por aí. A educação sexual
nesta escola de referência está prevista começar para o ano que vem, e com muita
cautela, deixando certos temas a marinar.
Duas semanas após a Revolução dos Cravos, publica-se no Diário de Lisboa (1974,
18456) o primeiro Manifesto Homossexual Português. O documento – intitulado
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Liberdade para as Minorias Sexuais – foi escrito pelo Movimento de Acção
Homossexual Revolucionária, e tinha António Serzedelo entre os seus autores.
Reivindicava-se no manifesto a implementação da educação sexual em todas as
escolas, mas de uma educação sexual não discriminatória das práticas homossexuais.
Passados 40 anos, certas questões da cidadania da sexualidade e do género, continuam
embrulhadas em preconceito, discriminação, e medo, no contexto educativo
português.
Uma pequena história do sexo é uma talk pensada para largas audiências (até 250
estudantes), desenvolvida em auditórios de escolas secundárias, com vista a mostrar
que os discursos sobre a sexualidade e o género estão em todo o lado, muitas vezes
dissimulados e frequentemente sem palavras.
Uma pequena história do sexo dura 2 horas, tem um momento expositivo, suportado
por imagens e vídeos, explicando leis e mentalidades. Procuro mostrar como os
jovens dos anos 1950, 60 e 70 passaram a ver o mundo, o género, o corpo e o prazer,
e como se conformaram ou se confrontaram com a sociedade em que viviam. Quando
chego à Revolução dos Cravos, explico as conquistas em termos de direitos sexuais,
reprodutivos e de género, que nos foram trazendo, aos poucos, até ao ponto onde
estamos hoje. E pergunto, mas afinal em que ponto é que estamos hoje?
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A primeira evidência deste percurso é a seguinte: mesmo num auditório cheio, mesmo
sobre um assunto que muitos pensariam inibitório, os jovens e as jovens desejam falar
e falam. Eles e elas têm dúvidas. Colocam questões. Entram em conflito ideológico
uns com os outros.
Decidi de falar-vos de seis aspetos, que fui anotando neste percurso, e que me
parecem importantes pontos de fuga. Designei-os desta forma:
Há cerca de um ano fui fazer Uma pequena história do sexo a uma vila, na região
centro. A Diretora, uma pessoa que gostei muito de conhecer, veio buscar-me à
estação de comboio. No caminho para a escola falámos da importância da educação
sexual. Confessou-me que sentia muitas dificuldades na sua implementação. A
docência tinha boa vontade, mas insegurança e falta de formação. Contou-me que
embora no início do ano se definisse um plano para cada turma, esse plano era
maioritariamente um plano para inglês ver. Ficava registado em ata, mas era sabido
que não saía desse registo.
No final de outra sessão, numa escola da região da Grande Lisboa, um professor veio
ter comigo e deu-me os parabéns. Estendeu-me a mão e disse-me: Queria dar-lhe os
meus parabéns pela sua enorme coragem! Achei curiosa a escolha da palavra. Os
parabéns eram pela coragem. Para aquele professor é preciso coragem para falar de
sexualidade. Nos antípodas da coragem está o receio, o medo, o desconforto. Para
certos professores e professoras, é ainda extremamente complexo proferir conceitos
que dizem respeito às questões da igualdade e diversidade sexual e de género. É o
medo da palavra dita e da palavra escutada, transmitida, mal-interpretada. Receiam
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que encarregados e encarregadas de educação venham pedir contas à instituição por
instigar à adoção de visões sexuais e de género, que consideram impróprias,
contranaturais.
2. Paredes vazias
Sempre que chego a uma escola para fazer mais Uma pequena história do sexo, presto
muita atenção às paredes. Na sala de professores, onde sempre tenho uns minutos de
espera, passo os olhos por todos os papéis afixados. A educação sexual é um assunto
ausente. Vi campanhas de prevenção do afogamento, de sensibilização para o
consumo de álcool, vi discursos sobre tantas matérias, mas... os temas da sexualidade
e do género não andam por ali. Nas paredes das escolas por onde passei não vi posters
a falar da fisiologia humana, da gravidez adolescente, das infeções sexualmente
transmissíveis, da prevenção do VIH-Sida, do consentimento, do abuso sexual, da
violência no namoro. Nunca vi cartazes a falar da igualdade e diversidade de género.
Ou da homofobia, da bifobia, da transfobia.
Pensei sempre que seria muito importante produzir materiais que ponham os assuntos
nas paredes das escolas. Posters que visibilizem questões, problemas, dilemas. Posters
que produzam informação e possam gerar o debate. Julgo que professores e
professoras também precisam ser sensibilizados para a importância destas questões,
problemas e dilemas, que muitos ainda ignoram, secundarizam e desmazelam.
3. Apanhados na rede
Em quase todas as escolas por onde passei, escutei relatos de situações graves,
causadas pela partilha indevida de fotos ou vídeos, privados e íntimos, nas redes
sociais. Ouvi histórias de vítimas que se recusaram a voltar à escola, por vergonha,
faltando longos períodos às aulas. Ouvi falar das complicações de ordem psiquiátrica
decorrentes, do rodopio de pais e advogados no espaço da escola. E percebi que há
uma enorme falta de preparação para lidar com estas situações. Em nenhuma escola vi
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até hoje informação sobre o tema, nos corredores, na sala de professores, nos espaços
de convívio.
Em 1961, uma carta publicada num jornal de Coimbra, o Via Latina,3 deixou a
sociedade portuguesa escandalizada. Artur Marinha de Campos, jovem universitário,
escreve uma missiva à jovem portuguesa, dizendo que rapazes e raparigas estavam
separados por um muro, e que esse muro era o muro da profunda desigualdade de
género nas possibilidades de vivência da identidade, do corpo, dos afetos e
sexualidades. O autor da carta lamenta a falta de liberdade, de autodeterminação e de
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Artur Marinha de Campos é o autor da Carta a uma jovem portuguesa, publicada no Via
Latina (1961, 130).
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rebeldia das raparigas (VL, 1961, 130). Nesta carta, Marinha de Campos incita a
jovem portuguesa a saltar o muro que a separa dos rapazes do seu tempo. Na
perspetiva do estudante, eram ainda poucas as jovens portuguesas capazes de fazê-lo.
Numa pequena história do sexo falo do duplo padrão sexual, tão marcado na
sociedade portuguesa do Estado Novo. Mostro duas capas de revistas de finais dos
anos 1950.
Uma capa da Crónica Feminina (1957), recordista de audiências, com uma jovem
dando colo a um conjunto de figuras do pai natal. E uma capa da Crónica Masculina
(1956), publicação do mesmo grupo, com um jovem também dando colo a um
conjunto de figuras femininas reais, vestidas de pai natal. Perante estas capas,
pergunto à audiência se sentem que hoje em dia, é visto da mesma forma o rapaz que
teve três namoradas num ano, e a rapariga que teve três namorados em igual período.
Peço que respondam com o braço no ar. É curioso que sempre se instala a confusão na
sala. Elas fazem comentários em voz alta. Eles respondem. E eu preciso sempre repor
a ordem na audiência, e recapitular a pergunta. Vocês acham que hoje em dia, um
rapaz que tenha três namoradas num ano é visto da mesma forma – no vosso contexto
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social, da escola, entre colegas – como uma rapariga que tenha tido três namorados
num ano? E aquelas plateias são mares de braços caídos. Há uns meses, na escola
secundária de Loulé, o resultado foi ligeiramente diferente. O braço de um jovem
levanta-se. O auditório estava a rebentar pelas costuras, com 250 estudantes. Aquele
braço que se levanta ao fundo da sala, era o braço do Enzo, um aluno que veio da
Ucrânia. Depois desta pergunta, faço outra: E pessoalmente? Vocês sentem que é a
mesma coisa um rapaz ter 3 namoradas num ano, ou uma rapariga ter 3 namorados
num ano? Em geral, um terço da audiência levanta o braço. Com sorte metade.
Raramente uma massa generalizada de braços. Em geral, muitas raparigas não
levantam o braço. Escolhi mostrar-vos uma frase que já escutei em duas sessões de
uma pequena história do sexo, e que desconhecia complemente:
Uma chave que abra todas as portas é uma chave mestra. Mas uma porta que se abre
com todas as chaves, não presta.4
Em muitas sessões, peço à audiência que escreva uma questão, uma confissão, uma
crítica, o que quiserem, num papelinho em branco, anónimo, que entrego e recolho no
final da sessão. Cada um escreve sobre o que lhe faz sentido. Falam de situações que
viveram. Falam de problemas que consideram relevantes. Revelam visões do género e
da sexualidade.
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Depoimento anónimo proferido por estudante na sessão de Uma pequena história do sexo,
na Escola Secundária de Quarteira (a 9 de Janeiro de 2018) e na Escola Secundária D. Pedro
V, em Lisboa (a 19 Janeiro de 2018).
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Por que é que os jovens menores de 16 anos continuam a ser tão julgados por já terem
uma vida sexual?5
Voltemos ao passado. Em 1975, uma jovem portuguesa de 15 anos envia para uma
revista feminina, a Modas & Bordados (suplemento do jornal O Século) uma carta
especial (M&B, 1975, 3300). Chama-se Gisela e o seu gesto fica famoso. Conta na
sua carta, que fez amor até ao fim, pela primeira vez, na noite do 25 de abril de 1974.
Aquela carta é uma carta de coragem, que traz o pessoal e privado para uma esfera
que é pública e política. Ao longo de um ano e meio, chovem na redação da revista,
cartas encantadas e cartas escandalizadas com a audácia da adolescente. Estas
mulheres, leitoras, questionam-se: seria aceitável que uma rapariga se iniciasse
sexualmente com aquela idade, e que o apregoasse assim, sem vergonha, aos 15 anos
de idade? O que pensar de uma adolescente que se inicia sexualmente antes do
casamento? Poderiam as mulheres dizer assim à boca cheia que também faziam sexo?
Seria a revolução dos cravos, uma porta para a revolução sexual? Que importância
tinham afinal as questões do género e da sexualidade para a construção democrática?
Por que é que os jovens menores de 16 anos são tão julgados por já terem uma vida
sexual?
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Depoimento anónimo recolhido na sessão de Uma pequena história do sexo, na Escola
Secundária D. Pedro V, em Lisboa (a 2 de dezembro de 2016).
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nas práticas sexuais» (Saavedra et al., 2010, 145).6 Apesar disso, estas investigadoras
encontraram também outro discurso, o discurso que enfatiza uma aproximação na
construção da sexualidade feminina e masculina.
Na obra Fazendo Género no Recreio, 7 Maria do Mar Pereira fala-nos dos discursos de
naturalização da masculinidade e da feminilidade, que encontrou na turma do 8º ano,
que acompanhou numa escola em Lisboa.
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levantar aquele braço. Coloco àqueles braços a possibilidade de terem tido de se
confrontar com a desconsideração, a desvalorização, a humilhação, a reprovação, a
zombaria, o preconceito, a discriminação e a exclusão, na família, na escola, entre
amigos. Em todas as sessões pergunto se sentem que há ainda discriminação social,
no contexto escolar. Em todas as sessões uma esmagadora maioria de braços se
levantam. O tema LGBTQI surge aliás frequentemente nos comentários anónimos.
Vejamos alguns.
É triste que em pleno século XXI ainda existam escolas que não aceitam a
homossexualidade.
Ser homossexual não é uma doença. Ser homofóbico é que é. Este tema devia ser
mais incorporado na situação da escola.
Os meus pais são um pouco contra a homossexualidade, mas não percebo porquê.
Tenho amigos que não são capazes de admitir a sua orientação sexual devido à
discriminação.
Será que as crianças/adolescentes que têm pais do mesmo sexo sofrem bulling na
escola?
Sinto-me oprimida por ter desejos para com ambos os sexos.
É importante que haja reconhecimento dos vários géneros e sexualidades, porque
nem tudo é preto ou branco.
Porque poderá uma mulher usar calças, mas não um homem usar saia ou vestido?
Ainda é preciso tirar o tabu da questão transgénero e do género Queer.8
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agressivas na abordagem deste pequeno grupo de 3 rapazes e 1 rapariga. O que vi
naqueles estudantes era a semente, quem sabe já a flor e o fruto da transfobia. O
contributo da psicologia e das ciências da educação para pensar estas questões parece-
me essencial. Professores e professoras, educadores e educadoras, no terreno,
precisam pistas para a abordar esta questão da igualdade e diversidade de género, que
aparenta ser tão resistente e complexa. Numa escola secundária, em Loulé, aconteceu
também o oposto. No final da sessão tinha uma dúzia de jovens, rapazes e raparigas,
que tinham mais perguntas, que queriam conversar, que não se queriam ir embora.
Entre eles estava o Daniel, transsexual de 18 anos, aluno do 12º ano, a meses de
enfrentar a cirurgia. Apresentou-se. Contou que naquela escola sempre o trataram
pelo nome que escolheu para si, professores e estudantes. Sempre foi respeitado. Um
exemplo de que como a diversidade de género é também entendida, protegida e
promovida em muitos contextos escolares.
6. Não era violação, era só sexo. Há cerca de dois meses fui a Tondela, a convite da
Câmara Municipal. Pediram-me que fizesse duas sessões num dia. Propus que a
segunda fosse diferente. Apenas de debate. E propus que o debate fosse sobre
consentimento. Uma pequena história do sexo, noutros termos. Uma história de uma
primeira relação sexual não consentida, dentro do namoro. Uma história pessoal
sexual.
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A história que contei é a de Thordis Elva e Tom Stranger, uma história polémica, de
uma violação no namoro, contada num palco TED9. Tom é australiano e Thordis
islandesa. Viveram uma história de amor, aos 18 e aos 16 anos, em Reiquejavique.
Apaixonam-se e namoram, de mãos dadas, encantados um com o outro, até à noite do
baile, na escola. A jovem bebe demais, e é levada a casa pelo namorado. É deitada na
sua cama, no seu quarto, despida e violada. Dei informações essenciais sobre o caso:
como se conheceram, que relação tinham, o que esperavam da noite do baile em que
tudo aconteceu e como foram os acontecimentos naquela noite. Parei a história no
momento em que Tom tem relações sexuais com Thordis, nunca usando o termo
violação. E depois projetei pari passo, estas cinco perguntas:
A palavra violação apareceu de imediato. Para muitos não havia dúvida nenhuma.
Mas a certa altura um jovem pede o microfone e diz que aquilo que aconteceu era – e
passo a citar – uma violação, ou então, simplesmente só sexo. Uma violação ou só
sexo. Para este jovem, Thordis e Tom não tinham feito amor. Isso era claro. Tinham
tido só sexo. Sexo desconectado dos sentimentos. Sexo conectado com um impulso,
um desejo, uma sensação de excitação que não se quer contrariar, independentemente
da vontade (ou ausência dela) no outro, neste caso, na outra. Sexo que se apropria de
um corpo sem identidade. Para este jovem, sexo sem consentimento, abusivo,
agressivo, podia definir-se como só sexo, sexo em que apenas um goza.
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Esta conferência, intitulada Our story of rape and reconciliation, foi proferida na
TEDWomen, em 2016, por Thordis Elva e Tom Stranger.
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Este jovem não entende a fronteira entre sexo sem afetividade e sexo sem
consentimento.
Como Isabel Ventura nos resume na obra recentemente publicada, Medusa no Palácio
da Justiça10, os relatórios anuais de segurança interna dizem-nos que mais do que uma
mulher é violada em Portugal por dia. E que num inquérito aplicado a 300 estudantes
universitários, de Lisboa e Leiria, em 2001, 81% dos inquiridos admitia ter forçado,
pelo menos uma vez, o contacto sexual com uma mulher durante um encontro.11 Das
mulheres ouvidas, 46% admitia já ter passado, pelo menos uma vez, por contactos
sexuais indesejados no decorrer de um encontro.
Nas mensagem que fui recebendo nas sessões de Uma pequena história do sexo, em
que sempre falo da crescente intolerância social ao assédio, ao abuso, à violência
sexual e de género, recebo mensagens que nos ajudam a perceber coações, e situações
difíceis, agressivas, abusivas em termos das vivências da intimidade dos e das jovens.
Continua a ser-nos ensinado nas escolas que não devemos usar certas roupas. O
progresso só se vai verdadeiramente sentir quando pararem de ensinar às mulheres
como não serem violadas e passarem a ensinar os homens a não violar.
Como é que se define o que é forçar uma relação sexual? É aceitável uma
rapariga dizer que passou por isto, usando o termo ‘abuso’?
Sofri a violência psicológica no namoro e, desde então, vejo os relacionamentos
de uma maneira diferente.
Existe alguma associação que me possa ajudar em caso de obrigação ou pressão
dos meus pais/família a casar ou ter um estilo diferente de vida do que eu pretendo?
Se existem casos de violência doméstica no presente (e no passado), qual o porquê
de não haver consequências para as pessoas que os fazem?12
Para terminar esta longa leitura, gostava apenas de dizer que é imenso o caminho que
fizemos, em termos legais, regulamentares, curriculares, para a abordagem da
igualdade e diversidade, sexual e de género, em contextos educativos. Mas também
10
Ventura, Isabel. Medusa no Palácio da Justiça. Lisboa: Tinta da China.
11
Moura, Susana. 2001. «Agressão sexual na população universitária», in Sub Júdice /
Léxico: Psicologia e Justiça, nº 22-23, jul-dez, Coimbra: DocJuris – Centro de Documentação
e Informação Jurídica, CRL, 159-160.
12 Depoimentos anónimos de estudantes recolhidos em sessões de Uma pequena história do
sexo, realizadas em diversas escolas secundárias, entre 2016 e 2018.
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gostava de dizer que em termos efetivos, me parece que há muita estrada por
construir. É preciso repensar o que está a ser feito e como. É preciso agarrar esta
reflexão e discussão de uma vez por todas.
Além disso, acredito que este trabalho não deve terminar no secundário. As
universidades devem pensar em que medida as questões da saúde sexual e
reprodutiva, e as questões da igualdade e diversidade sexual e de género, merecem
espaço curricular, de investigação, de informação e suporte nos campus universitários.
Termino, pedindo à audiência que levante o braço quem considere que teve no ensino
obrigatório, iniciativas de educação sexual continuadas, estruturadas e relevantes?
Muito obrigada pelo vosso interesse pela partilha da minha experiência.
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