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A armadilha do multiculturalismo

A diversidade de visões de mundo em uma sociedade não é um fato histórico novo. Por várias vezes
a intensificação de contatos entre civilizações resultou na necessidade de enfrentar esta questão da
diversidade, tanto através da produção de uma síntese como pelo confronto que se poderia chamar
“ideológico” - ainda que talvez o termo possa ser impróprio – e, mais usualmente, pela supressão
violenta da diversidade.
perspectiva de uma convivência de visões de mundo diversas e mesmo contrárias, por outro lado, é
algo relativamente novo, ao menos na escala da nossa civilização global. Não deixa de ser curioso
que em grande parte o arcabouço conceitual desta visão multiculturalista, assim como a visão de um
Estado que não deve tomar partido em questões de consciência e cultura, seja um legado da visão
não universalista e denominacional da Reforma Protestante. Assim não deixa de conter certa ironia
que seja neste campo evangélico que se encontrem a oposição mais ferrenha a uma efetivação e
estruturação mais apurada do multiculturalismo.
O paradoxo é a incompatibilidade estrutural de todas as visões com pretensões universalistas – por
mais diversas que sejam, sejam católicas, islâmicas ou marxistas, entre outras – com o
multiculturalismo, mas tem sido vários destes segmentos os grandes produtores da justificativa e
defesa do ideal, essencialmente protestante e antiuniversalista, do multiculturalismo.
O paradoxo não pode ser resolvido sem que se distinguam elementos constituintes do
multiculturalismo, caso contrário ele se transforma em uma armadilha com o duplo risco de por um
lado negar efetivamente todo diálogo produtivo sob a desculpa de promovê-lo e de outro destruir as
próprias ontologias destas visões universalistas. Este último risco émuito relevante e significativo
para mim, como muçulmano, porque coloca em risco o elemento mais essencial da fé islâmica que é
a Unicidade de Deus.
O fatiamento do multiculturalismo para tentar resolver o paradoxo poderia ser feito de milhares de
formas, opta-se por separar três elementos aqui: a multiplicidade da verdade enquanto essência que
o embasa, o diálogo com a visão diferente como método e a atitude política de tolerância fraterna
com aquele que tem visão diferente. Toda a armadilha está contida no primeiro elemento, o qual é o
único ponto realmente inovador da visão multiculturalista.
O segundo ponto – o uso do diálogo para descobrir a verdade a partir de visões diferentes – tem
sido desde sempre a linguagem da filosofia, da ciência e de todas as visões de mundo que se
consideraram confiantes o suficiente da própria própria verdade de suas crenças para confrontar de
peito aberto as visões divergentes. Não raro desta visão se geraram sínteses nas quais o
conhecimento externo era reinterpretado e reconstruído segundo a visão que se considerava
verdadeira, gerando um modelo mais complexo de visão que harmonizava os elementos externos
com os princípios básicos.
Indo além, é só a visão de que há uma única verdade a ser perseguida e descoberta que é capaz de
gerar o verdadeiro diálogo. Nestes tempos em que as opiniões superam o conhecimento é
impossível qualquer real diálogo porque se cada um tem a sua verdade é impossível estabelecer um
campo comum e regras gerais no qual o diálogo verdadeiro possa ser travado. Se tudo é opinião e o
conhecimento nada vale porque “cada um tem a sua opinião” então não há possibilidade de
consenso, nem de síntese e nem mesmo de diálogo porque há tantas verdades quanto pessoas.
Sem dúvida é necessário reconhecer a limitação do conhecimento, a ausência da informação
perfeita, a própria dinâmica de avanço gradativo do conhecimento, as especializações necessárias a
uma compreensão mais profunda da realidade e a própria desigualdade coma qual o conhecimento
está distribuído em uma sociedade. Todos estes elementos limitam e delimitam a busca pela verdade
única e criam muitas verdades intermediárias cuja validade enquanto estação intermediária não só é
evidente quanto necessária. Mas nenhuma destas limitações invalida a questão que lá no fim do
caminho há uma verdade esperando ser encontrada.

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