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Pertença
Percebeu que era Deus que o substituíria nesse combate entre
o mundo e o que transcende o mundo.Acontece aos
escolhidos. João Seabra foi escolhido de entre muitos dos
chamados.
1
Tudo era intenso. E muitas vezes desconcertantemente
inesperado. Uma simples conversa tanto desaguava numa
discussão apaixonada como em amável sintonia; num rio
de surpresa ou num poço de tumulto; ora se espraiava num mar
de humor, ora afogava o próprio verbo em polémica. Numa só
tirada podia acontecer lhe protagonizar tudo isto.
2
Na missa onde fui juntar-me a João Seabra – ele lá em
cima, eu cá em baixo, num banco do Colégio S. Tomás – o
que num sopro veio ter comigo foi o que ouvira a D.
Manuel Clemente, cinco dias antes, no lançamento do seu último
livro* na Universidade Católica, sobre a invulgar capacidade de
regeneração do catolicismo português ao longo do tempo, face à
adversidade. Tema que Manuel Clemente muito investigou e
aprofundou e que consta justamente deste livro (uma recolha dos
seus mais definidores textos, admiravelmente selecionados por
Manuel Braga da Cruz que assinou a também magnífica
introdução). Na conversa que se seguiu com o Patriarca de Lisboa
e António Araújo e que tive o privilégio de conduzir ali mesmo, foi
ainda dessa formidável capacidade de presença e resistência
manifestada pela igreja portuguesa ao longo dos séculos que se
falou. A memória por vezes precisa de ser adubada.
3
O que era afinal aquela gigantesca comunidade que
acorrera a uma missa num sábado à noite para se
despedir de alguém que tanto tocara a sua vida, senão um
sinal? O sinal dessa sempre renovada capacidade de resistência a
sejam quais forem as novas fórmulas de luta contra o catolicismo.
(Num dos seus escritos, o Papa Bento XVI, afirmava a existência de
“um cânone cultural contra a Igreja”. Sabemos que é verdade.
Vemo-lo diariamente em acção e perdição).
Talvez por isso e num dos mais dignos silêncios em que jamais me
vi envolvida, só entre cortado pela inspiradíssima celebração do
padre Duarte da Cunha, julguei aperceber-me que ainda mais que
o luto ou a perda ou a pena, o que ali unia indissoluvelmente uma
comunidade tão vária e diversa – como raras vezes se pode ter
observado, reunida num mesmo lugar – era um sentimento de
pertença. Forte, voluntário, intacto. O resoluto querer “estar ali”
de tantas centenas (milhares?) de pessoas que se dividiram pelas
quatro celebrações, era uma afirmação mas também um anúncio
de disponibilidade, sob a forma da recusa da rendição.
4
Passaram dois mil anos. Diz-se hoje a Igreja a minguar e a
desfalecer, coberta de injúrias. Enterraram-na mil vezes,
vexam-na quanto podem, só se lhe sublinha os pecados
(terríveis, como os dos homens). Vinte séculos depois, a Igreja
persiste. Está. Viva, inteira, planetária, essa que o soldado João
Seabra serviu com paixão acesa e fidelidade de aço, sem trégua
nem desfalecimento. Uma biografia é isto mais que o resto que no
seu caso é aliás desmedido (como ele).
5
Por falar em Igreja e por recordar a sua perenidade e
permanência no mundo: e pensar que a manuelina Sé do
Funchal – que por estes dias ganhou o Prémio Vilalva
atribuído pela Gulbenkian ao melhor restauro de património
privado pela recuperação dos seus deslumbrantíssimos tectos, em
estilo mudejar, únicos no país – já foi a maior diocese católica do
mundo?
* O livro a que acima fiz referência – uma viagem guiada por Braga da
Cruz pelo pensamento pastoral e historiográfico do teólogo e
historiador Manuel Clemente – chama-se “O Catolicismo, Portugal e a
Europa – Uma Relação Criativa” e é uma bem vinda edição da
Universidade Católica Editora e da Fundação Amélia de Mello. Muitos
poucas pessoas – e é só um exemplo – abordam com um olhar tão
próprio a questão da identidade nacional, de Portugal, dos portugueses.
Como um fio que o saber, a intuição, a lucidez do autor o desafiasse a
desenrolar, sem recurso a terceiros. Páginas absolutamente originais e
de superior qualidade intelectual. Devia ser dado nas escolas.