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2 Interações celulares

Neste capítulo vamos abordar temas voltados para as interações das células com o
meio em que elas residem. As unidades celulares reconhecerão padrões moleculares
presentes na superfície de outras células ou em moléculas presentes no meio extrace-
lular, tanto dissolvidas no líquido extracelular como depositadas na forma de um com-
ponente fibroso conhecido como matriz extracelular. Para entendermos melhor como
tais interações podem resultar em maior força de interação, estudaremos também a
influência do citoesqueleto nesse processo. Disfunções na produção ou na interação
desses componentes podem resultar em desestabilização, com efeitos variáveis em
nossos sistemas corporais.

Ao analisarmos a estrutura corporal de um organismo multicelular, podemos perceber


que existe um padrão organizacional, tanto do ponto de vista macroscópico quanto
microscópico. Como verificamos no capítulo anterior, notamos que as unidades ce-
lulares são formadas pela interação de diversas biomoléculas, resultando em grande
variedade de tipos celulares existentes em um único organismo. Durante o desenvol-
vimento embrionário, as células realizarão uma série de interações com as células vizi-
nhas ou com componentes liberados no meio extracelular e o somatório dessas inte-
rações é responsável pela criação dos padrões de desenvolvimento ao longo da vida
embrionária/fetal dos organismos.

Ao atingirmos um estágio de diferenciação celular, quando as células apresentam ca-


racterísticas diferentes das unidades que lhes deram origem, podemos realizar um
estudo morfológico de regiões do nosso corpo, verificando que, por mais que seja-
mos geneticamente diferentes dentro de uma mesma espécie, a organização celular

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é extremamente semelhante. Essa organização de células e moléculas ao seu redor é
conhecida como tecido. Cada tecido terá características próprias em relação a parâme-
tros como rigidez, quantidade de células e componentes de matriz extracelular.

O processo de diferenciação celular ocorre de forma muito intensa ao longo


do desenvolvimento embrionário com a participação de células-tronco. No
entanto, após o nascimento, determinadas populações dessas células são
mantidas praticamente em todo o nosso organismo para a realização de re-
novação e reparo teciduais.

Diferentes tipos teciduais vão realizar uma íntima associação para que possamos criar
uma estrutura anatômica dinâmica, com pelo menos uma função relacionada. Essa es-
trutura é conhecida como órgão, que, em conjunto, formarão todos os nossos siste-
mas corporais.

O tecido epitelial é bastante abundante no nosso organismo, recobrindo e revestin-


do diversos órgãos, como a pele e os órgãos do sistema digestório e respiratório,
além de formar uma grande variedade de estruturas glandulares. Ele é um excelente
modelo para o estudo de interações celulares, porque possui praticamente todos
os tipos de componentes que iremos abordar neste capítulo. Esse fato reforça as
características e funções importantes desse tecido. Por ser um tecido de barreira,
precisamos manter grande força de interação entre as unidades celulares e das célu-
las com os tecidos adjacentes.

Analisando o componente interno de células eucarióticas, notamos um complexo sis-


tema multiproteico conhecido como citoesqueleto. Como a própria terminologia su-
gere, esses componentes foram definidos por muito tempo como uma estrutura de
sustentação celular. Essa característica é fundamental para que possamos criar uma
grande variedade de formatos celulares, posicionamento de organelas celulares, mi-
gração celular ou servir como base de sustentação para junções presentes nas mem-
branas celulares. Cada componente de citoesqueleto terá uma composição proteica
definida, podendo, em alguns casos, possuir apenas um tipo de proteínas ou um grupo
maior de representantes.

Os microtúbulos são formados por proteínas conhecidas como tubulinas, que formam
pequenos dímeros, os quais vão realizar um processo de agregação, formando estru-
turas como se fossem pequenos canos. Essa estrutura pode apresentar uma grande
dinâmica de adição de novos dímeros para aumentar sua sustentação, ou estes podem
ser gradualmente retirados para o encurtamento dos microtúbulos. Esse componente

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apresenta tal dinâmica durante a separação do material genético em processos de
divisão celular conhecidos como mitose e meiose, além de participar da formação de
projeções de membranas, conhecidas como cílios e flagelos.

Dentre diversas moléculas com atividade antimitótica, a colchicina foi iso-


lada a partir de plantas e apresentou afinidade com as proteínas tubulinas,
interferindo na dinâmica de formação de microtúbulos. Devido a essa carac-
terística, essa substância é utilizada para conter a proliferação de células in-
flamatórias e células tumorais.

Os microfilamentos de actina são os componentes mais delgados do citoesqueleto,


onde subunidades globulares dessa proteína se associam formando um duplo filamen-
to. Assim como os microtúbulos, podemos aumentar ou diminuir o comprimento des-
ses filamentos pela simples adição ou retirada desse componente. Alguns compostos
extraídos de fungos podem alterar a estabilidade desses filamentos, alterando suas
funções. A citocalasina D é um inibidor reversível da polimerização desses filamentos,
ou seja, ao entrar em contato com a célula, ocorrerá a desestabilização desse com-
ponente de citoesqueleto e, no momento em que esse composto é retirado, a célula
voltará a construí-lo.

O comprometimento das funções do citoesqueleto de actina pode levar a diferen-


tes níveis de impacto, dependendo da concentração, tempo de exposição e fase de
desenvolvimento do organismo. Os chamados movimentos morfogenéticos são alte-
rações teciduais que ocorrem ao longo do desenvolvimento embrionário, permitindo
a formação apropriada de diversas estruturas corporais. Ao longo da formação dos
diferentes tipos de glândulas, surge um evento que realiza dobramentos das camadas
que darão origem ao tecido epitelial a partir de modificações na extensão dos filamen-
tos de actina. Com o encurtamento desse citoesqueleto, algumas unidades celulares
assumirão um formato cônico, permitindo o desenvolvimento glandular. Ao adicionar
os inibidores de polimerização durante essa etapa, notamos alterações na formação
dessas estruturas.

Os filamentos intermediários são os componentes do citoesqueleto mais diversos pre-


sentes nas unidades celulares e os únicos que possuem representantes nucleares. As
células produzem essas proteínas como unidades independentes que realizam agre-
gação para a formação dos filamentos com alta estabilidade. No caso do tecido epi-
telial, temos como característica a produção citoplasmática de queratina. No tecido
muscular, apresentamos a formação dos filamentos de desmina e, em algumas células
do tecido nervoso, temos a produção dos neurofilamentos. Dessa forma, podemos

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caracterizar a origem de uma estrutura celular de acordo com o tipo de proteína pro-
duzida pela célula e analisar os impactos teciduais no caso de disfunções na produção
desses componentes.

A progeria ou Síndrome de Huntchinson-Gilford é uma doença causada


por uma mutação nas proteínas que formam a lâmina nuclear, que é o com-
ponente de citoesqueleto de revestimento nuclear. Os pacientes que pos-
suem essa alteração apresentam disfunções celulares que levam a um enve-
lhecimento bastante acelerado e, consequentemente, a uma diminuição da
expectativa de vida.

Além de executar a função descrita anteriormente, é importante refletir sobre um pa-


pel importante do citoesqueleto no estabelecimento de estruturas teciduais. Assim,
surgem questões relevantes:

Como as células conseguem se manter unidas? Quanto tempo devemos


manter essa interação? Como podemos interferir no estabelecimento
dessas interações?

Dessa forma, precisamos compreender que cada tipo celular apresentará uma varieda-
de de componentes proteicos que responderá aos questionamentos anteriores.

As junções celulares são formadas por um conjunto de proteínas presentes na mem-


brana plasmática, podendo interagir com outras proteínas na superfície de outra cé-
lula ou de componentes de matriz extracelular. As junções que realizam conexão com
o citoesqueleto apresentam maior força de interação, sendo mais difíceis de serem
desfeitas. Essa característica faz todo sentido quando pensamos nas propriedades de
sustentação que definimos anteriormente para alguns componentes de citoesqueleto
e sua desestabilização levaria também a uma diminuição na força de interação dessas
junções, podendo causar lesões crônicas teciduais.

Ao analisarmos a deficiência na produção de um filamento intermediário conhecido


como queratina, provocamos lesões crônicas em diversos pontos do tecido epitelial
no nosso organismo, levando à formação de bolhas. Essa condição é conhecida como
epidemólise bolhosa. Ao analisar o papel da queratina nas junções celulares notamos
que ela pode fazer parte dos chamados desmossomos e hemidesmossomos.

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Os desmossomos são organizações membranares de proteínas da família das cade-
rinas. Quando analisamos a interação da membrana plasmática de duas células epite-
liais, ponto de formação dos desmossomos, notamos uma concentração dessas proteí-
nas voltadas para o meio externo. Existe reconhecimento entre elas, permitindo uma
conexão celular com alto grau de estabilidade. Já os hemidesmossomos são junções
que permitem a conexão das células aos componentes fibrosos da matriz extracelular.
Ao contrário dos desmossomos, eles possuem como fator membranar as proteínas da
família das integrinas. Dessa forma, podemos concluir que a ausência de uma querati-
na funcional pode tanto comprometer a união entre células como fragilizar o contato
célula-matriz.

A biotecnologia voltada para a recuperação de pacientes com queimadu-


ras visa à produção de camadas de tecidos epiteliais em laboratório, para
posterior aplicação. Para isso, podemos fazer a coleta de um fragmento do
paciente e aplicar uma técnica para desfazer momentaneamente as junções
celulares. Em cultivo laboratorial, essas células irão multiplicar-se e recompor
as junções que foram desfeitas.

Os componentes do citoesqueleto, que são formados pelos filamentos de actina,


atuam também em junções com grande capacidade de conexão entre unidades celu-
lares. Dentro desse cenário temos as chamadas junções aderentes e junções oclusivas.
Assim como os desmossomos, essas junções fazem parte do complexo juncional, que
atua aumentando a adesão e a vedação entre unidades celulares.

Se imaginarmos que a todo momento entramos em contato com


microorganismos, um sistema de vedação é crucial para que possamos
manter a integridade e a funcionalidade tecidual.

Ao analisarmos a superfície epitelial intestinal, notamos a presença de uma simples


camada de células colunares formando uma barreira seletiva para a absorção de nu-
trientes. Como sabemos que existe uma grande população de microrganismos nessa
superfície formando a microbiota intestinal, a pergunta que fica é: como esses orga-
nismos não penetram com facilidade nas camadas mais profundas do órgão? Próximo
à superfície livre celular, encontramos na região apical um tipo de junção capaz de
promover grande proximidade entre as membranas celulares. Esse tipo de interação
é conhecido como junção oclusiva, em que proteínas conhecidas como claudinas e

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ocludinas realizarão uma barreira de contenção, evitando a passagem desde pequenas
substâncias dissolvidas no fluido extracelular até grandes partículas provenientes do
processo de digestão. Assim, evitamos também a livre passagem de micro-organismos.

Observemos também o papel das junções oclusivas ao longo do desenvolvimento em-


brionário. Em seres humanos, quando o embrião alcança o estágio de oito células, ain-
da no início da primeira semana de desenvolvimento as células embrionárias iniciam o
processo de produção de proteínas para o estabelecimento dessa junção. Caso ocorra
algum tipo de interrupção nesse processo, as células embrionárias não conseguirão
realizar a compactação necessária para a progressão do desenvolvimento do indivíduo.

Como vimos até o momento, a força de interação entre unidades celulares é essencial
para o estabelecimento de junções desde as primeiras etapas de sua formação no nos-
so organismo. Ao refletir sobre interações mais transitórias, deparamo-nos com um
tipo de junção capaz de permitir a troca de pequenas substâncias entre células. Esse
tipo de junção é conhecido como junção comunicante e são formadas por uma família
de proteínas chamadas de conexinas, dispostas na membrana em seis unidades for-
mando um canal transmembranar. A interação desses canais permitirá a troca de íons,
como sódio (Na+), potássio (K+) e cálcio (Ca++), além de pequenas moléculas, como
água, glicose e aminoácidos. Esse intercâmbio pode ser bidirecional, apenas respeitan-
do os princípios de transportes.

As junções celulares são importantes para o funcionamento ideal do nosso


coração. Suas células musculares são unidas por fortes junções, como os des-
mossomos, e junções aderentes que mantêm a integridade tecidual a cada
contração. As junções comunicantes estabelecidas entre essas células per-
mitem rápida distribuição de cálcio entre as fibras musculares. O aumento
do cálcio é uma condição para que ocorra o processo de contração muscular.

Para finalizar este capítulo é importante relatar as vantagens obtidas pelas células que
são capazes de realizar projeções membranares. O aumento da superfície de contato
de células que são especializadas no processo de absorção surge como uma estraté-
gia biológica para que possamos otimizar o aproveitamento dos nutrientes digeridos.
Quando realizamos microscopia de alta resolução, verificamos que a superfície das
células epiteliais intestinais apresenta prolongamentos conhecidos como microvilosi-
dades. A formação dessa especialização de membrana tem forte ligação com os com-
ponentes do citoesqueleto de actina.

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Outra especialização de membrana também formada com a participação de actina são
os estereocílios, prolongamentos maiores do que as microvilosidades, que igualmente
possuem papel muito importante em processos absortivos. Na superfície de células
epiteliais do canal de armazenamento de espermatozoides, conhecido como epidídi-
mo, esse tipo de especialização é responsável pela nutrição desses gametas e retirada
de substâncias potencialmente tóxicas.

Outro grupo de projeções membranares restrito a alguns tipos celulares possui a ca-
pacidade de realizar movimentação, ao contrário das microvilosidades e estereocílios,
que são projeções imóveis. Nesse sentido, podemos explicar alguns eventos biológi-
cos que aprendemos ao longo da vida. Você já deve ter se perguntado como os esper-
matozoides conseguem realizar seu movimento ou como o embrião consegue migrar
da tuba uterina até o local de fixação no corpo uterino. A resposta para essas questões
está na formação dos chamados cílios e flagelos.

Ao observar a superfície da tuba uterina ou da traqueia, verificamos que existe uma


organização especial das proteínas tubulinas formando um eixo com estruturas se-
melhantes aos microtúbulos. Esse eixo será responsável por manter a estabilidade da
projeção — à medida em que a célula fornecer energia para esse sistema, a movimen-
tação será realizada. Portanto, qualquer estrutura que esteja em contato seria auto-
maticamente deslocada.

De forma semelhante os espermatozoides apresentam grande projeção, que forma-


rão suas caudas. Essa estrutura conhecida como flagelo compartilha um eixo estrutu-
ral semelhante aos cílios, porém com uma extensão relativamente maior. As organelas
produtoras de energia ficariam concentradas próximas à base flagelar, fornecendo o
combustível necessário para a movimentação celular.

A discinesia ciliar primária é uma condição que pode levar a um quadro de


disfunção respiratória, pois a superfície epitelial produz, em algumas regiões,
grande quantidade de muco, que seria desprendido por ação mecânica do
movimento ciliar.

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RE SUMO

Neste capítulo aprendemos quais são os requisitos necessários para que possamos en-
tender os aspectos básicos de como as células interagem com componentes do meio
ambiente. Listamos os componentes do citoesqueleto e fizemos correlação com os
diferentes tipos de junções celulares e projeções de membrana. Essa reflexão é im-
portante, pois, de posse das informações, em um cenário ideal podemos refletir sobre
determinadas situações em que encontramos disfunções na produção desses compo-
nentes.

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