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R. Paiva, SJ
Às vezes não percebemos os tesouros e bens que estão muito próximos a nós.
Precisamos uma longa volta para avaliá-los em sua simples grandeza. São os que
moram fora do Brasil que valorizam, inesperadamente, o feijão com arroz, a
goiabada com queijo, o bolo de fubá com café acima do caviar com champanhe.
Um jesuíta russo, Ivan Kologrigov, pode nos ajudar, desde sua perspectiva de
cristão do Oriente, a revalorizar a visão profundamente personalista e otimista do
pecado dos números de 24 a 44 dos "Exercícios Espirituais". Pe. Kologrigov foi um
oficial de família nobre que lutou durante a 1ª Grande Guerra nos exércitos do Czar.
Teve de se exilar quando, em 1917, os comunistas tomaram o poder. Refugiado na
Bélgica, converteu-se ao catolicismo e entrou na Companhia de Jesus, onde chegou
a ser professor da Universidade Gregoriana. Devemos a ele uma obra que veio a
ser um clássico da literatura espiritual russa: "Santi Russi"1 .
"A imitação dos autores bizantinos, Nil indica cinco fases da marcha da paixão".
A doutrina de Inácio
Inácio está nos apresentando dois exercícios espirituais que ele julga de extrema
necessidade para a pessoa que peregrina em busca da vitória sobre si mesmo e da
ordenação de sua vida, "sem determinar-se por afeição alguma desordenada" (21).
Do no. 24 ao 31, ele ensina o exercitante a atacar seu vício, defeito ou "pecado
particular" mais insistente com a arma do "exame particular". No nº 32, começa a
tratar do exercício do exame geral de consciência, não tanto no contexto de um
discernimento habitual, como adiante, no clima novo da Quarta Semana e da
Contemplação para adquirir Amor", mas "para se purificar e melhor se confessar".
Um tanto inesperadamente, ele como que interrompe seu discurso sobre o exercício
do exame geral e se põe a nos falar dos tipos de pensamentos humanos:
"Pressuponho que há em mim três pensamentos". Claro: decido-me a estudar e
aprender a fazer contas. Ocupo-me com as quatro operações. Estes pensamentos
nascem de minha decisão. Do meu livre arbítrio: "o (pensamento) meu próprio, que
provém simplesmente da minha vontade e querer".
O otimismo inaciano
A experiência mostra que muitas boas pessoas pensam que isto é sinal de falta de
bondade e de santidade: "Se me vêm tão insistente e inoportunamente estes
desejos e pensamentos é que sou pecador mesmo". Daí a ceder ao desânimo
interior e cair em tentação o passo é mínimo, embora, neste caso, teríamos uma
"captura" contra o querer profundo da pessoa. Ela parece mais vítima de um erro
que a prejudicou no seu combate interior e a deixou, aparentemente, derrotada.
Aparentemente, pois, de fato, ela não teve o seu querer e liberdade profunda
comprometidos. Ela como que foi levada pela onda de seus desejos desordenados
mas "involuntariamente", o que diminui sua culpabilidade evidentemente.
Ora, o otimismo cristão de Inácio nos permite melhor vencer esta indesejada
"captura" e este "consentimento" obtido dolosamente pelo tentador:
"O segundo modo de merecer sucede quando me vem aquele mau pensamento e
eu lhe resisto. Ele volta a vir uma e outra vez, e eu sempre lhe resisto, até que ele
se retire vencido. Este segundo modo é mais meritório do que o primeiro".
Portanto, Inácio vê nas insinuações para o pecado que nos ocorrem outras tantas
ocasiões de merecimento, e não como um sinal de perdição. Quanto mais
obsessivas e insistentes são as tentações, maiores ocasiões de mérito serão pela
graça de Deus.
Trata-se de um ato interior, pessoal, de uma decisão diante daquilo que a mesma
pessoa vê como mau: "um pecado mortal" para a sua mesma interioridade e
consciência.
"Há dois modos de pecar mortalmente" (36). Sendo um quando a pessoa consente
no mau desejo ou pensamento: "Sim, vou me vingar! Quero me vingar, mas agora
não posso!" Este é menos grave, porque a pessoa não chega a agir conforme sua
decisão interior, que ela mesma vê como má3 .
O outro tem mais gravidade: a pessoa não só quer o que ela mesma vê como
malicioso e perverso, mas toma medidas para executá-lo e o executa. Inácio indica
as agravantes deste pecado: a maior premeditação ("duração" e "intensidade" da
malícia interior) e o "dano" causado ao próximo.
"Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro; pelo contrário, aquilo que
sai de sua boca ... o que sai da boca vem do coração, e é isso que torna o homem
impuro. Pois do coração é que procedem maus pensamentos, homicídios,
adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e injúrias. Isto, sim, é que torna
o homem impuro, mas comer sem ter lavado as mãos não o torna impuro" (Mt
15,10-20)
Nos nºs. 38 a 40, Inácio trata "do que sai da boca" em primeiro lugar, a palavra.
Afinal, como diz S. Tiago, quem não peca pela língua é santo (cf. Tg 3,1-2).
Seguindo sua lógica interior, Inácio nos leva, subitamente, para o estranho mundo
dos juramentos ("Não jurar ..."). Estranho porque jurar não parece muito costumeiro
no Brasil de hoje. É preciso mergulhar, um pouco abaixo das primeiras impressões
para surpreender que Inácio permanece atento ao coração humano e à sua vocação
mais essencial, a liberdade: "procurando sempre achar o que eu quero" (76). Deve-
se reler esses números dos "Exercícios" querendo encontrar, no delicado campo da
palavra humana, a fonte da "verdade, necessidade e reverência" (38), exatamente o
que nos salva da "idolatria" (39) e da futilidade (a palavra "ociosa" e "sem utilidade",
isto é vã, fútil - 40), e, pior ainda, da tremenda capacidade de causar dano ao
próximo pela difamação ou por palavras sussurradas aqui e ali, acarretando-lhe
descrédito (41).
Os Dez Mandamentos são a referência cristã objetiva para o fiel que deseja educar
sua consciência como também para Inácio. E não só o Decálogo, mas também o
que a Igreja, em sua autoridade legítima, entende preceituar, ou o que os superiores
recomendam. Logo o personalismo inaciano não corre o risco em se deteriorar num
subjetivismo e individualismo extremados. Para chegar onde quer, Inácio é
agradecido aos sinais e indicações autênticas e a seus autores. Contente em poder
atinar com o rumo mediante as marcas e balizas do caminho, ele diz com toda a
tranqüilidade:
"Tudo o que se pratica contra uma destas três matérias é pecado, maior ou menor,
conforme a sua importância" (42,2).
A confissão geral
No contexto desta etapa dos "Exercícios", isto é, da "Primeira Semana", "o exame
geral" prepara o penitente que procura colocar toda a sua malícia diante da
misericórdia do seu Criador e Senhor pela "confissão geral e comunhão" (44).
Fiel a si mesmo e à liberdade cristã, Inácio propõe a confissão geral "a quem
espontaneamente quiser fazer".
No entanto, o seu "espontaneamente" não exclui uma atitude que busca, convicta, a
expor as suas razões para persuadir o exercitante a fazer a confissão geral
"imediatamente após os exercícios da primeira semana". Ele argumenta com a
maior sensibilidade ("dor") do exercitante em relação às suas passadas malícias,
agora ponderadas à luz do "fim" para o qual foi criado e da constante bondade,
misericórdia e oferta de salvação do seu Senhor e Criador. Esta sensibilidade e
melhor visão do que se passou permitem um maior "aproveitamento e mérito".
Por outro lado, a malícia do pecado é melhor percebida pelo exercitante, que,
anteriormente, não tivera como medi-la em clima de graça e oração, isto é, "quando
ele não se dedicava tanto às coisas interiores."
NOTAS:
1
Kologrigov, Ivan: Santi Russi, con una introduzione de T. Spidlik e una nota de E.
Vagin; a cura di Xenio Toscani; traduzione de Maria Luisa Giartosio De Courten;
Cooperativa editoriale "La Casa di Matriona" - Brescia - Itália - 1977
2
Id., ib., p. 208-209.
3
Notemos, por exemplo, que pode se dar o caso em que alguém veja a vingança
como algo natural e até moralmente exigida pelos seus valores.