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ARTIGOS

Pe. Paiva é membro do CEI-ITAICI e Assistente Nacional dos Antigos Alunos da


Companhia de Jesus no Brasil. Publicou, recentemente: Da Ceia ao Pai-Nosso.
Para orar os passos da Paixão. São Paulo, Loyola, 1996 (Col. “Experiência
inaciana”, 22).

O PECADO NOS NÚMEROS 24-44 DOS EXERCÍCIOS


ESPIRITUAIS
OTIMISMO E PERSONALISMO NA TRADIÇÃO CRISTÃ

R. Paiva, SJ

Um santo oriental pode nos ajudar

Às vezes não percebemos os tesouros e bens que estão muito próximos a nós.
Precisamos uma longa volta para avaliá-los em sua simples grandeza. São os que
moram fora do Brasil que valorizam, inesperadamente, o feijão com arroz, a
goiabada com queijo, o bolo de fubá com café acima do caviar com champanhe.

Um jesuíta russo, Ivan Kologrigov, pode nos ajudar, desde sua perspectiva de
cristão do Oriente, a revalorizar a visão profundamente personalista e otimista do
pecado dos números de 24 a 44 dos "Exercícios Espirituais". Pe. Kologrigov foi um
oficial de família nobre que lutou durante a 1ª Grande Guerra nos exércitos do Czar.
Teve de se exilar quando, em 1917, os comunistas tomaram o poder. Refugiado na
Bélgica, converteu-se ao catolicismo e entrou na Companhia de Jesus, onde chegou
a ser professor da Universidade Gregoriana. Devemos a ele uma obra que veio a
ser um clássico da literatura espiritual russa: "Santi Russi"1 .

Nele, o Pe. Kologrigov nos oferece um mergulho nas profundas águas da


espiritualidade cristã da Rússia, sem mesmo se esquivar das corredeiras dos seus
hereges e cismáticos.

A doutrina sobre o pecado de S. Nil de Sora

Tratando de S. Nil de Sora, monge do século XV (portanto, quase contemporâneo


de Inácio), assim ele nos apresenta sua doutrina2 sobre a desordem de nossas
paixões ("afeições desordenadas", diria Inácio):

"A imitação dos autores bizantinos, Nil indica cinco fases da marcha da paixão".

A primeira é a "sugestão" (prilog), uma impressão, uma primeira moção interior, um


pensamento involuntário. São fruto, não de nosso livre arbítrio, mas do nosso
ambiente. Não somos responsáveis por essa "sugestão". Mas se nos demoramos
nela, então vai apoderando-se de nossa vontade e nos leva à segunda fase, ao:

"Afrontamento" (societanie), isto é: a atenção clara que a pessoa passa a dar ao


pensamento, a princípio involuntário e casual. Agora já começa um
comprometimento, um primeiro engajamento da vontade e da liberdade.

Neste momento, o dever da pessoa é "mudar em bem" o mau pensamento, o desejo


impuro, a insinuação desonesta.
Infelizmente para o ser humano, muitas vezes ele não repele o mau pensamento,
mas nele consente. O "consentimento" (slozenie) é a terceira fase. Ele implica em
um passo (perdido) adiante. Começa uma adesão mais apaixonada para o mau
pensamento ou desejo. A pessoa está quase pronta a realizar o pensamento que lhe
ocorreu. Mas ainda pode resistir, com maior empenho. Se não resiste, então,
desgraçadamente, passa à 4ª fase:

"A captura" (plenenie), que se verifica em dois casos:

a) a pessoa é levada involuntariamente aos maus pensamentos e é seduzida por


eles contra o seu próprio desejo. Neste caso, dado que isto lhe acontece
"involuntariamente", este tipo de "captura" não implica "quase" em pecado;

b) a pessoa segue os próprios pensamentos e desejos desordenados com plena


consciência. Então, este estado de espírito é "especialmente nocivo". A alma se
excita, a pessoa perde o controle de si mesma. "É jogada como pelas ondas da
tempestade" e "vencida pelos pensamentos dissolutos". É o que ocorre sobretudo
com pessoas "dadas a conversas sem utilidade e demasiado freqüentes".

A doutrina de Inácio

Inácio está nos apresentando dois exercícios espirituais que ele julga de extrema
necessidade para a pessoa que peregrina em busca da vitória sobre si mesmo e da
ordenação de sua vida, "sem determinar-se por afeição alguma desordenada" (21).
Do no. 24 ao 31, ele ensina o exercitante a atacar seu vício, defeito ou "pecado
particular" mais insistente com a arma do "exame particular". No nº 32, começa a
tratar do exercício do exame geral de consciência, não tanto no contexto de um
discernimento habitual, como adiante, no clima novo da Quarta Semana e da
Contemplação para adquirir Amor", mas "para se purificar e melhor se confessar".

Um tanto inesperadamente, ele como que interrompe seu discurso sobre o exercício
do exame geral e se põe a nos falar dos tipos de pensamentos humanos:
"Pressuponho que há em mim três pensamentos". Claro: decido-me a estudar e
aprender a fazer contas. Ocupo-me com as quatro operações. Estes pensamentos
nascem de minha decisão. Do meu livre arbítrio: "o (pensamento) meu próprio, que
provém simplesmente da minha vontade e querer".

Em seguida, ele considera os outros dois "que vêm de fora", ou do "mau" ou do


"bom espírito". Podemos chamar o que vem do mau espírito de "sugestão" (prilog de
S. Nil). Ao pensamento que vem "do bom espírito" podemos denominar "inspiração".
Sigamos o ensino de Inácio sobre o rumo do mau pensamento. Notemos que ele
"vem de fora", e que equivale perfeitamente à "sugestão" de S. Nil. Logo é
involuntário em sua primeira apresentação ao nosso espírito.

O otimismo inaciano

Inácio (33) nos surpreende novamente: a análise de S. Nil se manifesta como


presidida por uma ordem lógica. A de Inácio, embora profundamente concorde com
a do santo russo, parece mais mística e afetiva, apesar de sua sobriedade habitual.
Continua ele: "Há duas maneiras de merecer".

Também S. Nil percebe na sugestão e insinuação de fazer o mal uma ocasião de


"mudar o mal em bem". Inácio analisa esta ocasião e nos faz perceber dois níveis de
aproveitamento espiritual possíveis:
a) quando repelimos imediatamente a tentação e ela fica vencida. Há um mérito
evidente nesta decisão, que recorda o Evangelho: "corta teu pé, tua mão, arranca
teu olho, se eles forem causa de escândalo e tropeço para ti" (cf Mc 9,43-47);

b) quando os maus pensamentos vêm e voltam e nos atormentam como moscas


insistentes.

A experiência mostra que muitas boas pessoas pensam que isto é sinal de falta de
bondade e de santidade: "Se me vêm tão insistente e inoportunamente estes
desejos e pensamentos é que sou pecador mesmo". Daí a ceder ao desânimo
interior e cair em tentação o passo é mínimo, embora, neste caso, teríamos uma
"captura" contra o querer profundo da pessoa. Ela parece mais vítima de um erro
que a prejudicou no seu combate interior e a deixou, aparentemente, derrotada.
Aparentemente, pois, de fato, ela não teve o seu querer e liberdade profunda
comprometidos. Ela como que foi levada pela onda de seus desejos desordenados
mas "involuntariamente", o que diminui sua culpabilidade evidentemente.

Ora, o otimismo cristão de Inácio nos permite melhor vencer esta indesejada
"captura" e este "consentimento" obtido dolosamente pelo tentador:

"O segundo modo de merecer sucede quando me vem aquele mau pensamento e
eu lhe resisto. Ele volta a vir uma e outra vez, e eu sempre lhe resisto, até que ele
se retire vencido. Este segundo modo é mais meritório do que o primeiro".

Portanto, Inácio vê nas insinuações para o pecado que nos ocorrem outras tantas
ocasiões de merecimento, e não como um sinal de perdição. Quanto mais
obsessivas e insistentes são as tentações, maiores ocasiões de mérito serão pela
graça de Deus.

O personalismo da doutrina inaciana

Como S. Nil, a visão de Inácio sobre o pecado é autenticamente personalista. Isto é,


para ambos o pecado não é a violação de algo que é declarado exteriormente como
tabu ou lei. O pecado também não diz respeito a uma mera má ação à qual se
chega sem saber direito como. Ele é um fruto de uma decisão livre diante de uma
sugestão que "vem de fora", que ocorre à pessoa, e que a sua mesma consciência
diz que é má:

"Peca-se venialmente quando vem o mesmo pensamento de cometer um pecado


mortal e se lhe dá atenção, demorando-se por um pouco nele; ou dele recebendo
alguma satisfação sensual; ou sendo um tanto negligente em repelir este
pensamento" (35).

Trata-se de um ato interior, pessoal, de uma decisão diante daquilo que a mesma
pessoa vê como mau: "um pecado mortal" para a sua mesma interioridade e
consciência.

Do mesmo modo, quando a pessoa adere conscientemente ao que lhe surge,


interiormente, como gravemente malicioso ("pecado mortal"):

"Há dois modos de pecar mortalmente" (36). Sendo um quando a pessoa consente
no mau desejo ou pensamento: "Sim, vou me vingar! Quero me vingar, mas agora
não posso!" Este é menos grave, porque a pessoa não chega a agir conforme sua
decisão interior, que ela mesma vê como má3 .
O outro tem mais gravidade: a pessoa não só quer o que ela mesma vê como
malicioso e perverso, mas toma medidas para executá-lo e o executa. Inácio indica
as agravantes deste pecado: a maior premeditação ("duração" e "intensidade" da
malícia interior) e o "dano" causado ao próximo.

Assim, para os dois mestres da espiritualidade cristã, Inácio, no Ocidente, e Nil, no


Oriente, o pecado é o fruto venenoso de uma decisão pessoal diante de algo que,
intimamente, interiormente, conscientemente, a mesma pessoa vê como injusto e
desonesto. Uma visão autenticamente personalista. Por isso mesmo,
autenticamente cristã:

"Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro; pelo contrário, aquilo que
sai de sua boca ... o que sai da boca vem do coração, e é isso que torna o homem
impuro. Pois do coração é que procedem maus pensamentos, homicídios,
adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e injúrias. Isto, sim, é que torna
o homem impuro, mas comer sem ter lavado as mãos não o torna impuro" (Mt
15,10-20)

Pecar por palavra

Nos nºs. 38 a 40, Inácio trata "do que sai da boca" em primeiro lugar, a palavra.
Afinal, como diz S. Tiago, quem não peca pela língua é santo (cf. Tg 3,1-2).

Seguindo sua lógica interior, Inácio nos leva, subitamente, para o estranho mundo
dos juramentos ("Não jurar ..."). Estranho porque jurar não parece muito costumeiro
no Brasil de hoje. É preciso mergulhar, um pouco abaixo das primeiras impressões
para surpreender que Inácio permanece atento ao coração humano e à sua vocação
mais essencial, a liberdade: "procurando sempre achar o que eu quero" (76). Deve-
se reler esses números dos "Exercícios" querendo encontrar, no delicado campo da
palavra humana, a fonte da "verdade, necessidade e reverência" (38), exatamente o
que nos salva da "idolatria" (39) e da futilidade (a palavra "ociosa" e "sem utilidade",
isto é vã, fútil - 40), e, pior ainda, da tremenda capacidade de causar dano ao
próximo pela difamação ou por palavras sussurradas aqui e ali, acarretando-lhe
descrédito (41).

Pecar por obra

Os Dez Mandamentos são a referência cristã objetiva para o fiel que deseja educar
sua consciência como também para Inácio. E não só o Decálogo, mas também o
que a Igreja, em sua autoridade legítima, entende preceituar, ou o que os superiores
recomendam. Logo o personalismo inaciano não corre o risco em se deteriorar num
subjetivismo e individualismo extremados. Para chegar onde quer, Inácio é
agradecido aos sinais e indicações autênticas e a seus autores. Contente em poder
atinar com o rumo mediante as marcas e balizas do caminho, ele diz com toda a
tranqüilidade:

"Tudo o que se pratica contra uma destas três matérias é pecado, maior ou menor,
conforme a sua importância" (42,2).

Evidentemente, Inácio não absolutiza sem mais as determinações dos superiores.


Ele não esquece o "fim" a que se pretende, para o qual fomos criados (23). Seu
contexto supõe normas "em prol da paz", vividas em piedade verdadeira, atestadas
e garantidas pelos Sacramentos da confissão e comunhão. Sua visão espiritual e
sua fé ensinam que "não pouco se peca agindo ou levando alguém a agir contra tão
piedosas exortações dos nossos superiores" (42,3).
O "exame geral"

Só agora Inácio vem a explicar como fazer o exercício do "exame geral de


consciência", que "consta de 5 pontos" (43). Apenas a prática e a meditação
garantirão ao exercitante que estes cinco passos, tão brevemente expostos, não são
um beco opressivo, mas uma passagem para uma familiaridade com Deus e com
seu trabalho quotidiano. Na verdade, unicamente o perseverante chegará a
descobrir, à luz clara da "Contemplação para alcançar o Amor", o exercício do
exame inaciano como uma retomada quotidiana do "fazer memória dos benefícios
recebidos da Criação, Redenção e dons particulares", ponderados "com muito
afeto", para cair em conta de "quanto o mesmo Senhor quer dar-se a mim" (234).

Esta é a inspiração otimista e pessoal de Inácio no seu primeiro e decisivo ponto do


"exame geral", em que recomenda "dar graças a Deus pelos benefícios" (43,2), a fim
de que o exercitante possa avaliar sua caminhada "para que siga adiante na prática
do bem" (315), sempre humildemente confiando na graça pedida (43,3).

A confissão geral

No contexto desta etapa dos "Exercícios", isto é, da "Primeira Semana", "o exame
geral" prepara o penitente que procura colocar toda a sua malícia diante da
misericórdia do seu Criador e Senhor pela "confissão geral e comunhão" (44).

Fiel a si mesmo e à liberdade cristã, Inácio propõe a confissão geral "a quem
espontaneamente quiser fazer".

No entanto, o seu "espontaneamente" não exclui uma atitude que busca, convicta, a
expor as suas razões para persuadir o exercitante a fazer a confissão geral
"imediatamente após os exercícios da primeira semana". Ele argumenta com a
maior sensibilidade ("dor") do exercitante em relação às suas passadas malícias,
agora ponderadas à luz do "fim" para o qual foi criado e da constante bondade,
misericórdia e oferta de salvação do seu Senhor e Criador. Esta sensibilidade e
melhor visão do que se passou permitem um maior "aproveitamento e mérito".

Por outro lado, a malícia do pecado é melhor percebida pelo exercitante, que,
anteriormente, não tivera como medi-la em clima de graça e oração, isto é, "quando
ele não se dedicava tanto às coisas interiores."

Finalmente, "em conseqüência" o exercitante estará "melhor confessado e


preparado" para a eucaristia. Ora, "o Santíssimo Sacramento", a comunhão, não só
"ajuda para que ele não caia em pecado", mas também para que "se conserve no
aumento de graça".

Também nestas simples exortações o observador mais atento logo percebe o


personalismo de Inácio: ele quer o exercitante mais consciente e disposto, quanto
possível, para a graça incomparável da sagrada comunhão. E o seu otimismo:
Inácio não fala de "conservar o estado de graça", mas vai além, com toda a
espontaneidade de quem tem essas coisas longamente vividas no próprio coração:
trata-se, na sua expressão, de "se conservar no aumento de graça". Trata-se de
crescer "em idade, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens" (Lc 2,52),
como o próprio Jesus Homem Salvador.

NOTAS:
1
Kologrigov, Ivan: Santi Russi, con una introduzione de T. Spidlik e una nota de E.
Vagin; a cura di Xenio Toscani; traduzione de Maria Luisa Giartosio De Courten;
Cooperativa editoriale "La Casa di Matriona" - Brescia - Itália - 1977
2
Id., ib., p. 208-209.
3
Notemos, por exemplo, que pode se dar o caso em que alguém veja a vingança
como algo natural e até moralmente exigida pelos seus valores.

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