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QUANDO O GRANDE “EU”

SE TORNA “NINGUÉM”

Dr. Harry Tiebout, Psiquiatra


Grande amigo da irmandade desde 1939
foi o primeiro psiquiatra
a reconhecer o trabalho de A.A. e a usar
os seus princípios em sua prática
profissional.
Junto com outros médicos, o Dr. Tiebout
acelerou e aprofundou a aceitação
mundial de A.A. entre os homens da
medicina.
O programa de ajuda de A.A. foi bafejado
por elementos de verdadeira inspiração, e,
em nenhum aspecto é mais evidente do
que na escolha de seu nome, Alcoólicos
Anônimos. O anonimato constitui-se,
naturalmente, em uma proteção de grande
valor, especialmente para o recém-
chegado;
porém, minha intenção presente é de
enfocar um valor ainda maior do
anonimato, na contribuição para o estado
de humildade necessário para a
manutenção da sobriedade do alcoólico
recuperado. Minha tese é de que o
anonimato, cuidadosamente preservado,
fornece dois ingredientes essenciais para
essa manutenção. Esses dois
ingredientes, na verdade, são duas faces
de uma mesma moeda: primeiro, a
preservação de um ego reduzido; segundo,
a presença contínua de humildade ou
simplicidade. Conforme o que
constatamos nas Doze Tradições de A.A.,
“o anonimato é o alicerce espiritual das
nossas Tradições”. Cada membro é
lembrado a colocar “os princípios acima
das personalidades”. Muitos de vocês
talvez queiram saber o que essa palavra
“ego” significa. Existem tantas definições,
que primeiramente é preciso esclarecer a
natureza da necessidade da redução do
ego.
Esse ego não é um conceito intelectual,
mas sim um estado de sentimento – uma
sensação de importância – de ser
“especial”. Poucas são as pessoas
capazes de admitir em si mesmas a
necessidade de serem especiais. Muitos
de nós, entretanto, podem reconhecer
ramificações desse procedimento e
colocar uma denominação própria para
elas. Deixem-me ilustrar. Nos primeiros
dias de A.A., fui consultado a respeito de
um problema sério que estava
preocupando um grupo local. O costume
de se comemorar um ano de sobriedade
com um bolo de aniversário, teve como
consequência o fato de que alguns vieram
a se embriagar, pouco tempos depois da
comemoração. Parecia que alguns não
podiam aguentar a prosperidade. Pediram
a minha posição a respeito; a favor do
bolo, ou contra o bolo de aniversário.
Caracteristicamente, escusei-me por não
poder ajuda-los, não por modéstia, mas por
ignorância.
Cerca de três ou quatro anos depois, o
próprio A.A. forneceu-me a resposta. O
grupo não teve mais esse problema,
segundo o que disse um membro: “Nós
ainda comemoramos, mas agora um ano
de sobriedade tornou-se lugar comum.
Nenhum de nós precisa ter mais a menor
preocupação com isso”.
Uma olhada ao que aconteceu nos mostra
o egoísmo, como eu o vejo, em ação. Em
primeiro lugar, a pessoa que esteve sóbria
por um ano inteiro, tornou-se um exemplo,
algo para se admirar. Seu ego
naturalmente se expandiu, seu orgulho
floresceu e qualquer diminuição de
egoísmo, obtida anteriormente,
desapareceu. Tendo sua confiança
renovada, acabou por tomar um drinque.
Tinha sido considerada especial e reagiu
de acordo. Depois, essa parte especial se
esvaiu. Nenhum ego é alimentado, estando
na condição de lugar comum, e desse
modo, o problema de ego elevado
desaparece.
Hoje A.A., na prática, está bem consciente
do perigo de se bajular alguém com
honrarias e louvores. Os riscos da
realimentação do ego são reconhecidos. A
frase “servidor de confiança” constitui-se
num esforço para manter baixo o nível do
egoísmo, embora alguns servidores
tenham problemas nesse particular.
Agora, vamos dar uma olhada mais
acurada nesse egoísmo que causa
transtornos. Os sentimentos, associados a
esse estado da mente, são de fundamental
importância na compreensão do valor que
tem o anonimato para o indivíduo – o valor
de colocá-lo na condição de um mero
participante do contingente da
humanidade. Certas particularidades
demonstram esse ego, que vê a si próprio
como algo especial e, por isso mesmo,
diferente. É elevado em si mesmo, e
propenso a manter, igualmente, suas
metas e suas fantasias em alto nível.
Menospreza àqueles que define como
sendo vermes que rastejam penosamente,
sem o ardor e a inspiração daqueles
iluminados pelos ideais de tirar pessoa do
lugar comum, prometendo a elas melhor
sorte para o futuro. Frequentemente, esse
mesmo ego funciona ao contrário. Ele tira
a esperança do homem, com suas falhas e
fraquezas, e desenvolve um cinismo que
amarga o espírito e faz de seu possuidor
um realista excêntrico que nada acha de
bom nesse vale de lágrimas. A vida nunca
obtém dele resultados plenamente
satisfatórios, e ele vive uma existência
amargurada, agarrando-se ao que puder no
momento, mas nunca realmente
participando do que acontece ao seu
redor. Ele anseia por amor e compreensão
e discursa incessantemente sobre o seu
senso de alienação em relação àqueles
que o cercam. Basicamente, ele é um
idealista frustrado, sempre voando alto e
aterrissando baixo. Esses dois tipos de
egoísmo confundem humildade com
humilhação.A seu modo as crianças atuam
como bons terapeutas ou “redutores de
cabeças”.
São hábeis alfinetadores de egos inflados,
ainda que seus propósitos não sejam,
propriamente, terapêuticos.
O A.A. teve seu começo justamente em
uma tal alfinetada. Bill W. sempre se
refere à sua experiência no Hospital
Towns como uma “deflação em grande
profundidade”, e naquela ocasião ouviram-
no dizer que seu ego havia levado uma
“surra dos diabos”. A.A. nasceu daquela
deflação e daquela surra. Está muito claro
que a sensação de ser especial, de ser
“algo” tem seus perigos e suas
desvantagens para o alcoólico. Já o
oposto, ou seja, aquele que está fadado a
ser um “nada”, tem pouca motivação. O
indivíduo vê-se diante da possibilidade de
ser algo e beber, ou de ser nada e também
beber, por frustração. O dilema, muito
compreensível, reside na falsa impressão
sobre o chamado oposto, o que está
prestes a ser um “nada” e não vê alguma
compensação. A característica de ser um
“nada” não é facilmente desenvolvida.
Vai contra todos nossos anseios por uma
identidade, por uma existência
significativa, plena de esperanças e
perspectivas. Tornar-se um “nada” parece
ser uma forma de suicídio psicológico.
Agarramo-nos ao nosso “pouco” com todas
as forças de que somos capazes. A ideia
de ser um “nada” é simplesmente
inaceitável. Mas, o fato é que, se o
indivíduo não aprender a agir como um
nada, não conseguirá compreender que ele
é apenas um mero cidadão do dia-a-dia,
misturado na raça humana e, assim,
estará sendo humilde perdido na multidão
e essencialmente anônimo. Quando isso
puder acontecer, o indivíduo terá
conseguido muito a seu favor.
As pessoas com o “nada” em vista, podem
relaxar e resolver seus negócios
calmamente, com o mínimo de transtorno
e de preocupação. Podem, até, curtir a
vida da forma que ela vier. Em A.A., isso é
conhecido como programa das vinte e
quatro horas, que significa, efetivamente,
não ter o indivíduo o amanhã em mente.
Ele consegue viver o presente
encontrando a satisfação aqui e agora;
não fica mais se acotovelando por aí. Sem
preocupações, a pessoa se torna receptiva
e mantém a mente aberta.
As mais importantes religiões estão
cônscias da necessidade do nada, para
aquele que pretende alcançar a graça. No
Novo Testamento, Mateus (18-3) cita estas
palavras de Cristo: “Em verdade vos digo;
se não vos transformardes, e não vos
fizerdes como meninos, não entrareis no
Reino dos Céus. Por isso, todo aquele que
se tornar pequeno como este menino, esse
há de ser o maior no Reino dos Céus”.
Zen ensina a libertação pelo nada. Uma
série de cenas com o intento de mostrar a
evolução da natureza do homem termina
por um círculo no interior de um quadrado.
O círculo representa o homem em um
estado de “nada”. O quadrado representa a
conformação das limitações com as quais
o homem precisa aprender a conviver.
Nessa concisa afirmação: “Nada é fácil,
nada é difícil”, e outras mais, Zen também
acrescentou a modéstia, a humildade e a
graça. Anonimato é um estado de espírito
de grande valor para o indivíduo, na
manutenção da sobriedade. Não obstante
eu reconheça sua função protetora, sinto
que qualquer discussão a respeito seria
unilateral, se falhar na ênfase do fato de
que a manutenção de um sentimento de
anonimato, um sentimento de “eu não sou
nada de especial”, é a garantia
fundamental de humildade, e,
consequentemente, a verdadeira
salvaguarda contra futuros problemas com
relação ao álcool. Esse tipo de anonimato
é verdadeiramente um bem precioso. (Best
of Grapevine) Vivência nº 43 -
setembro/outubro-1996

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