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Memórias de Ezequiel Carvalho ABC das Barragens

2 NOÇOES DE HIDROLOGIA APLICADA ÀS BARRAGENS

2.1 Generalidades

Os problemas de dimensionamento hidrológico de uma barragem respeitam essencialmente à


determinação das seguintes grandezas:
 Caudal de dimensionamento do descarregador de cheias;
 Volume de água derivada de uma albufeira explorada a fio-de-água, num dado ano ou na
média dos anos;
 Capacidade da albufeira necessária para assegurar o fornecimento anual de um dado
volume de água, com um grau de garantia fixado.

No caso de a albufeira não dar lugar ao amortecimento de cheias, o caudal de dimensionamento


do descarregador de cheias será o caudal de ponta da cheia natural afluente cuja determinação é,
em geral, associada a conceitos probabilísticos. No caso contrário, terá de fazer-se o estudo do
amortecimento da cheia na albufeira, considerando um ou mais hidrogramas de cheias afluentes,
também associados a conceitos probabilísticos.

O volume de água derivada de uma determinada albufeira explorada a fio-de-água, num ano
particular ou na média dos anos, depende do valor fixado para a capacidade da derivação.

A determinação da capacidade duma albufeira de regularização necessária para assegurar


fornecimento anual de um dado volume de água, com um grau de garantia previamente fixado,
pressupõe a disponibilidade de uma série de valores dos escoamentos afluentes e a fixação da
repartição mensal do volume anual a fornecer, bem como a do nível mínimo de exploração da
albufeira.

Existe um outro problema importante de dimensionamento hidrológico para além dos


anteriormente mencionados que é, o da determinação de caudais ambientais, também designados
caudais ecológicos. Estes caudais são os mínimos necessários para manter no curso de água e para
garantir a conservação e manutenção dos ecossistemas aquáticos, com base num compromisso
entre as várias utilizações em que os aspectos ambientais são igualmente considerados.

2.2 Precipitação e escoamento

2.2.1 Conceitos básicos

Por precipitação designa-se genericamente a água que, provindo do vapor de água da atmosfera,
atinge a superfície do globo, na forma líquida ou sólida. A precipitação resulta da condensação do
vapor de água da atmosfera, o que implica, além da presença de núcleos de condensação, o

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arrefecimento desse vapor de água. Segundo o autor Pinto Peixoto, poderá dizer-se que as nuvens
agem como se fossem fábricas de precipitação que utilizam o vapor de água como matéria-prima.

Escoamento numa secção dum curso de água é o volume de água que a atravessa durante um dado
intervalo de tempo e, caudal num determinado instante é o volume da água escoada por unidade
de tempo, nesse instante.

Passa a analisar-se sumariamente o processo de formação do escoamento num curso de água.

A água da precipitação divide-se nas seguintes parcelas:


 Água retida, quer por intercepção pelo coberto vegetal ou por obstáculos que a impedem
de atingir a superfície do terreno, quer por acumulação nas depressões daquelas superfícies;
 Água que se infiltra, ou seja, que penetra através da superfície do terreno, a menos que
aquela seja impermeável.
 Água que se escoa à superfície do terreno e se encaminha para a rede hidrográfica.

A retenção de água por intercepção ou nas depressões da superfície do terreno termina quando as
respectivas capacidades de retenção estejam preenchidas.

A água infiltrada subdivide-se em duas parcelas:


 Uma que é retida na camada superficial do solo até à uma profundidade em que o efeito
das raízes permite o seu reenvio para a atmosfera sob a forma de vapor, pelo efeito da
evapotranspiração.
 Outra que caminha em profundidade, indo atingir a zona de saturação do subsolo
(inexistente se este for impermeável) ou que volta a atingir a superfície do terreno,
incorporando-se no escoamento que aí ocorre.

No caso de uma precipitação de intensidade uniforme com início após um período seco, a relação
entre a água que corre à superfície do terreno e a que se infiltra aumenta com o tempo. Este facto
resulta da progressiva redução da capacidade de infiltração, causada pelo acréscimo do teor da
água retida na camada superficial do solo.

Quando cessa a precipitação sobre a bacia hidrográfica dum curso de água, o escoamento à
superfície do terreno reduz-se muito rapidamente e o escoamento numa secção desse curso de
água passa, então, a ser alimentado pela água armazenada nos leitos da rede hidrográfica a
montante, pela água infiltrada que volta à superfície do terreno e pela água da zona de saturação
do subsolo, que suporta os aquíferos. Estas contribuições vão-se reduzindo no tempo, muito
rapidamente a primeira, com relativa rapidez a segunda, e, com lentidão a última.

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Algum tempo depois de ter cessado a precipitação, o caudal num curso de água resulta unicamente
da contribuição dos aquíferos. A importância desta contribuição depende das dimensões dos
aquíferos e das suas propriedades relativamente ao armazenamento e à circulação da água.

2.2.2 Avaliação da precipitação e do escoamento

A medição da precipitação é realizada em pontos isolados (postos udométricos) e o seu resultado


exprime-se pela altura que, num dado intervalo de tempo, atinge a água que se acumula sobre a
projecção horizontal duma superfície, se não existirem perdas e a precipitação sólida tiver fundido.
Os aparelhos de medição podem ser do tipo totalizador (udómetros) ou do tipo registador
(udógrafos). Os udómetros são, em geral, observados com intervalos de 24 h, a uma hora fixa do
dia.

A precipitação sobre uma dada zona, como seja uma bacia hidrográfica, pode exprimir-se em
volume ou, mais frequentemente, em altura de água uniformemente distribuída sobre a projecção
horizontal dessa zona. A sua avaliação, a partir das medidas obtidas pontualmente, utiliza
essencialmente dois métodos: o das isoietas e o das áreas de influência ou de Thiessen.

As isoietas ou isolinhas da precipitação são os lugares geométricos dos pontos de igual


precipitação durante um determinado intervalo de tempo. Os intervalos de tempo são de minutos,
horas, dias, meses, ou anos, consoante o problema em estudo.

Para traçar isoietas localizam-se numa planta topográfica os postos udométricos existentes no
interior da zona considerada (frequentemente uma bacia hidrográfica) e na sua periferia,
assinalando os valores da precipitação neles observada no intervalo de tempo fixado (fig. 2.1). O
traçado pode ser obtido directamente por interpolação daqueles valores, ou corrigido para atender
a factores fisiográficos (como sejam a altitude, a distância à costa e a exposição relativamente a
ventos carregados de humidade).

Uma carta de isoietas faculta ainda uma visão da distribuição espacial da precipitação.

Figura 2.1 - Isoietas e polígonos e áreas de influência dos postos udométricos numa bacia hidrográfica.

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Traçadas as isoietas, o volume V da água precipitada na bacia hidrográfica de área A é dado por

= ∑ (2.1)

em que Ai é uma área parcial delimitada por isoietas (ou por isoietas e o limite da bacia) e Pi é a
precipitação nessa área parcial, avaliada como a média aritmética dos valores máximo e mínimo
da precipitação aí verificados e estabelecidos a partir das isoietas.

A precipitação expressa em altura de água, geralmente em milímetros, sobre a área A é


= (2.2)

O método das áreas de influência baseia-se no traçado de polígonos formados pelas mediatrizes
dos lados dos triângulos com vértices nos postos udométricos (figura 2.1). O polígono que contém
um posto udométrico limita a área de influência desse posto, no interior da qual a precipitação é
considerada uniforme e igual à observada no posto.

Neste método mantêm-se as expressões atrás apresentadas para calcular o volume de precipitação
sobre uma dada área ou a respectiva altura de água (suposta uniforme). Observa-se que, no método
das áreas de influência, Ai passa a representar a área de influência do posto i e Pi, a precipitação
nele medido.

É corrente recorrer-se à noção de peso do posto i, dado por = ∑ : , sendo ∑ = 1 e resultando

= ∑ (2.3)

O escoamento numa secção dum curso de água, durante um determinado intervalo de tempo,
corresponde à integração, ao longo desse intervalo de tempo, do caudal que atravessa a secção. A
medição do caudal é realizada em estações hidrométricas, de forma indirecta, medindo-se
efectivamente o nível de água, que se transforma em caudal.

O registo contínuo, tanto da precipitação, em udógrafos, como do nível da água, em limnígrafos,


era tradicionalmente realizado graficamente, o que implicava a posterior digitalização dos
diagramas cronológicos obtidos. Modernamente, há tendência para instalar aparelhos em que o
registo das grandezas mencionadas é realizado directamente em formato digital, podendo a
informação recolhida ficar gravada localmente ou ser teletransmitida.

O escoamento numa secção dum curso de água, tal como a precipitação, pode ser expresso não só
em volume, como também em altura de água uniforme sobre a projecção horizontal da respectiva

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bacia hidrográfica. Os valores de variáveis hidrológicas, quando expressos em altura, têm a


vantagem de oferecer uma avaliação fisicamente mais perceptível.

Convém notar que uma albufeira pode ser utilizada para a medição do escoamento dela efluente,
mediante a observação do respectivo nível e da posição de abertura dos órgãos que regulam a
saída de água, desde que se conheçam as respectivas leis de vazão. Para reconstituir o escoamento
afluente em condições naturais, será necessário ter em conta a variação do volume de água
armazenado na albufeira, no intervalo entre observações, e as modificações do balanço
hidrológico provocadas pela evaporação e pela precipitação na albufeira.

2.2.3 Noções básicas de hidrometria

A transformação em caudal do nível de água observado, ou da altura de água acima da cota fixada
(altura hidrométrica) é feita mediante curvas de vazão. O estabelecimento de uma curva de vazão
implica que medições do caudal e da altura hidrométrica sejam realizadas praticamente em
simultâneo.

Deve assegurar-se, quanto possível, a invariabilidade no tempo da curva de vazão, o que exige os
seguintes requisitos para a secção de medição da altura hidrométrica:
 A secção não deve ser atingida pelo regolfo provocado por cursos de água confluentes a
jusante, ou estar sujeita à secção da maré.
 O leito do curso de água, na secção e num troço adjacente suficientemente longo, deve ser
estável.

Quando o leito da secção é móvel, é necessário estabelecer sucessivas curvas de vazão. Neste caso,
a passagem de uma cheia importante pode originar apreciável variação da secção, com a
consequente alteração da curva de vazão, sendo recomendável proceder à medição do caudal,
durante e após a cheia, e obter nova curva de vazão, se necessário.

As medições de caudal para a determinação de curvas de vazão são realizadas por vários métodos,
que se baseiam em geral, na medição da velocidade em várias verticais da secção considerada e,
em cada vertical, a diferentes profundidades. O caudal é determinado por integração dos valores
da velocidade para a totalidade da secção.

A medição da velocidade é feita por molinetes, operados por hidrometristas, que, para o efeito, se
têm de deslocar ao longo da secção transversal, no caso de pequenas profundidades, ou se
posicionam sobre pontes, ou ainda numa das margens, existindo, neste último caso, um teleférico,
que permite a deslocação do molinete, transversalmente e em altura.

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A curva de vazão é obtida a partir dos pares dos valores medidos da altura hidrométrica e do
caudal (hi, Qi), ensaiando-se um ou mais tipos de equação para traduzir a relação entre aquelas
variáveis e determinando-se os parâmetros dessas equações mediante um critério de ajustamento,
em geral, o dos mínimos quadrados. É escolhida a equação a que corresponde o melhor
ajustamento, julgando-se conveniente representar graficamente a curva de vazão, bem como os
pontos correspondentes aos pares de valores medidos (hi, Qi).

É frequente que o maior caudal medido seja muito inferior a caudais verificados durante algumas
cheias. Para obter, a partir das alturas hidrométricas observadas, caudais superiores ao máximo
medido, há que proceder à extrapolação da curva de vazão, o que pode revestir-se de acentuada
incerteza, não obstante, nalguns casos, tal extrapolação poder ser orientada por cálculos
hidráulicos (fig. 2.2).

Figura 2.2 – Exemplo de uma curva de vazão

Quando o leito da secção é muito móvel, pode construir-se uma estrutura descarregadora, com
vista a fixar a secção transversal e, consequentemente, a tornar invariável a curva de vazão. O
perfil da crista desta estrutura, perpendicular ao curso da água, é horizontal, com a excepção
frequente de uma zona central, em que é triangular ou horizontal, para maior precisão dos valores
baixos do caudal.

A estrutura funciona como descarregador livre para valores baixos e médios do caudal, os quais
podem ser calculados teoricamente em função da carga hidráulica sobre a crista, enquanto não se
verifica o afogamento do descarregador, ou seja, enquanto o nível de água a jusante não ultrapassa
a crista.

2.2.4 Noções básicas de estatística em hidrologia

2.2.4.1 Variáveis hidrológicas aleatórias

Os valores de algumas séries hidrológicas são independentes dentro de cada série e exprimem o
resultado da contribuição de um número extremamente grande de factores, pelo que as variáveis

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podem-se considerar como aleatórias.

Estão nestas condições, entre outras, as séries de valores das seguintes grandezas anuais:
 Precipitação anual;
 Precipitação num determinado mês do calendário, num dado ano;
 Precipitação máxima anual com determinada duração;
 Escoamento anual;
 Escoamento num determinado mês do calendário, num dado ano;
 Escoamento máximo anual com determinada duração;
 Caudal instantâneo (e caudal médio diário) máximo anual.

2.2.4.2 Universo e amostra. Parâmetros estatísticos e estimação

O conjunto dos valores que uma variável aleatória pode assumir constitui o respectivo universo,
cujas propriedades são traduzíveis por parâmetros estatísticos.

Não sendo possível aceder ao referido universo, não se conhecem os valores daqueles parâmetros.
Recorre-se, assim, à obtenção de estimativas dos mesmos, a partir de um subconjunto extraído do
universo, ou seja, de uma sua amostra.

Os parâmetros estatísticos mais usualmente utilizados para caracterizar o universo duma variável
aleatória são média µ, variância σ2 e o coeficiente de assimetria γ. Tais parâmetros são a seguir
definidos de forma muito acessível, eventualmente com alguma perda de rigor.

Para tanto, admita-se que um universo é constituído por N valores, cada um designado
genericamente por Xi, com N a tender para infinito. Os parâmetros referidos virão definidos do
modo seguinte:


= (2.4)

( )
= ∑ (2.5)

( )
= ∑ (2.6)

A média caracteriza a localização de uma tendência central, variância, a dispersão e o coeficiente


de assimetria, a simetria ou assimetria da distribuição dos valores do universo. Se é nula a soma
algébrica dos cubos dos desvios em relação à média (positivos, negativos ou nulos), o coeficiente
γ será nulo e a distribuição diz-se simétrica; se for positiva ou negativa, igualmente o será γ é a

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distribuição diz-se com assimetria positiva ou negativa.

A raiz quadrada da variância designa-se por desvio-padrão, σ. Define-se ainda o coeficiente de

variação σ/µ, que caracteriza a dispersão relativa.

As estimativas da média, ̅ , do desvio-padrão, s, e do coeficiente de assimetria, g, obtidas a partir


de uma amostra, necessariamente limitada, com n elementos, calculam-se pelas expressões
seguintes:


̅ = (2.7)

∑( ̅)
= (2.8)

∑( ̅)
= ( (2.9)
)( )

2.2.4.3 Variáveis hidrológicas anuais. Período de retorno

As variáveis mencionadas em 2.2.4.1 apresentam um valor por ano – variáveis anuais. A


probabilidade de o valor x de uma dessas variáveis ser excedido em cada ano é dada por 1 − ( ),
define-se

= (2.10)
( )

Em que T é o período de retorno, ou seja, o número de anos que em média separa a ocorrência de
dois valores anuais superiores a x.

Se se dispusesse de uma amostra de N valores anuais, com N a tender para o infinito e nela K fosse
o número de anos em que o valor x é excedido, o quociente N/k tenderia a representar o período
de retorno. Esse conceito não pode associar-se ao de ciclicidade, como poderia sugerir a
designação corrente de decenal, centenário ou milenário aplicada ao valor de uma variável anual
com períodos de retorno de 10, 100 ou 1.000 anos.

Julga-se de interesse definir o risco de o valor de uma variável com período de retorno T ser
excedido durante N anos, como a probabilidade de esse valor não ser excedido em cada ano é 1 −

1/ , em N anos, (1 − ) , o risco de ser excedido (uma ou mais vezes) em N anos resulta:

= 1 − (1 − ) (2.11)

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Assim, por exemplo, o caudal de cheia com período de retorno de 1.000 anos tem risco de cerca
de 10% de ser excedido num período de 100 anos, por ser

1
1 − 1 − = 0,095
1000

O qual não é, de modo nenhum, desprezável, como se poderia afigurar a priori considerado
unicamente o valor do período de retorno.

2.3. Exploração de albufeiras

a) Exploração a fio-de-água

Uma albufeira que não transfere água a uma escala de tempo superior à semanal diz-se explorada
a fio-de-água.

A exploração será à fio de água puro se a regularização for nula, sendo então os caudais utilizados
à medida que afluem e perdendo-se necessariamente os caudais em excesso relativamente à
capacidade de derivação.

Se uma albufeira transferir água à escala diária ou semanal, diz-se que é de regularização diária
ou semanal, concentrando então o fornecimento de água nalgumas horas do dia ou nalguns dias
da semana e podendo provocar, a jusante, acentuadas variações do caudal e do nível.

b) Exploração com regularização do caudal

As albufeiras de regularização do caudal permitem transferir água dos períodos húmidos para os
períodos secos, dentro de cada ano ou interanualmente.

Uma albufeira de regularização é dimensionada para fornecer anualmente um dado volume de


água, admitindo-se que o volume efectivamente fornecido possa ser inferior ao de
dimensionamento, na ocorrência de um ano particularmente seco ou numa sucessão de anos secos.

Assim, o volume de água a fornecer que se considera no dimensionamento de uma albufeira está
associado ao grau de garantia, ou unicamente garantia, com que é disponibilizado. A garantia é
susceptível de várias definições; em termos de frequência anual, pode ser estimada pelo quociente
k/n, em que k é o número de anos em que o fornecimento de tal volume anual de água pode ser
inteiramente assegurado num período de n anos. Este período deverá ser suficientemente longo
para que a estimativa de garantia não seja muito afectada pelo erro de amostragem.

Noções de hidrologia aplicada às barragens 2-9


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2.4 Caracterização e avaliação de cheias

2.4.1 Objectivo e conceitos gerais

Neste tópico é feita uma abordagem das cheias nos cursos de água que resultam da precipitação
líquida sobre as bacias hidrográficas, excluindo outras causas, naturais ou artificiais, como, por
exemplo, a fusão da neve e a ruptura de barragens.

Entre os problemas envolvidos no estudo das cheias naturais distinguem-se a avaliação de caudais
de cheia, em geral associados a períodos de retorno, e a previsão em tempo real, desses caudais,
baseada na observação e na evolução previsível das situações meteorológicas sobre as bacias
hidrográficas ou na observação hidrométrica a montante.

Se a cheia num curso de água é provocada por uma chuvada isolada, o diagrama cronológico do
caudal escoado numa dada secção durante a cheia - hidrograma de cheia - apresenta um ramo
ascendente até um pico ou ponta e um ramo descendente. Na fig. 2.3 apresenta-se o hidrograma
de cheia respeitante ao escoamento directo, o qual resulta de subtrair o caudal de base (proveniente
da contribuição dos aquíferos) ao caudal observado.

Figura 2.3 - Hidrograma de cheia: caudal total e caudal correspondente ao escoamento directo

O volume do escoamento directo é representado pela área tracejada no hidrograma da figura 2.3.
A altura de água que resultaria de se distribuir o volume do escoamento directo uniformemente
sobre a área em planta da bacia hidrográfica é designada por precipitação útil ou precipitação
efectiva.

A diferença entre a precipitação, P, e a precipitação útil, Pu, corresponde às perdas para o


escoamento directo que são provocadas pela retenção superficial (intercepção, armazenamento nas
depressões do solo e evapotranspiração durante a chuvada, esta muito pequena) e pela infiltração.

Na fig. 2.3 assinalam-se o tempo ascendente, ta, O tempo descendente, td, e a duração do escoamento
directo, ou seja, a duração da cheia.

Noções de hidrologia aplicada às barragens 2-10


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2.4.2. Factores das cheias, precipitação crítica e caudal específico de ponta

Os principais factores que influenciam os hidrogramas de cheia podem ser classificados em três
grupos:
a) Área, forma e relevo da bacia hidrográfica e características da rede hidrográfica;
b) Características e estado do solo, cobertura vegetal e volume de água armazenado na bacia
hidrográfica no início da precipitação (na rede hidrográfica e à superfície e no interior do
solo);
c) Distribuição temporal e espacial da precipitação.

Os factores dos grupos a) e c), condicionando as velocidades do escoamento à superfície do terreno


e na rede hidrográfica, determinam o tempo de concentração, tc, que se define como o tempo que a
gota de água da precipitação que cai no ponto da bacia hidrográfica cinematicamente mais afastado
da secção de jusante leva a atingir esta secção. Os factores do grupo b) condicionam as perdas da
precipitação para o escoamento directo.

O tempo de concentração, que, em rigor, depende dos caudais em circulação, é um parâmetro de


grande importância no estudo das cheias, como se verá seguidamente.

Para tanto, considerem-se três chuvadas de duração t1 < tc, t2 = tc e t3>tc e de intensidades
uniformes, temporal e espacialmente I1, I2 e I3.

Para t1 < tc, qualquer que seja o instante considerado, só parte da bacia hidrográfica está a
contribuir com a água nela precipitada para o caudal escoado na secção de jusante da bacia. Com
efeito, na primeira das anteriores chuvadas, a área de contribuição aumenta progressivamente
desde o início da chuvada até o instante t1, no qual passa a cessar a contribuição das zonas mais
próximas da secção de jusante e a iniciar-se a das zonas mais afastadas.

Toda a bacia hidrográfica dá a referida contribuição, unicamente no instante tc , para uma duração
t2=tc e, no intervalo de tempo t3 - tc, para uma duração t3> tc.

Admitindo a simplificação de que não há perdas da precipitação para o escoamento directo e que
é desprezável o volume de água em trânsito do escoamento à superfície, tem-se como caudal de
ponta na secção de jusante

= = = (2.12)

em que A1 é a área máxima da bacia hidrográfica que contribui para o escoamento no caso da
duração t1 < tc e A, a área da bacia hidrográfica.

Atendendo a que precipitações intensas com igual período de retorno têm intensidades médias no

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tempo que decrescem com o aumento da duração (I1<I2<I3), o caudal Q3 não pode exceder o caudal
Q2, não se podendo concluir à partida se é Q1 < Q 2 ou Q1 > Q2, por ser A1 < A e I1 > I2. Poderia,
porém, demonstrar-se e a experiência confirma ser Q2> Q1.

Justifica-se, assim, que usualmente o tempo de concentração seja adoptado como duração crítica
da precipitação para avaliar o maior caudal de ponta para um dado T e que o caudal específico de
ponta (caudal de ponta por unidade de área da bacia hidrográfica), em condições não anómalas, se
considere decrescente para jusante, por aumentar A e, consequentemente, tc.

2.4.3 Fórmulas empíricas

As fórmulas empíricas que permitem avaliar o caudal de ponta de cheia, Q, em função da área, A,
e de outras características da bacia hidrográfica podem classificar-se em não cinemáticas e
cinemáticas consoante não incluam ou incluam o tempo de concentração, de forma implícita ou
explícita.

Do primeiro tipo é a fórmula de Myer

= (2.13)

em que os valores do coeficiente C e do expoente α dependem de características da bacia

hidrográfica. O expoente α toma valores de 0,50, para bacias relativamente planas e com
predomínio de solos permeáveis, e de 0,70, para bacias acidentadas e com predomínio de solos
impermeáveis.

A fórmula de Myer pode ser utilizada para transpor o caudal de ponta de cheia estimado numa
secção de um curso de água, com um dado período de retorno, pela aplicação de um método
merecedor de confiança, para outra secção no mesmo curso de água, ou noutro, desde que sejam
análogas as características das bacias hidrográficas. Supostos iguais os valores de C e de α em
duas bacias hidrográficas de áreas, A1 e A2 tem-se

= ( ) (2.14)

Podem estabelecer-se fórmulas do tipo = de validade regional em que C e α dependem


das características das bacias hidrográficas e C depende, também, do período de retorno.

Apresentam-se a seguir fórmulas empíricas muito divulgadas internacionalmente para estimar o


tempo de concentração (a ser utilizado nas formulas empíricas cinemáticas), bem como os

Noções de hidrologia aplicada às barragens 2-12


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significados dos símbolos intervenientes e as unidades respectivas:

 Fórmula de Giandotti

√ ,
= (2.15)
,

 Fórmula de Kirpich

,
= 0,9137 , (2.16)

Apresenta-se em seguida o significado dos símbolos e unidades:


tc - tempo de concentração (h);
A - área da bacia hidrográfica (km2);
L - desenvolvimento do curso de água principal (km);
Hm - altura média da bacia hidrográfica: diferença entre a sua altitude média e a altitude do
talvegue na secção de jusante (m);
H - diferença de altitudes do talvegue nos extremos de montante e de jusante (m).

Como fórmulas empíricas cinemáticas, referem-se a fórmula racional e a de Giandotti. A primeira


é uma fórmula dimensionalmente homogénea que se exprime por:

= (2.17)

em que C é um coeficiente adimensional, I, a intensidade média duma chuvada de duração tc e de


período de retorno T (igual ao do caudal de ponta, Q) e A, a área da bacia hidrográfica.

O coeficiente C traduz os efeitos das perdas para o escoamento directo e do volume de água em
trânsito do escoamento à superfície (no terreno e na rede hidrográfica). O seu valor depende,
portanto, do tipo, uso e estado do solo e aumenta com o período de retorno, pois que, relativamente
à precipitação durante uma chuvada, o valor total das perdas e do volume de água em trânsito
diminui quando T aumenta.

A experiência mostra que, para os períodos de retorno adoptados na avaliação de caudais de ponta
de cheia a considerar no dimensionamento de descarregadores de barragens, o coeficiente C será
cerca de 0,80 ou 0,60, consoante a bacia for acidentada e o solo pouco permeável ou a bacia
relativamente plana e o solo arenoso e permeável.

Noções de hidrologia aplicada às barragens 2-13


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Formulário adicional

1. Precipitação anual media:


=
12
2. Índice de humidade do Ano:

. =

3. Precipitação mensal media do mês:



=
4. Precipitação mensal média fictícia:

=
12
5. Coeficiente pluviométrico do mês:

. =
6. Índice de humidade do mês:

. =

Onde:

. -índice de humidade anual (adimensional);


- Precipitação media anual (mm/ano);
-precipitação total anual (mm/ano);

. - Coeficiente Pluviométrico do mês (adimensional);

- Precipitação mensal média fictícia (mm/mês)

Noções de hidrologia aplicada às barragens 2-14


Memórias de Ezequiel Carvalho ABC das Barragens

Fontes bibliográficas

 Instituto de Água (INAG), Curso de Exploração e Segurança de Barragens, Lisboa,


Março de 2001.
 Carmo Vaz, A., Apontamentos da Cadeira de Hidrologia – Universidade Eduardo
Mondlane (UEM), Maputo, 1993

Noções de hidrologia aplicada às barragens 2-15

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