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O BÁSICO DA FILOSOFIA

nf vel bastante avançado, mas as introduções de Glover a


cada seção ajudam muito, Capítulo 3

Sobre o tema da ética aplicada, Causing Deatl and Saving


Lives, de Jonathan Glover (Londres: Penguin, 1977) e Éri-
ca prática, de Peter Singer (São Paulo: Martins Fontes,
2002), são ambos interessantes e acessíveis, Applied Ethics, Política
organização de Peter Singer (Oxford: Oxford University
Press, 1986), é uma excelente seleção de ensaios. A Conr-
Panion to Ethics, também organizado por Peter Singer
(Oxford: Blackwell, 1991), é uma introdução mais subs-
tancial a um vasto âmbito de tópicos dentro da ética,

Enbics: Inventing Right and Wrong, de ]. L. Mackie (Lon-


dres: Penguin, 1977) e Contemporary Moral Philosophy, de
O que é igualdade? O que é liberdade? São metas que valem
G. J. Warnock (Londres: Macmillan, 1967) são livros
a pena? Como podem ser alcançadas? Que justificativa se
introdutórios à filosofia mora! que valem a pena ser lidos,
pode dar para o Estado restringir, como faz, a liberdade dos
embora nenhum dos dois seja fácil.
infratores da lei? Há alguma circunstância em que se de-
veria infringir a lei? Estas são perguntas importantes para
qualquer um. Filósofos polí icos tentaram esclarecê-las e
respondê-las. À filosofia política é uma disciplina vasta,
superpondo-se à ética, economia, ciência política e histó-
tia das ideias. Os filósofos políticos geralmente escrevem
em reação às situações políticas nas quais se encontram.
Nesta área, mais do que na maioria das áreas, o conheci-
mento dos antecedentes históricos é importante para se
entender os argumentos de um filósofo. Evidentemente,
não há espaço, neste livro curto, para montar um cenário
histórico, Para os interessados na história das ideias, a
seção “leituras adicionais” no final do capítulo pode ser
muito útil.

105 [os]
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

Neste capítulo, concentro-me nos conceitos políticos espantalho): criar um alvo fácil para poder derrubá-lo com
capitais de igualdade, democracia, liberdade, castigo e de- facilidade, Creem que refutaram o igualitarismo destacan-
sobediência civil, examinando as questões filosóficas a que do os modos importantes em que as pessoas diferem, ou
dão origem. vendendo o peixe de que, mesmo que a quase uniformida-
de pudesse ser conseguida, as pessoas muito rapidamen:
Igualdade retornariam a algo semelhante à sua condição anterior. En-
tretant esse ataque só consegue sucesso se lançado contra
A igualdade costuma ser apresentada como uma mera pol uma caricatura da teoria (o “homem de palha”) e deixa
<a, um ideal digno de ser buscado. Os que propugnam algu- incólume a maioria das versões do igualitarismo.
ma forma de igualdade são conhecidos como igualiaristas, À AA
igualdade é, então, sempre igualdade em certos as-
motivação para se conseguir essa igualdade é geralmente de pecros, não em todos, Então, quando alguém se
declara um
ordem moral: pode se fundamentar na crença cristã de que igualitarista, é importante descobrir em que sentido. Em
somos todos iguais aos olhos de Deus, na crença kantiana na outras palavras, “igualdade” usada no contexto político é
racionalidade da igualdade de respeito por todas as pessoas ou algo mais ou menos sem sentido, a não ser que exista algu-
talvez na crença utilitarista de que tratar as pessoas igualmente ma explicação sobre o que deveria ser mais igualmente par-
é o melhor meio de maximizar a felicidade. Os igualiaristas tilhado, e por quem. Os igualitaristas costumam afirmar que
afirmam que os governos deveriam se esforçar para, em vez de aquilo que deveria ser igualmente ou mais igualmente dis-
apenas reconhecer, passar a proporcionar algum tipo de igual- tribuído é: renda, acesso ao emprego e poder político. Mes-
dade nas vidas daqueles a quem governam. mo levando em conta que os gostos das pessoas diferem
Mas como devemos entender “igualdade”? Obviamen- consideravelmente, esses três elementos podem contribuir de
te, seres humanos jamais poderiam ser
iguais em tudo, Os modo significativo para uma vida agradável e que valha a
indivíduos diferem eminteligência, beleza, habilidade arlé- pena. Distribuir esses bens mais igualmente é um meio de
tica, altura, cor de cabelo, lugar de nascimento, senso de conceder aos seres humanos o mesmo respeito.
vestuário e de muitos outros modos. Seria ridículo afirmar
que as pessoas deveriam ser iguais em todos os aspectos. À Distribuição igual de renda
uniformidade tota! tem pouco atrativo. Os igualitaristas não

podemestar propondo um mundo habitado por clones. E Um igualitarista extremista poderia afirmar que deveria
no entanto, apesar do óbvio absurdo de se interpretar igual haver igualdade financeira entre todos os seres humanos
dade como uniformidade, há oponentes do igualirarismo adultos, todos recebendo a mesma renda. Na maioria das
que persistem em retratá-lo desse modo. Este é um exem- sociedades, o dinheiro é necessário para que as pessoas vi-
plo de como se montar um homem de palha (ou um vam; sem isso, não há alimentação, habitação, vestuário.

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(O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

A redistribuição poderia ser justificada, por exemplo, se- Pessoas diferentes merecem quantias diferentes
gundo premissas utilitaristas, como o meio com maior
Onutra objeção à igual distribuição de renda é que pessoas
probabilidade de maximizar a felicidade e minimizar o
diferentes merecem diferentes remunerações pelos serviços
sofrimento.
dada à sociedade, Assim,
que prestam e pela contribuição
ricos chefes das indús-
Críticas à distribuição igual de renda por exemplo, às vezes alega-se que
trias merecemos vastos salários que se atribuem por causa
de sua relativamente maior contribuição à nação: eles
ge-
Não é prática e dura pouco
ram empregos e, assim, aumentam o bem-estar econômi-
É bastante óbvio
que « igualdade financeira é uma meta co geral de todo a país em que operam.
inatingível. As dificuldades práticas da distribuição de renda Mesmo que não mereçam salários maiores, talvez salá-
dentro de uma cidade seriam imensas; distribuir dinheiro rios maiores sejam necessários como um incentivo para que
igualmente entre todo ser humano adu to seria um pesa- 0 trabalho seja feito de modo eficiente, os benefícios gerais
delo logístico. Então, realisticamente, o melhor pelo eles, poderia
que para à sociedade compensando os custos: sem
este tipo de igualitarista poderia esperar seria o estabeleci- haver muito menos para se distribuir por todos, Sem o in-
mento de um salário fixo a todos os trabalhadores adultos. centivo de um pagamento elevado, ninguém capaz de dar
Mas, mesmo que pudéssemos chegar muito próximo conta do serviço o assumiria,
de uma igual distribuição de riqueza, isso duraria Aqui nos deparamos com uma diferença fundamental
pouco,
Pessoas diferentes usariam seu dinheiro de modos dife- entre os igualitaristas e os que acreditam que as flagrantes
Tentes; os espertos, os trapaceiros e osfortes rapidamente desigualdades em riqueza entre indivíduos são aceitáveis.
É uma convicção básica da maioria dos igualitaristas que
adquiririam o dinheiro dos fracos, dos bobos e dos igno-
indivíduos
rantes. Alguns esbanjariam, outras poupariam, outros ain- apenas diferenças moderadas em riqueza entre
da jogariam, assim que o obtivessem, ou roubariam são aceitáveis, e que idealmente essas diferenças deveriam
para
corresponder a diferenças em necessidades. Isto desperta
aumentar sua porção, O o meio de manter algo se-
melhante a uma igual distribuição de riqueza seria a in-
mais uma crítica ao princípio de igual distribuição de renda.

tervenção pela força a partir de cima. Isto sem dúvida


Pessoas diferentes têm necessidades diferentes
envolveria uma desagradável intromissão na vida das
pes-
soas, limitando-lhes a liberdade. Há quem precise de mais dinheiro para viver do que ou-
tros. Um paciente que recebe um dispendioso tratamento
médico diário teria muito poucas chances de sobreviver em
uma sociedade na qual cada indivíduo é limitado a uma

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(O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

parcela igual da riqueza total daquela sociedade, afirmar sua existência, Defensores dos direitos naturais não
a não ser,
é claro, que fosse uma sociedade
particularmente rica, Um conseguiram fazer isso.
método de distribuição baseado na necessidade individual
iria mais ao encontro do respeito pela
humanidade comum Igual oportunidade de emprego
do que um método
que não levasse isto em conta.

Não há direito de redistribuir


Muitos igualitaristas acreditam que todos deveriam ter
oportunidades iguais, mesmo que não possa haver igual
Alguns filósofos afirmam dade de distribuição de riqueza. Uma área importante em
que não importa o quanto uma de tratamento
meta de redistribuição de renda possa parecer atraente, que há um grande volume de desigualdade
isso violaria os direitos dos indivíduos é a do emprego. Igualdade de oportunidades de emprego
de conservar sua
propriedade, e que essa violação é sempre moralmente não significa que todos deveriam ocupar à função que
er-
rada. Esses filósofos alegam desejassem, independente de suas capacidades: a ideia de
que direitos sempre vencem
que qualquer um deveria poder tornar-se
dentista ou cirur-
quaisquer outras considerações, como as ucilitaristas,
Robert Nozick (1938- ), em seu Anarquia, Estado gião, não importa o quanto sua coordenação morora seja
e uto-
pia (Rio de Janeiro: Zahar, 1991), toma esta posição, en- ruim, é claramente absurda, O que igualdade de oportuni-
fatizando um direito básico de se conservar a dades significa é igual oportunidade para os que são dota-
propriedade dos de técnicas e capacidades relevantes para executar o
legalmente adquirida.
Esses filósofos trabalho em questão. Isto ainda poderia ser encarado como
ficam com problema de responder quais
o
São exatamente esses direitos, e de onde se originam, Por uma forma de tratamento desigual, uma vez que algumas pes-

a
“direitos” eles não se referem direitos
legais, embora possam,
soas têm
a
sorte de nascer com maior potencial genérico do
levando van-
em uma sociedade justa, coin ir com direitos legais: direi- que outras, ou de ter recebido melhor educação,
tos legais, ou seja, estabelecidos pelo tagem em uma comperição aparentemente igual no mercado
governo ou por autori- de trabalho. Entretanto, a igualdade de oportunidades no
dade apropriada. Os direitos em
questão são direitos naturais é em geral advogada como apenas um de
que deveriam idealmente orientar a formação de leis. Alguns
emprego aspecto
um movimento em direção à maior igualdade de vários ti-
filósofos discordaram da ideia de que esses direitos naturais
pos, assim como igualdade de acesso educação.
à
poderiam existi Bentham foi
quem reconhecidamente re- A demanda por igualdade de oporcunidades no em-
jeitou anoção como um “rematado disparate”, No mínimo,
prego amplamente motivada pela oposição a uma muito
é
quem alega que o Estado não tem o direita de distribuir a difundida discriminação racial e sexual em algumas profis-
riqueza deveria ser capaz de explicar a fonte desses
supostos sóes, Os igualitaristas afirmam que qualquer pessoa com
direitos naturais de propriedade, em
vez de simplesmente qualificações relevantes deveria receber igual consideração

17 mm
(O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

na busca de emprego. afirmaria


iguém deveria ser discriminado graduação. Um defensor da discriminação inversa
À

Por motivos raciais ou sexuais, exceto naqueles raríssimos mude, deveríamos


que, em vez de esperar que essa situação
casos em que raça ou sexo podem ser considerados
uma qua-
imi
agir positivamente, e discriminar em
is
favor das mulheres q que
lificação relevante para executar o trabalho ss. Isso
se candidatassem a palestrantes universirár]
eres

em questão: por significa


exemplo, seria impossível para uma mulher ser mulher se candida-
if

uma doa- que se tanto um homem quanto uma


dora de esperma, fossem de capacidade apro-
portanto não transgrediria qualquer pri tassem a essa mesma posição e
cípio de igualdade de oportunidades rejeitar qualquer ximadamente igual, deveríamos escolher a mulher. Mas
a
candidato do sexo fem: ino a esse serviço. maioria dos defensores da discriminação inversa iria mais
Há igualitaristas que fazem mais exigir longe, afirmando que, mesmo que a mulher
fosse uma
que igualdade
de tratamento profissional: afirmam candidata mais fraca do que o homem, mas competente o
que é importante li-
yrar-se dos desequilíbrios existentes em determinadas bastante para cumprir os deveres associados à função, de-
pro-
fissões, por exemplo, a predominância de veríamos empregá-la preferencialmente a ele. À discrimi-
juízes homens
sobre juízas. Esse método de uma medida temporária, usada até que a
reparação dos desequilíbrios nação inversa é
conhecido como discriminação inversa. tradicionalmente ex-
porcentagem de membros do grupo
ێ

cluído reflita mais ou menos a porcentagem de membros


Discriminação inversa desse grupo na população como um todo. Em alguns paí-
ses, isso é ileg; im outros, é exigido por lei
Discriminação inversa, na prática, significa o recrutamen-
to de pessoas de grupos anteriormente
desprivilegiados, Críticas à discriminação inversa
Em outras palavras, a discriminação inversa
trata candi-
datos à emprego de forma favorecer Anti-igualitarista
desigual, ao grupos
contra os quais a discriminação costumava ser dirigida,
O objetivo é acelerar o Os métodos da discriminação inversa podem ser igua-
processo igualitário, não só aca-
bando com os desequilíbrios existentes dentro de litaristas, mas há quem os considere injustos. Para um
certas igualitarista convicto, um princípio de igual oportunidade
profissões, mas também proporcionando modelos de
portamento para os jovens de grupos tradicionalmente
com- no emprego significa que qualquer forma dediserimina-
O tínico
ção, por motivos não relevantes, deve ser evitada.
menos privilegiados, é a di-
Assim, por exemplo, na Grá-Bretanha há mais pretexto para se tratar candidatos de modo diferente
confe- ferença entre seus atributos. No entanto, roda a justifica-
Tencistas de filosofia homens
nas universidades, apesar do ção da discriminação inversa se apoia na pressuposição de
fato de que muitas mulheres estudam
esta matéria na pós-
que, na maioria dos empregos, sexo, preferências sexuais
e

17 TB
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

origem racial do didato são irrelevantes, Portanto, não


cs
contra os que conseguem empregos em grande parte por
importa o quar oo resultado final da discriminação inversa causa de seu sexo ou origem racial. Este é um problema par-
possa ser atraente, deveria ser inaceitável para alguém com- ticular quando empregadores escolhem candidatos visivel-
prometido com a igualdade de oportunidade como um mente incapazes de executar bem os seus deveres, o que não
princípio fundamental, só confirmaos piores preconceitos de seus empregadores e
Um defensor da discri iminação inversa poderia colegas, como também dá enscjo a que esses novos contra-
respon-
der que oatual estado de coisas é muito mais injusto tados sejam fracos modelos de desempenho para outros
para
membros de grupos desfavorecidos do que uma membros de seu grupo, À longo prazo, isso pode com-
situação
em que a discriminação inversa é amplamente praticada. prometer o movimento geral rumo a uma igualdade de
Alternativamente, em casos onde essa política extrema é acesso a empregos que se espera ser conseguida pela discri-
rebatida
inapropriada, as origens raciais ou o sexo do candidato
po- minação inversa. Entretanto, essa crítica pode ser
dem tornar-se qualificações relevantes
para executar o tra- garantindo-se que o padrão mínimo de capacidade deum
balho, uma vez que parte da função de alguém escolhido candidato que consegue o emprego devido à discrimina-
desse modo seria servir como um modelo de
desempenho ção inversa seja relativamente elevado,
para mostrar que o trabalho pode ser feito por membros
desse grupo. Igualdade política: democracia
Entretanto, é discutível se esta última situação é de todo.
de discriminação inversa: se esses atributos são
relevantes, Outra área em que aigualdade é buscada é a da participa-
então, levá-los em conta ao escolher pessoa! não é realmente ção política. À democracia costuma ser celebrada
como o
uma forma de discriminação, mas sim um ajuste do que método que permite a todos os cidadãos uma participação
efetiva na tomada de decisões políticas. Entretanto, a pala-
entendemos ser as
qualidades mais importantes para exe-
Duas
cutar um trabalho específico. vra “democracia” é usada de muitos modos diferentes,
visões de democracia potencialmente conflitantes se desta-
de que membros
Pode levar a ressentimentos cam. À primeira enfatiza a necessidade
da população tenham a oportunidade de participar do go-
Embora o objetivo da discriminação inversa
seja criar uma verno do Estado, geralmente através do voto, À segunda
sociedade em que o acesso a certas profissões seja mais
igua- enfatiza a necessidade de que um Estado democrático re-
litariamente distribuído, na prática isso pode ser motivo de
Alta os verdadeiros interesses do povo, mesmo que o pró-
ainda mais discriminação contra os
grupos desfavorecidos, prio povo possa ignorar onde residem seus verdadeiros
Os que não conseguem um determinado
emprego porque interesses. Aqui, vou me concentrar no primeiro tipo de
não vêm de grupo desfavorecido podem se ressentir democracia,
um

Ta
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

Na Grécia antiga, uma democracia era uma cidade- algo que exigiria tempo e um programa de educação. Seria
Estado governada pelo povo, em vez de por poucos (uma provavelmente esperar demais que todos os cidadãos esti-
oligarquia) ou por uma pessoa (uma monarquia). À anti- vessem a par das questões relevantes. As democracias de hoje
ga Atenas é considerada um modelo de democracia, em- são democracias representativas.
bora seja errado pensar nela como dirigida pelo povo como
um todo, já que mulheres, escravos e muitos outros não Democracia representativa
cidadãos que viviam na cidade-Estado não tinham
per-
missão de participar dela. Nenhum Estado democrático Em uma democracia representativa realizam-se eleições em
permite que todos os que vivem dentro de seu controle vo-
que os que votam escol sm seus representantes preferidos,
tem: isso incluiria inúmeras pessoas que seriam incapazes Esses representantes, en: io, tomam parte do processo
de entender o que estavam fazendo, tal como crianças cotidiano de tomada de decisões, processo que pode ser or-
pequenas doentes mentais graves. Entretanto, m
e os ganizado a partir de algum tipo de princípio democrático.
Estado que negasse participação política a uma grande Há diversos modos diferentes de se conduzir essas eleições;
proporção de seu povo não poderia merecer hoje o nome algumas exigem uma decisão majoritária; outras, como a
de democracia.
utilizada na Grá-Bretanha, operam um sistema de “o pri-
meiro a cruzar a linha”, o qual permite que representantes
Democracia direta eleitos
sejam que uma maioria do eleitorado não vote
ainda

neles, contanto que ninguém receba mais votos do que eles,


Os primeiros Estados democráticos foram democracias di-
Democracias representativas de fato operam um gover-
retas; isto é, os que eram aptos para votar discutiam
vam em cada de
e
vota-
eleger representantes.
no pelo povo de alguns modos, mas não de outros. Isso é
questão, em vez verdadeiro na medida em que os eleitos foram escolhidos pelo
Democracias diretas só são viáveis com um pequeno núme-
povo. Uma vez eleitos, entretanto, os representantes não se
ro de participantes, ou quando relativamente poucas deci- mantêm presos a questões particulares pelos desejos do povo.
sões têm de ser tomadas. As dificuldades práticas de um
Eleições frequentes são uma salvaguarda contra os abusos do
grande número de pessoas votando em uma ampla varie-
cargo: os
que não respeitam
represents ntes os descjos do elei-
dade de questões são imensas, embora isso seja imaginável
torado provavelmente não serão reeleitos.
em nossos tempos, com a comunicação eletrônica, Mas

mesmo que se conseguisse, para que essa democracia che-


Basse a decisões razoáveis, os eleitores precisariamter
uma
boa compreensão das questões em que estavam votando,

E
PoLÍTICA
O BÁSICO DA FILOSOFIA

fazendo. O
Críticas à democracia competência ou conhecimento do que estavam
deveria pilotar o navio.
capitão, e não os passageiros,
Uma ilusão Um argumento semelhante pode ser
usado para atacar

1ademocracia representativa, Muitos el tores não se encon-


Alguns teóricos, particularmente influenciados por Karl de um candidato
Marx (1818-1883), atacaram as formas de democracias tram em posição de avaliar a adequação
avaliar programas
em particular. Uma vez que não podem
esboçadas acima afirmando que elas proveem um senso me-
com base na apa-
tamente ilusório de participação na tomada política de políticos, escolhem seus representantes
é determi-
decisões. Alegam que o processo eleitoral não
rência, em seu belo sorriso. Ou então seu voto
garante go-
nado por preconceitos não examinados sobre partidos
emo pelo povo. Alguns eleitores podem não entender onde
políticos. Como resultado, muitos excelentes represen-
residem seus melhores interesses, ou podem ser tapeados
por muitos
oradores habilidosos. Além disso, a série de candidatos tantes potenciais permanecem inativos enquanto
apre- ina-
inadequados são escolhidos com base nas qualidades
Sentada na maioria das eleições não oferece aos votantes u:

Autêntica livre escolha,


É difícil dizer
por que esse tipo à dequadas que eles por acaso tenham,
invertidas e
democracia é tão louvado quando equivale escolher entre
No
entanto, estas evidências poderiam ser
a cidadãos
usadas como um argumento a fim de educar os
dois ou três candidatos com
programas políticos virtualmente democracia, em vez de abandonar a
para participação na
indistinguíveis. Isto, dizem os marxistas, é mera “democra-
democracia por completo. E, mesmo que isso não seja pos-
cia burguesa”, simplesmente refletindo relações de poder exis-
sível, ainda pode ser verdade que a democracia representa-
tentes, que por sua vez são resultado de relações econômicas.
tiva é, de todas disponíveis, a que tem maior
as alternativas
Enquanto essas relações de poder não tiverem sido reforma-
probabilidade de promover os interesses do povo.
das, dando uma chance à população, votar em eleições é uma.
perda de tempo. O paradoxo da democracia

Eleitores não são competentes Acredito que a pena capital é bárbara e nunca deveria ocor-
rer em um Estado civilizado. Se, em um
referendo sobre
Outros críticos da democracia, muito especialmente Platão, da pena capital, e,
esse tópico, eu voto contra a instauração
destacaram que um processo de decisão político adequado ela deveria ser ins-
no entanto, a decisão da maioria que
é

exige um grande volume de competência política, qualida- taurada, vejo-me diante de um paradoxo, Como alguém
deci-
de que muitos eleitores não têm, À democracia direta, en- dedicado aos princípios democráticos, acredito que a
tão, resultaria em um sistema político muito deficiente, uma são da maioria deveria ser decretada. Como
indivíduo de
Yez que o Estado estaria nas mãos de pessoas com pouca fortes convicções sobre o erro da pena capital, acredito que

fon o
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

nunca deveria ser permitida, Então, neste caso, parece que


eu tanto acredito que a pena capital deveria ocorrer (como
Se alguém
você não é
o pôs você
livre. Nem
na prisão e o está mantendo lá, então
é livre se quiser deixar
mas o país
resultado da decisão da maioria) quanto acredito que não de- teve o seu passaporte confiscado; nem se quiser viver aberta-
veria ocorrer (por minhas convicções pessoais), Mas essas duas mente em um relacionamento homossexual, mas será pro-
convicções são incompatíveis, Qualquer um que se dedique cessado se o fizer. Liberdade negativa é liberdade de obstáculo
à princípios democráticos provavelmente será confrontado
por um paradoxo semelhante quando se achar em minoria,
"ou restrição. Se ninguém
o está impedindo ativamente de
fazer alguma coisa, então nesse sentido você é livre,
Isto não derruba a noção de democracia, mas chama À maioria dos governos restringe à liberdade dos indi-
de fato atenção para à possibilidade de conflitos entre cons-
yíduos em certa medida, Sua justificativa geral para isso é a
ciência e decisão da maioria, algo que discuto adiante, na
necessidade de proteger todos os membros da sociedade,
seção sobre desobediência civil. Qualquer um que se dedi-
Se todo mundo estivesse em total liberdade para fazer o que
que a princípios democráticos terá de decidir o peso relati- bem quisesse, os mais fortes e impiedosos certamente pros-
vo dado a convicções individuais e a decisões coletivas.
perariam custa dos fracos, Entretanto, muitos filósofos
à
Também terão de deixar bem claro o que significa “dedica-
políticos liberais acreditam que deveria haver uma área de
ção a princípios democráticos”,
liberdade individual que fosse sacrossanta, a qual, contanto

Liberdade que não estivesse prejudicando qualquer outra pessoa, não


seria da conta do governo. Em seu Ensaio sobre a liberdade,
veemência que
Tal como “democracia”, “liberdade” é uma palavra que tem por exemplo, John Stuart Mill afirmou com
sido usada de muitos modos diferentes. No contexto políti- 105 indivíduos deveriam
ter
o direito de conduzir as próprias

co, há dois sentidos principais de liberdade: o negativo e o “experiências de vida” livres de interferência do Estado,
positivo, identificados e analisados por Isaiah Berlin (1909- contanto que, no processo, ninguém fosse prejudicado,
97) em um artigo famoso, “Dois Conceitos de Liberdade”.
Críticas à liberdade negativa
Liberdade negativa
O que considerar como prejuízo?
Uma definição de liberdade é a ausência de coerção. Coer-
forçam a agir de um modo
Na prática, pode ser difícil deci 10
que deve ser considera-
ção é quando outras pessoas o
do como prejuízo para outras pessoas, Por exemplo, isso in-
particular, ou o forçam a parar de agir de um modo parti-
cular. Se ninguém o está coagindo, você é livre neste senti- d ferir os senti nentos alheios? Caso inclua, então todos
ia

do negativo de liberdade. os tipos de “experiências de vida” terão de ser excluídos, uma

120 7
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

vez que ofendem um grande número de pessoas. Por exem- sóbrios, o alcoólatra lamenta esses momentos. Tenderíamos
plo, um vizinho pudico pode sentir-se ofendido por saber em vez disso a pensar no alcoólatra como
controlado pela
que o casal de vizinhos naturistas nunca está vestido, Ou, bebida: um escravo do impulso. Apesar da falta de restri-
ainda, o casal naturista pode senti -se ofendido
por saber que ção, pelo cômputo positivo o alcoólatra não autentica-
é
todos os vizinhos só andam vestidos, Tanto os naturistas
mente livre.
quanto seus vizinhos podem sentir-se magoados com os esti- Mesmo um propugnador da liberdade negativa pode-
los de vida dos outros. Mill não acreditava
que se sentir ria afirmar que os alcoólatras, como as crianças, deveriam
ofendido deveria ser considerado umprejuízo sério, mas
ser restringidos de algum modo, por não serem plenamen-
traçar limite entre ser ofendido e ser prejudicado nem sem-
o
te responsáveis por suas ações. Mas se alguém costuma to-
pre é fácil; por exemplo, muitas pessoas considerariam
mar decisões insensatas, desperdiça todos os seus talentos e
uma blasfêmia contra sua religião bem mais prejudicial a acordo com os princípios
elas do que estraga a própria vida, então, de
um dano físico. Baseados em que podemos
de Mill, temos o direito de reprecnder essa pessoa, mas nun-
dizer que estão erradas?
ca de coagi-la a um melhor modo de vida. Essa coação en-
Liberdade positiva volveria limitar sua liberdade negativa. Os que defendem
um princípio de liberdade positiva poderiam afirmar que
Alguns filósofos atacaram a ideia de que liberdade negati- essa pessoa não é verdadeiramente livre até realizar seu po-
va é o tipo de liberdade que deveríamos lutar para aumen- tencial e vencer suas tendências ao desvio, Disto até defen-
tar. Afirmam que a liberdade positiva é uma mera política der a coação, como um caminho para a autêntica liberdade,
muito mais importante. Liberdade positiva é liberdade de é um curto passo. Isaiah Berlin afirma que a concepção po-
exercer con role sobre sua própria vida. Você é livre no sen- sitiva de liberdade pode ser usada para permitir todos os
tido posi ivo se de fato exerce esse controle, e não é livre
se tipos de coação injusta: agentes do Estado podem forçá-la
não o exerce, ainda que não esteja de modo algum sendo de que
a se comportar de certos modos sob o pretexto es-
coagido. À maior parte dos defensores do conceito positi- tão ajudando a aumentar sua liberdade, De fato, Berlin
vo de liberdade acredita que a autêntica liberdade reside em destaca que historicamente o conceito positivo de liber-
algum tipo de autorrealização dos indivíduos, ou mesmo
dos Estados,
dadefoi usado de maneira abusiva deste modo. Não por
suas próprias escolhas de vida.
em
um erro intrínseco à concepção positiva; mas a história
Por exemplo, estaria exercendo sua iberdade o alcoó-
| demonstrou que trata-se de uma arma perigosa quando
latra que é levado, contra o seu melhor julgamento,
a
gas-
tar todo o seu dinheiro em uma orgia de bebedeira? Parece
usada de modo distorcido.

intuitivamente implausível, em particular se, em momentos

E 123
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

Privação da liberdade: castigo “olho por olho, dente por dente” (também conhecida
como lex talíonis, o retriburivismo exige uma reação exa-
O que pode justificar a privação da liberdade
como uma tamente proporcional ao crime cometido. Para alguns cri
de chantagem, é difícil ver em
forma de castigo? Em outras
ser apresentados para se
palavras, que
restringir pessoas,
motivos podem
tirando-lhes a
mes, o
como

poderia importar: não


essa reação
que

esperará do juiz que sentencie o


se
liberdade no sentido negativo? Como
na seção ante-
vimos
chantagista a passar seis meses sendo chantageado. Da
Tior, a noção de liberdade
positiva pode ser usada para jus- mesma maneira é difícil entender como uma pessoa asso-
tificar alguns modos de coação de
indivíduos: somente Jada pela pobreza e que rouba um relógio de ouro pode-
sendo protegidas contra si próprias essas é
pessoas podem al- ria ser castigada em exata proporção ao crime, Isto só
cançar verdadeira liberdade. um problema para o princípio de olho por olho; com
Filósofos tentaram justificar o castigo de indivíduos
pelo formas mais sofisticadas de retributivismo, o castigo não
Estado de quatro modos principais: retribuição,
freio, pro- precisa refletir o crime
teção para à sociedade e reabilitação da
pessoa castigada.
O primeiro modo é defendido a Críticas ao retributivismo
partirde uma posição
ontológica; os outros três, por motivos consequencialistas,
Apela a sentimentos inferiores
O castigo como retribuição
O retributivismo parece se nutrir de sentimentos de vingan-
básica ao se sentir
Em sua forma mais simples, o retributivismo é ça. Querer ir à desforra é a reação humana
o ponto de
vista sob o qual prejudicado. Oponentes do rerributivismo reconhecem como
quem intencionalmente viola a lei merece
0 castigo que recebe, independente de haver esse sentimento é difundido, mas afirmam que o castigo pelo
Estado deveria fundamentar-se em um princípio melhor do
consequência benéfica para os indiví
que “toma lá, dá cá” ou “bateu,
levou".
para a sociedade, Os que violam intencionalmente Entretanto, os que
a lei
defendem justificações híbridas para o castigo costumam
precisam pagar por isso. É evidente que haverá muitas pessoas
incluf-lo como um elemento em sua teoria,
incapazes de plena responsabilização por terem violado a
lei, e essas merecem
castigo mais brando, ou, em casos
Ignora efeitos
extremos, como de graves doenças mentais, tratamento.
Entretanto, em geral, de acordo com uma teoria retributi- AA
principal crítica ao retribut ivismo é que ele não dá qual-
vista, o castigo é justificado como a réplica sobre o cri 1oso ou
adequada aos quer atenção aos cfeitos do castigo
maus feitos, E ainda,
a severidade do castigo deveria refle.
tir a severidade do crime, Em sua forma
sobre a sociedade. Questões como coibição, reforma e pro-
mais simples de teção são irrelevantes. De acordo com os retributivistas,

RE
E
BÁSICO
POLÍTICA
O DA soFIA

criminosos merecem ser castigados, quer isso tenha um Críticas à coibição


efeito benéfico sobre eles ou não. Os
consequencialistas
Punição dos inocentes
poe 4 isso com base em que ação nenhuma pode:
ser
moralmente certa, a não ser que tenha consequências be- Uma crítica muito séria à teoria do castigo como
freio para
néficas, ao que os deontologistas poderiam replicar forma mais simples, po-
que, se &

à crime é que, pelo menos em sua


uma ação é moralmente justificada, la o é, não importam de inocentes de qual-
deria ser usada para justificar o castigo
são acusados. Em algumas situações,
quer crime pelo qual
as consequências.
acredita amplamente
castigar um bode expiatório que se
crime terá um efeito dissua-
Coibição ter cometido um determinado

EA
estar consideran-
sivo muito forte em outros que pudessem
em
Urma justificativa comum para o castigo é que ele de. do crimes semelhantes, principalmente se o público
sestimula a violação da lei: tanto pelo indivíduo geral permanece ignorante
de que a vítima do é
castigo na
que é cas- estaríamos jus-
tigado quanto por outros, que tomam conhecimento de que
*
verdade inocente, Nesses casos, parece que
nada
houve ão rificados em castigar inocentes — uma consequência
castigo, e que será aplicado também a eles caso teoria plausível de dissuasão
Se você sabe que provavelmente acabará atraente dessa teoria, Qualquer
Jem a lei.
na ca-
coibição pelo castigo terá de rebater esta
crítica,
e
deia, assim reza o argumento, é menos provável que
escolha uma carreira de ladrão do po-
que se achasse que Não funciona
deria se safar sem castigo. Isso justifica castigar até neo
mo os que não serão reabilitados pelo castigo; é mais Alguns críticos do castigo como freio para o crime argu-
Até mesmo
mentam isso implesmente não funciona.
importante que se veja que o castigo será o resultado do
que
de morte, não coibem
crime do que a mudança de comportamento do indiví- castigos extremos, como a pena
multas e
duo envolvido. Este tipo de justificativa concentra-se ex- assassinos em série; castigos mais brandos, como
coíbem ladrões,
clusivamente nas consequências do castigo. O sofrimento curtos períodos de prisão, não
À rela-
dos que perdem sua liberdade é contrabalançado Este tipo de crítica baseia-se em dados empíricos.
benefícios à sociedade,
Nopel

ção entre tipos de castigo e taxas


de criminalidade é extrema-
assim como há muitos fatores
mente difícil de se estabelecer,
dos dados, Entretanto,
que podem distorcer à interpretação
de modo conclusivo que o castigo
se pudesse ser demonstrado
efeito inibitório, isto seria um golpe
exerce pouco ou nenhum
do castigo.
arrasador para essa justificativa em particular

7
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

Proteção da sociedade Não funciona

Uma outra crítica a essa justificativa do castigo que pren-


é
Uma outra justificativa do castigo bascada em suas pretensas
der criminosos só protege a sociedade em um certo prazo e
consequências benéficas enfatiza a necessidade de proteger de fato resulta em uma sociedade
que, a longo prazo, isso
à sociedade de pessoas que têm tendência a violar a lei, Se crimi-
mais perigosa porque, enquanto estão na prisão, os
alguém invadiu uma casa, então pode muito bem invadir Então, a não ser
nosos ensinam uns aos outros seus crimes.
outra. Assim, o Estado se justifica por trancafiá-la, a fim a todo crime sério, é
que a prisão perpérua seja aplicada
de impedir a reincidência. Essa justificativa é mais fre- sociedade.
improvável que o aprisionamento proteja a
Se suas
quentemente usada noscaso de crimes violentos, como es- Mais uma vez, esse é um argumento empírico.
combinar
tupro ou assassinato, alegações são verdadeiras, há bons motivos para
tentativa de reformar
a proteção à sociedade com alguma
Críticas à proteção da sociedade os hábitos de criminosos.

Só é Reforma
relevante para alguns crimes
Alguns tipos de crime, como o estupro, podem voltar a ser adicional para castigar os que infringem
Uma justificativa
cometidos várias vezes pela mesma pessoa, Nesses casos, alei é a tendência do castigo a reformar os malfeitores,
Isto
restringir a liberdade do criminoso minimizará a possi é, o castigo serve para transformar-lhes o caráter,
de forma
bilidade de um novo crime, Entretanto, outros crimes são forem liber-
a que eles não cometam mais crimes quando
casos isolados. Por exemplo,uma esposa que guardou res- tados. Por esse ponto de vista, retirar a liberdade pode ser-
sentimento do marido a vida inteira pode finalmente ga- vir como uma forma de tratamento,
nhar coragem
para envenenar seu pote de cereais pela
manhã. Essa mulh er pode não representar quer amea-
Críticas à reforma
qu
a para mais ninguém. Cometeu um crime muito sério, mas
Só é relevante para alguns criminosos
não é provável que volte a cometer. No caso dessa mulher,
a proteção da sociedade não seria uma justificativa de reforma, Os que co-
para Alguns criminosos não precisam
vida não deve-
metem crimes como casos isolados em sua
castigá-la. Entretanto, na prática não há meio fácil de iden-
tificar os criminosos que não voltarão a delinquir justificativa, uma
riam ser castigados de acordo com esta
lei. E, tam-
vez que é improvável que voltem a infringir a
além
bém, há alguns criminosos que estão evidentemente

E)
O BÁSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA

da possibilidade de reforma: não haveria sentido assim por diante,


em castigar como fazer campanha, escrever cartas e
Mas há muitos casos em que esse protesto legal comple-
estes é
tampouco, supondo-se que pudessem ser identificados.
Isso em si mesmo não é uma crítica à teoria, apenas uma tamente inútil, Nessas circunstâncias
existe uma tradição
civil.
Yisão mais deralhada do que a teoria implica. Entretanto, de
infringência da lei, conhecida como desobediência
muita gente considerará essas implicações inaceitáveis, O ensejo para a desobediência civil surge quando as pessoas
leis ou
descobrem que estão lhes pedindo para obedecer a
Não funciona consideram injustas.
à políticas governamentais que
AA desobediência civil provocou mudanças importantes
Os castigos existentes raramente reformam criminosos.
nalei na política governamental. Um exemplo famoso o
é
Entretanto, nem todo$' os tipos de castigo estão fadados ao
movimento das sufftagettes na Grã-Bretanha, que conseguiu
fracasso. Esse tipo de
argumento empírico só seria fatal para feminino por meio de uma campanha
promover o sufrágio
a ideia do castigo como reforma se pudesse ser demonstra- incluiu manif
publicitária de desobediência civil que
do que essas tentativas de reforma jamais obtêm sucesso. tes em protestos acorrentando-se a
trilhos. Uma emancipa-
Não obstante, muito poucas justificativas concentram-se obtida em 1918, quando foi
ção limitada foi finalmente
exclusivamente nos aspecros de reforma do de trinta anos votassem
castigo. Às jus- permitido que mulheres com mais
tificativas mais plausíveis fazem da reforma um elemento devido ao impacto social
justificativo ao lado da coibição e da proteção da socieda-
e
em eleições, isso foi parcialmente
movimento
da Primeira Guerra Mundial. Não obstante, o
de. Essas justificativas híbridas são geralmente baseadas em das suffragettes teve um papel significativo a desempenhar na
mulheres de partici-
princípios morais consequencialistas, mudança da lei injusta que impedia as
democráticas.
par de eleições supostamente
Desobediência civil Mahatma Gandhi e Martin Luther King foram apai-
xonados defensores da desobediência civil. Gandhi exerceu
Até agora examinamos justificativas da Índia
para se castigar infra- imensa influência em promover a independência
tores da lei, Os motivos para castigá-los eram morais, Mas não violentos, o que eventual
por meio de protestos ilegais
desafio de
poderia em algum momento ser moralmente aceitável in- mente levou à retirada da soberania britânica; o
fringir a lei? Nesta seção examino um tipo particular de Martin Luther King ao preconceito racial por métodos se-
nfração da lei que é justificada
sobediência civil,
por motivos morais: a de- a
melhantes ajudou garantir direitos civis básicos para ne-
estados sulistas dos EUA.
gros norte-americanos nos
Algumas pessoas afirmam que a infração da lei nunca Outro exemplo de desobediência civil foi a recusa de
pode ser justificada: se você está insatisfeito com a lei, de- alguns norte-americanos a lutar na Guerra
do Vietnã, ape-
veria promover sua mudança por meio de canais legais, sar de convocados. Alguns o fizeram alegando que,
já que

130 E
O BÁSICO DA FILOSOFIA
POLÍTICA

qualquer forma de matar é moralmente errada,

É
seria mais achava o envolvimento norte-americano no Vietnã imoral
importante infringir a lei do ir à
que guerra e possivelmente estaria se engajando em desobediência civil

à
matar outros seres humanos. Outros não se
opunham to- O objetivo da desobediência civil em última análise, é
das as guerras, mas achavam
a
que guerra no Vietnã era in. mudar leis ou políticas governamentais particulares, e não
justa, colocando civis sob um
grave
risco sem nenhum bon destruir por completo primado da lei, Quem age dentro
o
motivo, À amplitude da oposição à
guerra no Vietnã acabou da tradição da desobediência civil em geral evita qualquer
Ievando à retirada dos Estados Unidos,
À infringência tipo de violência, não só porque isso pode solapar a causa,
pú-
Dblica da lei indubitavelmente alimentou essa oposição. estimulando a retaliação e intensificando o conflito, mas
A tradição da desobediência
é de infringência não
civil

basicamente porque sua justificativa para infringir a lei são


violenta pública da lei, com o intuito
de chamar atenção motivos morais, e amaioria dos p incípios morais só per-
para leis ou políticas governamentais injustas. Os
que agem mite que se cause dano a outras pessoas em situações extre-
dentro dessa tradição de desobediência civil
não infringem mas, como quando você é atacado e precisa se defender,
a lei simplesmente para lucro
pessoal; fazem-no a fim de Terroristas ou guer: tos pela liberdade (como você os
chamar atenção para uma lei injusta
ou uma política go- chama depende do grau de s ipatia que tem aos objetivos
Yernamental moralmente censurável, e fim de Como os
deles) usam atos de violência para fins políticos.
n

a maximizar
a publicidade para sua causa, Eis
por que
ocorre em público, preferivelmente na
isso habitualmente que se engajam em atos de desobediência civil, eles que-
presença de jorna- sem mudar o estado de coisas existentes, não por lucro
listas, fotógrafos e câmeras de
televisão. Por exemplo, um pessoal, mas pelo bem geral, tal como eles o veem. Eles di-
conscrito norte-americano que tenha ferem simplesmente nos métodos que estão dispostos a usar
jogado fora sua carta
de convocação, durante a Guerra do
Vietnã, e depois ocul- para provocar essa mudança.
tou-se do exército simplesmente
porque estava com medo
de lutar, e não
queria morrer, não estaria fazendo um
ato de Críticas à desobediência civil
desobediência civil. Seria um
ato de autopreservação, Se ele
agisse do mesmo modo, não
por medo quanto à sua segu- Antidemocrática
rança pessoal, mas por motivos morais, e no
entanto agisse
secretamente, não tornando seu caso público de Supondo-se que a desobediência civil ocorre em algum tipo
modo al- de democracia, ela pode parecer antidemocrática. Se uma
gum, isso ainda não se constituiria um ato de desobediência
civil. Por outro lado, maioria de representantes democraticamente eleitos vota que
um outro conscrito, que queimasse
Sua carta de convocação em «ma lei particular deveria ser criada, ou que uma determi
público, enquanto fosse filma- nada política governamental seja posta em prática, então in-
do para a televisão e fizesse
tima declaração sobre por
que fringir a lei como um protesto seria se opor ao espírito da

E) [E
POLÍTICA
OO
BÁSICO DA FILOSOFIA

democracia, sobretudo uma minoria muito reduzida de


se é Este é um “argumento da ladeira escorregadia”: se você
inada direção, não poderá in-
cidadãos que está envolvida no ato de desobediência civil. «dá um
passo emuma determ
fim obviamente desa-
Por certo, o descontentamento geral com políticas
governa- terromper um processo que terá um
cai quando dá
mentais é simplesmente o preço a pagar por viver em um gradável. Exatamente como quem desliza e
afirma-se que, ao
Estado democrático. A desobediência civil de uma minoria, am
passo em uma ladeira escorregadia,
da lei, não ha-
quando eficaz, parece dar aos poucos o poder de inverter à tornar aceitáveis tipos menores de infração
lei,
inião da maioria, E isto soa bastante antidemocrático. No veria como parar antes que ninguém mais respeitasse a
Entretanto, esse tipo de argumento pode fazer o resultado
entanto, se a desobediência civil não for eficaz, parece haver
final parecer inevitável, quando não é. Não há motivo para
pouco sentido em exercê-la, Então, por este ponto de vista,
civil solaparão o res-
a desobediência civil é ou antidemocrática, ou inútil, se acreditar que atos de desobediência
da ladeira, não
Por outro lado, é importante se dar conta de que atos peito pela lei ou, para continuar a metáfora
de desobediência civil visam a destacar decisões ou práticas há motivo para acreditar que não possamos, em determi-
nado ponto, cravar os calcanhares e dizer “até aqui e não
governamentais moralmente inaceitáveis, Por exemplo, o
mais além”. De faro, alguns defensores da desobediência
movimento pelos direitos civis nos EUA nos anos 1960,
civil afirmam que, longe de destruir o primado da
lei, o
com manifestações bem divulgadas em desafio à segrega-
respeito pela lei. Se
ção racial legalmente imposta, deu publicidade mundial ao que eles fazem indica um profundo
Estado por cha-
alguém está disposto a ser castigado pelo
tratamento injusto dos negros norte-americanos, Entendi-
da deste modo, a desobediência civil é uma técnica para mar atenção para o que acredita ser uma lei injusta, isso

mostra que essa pessoa está comprometida com a posição


consege ir que à maioria — ou seus representantes — re- leis justas de-
geral de que as leis deveriam ser justas, e que
considere sua posição sobre uma questão particular, em vez
veriam ser respeitadas, Isso é muito diferente de violar a
lei
de um modo antidemocrárico de modificar uma lei
ou uma.
por ganho pessoal.
pol
Conclusão
Perigo de queda na ilegalidade
Uma outra objeção à desobediência civil é que ela estimuta Neste capítulo, discuti um bom número de tópicos cen-
à infração da lei, o que poderia, a longo prazo, solapar o trais da filosofia política. Subjacente a todos esses tópicos
Estado,
poder do governo e destruir o primado da lei, um risco que encontra-se a questão da relação do indivíduo com o
do Estado sobre o
supera de longe quaisquer possíveis benefícios. Uma vez e, em particular, a fonte da autoridade
destruído o respeito pela lei, mesmo por motivos morais, indivíduo, questão abordada de modo privilegiado em boa
recomendadas a seguir.
o perigo é que se siga uma ilegalidade generalizada. parte das leituras adicionais

134] 5
POLÍTICA
O BÁSICO DA FILOSOFIA

tal
O próximo capítulo que se segue concentram-se em
e o da democracia com uma análise filosófica do conceito
nosso conhecimento e compreensão do mundo à nossa vol- como o utilizamos hoje.
ta, com particular atenção ao que podemos aprender atra- Oxford
Liberty, organizado por David Miller (Oxford:
vês de nossos sentidos,
University Press, Oxford Readings in Politics and Go-
vernment, 1991), inclui uma condensação do ensaio “Dois
Leituras adicionais Isaiah Berlin. On Libery, de
conceitos de liberdade”,* de
John Stuare Mill (Londres: Penguin Classics, 1982), é a ex-
Para os interessados na história da filosofia política, Great
posição clássica do liberalismo.
Political Thinkers, de Quentin Skinner, Richard Tuck,
Adam
William Thomas e Perer Singer (Oxford; Oxford University Civil Desobedience in Focus, organizado por Hugo
Press, 1992), proporciona uma boa introdução à obra de Bedau (Londres: Routlege, 1991), é uma interessante co-
from
Maquiavel, Hobbes, Mill e Marx. Recomendo também Jetânea de artigos sobre o tópico, incluindo “Lerter
O pensamento político de Platão à OTAN, organizado Birmingham City Jail”, de Martin Luther King,
por
Brian Redhead (Rio de Janeiro: Imago, 1989). maiores
Para os que descjam estudar filosofia política em
Political An Introduction, de Jonathan Wolff detalhes e em umnível mais adiantado, Filosofia política
Philosophy:
Paulo: Martins Fon-
(Oxford: Oxford University Press, 1996), é uma introdu- contemporânea, de Will Kymlicka (São
crítica das tendências
ção de amplo alcance a essa área da filosofia. tes, 2006), fornece uma avaliação
É bastante difícil em
principais na atual filosofia política.
Ética prática, de Peter Singer (São Paulo: Martins Fontes,
determinados pontos.
2002), um livro que recomendo como leitura adicional ao
capítulo 2, inclui uma discussão da igualdade, incluindo
igualdade no emprego, Singer também apresenta a argu-
mentação pela igualdade para os animais. The Scepeical
Feminist, de Janet Radcliffe Richards (Londres: Penguin,
1994), é uma análise filosófica clara e incisiva de questões
morais e políticas sobre as mulheres, incluindo a questão
da discriminação inversa no emprego.

Democracy, de Ross Harrison (Londres: Routledge, 1993),


éuma introdução lúcida a um dos conceitos centrais da filo- Paulo:
“Eme ensão foi publicado no Brasil no livro Ensaizssobre a humanidade (São
sofia política. Combina um levantamento crítico da história Companhia das Letsas, 2002). (N. da E)

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