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Revista do Laboratório de

Estudos da Violência da
Ano 2010 - Edição 5 – Número 05 Maio/2010 ISSN 1983-2192 UNESP-Marília

NOTAS PARA UMA


ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA
CASTRAÇÃO QUÍMICA

PONTELI, Nathália Nunesi


SANCHES JR, Carlos Albertoii

RESUMO
Este artigo inicia uma busca por subsídios teóricos capazes de amparar uma análise sociológica
sobre a chamada “castração química”. No Brasil, um Projeto de Lei tramita no Senado Federal
sugerindo a aplicação deste tipo de castração em criminosos diagnosticados como “pedófilos” –
o Projeto teve a aprovação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Através
das noções de biopolítica, vida nua e cultura do controle, este artigo traça considerações teóricas para
uma análise posterior, já ensaiando uma análise sobre o Projeto de Lei em questão.

Palavras-Chave: Castração Química; Punição; Biopolítica

i Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, UEL.


ii Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Marília. Mestrando em
Pensamento Social e Políticas Públicas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP,
Campus de Marília.

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Revista LEVS/Unesp-Marília Ano 2010 - Edição 5 – Número 05 Maio/2010

INTRODUÇÃO
Para os objetivos deste artigo, não

A castração química foi proposta pela


primeira vez no Brasil num projeto
de lei do ano de 20021 que visava
implementar a pena de castração “através da
utilização de recursos químicos” a
será necessário trabalhar com uma distinção
rígida entre o procedimento compulsório e o
voluntário.3 O que está em questão é o corpo
do criminoso sexual em meio aos novos paradigmas
biopolíticos e punitivos, ou ainda em meio ao
condenados por crimes sexuais. A proposta aspecto biopolítico dos novos paradigmas punitivos.
foi julgada então inconstitucional e Este trabalho pretende aproximar o
arquivada. Em setembro de 2007, uma tema da castração cirúrgica/química a um
proposta semelhante foi apresentada ao eixo teórico composto por três autores:
Senado Federal, sugerindo a castração Michel Foucault, Giorgio Agamben e David
química como pena imputada a autores de Garland. Não se trata de aplicar ou testar a
crimes contra a liberdade sexual praticados aplicabilidade de seus conceitos (afinal,
contra menores de 14 anos, desde que sejam nenhum deles teve a intenção de estabelecer
diagnosticados como pedófilos “conforme o modelos analíticos rígidos e inflexíveis), mas
Código Internacional de Doenças” de empreender uma análise sociológica
(BRASIL, SENADO FEDERAL, 2007, p. sobre a castração química (em especial o
1). O Projeto foi avaliado pela Comissão de Projeto de Lei 552/2007, que tramita no
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), que Senado brasileiro) que tenha como eixo estas
condicionou sua aprovação aos seguinites indispensáveis leituras. Este artigo se limita a
itens: submissão voluntária, facultativa, do oferecer notas gerais para uma análise
condenado ao procedimento; e diminuição posterior.
de um terço da pena para o criminoso que
optar pela castração química.
Compreende-se “castração química”
como a injeção de substâncias químicas 1. O CORPO DO CRIMINOSO
visando um maior e definitivo controle dos
impulsos sexuais e da libido daqueles que Admite-se que, compreendida a
cometeram crimes contra a liberdade sexual, castração química como mais um momento
buscando, portanto, constranger ou prevenir da ascensão de novos paradigmas punitivos,
sua reincidência. Este procedimeno se dá, como um fenômeno típico crise dos
em muitos países, pela injeção da Depo- modelos d epunição disciplinares, as
Provera, um dos nomes comerciais do acetato contribuições de Michel Foucault sejam
de medroxiprogesterona, hormônio feminino. A razoavelmente questionáveis. No entanto, a
despeito da aprovação da Comissão, a lista tentativa de se pensar a questão à luz das
de efeitos colaterais da Depo-Provera é considerações foucaultianas sobre disciplina e
extensa e pode levar o condenado à morte: biopolítica se mostra profícua - principalmente
inclui doenças cardiovasculares, osteoporose, porque o tema da castração química remete
ginecomastia, depressão, dores na cabeça,
náusea, alterações na fala, trombose,
infecções, aumento da incidência de câncer <http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/6748789.
stm> Acessado em 29/09/09
etc.2
3 Muitos fatores limitam o poder de decisão do
criminoso sexual. As condições das celas nas
1 Nove Estados norte-americanos utilizam castração penitenciárias brasileiras e o tratamento que é
química como pena para crimes sexuais. O primeiro dedicado especialmente aos autores deste tipo de
foi a Califórnia, em 1999. crime (tanto pelos agentes do Estado quanto
2 Ver, por exemplo. MURPHY, C. “Can drugs help sex pelos detentos), são alguns dos fatores que
offenders?” BBCNews, 13/jun/2007. Disponível acabam pressionando sua opção pela redução da
em: pena via submissão ao tratamento.

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quase imediatamente ao problema da na gestão da vida, consiste em “fazer viver e


inclusão da vida biológica nos cálculos do deixar morrer” (FOUCAULT, 2003).
poder e à comunicação entre o poder-saber Enquanto o poder monárquico restaurava
médico e o poder-saber que opera no seu brilho por meio de irrupções repentinas
âmbito punitivo – problemas tão caros ao e violentas de sua potência de morte, as
filósofo francês. modernas modalidades de poder se exercem,
A partir da publicação de Vigiar e respectivamente, por uma vigilância
Punir (1974), dos cursos no College de France constante e ininterrupta dos corpos
(1974-1984) e da História da Sexualidade individuais e por uma regulamentação
(1976), pode-se distinguir duas modalidades constante e ininterrupta da população: um
de poder propostas por Foucault: a disciplina poder que se exerce sobre o homem-corpo,
e a biopolítica. São técnicas de poder que individualizador, e um poder que se exerce
agem em níveis diferentes e, justamente por sobre o corpo-espécie, massificador.
isso, não são antitéticas, articulam-se De quaquer forma, a gestão da vida
mutuamente (FOUCAULT, 2001, p. 131; biológica é o que haveria de fundamental na
2005, p. 299). Ambas investem no corpo, mas política moderna. Um dos resultados disto e
com métodos e preocupações distintas, sem que a morte passa a ocupar um lugar
se restringirem a uma ou outra instituição sombrio nas estratégias políticas. Para um
em particular. A disciplina seria uma forma poder que tem justamente a vida como eixo
de exercício do poder baseada na norma, na e objeto de investimento, “a pena capital é,
administração do tempo e do espaço e na ao mesmo tempo, o limite, o escândalo e a
distribuição espacial dos corpos individuais; contradição” (FOUCAULT, 2005, p. 131). A
investe sobre o corpo com vistas a ajustá-lo, única maneira de manter a função política da
a integrá-lo em sistemas de controle eficazes morte numa sociedade de normalização seria
(FOUCAULT, 2003, p. 131); opera por meio “invocando nem tanto a enormidade do
de um conjunto de saberes que tem por crime quanto a monstruosidade do
função uma ortopedia moral. No âmbito da criminoso, sua incorrigibilidade e a
punição, tem-se a arquitetura de um espaço salvaguarda da sociedade. São mortos
punitivo baseado na obliteração do legitimamente aqueles que constituem uma
sofrimento corporal, na utilização produtiva espécie de perigo biológico para os outros”
dos corpos e na crença iluminista no ideal de (ibidem, p. 131).
reabilitação. “O castigo passou da arte das
sensações insuportáveis a uma economia dos Dentre as múltiplas possibilidades de
direitos suspensos” (FOUCAULT, 1999, p. análise do Projeto de Lei 552/2007 e do
14). A biopolítica, por sua vez, consiste na respectivo parecer da CCJC, este artigo
gestão do substrato biológico ao nível da sugere a releitura/utilização das
população; opera através de medições considerações foucaultianas supracitadas.
globais e estatísticas, de uma medicina social; Para Foucault, é a incorribilidade pensada
visa o controle dos eventos aleatórios em termos biológicos que permite o
ligados à instância biológica da sociedade ressurgimento da morte na sociedade de
enquanto massa – taxa de natalidade, normalização. Seria pertinente, portanto,
políticas de higiene pública, controle de começar indagando sobre as cooperações e
epidemias etc. Almeja a “segurança os desencontros entre estas duas esferas, a
[biológica] do conjunto em relação aos seus saber, entre as justificativas que os
perigos internos” (FOUCAULT, 2005, p. legisladores tecem ao redor da castração
297); tem como finalidade aumentar e química e as justificativas tecidas pelos
proteger a vida. Se a lógica do poder médicos. Seria importante iniciar com a
soberano consistia em “fazer morrer e questão: em quais condições, no século XX,
deixar viver”, o biopoder, concentrando-se os gestores da instância biológica dos corpos

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passaram/passam a dialogar com o campo utilizados como medidas punitivas. Há um


punitivo? Conforme se lê em Foucault, um exemplo que pode ilustrar os pontos de
dos pontos de articulação entre a biopolítica comunicabilidade/incomunicabilidade entre
e a punição se encontra nos extremos do tais esferas: as leis de esterilização
biopoder - quando a biopolítica atinge o estágio em compulsória que foram implementadas dos
que também a criminalidade passa a ser pensada em Estados Unidos até a metade do século XX.
termos biológicos (FOUCAULT, 2005, p. 308). Aqui se restringe ao modelo da Lei de
As penas correspondentes, em tal contexto, Esterilização elaborado por Harry Laughlin,
passam a intentar tão somente a eliminação apêndice de um minucioso relatório
de tais corpos, seu isolamento definitivo, sua (Eugenical Sterilization in United States, de
condenação à morte (cf. FOUCAULT, 2005, 1922). Laughlin oferece as definições para as
p. 301-8). Neste caso a punição abandona classes socialmente inadequdas (socially
seu objetivo disciplinar de adestramento e inadequate classes), as categorias de indivíduos
correção, recorrendo, a partir de então, a um que deveriam ser esterilizados. Em seu
“último recurso” para o qual caminha inventário, em meio a doentes mentais,
amparada pelo saber do médico. Grosso cegos, surdos, alcólatras, deficientes físicos,
modo, dir-se-ia que quando a criminalidade epilépticos, dependents (órfãos, sem-tetos etc),
se torna “questão de saúde”, o campo loucos e psicopatas, há uma última categoria:
punitivo abandona o corpo do criminoso, os “criminosos, incluindo os delinquentes e
confiando-o à tutela da regulamentação irregulares” (LAUGHLIN, 1922, p. 447,
biopolítica. Mas isto só teria se tornado tradução nossa). A presença de criminosos
possível a partir do momento em que as entre as categorias legalmente esterilizáveis
decisões da medicina passaram a ter impacto poderia permitir que a Eugenical Sterilization
nas decisões políticas (e conseqüentemente Law fosse aplicada com fins punitivos. Esta
jurídicas, punitivas). era uma das mais sérias preocupações do
Para Giorgio Agamben (2002), autor do projeto, que reitera inúmeras vezes
teórico político italiano que retoma com e sempre que possível que seus objetivos são
olhar crítico muitas das idéias de Foucault, a “puramente eugênicos, prevenir certa
constituição de um corpo biopolítico é o reserva humana degenerada da reprodução
fundamento de toda soberania. Entratanto da sua espécie. Absolutamente sem
(haveria consenso quanto a isto) é na elemento punitivo” (ibidem, p. 446 tradução
modernidade que o círculo em torno da vida nossa). O procedimento cirúrgico previsto
vai se fechar por completo. É pela tutela na lei só se aplicaria a criminosos (há ênfase
estatal do biológico que se pode nos criminosos sexuais) comprovadamente
compreender como, na modernidade, a motivados por predisposições biológicas (cf.
medicina esteve cada vez mais intimamente ibidem, p. 199).
vinculada e integrada às funções e aos É claro que, à primeira vista, a
órgãos do Estado (AGAMBEN, 2002, p. esterilização compulsória dos anos 1920-
152). É o momento em que são passadas ao 1940 tem muito pouco a ver com a castração
médico as prerrogativas soberanas de química dos anos 2000. Entretanto, ela ajuda
decisão sobre o que deve viver e o que deve a entender um certo descompasso que
morrer, sobre a vida que deve ser estimulada impera nas discussões sobre a última. Para o
e a vida que deve ser impedida de se médico, o procedimento cirúrgico/químico
perpetuar. seria uma “questão de saúde” e, portanto, de
“tratamento” – devendo por isso correr às
Cada um a seu modo, estes autores margens das instituições punitivas, com sua
ajudam a compreender como os dispositivos pauta baseada nos determinantes sociais da
jurídicos que permitem a aplicação de infração e na idéia de recuperabilidade do
medidas de saúde pública podem acabar criminoso. Se Laughlin reivindica o corpo do

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criminoso, ele o faz somente enquanto tal de Lei 552/2007, quando se refere aos
corpo é compreendido como organismo pedófilos como “indivíduos cuja formação
lesivo à saúde ameaçada da população. Vê-se psíquica apresenta tal deformidade a ponto
como, na biopolítica, tirar a vida e negar a de os impedirem de reabilitar-se perante a
vida não são punições propriamente ditas, mas sociedade, mesmo se submetidos aos mais
práticas de saúde pública, de preservação do modernos e refinados tratamentos clínicos”;
patrimônio biológico de um Estado – como e diz ser seu objetivo “debelar essa mazela
lembra Foucault na passagem supracitada, social em sua origem, com a máxima
somente assim se fez admissível a morte ou objetividade e o necessário vigor, em prol da
a exposição à morte numa sociedade de sociedade” (BRASIL, SENADO FEDRAL,
normalização. Dir-se-ia, resumidamente (e 2007, p. 2.).
assumindo com cautela os riscos e defeitos Seria necessária uma análise (como
de todo resumo), que para o biopoder iniciar se vê, bem além da alçada deste artigo) sobre
uma negociação com o campo punitivo o poder de decisão do criminoso sexual
acerca da tutela de um corpo, foi necessário sobre a castração - uma análise que
primeiro transformar o criminoso numa considerasse a dupla pressão sobre sua
espécie - e a punição em tratamento ou decisão: “Precisam ser tratados para o seu bem
erradicação. e para o bem das hipotéticas vítimas futuras”
Um caso emblemático é o próprio (BRASIL, CÂMARA DOS DEPUTADOS,
Parecer da CCJC favorável ao Projeto 2009, p. 10 grifos nossos).5 Tem-se, numa
552/2007. O que seus redatores entendem mesma lei, num diálogo incerto entre o
como “punição”, os próprios médicos por campo punitivo e o campo médico-
eles acionados compreendem como psiquiátrico, a intenção de defender a
“tratamento”. As justificativas da CCJC são sociedade do criminoso-espécie e a intenção
construídas sobre pesquisas médicas como, de defender o criminoso de si mesmo.
por exemplo, as realizadas pelo Ambulatório De volta às contribuições de Michel
de Transtornos da Sexualidade da Faculdade Foucault, seria possível analisar a
de Medicina do ABC, coordenadas pelo constituição do criminoso sexual como
psiquiatra Danilo Baltieri. No entanto, o “anormal” e como objeto de uma disputa
mesmo psiquiatra, em entrevista, critica a secular que acabou resultando no saber e no
castração como alternativa para redução de poder médico-legal. O anormal que se
pena. Suas palavras: “A questão não é de constituiu no século XIX é uma fusão de
punição, é de tratamento”.4 Como espécie, o três anormalidades até então razoavelmente
criminoso se torna incorrigível e separadas: o monstro humano, caricatura da
inassimilável pelos dispositivos disciplinares monstruosidade; o inassimilável pelos
- e a moderna trama de saberes que orienta a mecanismos disciplinares, capturado pelo
administração da pena, a ortopedia moral, é psiquiatra no isolamento de sua infância; e o
induzida a confiar o corpo do criminoso ao masturbador, figura desafiadora que ativará o
controle biopolítico. No caso das leis de dispositivo disciplinar no âmbito da família e
castração, não o simples controle clínico, da sexualidade (cf. FOUCAULT, 2001). “A
mas o controle pela eliminação, pela partir de então, ao médico – mestre da
exposição à possibilidade da morte. É esta a loucura e protetor da ordem social – caberia
linguagem usada no texto original do Projeto o poder, em maior ou menor grau de acordo
com a época e o contexto, sobre a vida [e a
4 BALTIERI, D. “Faculdade faz 'castração química' morte] do doente” (SILVA, 2008, p. 147).
em pedófilos”: depoiment: [16/10/2007], Jornal
O Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.gtpos.org.br/index.asp?Fuseaction 5 É a justificativa constante num Recurso referente
=Informacoes&ParentId=511&area=28&pub=1 a um projeto semelhante apresentado à Câmara
67>; Acessado em 26/set/2009. dos Deputados em abril de 2009

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Percebe-se que, no debate sobre a castração apresenta-se ao biopoder um novo terreno a


química, o diálogo entre o médico e o ser disputado. Os debates sobre o aborto, a
administrador da pena sobre o criminoso eutanásia, a eugenia, a engenharia genética e
sexual - ou melhor, a verdadeira disputa entre a castração são debates primordialmente
médico e administrador da pena pelo corpo biopolíticos: eles negociam a cisão entre a zoé e
do criminoso sexual – chega a produzir uma a bíos; e se pode dizer, numa perspectiva
imagem do criminoso que tange levemente foucaultiana, que não negociam senão com
estas três figuras de anormalidade. o(s) poder(es) – do médico, do Estado, dos
laboratórios etc.
A política contemporânea, segundo
2. A VIDA NUA DO CRIMINOSO Agamben, tem como pragmática a condução
SEXUAL de determinados indivíduos à situação de
vida nua, ou seja, a uma zona em que tais
A articulação entre a biopolítica de corpos são privados de sua substância
Michel Foucault e as análises sobre o política e despidos da proteção dos direitos;
totalitarismo por Hannah Arendt é um dos a uma zona no interior da qual sua execução
caminhos traçados por Giorgio Agamben não constitui crime – torna-se “vida
(2007) em sua análise genealógica sobre o matável”, “vida indigna de ser vivida”. O
homo sacer. Abarcando um longo período do soberano, tradicionalmente concebido como
pensamento filosófico-político ocidental, o “aquele que decide sobre o estado de
autor inicia distinguindo os dois termos exceção”, teria esse poder de exclusão
gregos utilizados para o que hoje chamamos inclusiva, a partir do qual ele exclui o político do
“vida”: “zoé, que exprime o simples fato de corpo e inclui o corpo em sua política (cf.
viver comum a todos os seres vivos (animais, AGAMBEN, 2002). No século XX (e início
homens, deuses) e bíos, que indicava a forma do XXI), o dispositivo jurídico do estado de
ou a maneira de viver própria de um exceção passa a ser incessantemente ativado,
indivíduo ou de um grupo” (AGAMBEN, a ponto de, como escreveu Walter Benjamin,
2002, p. 09). A zoé, vida natural, meramente o estado de exceção tornar-se a regra. O
biológica, habita fora da prática política. Já a interminável estado de emergência, “ainda
bíos é como Aristóteles, por exemplo, referia- que, eventualmente, não declarado em seu
se à vida na cidade, ao viver político dos sentido técnico [...] tornou-se uma das
homens livres; vida qualificada. Seguindo a práticas essenciais dos Estados
sugestão de Foucault, de que a inclusão da contemporâneos, inclusive dos chamados
vida biológica no jogo e nos cálculos do democráticos” (AGAMBEN, 2007, p. 13).
poder seria sido um evento decisivo na O diagnóstico de Giorgio Agamben
modernidade e a de Hannah Arendt, de que pode trazer luz ao atual desencontro entre
a decadência do espaço público na sociedade os chamados ideais humanitários e a pauta
moderna remontaria ao primado da vida política (tema tão caro aos atuais debates
natural sobre a ação política (ARENDT, sobre o teor violento de algumas penas). A
1989), Giorgio Agamben demonstra como a incomunicabilidade entre ambos já está mais
zoé foi gradativamente introduzida nas ou menos implícita na própria concepção
estratégias políticas. Como se adiantou moderna de direitos do homem, de caráter
acima, o médico passa a ser revestido transnacional, que se apresentam descolados
daquele velho direito de decisão sobre a vida do direito do cidadão, de caráter nacional: “A
e a morte: é a autoridade que define “vida” e separação entre humanitário e político, que
“morte” (cf. AGAMBEN, 2002). A cada estamos hoje vivendo, é a fase extrema do
nova possibilidade técnica de estender a vida deslocamento entre direitos do homem e os
(ou a sobrevida) sobre o corpo inconsciente, direitos do cidadão” (AGAMBEN, 2002, p.
a cada novo indício de vida no escuro, 140). O sintomático é que, atualmente,

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quando se fala em pauta política (estratégias


de combate à violência, por exemplo), todo Estudos com o Depo-Provera
o clamor pelos direitos humanos cai por (acetato de medroxyprogesterona),
terra. que é a versão sintética da
A associação entre o homo sacer e a progesterona, o hormônio
condição dos criminosos sexuais foi feminino pró-gestação,
demonstram que há uma redução
explorada por Dale Spencer num recente do apetite sexual compulsivo dos
artigo intitulado Sex Offender as Homo Sacer sex offenders e que seus efeitos
(2009). Vê-se por meio dele como o debate colaterais compensam-se pelos
sobre a biopolítica se cruza com os debates benefícios (HEIDE, 2004).6
sobre segurança pública. Da castração
química ao monitoramento à distância e ao
naming and shaming (publicação de uma 3. A CASTRAÇÃO EM MEIO AOS
espécie de “mural dos pedófilos”), o NOVOS PARADIGMAS PUNITIVOS
criminoso sexual condenado não estaria
senão num campo – conceito chave em
Agamben, comprendido por Spencer como “Entre o controle e a prisão, melhor
“lawless space” [espaço sem lei] (cf. o controle”.7 A fala é do urologista Miguel
SPENCER, 2009). Srougi, consultado pelo jornal O Estado de S.
O teor biopolítico/tanatopolítico do Paulo sobre o controle hormonal do
Projeto de Lei 552/2007 se mostra, por “impulso criminoso dos pedófilos”. É o
exemplo, na analogia com que o Parecer da leitmotiv da chamada sociedade de controle.
CCJC justifica a suspensão dos direitos Na crise do projeto disciplinar, Gilles
individuais do preso, invocando o “princípio Deleuze já aponta a emergência de uma
da convivência das liberdades” como “sociedade de controle”. Para ele, Foucault
determinante para a aplicação da pena de teria analisado adequadamente o “projeto
castração química (BRASIL, SENADO ideal dos meios de confinamento”, embora
FEDERAL, 2009b, p. 4). Na analogia da soubesse da brevidade desse sistema, que
CCJC, se a saúde e a segurança da população logo sucumbiria diante das “novas forças
são o valor máximo do Estado, qualquer que se instalavam lentamente e que se
direito individual pode ser sacrificado em precipitariam depois da Segunda Guerra
seu nome – mesmo que implique numa total mundial” (DELEUZE, 1992, p. 220).
inobservância dos direitos elencados no Deleuze observa a “crise das instituições
artigo 5º da Constituição Federal: que tal [disciplinares], isto é, a implantação
artigo possua status de cláusula pétrea, progressiva e dispersa de um novo regime de
sendo portanto imutável enquanto perdurar dominação” (ibidem, p. 226). Uma nova
a vigência constitucional, e ainda assim seja cultura de vigilância e de punição vem à luz,
tão facilmente relativizado, não é senão baseada na colonização do futuro pelas
sintoma de um estado de exceção que noções de tecnologia do risco, na teia
penetra no pensamento punitivo.
Em resumo, a matabilidade do 6 HEIDE, Márcio Pecego. Castração química para
criminoso sexual passa pelos cálculos frios autores de crimes sexuais e o caso brasileiro . Jus
Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio
da mesa de negociação entre o médico e o
2007. Disponível em:
administrador da pena. Iinserido no campo <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9
como pura vida desqualificada, o corpo do 823>. Acesso em: 28 set. 2009.
criminoso está aberto para qualquer 7 “Ambulatório do ABC realiza 'castração química' de
intervenção – inclusive a exposição à morte pedófilos', O Estado de S. Paulo. Disponível em:
<http://www.gtpos.org.br/index.asp?Fuseaction
sob a justificativa imbatível da defesa da =Informacoes&ParentId=511&area=28&pub=1
sociedade. 67>; Acessado em 25/set/2009.

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eletrônica dos controles virtuais e na “crise reincidência justifica tudo. Tais índices são
dos sistemas tradicionais de controle social comumente usados para atestar a ineficiência
[...] fundamentados nos direitos e nas crônica e a inoperância do sistema penal
liberdades” (cf. SOUZA, 2006, pp. 241-59). baseado nos direitos individuais.
Dentre os autores que investigam a
emergência de novos paradigmas punitivos, 3.2 O caráter retributivo e ostensivo
encontra-se David Garland. Em A Cultura do da pena, que havia abandonado o discurso
Controle (2001), Garland procura demonstrar penal, parece hoje irromper das próprias
como e quais mudanças fundamentais teriam instituições e agentes públicos. Garland
ocorrido no campo criminal/punitivo a aponta o “ressurgimento da retribuição
partir dos anos 1970. O regime punitivo 'justa'” no campo punitivo atual. A ascensão
previdencialista, ao que Garland se refere deste discurso explicitamente retributivo
como Penal Welfarism, teria se deteriorado “incentivou os políticos a manifestarem mais
drasticamente, a ponto de hoje predominar abertamente seus sentimentos punitivos e a
o seu reverso (GARLAND, 2008). No que aprovarem leis draconianas” (GARLAND,
toca mais diretamente à reflexão proposta 2008, p. 52). Muitos discursos atuais
neste artigo (e já lançando associações com favoráveis à ação repressiva ilimitada da
o problema proposto) podem-se destacar as polícia procuram se justificar com o
seguintes mudanças apontadas por Garland: argumento de que o mero encarceramento não é
tão eficiente como uma boa dose de dor imposta ao
3.1 A estratégia previdenciária e criminoso na mesma proporção da dor por ele
correcional do sistema penal é desacreditada. causada.
O ideal da ortopedia social - transformar, No parecer da CCJC sobre o projeto
reeducar – cede lugar ao ideal do controle do de lei 552/2007, o aspecto retributivo da
delinquente irrecuperável. Em todo caso, “uma castração química para criminosos sexuais
reduzida ênfase na reabilitação como ganha centralidade quando a proposta é
objetivo das instituições penais” (ibidem, p. submetida à chamada “análise da
50). O ocaso da reabilitação, como o chama proporcionalidade”. O parecer recomenda
Garland, é sintomático: por um século a que os traumas de ambos, vítimas e
reabilitação foi a “mola mestra”, o “suporte ofensores, sejam medidos e comparados por
estrutural central do sistema”, um dos meio da neurofisiologia; pressupõe que dois
valores máximos sobre o qual a pena inventários de traumas sejam postos lado a
moderna foi erigida (ibidem, p. 51). A prisão lado, sem mencionar que, nos casos de
era um local privilegiado deste investimento castração química, algumas complicações
correcional do poder. Com a alteração ou podem levar o criminoso-paciente à morte,
esvaziamento de seu sentido original, os conforme mencionado acima. Ao final da
próprios operadores do sistema penal explanação, o Parecer da CCJC afirma em
passam a reservar a essa instituição um novo seu texto “que o maior ônus é suportado
lugar na história – a vala dos erros pela vítima da agressão sexual” o que
históricos. forçosamente leva à conclusão “que a
O ideal de reabilitação é esmagado medida atende ao critério da proporcionalidade
por dados sobre a reincidência. O Parecer da estrita” (BRASIL, SENADO FEDERAL,
CCJC, por exemplo, destaca a taxa de 2009b, p. 13 grifos nossos).
reincidência de criminosos sexuais nos
Estados Unidos, que chega a 75% entre os 3.3 O horror dos crimes hediondos
criminosos que cumprem pena na prisão e tende a agir decididamente sobre as medidas
apenas 2% entre aqueles submetidos ao de segurança pública. Declarar-se contra os
tratamento hormonal (BRASIL, SENADO excessos da polícia é declarar-se contra os direitos
FEDERAL, 2009b, p. 9). Na lógica atual, a da população. Segundo Garland, houve uma

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redramatização do crime. A figura do


criminoso, antes o sujeito necessitado, 4. Notas para uma análise do Projeto de
desfavorecido e que fora abandonado pelo Lei 552/2007
Estado – que, por sua vez, havia deixado de
prover as condições básicas para o seu Este artigo pretendeu uma
desenvolvimento -, hoje se assemelha à aproximação entre as contribuições teóricas
figura do predador perigoso e do incurável de Michel Foucault, Giorgio Agamben,
reincidente (GARLAND, 2008, p. 54). O David Garland e o tema da castração
direcionamento das políticas de segurança química. Confrontando-a aos materiais de
e/ou punição obedece hoje ao clamor imprensa, ao Projeto de Lei 552/2007 e ao
popular por uma justiça Parecer da Comissão de Constituição, Justiça e
expressiva/retributiva, na qual é Cidadania do Senado, e somando-a às
absolutamente inconcebível que um contribuições de outros autores, destacam-se
criminoso hediondo seja contemplado por as seguintes notas ou sugestões:
direitos da qual ela, a população, não usufrui
efetivamente (v. também CALDEIRA, 4.1 A negociação entre o administrador da
2001). pena e o médico. Diante da reincidência do
“monstro irrecuperável”, as instituições
3.4 Punir era interesse impessoal do originalmente comprometidas com ideais
Estado (na figura do juiz, representante de disciplinares passam a dialogar mais
uma justiça fria). O drama da vítima não cordialmente com uma modalidade de poder
ocupava centralidade nos tribunais. Hoje, “o biologizante, historicamente comprometida
novo imperativo político é no sentido de que com a defesa biológica da população. O
as vitimas devem ser protegidas, seus meticuloso cálculo que predominava na
clamores devem ser ouvidos, sua memória disposição de uma pena parece ceder aos
deve ser honrada, sua raiva deve ser imperativos biopolíticos da “obsessão
exprimida, seus medos devem ser tratados” securitária”. O resultado é que um projeto
(GARLAND, 2008, p. 55). Cria-se um jogo de lei consegue ser elaborado, avaliado e
no qual ou se está do lado da vítima ou se aprovado sem que se defina
está do lado do criminoso. Atentar aos satisfatoriamente se se trata de punição ou
direitos deste implica necessariamente num tratamento, de reinserção ou de controle. A
rombo na satisfação ou na memória da esfera jurídica e a esfera médica disputam o
vítima. Para a população, a imagem projetada da corpo do criminoso, e no fim se amparam
vítima representa o coletivo - “poderia ter sido mutuamente em defesa de um projeto de lei,
você” (ibidem, 56). Comumente, esta porém mantendo-o de pé não por um
imagem projetada sustenta punições diálogo, mas por dois monólogos.
extralegais como torturas, maus-tratos, e
execuções; endossa a pressão sobre o 4.2 Os operadores do sistema penal (no
agravamento das penas; ou ainda ajudam a caso, incluem-se psiquiatras e todo o corpo
dar um novo sentido à prisão: uma pena de de médicos acionados pelo campo punitivo)
privação da liberdade só é considerada justa passam a confundir “reinserção” e “controle”. A
pela vítima se for acompanhada da certeza reinserção tradicional tinha como técnica a
de que seu predador irá sofrer “lá dentro”. disciplina e como objetivo tornar o corpo
As estatísticas de reincidência só dividem o mais produtivo, estimulando nele as
primeiro plano dos projetos de lei de potencialidades desejadas, a fim de devolver
castração com a figura da vítima: fazer à sociedade um indivíduo apto ao “convívio
justiça é satisfazer seus traumas. social pleno”. Vê-se na castração quimica o
oposto deste mecanismo. Ela amputa as
potencialidades do corpo (e não somente

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Revista LEVS/Unesp-Marília Ano 2010 - Edição 5 – Número 05 Maio/2010

quanto à sexualidade, vista a extensa lista de completamente cabível neste contexto.


efeitos colaterais), como somente as penas Claro, ela vem de um movimento
clássicas o faziam. Os corpos dóceis, cuja transnacional de mudanças de paradigmas
produção Foucault se refere como a punitivos, mas não é gratuito o fato de em
finalidade do poder disciplinar, nada ou 2002, apenas três anos após ganhar terreno
quase nada têm a ver com o sujeito castrado. nos Estados Unidos, ela já ter sido
relativamente bem recebida pelos
A terapêutica química justamente parlamentares brasileiros.
vem para tornar possível o retorno A retribuição efetiva seria uma
do pedófilo ao ambiente social, resposta ao clamor da população. Em
para que ele possa, superada sua veículos de notícia abertos para comentários
patologia biológica, retomar suas de leitores (sites, blogs etc), quando o tema é
ações sociais (de interesse geral),
sem constituir um perigo para os
castração química, um sem-número de
outros. (BRASIL, SENADO comentários surgem exortando penas ainda
FEDERAL, 2009b, p. 7) mais dolorosas. O tom emocional e
populista sempre acompanha leis
Ao se referir ao controle em termos semelhantes. “É preciso que se tomem
de reinserção, ignora-se a perda da medidas drásticas e urgentes também no
substância cívica e política do sujeito Brasil, pois a sociedade não pode mais ficar
“reinserido”. O criminoso capturado, já exposta a essas atrocidades, assistindo à
despido de sua vida qualificada, de sua bíos, violência sexual cometida contra mulheres,
sobe à mesa de cirurgia ou ao ambulatório crianças e adolescentes de forma impune” –
para de lá descer muito menos do que era são os dizeres da primeira proposta de lei de
quando lá o fizeram subir: zoé, vida castração química no Brasil (7.021/2002).8
desqualificada, indeterminada, meramente "O objetivo do projeto é salvar crianças no
biológica. O que a sociedade tem de volta futuro" – são os dizeres do autor da segunda
não é um homem melhor, é um corpo pela proposta, em entrevista.9 Vem unir-se um
metade. Ele está apenas virtualmente tom dramático ao dispositivo do risco: “Eu
reinserido. faço isso ou eles vão fazer sexo com
crianças”, é a fala do psiquiatra.10
4.3 Não há justiça sem retribuição efetiva.
Como Teresa Caldeira sugere, nos países de
tradição colonial o corpo é sempre o locus da
punição. Toda dominação deixa marcas no 8 HEIDE, Márcio Pecego. Castração química para
corpo e se expressa por alguma dose de autores de crimes sexuais e o caso brasileiro . Jus
sofrimento corporal (CALDEIRA, 2000, pp. Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio
2007. Disponível em:
370-4). É atribuído à dor física um efeito <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9
pedagógico – bate-se na criança para corrigí- 823>. Acesso em: 28 set. 2009.
la. A adesão popular a leis e propostas de lei 9 CAMATA, G. “Para presidente da CPI da
como a de pena de morte, justamente no pedofilia, castração favorece criminoso”.
período de redemocratização do país, sepoiment:[20/09/2009], Agênca Brasil,
Disponível em:
demonstra o que a autora chama democracia <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/09/
disjuntiva do Brasil, na qual processos de 20/ult5772u5420.jhtm> Acessado em
efetivação de direitos individuais convivem 28/09/2009.
com propostas igualmente amparadas de 10 BALTIERI, D. “Faculdade faz 'castração química'
redução destes mesmos direitos em pedófilos”: depoiment: [16/10/2007], Jornal
O Estado de São Paulo. Disponível em:
(CALDEIRA, 2000, p. 370). A aprovação <http://www.gtpos.org.br/index.asp?Fuseaction
popular à castração química é =Informacoes&ParentId=511&area=28&pub=1
67>; Acessado em 26/set/2009.

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ISSN 1983-2182 Revista LEVS/Unesp-Marília

4.4 Ao modificar seu habitus, o campo intervenção cirúrgica de efeitos


punitivo promove novas leituras da própria história permanentes para a contenção da
do direito. Autores e documentos canônicos libido não se submeterá ao
que ajudaram a erigir o previdencialismo tratamento químico de que trata o
penal são evocados nas justificativas do § 1º, e poderá, a critério do juiz, ter
extinta a sua punibilidade
Parecer da CCJC. De Locke a Rousseau, a (BRASIL, SENADO FEDERAL,
teoria do contrato social, que foi a base de 2009a, p. 15).
um sistema penal baseado na valorização
dos direitos individuais, é recontada, em tal Curiosamente, a sugestão da
documento, como uma vontade geral que castração cirúrgica foi suprimida no segundo
permite e/ou exige a intervenção enérgica Parecer (07/07/2009).
do Estado (v. BRASIL, SENADO
FEDERAL, 2009a; 2009b). A prisão passa a 4.6 O estado de exceção é ativado
ser erro histórico. silenciosamente. O parecer da CCJC inicia com
os “direitos que o indivíduo pode arguir
4.5 A eficiência é o valor maior. Zigmunt contra o Estado”, tais como o respeito à
Bauman nos lembra das características que o integridade física do preso e a proibição das
Holocausto teve (e tem) em comum com penas cruéis. Ao fim de doze páginas vem a
todo o processo civilizador da modernidade: conclusão: “Diante do exposto, somos pela
em especial as tendências a “despojar a aprovação do Projeto de Lei do Senado n°
avaliação moral do uso e exibição da 552, de 2007” (BRASIL, SENADO
violência” e a “subordinar o uso da violência FEDERAL, 2007, p. 15). Entre a
a cálculos racionais” (BAUMAN, 2001, p. enumeração dos direitos individuais e a
48). As avaliações éticas sobre o uso da conclusão favorável ao projeto de lei, todo
violência do Estado cedem todo o espaço um caminho é trilhado por fora da
para cálculos estatísticos e medições Constituição, assentado por dados de
neurofisiológicas. Mesmo as poucas críticas reincidência, traumas da vitima e análises de
às leis de castração química relevadas pelos proporcionalidade. Os direitos fundamentais
documentos e materiais da imprensa se e mesmo as contradições inerentes à
restringem a julgar a tecnicidade da lei, sua proposta são ditos “obstáculos” (Ibidem,
inaplicabilidade, sua possível ineficácia em p.4) e até os próprios termos da
controlar os impulsos criminosos do Constituição são postos sob suspeita: “o que
pedófilo e do estuprador. As avaliações do é pena cruel?” (Ibidem, p. 4).
Parecer da CCJC, por exemplo, avaliam as Na perspectiva dos autores
alternativas unicamente pela sua eficácia: abordados, a aprovação do Projeto de Lei
552/2007 pela CCJC pode ajudar a
Até o momento, parece que a única compreender de que forma o Estado pode
resposta totalmente eficaz e
irreversível, segundo as pesquisas,
eliminar uma vida sem cometer um crime. O
seria a remoção cirúrgica dos que confirma o diagnóstico de Giorgio
testículos (BRASIL, SENADO Agamben (2007) de que estado de exceção
FEDERAL, 2009b, p. 9) se tornou uma mera técnica de governo – mais
uma válvula para o gerenciamento da vida
O primeiro Parecer (20/04/2009) desqualificada. O que atesta, também, a
chega mesmo sugerir um adendo ao projeto relativa insuficiência das análises que se
de lei original: restringem ao âmbito jurídico (debates sobre
“constitucionalidade”) de uma questão
§ 2º. O condenado que predominantemente política – questão de
voluntariamente se submeter a escolhas, estratégias e lutas marcadamente

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Revista LEVS/Unesp-Marília Ano 2010 - Edição 5 – Número 05 Maio/2010

(bio)políticas; questão de qualificação ou


desqualificação da vida.
BRASIL, SENADO FEDERAL. Parecer da
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