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DIÁLOGOS INTERCULTURAIS,

CURRÍCULO E EDUCAÇÃO
DIÁLOGOS INTERCULTURAIS,
CURRÍCULO E EDUCAÇÃO
EXPERIÊNCIAS E PESQUISAS ANTIRRACISTAS
COM CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Organizadores:
Augusto Cesar Gonçalves e Lima
Luiz Fernandes de Oliveira
Mônica Regina Ferreira Lins

Danielle Bastos Lopes Márcia Marin Vianna


Eliezer Batista de Oliveira Margarida dos Santos
Flávia Barbeito Moreno Maria Cláudia Reis
Gloria Maria Paes Brito Miranda Mônica Andréa Oliveira Almeida
Hilda da Silva Gomes Olga Guimarães Germano
Jaqueline Luzia da Silva Rita de Cássia Prazeres Frangella
Kelly Russo Stella Maris Moura de Macedo
Luiz Fernandes de Oliveira

Rio de Janeiro
2009
Copyright © 2009 by: Augusto Cesar Gonçalves e Lima, Luiz Fernandes de Oliveira, Mônica
Regina Ferreira Lins, Danielle Bastos Lopes, Eliezer Batista de Oliveira, Flávia Barbeito
Moreno, Gloria Maria Paes Brito Miranda, Hilda da Silva Gomes, Jaqueline Luzia da Silva,
Kelly Russo, Luiz Fernandes de Oliveira, Márcia Marin Vianna, Margarida dos Santos, Maria
Cláudia Reis, Mônica Andréa Oliveira Almeida, Olga Guimarães Germano, Rita de Cássia
Prazeres Frangella, Stella Maris Moura de Macedo

Todos os direitos desta edição reservados à Quartet Editora & Comunicação Ltda.

É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de partes do mesmo,


sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da Editora.

Este livro segue as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Capa: Aldemar Pereira

Diagramação: Eduardo Pereira

Revisão: Alvanísio Damasceno

D527

Diálogos interculturais, currículo e educação : experiências e pesquisas antirracistas com crianças


na educação básica / organizadores Augusto César Gomes e Lima, Luiz Fernandes de
Oliveira, Mônica Regina Ferreira Lins. - Rio de Janeiro : Quartet : FAPERJ, 2009.

ISBN 978-85-7812-020-7

1. Integração na educação - Rio de Janeiro (Estado). 2. Educação multicultural - Rio de Janeiro


(Estado). 3. Ensino fundamental - Rio de Janeiro (Estado). I. Lima, Augusto César Gomes e. II.
Oliveira, Luiz Fernandes de. III. Lins, Mônica Regina Ferreira. IV. Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro. V. Título: Experiências e pesquisas antirracistas com crianças na
educação básica.

09-1273. CDD: 370.19342


CDU: 37.014.33

Editora associada à

Quartet Editora & Comunicação Ltda.


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Esta obra é dedicada a
Francisco Solano Trindade,
poeta negro, poeta do povo.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9
Augusto Cesar Gonçalves e Lima
Luiz Fernandes de Oliveira
Mônica Regina Ferreira Lins

AFRODESCENDENTES NO BRASIL,
ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO
CONTROLADA DA EXCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Mônica Regina Ferreira Lins

LEI N. 10.639/03:
UMA PROPOSTA INTERCULTURAL
NO CAP-UERJ? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Luiz Fernandes de Oliveira
Maria Cláudia Reis
Mônica Regina Ferreira Lins

O SAMBA NO BAIRRO
DE OSWALDO CRUZ:
CONSTRUINDO CONHECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Augusto Cesar Gonçalves e Lima

ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS:


UMA TRANÇA DE GENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Gloria Maria Paes Brito Miranda
Olga Guimarães Germano
Márcia Marin Vianna
Stella Maris Moura de Macedo
PERSPECTIVA MULTICULTURAL
EM EDUCAÇÃO: UMA APROXIMAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Mônica Andréa Oliveira Almeida

QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO:


NEGROS E ÍNDIOS NA CONSTRUÇÃO
DE NOVOS PARADIGMAS PARA A EDUCAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Kelly Russo

A QUESTÃO RACIAL
NO ENSINO DE CIÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
Eliezer Batista de Oliveira
Hilda da Silva Gomes

ETNOMATEMÁTICA:
UM NOVO OLHAR PARA SALA DE AULA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
Danielle Bastos Lopes
Flávia Barbeito Moreno
Luiz Fernandes de Oliveira

O MENINO BULIDOR:
UMA DIFERENÇA QUE NÃO
CONSEGUIMOS COMPREENDER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Margarida dos Santos

OLHA AQUELE PRETO ALI!


QUANDO A DIFERENÇA INTERROGA
A PRODUÇÃO CURRICULAR: O QUE FAZER? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
Rita de Cássia Prazeres Frangella

DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO:
A CONTRIBUIÇÃO DA LEITURA DO MUNDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Jaqueline Luzia da Silva
INTRODUÇÃO

O que signiica ser criança? Como entender uma condição


existencial desse ser que, até certa idade, não sabe ler, não entende
o funcionamento físico do mundo, não sabe as orientações espa-
ciais para viajar para uma outra cidade, dentre outras coisas, como
nós adultos?
Quando nasce uma criança, a vida dos adultos-pais muda
completamente. Suas preocupações cotidianas passam a ser com-
partilhadas com a existência dos ilhos. Entretanto, dependendo de
como a criança é isicamente, podemos intuitivamente imaginar
como ela poderá ser tratada pela família, pelos vizinhos ou pelos
conhecidos e qual a expectativa desses sobre os comportamentos
e atitudes que devem tomar.
Se a criança for do sexo feminino, teremos, com o pas-
sar dos anos, vários rituais especíicos, roupas bem características,
comportamentos e atitudes esperadas e um papel proissional es-
perado. Dependendo dos valores que receber das gerações adultas,
pode ter um comportamento submisso, de disputa ou de paridade
perante os homens. Se a criança for do sexo masculino, teremos
outros rituais, roupas, comportamentos e atitudes também “carac-
terísticos”.
Se a criança vive numa sociedade em que existem pes-
soas de todas as cores ou etnias, dependendo de como a maioria
dessa sociedade pensa, a criança, sendo negra ou branca, poderá
ser tratada de uma forma diferenciada, com privilégios ou não. Os
olhares para a cor, para os cabelos, para o nariz ou para as feições,

9
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

serão bastante sinalizadores de um pensamento sobre o caráter, a


origem e a expectativa de um futuro de sucesso ou não.
Se a criança sob os nossos cuidados vive em uma socie-
dade estratiicada em classes sociais, ou seja, em que há pessoas
que não compartilham a mesma condição econômica de acesso às
riquezas produzidas pela sociedade e, o mais importante, em que a
mobilidade social é muito restrita, essa criança, para ter certo suces-
so, dependerá em muito de nossa condição econômica e possibili-
dade de acesso a esses bens.
Podemos imaginar mais coisas? E se a criança tiver alguma
necessidade educativa especial? E se suas referências de vida (va-
lores, moralidade, ética, jeito de se comportar, etc.), inluenciadas
por nós, forem muito diferentes e até contrapostas aos futuros co-
leguinhas de escola da mesma idade? E se sua religião ou religio-
sidade não for aquela dominante, mas uma outra com costumes e
rituais “estranhos” ou “repulsivos”? E se o seu jeito de falar (sotaque)
soa esquisito para seus futuros amiguinhos? E se...?
Em nossa imaginação literária como docentes do ensino
fundamental, já percebemos, minimamente, que a escola que essa
criança vai frequentar talvez produza situações facilitadoras, ou não,
para que ela possa apreender grande parte do patrimônio cultural
e social construído pela humanidade, e a partir de uma lógica de
respeito à diversidade, possa experimentar em essência de relações
mais igualitárias com o outro.
Imaginação à parte, defendemos o pressuposto de que,
no processo educativo, conhecer e produzir conhecimento são
intrínsecos ao ser humano independentemente de idade, das cir-
cunstâncias de vida, das condições socioeconômicas, étnicas e cult-
urais. Esse processo de dar sentido às coisas, interpretar e explicar o
mundo, que se apresenta caótico no momento do nascimento, vai
se soisticando e tornando-se mais complexo, à medida que novas
experiências vão sendo vivenciadas. A importância de se valorizar
esse conhecimento, quando ele é trazido por uma criança na escola,
se por um lado, já é compreendida pelos educadores, por outro, se
expressa pouco na prática pedagógica.
Em cada contexto, seres humanos com determinados
propósitos e objetivos vão desenvolver formas de pensar que são

10
INTRODUÇÃO

geradoras de conhecimento. Ser produtor e usuário de conheci-


mentos, saberes cientíicos e cultura é condição sine qua non da ex-
istência humana. Mas o que nos move como seres humanos, que
nos projeta adiante e nos faz produtores de sentido e signiicados, é
aquilo que E. Bloch (1994) chama de princípio esperança.1
Espera, esperança, tensão em direção a uma possibilidade
ainda não realizada, não é somente um princípio da consciência
humana, mas uma disposição fundamental no interior de toda a
realidade; segundo Bloch, é “um princípio quase biológico de de-
senvolvimento e de manutenção do ser”.
A partir desse conceito do princípio esperança – a fenom-
enologia da consciência antecipadora –, Bloch explicita as utopias
que são inerentes à condição humana, pois, através da imaginação,
homens e mulheres vivem uma constante condição de ser-em-
possibilidade. Neste sentido, para Bloch, “a história das utopias é a
história da esperança”.
Retornando a nossa criança imaginada: ela cresce e entra
na escola. Um dos primeiros e principais desaios é se alfabetizar, e
alguns defendem que ao mesmo tempo deve estar em processo de
letramento. Nos anos seguintes, vêm a alfabetização cartográica e a
apreensão da linguagem matemática e dos conhecimentos históri-
cos e cientíicos. Atualmente discute-se, inclusive, a necessidade de
uma formação ilosóica e cidadã perpassando todas as linguagens
e áreas de conhecimentos.
Mas o desaio maior entre os educadores é como a cri-
ança aprende todos esses saberes. Quais as circunstâncias que fa-
cilitam suas aprendizagens? Quais as metodologias possíveis para
torná-la autônoma intelectualmente e capaz de ser produtora de
conhecimentos? E, além disso, será que nós, educadores, estamos
preparados para essas tarefas? Ainda mais intrigante: em que me-
dida a realidade sócio-histórico-cultural da criança e do educador
inluencia nos processos de ensino-aprendizagem? E por im, o que
se deve ter como parâmetro para aquilo que realmente é relevante
a ser ensinado?
Todas essas questões estão inter-relacionadas, ou seja, as
concepções de educação, as teorias da aprendizagem, as metodo-
1 Bloch, E. Il principio Speranza. Roma: Garzanti, 1998.

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

logias e procedimentos a serem utilizados no fazer pedagógico, o


contexto sociocultural da escola, o contexto em torno da mesma e
as questões curriculares.
Toda a discussão acadêmica, as polêmicas teóricas e os
debates educacionais quase ininitos, giram em torno da questão
ilosóica em tela, ou seja, que todos podem conhecer e produzir
conhecimentos e que, isso é algo intrínseco ao ser humano inde-
pendentemente da idade. Como é possível, então, operacionalizar
essa complexidade diante de tantos desaios que encontramos pela
frente?
O espaço escolar não se constrói sem vidas de carne e osso,
pelo contrário, tem vozes dissonantes e convergentes, tem olhares
que julgam e que aprovam, tem cheiros repulsivos e atraentes, que
unem e dividem pessoas, tem falas carinhosas e agressivas, tem cor,
enim, tudo que existe na vida e na escola da vida está dentro do
espaço da escola, que, para alguns, deveria ser somente a escola,
lugar de racionalidade, ciência fria, matemática abstrata.
A partir da vontade de realização de ser algo mais do que
se é, nossas estratégias de ensino, como docentes, deveriam refer-
enciar-se epistemologicamente numa estreita relação entre teoria
e prática. Aqui a teoria entendida como representação e constru-
tora da prática. A prática por sua vez, como o substrato empírico e
histórico-cultural que também produz saberes e representações.
A partir dessa perspectiva, o livro que ora apresentamos
tem como objetivo contribuir numa discussão essencial para nós:
a produção de conhecimentos no contexto das questões educacio-
nais envolvendo crianças e a diferença étnico-racial.
Reunimos aqui diversos especialistas e professores dos
anos iniciais do CAp-Uerj, da Faetec, das redes municipais e estadu-
al de Educação do Rio de Janeiro, além de estudiosos das questões
raciais em educação, que há vários anos vêm estabelecendo parce-
rias e intercâmbios institucionais.
Esses autores, que vivenciam o cotidiano das aprendiza-
gens com crianças, partem de uma discussão que está mobilizando
educadores, especialistas e movimentos sociais: a implementação
da Lei n. 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da

12
INTRODUÇÃO

História da África e dos Africanos, da Luta dos Negros no Brasil e


da Cultura Negra Brasileira no Ensino Básico, e mais recentemente,
com a inclusão da história e cultura dos povos indígenas2,
Essa legislação abre uma nova demanda no campo edu-
cacional brasileiro. Mais do que propor um reconhecimento da
história da África, da releitura da história do Brasil, das relações ra-
ciais e do seu ensino, ela mobiliza uma dimensão delicada, ou seja,
o reconhecimento da diferença afrodescendente e indígena com o
claro propósito de reinterpretar e ressigniicar a história e as rela-
ções étnico-raciais no Brasil por meio dos currículos da educação
básica. A lei tem como marco teórico o reconhecimento do mul-
ticulturalismo como dado da realidade brasileira, a perspectiva da
interculturalidade e a crítica ao eurocentrismo dos currículos oici-
ais. Sua proposta epistemológica de releitura da história da humani-
dade e do Brasil tem sérias consequências para a prática de ensino e
a formação docente, já que, até recentemente, a grande maioria dos
professores da educação básica, e principalmente dos anos iniciais,
tiveram em suas formações iniciais e em serviço, uma perspectiva
teórica marcadamente hegemonizada por um olhar eurocêntrico e
monocultural.
A Lei n. 10.639/03 é fruto de um processo histórico de lutas
do movimento negro pela inclusão da história e culturas africanas e
afro-brasileiras nos currículos da Educação Básica. A lei foi sanciona-
da em 9 de janeiro de 2003. Em março de 2004, o Conselho Nacional
de Educação (CNE) emite um parecer dirigido aos administradores
dos sistemas de ensino e aos estabelecimentos de ensino e seus pro-
fessores em todos os níveis. Fundamentados teoricamente por este
parecer, o CNE, em 17 de junho de 2004, delibera por unanimidade
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o Ensino de História e Culturas Afro-brasileiras
e Africanas.
As deliberações do CNE são normativas e a Lei n. 10.639
tem um caráter obrigatório, já que se transformou em artigo da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Entretanto, a novi-
dade que esses dispositivos apresentam é que, pela primeira vez na

2 Em 10 de março de 2008, foi sancionada a Lei 11.465/08 que substitui a Lei


10.639. Esta nova lei acrescenta apenas a inclusão do ensino da história e cultura
dos povos indígenas.

13
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

história das legislações educacionais, há uma obrigatoriedade de


conteúdos a serem ministrados no âmbito das disciplinas curricula-
res que compõem o Ensino Básico.
Diante disso, surgem algumas questões para o tratamento
desta delicada tarefa. Em primeiro lugar, ter a noção de que é uma
legislação que está em processo de implementação, com diversas
iniciativas dos sistemas de ensino sendo realizadas por todo o Brasil
desde 2004, e que, portanto, qualquer análise teórica ou descritiva
deve contar com essas experiências, em segundo lugar, a lei está
mobilizando sistemas de ensino e, principalmente os docentes, nas
questões das discussões curriculares, ou seja, o que deve ser ensi-
nado e quais são os marcos conceituais e paradigmas que vão con-
substanciar a escolha dos conteúdos.
A partir dessa perspectiva inicial, devemos considerar duas
questões: primeiro que a fundamentação teórica da Lei n. 10.639,
expressa no parecer do CNE, estabelece alguns princípios e funda-
mentos bem explícitos e, segundo, que estes não se apresentam em
conformidade com a ampla tradição curricular, praticados nos siste-
mas de ensino e por grande parte dos docentes diretamente atingi-
dos pela legislação. Sem contar com o fato de que a Lei n. 10.639
mobiliza uma temática no campo educacional – as relações étnico-
raciais no Brasil – altamente controversa e polêmica.
Para analisar essas questões, é necessário discutir e ten-
tar responder algumas outras: Quais são as experiências de tentativa
de aplicação da lei que estão ocorrendo atualmente no Brasil? Como
traduzir as determinações das diretrizes curriculares em conteúdos
didáticos efetivos? Como fazer a mediação, entre as determinações
das diretrizes, que faz uma escolha teórica e epistemológica, e os en-
foques teóricos e epistemológicos que vêm, tradicionalmente, funda-
mentando uma prática de ensino da maioria dos docentes? Ou seja,
faz-se necessário que os sistemas de ensino realizem uma mediação
entre o declarado em lei e o vivido pela experiência docente? E mais,
diante das condições objetivas da prática docente – carga horária,
condições de trabalho e disponibilidade de recursos –, uma mudan-
ça de perspectiva de ensino dos conteúdos curriculares se constitui
enquanto uma simples reformulação curricular?
Essas questões mais genéricas nos mobilizam em direção
a um campo de análise mais especíico: e os professores dos anos
iniciais de escolaridade, como percebem essas modiicações, diante

14
INTRODUÇÃO

de um histórico de formação inicial e continuada, onde nunca ou


quase nunca, tiveram uma formação nos moldes das propostas da
nova legislação? E mais: como implementar o ensino da história Afri-
cana e dos negros, sem que haja um conjunto de políticas públicas de
formação do professor? Quais os limites de uma proposta de inclusão
da história da África e dos negros nos currículos da Educação Básica,
numa realidade educacional onde pouco (ou nada) se discute sobre
esta mesma história? Quais são os saberes curriculares, pedagógicos
e da experiência dos docentes na prática pedagógica em relação à
questão da diversidade étnica? Em que medida esses saberes diicul-
tam ou facilitam a aplicação das novas diretrizes curriculares nas práti-
cas pedagógicas? E as graduações e licenciaturas desses docentes, os
formaram para o conhecimento da história da África ou continuam a
produzir o silêncio diante dessa temática?
Portanto, as questões que se abrem com as novas diretriz-
es curriculares têm a seu favor uma ampla mobilização e pressão
dos movimentos sociais negros, sem contar a incorporação de indi-
víduos nos sistemas de ensino engajados na luta antirracismo.
O livro em questão tentará contribuir na procura dessas
indagações. A preocupação principal é reletir, a partir de diversas
contribuições teóricas e de experiências pedagógicas no Rio de Ja-
neiro, possíveis propostas de reeducação das relações étnico-raciais
com crianças dos anos iniciais de escolaridade.
Diante da literatura acadêmica acumulada nestes últimos
anos, sem dúvida nenhuma, esta legislação solicita implícita e ex-
plicitamente um acerto de contas com a formação docente, mas
vai além, mobiliza profundamente as discussões no campo do cur-
rículo e nas questões do direito à igualdade e do reconhecimento
da diferença étnica nas escolas.
Questões como preconceito, diferenças como dadas nas
práticas pedagógicas, teorias do currículo, ensino de matemática e
de ciências, história dos negros no Brasil, políticas de ações airmati-
vas, alfabetização, cultura popular e diversidade, se entrelaçam com
as relexões sobre a educação nos anos iniciais de escolaridade e
estabelecem novas bases para diálogos interculturais na educação.
O primeiro artigo, da professora Mônica Regina Ferreira
Lins, aborda a questão de como o Estado brasileiro no pós-Abolição

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

reproduziu nas políticas públicas as características da sociedade


excludente de então diante do direito à escolarização enquanto
política social e quais seriam as semelhanças e diferenças com as at-
uais polêmicas em torno das ações governamentais que envolvem
a questão racial e a escolarização.
Em seguida temos a contribuição de três professores da
UERJ, Luiz Fernandes de Oliveira, Mônica Regina Ferreira Lins e Maria
Cláudia de O. Reis Ferraz. A partir de falas infantis e relatos de ex-
periências com crianças dos anos iniciais, os autores trazem uma
relexão sobre o papel que os professores têm na promoção de rela-
ções interculturais no currículo escolar. O texto faz parte de um tra-
balho com crianças no campo das ciências sociais, da história e da
geograia e das temáticas que vêm sendo trabalhadas do ponto de
vista teórico e prático relacionadas à educação das relações étnico-
raciais e à aplicação da Lei n. 10.639/03.
A partir do senso comum que vê os compositores de sam-
ba como indivíduos que têm a marca do “dom” ou “talento”, o ter-
ceiro artigo, do professor Augusto Cesar Gonçalves e Lima, discute
o papel de formação desses indivíduos na própria cultura da qual
emergem, a cultura popular. Toma o subúrbio de Oswaldo Cruz, no
município do Rio de Janeiro, e sua história no samba para chegar
a uma compreensão do samba como elemento de socialização de
conhecimentos no local, chamando atenção pela falta de relação da
cultura escolar com o samba.
Em seguida, as professoras Gloria Maria Paes Brito Miranda,
Olga Guimarães Germano, Márcia Marin Vianna e Stella Maris Moura
de Macedo, pretendem ressaltar a importância social que represen-
ta o trabalho que é desenvolvido em sala de aula sobre as culturas
africanas. Atuando nos anos iniciais do Ensino Fundamental, as au-
toras airmam o quanto elas interferem no processo de iniciação da
formação ética de seus alunos. Assim, elas assumem a condição de
propagadoras do desassossego, começando por colocar em xeque
os conhecimentos preconceituosos que têm acumulado ao longo
de suas trajetórias proissionais e de suas vidas quanto às questões
das diferenças entre as pessoas, os povos, as culturas.
O quinto artigo, da professora Mônica Andréa Oliveira Al-
meida, apresenta algumas relexões sobre as relações entre educa-

16
INTRODUÇÃO

ção e cultura(s) e a perspectiva multicultural em educação, como


uma abordagem que problematiza, analisa e aponta caminhos para
essas questões.
O sexto artigo, da especialista em estudos indígenas e
doutoranda em Educação pela PUC-Rio Kelly Russo, airma que, com
a Lei n. 11.645/08, os movimentos negros e indígenas adquirem
uma oportunidade sem igual em nossa história, para juntos gera-
rem novos paradigmas para a educação. Esse texto contribui com o
encontro, ao reletir sobre a representação desses “outros”, negros e
indígenas nos livros didáticos, as diferentes ideias de infância e de
educação inerentes na vida comunitária e discute as práticas educa-
tivas antirracistas a partir do diálogo intercultural.
O sétimo artigo, do professor Eliezer Batista de Oliveira e da
professora Hilda da Silva Gomes, apresenta novos olhares sobre o
conceito de raça e sua importância nos estudos sobre a genética
da população brasileira. Também aponta uma articulação entre as
teorias que envolveram aspectos como o racialismo, QI e a cranio-
metria, além dos signiicados sociais que foram atribuídos à popula-
ção negra. Nesse panorama, é fundamental uma abordagem crítica
sobre o currículo no ensino de ciências, buscando a ampliação dos
saberes docentes na questão racial.
No oitavo artigo, Danielle Bastos Lopes, Flavia Barbeito
Moreno e Luiz Fernandes de Oliveira discutem o campo da etno-
matemática, isto é, uma representação simbólica dos povos negros
e indígenas através de uma abordagem étnica e cultural. O texto visa
atentar para a riqueza do conhecimento matemático desses povos
e a importância de inserir uma diversidade cultural no processo de
aprendizagem da matemática nos anos iniciais de escolaridade.
O nono artigo, da professora Margarida dos Santos, apre-
senta uma história de aprender-ensinar, junto ao menino que a au-
tora chama de Bulidor. Este é um entre tantos alunos que têm vivido
o fracasso nos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola
pública do Rio de Janeiro. A autora compartilha e coloca em dis-
cussão a experiência de interrogar esse modo de trabalhar com as
diferenças sociais, raciais e de aprendizagem no cotidiano escolar
como sinônimo de falta.
A partir de uma situação cotidiana em que a diferença ra-

17
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

cial é ressaltada, a professora Rita de Cássia Prazeres Frangella, no


artigo décimo, desenvolve uma relexão sobre as relações cultura-
diferença e como isso se articula na produção curricular, destacando
a compreensão da cultura como prática discursiva e de enunciação.
O entendimento da autora, nestas discussões, permite a problema-
tização do currículo como produção cultural, interrogando que
relações se estabelecem entre currículo e identidade.
Por im, Jaqueline Luzia da Silva apresenta uma pesquisa re-
alizada com alunos dos anos iniciais de uma escola pública munici-
pal do Rio de Janeiro. Nesse trabalho, priorizou-se o diálogo entre as
crianças e a pesquisadora, que indicou, junto à pesquisa, o quanto
ainda é necessário que as práticas pedagógicas se abram aos con-
hecimentos prévios trazidos pelos alunos ao espaço escolar.
Enim, nos trabalhos apresentados nesta coletânea, temos
como objetivo a relexão coletiva de diversos educadores e estudio-
sos no campo educacional e dos estudos afro-brasileiros e indíge-
nas para contribuir, por um lado, com novas práticas pedagógicas,
atendendo à demanda de implementação das Diretrizes Curricula-
res Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Culturas Afro-brasileiras, Africanas e indígenas
nos anos inicias de escolaridade e, por outro, propiciar mais um es-
paço de produção de conhecimento, aprofundando ainda mais os
intercâmbios e diálogos institucionais entre docentes dos anos ini-
ciais e espaços acadêmicos como Uerj, Faetec, Unesa e PUC-Rio.

Rio de Janeiro, dezembro de 2008


Augusto Cesar Gonçalves e Lima
Luiz Fernandes de Oliveira
Mônica Regina Ferreira Lins

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AFRODESCENDENTES
NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO
E A GESTÃO CONTROLADA
DA EXCLUSÃO
Mônica Regina Ferreira Lins

Dois meninos nasceram na mesma noite, de 27 de


setembro de 1871, nessa fazenda cujo regime se pre-
tende conservar: um é senhor do outro. Hoje eles têm
cada um perto de doze anos. O senhor está sendo
objeto de uma educação esmerada; o escravo está
crescendo na senzala. Quem haverá tão descrente do
Brasil a ponto de supor que em 1903, quando ambos
tiverem trinta e dois anos, esses homens estarão um
para o outro na mesma relação de senhor e escravo?
Quem negará que essas duas crianças, uma educada
para grandes coisas, outra embrutecida para o cat-
iveiro, representam duas correntes sociais que já não
correm paralelas – e se corressem, uma terceira, a dos
nascidos depois daquela noite servir-lhes-ia de canal,
– mas se encaminham para um ponto dado de nossa
história na qual devem forçosamente confundir-se?

Joaquim Nabuco (2000, p. 160)

O texto de Joaquim Nabuco traz a percepção das desigual-


dades produzidas no período da escravidão. As marcas produzidas
na infância e na educação podem ser reconhecidas nas duas crian-
ças nascidas no mesmo espaço e tempo, porém diferenciadas social-
mente e nos seus direitos, uma “educada para as grandes coisas” e a
3 Mestre em Educação Brasileira pela PUC-Rio e Professora Assistente da UERJ.

19
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

outra “embrutecida para o cativeiro”. Transportando-nos para 1871,


a diferença entre os dois meninos de Nabuco não estava apenas no
tipo de educação, mas também nas mínimas condições básicas do
direito à vida e possibilita-nos, ainda, pensar a noção de infância
como mais do que um estágio, mas como categoria histórico-so-
cial.
Ele mesmo escreve em Minha formação sobre os seus
oito primeiros anos, que vive no Engenho Massangana com sua
madrinha e com aqueles, os escravos, que tinham protegido a sua
infância. Esse período deixou marcas em sua “formação instintiva,
ou moral, deinitiva...” e as impressões que conservou dessa idade
serviram para mostrar-lhe “em que profundezas os nossos primei-
ros alicerces são lançados”. Narra que, ainda pequeno, viu escravos
em condições inimagináveis e trouxe de suas memórias a cena em
que um jovem escravo de 18 anos se atira em seus pés pedindo que
convencesse sua madrinha a comprá-lo, pois corria risco de vida ao
fugir de um senhor que o castigava muito e relata como descobriu
a dor e a natureza dessa instituição com que convivera até então
(2004, p. 134-137).
A passagem da Monarquia à República e os aspectos políti-
cos, sociais e ideológicos que permearam o período histórico de
transição para o capitalismo apresentam-nos algumas questões em
relação à condição social do povo afrodescendente após o im da es-
cravidão e o processo de formação do pensamento social brasileiro.
A sociedade brasileira experimentava o desenvolvimento em base
urbano-industrial e o analfabetismo representava um problema já
na segunda metade do século XIX, uma vez que as demandas de
integração do Estado brasileiro ao novo modelo econômico ofer-
eciam à escola um papel importante na condução para o tipo de
nação que estava em gestação. Carvalho (1989) lembra que a escola
tinha a tarefa republicana de ser um espaço de construção do pro-
gresso, mas também deveria oferecer ensino inteiro, completo, de
base cientíica e condição efetiva de cidadania plena.
O período do pós-abolicionismo e de consolidação do
Estado republicano foi historicamente crucial para a produção das
desigualdades sociais vividas pelo povo negro nos tempos atuais,
principalmente no que tange à escolarização. Gonçalves (2000) traz
a discussão de que a gravidade da situação educacional dos negros

20
AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

é mais gritante quando comparamos a escolarização de gerações


diferentes de afrodescendentes e destaca que os mais idosos, cujas
infância e juventude estão mais próximas do início do século XX,
padecem de altíssimos índices analfabetismo.
Com o im do sistema escravista entram em cena os ex-
escravizados negros como uma nova categoria de cidadãos e um
ideário de nação a enquadrar-se no modelo civilizatório em voga
no inal do século XIX e que formataria novas identidades coleti-
vas. No entender de Hasenbalg (1979), surgiram novas fontes de
discriminação que contribuíram para a permanência da falta de
mobilidade social na sociedade brasileira. Atualmente, Ricardo
Henriques (2001) indica que os dados do Pnad (Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios), referentes à década de 1990, revelam a
intensa desigualdade a que está submetida a população negra no
Brasil e destaca que os níveis de escolaridade encontram-se entre os
piores indicadores, demarcam a diferença entre brancos e negros e
diminuem as possibilidades de mobilidade desses últimos.
No século XIX as concepções cientiicistas proclamavam
as diferenças entre as raças, formatando como elemento discursivo
e das práticas sociais a superioridade dos brancos e a inferioridade
dos negros. Os cidadãos se relacionavam com o Estado na quali-
dade de objetos da normatização da vida coletiva e o liberto e seus
descendentes continuavam estigmatizados com a sua imagem as-
sociada à vadiagem, à degenerescência e à improdutividade. O es-
paço urbano encontrava-se desorganizado com o êxodo rural que
aconteceu após a Abolição e milhões de analfabetos de letras e ofí-
cios vagavam ”maculando” a cidade com as doenças, com a falta de
assepsia, propensos ao crime e ao vício.
Mas quem era o cidadão que a República deveria educar?
Ao analisarmos as políticas públicas da época, percebemos que não
era o ex-escravo, o povo afrodescendente, e tal política produziu ge-
rações de negros sem escolarização. A noção positivista de cidada-
nia e o não exercício pleno dos direitos civis e políticos coniguram
esse período como deinidor de políticas públicas que legitimaram
a exclusão e o controle em detrimento das garantias de acesso aos
direitos que, uma vez não universalizados, continuaram a aprofun-
dar desigualdades.

21
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

O campo temático em questão tem motivado acalora-


dos debates em torno das políticas públicas de ações airmativas
e tem crescido o número de pesquisas nas diversas áreas dos con-
hecimentos sociais em torno das questões étnico-raciais. A carta
em apoio à ação de inconstitucionalidade das cotas impetrada pela
Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino (Confenen),
entregue ao Supremo Tribunal Federal, que reúne como signatários
intelectuais, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos
negros e outros movimentos sociais, vem recebendo o título de “Os
113 anti-racistas contra as leis raciais” e airma que a “pobreza tem
todas as cores” e que as cotas “não promovem a igualdade, mas ape-
nas acentuam desigualdades prévias ou produzem novas desigual-
dades”. No dia 30 de abril de 2008 dois conhecidos intelectuais in-
tegrantes do grupo, a primeira antropóloga e o segundo cientista
político, deram as seguintes declarações:

Viemos trazer ao STF argumentos contra essa política


que se instalou no Brasil. Raça não existe. Esse é um
critério que não deve estar nas políticas públicas,
porque vai dividir artiicialmente o país entre bran-
cos e negros. Nas universidades, as cotas favorecem
uma pequena elite, porque a maioria dos estudantes
não chega ao ensino superior. Estamos construindo o
telhado antes da casa (Yvonne Maggie, O Globo, 1 de
maio de 2008).

As cotas são um retrocesso. Levarão as pessoas a pen-


sar em termos raciais, dividindo onde não há mais di-
visão. Será um tiro no pé. Abre-se espaço para um mo-
saico de cores, pois os amarelos podem depois querer
reivindicar privilégios (Bolivar Lamonier, O Globo, 1 de
maio de 2008).

Desde a Primeira República, os intelectuais discutem a


questão da mestiçagem e, segundo Munanga (1999), os pensadores
brasileiros do século XIX se alimentaram, de um lado, de Voltaire,
que negava a unidade da espécie humana e, de outro, de Bufon
e Diderot, que conirmavam e explicavam essa hipótese, além de
Kant, que airmava que os produtos bastardos degradaram a boa

22
AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

raça, sem melhorar a raça ruim. Os pensadores brasileiros de então


consideravam a pluralidade racial uma ameaça para a nação, que
se pensava branca, e essas alternativas teóricas foram assumindo
aspectos políticos. Para Munanga (1999), a abordagem raciologista
se interessa pela mestiçagem entre as “grandes raças” e não pode
ser vista apenas em seu conteúdo biológico, centrada na análise do
luxo de genes entre populações originalmente diferentes, mas pela
manipulação do biológico pelo ideológico,

O que signiicaria ser “branco”, ser “negro”, ser “ama-


relo” e ser “mestiço” ou “homem de cor”? Para o senso
comum essas denominações parecem resultar da
evidência e recobrir realidades biológicas que se im-
põem por si mesmas. No entanto, trata-se, de fato,
de categorias cognitivas largamente herdadas da
história da colonização, apesar da nossa percepção da
diferença situar-se no campo do visível. É através des-
sas categorias cognitivas, cujo conteúdo é mais ide-
ológico do que biológico, que adquirimos o hábito de
pensar nossas identidades sem nos darmos conta da
manipulação do biológico pelo ideológico (Munanga,
1999, p. 18).

Este autor vai airmar que os movimentos sociais lutam


por justiça social e pela redistribuição equitativa do produto co-
letivo. Numa sociedade hierarquizada como a brasileira, torna-se
muito difícil a mobilização em torno de transformações sociais. A
construção de uma nova consciência não é possível, sem se colocar
no ponto de partida a questão da autodeinição e da identidade. A
busca de elementos comuns ao grupo e de um passado histórico
dessas culturas em diáspora será um elemento de construção de
identidade dos movimentos negros. Racializado e excluído das
posições de comando, apesar de algumas conquistas simbólicas
concretas, os movimentos ainda não conseguiram mobilizar todas
as suas bases populares, pois

A grande diiculdade que os movimentos negros en-


contram e terão de encontrar por muito tempo não

23
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

está na incapacidade de natureza discursiva, organiza-


cional ou outra. Está sim nos fundamentos da ideo-
logia racial elaborada a partir do im do século XIX a
meados do século XX pela elite brasileira. Essa ideo-
logia, caracterizada pelo ideário do branqueamento,
roubou dos movimentos negros o ditado “a união faz
a força” ao dividir negros e mestiços, ao alienar o pro-
cesso de identidade de ambos (Munanga, 1999, p. 15).

Os movimentos negros há muito tempo preocupam-se


com a preservação do passado dos povos africanos não traduzido
pela história que se fez oicial, como um elemento de construção
identitária e de valorização da autoimagem do povo negro. Assim,
a defesa do aniversário da morte de Zumbi dos Palmares como Dia
Nacional da Consciência Negra, a celebração e o resgate da imagem
dos heróis do povo negro, a divulgação dos elementos da cultura
negra presentes no cotidiano, estão em pauta nas reivindicações e
conquistas em termos de políticas públicas.
O ano de 2003 traz uma importante novidade para a legis-
lação educacional brasileira, a Lei n. 10.639/03, que institui a obriga-
toriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-brasilei-
ra em todo o currículo do Ensino Básico, na forma do artigo 26 - A
acrescido à Lei n. 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN). Dentro das políticas públicas de reparação e ação
airmativa, trata-se de um marco na história das leis educacionais no
Brasil e dá tratamento no campo curricular a uma demanda históri-
ca do movimento negro. Em junho de 2004, a lei foi regulamentada
pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que estabeleceu as Dir-
etrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
raciais e Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Essas
diretrizes foram fundamentadas a partir do Parecer do Conselho
Pleno do CNE, aprovado por unanimidade em março de 2004.
Este Parecer declara explicitamente que se fazem ne-
cessárias políticas de ações airmativas e de reparação na Educa-
ção Básica, na medida em que a presença do racismo estrutural no
Brasil, através de um sistema meritocrático, “agrava desigualdades
e gera injustiça”. E mais, que há uma demanda da comunidade
afro-brasileira por reconhecimento, valorização e airmação de di-

24
AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

reitos, no que diz respeito à educação. Esse reconhecimento requer


estratégias de valorização da diversidade. Esta é entendida como
aquilo que distingue “os negros dos outros grupos que compõem a
população brasileira”. Além disso, este reconhecimento passa pela
ressigniicação de termos como “negro” e “raça”, pela superação do
etnocentrismo e das perspectivas eurocêntricas de interpretação da
realidade brasileira e pela desconstrução de mentalidades e visões
sobre a história da África e dos afro-brasileiros.
As Declarações Internacionais e Nacionais, que estabele-
cem princípios e ações no campo da educação, não se pautam mais
na interdição do povo negro, mas disponibilizam para todos um di-
reito oferecido em parcelas desiguais. Para um setor da população,
a qualidade e a excelência na educação e para o setor mais pobre a
gestão controlada da desigualdade. Entretanto, existem muitos críti-
cos dessas legislações que defendem que tais políticas romperiam
com o direito à igualdade de oportunidades, trilhariam um caminho
de racialização da sociedade brasileira e acabariam por institucio-
nalizar uma discriminação. Essas reações geraram dois livros, Não
somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa
nação bicolor, de Ali Kamel (2006) e Divisões perigosas: políticas raci-
ais no Brasil Contemporâneo, de Peter Fry e outros (2007).
Peter Fry (2007), ao criticar a Lei das Cotas, airma que,
quando o Estado obriga a pessoa a se autoclassiicar racialmente já
celebra as divisões raciais. Segundo ele, “o acesso às universidades
era legalmente determinado pela capacidade dos candidatos de
chegarem a uma certa pontuação numa prova que ignorava o sexo
e a cor (ou seja, as características adscritas pela ‘natureza’) dos can-
didatos” (2007, p. 158).
José Roberto de Pinto Góes (Fry e outros, 2007) indica a
existência de idealização caricatural e uma desinformação sobre
o nosso passado e sugere que estaríamos diante do risco de nos
tornarmos um país de brancos e negros ao trocar a valorização da
mestiçagem pelo orgulho racial. Já Demétrio Magnoli (Fry e outros,
2007) airma que seria uma boa ideia ter atribuído ao 13 de maio
o Dia da Consciência Negra, mas que, ao contrário, ocorreu uma
difamação da Abolição, que “foi uma luta popular moderna, com-
partilhada por brasileiros de todos os tons de pele”. E vai além: “Os
revisionistas que ingem celebrar a memória de Zumbi praticam um

25
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

seqüestro intelectual, despindo a narrativa de seu contexto históri-


co para fazer do quilombo uma metáfora de seu programa atual de
separação política e jurídica das ‘raças’. Esse é o motivo pelo qual
decidiram abolir a Abolição” (Fry, 2007, p. 66)
Alguns intelectuais, que formaram a frente em prol da tese
de que “Não somos racistas”, contestam inclusive as estatísticas que
dão conta de uma desvantagem entre negros e brancos, todavia, a
questão da dívida com os povos de origem africana já aparecia nos
discursos de pessoas como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e José do
Patrocínio, iguras centrais da luta abolicionista que buscavam uma
gestão controlada da Abolição que não saísse do âmbito da luta
parlamentar. A disputa no campo institucional e os mecanismos
de transição para uma sociedade urbano-industrial sem ameaçar a
nova ordem em seu nascedouro conduziria a uma liberdade vigiada,
criando cidadãos sem a garantia de direitos básicos. Na atualidade,
120 anos depois, ainda se fala em reparação das perdas históricas
sofridas pelos afrodescendentes. A mobilização implementada pe-
los movimentos sociais efetivamente implicou ações que moveram
e movem a opinião pública no que tange aos direitos sociais, em
especial ao direito à educação.
As crianças da Lei do Ventre Livre sem escola, assim como
as que nasceram no período pós-Abolição, não foram alvo de políti-
cas governamentais de escolarização e formariam ao longo de um
século o vasto quantitativo de analfabetos, culpabilizados nos dis-
cursos racistas e cientiicistas que imputavam a desvantagem ao fa-
tor de inferioridade da raça negra. A partir do inal do século XIX, a
criança passa a ser revestida de outro signiicado social e passa a ser
vista como porta de entrada para o futuro, como um patrimônio da
nação, alguém que precisava ser moldada. Mas que futuro foi reser-
vado para o povo de origem africana?
O documento da III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata da ONU
– Declaração de Durban – reconhece que a escravidão e o tráico
de escravos são crimes contra a humanidade, fontes de racismo e
discriminação e deveriam sempre ter sido considerados assim.

Reconhecemos que a escravidão e o tráico escravo,


incluindo o tráico de escravos transatlântico, foram
tragédias terríveis na história da humanidade, não

26
AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

apenas por sua barbárie abominável, mas também


em termos de sua magnitude, natureza de organiza-
ção e, especialmente, pela negação da essência das
vítimas; ainda reconhecemos que a escravidão e o
tráico escravo são crimes contra a humanidade e as-
sim devem sempre ser considerados, especialmente
o tráico de escravos transatlântico, estando entre as
maiores manifestações e fontes de racismo, discrimi-
nação racial, xenofobia e intolerância correlata; e que
os Africanos e afrodescendentes, Asiáticos e povos de
origem asiática, bem como os povos indígenas foram
e continuam a ser vítimas destes atos e de suas conse-
qüências4 (III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Corre-
lata da ONU, Durban, 2001).

Tais injustiças históricas contribuíram inegavelmente para


a pobreza e as desigualdades vividas pelos povos de origem afri-
cana. O termo “reparação” é carregado de sentidos e foi utilizado e
discutido nesse evento, realizado entre 31 de agosto e 8 de setem-
bro de 2001, na cidade de Durban, África do Sul, que motivou a
apresentação de inúmeras políticas compensatórias para os povos
de ascendência africana. Algumas políticas educacionais brasileiras
têm levado em conta em seus textos legais questões discutidas e
transformadas em documentos pela Conferência de Durban, que
indicou que as áreas da diáspora africana deveriam reconhecer a
população de descendência africana e as suas contribuições cult-
urais, econômicas, políticas e cientíicas.
As desigualdades históricas produzidas em termos de
acesso à educação, ao sistema de saúde, à moradia têm sido uma
causa profunda das disparidades socioeconômicas que afetam as
populações negras. Ao longo do século passado, os movimentos ne-
gros defenderam o direito à educação com um fator determinante
na promoção, disseminação e proteção dos valores democráticos
de justiça e de igualdade, elementos essenciais de prevenção e
chave para a mudança de atitudes e comportamentos baseados no
racismo e na discriminação racial.
4 Item 12 da Declaração e Programa de Ação, intitulado “Origens, causas, formas e manifes-
tações contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”.

27
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

A implementação de políticas de discriminação positiva


como ação reparadora por séculos marcados pela desigualdade so-
cial, caracterizados pela violação dos direitos e interdição do povo
negro no acesso à educação, traz para a temática da cidadania e das
políticas públicas atuais de inclusão da população afrodescendente
a questão do acesso e da permanência dessa população nas institu-
ições educacionais em todos os níveis.
A noção de identidade nacional e de raça construída no
Brasil permitiu a naturalização das desigualdades sociais, serviu
para a restrição dos direitos de determinados grupos e interferiu
nos modelos discursivos e no sistema escolar do pós-Abolição. A
Proclamação da República veio acompanhada de uma série de me-
didas governamentais voltadas para a imigração europeia, imple-
mentadas tanto para a agricultura quanto para a indústria, que tin-
ham como um de seus principais objetivos o embranquecimento
da população.
A conjuntura de formação da sociedade capitalista de-
mandava mecanismos de regulação social e de formação de identi-
dades coletivas. Munanga (1999) escreve sobre a importância de se
utilizar a denominação “afrodescendente” como elemento constitu-
inte de uma identidade e fundamenta que os movimentos sociais
enfrentaram muitos obstáculos para construir novas ideologias e
tornarem-se capazes de atingir bases populares e convencê-las de
que sem adesão às novas propostas serão sempre vitimas fáceis da
classe dominante e de suas ideologias.
Nina Rodrigues (1933) acreditava que os negros eram
oriundos de raça e cultura inferiores e tenderiam a desaparecer na
convivência com os brancos, porém era necessário um ajustamento
das raças para que superássemos um fator que nos levaria a uma
inferioridade como povo.
Schwarcz (2001) apresenta em seu estudo como as teor-
ias raciais deterministas e evolucionistas consolidaram uma noção
de superioridade racial que serviria de modelo explicativo acerca
das diferenças internas que conduziram o Brasil para um atraso em
relação ao mundo ocidental, pois uma nação de raças mistas estaria
fadada ao fracasso. Essa concepção constituiu-se vitoriosa por uma
larga margem histórica temporal e norteou os discursos institucio-

28
AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

nais, os direitos sociais e as políticas públicas que justiicavam um


acesso à educação pautado pela desigualdade.
Mattos (2005) ressalta que as teorias do branqueamento
surgiram no Brasil com base na tese de que o branco, “racialmente
superior”, predominaria nos processos de mistura de raças, o que
resultou na crescente defesa de que a imigração europeia favorece-
ria o processo de branqueamento biológico e cultural da futura pop-
ulação brasileira. A versão mais radical desses determinismos está
na obra do Conde Gobineau, autor do Ensaio sobre as desigualdades
das raças humanas, que defendia a existência de uma hierarquia en-
tre as raças e que as misturas destas resultariam na degeneração
das melhores características de cada uma das raças em contato. Se,
por um lado, quase todas as versões do “darwinismo social” valori-
zavam os tipos puros, de outro os intelectuais e políticos brasileiros
tinham um problema a resolver, tendo em vista a secular mistura
étnica que marcou a formação do Brasil. Houve uma reconiguração
política da noção de “raça”, que, segundo a pesquisadora, interferiu
nos modelos discursivos:

[...] As construções discursivas oiciais tenderiam cada


vez mais a trabalhar politicamente os esteriótipos de
“vadiagem” e “preguiça” para os “trabalhadores nacio-
nais” e de “morigeração” e “trabalho” para o imigrante
europeu. Em sentido inverso, as mobilizações políti-
cas dos trabalhadores nas cidades portuárias das
primeiras décadas republicanas seriam caracteriza-
das como “manifestações exóticas” promovidas por
estrangeiros contra o caráter pacíico e ordeiro da
população brasileira... (2005, p. 32 e 33).

Reis (2002) situa como uma divergência central entre


Varnhagen e Freyre o caráter escravista e latifundiário da coloniza-
ção portuguesa. Varnhagen não aceitava a escravidão, porque esta
implicava a presença negra no Brasil, portanto, uma depreciação da
“raça brasileira”, que deixou de ser branca e pura por causa da mis-
cigenação, e desejava que um dia as cores se misturassem de tal
forma que pudessem apagar as características de origem africana
de nosso povo, tal encontro de raças teria servido para fazer os ne-

29
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

gros da América melhores que os negros africanos. Freyre, em seu


elogio à colonização portuguesa, adota outro caminho de análise,
airmando que a mestiçagem teria abrilhantado a obra portuguesa
e tornou possível a colonização europeia nos trópicos.
Mattos e Rios, em Memórias do cativeiro, expõem diferen-
tes aspectos da abordagem histórica sobre a inserção social dos úl-
timos libertos após a Abolição da escravidão no país e destacam
que “durante muitos anos considerou-se mais ou menos a mesma
coisa estudar as relações raciais no pós-Abolição, ou o destino das
populações libertas, considerando ambas as situações uma herança
do período do escravista” (2005, p. 17). Até 1970 boa parte dos cien-
tistas concordavam que a situação do negro pós-Abolição era fruto
dessa herança da escravidão. Para as autoras, as posições de Frank
Tannenbaum e Gilberto Freyre foram quase paradigmáticas até os
anos 50.
Florestan Fernandes apresentaria a escravidão com um
dos fatores que contribuiria para a desorganização social das pop-
ulações negras. Tais formulações, segundo Mattos e Rios, e, espe-
cialmente, a de muitos de seus discípulos estariam centradas na
perspectiva de que a Abolição seria um “não-fenômeno, incapaz
de gerar mudanças” (2005, p. 21). Na segunda metade dos anos
70 houve um incremento dos estudos no campo da história social,
que gerou uma revisão historiográica e novas formulações sobre o
problema da pós-Abolição:

[...] As descobertas sobre as famílias escravas pas-


saram a ter grande inluência na explicação da esta-
bilidade do próprio sistema, bem como nos compor-
tamentos de resistência passiva ou de revolta aberta
pelos escravos. A literatura em torno das atividades
autônomas dos escravos, além de contribuir para o
aprofundamento dos estudos sobre resistência e re-
volta, questionou a tese sobre alienação do trabalho
presente na escravidão e da inabilidade dos libertos
em lidar com a economia de mercado (2005, p. 25).

Mattos e Rios recuperam em seu texto a historicidade dos


processos de desestruturação da ordem escravista e da inserção

30
AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

social do liberto no período pós-emancipação. As condições de


acesso aos direitos civis e políticos não seriam apenas resultados da
herança da escravidão, mas estariam relacionadas à produção social
das identidades, hierarquias e categorias raciais.
Menezes (2006) realizou estudos sobre a exclusão do
negro no período que se seguiu à Abolição e constatou que este
fora conseguindo muito lentamente o acesso à escola. Entre 1890
e 1940, as taxas de alfabetização dos negros e mestiços são muito
pequenas. Em 1890, apenas 10% dos negros eram alfabetizados no
Brasil. Na prática, o processo de inclusão dos ex-escravos à cidadania
brasileira foi entregue às iniciativas das famílias em enviar e manter
seus ilhos na escola.
Pela Constituição de 1891, os mendigos e analfabetos
não tinham direito a voto. Por outro lado, a exigência de saber ler
e escrever representava critério de inclusão na cidadania ativa. Evi-
dentemente, era de conhecimento daqueles que aprovaram tal in-
terdição que a maioria da população era analfabeta. Cerca de 85%
de analfabetos estava fora do critério de “voto de qualidade”, que
associava discernimento à capacidade de ler.
O Estado apresentava um discurso e uma prática de conser-
vação da sociedade de classes e de manutenção das desigualdades.
Havia uma ação moralizante de adaptação ao projeto de moderniza-
ção da sociedade e à promessa de que o ensino de Ciências abriria
as portas para o futuro da nação. O tipo de abolição que tivemos
produziu um imobilismo socioeconômico e não levou os negros à
cidadania, que, pelas teorias raciais vigentes, não poderiam abrir as
portas do progresso à nação brasileira. Esse ideário contribuiu para
a permanência da relação baixa renda/escolaridade inferior e para
reforçar as diferenças estruturais entre negros e brancos.
As iniciativas de inserção do povo negro no processo de
escolarização no pós-abolicionismo foi uma das principais preocu-
pações encontradas nos jornais utilizados como veículo de orga-
nização dos negros deste período. A educação era vista como as-
pecto de efetivação dos direitos à cidadania, assim como a missão
de combate ao analfabetismo. A educação é um direito social, que
pode contribuir para a redução das desigualdades.

31
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

A educação sempre ocupou lugar de destaque no ideário


de luta dos negros brasileiros, como estratégia de equiparar negros
e brancos, dando-lhes oportunidades iguais e como veículo de as-
censão social e integração. Em 1905, as primeiras entidades negras
em São Paulo organizavam escolas e tinham uma repercussão ime-
diata na sua qualidade de vida. Entre 1906 e 1940, foram registradas
em São Paulo várias associações de assistência, como: Flor de Maio,
em São Carlos, José do Patrocínio, em Rio Claro, Luiz Gama, em Jun-
diaí, e outras. A Frente Negra Brasileira surge com um programa de
ação estruturado em três eixos: Agrupar, educar e orientar.
José Murilo de Carvalho discute a concepção de cidadania
e como o movimento republicano não conseguiu expandir os direi-
tos civis e políticos:

[...] Se os direitos civis garantem a vida em sociedade,


se os direitos políticos garantem a participação no
governo da sociedade, os direitos sociais garantem
a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o di-
reito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde,
à aposentadoria. [...] Em tese eles podem existir sem
os direitos civis e certamente sem os direitos políti-
cos. Podem mesmo ser usados em substituição aos
direitos políticos... Os direitos sociais permitem às so-
ciedades politicamente organizadas reduzir os exces-
sos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e
garantir um mínimo de bem-estar para todos. A idéia
central em que se baseiam é a da justiça social (2001,
p. 10).

Embora no pós-Abolição no Brasil não tenha surgido uma


legislação que estabelecesse formas de segregação racial as des-
vantagens da população negra estão expressas nos dados sobre as
condições de moradia, analfabetismo e escolarização, situação das
mulheres negras, violência contra menores, na presença/ausência
dos negros nos meios de comunicação de massa, no acesso aos ser-
viços de saúde, empregabilidade e remuneração.
Irene Rizzini (2008), em O século perdido: raízes históricas
das políticas públicas para a infância no Brasil, declara que, em seus

32
AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

estudos sobre a trajetória de construção das políticas públicas volta-


das para o atendimento à criança e ao adolescente, não encontrou
“um registro sequer das vozes das crianças e dos jovens de então”,
pois, ainal, “vozes não havia. Nem deles, nem de suas famílias ou de
outras pessoas que lhes fossem caras, nem resquício” (p. 15).
Rizzini escreve sobre a criança vista como um dos princi-
pais instrumentos na construção dos ideais de nação civilizada. A
cidade era o símbolo do novo e havia um crescimento da população
pauperizada, que proporcionava desordem urbana: os pobres não
se encaixavam no ideal de nação. Havia um temor das massas, uma
reairmação do conceito de eugenia; a teoria de Malthus causava
impacto. Então era necessário “salvar a criança”, ideia legitimada
pelo aparelho de Estado e nos discursos médicos e jurídicos. Todo
esse ideário justiicava práticas impiedosas contra as crianças po-
bres e educá-las implicava moldá-las para a submissão. Havia “um
povo a fazer”, “uma infância a moldar” e a percepção de que a infân-
cia podia estar em perigo, ou ser perigosa.
A pureza e a inocência da criança considerada como “alma
cândida” ou como “anjinho” é substituída por uma concepção cientí-
ico-racional do mundo que supunha que a “célula do vício” podia
lhe ser transmitida antes de nascer. A criança que perambulava
pelas ruas compunha o cenário de pobreza, e a solução encontrada
na época era o recolhimento. Cria-se a dicotomia,

[...] de um lado, a criança mantida sob os cuidados


da família; e de outro o menor, mantido sob a tutela
vigilante do Estado, objeto de leis, medidas ilantrópi-
cas, educativas/repressivas e programas assistenciais,
e para o qual, poder-se-ia dizer com José Murilo de
Carvalho, estava reservada a “estadania” (Rizzini, 2008,
p. 29).

Ao investigarmos o acervo de revistas do início do século


passado, como Careta, Fon-Fon ou Vida Doméstica, foi possível pen-
etrar no imaginário da época através de imagens que buscavam
criar uma ideia do real, havia uma intencionalidade e os periódicos
cumpriam um papel de interferir nos hábitos de consumo, nos pro-
cessos sociais e nas práticas cotidianas. Havia uma projeção do fu-

33
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

turo desejado e a carência e pobreza infantil eram consideradas um


atraso, um problema a ser tratado do ponto de vista da assistência
e não como alvo da oferta de direitos pelo poder público. Essas re-
vistas mostravam a imagem da criança branca, com pai e mãe, com
condição social privilegiada e revelavam saúde e felicidade. Chama
a atenção o “Concurso de Robustez Infantil”, da revista Fon-Fon, be-
bês brancos, nus e gorduchos enfeitavam as páginas e anunciavam
o futuro.
Loic Wacquant (2001) fala de uma violência estrutural so-
bre os sujeitos sociais excluídos. Há a combinação de dois processos
sociais: a polarização de classes em razão das desigualdades sociais
e a segregação racial. A identidade é uma categoria teórica que não
deve ser considerada como uma “segunda pele” aderida ao sujeito,
como um rótulo classiicador. As identidades são produzidas em um
universo de cultura que vive a mudança, o movimento e os proces-
sos de negociação. A exclusão não é uma categoria intransitiva. O
excluído não existe por si mesmo. Está fora de alguns lugares e in-
cluído em outros. É essencialmente relacional e supõe movimento.
Os sujeitos também constroem experiências que constroem outros
sujeitos.
Existem pontos em comum entre os quilombos, as atuais
favelas brasileiras e os estigmas criados em torno destes: os quilom-
bos foram construídos em torno do não aprisionamento dos negros
e nas favelas aconteceu a luta pela permanência nos locais “escol-
hidos” para moradia. Quando se instala a “ideologia da higiene”,
institui-se a proibição da construção de novos cortiços. Portanto,
naquele período, podemos perceber o início do processo de expul-
são das “classes pobres e perigosas” do centro da cidade. Historica-
mente, houve a combinação de dois processos sociais: a polariza-
ção de classes em razão das desigualdades sociais e a segregação
racial.
Muitos jovens negros da periferia e das favelas cresceram
longe dos direitos básicos, com uma experiência social vivida em
torno dos interesses que movem o tráico e seus poderosos artic-
uladores, seduzidos pelo consumo e vivendo as contradições das
privações. Vítimas de uma história ensinada, que tatuou em seus
sentidos um passado de escravos torturados oriundos de um povo
inferior. Assim, em suas trajetórias como indivíduos, lhes foi rouba-
do um passado de que pudessem se orgulhar.

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AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

José Murilo de Carvalho (2001) airma que a Abolição da


escravidão foi o único progresso, do ponto de vista da cidadania, do
período que engloba o Império e a Primeira República. A sociedade
brasileira foi marcada durante séculos pelo latifúndio monocultor e
exportador de base escravista, e os escravos eram propriedades do
senhor e não possuíam os direitos civis básicos à integridade física,
à liberdade e à própria vida. Faltavam quase todas as condições
para o exercício dos direitos civis para a população legalmente livre,
sobretudo a educação, e tais direitos tornavam-se instrumento do
poder pessoal. Não existia um poder que pudesse ser chamado de
público. Em 1871, apenas 16% da população era alfabetizada e não
havia um interesse da administração imperial ou dos senhores de
escravos em difundir essa arma cívica (Carvalho, 2001).
Após a Abolição, não foram oferecidos escolas, terras e em-
pregos aos libertos que retomaram seus trabalhos em fazendas por
baixos salários ou reforçaram os contingentes da população sem
emprego ixo. A igualdade disposta nas leis não se efetivou na práti-
ca e as consequências disso podem ser percebidas nos indicadores
de qualidade de vida da população negra até os dias de hoje.
Nos textos de Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, temos a
presença do direito no discurso de caráter liberal. A educação era
vista como instrumento de ascensão social. Mais de um século pas-
sou e os anos de “ilegalidade impune”, na expressão de Rui Barbosa,
marcados pela ausência de “reparação” de um “crime nacional in-
sanável”, termos presentes nas formulações de Joaquim Nabuco,
não foram devolvidos à população em forma de acesso pleno aos
direitos. Apesar da utilização do termo “reparação” por Nabuco e da
expressão “ilegalidade impune” de Rui Barbosa, do ponto de vista
discursivo e histórico, a Abolição em si e o “arrependimento” con-
sistiriam para estes ações reparatórias diante do que foi chamado
de “crime insanável” e as suas ideias se limitavam à manutenção da
ordem e à visão de progresso da época.
Escrito em 1883, O abolicionismo, de Joaquim Nabuco,
foi um dos principais textos doutrinários em prol da Abolição da
escravidão, considerada em suas palavras como uma “fatalidade
brasileira” e “... um impedimento levantado no caminho do país todo,
ao desenvolvimento e bem-estar de todas as classes, à educação
das novas gerações” (2000, p. 161). O seu discurso trazia o direito à

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

liberdade como um princípio fundamental do século XIX e evocava


um projeto de nação livre da violação de um direito internacional. A
reparação e sua viabilização viriam através do “arrependimento ho-
nesto do Brasil” diante do crime praticado contra os povos de países
africanos. Nabuco teceu sua defesa contra a escravidão e a consid-
erou um crime nacional insanável contra os africanos apresados ile-
galmente pelo tráico e vítimas sem reparação.
Para Nabuco (2004), além da unidade nacional, a Abolição
da escravidão também teria sido um legado histórico do período
monárquico. No período anterior a Abolição, a sua defesa era a de
que esta deveria ser feita no parlamento e não em fazendas, quilom-
bos, praças ou ruas da cidade. Defendia que no Brasil a escravidão
era uma fusão de raças. Observa-se o não reconhecimento, como
elemento primordial, que em séculos de escravidão a população
cativa insurgiu-se inúmeras vezes e de diversas formas contra o
sistema escravista.
Rui Barbosa chamaria de ilegalidade impune o tráico de
escravos, sendo esse um de seus argumentos contra o pagamento
de indenizações ao proprietário de escravos que “seria uma cumpli-
cidade com o próprio crime que se queria combater” (Silva, 2003, p.
54-57). O desenvolvimento tecnológico e as mudanças no sistema
produtivo vividos no século XIX colocavam em questão para ele a
necessidade do ensino de um conteúdo escolar que preparasse para
o trabalho em uma sociedade industrializada e alçava a um lugar de
destaque o ensino de Ciências. Ele via na instrução o alicerce para a
prosperidade pública.
A instrução era vista como uma das principais estratégias
civilizatórias do povo brasileiro, para arregimentar pessoas para o
projeto da independência. Nas décadas iniciais do século XIX os
governos estabeleciam ou mandavam criar escolas das primeiras
letras, momento inicial da estruturação do Estado imperial. A escola
proposta para as “classes inferiores da sociedade” deveria generali-
zar os rudimentos do saber ler, escrever e contar.
Até o inal da primeira metade do século XIX, a frequên-
cia de crianças negras, mesmo as livres, é proibida. Porém essa in-
terdição no acesso às instituições escolares em nada impedia que
tivessem contato com as letras no universo familiar e comunitário.

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AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

Muitos escravos se alfabetizavam observando e acompanhando as


práticas de ensino no interior das famílias dos senhores ou apre-
ndiam com os mais velhos. Após a Lei do Ventre Livre de 1871, o
governo imperial passou a exigir que os senhores de escravos to-
massem conta das crianças menores de oito anos de idade.
A Constituição de 1824 manteve a escravidão respaldada
no direito à propriedade, embora trouxesse a assertiva liberal de
que todos os homens nasciam livres e iguais. A vida, a liberdade, a
propriedade e a segurança são quatro direitos básicos que compa-
receram ao texto da Carta de 1924. Entretanto, de pouco adianta
o direito à vida se a liberdade destes “nascidos em outros estados
nacionais” era tratada do ponto de vista da exclusão e os atributos
“liberdade” e “propriedade” regulavam as relações entre escravos e
senhores.
Os pronunciamentos em favor de uma educação para o
povo, entretanto, só se intensiicam a partir de 1870, quando ocorre
um surto de progresso na economia brasileira e aumenta consider-
avelmente a penetração das ideias liberais. O Decreto n. 7.031, de
6 de setembro de 1878, criou o ensino noturno. No ano seguinte,
eliminou-se a proibição de que escravos frequentassem as escolas e
instituía-se a obrigatoriedade do ensino dos 7 aos 14 anos.
Nos tempos atuais discutem-se e implementam-se políti-
cas de discriminação positiva como ação reparadora por séculos de
discriminação. Quando pensamos no tema cidadania e nas políticas
públicas atuais de inclusão da população afrodescendente, obser-
vamos o acesso e permanência nas instituições educacionais em to-
dos os níveis como uma questão que vem mobilizando intensos de-
bates. O campo da educação, enquanto um direito social representa
um espaço privilegiado na luta pela superação das desigualdades.
O que Durban considera uma tragédia do passado per-
manece na ordem do dia nos debates sobre a produção da exclusão
da população negra. As gerações que foram tragadas pelo racismo
não representam apenas um passado a ser lembrado, mas uma
marca do presente. A igualdade, a liberdade e a cidadania são re-
conhecidas pelo Estado como princípios emancipatórios, porém os
processos de produção da desigualdade e da exclusão permane-
cem como elementos estruturantes do desenvolvimento capitalista

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

e não são questionados.


Ao recordar as formulações de Nabuco e Rui Barbosa, re-
letimos como os discursos da elite liberal no passado regularam
uma abolição que não saísse do controle. E hoje, podemos airmar
que discursos semelhantes, que não questionam tais elementos es-
truturantes da produção de desigualdades e da exclusão, compare-
cem nas políticas estatais para os grupos sociais discriminados no
processo de hierarquização social através de normatizações e leis.
As discussões sobre a redução da maioridade penal, a vul-
nerabilidade da população negra nos dias atuais exposta perman-
entemente a situações de risco, o diferenciado acesso aos bens de
serviços públicos como saúde, educação e trabalho e a política da
“tolerância zero” podem servir de exemplo e dialogar com as ex-
periências passadas que culpabilizavam e criminalizavam os excluí-
dos pelas mazelas da sociedade. A interdição não icou no passado,
ela ainda existe e seria o que Boaventura de Sousa Santos vai chamar
de “gestão controlada da exclusão”. Para ele, a “exclusão da normali-
dade é traduzida em regras jurídicas que vincam, elas próprias, a
exclusão. Na base da exclusão está uma pertença que se airma pela
não-pertença, um modo especíico de dominar a dissidência” (2006,
p. 281).
Para Santos, no que diz respeito à desigualdade, a função
das políticas estatais consiste em mantê-la nos limites que não in-
viabilizem a integração subordinada, “os direitos sociais e econômi-
cos universais, o rendimento mínimo de inserção social e as políti-
cas compensatórias, (‘fome zero’, bolsa-escola, abono de família,
assistência social) são os mecanismos modernos (muito diferentes
entre si) para manter as desigualdades em níveis toleráveis” (2006,
p. 285).
Agnaldo Silva, autor de telenovela, signatário do mani-
festo “Os 113 anti-racistas contra as leis raciais”, fez de seu trabalho
televisivo Duas caras um texto de enfrentamento às cotas e às de-
mandas dos movimentos negros no campo das ideias e do simbóli-
co. O personagem em questão é um jovem negro, de olhos azuis e
sobrenome alemão, líder estudantil da ictícia Universidade Pessoa
de Moraes. O rapaz de nome Rudolph, dono de jargões estereotipa-
dos da militância estudantil, apresenta problemas de caráter, é des-

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AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

respeitoso com quem pensa diferente, forja situações de pretenso


racismo contra si próprio e inge ser pobre, para, como aluno bol-
sista, angariar a coniança dos estudantes. Numa das muitas cenas
simbólicas, o arrogante líder estudantil negro aparece tratando mal
a sua empregada doméstica enquanto está à beira da piscina de
sua mansão lendo O capital de Karl Marx. Esse jovem é confrontado,
mas também se apaixona, por uma moça branca de classe média
alta, coniável, bom caráter e que não vê racismo em nossa socie-
dade.
Mas o que pretende o autor com a sua história? Que el-
ementos de formação de opinião pública estão embutidos no dis-
curso do autor da emissora em que trabalha Ali Kamel, que airma
que “nós não somos racistas”? Quem são os estudantes cotistas, de
carne e osso, em sua maioria? Por que a discussão sobre as “cotas”
mobiliza tanto a todo-poderosa emissora de TV Rede Globo? Na
caricatura do jovem negro de falso discurso, a universidade privada,
que garante acesso aos mais pobres graças aos empresários que
nela investem, uma favela inverossímil em que só aprece uma famí-
lia negra e em que os personagens de moral incontestável são os
ricos que vivem relações solidárias e harmoniosas com os pobres
da história, Silva passa a imagem de uma grande harmonia entre as
classes e um discurso de negação das diferenças.
Para Santos, a negação das diferenças opera segundo a
norma da homogeneização. Ou seja, 120 anos após a Abolição, com
o envolvimento do Estado em políticas públicas especíicas para ne-
gros, a problemática racial que parece não resolvida, retorna com
força semelhante àquela do pós-Abolição.
Ao se autodenominarem antirracistas, os 113 signatários
utilizaram um discurso sobre raça que não está isento de um valor
e de um objetivo de demonstrar uma disputa ideológica que está
sendo realizada, naquilo que Bakhtin chamaria de “terreno da lin-
guagem”. Nunca é demais dizer que a imagem, a palavra e mesmo
a tecnologia podem servir a diferentes visões de mundo e classes
sociais, podem produzir diferentes conhecimentos acerca de deter-
minada temática. A imagem não substitui o discurso, assim como o
discurso não substitui a imagem, pois existem formas múltiplas de
apreensão da realidade. O que está em jogo, portanto, não se limita
à disputa política no campo ideológico e pedagógico. A partir de

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

palavras e imagens, busca-se reforçar e construir novas representa-


ções, novas memórias, novas identidades ou, como diz Boaventura,
através de “imagens desestabilizadoras”, tecer a esperança e alimen-
tar o inconformismo e a indignação para a construção de uma nova
teoria da história.
A palavra pode estar a serviço de qualquer classe social
ou ideologia e também pode estar mais acentuadamente marcada
pela individualidade e pelo contexto histórico. A palavra possibilita
o processo de interação entre as pessoas e o discurso pode penetrar
nas relações sociais com enunciados e signiicações que buscam su-
perar na comunicação discursiva as diferenças e instituir uma uni-
formização. Bakhtin não procurava no discurso o consenso, mas a
polarização, o dissenso, a contradição, a ambivalência. A palavra
continua a ser o centro da comunicação entre os homens e como tal
é utilizada nos discursos e nas disputas ideológicas. Como diz Stam,
“não há luta política que não passe pela palavra” (1993, p. 157).
A regulação social é constituída de processos que per-
mitem controlar ou manter dentro de certos limites os processos
de desigualdade e exclusão de forma a reduzir as possibilidades de
emancipação social. Vejamos o que diz Boaventura de Sousa San-
tos,

A desigualdade e a exclusão são dois sistemas de


pertença hierarquizada. No sistema de desigualdade,
a pertença dá-se pela integração subordinada en-
quanto que no sistema de exclusão a pertença dá-se
pela exclusão. A desigualdade implica um sistema hi-
erárquico de integração social. Quem está em baixo
está dentro e sua presença é indispensável. Ao con-
trário, a exclusão assenta num sistema igualmente
hierárquico, mas dominado pelo princípio da seg-
regação: pertence-se pela forma como se é excluído.
Quem está em baixo, está fora. Esses dois sistemas
de hierarquização social, assim formulados, são tipos
ideais, pois que, na prática, os grupos sociais inserem-
se simultaneamente nos dois sistemas, em combina-
ções complexas (2006, p. 280).

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AFRODESCENDENTES NO BRASIL, ESCOLARIZAÇÃO E A GESTÃO CONTROLADA DA EXCLUSÃO

Ao longo do texto, as analogias e as relexões sobre o uso


das palavras “reparação” e “dívida”, usadas em contextos discursivos
diferenciados, exigiram uma identiicação das diferenças e semel-
hanças, mas, sobretudo das variações dos momentos históricos em
que estavam inseridas e de que elementos permanecem e qual foi
o padrão de transformação sofrido no discurso. O discurso de três
expoentes do abolicionismo, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e José
do Patrocínio, continuou tendo repercussões posteriores. Vejamos
o que diz o manifesto dos “113 anti-racistas”,

As palavras da Lei emanam de uma tradição brasileira,


que cumpre exatos 120 anos desde a Abolição da es-
cravidão, de não dar amparo a leis e políticas raciais.
No intuito de justiicar o rompimento dessa tradição,
os proponentes das cotas raciais sustentam que o
princípio da igualdade de todos perante a lei exige
tratar desigualmente os desiguais. Ritualmente, eles
citam a Oração aos Moços, na qual Rui Barbosa, inspi-
rado em Aristóteles, explica que: “A regra da igualdade
não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos
desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta
desigualdade social, proporcionada à desigualdade
natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.” O
método de tratar desigualmente os desiguais, a que
se refere, é aquele aplicado, com justiça, em campos
tão distintos quanto o sistema tributário, por meio da
tributação progressiva, e as políticas sociais de trans-
ferência de renda. Mas a sua invocação para sustentar
leis raciais não é mais que um soisma.

Os abolicionistas acompanharam de perto o processo


que desembocou nas leis abolicionistas do Segundo Reinado, estas
apresentadas por gabinetes conservadores. A bandeira do abolicio-
nismo era dos liberais. José do Patrocínio combinava as característi-
cas da elite ilustrada com um toque popular, era um bom agitador,
mas, como os outros, dirigia-se taticamente ao imperador, à elite
política, aos proprietários, à população livre. Não havia enraizamen-
to dos intelectuais abolicionistas junto aos ex-escravos e é algo que

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

teria reletido no discurso e no nível de organização e reivindicação


destes no período imediatamente após a Abolição.
Nos escritos da imprensa negra na Primeira República que
representam a fala dos movimentos sociais era possível identiicar
uma analogia entre o analfabetismo e a escravidão e havia regis-
tros das situações de desigualdades a que era submetido o povo
negro. Assim, reletir sobre a história que envolve a escolarização, a
produção da desigualdade e da exclusão e a luta pela inserção con-
sciente e igualitária dos afrodescendentes no cenário sociopolítico
e econômico, é estabelecer metodologicamente analogias, perce-
ber diferenças, permanências e descontinuidades nestes 120 anos
que nos separam do 13 de maio de 1888.
O discurso e a crença na desigualdade racial e na incapa-
cidade civilizatória dos negros presentes no período da Abolição
geraram políticas públicas de natureza eugenista. Desta forma, a
gestão da exclusão tinha cor, e a dor da exclusão marcaria as futuras
gerações. Mais de um século se passou, e nesse percurso assistimos
ao recrudescimento do regime político com a Era Vargas e com o
Golpe Militar de 1964, seguido do período de abertura política, que
trouxe conquistas democráticas e uma Constituição em 1988 per-
meada de avanços no campo dos direitos políticos, civis e sociais,
ainda que a educação seja tratada timidamente como uma oferta
obrigatória do Estado e não como um capital social a ser universal-
izado.
Todas essas conjunturas políticas foram acompanha-
das pelo mito de democracia racial que inluenciou fortemente a
produção acadêmica e, ainda hoje, esse “mito” representa conforto
para quem dá uma dimensão menor para as desigualdades no que
diz respeito ao acesso a uma educação de qualidade e apresenta a
capacidade, a exemplo do manifesto dos “113 anti-racistas’, como
elemento garantidor da igualdade. Oferta desigual de qualidade
de ensino produz “capacidade” desigual para as disputas com vagas
limitadas, e em tempos de meritocracia neoliberal icamos com um
trecho de Autonomia, bela poesia de Cartola, que diz: “É necessário
a nova abolição. Pra trazer de volta a minha liberdade”.

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45
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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Janeiro: Garamond, 2004.

Documentos oiciais:

DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO da Conferência Mundial contra o


Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata
da ONU, realizada entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001 na
cidade de Durban na África do Sul. Mimeo.
DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELA-
ÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA
AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA. Brasília: MEC, 2005.

46
LEI N. 10.639/03:
UMA PROPOSTA
INTERCULTURAL NO
CAP-UERJ?
Luiz Fernandes de Oliveira5
Maria Cláudia Reis
Mônica Regina Ferreira Lins

Amar é quando a gente aprende a morar no outro.


Mário Quintana

Rio de Janeiro, cidade de história e beleza ímpares, dona


de uma silhueta repleta de morros que fazem saltar diante de nos-
sos olhos as desigualdades sociais ainda que seus moradores sigam
invisíveis para muitos. O Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues
da Silveira (CAp-Uerj) tem no seu entorno algumas favelas, e com al-
guma constância a comunidade escolar se informa ou sofre na pele
os diferentes tipos de violência que vemos estampadas nos not-
iciários. É uma instituição pública em que a forma de acesso se dá
por sorteio, e a cada ano ilhos e ilhas de professores universitários,
de funcionários da UERJ (comunidade interna) e crianças da comu-
nidade externa, formam as turmas do 1º ano de escolaridade. A co-
munidade escolar do Cap-Uerj tem de crianças ilhos de famílias de
baixa renda a ilhos de empresários, de moradores da Baixada Flu-
minense, São Gonçalo e Zona Oeste a moradores da Zona Sul e Bar-
ra da Tijuca. Ou seja, do ponto de vista socioeconômico, os acessos
5 Doutorando em Educação Brasileira pela PUC–Rio, Professor Assistente da UERJ e Profes-
sor de Sociologia da Faetec.
6 Mestre em Educação pela UFF e Professora Assistente da UERJ e professora de Sociologia
da rede estadual do Rio de Janeiro.
7 Mestre em Educação Brasileira pela PUC–Rio e Professora Assistente da UERJ, ex-profes-
sora de História da rede municipal do Rio de Janeiro.

47
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

a bens materiais e culturais são muito diversos e a prática docente


precisa pautar-se na garantia da igualdade diante das diversidades
e adversidades.
O presente texto faz parte de um processo de relexão, do
ponto de vista teórico e prático, de três professores com formação
e experiência docente nas áreas de Sociologia e História, a partir do
trabalho com crianças das temáticas relacionadas à educação das
relações étnico-raciais e a aplicação da Lei n. 10.639/03, que insti-
tui a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura
Afro-brasileira, na forma do artigo 26-A acrescido à Lei n. 9.394/96
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em todo
o currículo do Ensino Básico, vem se consolidando como uma das
mais eicazes políticas públicas de reparação e ação airmativa, um
marco na história das leis educacionais no Brasil, e dá tratamento no
campo curricular a uma demanda histórica do movimento negro.
Ainda é cedo para avaliarmos a repercussão dessa legisla-
ção nas práticas escolares e na formação dos professores, entretanto,
ela representa um avanço do ponto de vista institucional, na direção
de uma escola como palco de construção de identidades individuais
e sociais contempladas pela diversidade de contribuições históricas
de uma sociedade multicultural e pluriétnica. Já se reproduzem ini-
ciativas em território nacional de experiências educacionais voltadas
para a ruptura com uma transmissão da cultura nacional de forma
universalizante e homogeneizadora. Partindo desta perspectiva, o
presente texto também buscará reletir sobre a escola como institu-
ição privilegiada para um outro tipo de sociabilidade de crianças e
jovens, constituída à luz da diversidade das experiências humanas
na tentativa de implementar uma educação intercultural. Ao relatar
experiências com crianças dos anos iniciais, a nossa pretensão é a
de promover uma relexão que contribua com os intensos debates
em torno do processo histórico de exclusão do sistema educacional
brasileiro que tem cor, condição social e lugar de moradia.

Aprendendo a morar no outro

“Eu não sou chamada para brincadeira de menina bonita.”


Essa frase foi dita por uma menina de 9 anos de idade, moradora

48
LEI N. 10.639/03

de uma região bem pobre e de difícil acesso no Rio de Janeiro. Es-


pevitada, decidida e alegre, quase sempre fala o que pensa. Quase
sempre... Aluna do Cap-Uerj, inserida numa turma em que boa par-
te das crianças são negras e moradoras do subúrbio, mas há quem
já tenha visitado a Disneylândia e tenha acesso a bens de consumo
mais caros. No início, não falava de questões que a incomodavam
no relacionamento com a sua turma e transmitia certa indiferença.
Vítima de um tipo de manifestação que por vezes teimava em com-
parecer na turma, foi chamada de “macaca”, enquanto sua profes-
sora a fotografava para um projeto da turma, e toda a sua coragem
e força para dizer o que pensava não puderam ser mobilizadas na
Roda de Conversa chamada pelas professoras para discutir o ocor-
rido.
O episódio ocorrido logo no início do ano letivo de 2006,
assim como outros de igual expressão de desrespeito ao outro, mo-
tivou uma sucessão de Rodas de Conversa, que juntamente com as
Rodas de Leitura e de Notícias, são atividades que acontecem du-
rante todo o ano em nossas turmas e contribuem com o desenvolvi-
mento de procedimentos e atitudes. Segundo Cecília Warschauer
(2001), as rodas são espaços de trabalho coletivo e expressam uma
concepção que dá papel de centralidade à formação de uma comu-
nidade de partilha de saberes onde circulam ideias no ato de apre-
nder a aprender e de formar-se com o outro. Na concepção de par-
tilha que as rodas trazem, temos a ideia de retorno à pessoa, em que
são produzidos signiicados e aprendizados. A partilha pode ocorrer
via dois canais: o oral, com o conversar, e o escrito, com registros do
vivido, que podem alargar as possibilidades do compartilhar, além
de oferecer uma condição privilegiada para a relexão.
As rodas são ricas experiências daquilo que nos acontece,
com narrativas que se renovam em contatos repetidos. A palavra
“conversar” quer dizer “dar voltas”, as ideias circulam e cada um dos
parceiros pode mudar seu ponto de vista durante a conversa. Essa
rede de conversas não só desenvolve a capacidade de argumenta-
ção lógica, como implica capacidades relacionais, respeito, saber
ouvir, falar e aguardar a vez. Ao inserir-se na malha da conversa, a
criança enfrenta as diferenças e coloca-se diante do ponto de vista
do outro. Para Maturana (1997), o conversar caracteriza o humano,
pois se realiza através da linguagem e no entrelaçamento do emo-
cional e do racional.

49
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

E muitas coisas nos aconteceram e foi preciso dar muitas


voltas para que aprendêssemos a morar no outro coletivamente. No
1º, 2º e 3º ano, o relatório é uma das formas de registro de avaliação
adotadas pelo Cap-UERJ nos anos iniciais. De um modo geral, os
relatórios apresentam a avaliação coletiva da turma e individual de
cada criança sob o ponto de vista dos docentes e uma avaliação do
coletivo e de si mesma escrita pela criança. As experiências transfor-
maram-se num relato dirigido aos pais de três páginas, intitulado “A
turma: aprendendo a morar no outro”. Num dos trechos diziam as
professoras,

[...] Enfrentamos a discussão do preconceito a


partir da analogia com a dor, pois é importante
fazê-los reletir como dói fundo e “na alma”, como
disse um aluno, sentir na pele o preconceito ra-
cial, de gênero e de condição social. Encaminhar
essas discussões é garantir seres humanos mais
felizes e autoconiantes. Não deixamos passar
nada sem discussão e estamos intervindo ime-
diatamente nas situações em que um colega é
desrespeitado. O bem-estar e a felicidade dos
amigos vêm sendo tratados como uma respon-
sabilidade de todos nós e é como destampar uma
panela de pressão, pois várias situações antes si-
lenciadas vêm aparecendo em nossas discussões
[...] Algumas crianças reagiam chorando, outras
com indiferença [...] Como professoras, nos co-
locamos como responsáveis por cada gesto do
coletivo. A relação de coniança está crescendo e
eles têm trazido tudo para as rodas. Os que mais
sofriam estão se fortalecendo e estão rompendo
o silêncio. Temos a hipótese que parte dos prob-
lemas que a turma enfrenta, inclusive no campo
da aprendizagem, podem estar localizados nas
relações interpessoais.

Esse registro foi entregue antes de a reunião acontecer e as


professoras pediram através de uma carta que os pais lessem com
e para seus ilhos o que havia sido relatado. A reunião aconteceu
com a presença de responsáveis de todas as crianças e o impacto re-
lexivo abriu um importante campo de possibilidades para enfren-

50
LEI N. 10.639/03

tar questões que eram delicadas e urgentes para aquele grupo de


crianças. Contudo, todo o avanço alcançado nas relações com esse
grupo apenas indicou que o trabalho no campo da identidade e da
diferença precisa ser permanente e que não pode estar restrito a
ações fragmentadas, mas deve estar presente no currículo escolar.
No ano seguinte, após ter guardado em silêncio a inacei-
tável manifestação do colega, a mesma criança proferiu a frase “Eu
não sou chamada para brincadeira de menina bonita“. Durante uma
Roda em que as crianças se autoavaliavam e avaliavam todo o tra-
balho do bimestre, surgiu uma discussão sobre o desempenho de
uma menina da turma e algumas crianças diziam que ela nunca ha-
via sido inserida pelo grupo de meninas nas brincadeiras durante o
recreio, o que a afastava da turma e provocava certo desinteresse
dela nas aulas também. Um dos meninos trouxe a hipótese de que
existia ali preconceito. Em resposta, uma das meninas airmou que
não era preconceito e que elas eram, inclusive, amigas de X, a outra
menina negra da turma, e pela primeira vez a pequena quebrou o
silêncio e a suposta indiferença, apresentando, com lágrimas, em
seu depoimento a frase já citada. Nesse dia uma aluna do Curso de
Pedagogia que estagiava na turma, surpresa com o debate e com o
que diziam as crianças, disse que havia visto ali uma situação limite.
Naquele momento, o investimento realizado permitiu que todos
dissessem o que estavam sentindo e reletia um crescimento do
grupo.
Outra experiência com crianças aconteceu em 2004 no
Cap-UERJ com uma turma da então 2ª série. Ano de Olimpíadas em
Atenas, boa oportunidade para um projeto envolvendo a Grécia,
suas mitologias e sua inluência histórica em todas as áreas do con-
hecimento. Os conteúdos especíicos da série e projetos paralelos
desenvolveram-se a partir das discussões sobre as nossas origens
enquanto povo brasileiro e enquanto seres humanos. Como parte
constitutiva dessa abordagem, a chamada cosmovisão (lendas e mi-
tologias) dos povos indígenas e africanos; a origem dos números
e das linguagens matemáticas; a alfabetização cartográica, com o
estudo da constituição do espaço geográico e da história dos bair-
ros; a história de vida de nossas crianças, através da produção de
autobiograias.
Partindo de leituras como Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria
Machado, e Histórias de avô e avó, de Arthur Nestrovsk, trabalhamos
com entrevistas e o resgate da memória de outras gerações. O sub-

51
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

projeto “Relíquias de família”, com os objetos, fotos, roupas antigas,


contribuiu para desenvolver o conceito de tempo e memória, mas
também para estabelecer laços afetivos como podemos perceber
no dizer de algumas crianças: “Eu ganhei da minha mãe este objeto,
que foi da minha avó e vai ser dos meus ilhos”. Pensamos no lugar
que a história de vida cumpre na formação de identidade. Os ob-
jetos, as fotos, os dizeres dos avós materializam a herança de seus
antepassados num tempo histórico próximo, porém, do ponto de
vista sociocultural, bastante diferente das experiências vividas pelas
crianças. Quando a criança pergunta sobre suas origens busca a
compreensão sobre si mesma e na sabedoria do passado oferecida
nas vozes dos mais velhos, ressigniica o presente e relete sobre o
futuro que brota do passado.
Preocupávamo-nos em contribuir na construção de uma
identidade individual e social pautada no encontro de etnias, socie-
dades e visões de mundo. Para tanto, trouxemos a literatura infantil
e suas relações com o mundo e com a história, entendida em sua
dimensão formadora e como construção ativa de uma comunidade
de leitores que acessou leituras das mitologias gregas, africanas
e indígenas. A valorização de conteúdos voltados para a história
e cultura dos povos africanos e indígenas contribuiu para que os
pequenos leitores estabelecessem relações, produzissem sentidos,
e nessa interação com o texto, construíssem conhecimento sobre as
nossas origens e a formação cultural de nosso povo. Tal experiência
reforça o nosso entendimento de que certas leis podem contribuir
no desenvolvimento de práticas interculturais e de combate às dis-
criminações raciais.

Pensando nossas experiências a partir da


pedagogia do conlito

Em junho de 2004, a Lei foi regulamentada pelo Conselho


Nacional de Educação (CNE), instituindo as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana, que representa mais um
passo nas políticas de ações airmativas e de reparação para a Edu-
cação Básica. O racismo estrutural no Brasil explicita-se através de

52
LEI N. 10.639/03

um sistema meritocrático, “agrava desigualdades e gera injustiça”.


Há uma demanda da comunidade afro-brasileira por reconheci-
mento, valorização e airmação de direitos, no que diz respeito à
educação. Esse reconhecimento requer estratégias de valorização
da diversidade. Esta é entendida como aquilo que distingue “os
negros dos outros grupos que compõem a população brasileira”.
Além disso, este reconhecimento passa pela ressigniicação de ter-
mos como “negro” e “raça”, pela superação do etnocentrismo e das
perspectivas eurocêntricas de interpretação da realidade brasileira
e pela desconstrução de mentalidades e visões sobre a história da
África e dos afro-brasileiros.
As diretrizes formulam explicitamente uma perspectiva de
inclusão de políticas de reconhecimento da diferença, nos aspec-
tos políticos, culturais, sociais e históricos, mas também propõem
– estabelecendo uma obrigatoriedade – conteúdos pedagógicos
nos sistemas de ensino, que, por sua vez, se caracterizam enquanto
uma perspectiva nada tradicional na educação brasileira.
A promoção de uma educação que estabelece a conlitu-
alidade de conhecimentos ou uma “pedagogia das ausências” (San-
tos, 2006), nos possibilita experimentar uma relexão coletiva para
enfrentar aspectos conlitivos e tensões que se apresentam nas rela-
ções entre intencionalidade da Lei 10.639/03 e a formação dos pro-
fessores que, por longos anos, apreenderam a partir de concepções,
visões de mundo e enfoques eurocêntricos.
Boaventura de Souza Santos, no texto Para uma pedagogia
do conlito (1996), defende a ideia de uma educação que parta da
conlitualidade dos conhecimentos, ou seja, um projeto educativo
conlitual e emancipatório, em que o conlito sirva, antes de tudo,
para vulnerabilizar os “modelos epistemológicos dominantes”.
Boaventura fundamenta essa posição política e episte-
mológica, argumentando que em tempos de globalização, da socie-
dade do consumo e da informação, a burguesia internacional tem
na tese do im da história seu referencial epistemológico de celebra-
ção do presente e da ideia da repetição, que permite ao presente se
alastrar ao passado e ao futuro, canibalizando-os. Com a derrota do
“socialismo” e a consolidação da vitória da burguesia, para o autor, o
espaço do presente como repetição foi se ampliando e “hoje a bur-

53
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

guesia sente que sua vitória histórica está consumada e ao vence-


dor consumado não interessa senão a repetição do presente. Daí a
teoria do im da história” (Santos, 1996, p. 16).
O autor airma ainda que essa mesma teoria “contribuiu
para trivializar, banalizar os conlitos e o sofrimento humano de
que é feita a repetição do presente” (Santos, 1996, p.16). Este sofri-
mento, por sua vez, é mediatizado pela sociedade de informação, se
transformando “numa telenovela interminável em que as cenas dos
próximos capítulos são sempre diferentes e sempre iguais às cenas
dos capítulos anteriores” (Santos, 1996, p.16). E mais: “Essa trivial-
ização traduz-se na morte do espanto e da indignação. E esta, na
morte do inconformismo e da rebeldia” (Santos, 1996, p. 16).
Entretanto, Boaventura informa um outro aspecto dessa
questão, ou seja, atualmente as energias do futuro parecem des-
vanecer-se, pelo menos enquanto o futuro continuar “a ser pensado
nos termos em que foi pensado pela modernidade ocidental, ou
seja, o futuro como progresso” (Santos, 1996, p. 16). Ele nos diz, que
os vencidos da história “descreem hoje do progresso porque foi em
nome dele que viram degradar-se as suas condições de vida e as
suas perspectivas de libertação” (Santos, 1996, p. 16).
Nesse sentido, nas discussões sobre relações raciais e edu-
cação, expressas em algumas pesquisas, apresentam-se docentes
que evitam a questão racial entre crianças, com o objetivo de evitar
o conlito, mas acabam, por sua vez, promovendo o silenciamento
dos que sofrem discriminações e racismo no espaço escolar.
Em vários momentos, segundo Oliveira e Lins (2007), ica
evidente em relatos de docentes uma fuga das discussões sobre
racismo e discriminações, ora negando sua existência, ora reair-
mando o mito da democracia racial: “uma vez um aluno disse uma
frase em sala de aula: seu pai, aquele preto! E a professora calou-se”
ou “as crianças negras são chamadas de faveladas e o professor não
intervém”.
Para nós, essas situações parecem revelar o que Boaven-
tura (1996) diz sobre a morte da indignação, do espanto, a trivial-
ização das consequências perversas da sutileza das discriminações
raciais no Brasil.

54
LEI N. 10.639/03

O enfoque teórico defendido nos debates que aqui esta-


mos apresentando se expressa no convite à relexão sobre a neces-
sidade de uma pedagogia que promova a conlitualidade dos con-
hecimentos, ou seja, questionando a ideia do im da história, airma
a possibilidade de uma outra teoria da história, que devolva ao pas-
sado “sua capacidade de revelação”, isto é, um passado reanimador
que, através de “imagens desestabilizadoras” e da conlitualidade,
nos faça potencializar e recuperar nossa capacidade de espanto e
indignação perante o “apartheid global” e os sofrimentos humanos.
Ou seja, um projeto educativo emancipatório enunciado
aqui signiica produzir imagens desestabilizadoras a partir de um
passado do povo negro concebido não como fatalidade, mas como
produto da iniciativa humana. Para Boaventura, a sala de aula teria
que se transformar em campo de possibilidades de conhecimentos
dentro do qual há que optar. Ele esclarece melhor essa formulação
airmando: “As opções não assentam exclusivamente em ideias, já
que as ideias deixaram de ser desestabilizadoras no nosso tempo.
Assentam igualmente em emoções, sentimentos e paixões que
conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis” (San-
tos, 1996, p.18).
Assim, através de imagens desestabilizadoras, se tece a
esperança e se alimenta o inconformismo e a indignação, mas sem
renunciar à proposição de estabelecer a conlitualidade de conhe-
cimentos, isto é, professores e alunos discutindo duas ou mais con-
cepções de mundo, suas diferenças e semelhanças e suas possibili-
dades de experimentação social.
Um exemplo disso ocorreu num dos debates promovidos
num curso de pós-graduação no interior do estado do Rio de Ja-
neiro (Oliveira e Lins, 2007). Questionando os alunos pelo fato de
somente serem visualizados os referenciais curriculares sobre a es-
cravidão para crianças negras, marcando em suas vidas o entendi-
mento de que os africanos escravizados no Brasil só possuíam essa
história, ou seja, terror, submissão e sofrimentos, e que, por sua vez,
contribuía para que essas mesmas crianças negras não se sentissem
identiicadas com este passado e por im, deixando um legado ét-
nico de sofrimentos e baixa autoestima, propomos, a partir daquele
debate, desaiar os professores a exibir em suas aulas, as imagens
dos faraós negros, as complexas construções arquitetônicas dos di-

55
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

versos reinos africanos pré-coloniais e as evidências, nas esculturas


olmecas, que provam que houve um contato entre africanos e in-
dígenas nas Américas antes da chegada dos europeus. Assim, por
meio de imagens poder-se-ia demonstrar que a África possuía tec-
nologias, culturas e organizações políticas tão avançadas quanto as
dos europeus, e que, portanto, esse “novo” conhecimento curricular,
expresso em imagens contundentes, poderia marcar as novas gera-
ções, construindo novos referenciais identitários positivos. Ou seja,
faria alguma diferença na autoestima de crianças negras airmar que
os africanos formaram as primeiras grandes civilizações humanas
em vez de dizer que seus antepassados eram somente escravos?
Na defesa dessa perspectiva, fundamentada a partir da
proposta de uma pedagogia do conlito, faz-se necessário um de-
bate permanente entre os docentes, pois, num projeto educativo
conlitual, que faz do conlito de conhecimentos um modelo ped-
agógico, ou como diz Boaventura, uma “pedagogia das ausências”
(2006), que possibilite a imaginação de modelos curriculares que
nunca existiram, os professores deveriam exercitar novas perspec-
tivas teóricas e novas posturas metodológicas.

Possibilidades a partir da interculturalidade


entre eu e o outro

Quando um setor da sociedade se organiza e conquista


espaços numa sociedade desigual, alguns socialmente alocados
podem perder um lugar anteriormente garantido. Por que alguns
brigam para que os “melhores” estejam nos bancos universitários?
Por que estes mesmos não brigam para que todos tenham opor-
tunidades de frequentar a universidade? Por que assumir a cor da
pele traz incômodo? Por que não nos perguntamos sobre a neces-
sidade que negros, índios, portadores de necessidade especiais,
homossexuais, mulheres tenham que assumir uma determinada
identidade?
Para um professor, não é fácil administrar essas delicadas
faces da identidade e da diversidade. Ao longo de muitos anos, es-
tamos sendo formados nos marcos das desigualdades, dentro de

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LEI N. 10.639/03

uma ideologia que reforça a hierarquização das relações e das opor-


tunidades. Não é por menos que uma criança reclama que “eu não
sou chamada para brincadeira de menina bonita”. Assim, a não con-
strução de um repertório nos marcos da diversidade nos impede
de tocar nas feridas das falas e das brincadeiras preconceituosas de
nossos alunos e de valorizar as diferentes contribuições de povos de
diferentes origens.
Para Antony Zabala (1998), a concepção que se tem so-
bre a maneira de realizar os processos de aprendizagem constitui
o ponto de partida para estabelecer os critérios que deverão nos
permitir tomar as decisões em aula. Por trás de qualquer concepção
metodológica se encontra uma concepção do valor que se atribui
ao ensino, assim como certas ideias mais ou menos formalizadas e
explícitas em relação aos processos de ensinar e aprender. A educa-
ção deve ser entendida em sua historicidade, como um produto das
relações sociais, como ação humana que envolve múltiplas dimen-
sões; econômica, social, ética, estética. Mas não se restringe a isso.
Vera Candau airma: “O multiculturalismo é um dado da re-
alidade. [...]. Pode haver várias maneiras de se lidar com esse dado,
uma das quais é a interculturalidade. Esta acentua a relação entre os
diferentes grupos sociais e culturais” (Candau, 2001, p. ??).
Diante de conlitos, falas perturbadoras e angústias iden-
titárias entre crianças, o exercício da perspectiva intercultural não
pode ser ingênuo. Devemos ter a consciência de que nas relações
sociais não existem somente diferenças, mas também desigual-
dades, assimetrias de poder e conlitos. No entanto, a interculturali-
dade como proposta pedagógica “[...] parte do pressuposto de que,
para se construir uma sociedade pluralista e democrática, o diálogo
com o outro, os confrontos entre os diferentes grupos sociais e cul-
turais são fundamentais e nos enriquecem a todos [...]”. (Candau,
2001, p. ??).
Concordando com a autora e percebendo as falas infantis,
consideramos que essa é uma questão difícil, pois, como veriicamos,
tem-se muita diiculdade em lidar com as diferenças. A sociedade,
os professores e a escola estão informados por uma visão cultural
hegemônica de caráter monocultural. O diferente nos ameaça, nos
confronta, e os professores se situam em relação a ele muitas vezes
de modo hierarquizado.

57
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Mas, ainda conforme Candau: “A interculturalidade aposta


na relação entre grupos sociais e étnicos. Não elude os conlitos.
Enfrenta a conlitividade inerente a essas relações. Favorece os
processos de negociação cultural, a construção de identidades de
‘fronteira’, ‘híbridas’, plurais e dinâmicas, nas diferentes dimensões
da dinâmica social” (Candau, 2001, p. ??).
Quando X chora por não poder participar “da brincadeira
de menina bonita”, ela diz tudo que vive na pele. As palavras con-
têm valores e forças ideológicas – aqui reside também a dimensão
histórica da linguagem. Além disso, comunicar signiicados implica
comunidade: sempre nos dirigimos ao outro (no caso os alunos), e o
outro não tem apenas um papel passivo; o interlocutor participa ao
atribuir signiicado à enunciação. Não é a experiência que organiza
a expressão: a expressão precede e organiza a experiência, dando-
lhe forma e direção.
Esperamos que as crianças tenham vontade de conhecer
e prazer em aprender, e que, dessa forma, saibam concordar, dis-
cordar, relativizar as questões formuladas e, ainda, que saibam bus-
car novas informações em diferentes meios e que possam trocar,
através de fecundas relações interpessoais, o resultado de suas pes-
quisas e descobertas. Enim, desejamos que nossos alunos apren-
dam a morar no outro.
A Lei n. 10.639/03 não é de fácil aplicação, a questão cur-
ricular se desdobra também na necessidade de uma nova política
educacional de formação inicial e continuada, para reverter positiva-
mente às novas gerações, uma nova interpretação da história e uma
nova abordagem da construção de saberes. Por im, a aprendiza-
gem que podemos tirar dessas experiências com crianças negras e
brancas é a necessidade de mobilizar constante e cotidianamente
essas discussões, desconstruir paradigmas e enfrentar inevitáveis
conlitos na sala de aula para articular e promover uma perspectiva
intercultural, baseada em negociações culturais, favorecendo um
projeto comum, em que as diferenças sejam patrimônios comuns
da humanidade.

58
LEI N. 10.639/03

Referências bibliográicas

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DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO da Conferência Mundial contra o
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da ONU, realizada entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001 na
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59
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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60
O SAMBA NO BAIRRO
DE OSWALDO CRUZ:
CONSTRUINDO
CONHECIMENTOS
Augusto Cesar Gonçalves e Lima8

...o meu pai sempre me dizia


meu ilho tome cuidado
quando penso no futuro
não esqueço meu passado...

Desilusão, Paulinho da Viola

Inteligência, conhecimentos, competências,


habilidades e... talento?

De certa forma é comum lermos em jornais e revistas, ou-


virmos no rádio ou assistirmos na televisão, notícias sobre gente fa-
mosa, oriunda da camada popular. São bem variadas as atividades
de que essas pessoas participam, mas, com certa facilidade, per-
cebemos que as reportagens se concentram nas atividades esporti-
vas e nas artes. Normalmente, tendemos a considerar que atividades
chamadas cientíicas demandam mais inteligência e conhecimentos
do que as artísticas e, mais ainda, do que as esportivas9. No entanto,
8 Doutor em Educação pela PUC-Rio; professor do Curso de Pedagogia da Universidade
Estácio de Sá; professor da Faculdade de Educação da UERJ; professor da Faculdade de Educa-
ção da UFRJ e membro do Gecec – Grupo de Estudos sobre o Cotidiano, Educação e Cultura(s)
da PUC-Rio, participando da pesquisa “Diversidade cultural, prática pedagógica e mínimos
éticos: tessituras possíveis entre a ética aplicada e os processos de ensino-aprendizagem”.
9 Por muito tempo se considerou que a inteligência era hereditária e de um só tipo. Pes-

61
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

nunca prestamos atenção às inteligências10, aos conhecimentos, às


competências e às habilidades, usados nestas últimas atividades, ou
a como são conseguidos/desenvolvidos.
Trata-se de inteligência, conhecimentos, competências,
habilidades saber operar um paciente, saber desvendar o código
genético, saber sobre a composição de uma galáxia, saber dirigir
empresas, saber projetar edifícios? Podemos dizer que sim, da mes-
ma forma que saber jogar bola, saber representar no teatro, saber
compor músicas... E possivelmente o mundo não seria muito inter-
essante se só houvesse o saber dos cientistas ou só houvesse o sa-
ber dos atletas e artistas.
Algumas daquelas competências, habilidades, conheci-
mentos, aparentemente são mais fáceis de se conseguir ou desen-
volver, outras mais difíceis. Para certas pessoas, aprender química
orgânica parece-lhes impossível, enquanto que outras pensam a
mesma coisa de representar ou dançar! Talvez a explicação esteja
no talento. Ainal, não existe, decerto, uma relação entre talento e
inteligência?
No caso dos compositores de música popular, grande
parte deles alcançou respeito e fama a partir da produção cultural
oriunda do próprio meio onde viviam: regiões rurais, bairros popu-
lares, subúrbios e favelas das grandes cidades. Uma característica
dessa produção que chamamos de cultura popular é de que, na
maior parte das vezes, mesmo sendo admirada em todas as classes
sociais e por aqueles representantes da chamada cultura erudita, é
fruto de pessoas que pouco ou nada têm de escolaridade formal, da
“alta cultura”, com raras exceções. Os conhecimentos, competências
e habilidades são construídos na própria cultura popular. Seja “dom”
quisadores estadunidenses da Universidade de Harvard desenvolveram pesquisas nos anos
1990 que apontaram que a inteligência é algo que se aprende e pode ser de vários tipos.
Segundo eles, seriam sete: inteligência linguística, inteligência lógico-matemática, inteligên-
cia espacial, inteligência musical, inteligência corporal-cinestésica, inteligência interpessoal,
inteligência intrapessoal. Ver GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas: a teoria na prática.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
10 Há quem resuma estas inteligências em uma só: inteligência emocional. Esta seria com-
posta por uma série de fatores: motivação, autoconiança, habilidades interpessoais, dedica-
ção persistência, controle emocional, adaptabilidade às mudanças, capacidade de gerenciar
conlitos... Ver GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996. Esta
é uma acepção que tem a ver com o espírito de winner (vencedor) nos Estados Unidos, mas
de certa maneira guarda alguma relação com as capacidades e competências desenvolvidas
pelos sambistas cariocas.

62
O SAMBA NO BAIRRO DE OSWALDO CRUZ

ou “talento”, estes são potencializados pela vivência dentro de sua


própria cultura11.
São inúmeros os exemplos conhecidos destes composi-
tores. Mas em várias comunidades da periferia das grandes cidades
e regiões rurais, muitos deles são artistas anônimos que encantam
pela sua obra. Não é diferente no bairro de Oswaldo Cruz, subúr-
bio da cidade do Rio de Janeiro, onde se faz samba o ano inteiro.
Essa cultura popular invade a sociedade, que não se dá conta das
condições em que é produzida, usufruindo apenas de suas quali-
dades e belezas. A sobrevivência de quem produz essa parte da
riqueza do país (e que quase nunca se beneicia dos dividendos ma-
teriais dela advindos) é construída com muito esforço, na luta, às
vezes inconsciente, do dia-a-dia, na teimosia em viver e na resistên-
cia de sua cultura popular.

Cultura popular

Podemos reconhecer uma acepção antropológica de cul-


tura “como conjunto de signiicados ou informações e comporta-
mentos de tipo intelectual, ético, estético, social, técnico, mítico,
etc. que caracteriza um grupo social, do qual se diz que tem uma
determinada cultura” (Gimeno Sacristán, 1996, p. 40). Esse entendi-
mento, no entanto, não signiica ver cultura como algo estático, mas
em movimento constante, em relação com outras culturas.
Entendo que a cultura de um determinado povo ou região
se desenvolve através contatos entre outras culturas que podem re-
sultar numa troca com culturas diferentes, incorporando elementos
e criando novos a partir do que recebeu. Desse modo, a tradição
da cultura africana certamente se enriqueceu com os elementos in-
corporados a ela no Brasil, mesmo considerando as terríveis circun-
stâncias e condições que teve de enfrentar para continuar se desen-
volvendo: a escravidão, o racismo e o preconceito. Sua existência,
enriquecimento e permanência, entranhada em vários lugares do
11 A esse respeito, cheguei a essa conclusão em meu estudo para a dissertação de mestrado
em educação. Ver Augusto César Gonçalves e LIMA. Escola dá samba?: o que dizem os com-
positores de samba do bairro de Oswaldo Cruz e da Portela. In: CANDAU, Vera Maria (org.).
Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 173-202.

63
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

nosso país, a transformaram, mas podemos caracterizá-la como cul-


tura afro-brasileira. Essa mistura e troca, contudo, não nega o seu
caráter singular.
Os termos “cultura” e “popular” são muito complexos e
dão margem a várias acepções. Muitas pessoas utilizam o conceito
cultura com signiicados diferentes. O mesmo ocorre com popular.
Para que não haja incompreensões, opto por um conceito de cul-
tura popular com o qual vou operar.
Existe uma acepção de cultura popular que é entendida
por aquilo que é utilizado e consumido como um bem cultural pelas
camadas populares. Outra é a da produção e socialização de cultura
por parte dessas camadas. Falo de ambas, mas especiicando o que
é produzido e consumido por populares dentro de um contexto
histórico. Estarei falando da cultura que é produzida e engendrada
nas relações, convivências, valores, signiicados, modos de se expres-
sar, majoritariamente por pessoas simples, de baixa renda, em geral
trabalhadores com pouca ou nenhuma escolaridade, da periferia de
uma grande cidade como o Rio de Janeiro, a partir das tradições cul-
turais afro-brasileiras. E de um elemento da cultura especíico, a arte
e, dentro desta, a música e, mais particularmente ainda, do gênero
samba e alguns outros que têm a mesma origem. Neste texto, falo
de um bairro distante do centro da cidade, um subúrbio chamado
Oswaldo Cruz e de sua comunidade, com enorme participação
negra12 e mestiça, mais propriamente identiicados como afrode-
scendentes, de sua música13, do samba produzido e consumido no
bairro (e em outros tantos), mas que daí também ganha o mundo.
Digo, então, que o samba e tudo que a ele está ligado faz parte do
que chamamos cultura popular.

12 Em termos raciais, a composição da população do bairro é 51,8% “branca”,


12,4% “preta”, 35,1% “parda”, 0,1% “amarelo”/“indígena” e 0,5% está agrupada na
categoria “outras”. Estes dados foram o b t i d o s e m consulta direta ao IBGE, origi-
nando uma tabela desagregada referente ao bairro de Oswaldo Cruz, com base no
Censo de 2000.
13 Tem 57,3% dos responsáveis pelo domicílio percebendo até cinco salários mí-
nimos e 24,1% com até dois salários mínimos. Fonte: Instituto Pereira Passos. Arma-
zém de Dados. Portal Geo. Bairros Cariocas. Oswaldo Cruz. População. Disponível
em <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas> . Acesso em 21/02/2005.

64
O SAMBA NO BAIRRO DE OSWALDO CRUZ

O samba na bagagem do trem da Central14

Nas primeiras décadas do século XX, os cultos afros tinham


importância fundamental na manutenção da tradição e identidade
dos negros do município do Rio de Janeiro. Através deles as comun-
idades de ancestralidade africana se reconheciam na continuidade
dos ritos religiosos e semeavam sua cultura na capital15. Os cultos e
suas sessões “de lei” eram momentos de religiosidade, mas também
atividade social, motivo para encontros das pessoas, ocasião para a
realização de animadas festas. E tinha uma razão muito forte para
a transformação das sessões em festa. Naquela época, a “batucada”
do jongo, caxambu, samba, era coisa de polícia (Moura, 1995). Den-
tro de certos limites, somente os cultos eram permitidos, uma das
razões pelas quais eram concorridos. A festa vinha depois, às vezes
durando dias.
No começo da década de 1920, um dos maiores festeiros
de Oswaldo Cruz, o “seu” Napoleão José do Nascimento, junto com
sua irmã Dona Benedita, dirigia os cultos realizados em sua casa.
Esta era muito frequentada por gente do bairro e amigos de seus il-
hos. Ocorria que Dona Benedita morava no bairro de Estácio de Sá,
perto do centro da cidade e, quando vinha de trem para participar
dos cultos, trazia com ela amigos sambistas como Ismael Silva, Bran-
cura, Baiaco, Aurélio, os bambas que começavam a cantar, compor
e batucar de uma nova forma a rica herança musical africana. Assim,
após a realização dos cultos, aconteciam as festas, onde a turma
do Estácio contagiava seus futuros companheiros de ritmo. Sim,
14 Deste tópico em diante trabalho principalmente com as informações contidas
no livro Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas, de Marília T. Barboza
da SILVA e Lygia dos SANTOS (1989). 2 ed. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1989.
15 Para se ter uma ideia da população brasileira em termos de cor, o censo de
1872 registrava: brancos – 36%, pardos – 45,4%, pretos – 18,6%; e o censo de 1890,
respectivamente: 44%; 41,4%; 14,6%, sem levar em conta a população indígena e já
contabilizadas as parcelas de imigrantes europeus recém-chegados. Oicialmente,
portanto, contávamos com uma população não branca de 64% em 1872 e de 56%
em 1890. Cf. IBGE – Brasil em números, vol.7, 1999. E a cidade do Rio de Janeiro
registrava no censo de 1872 – 274.972 habitantes, e em 1890 – 522.651 habitantes.
Cf. Anuário Estatístico da Cidade do Rio de Janeiro – 1998. Devemos atentar para
o fato de que a cidade do Rio de Janeiro tinha uma população negra acima da
média nacional, que se incrementava por um luxo migratório signiicativo da po-
pulação negra de vários estados, principalmente da Bahia, pelo menos até os anos
de 1930.

65
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

porque até ali as festas eram tocadas com muito jongo, caxambu e
partido-alto16.
No bairro, a estação do trem era, e ainda hoje é, o mel-
hor ponto de referência. Mas por um bom tempo ela foi sua parte
mais importante. Por ali se enviavam e recebiam mercadorias, se fa-
zia contato com o centro da cidade, se ia para o emprego. O trem
era o principal meio de transporte, o local de conluência das pes-
soas. Para quem trabalhava o dia inteiro fora, a viagem de trem se
tornava um momento de encontro. Com efeito, lá pela década de
1920, os fundadores do atual Grêmio Recreativo Escola de Samba
Portela, por certo tempo, utilizavam os vagões do trem como “sede”,
discutindo as questões de sua nascente escola de samba e, claro,
cantando sambas. No horário das 6:04h (seis da tarde), saía o trem
da estação de D. Pedro II, na Central do Brasil, em direção aos sub-
úrbios, no qual viajava grande número de sambistas que voltavam
para casa, nos subúrbios de Madureira, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro,
Marechal Hermes e proximidades. Havia os que, trabalhando perto
de casa, pegavam o trem até a estação de D. Pedro II, só para voltar
no horário das 6:04h. Pelo sistema de cobrança da época, não tinha
roleta. Nessas condições, muita gente não pagava. Durante muito
tempo se manteve este hábito (do depoimento de Ernani Rosário a
Marília T. Barboza da Silva & Lygia Santos, 1989).

Os ritmos que antecederam ao samba

Primeiramente, é preciso lembrar que Oswaldo Cruz era


uma autêntica roça, com muitos animais circulando nas ruas des-
calças, valas a céu aberto, sem água, luz e bonde. O negro Euzébio
Rosa, marido da branca e bela D. Esther Maria Rodrigues, a maior e
mais importante festeira daquela região, tinha como principal meio
de transporte um cavalo. Muitos dos novos moradores do bairro,
negros e mestiços em sua maioria, vinham do interior de estados
16 O partido-alto, também chamado de samba duro, é considerado como uma
das formas primordiais do samba, mas era diferente do samba apresentado pelos
sambistas do Estácio, que vai se caracterizar pela forma de cantar e batucar que
propiciava o desile, bem como o desenvolvimento dos versos e melodia mais ao
gosto do público majoritariamente de camadas médias e da nascente indústria
fonográica.

66
O SAMBA NO BAIRRO DE OSWALDO CRUZ

como Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, trazendo na sua


experiência musical elementos folclóricos e religiosos que se torna-
vam presentes no bairro.
Antes do samba reinar e a Portela se tornar uma grande es-
cola de samba, outros ritmos animavam as festas. Entre eles podem-
os citar o jongo, o caxambu e o partido-alto. Não existia a variedade
de ritmos – novidades como a polca, mazurca, valsa, etc. – do centro
da cidade, oriundas de outros países, levando-se em conta as diver-
sas classes e camadas sociais, imigrantes, que coexistiam na região
central da cidade (Moura, 1989).
O jongo é uma atividade de canto e dança. Existe di-
vergência na consideração do jongo como uma manifestação reli-
giosa, mas o fato é que muitos praticantes nos anos de 1920 assim
o consideravam pelo misticismo presente e sua vinculação com o
“Ritual da Linha das Almas”, sendo de praxe pedir licença para ini-
ciar o jongo. “O jongo chegou ao Brasil através dos negros ‘Bantos’
escravos. [...] Seu canto obedecia uma narrativa de um fato qualquer
corriqueiro, ou ainda um desaio ou crítica que em determinadas
ocasiões, amedrontavam tanto que levavam as pessoas ao êxtase
chegando ao desmaio” (Candeia & Isnard, 1978, p. 6). É dançado em
roda, com movimentos no sentido contrário do relógio, acompan-
hado exclusivamente por instrumentos de percussão (atabaque,
agogô, triângulo, entre outros) e também com a batida da palma da
mão, sendo cantadas as estrofes e refrões. O jongo permanece vivo,
por exemplo, no morro da Serrinha, em Madureira.
O caxambu deriva do jongo e tem este nome em função
de um dos três atabaques que utiliza (agomapita, candogueiro e
caxambu), além de pandeiros, agogôs e outros instrumentos de
madeira. Tem conotações místicas, assemelhando-se ao jongo, no
canto e na dança. “A diferença entre caxambu e jongo é que o jongo
se aproxima do Alujá de Xangô (maneira de bater, toque de Can-
domblé), ao passo que o caxambu seria ao ritmo do Congo (Angola
de Candomblé)” (Candeia & Isnard, 1978, p.7). O caxambu está prati-
camente desaparecido no Rio de Janeiro.
O partido-alto “nasceu das rodas de batucada, onde o
grupo icava marcando o compasso, batendo com a palma da mão
e repetia o verso envolvente. O refrão servia para que um dos par-

67
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

ticipantes fosse ao centro da roda sambar e com um gesto ou ginga


de corpo convidava um dos componentes da roda, a icar de pé...”
(Candeia & Isnard, 1978, p. 50). E nessas rodas um componente i-
cava em pé enquanto outro tentava derrubá-lo com “pernadas”. Se-
gundo Candeia e Isnard (1978), essa forma de samba é originária da
capoeira. O partido-alto existe até hoje, sendo praticado nos subúr-
bios e favelas cariocas, assim como no centro da cidade e na zona
sul, porém sem o elemento das “pernadas”.
Do que se disse acima, podemos apontar a forma de sam-
ba de roda como característica desses ritmos. É importante acres-
centar que a utilização do nome samba já era feita para designar os
vários tipos de batuque de origem africana, de maneira imprecisa e
generalizada, nas duas primeiras décadas do século XX.

Escolas de samba e socialização

É reconhecido pelo pessoal de Oswaldo Cruz que a ma-


neira de batucar e cantar o samba (tal como icou conhecido e di-
vulgado) lhe foi transmitida pelo pessoal do Estácio. Acontece que
o samba não surgiu do nada, mas como desenvolvimento e cria-
ção de uma vasta cultura musical de matriz africana. Ainal, o que
diferenciava o samba dos vários matizes tocados, cantados e dan-
çados pelos negros? Segundo o sambista e pesquisador Nei Lopes,
é o fato de ser “samba urbano (a partir do Estácio) próprio para ser
dançado e cantado em cortejo, e em partido-alto, próprio para ser
cantado em roda” (citado por Vianna, 1995, p. 122). A característica
“próprio para ser dançado e cantado em cortejo” é coerente com a
proposta do “novo” ritmo. Ismael Silva, um dos maiores expoentes
deste samba nascente na década de 1920, em entrevista a Sérgio
Cabral, explicou que “o estilo (antigo) não dava para andar. Eu com-
ecei a notar que havia uma coisa. O samba era assim: tan tantan tan
tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí
a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbum-
pruburundum...” (Cabral, 1996, p. 242). Conta-se que os bambas do
Estácio se reuniam num botequim em frente à Escola Normal. Daí
surgiu a ideia de dizer que também eram uma escola... de samba. E
criaram a primeira, a Escola de Samba Deixa Falar (na verdade orga-

68
O SAMBA NO BAIRRO DE OSWALDO CRUZ

nizada na forma de rancho, um tipo de agremiação carnavalesca),


desilando no Carnaval de 1929 na Praça Onze, no centro do Rio.
No entanto, já usavam a denominação de “escola de samba” alguns
anos antes, sem a organização que a conigurasse como tal. Pois é,
no ano seguinte “a Deixa Falar encontrou na Praça Onze nada me-
nos de cinco outras escolas de samba: a Cada Ano Sai Melhor, do
morro de São Carlos; a Estação Primeira, de Mangueira; a Vai como
Pode (futura Portela); a Para o Ano Sai Melhor, do próprio Estácio; e
a Vizinha Faladeira, da vizinha Praça Onze” (Tinhorão, 1969, p. 82).
Observa-se que a Vai Como Pode, de Oswaldo Cruz, era a única que
não vinha de local próximo ao centro da cidade.
Como podemos ver, as visitas dos sambistas do Estácio
trazendo suas inovações musicais provocaram naquele subúrbio
distante o desenvolvimento, fruto desta troca, de sua atividade cul-
tural que acabaria por suplantar seus fomentadores em termos or-
ganizativos.
Em abril de 1926 foi fundado o Bloco (Conjunto) Car-
navalesco Escola de Samba de Oswaldo Cruz, sob a presidência de
Paulo da Portela, que, como seus companheiros do Estácio, utiliza-
vam o nome de “escola de samba”, mas se apresentavam em forma
de bloco e com todas estas características. Em 1928, muda de nome
para Quem Nos Faz é o Capricho, por inluência de Heitor dos Praz-
eres, autor do samba vencedor do primeiro concurso de samba,
representando a escola de Oswaldo Cruz. Em função das divergên-
cias que provocam a saída de Heitor dos Prazeres e Paulo da Portela
(este por pouco tempo), o nome muda, em 1930, para Bloco Car-
navalesco Vai Como Pode, que segundo um de seus membros, dava
a sugestiva dimensão da situação da escola naquele momento.
Porém já começa a ser chamada de Portela em 1931. E inalmente,
em março de 1935, por sugestão do delegado de polícia Dulcídio
Gonçalves, que entendia ser um nome mais familiar e respeitável,
é registrada Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, sendo o
Portela em função do nome da rua onde icava sua sede, na Estrada
do Portela, nº 412. Registrada sim, porque naquela época nenhum
bloco, rancho ou cordão podia desilar sem o registro e autorização
da polícia. Enquanto a pioneira Deixa Falar já não desilava em 1933,
a Portela aprimorava sua organização e desile, o mesmo ocorrendo
com as demais escolas.

69
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

A Portela foi a primeira escola a criar o enredo e alegoria


para desilar, ainda que de forma incipiente, desde 1931. Pioneira
foi também na comissão de frente uniformizada e outras iniciativas,
nem sempre bemvistas no mundo do samba e pelos pesquisadores,
como se pode ver por esta crítica: “...que só serviam para desigurar,
ou melhor, descaracterizar as escolas de samba, como: a permissão
do ingresso, nos ensaios, de elementos estranhos à agremiação; a
realização de excursões ao exterior exibindo seus valores; a fazer
cinema e a participar de festas nos salões da chamada ‘alta socie-
dade’” (Soares, 1985, p. 104). Este vanguardismo, apesar das críticas,
jogou luz sobre a escola de Oswaldo Cruz, sobre o samba e inluen-
ciou as demais escolas de samba. Polêmicas à parte, saber o papel
de sujeitos das escolas de samba, ou seja, do papel ativo que tiveram
aqueles que organizavam as primeiras escolas de samba, é crucial
para analisar a trajetória dessas instituições de cultura popular.

Cruzando culturas

Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela, recebeu


esse apelido antes de a Escola de Samba Portela existir. No subúrbio
vizinho de Bento Ribeiro, havia outro Paulo, também sambista. Para
não confundir, como Paulo Benjamim de Oliveira morasse na Estra-
da do Portela em Oswaldo Cruz, recebeu o apelido diferenciador “da
Portela”, nome que seria consagrado na história do samba.
Dos vários personagens importantes surgidos na metade
do século em Oswaldo Cruz, Paulo da Portela apresenta caracter-
ísticas que o destacam quando se fala em cultura popular daquele
subúrbio, não só pelo seu talento e papel na fundação da Escola
de Samba Portela, mas pela maneira com que via e organizava a
cultura popular.
Negro, nasceu em 1901, numa família pobre, no bairro
da Saúde, próximo da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro.
Era pequeno quando sua mãe foi abandonada pelo pai, que nunca
conheceu. Recebeu de herança o preconceito e discriminação que
o fato de ser negro sofria (e ainda hoje sofre). Conseguiu instrução
primária incompleta. Ainda criança, começou a trabalhar para aju-
dar no sustento da família. No início da década de 1920, era lustra-

70
O SAMBA NO BAIRRO DE OSWALDO CRUZ

dor de móveis e, com a mãe, sua irmã e dois irmãos, muda-se para o
distante bairro de Oswaldo Cruz.
Em pouco tempo, organizou o primeiro bloco carnavale-
sco do bairro, chamado Ouro sobre o Azul. Em 1922, com Antônio
Ruino dos Reis, servente de pedreiro de apenas 15 anos e Antônio
da Silva Caetano, de 22 anos, e mais alguns amigos, fundam o bloco
Baianinhas de Oswaldo Cruz. Dos três, todos afrodescendentes, ap-
enas Caetano tinha o secundário e um bom emprego, sendo desen-
hista da Escola Naval. É este trio que vai fundar em abril de 1926 o
Conjunto Carnavalesco Escola de Samba de Oswaldo Cruz, a futura
Portela, tendo sido Paulo da Portela o seu primeiro presidente.
Paulo procurou construir desde cedo uma imagem para
si e também para os seus. Naquela época, as moças só saíam de
casa para qualquer evento com autorização dos pais. Paulo da Por-
tela conseguia essas autorizações com suas atitudes respeitosas e
acompanhamento das moças ao término do desile. Numa época
em que batuqueiros eram malvistos e perseguidos pela polícia,
um rapaz jovem e negro obter consentimento de um pai era algo
surpreendente. Preocupado com a imagem, teve a ideia, aprovada
pelos companheiros, de mandar confeccionar ternos, comprar sa-
patos, gravatas e chapéus, todos iguais, para serem usados pelos
diretores. Seu lema era “sambista, para fazer parte de nosso grupo,
tem que usar gravata e sapato. Todo mundo de pés e pescoços ocu-
pados!” (Silva & Santos, 1989, p. 44, grifo meu).
As condições de vida da população negra eram terríveis.
A obtenção de empregos, as condições de moradia, o modo de se
vestir, eram bem precários. Era comum a vestimenta de um homem
negro se constituir em camiseta, calça simples e tamancos, ou mes-
mo pés descalços, principalmente na roça que era o subúrbio de
Oswaldo Cruz. “Pés e pescoços ocupados” signiicava usar sapatos
e camisas com gola e gravata, fugindo do estereótipo de malan-
dro e marginal que os cercava. Paulo observava a perseguição, o
preconceito, não simplesmente aos sambistas, mas aos negros, aos
quais se somava a usurpação de seus talentos. Em uma entrevista
ao jornal Diário Carioca, de 2 de março de 1933, teria reclamado de
“celebridades que atingem a glória com o valor dos outros, que i-
cam anônimos no alto dos morros” (citado por Silva & Santos, 1989,

71
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

p. 64), numa alusão ao roubo ou compra de composições musicais,


muito comuns naquela época, que tanto prejuízo causou aos sam-
bistas.
Por uma estratégia de sobrevivência, encontrava na assim-
ilação da cultura branca, burguesa, dominante, na forma de se ve-
stir, de se comportar, até de falar, a maneira de garantir a existência
de sua diferença. Pode-se até dizer que abria mão de parte de sua
cultura. Na realidade, nenhuma cultura pode ser qualiicada como
pura, sempre sofrendo alguma interferência de outra, o que nos dá
uma noção de cultura em movimento, não estática. Considerando a
sociedade como era, entendia que era preciso buscar um caminho
para a sua gente ganhar o respeito e viver com dignidade. Se, no en-
tanto, era imprescindível aceitar parte do que a cultura dominante
impunha, se era preciso trocar, no fundamental ele propunha clara-
mente uma resistência, quando envidava todos os esforços para di-
vulgar e ganhar o respeito pela sua cultura, no caso o samba e as
escolas de samba, percebidos como o que mais representaria sua
identidade.
Escolhido esse caminho, Paulo da Portela se lançaria ao
contato e relacionamento com gente que pudesse abrir espaço
para valorizar o samba e as escolas de samba. Mas não só o que era
produzido em Oswaldo Cruz. Ele queria divulgar o samba de manei-
ra geral. Queria divulgar a produção de sua gente, a cultura popular
que ele sabia ter grande valor. Fazer a arte de seu povo ser recon-
hecida abria as portas para o reconhecimento do valor de quem as
produzia! Nos peculiares caminhos que o racismo e o preconceito
trilharam no Brasil, esse raciocínio não era (nem é) perfeito. Mas
era compreensível que, após três a quatro décadas decorridas da
Abolição da escravatura, alguém pensasse nesse tipo de alternativa.
Num país que não segrega juridicamente, mas discrimina, a mão-
de-obra ex-escrava e seus descendentes foram abandonados à sua
própria sorte. Mesmo sendo a maioria da população, não conseguia
ser ouvida e representada nos poderes constituídos.
Não sem atropelos, Paulo da Portela trabalha incessante-
mente a ideia de conseguir espaços junto à imprensa (principal-
mente esta), aos cantores famosos, aos músicos, aos setores da
classe dominante e ao público em geral. Enxergava com clareza a
necessidade da visibilidade de seu povo e de sua cultura. Apoiado

72
O SAMBA NO BAIRRO DE OSWALDO CRUZ

pelo cada vez mais organizado trabalho de sua escola de samba,


por sua capacidade de organizador, pelo carisma e qualidades como
compositor, cantor e dançarino, ele consegue se projetar a tal ponto
de ganhar o primeiro concurso de “Maior Compositor das Escolas de
Samba”, organizado em 1935 pelo jornal A Nação. No ano seguinte
é considerado “cidadão-momo”, com apoio do jornal Diário da Noite,
desilando, junto com sua escola, para mais de cem mil pessoas que
os saudavam no trajeto compreendido entre a estação Pedro II da
Central do Brasil e a Esplanada do Castelo, em pleno centro do Rio.
Em 1937, é escolhido como “cidadão-samba” pela União das Escolas
de Samba, com apoio do jornal A Rua.
Dentro dessa estratégia, visitava constantemente as out-
ras escolas de samba, fazia amizades com jornalistas, políticos e
compositores. Viajava para São Paulo, Uruguai, fazia apresentações
em cassinos, participava de ilmes do cinema nacional, recebia na
quadra da Portela convidados internacionais, fossem eles políticos,
artistas ou professores da Sorbonne. Era um diplomata, um comu-
nicador, um líder. Colocava-se na posição de divulgar o samba, as
escolas de samba e assim derrubar a imagem negativa existente na
sociedade em relação ao negro e ao sambista. Atitudes polêmicas,
audaciosas, nem sempre compreendidas ou aceitas pelos compan-
heiros.
Mas cabe ressaltar, nesta sua trajetória brilhante e contur-
bada, a sua autoria, idealização e organização, do enredo e sambae-
nredo chamado “Teste ao Samba”, da Escola de Samba Portela, apre-
sentado em 1939, que valeu o título de campeã daquele carnaval. “A
alegoria principal era um gigantesco quadro-negro, a exemplo das
salas de aula, com os dizeres: Prestigiar e amparar o samba, Música
típica e original do Brasil, e incentivar o povo brasileiro” (Silva & Santos,
1989, p. 113, grifo meu). Eis a letra do samba:
Vou começar a aula
Perante a comissão:
Muita atenção,
eu quero ver se diplomá-los posso.
Salve o fessor
Dá a mão pra ele, senhor,
Catorze com dois são doze
Noves fora, tudo é nosso!

73
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Cem divididos por mil


Cada um com quanto ica?
Não pergunte à caixa surda
Não peça cola à cuíca
Nós lá no morro
Vamos vivendo de amor
Estudando com carinho
O que nos passa o professor!
(apud Silva & Santos, 989, p. 112)

Observando a alegoria e a letra, ica óbvia a ironia do sam-


bista, a crítica sutil ao desamparo da população pobre. Chama aten-
ção para o samba, a cultura – e o saber, diria eu – do povo brasileiro.
A letra do samba, com os erros escolares apresentados, traz na lin-
guagem uma forma de demarcação social. A pergunta “cem dividi-
dos por mil cada um com quanto ica?”, que remete a pensar o pou-
co que se ganha para dividir para muitos. Estudar com carinho, “lá
no morro”, enquanto vivem de amor (porque falta muita coisa), tudo
que “nos passa o professor”, quando se sabe que não havia escolas
no morro. Críticas em plena ditadura do Estado Novo. Além disso,
como foi dito acima, a escola de samba era do subúrbio de Oswal-
do Cruz, que não era morro, embora sua realidade fosse bastante
parecida com os bairros pendurados nos morros do Rio. Já naquela
época, quando se falava de gente pobre e negros, imaginava-se o
morro. Ainda hoje é assim. Portanto, icava clara a mensagem de
que estavam abandonados, mas lá estavam cantando e encantando
a todos que assistiam a sua apresentação, mostrando seu valor.

Cultura popular e educação

A maioria da população tem poucas possibilidades de


obter a educação formal de qualidade. Foi assim no passado, pela
pequenez da rede escolar pública e gratuita; é assim no presente,
por suas enormes diiculdades. No entanto, as formas alternativas
utilizadas por parcela da população para construção e socialização
do conhecimento e de sua identidade têm procurado suprir em
parte as deiciências apresentadas. Se olharmos a história da música

74
O SAMBA NO BAIRRO DE OSWALDO CRUZ

popular, encontraremos inúmeros exemplos de compositores, in-


strumentistas, arranjadores, cantores que, ou eram analfabetos no
sentido formal ou eram pessoas de poucas letras.
Pois bem, isso não se constituiu em empecilho para que
tivéssemos notáveis artistas, consagrados e respeitados pelo públi-
co, em condição igual a seus pares que obtiveram excelente educa-
ção formal, inclusive especíica. Mais ainda, que sua produção, tanto
daqueles famosos artistas quanto dos anônimos, fosse apropriada
por muitos outros posteriormente e se tornassem patrimônio cul-
tural do país. Este é o entendimento que tenho desse processo de
construção de conhecimentos no bairro de Oswaldo Cruz, subúrbio
da cidade do Rio de Janeiro, por parte de seus sambistas.
Considerando, pelo que se disse acima, que a escola for-
mal icou em boa parte à margem desta produção cultural, pode-se
inferir que dela não se necessita. Não é esta minha posição e tam-
pouco seria real dizer que a cultura escolar nada tem a ver com o
fenômeno da cultura popular. A comunicação existente dentro da
sociedade acaba por informar e inluenciar, ainda que indireta-
mente, todos os seus membros. Por exemplo, alunos, professores,
merendeiras, inspetores, vendedores de pipoca e de balas, pais e
responsáveis, membros da comunidade, etc., convivem e cruzam
seus conhecimentos, saberes, suas culturas, na relação do dia-a-dia,
interferindo na cultura da escola, que se tenciona com a cultura esco-
lar. A questão que se coloca é como fazer que a escolarização inclua
ou dialogue com a riqueza da cultura popular na construção de sua
cultura escolar, entendendo que a primeira potencializará a segun-
da e poderá trazer para o processo de escolarização uma dinâmica
e uma vida que os alunos só veem fora da escola.

75
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Referências bibliográicas

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miar, 1996.
CANDEIA FILHO, Antônio; ARAÚJO, Isnard. Escola de samba: árvore que es-
queceu a raiz. Rio de Janeiro: Lidador, 1978.
GARDNER, Howard. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1995.
GIMENO SACRISTÁN, J. Escolarização e cultura: a dupla determinação. In:
SILVA, Luiz Heron da e outros. Novos mapas culturais, novas perspec-
tivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.
LIMA, Augusto César Gonçalves e. Escola dá samba? O que dizem os com-
positores do bairro de Oswaldo Cruz e da Portela. In: CANDAU, Vera
Maria (org.). Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas.
Petrópolis: Vozes, 2002, p.173-202.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
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união entre duas culturas. 2 ed. Rio de Janeiro: Funarte, 1989.
SOARES, Maria Thereza Mello. São Ismael do Estácio: o sambista que foi rei.
Rio de Janeiro: Funarte, 1985.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. 2 ed. Rio de
Janeiro: JCM, [1969].
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:
Ed. UFRJ, 1995.

76
ÁFRICA DE
MUITAS HISTÓRIAS:
UMA TRANÇA DE GENTE
Gloria Maria Paes Brito Miranda1
Olga Guimarães Germano18
Márcia Marin Vianna19
Stella Maris Moura de Macedo20

Ser intelectual é exercer diariamente rebeldia


contra conceitos assentados, tornados respeitáveis, mas falsos.
É, também, aceitar o papel de criador e de propagador
do desassossego e o papel de produtor de escândalo.
(Milton Santos, 1999, p.152).

Escolhemos essa epígrafe para ressaltar a importância so-


cial que representa o trabalho que desenvolvemos em sala de aula.
Nós, professoras/autoras deste texto, atuando nos anos iniciais do
Ensino Fundamental, sabemos o quanto interferimos no processo
de iniciação da formação ética dos nossos alunos. Queremos nesse
trabalho assumir a condição de propagadoras do desassossego,
começando por colocar em xeque os conhecimentos elitistas que
temos acumulado ao longo de nossas trajetórias proissionais e de
nossas vidas.
17 Graduada em Pedagogia pela UERJ e Licenciatura em Matemática pela Universidade San-
ta Úrsula. Professora do Ensino Fundamental (Cap-UERJ).
18 Especialista em Literatura Infanto-juvenil pela UFF, Graduada em Pedagogia pela UGF e
Professora do Ensino Fundamental (Cap-UERJ). Coordenadora do Curso de Extensão Forma-
ção Continuada de professores alfabetizadores. Professora aposentada do município do Rio
de Janeiro.
19 Mestre em Educação pela UERJ, Professora do Ensino Fundamental (CAp.-UERJ e Colégio
Pedro II).
20 Mestre em Educação pela UFF. Professora Assistente do Ensino Fundamental (CAp.-UERJ).
Professora da Rede Municipal de Ensino da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro.

77
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Embora tenhamos consciência de que ainda estamos en-


gatinhando nesse novo processo — o de nos provocar, ao mesmo
tempo em que provocamos os estudantes, a pensar sobre o que
historicamente tem signiicado ser negro em nossa sociedade —,
desejamos enfrentar o desaio acompanhadas pelo compromisso
político-social que visa contribuir para a formação de uma socie-
dade menos injusta e desigual.
As informações que têm circulado, atualmente, sobre a
temática do negro, sem dúvida, enriquecem o nosso trabalho, mas
não queremos nos limitar a tratá-las como simples informações,
pretendemos, sim, inseri-las num projeto ético, político e social. Ao
tratarmos desse assunto, não queremos os lashes e nem os slogans
prontos divulgados pela mídia. Queremos exercer a rebeldia contra
conceitos assentados.
Animadas com essa oportunidade de relexão sobre nossas
práticas e ideias, consideramos que esse também pode representar
um espaço profícuo para reletirmos sobre os nossos próprios pre-
conceitos, ainal, quem não os tem? Somos frutos de um processo
de formação em que o ideal prevalece e a realidade nos assusta,
porque se revela de forma bastante distanciada das “tais” idealiza-
ções que aprendemos a fazer e a imaginar.
Como professoras dos anos iniciais, sabemos que na sala
de aula, através dos nossos diálogos com as crianças e dos temas
que selecionamos e incluímos em nossos planejamentos, podemos
apresentar-lhes instrumentos férteis e, por que não dizer, de luta,
para que desde cedo relitam e compreendam que, ao em vez de
hierarquizarmos as diferenças culturais e sociais existentes, temos
outras possibilidades: a de nos aproximarmos, a de nos reconhecer-
mos e mais ainda, a de valorizá-las. O tom que desejamos dar ao
nosso trabalho está para além de um relato de experiência. Quere-
mos mais. “Buscar compreender o multiculturalismo e suas reper-
cussões na educação implica destrinchar referências ideológicas,
elucidar encaminhamentos teóricos, descobrir práticas culturais,
ressigniicar práticas pedagógicas, posicionar-se politicamente e
situar-se socialmente” (Romão, 2005, p. 43).
Quantas vezes nossos alunos nos põem à prova e nem
sempre tiramos “uma boa nota”. Ficamos espantadas, perplexas

78
ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

mesmo, frente aos apelidos dados aos outros e aos comentários de


alguns alunos sobre “o diferente”. E quem é “o diferente”? Quantas
vezes não sabemos como agir, qual a atitude que devemos tomar
ou como abrir um diálogo com a turma, principalmente, quanto às
discriminações étnicas? Em nossos Cursos de Formação Inicial não
tivemos disciplinas e/ou professores que nos instigassem a pensar
sobre isso e nos fundamentassem para esse diálogo. As questões ét-
nicas estiveram na invisibilidade, durante muito tempo, no sistema
educacional. Será que isso está mudando?
Este trabalho é um convite aos professores interessados
em uma maior relexão sobre essa temática, um convite para um
diálogo a partir de alguns relatos de fatos vividos por nós em uma
proposta pedagógica realizada no segundo ano de escolaridade
(crianças de sete/oito anos), do Instituto de Aplicação Fernando Ro-
drigues da Silveira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Não somos especialistas no assunto e nem temos uma “receita”,
temos aprendido em nossas vidas cotidianas, principalmente, em
nossas salas de aula.
A Lei n. 10.639/2003, quando institui a obrigatoriedade
do ensino de história e culturas africanas e afro-brasileiras, é, para
Romão (1999), uma iniciativa de política pública e a possibilidade
de “diálogo e rompimento com a ideia de subordinação racial no
campo das ideias e das práticas educacionais. Propõe reconceituar
pela escola o negro, seus valores e as relações raciais na educação
brasileira” (p. 12).
Antes de essa lei ter sido aprovada, já sentíamos neces-
sidade de discutir, com nossos alunos pequenos, a questão não só
da chegada (e não o “descobrimento”) dos portugueses ao Brasil e
dos indígenas como “verdadeiros donos da terra”, mas, também, so-
bre a vinda dos africanos escravizados e todo o papel que eles des-
empenharam e ainda desempenham em nosso país, dando, assim,
maior visibilidade às culturas afro-brasileiras.
Sabemos que não é a aprovação dessa lei que vai solu-
cionar as questões relativas ao racismo, discriminação e precon-
ceito, até porque temos experiência suiciente de que, em nosso
país, quase nunca o que é imposto é cumprido. No entanto, temos
a clareza de que ela é o estopim que está delagrando muitas dis-

79
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

cussões, críticas e uma mudança aqui, ali e acolá. “Há um tempo


de plantar e um tempo de colher”, assim, há um tempo para que
mudemos e que novas concepções se conigurem, mas o mais im-
portante é acreditar que podemos reescrever nossos currículos nos
diferentes níveis de ensino com bases mais sólidas e com um outro
olhar sobre as Áfricas.
A lei tem servido, também, para revelar e desvelar aquilo
que estava sendo tratado por “debaixo dos panos”. Sua criação vem
provocando a reconstrução do que aparece nos livros didáticos, a
revisão da História do Brasil e promovendo um boom editorial com
dissertações, teses, livros teóricos e de literatura, além de notícias na
mídia, palestras, cursos e seminários, ampliando, assim, os fóruns de
discussão e de relexão.
Há urgência em modiicar a visão que negativiza e coloca
num plano subalterno os africanos e os afro-brasileiros, mas essa
transformação precisa ser de atitude, de um olhar mais atento, mais
africanizado no interior do nosso brasileirismo, e de mudança de
concepção de mundo, um mundo menos eurocêntrico.
Nossos alunos entram para essa escola, no primeiro ano
de escolaridade por sorteio público, tendo como único critério a
idade de seis anos completos. A escola ica situada no bairro do Rio
Comprido e recebe crianças de várias regiões do município do Rio
de Janeiro e de outros municípios ao redor. Mesmo assim, analisa-
mos que temos poucos alunos negros em nossas turmas, facilitan-
do, talvez, o aparecimento de atos de preconceito e discriminação
e diicultando enfrentamentos em relação às diferenças existentes
– que estão aí presentes. Com elas aprendemos, através de com-
parações desprovidas de preconceitos. Como podemos pensar em
uma educação democrática sem enfrentar tais desaios?
A nossa formação esteve marcada por um saber que pouco
se articulava com a realidade e com a compreensão dos fatos, cris-
talizava o tempo histórico, priorizando datas e nomes. Nos bancos
escolares pelos quais passamos também só falávamos de “escravos”
em maio, no “Dia da Abolição”, fazendo uma leitura de que a Princ-
esa Isabel foi uma verdadeira heroína ao assinar a “liberdade aos es-
cravos”. Como faríamos uma análise mais aprofundada com nossos
alunos? Como haveríamos de discutir as questões que “pipocavam”

80
ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

nas nossas salas de aula frente aos preconceitos? Nossas concep-


ções foram e ainda estão se delineando e não bastava mais apenas
conversar com as crianças sobre os apelidos dados, tais como: “ma-
caco”, “torradinho” ou “neguinho”, ou ainda, apaziguar posturas de
algumas crianças que não queriam participar de atividades com os
colegas “pretos”, “neguinhos” ou “favelados”.
Toda angústia nos leva a um deslocamento, pois passamos
a buscar uma resposta que possibilitasse o avanço nos nossos con-
hecimentos. Buscamos, então, entender e começamos a nos per-
guntar – o que essas crianças sabem sobre a cultura africana? O que
sabem sobre a formação do nosso povo? Partindo dessas dúvidas,
percebemos que precisávamos mudar o foco de atuação, tínhamos
que investir, primeiramente, na descoberta das hipóteses que as cri-
anças já tinham formado acerca dessas questões.
Na tentativa de promover um enfrentamento e um recon-
hecimento da igualdade entre culturas africanas, afrodescendentes
e brancas, eurocêntricas, começamos, em nossa escola, a introduzir
nos planos de curso uma discussão mais ampla sobre as diferen-
ças. Apostamos em mostrar uma África — para além da escravidão
— como berço de culturas milenares, com todas as suas belezas,
seus reinos, seus conhecimentos sobre navegação, agricultura,
matemática, sistemas políticos, meio ambiente e com todo seu rep-
ertório histórico acumulado anteriormente à colonização europeia.
Muitas vezes, nos surpreendíamos e ainda nos surpreen-
demos com as falas dos alunos, demonstrando preconceitos, como
por exemplo: Não dou a mão para preto; ou Não gosto nem de preto,
nem de pobre; Não vou dançar com ela, porque é preta; baleia preta;
macaco preto; Não vou sentar perto dele, ele é preto e favelado...
Discutíamos o assunto; chamávamos os responsáveis para
entender como a família lidava com essas concepções; líamos uma
história ou outra. Começamos a deixar de fazer danças com pares
nas festas juninas e fomos preferindo a formação em roda; e, em
vez de enfrentarmos essas atitudes, inventávamos formas de dis-
farçá-las. Em meio aos nossos não-saberes, fomos minimizando es-
sas questões, mas elas pululavam em nossas cabeças e nos faziam
pensar e expressar nossa convicção de que estávamos vivendo um
tempo diferente nas escolas para o qual não estávamos preparadas
e que precisávamos mudar os rumos dessa história.

81
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

O mundo de agora é um mundo bem diferente de quando


nos formamos e a escola pública, quando passou a dar voz e vez às
classes populares, trouxe à baila muitas situações não experimenta-
das ainda. Era o novo chegando e nos nossos pontos de vista, nos
atropelando e nos invadindo. Precisamos começar a reinventar os
currículos, pois os que tínhamos não mais davam conta dessa plu-
ralidade de vidas, cores e imagens.
Lendo Imagens quebradas, de Arroyo (2004), sobre as
transformações nos conceitos de infância e adolescência que es-
tamos vivendo, encontramos certo conforto, e não conformismo,
quando diz:

Se as mudanças nas ciências nos produzem es-


panto como docentes, na cultura e na ética, es-
ses espantos não são menores. Quando tenta-
mos mudanças na escola sempre a pensamos no
campo do conhecimento: novas tecnologias, no-
vas descobertas cientíicas, novos conhecimen-
tos, logo nova docência, novas condutas, novos
currículos. Desta vez somos obrigados a deter-
nos nas novas condutas, novos valores, novas
culturas. As mudanças no campo da cultura, dos
valores e da ética nos interrogam tanto ou mais
do que as mudanças no campo do conhecimen-
to (p. 20).

Percebemos que aquilo que fazíamos não bastava. Era


preciso uma ação intencional, deliberada e planejada para que as
transformações fossem se acumulando. Não podíamos mais espe-
rar o eventual, o acontecido. Precisávamos fazer acontecer. Planeja-
mos, então, em 2005, um projeto – “Que caras tem o Brasil?” – com
a duração de um ano letivo e reconhecendo o mesmo valor às cul-
turas indígenas, brancas e africanas. Não podemos deixar de ver
que temos cara africana, europeia, asiática, enim, temos a cara do
mundo. Somos um país híbrido, multicultural.
Tendo a certeza de que, para valorizar nossa cultura, é pre-
ciso conhecer nossa história, fomos abrindo caminhos, por “mares
nunca dantes navegados”, enfrentando tempestades e calmarias,

82
ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

até a chegada ao nosso destino: uma mudança conceitual sobre a


formação do povo brasileiro.
Começamos arrumando a porta da sala com um mapa do
Brasil prenhe de iguras de pessoas negras, indígenas, louras, ruivas,
de cabelos lisos e encaracolados, e o interior da sala de aula com
murais repletos de ilustrações que provocassem curiosidades e que
izessem pensar sobre as diferenças.
Tomamos, então, a literatura como o leme de nosso navio
e, acreditando que ela provoca diferentes leituras e relexões, parti-
mos para uma expedição pelos muitos contos africanos que estão
aportando em nossas livrarias – cada vez em maior número, quali-
dade e beleza, não só textuais quanto em ilustrações.

Para a cultura negra, o círculo, a roda, a circularidade


é fundamento, a exemplo das rodas de capoeira, de
samba e de outras manifestações afro-brasileiras. Em
roda, pressupõe-se que os saberes circulam, que a hi-
erarquia transita e que a visibilidade não se cristaliza.
O luxo, o movimento, é invocado e assim, saberes
compartilhados podem constituir novos sentidos e
signiicados e pertencem a todos e todas (MEC, 2006,
p. 61).

Como é de praxe em nossas turmas, começamos o dia com


uma Roda de Leitura e queremos ser, como nas culturas africanas,
os griôs21 para nossos alunos.
Nós, professoras das três turmas, vimos estudando e lendo
para descobrirmos desvios, atalhos, rumos que possam nos auxiliar
na condução do trabalho. Garimpamos não só livros de literatura,
mas livros que nos embasem teórica e historicamente.
Começamos nosso projeto levantando os conhecimentos
prévios de nossos alunos e perguntamos o que eles sabiam sobre a
África. Ouvimos várias respostas:

21 “Griô, explica Konte, surge porque, como a escrita não era usada em certas regiões da
África, coniavam a um grupo social a tarefa de narrar a história e, assim, de desempenhar o
papel de memória do povo africano. Cabia, portanto, à comunidade griô transmitir oralmente
a história” (Alves e Garcia, 1999, p. 8).

83
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Foi de lá que vinham os escravos.


Lá tem muita guerra.
Lá tem muita fome e Aids.
Lá tem deserto.
Lá tem elefante, leão...
A África não é um país, lá tem muitos países.
Lá é onde vivem os negros.
Na África só tem aquelas casas feitas com palha, não
tem prédios e nem casas como tem na nossa cidade.
Na África só existem pessoas negras?
A África é um local onde a vida selvagem é muito
grande. Tem vegetação que não é só deserto, tam-
bém tem alguns animais como os guepardos, leões
e até girafas.
Na África tem muita violência, eles matam animais.
Os africanos têm cabeças diferentes, umas mais comp-
ridas.

Para todos, professores e alunos, essas falas propiciam


debates, instauram conlitos e dão pistas para a busca de mais in-
formações, conirmando, refutando ou enriquecendo as hipóteses
iniciais.
Quando permitimos que os alunos revelem o que pensam
(sem cerceamento) nos deparamos com airmações como essas, de
duas crianças, que entendem que os europeus são superiores:
Os europeus evoluíram mais, porque têm mais máquinas e
videogames.
Diante de falas intrigantes como essas, percebemos o
quanto são complexas a problematização e a compreensão do pro-
cesso de ensino e de aprendizagem da História.
Retomando a literatura, perguntamos, também, se alguém
conhecia algum personagem negro nas histórias infantis e algumas
crianças se lembraram da Bonequinha Preta, da Menina bonita do
laço de ita, O Menino Marrom e de Tia Nastácia, do Sítio do Pica-
pau Amarelo.
Antes de iniciarmos a leitura do livro O cabelo de Lelê, cuja
capa apresentava uma menina negra com seus cabelos compridos

84
ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

e cheios de cachos, perguntamos de que falaria a história e algu-


mas crianças se aproximaram bastante do conteúdo real e uma
disse apenas: Ui, que feio, que nojo! Custamos até a entender do que
ela estava falando. Pedimos que se explicasse e ela reairmou que
a menina tinha um cabelo muito feio. Um colega disse logo: Isso
é preconceito e é crime, sabia? Discutimos essa questão e também
o porquê dos cabelos mais grossos e encorpados. Escrevemos aos
pais dessa criança, relatando sua fala e pedimos que conversassem
sobre o acontecido. O pai nos procurou para agradecer a oportuni-
dade que lhe demos de discutir a questão em família.
Depois, em outro dia, lemos um outro livro que também
falava de cabelos: As tranças de Bintou, realçando e valorizando um
dos penteados próprios dessa cultura. Aliás, aproveitamos essa pa-
lavra “trança” para fazer parte do nosso título, porque a achamos
forte e carregada de signiicados não só como entrelaçamento de
madeixas, muito peculiar nas culturas africanas, mas também pelo
seu signiicado maior de entrelaçamento de ideias, culturas, pes-
soas, afetos...
Ao ler o livro Como as histórias se espalharam pelo mundo,
perguntamos, a partir da leitura do título, como as crianças acha-
vam que as histórias haviam chegado até nós e algumas respostas
foram: Ora, de boca em boca; Eles chegavam aqui e saíam contando
as histórias para os outros; Eles guardavam bem as histórias para não
esquecer; Então, podemos dizer que essas histórias vieram pelo mar,
viajaram de navio na cabeça das pessoas e chegaram até nós?
Outro fato que ilustra nossos registros, é que ao iniciar a
leitura do livro Os sete novelos, uma aluna comentou que aquela
capa já dizia tudo, era uma história da África, pois havia sete pes-
soas negras. Então, a professora perguntou se ela achava que na
África só existiam pessoas negras. Ela icou em dúvida, mas ao i-
nal respondeu que sim. Já um outro menino informou que aquele
livro contaria a história de pessoas da África que faziam tecidos com
aquelas linhas, pois uma das notícias contadas na Roda de Notícias
do dia anterior falava desse assunto e a professora já havia comen-
tado que essa notícia sobre Mali a fazia lembrar de um belo conto
africano. Os conhecimentos que as crianças possuem vêm à tona
nesses momentos plurais nas nossas Rodas. É um verdadeiro encon-
tro de saberes, em que podemos averiguar o que as crianças estão
pensando e sabendo sobre o assunto.

85
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Em um dos muitos livros lidos, Ulomma: a casa da beleza,


que encantou as crianças, o autor nos conta que seu pai dizia: “O
conto é um bom prato de comida. Só quando bem saboreado e de-
pois de digerido é que podemos ver o efeito”. Tomando como ponto
de partida essas sábias palavras para o nosso trabalho realizado com
as turmas, acreditamos e investimos cada vez mais na leitura. Temos
colhido bons frutos com esse investimento, percebendo que as cri-
anças se apropriam de um vasto conhecimento. Então, não poderia
ser diferente quanto ao estudo da cultura africana e afro-brasileira,
só assim poderemos ultrapassar os muros dos preconceitos e do
desconhecimento.
“Ninguém pode estar no mundo de forma neutra. Não
posso estar no mundo de livros nas mãos constatando apenas. A
acomodação em mim é apenas caminho para a inserção que impli-
ca decisão, escolha, intervenção na realidade” (Freire, 1996, p. 86).
Outra atividade proposta foi a visita da mãe de um aluno
que contou suas experiências vividas nos dois anos em que morou
na Nigéria. Aquela criança que achava que só havia negros na Áfri-
ca percebeu que sua hipótese não era verdadeira, tendo, assim, a
oportunidade de transformar seus conhecimentos. Esses encontros
favorecem não só a ampliação das informações, mas também que
as crianças negras, que em muitas situações se sentem fragilizadas
diante dos preconceitos, passem a ter uma autoimagem positiva.
O nosso trabalho tem como um dos objetivos envolver as
famílias, mas, nessa trajetória, nos vemos frente a alguns contrapon-
tos, o que não representa um impedimento para a continuidade
dos projetos planejados. Eles funcionam, sim, como movimento de
pesquisa e relexão.
Lemos o belíssimo texto de Marina Colasanti Para dizer
quem sou, me cantarão, que contava sobre um grupo africano que,
para dar nome a cada criança que nasce, cria uma melodia especial,
única, que vai acompanhar aquela pessoa pelo resto de sua vida,
sendo lembrada e entoada, pelo grupo, principalmente nos mo-
mentos difíceis. Entregamos o texto colado no caderno para que
a família o relesse para a criança e pudesse, também, usufruir de
sua beleza (não só literária, como social e afetiva), trocando ideias
sobre as diferenças entre as culturas. No dia seguinte, recebemos

86
ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

duas cartas, uma de cada um dos responsáveis de um aluno, criti-


cando o texto e a tarefa passada para casa, comentando que não
leram para o ilho porque acharam um absurdo, pois o texto trazia
palavras relativas às crenças religiosas africanas.
A resposta, por escrito, teve o respaldo da Lei n. 10.639/2003
e de nossas convicções. Isso demonstra o quanto ainda é difícil lidar
com esse tema e como a religião pode, muitas vezes, tirar o foco
do verdadeiro motivo da situação, embaçando uma atitude de dis-
criminação e preconceito. No entanto, não podemos deixar escapar
a certeza de que “todos os saberes se equivalem, nenhum tem a pri-
mazia sobre os outros, aplica-se a mesma regra aos homens e ao
que eles sabem” (Serres, 1994, p. 174).
Também tivemos o caso de um aluno que, inicialmente, ao
ouvir lendas africanas icava bastante interessado, mas depois que
sua família, de religião cristã, percebeu o trabalho realizado e fez al-
gumas colocações em reunião, ele passou a tampar os ouvidos nos
momentos em que líamos esse gênero textual. Quando enfrenta-
mos essas situações é que reconhecemos o quanto tem sido tenso
trabalhar na escola, na perspectiva do multiculturalismo.
Pelo que sempre estudamos, lemos nos livros e repassáva-
mos para nossos alunos, parece que os escravos eram uma “massa
uniforme”. Não parávamos para pensar que falavam línguas diferen-
tes, tinham religiões diversas e tinham habilidades várias para o tra-
balho, tanto que quando aqui chegavam iam, de acordo com seus
conhecimentos, trabalhar em lugares diferentes.
Para fugir à ideia negro/escravidão – esse “prato cheio”
nas escolas –, convocamos nossos alunos a pensarem sobre várias
questões. Quem eram essas pessoas que vinham para cá na condição
de escravos? Será que os escravos vinham todos do mesmo lugar?
Já nasciam escravos? Onde trabalhavam? O que faziam? Que son-
hos tinham? E como icavam suas famílias? O que acontecia? Como
eram tratados no Brasil? Onde trabalhavam? Pensando nos dias de
hoje, por que a maioria dos pobres no Brasil é afrodescendente?
Como seria estar sozinho no navio, sem conhecer ninguém e sem
ter como se comunicar com os outros?
Dos porões dos navios, para os porões da memória, os afri-
canos escravizados tinham só uma certeza: levariam suas lembran-

87
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

ças, crenças, seus conhecimentos, sentimentos e suas histórias de


vida, que não poderiam ser apagadas e não “iriam para o tronco”;
pelo contrário, iriam se frutiicar em outras terras, como de fato
aconteceu. Através da diáspora africana, fenômeno que denomina
a distribuição de africanos, por meio do tráico de escravos, dos
mais diferentes grupos étnicos, para diversos países do continente
americano, inclusive o Brasil, acabaram espalhando-se, pelo mundo
todo, as crenças e os costumes milenares desse povo.

Pensar o humano, a humanidade, é prioritariamente,


na nossa concepção, discutir sua memória e como ela
se articula no real-histórico.(...) A memória é sempre o
resultado de uma ação do sujeito histórico sobre seu
próprio passado, uma ação especulativa, haja vista
que não existe uma memória que se coloque como
uma essencialidade, como uma relação imutável e
congelada no tempo. A memória implica sempre
uma escolha, uma seleção que se processa a partir de
nossas referências individuais e coletivas, muitas das
escolhas que são feitas não trazem em seu bojo uma
explicação, simplesmente escolhemos, simplesmente
selecionamos (MEC, 2006, p. 59).

A partir dessa ideia, buscamos seguir uma trilha que delin-


easse um conceito de ser humano produtor de história e não a par-
tir de sagas e heróis numa visão eurocêntrica, mas, sim, através de
relações e comparações das vivências de cada povo, cada um com
suas identidades, sua culturas e sua singularidades. Bem antes dos
portugueses ultrapassarem o Cabo da Boa Esperança, contornando,
enim, todo o continente africano para alcançar a Índia, expandindo
seus domínios, a África já tinha a sua história e a sua memória.
Um outro trabalho desenvolvido foi o de análise do mapa
do Planisfério Político, localizando os continentes, o Brasil e o mapa
da divisão política da África para os alunos perceberem que se trata
de um continente com muitos países e muitas culturas diferentes,
provocando um pouco as observações: Quantos países tem a África?
De que países vocês já ouviram falar? O que ouviram? O que conhecem
sobre esse continente?

88
ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

Logo, logo, muitos falaram de Madagascar por conta de


ilmes que andavam em alta nos cinemas. Outros falaram da Copa
do Mundo com times de Camarões, Nigéria, citaram os maratoni-
stas do Quênia; alguns se lembraram do Egito, das pirâmides, das
múmias, pois o livro sobre esse assunto é muito disputado na tur-
ma, exercendo um fascínio especial.
Algumas crianças afrodescendentes falaram os nomes
de países que seus pais já haviam visitado como Costa do Marim,
Guiné, Senegal e Nigéria. Um desses responsáveis é nigeriano. Aliás,
representantes de três famílias se propuseram a ir às turmas con-
versar sobre esses países e levaram fotos, roupas e objetos trazidos
de lá, o que foi muito enriquecedor para todos, inclusive para nós,
professoras.
A cada país lembrado, precisávamos localizá-lo no mapa,
o que, obviamente, envolve a leitura, sendo que nosso objetivo,
como alfabetizadoras que somos, não era apenas a decodiicação,
mas que pudessem se utilizar de outras estratégias de leitura. O au-
tor da lembrança, então, precisava dar “dicas” para outros encontra-
rem mais rapidamente, o país citado e aí vinham dicas de localiza-
ção, que não podia ser a letra inicial e nem somente o tamanho do
país, mas sim indicações tais como: à direita ou à esquerda de, lá
em cima, lá embaixo, perto do Oceano Atlântico, perto do Oceano
Índico, abaixo ou acima da linha do Equador, aparecendo questões
sobre fronteiras e sobre a rosa-dos-ventos, levando a novos conhe-
cimentos. Uma criança, que escolheu Madagascar, deu as seguintes
dicas: está no Oceano Índico; é cercada de mar por todos os lados e
está ao sul da África, mais para a direita, todos descobriram rapidam-
ente de que país se tratava.
Outra proposta foi a de cada criança escolher um país,
pesquisar algumas informações sobre ele que achasse importantes
para, na semana seguinte, contar à turma o que aprendeu. Foi bas-
tante proveitoso, pois os interesses foram parecidos, falaram sobre
as bandeiras, as moedas, algumas comidas, animais, a população, as
línguas e os monumentos. E, assim, traçamos (ou trançamos) uma
grande rede de conhecimentos, em que cada um contribuiu com
seus saberes.
No planejamento, incluímos a apreciação de variadas
produções artísticas, fazendo leituras e releituras de obras de dife-
rentes autores que dão visibilidade ao negro, retratando-o sob dife-

89
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

rentes maneiras, como Debret, Rugendas, Portinari, Di Cavalcanti,


Djanira, Tarsila do Amaral. Há um movimento constante de acolhi-
mento e busca de outras fontes que venham a enriquecer o trab-
alho.
Sabemos que muito ainda temos a aprender e que só
fazendo, errando, acertando, estudando é que se aprende. Mas o
que andamos vendo e ouvindo é que as crianças, e nós também,
estamos encantadas pelo continente africano, suas histórias e seus
mistérios; que o orgulho daqueles que são afrodescendentes está
“saindo pelos poros” e que os atos de preconceito não têm acon-
tecido, ou melhor, não temos a eles presenciado em nossas turmas.
Incorporar esse estudo aos nossos planejamentos, acom-
panhado sempre de muitas relexões, tem sido uma prática insti-
gante, complexa, política e socialmente comprometida. Estivemos
durante muitos anos acomodadas com a história que aprendemos
em nossas infâncias e por muito tempo as reproduzimos sem críti-
cas. Ratiicamos a ideia de que a escola é o tempo/espaço para se
discutir o preconceito e de enfrentar questões como essas apresen-
tadas.
Queríamos e queremos desmistiicar um olhar negativo
sobre a África e criar um outro olhar sobre as belezas e histórias
de seus reinos e sobre a enorme produção cultural que ela nos le-
gou. Resolvemos, então, por opção própria, dar destaque a esses
recortes, embora não possamos desconsiderar algumas realidades
que estão postas no mundo, como a da fome, pobreza, doenças e
lutas internas.
Consideramos que a escolha dos livros e de outros mate-
riais usados é de extrema responsabilidade dos professores e que
esse é um momento importante para se compartilhar ideias, con-
vicções e dúvidas. Ao caminharmos pelas diversas fontes de pes-
quisa, passamos a ter mais elementos para aprofundar os nossos es-
tudos. Foi extremamente curioso, quando ao lermos o livro Agbalá:
um lugar-continente descobrimos o que lemos sobre Rui Barbosa,
grande intelectual:

1890, na tentativa de “apagar” todos os vestígios da


escravidão — evitando os pedidos de indenização —,

90
ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

foi aprovada pelo Congresso Nacional uma lei de Rui


Barbosa, ministro das Finanças na época, que autor-
izava a queima de todos os documentos referentes à
escravidão durante 350 anos. Um mês depois, Rui Bar-
bosa já não era mais ministro; mesmo assim, no dia
13 de maio de 1891, deu ordem para queimar todos
os arquivos. Sabemos que nem todos foram perdidos
(Castanha, 2007, p. 39).

Atualmente, quando ainda encontramos livros que tratam


os africanos como se não tivessem construído uma história anterior,
uma vida, um passado como qualquer ser humano, nos impacta-
mos e nos mobilizamos. Em que sentido? Em um processo de circu-
laridade, sentimos a necessidade de voltar, então, ao início do texto,
lembrando Milton Santos (1999), quando se refere à necessidade de
praticarmos a nossa rebeldia contra conceitos assentados. Inspiradas
nos movimentos de resistência dos negros, tentamos resistir, tam-
bém, às práticas racistas e discriminatórias.
Deixamos, como relexão inal, a pergunta que vem nos
acompanhando: Como os brasileiros, em sua maioria negros, ainda
podem viver as situações de preconceito, discriminação e racismo
como as que aqui apresentamos?

São mais de 79 milhões de homens, mulheres, cri-


anças. Formam a segunda maior população negra
do mundo – atrás apenas da Nigéria. Representam
66% dos brasileiros. Transbordam nas áreas pobres.
São quase invisíveis no topo da pirâmide social. E
enfrentam uma desvantagem quase monótona nos
indicadores socioeconômicos: do Índice de Desen-
volvimento Humano(IDH) à taxa de analfabetismo;
do desemprego ao salário médio; das condições ad-
equadas de saneamento ao acesso doméstico à Inter-
net (Leitão, 2006, p. 5) .

91
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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ÁFRICA DE MUITAS HISTÓRIAS

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93
PERSPECTIVA
MULTICULTURAL
EM EDUCAÇÃO:
UMA APROXIMAÇÃO
Mônica Andréa Oliveira Almeida22

Introdução

O predomínio do fenômeno da globalização e mundial-


ização da cultura compõe o cenário em que vivemos atualmente.
Nesse contexto, situa-se a complexidade das relações entre educa-
ção e cultura(s) que vem ganhando força nos debates educacionais
em nível nacional e internacional, intensiicando a produção cientí-
ica e cultural sobre o tema. As interpretações, as mais distintas, en-
riquecem os debates entre os especialistas e intelectuais, em geral,
na perspectiva de se procurar compreender essa problemática.
O desaio com que se deparam as instituições de ensino
formal, em seus diferentes graus, é redimensionar suas propostas
educativas procurando questionar o trabalho que, comumente,
vêm realizando, de homogeneização de ritmos e estratégias, inde-
pendentemente da origem social, cultural, da idade e das experiên-
cias vividas por seus alunos e alunas. Esta perspectiva homoge-
neizadora não contempla, na maior parte das vezes, a diversidade, e
questões como diferença23, preconceito, discriminação, raça, gêne-
22 Mestre em Educação pela PUC-Rio, Professora Substituta do Instituto de Aplicação Fer-
nando Rodrigues da Silveira – Cap-UERJ; Professora do Curso de Pedagogia da Unesa, Tutora a
Distância do Curso de Pedagogia para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental – Cederj/Unirio.
23 As questões relativas à diferença são entendidas aqui de acordo com Candau (2001, p.
8): “a igualdade não está oposta à diferença, e sim à desigualdade, e a diferença se opõe à
padronização, à produção em série, a tudo o ‘mesmo’. O que estamos querendo trabalhar
refere-se a negar a padronização e, ao mesmo tempo, lutar contra todas as desigualdades
dentro da sociedade, nem padronização nem desigualdade, mas sim igualdade e diferença. A
igualdade que queremos construir assume o reconhecimento de direitos básicos para todos.

95
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

ro, exclusão, entre outras, são silenciadas.


Como airma Canen (1999, p. 90): “a sensibilização para a
diversidade cultural e para o desaio a estereótipos e preconceitos
relacionados a gênero, raça, classe social, padrões culturais e out-
ros, constitui ponto de partida para o pensamento multicultural em
educação”.
O tema da diversidade/pluralidade cultural vem adquir-
indo maior visibilidade nos debates educacionais e está presente
nas diretrizes curriculares propostas para o Ensino Fundamental
brasileiro24, como nos Parâmetros Curriculares Nacionais, publica-
dos em 1997 pelo Ministério de Educação e do Desporto, que apre-
sentam a pluralidade cultural como um de seus eixos transversais.
Em 2003, o governo federal estabeleceu a obrigatoriedade
do Ensino de História da África e dos Africanos, da Luta dos Negros
no Brasil e da Cultura Brasileira no Ensino Básico ao sancionar a Lei
n. 10.639/03.25
Outra iniciativa importante das propostas multiculturalis-
tas é a construção da perspectiva de políticas de ação airmativa26
para os negros no Brasil. A discussão sobre esse tema, em nosso
país, data dos anos 80 do século XX. No entanto, a viabilidade e a
necessidade de aplicação dessas medidas vêm sendo alvo de sev-
eras críticas. Uma delas refere-se ao fato de que somos um país cul-
tural e racialmente integrado que não necessita da implementação
de políticas que beneiciem grupos especíicos.
Contudo, nosso país foi construído com uma base multi-
cultural muito forte e as desigualdades historicamente acumuladas
pelos grupos negros contribuíram para criar condições de vida par-
Mas, esse ‘todos’ não são padronizados, não são os ‘mesmos’. Têm que ter as suas diferenças
reconhecidas como elemento de construção da igualdade” (Nuevamerica, n. 91, setembro de
2001).
24 Outro documento relevante é o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
(MEC, 98), que foi preparado com a participação de educadores índios e marcou um momen-
to de ampla mudança nas escolas localizadas em aldeias indígenas.
25 Em 10/03/08 foi sancionada a Lei n. 11.465/08, que substitui a Lei n. 10.639/03 e acres-
centa a inclusão do ensino de história e cultura dos povos indígenas.
26 Podemos deinir, em linhas gerais, a ação airmativa como um “conjunto de medidas, seja
legislativa ou administrativa, que tendam a defender ou mesmo incentivar grupos étnicos,
culturais ou religiosos minoritários historicamente desprivilegiados” (Melo, 1998, p. 1). É im-
portante salientar que ação airmativa não é sinônimo de cotas. Estas constituem apenas um
instrumento de aplicação dessa política.

96
PERSPECTIVA MULTICULTURAL EM EDUCAÇÃO

ticularmente desfavoráveis para este grupo social. Heringer (1999,


p. 41) nos lembra que, “o Brasil foi o último país do mundo a abolir o
trabalho escravo de pessoas de origem africana, em 1888. Embora
nenhuma forma de segregação tenha sido imposta após a abolição,
os ex-escravos tornaram-se totalmente marginalizados em relação
ao sistema econômico vigente”.
Outros aspectos históricos como a política de imigração
europeia, na segunda metade do século XIX, numa tentativa ex-
plícita de “branquear” a população nacional; o conceito de “democ-
racia racial”; a ditadura militar, durante os anos 1960 e 1970, que
coibiu a atividade política e intelectual e inibiu as discussões so-
bre desigualdades raciais, contribuíram para que este grupo social
icasse marginalizado. No inal dos anos 1970, vários movimentos
sociais começaram a se reorganizar, entre eles o Movimento Negro,
que estimulou a retomada das discussões sobre desigualdades ra-
ciais no país.
Nos anos 1990 o Movimento Negro obteve crescente visi-
bilidade; militantes denunciaram as desigualdades raciais e o gov-
erno federal manifestou intenção de promover políticas em relação
a essa problemática27.
No âmbito internacional, o debate é intenso nos Estados
Unidos e também na Europa. A Unesco, após a realização da Con-
ferência da ONU sobre o Racismo, a Discriminação Racial, a Xeno-
fobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban (África do Sul),
no período de 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, aprovou por
aclamação uma Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural,
em novembro desse mesmo ano. Na ocasião, o Diretor-Geral desta
organização, Koïchiro Matsuura, airmou que esperava que essa de-
claração chegasse “um dia a adquirir tanta força quanto a Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos” (Candau, 2002, p. 127).
É neste contexto que se coloca o presente trabalho, que
tem por objetivo apresentar algumas relexões sobre as relações en-
tre cultura(s) e educação.
27 De acordo com Guimarães (1999, p. 149), foi apenas em julho de 1996 que o Ministério
da Justiça reuniu, em Brasília, pesquisadores brasileiros, americanos, bem como um grande
número de lideranças negras do país para um seminário internacional intitulado “Multicultu-
ralismo e Racismo: o papel da ação airmativa nos estados democráticos contemporâneos”.
O autor salienta que “foi a primeira vez que um governo brasileiro admitiu discutir políticas
especíicas voltadas para a ascensão dos negros no Brasil”.

97
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Perspectiva multicultural e educação: algumas


considerações

Na perspectiva de contribuir para uma melhor compreen-


são dessa problemática, a abordagem do multiculturalismo em
educação vem desempenhando papel fundamental.
A im de entendermos, ainda que de forma simpliicada,
o que quer dizer “multiculturalismo”, apresentaremos algumas
deinições para o termo que variam de acordo com o ponto de vista
e o contexto sócio-histórico no qual emergem.
De acordo com Gonçalves & Silva (2000, p. 14), o multicul-
turalismo pode ser entendido como:

um movimento de idéias que resulta de um tipo de


consciência coletiva, para a qual as orientações do
agir humano se oporiam a toda forma de “centris-
mos” culturais, ou seja, de etnocentrismos. Em outros
termos, seu ponto de partida é a pluralidade de ex-
periências culturais, que moldam as interações sociais
por inteiro.

É importante assinalar que os autores destacam a diver-


sidade cultural como centro das preocupações da proposta multi-
culturalista. Contudo, ressaltam que o multiculturalismo é apenas
uma das possibilidades, e não a única, que as políticas culturais no
mundo contemporâneo podem vir a ter.
Outro autor que ressalta a polissemia do “multiculturalis-
mo” é Moreira (2001), para quem diversas ênfases podem ser atribuí-
das ao termo: 1) atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade
cultural; 2) meta a ser alcançada em um determinado espaço social;
3) estratégia política referente ao reconhecimento da pluralidade
cultural; 4) corpo teórico de conhecimentos que buscam entender
a realidade cultural contemporânea; 5) caráter atual das sociedades
ocidentais.
Este autor entende que a última perspectiva é a mais ap-
ropriada para expressar os complexos fenômenos culturais contem-
porâneos. Assim,

98
PERSPECTIVA MULTICULTURAL EM EDUCAÇÃO

multiculturalismo representa, em última análise, uma


condição inescapável do mundo ocidental, à qual
se pode responder de diferentes formas, mas não se
pode ignorar. Multiculturalismo refere-se à natureza
dessa resposta. Educação multicultural, conseqüente-
mente, refere-se à resposta que se dá, a essa condição,
em ambientes educacionais (Moreira, 2001, p. 66).

A polissemia do termo multiculturalismo ica assim evi-


denciada. Contudo, percebemos que existem algumas conluências
entre os autores citados quando: enfatizam a centralidade do recon-
hecimento da pluralidade cultural nas propostas multiculturalistas;
assinalam sua importância como estratégia política para que os gru-
pos marginalizados social e culturalmente obtenham visibilidade;
destacam as contribuições que a produção teórica pode trazer para
a compreensão dos confrontos culturais contemporâneos.
É inegável a importância da perspectiva multicultural para
o entendimento das demandas que a realidade atual impõe, porém,
devemos ter em mente o que ressalta Canen (1997, p. 2): “a gama de
sentidos e interpretações atribuídos a termos como cultura, educa-
ção multicultural, perspectiva intercultural e outros tem se reletido
em posturas ambíguas e não raro contraditórias”. Trata-se, portanto,
de explicitar, claramente, a concepção utilizada já que o campo
abarca interpretações das mais conservadoras às mais radicais.
Segundo Gonçalves & Silva (2000, p. 16), os multicultur-
alistas izeram da instituição escolar seu campo privilegiado de
atuação, porque “a transmissão de conhecimentos nas sociedades
modernas conta com o poderoso suporte dos sistemas educacio-
nais (sistemas esses que consomem grande parte da vida dos in-
divíduos) e, a educação, qualquer que seja ela, está integralmente
centrada na cultura”.
Porém não é nos sistemas educacionais que se deve bus-
car a origem da perspectiva multicultural. Suas “raízes” podem ser
encontradas nos movimentos sociais, mais especiicamente nos
movimentos étnicos, como ocorreu nos Estados Unidos durante a
efervescente década de 1960, quando estudantes, líderes religiosos
e negros do sul resolveram levar adiante a luta por igualdade de
exercício dos direitos civis.

99
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Foi a partir desse movimento de luta que se originou a


perspectiva multicultural, e esta serviu como campo de aprendiza-
gem para outros segmentos sociais, também alijados da vida social,
como foi o caso de outros grupos étnicos, de feministas, de homos-
sexuais, etc. A atuação propositiva desses grupos, as reivindicações
de professores e estudantes que questionavam a estrutura social
injusta, o monopólio do saber por alguns e o sistema educacional
como um todo, contribuíram para a solidiicação dessa perspectiva.
O multiculturalismo “nasce” imbricado nas lutas sociais e vai, pau-
latinamente, se constituindo em proposta pedagógica, campo de
conhecimento e área de pesquisa. Como assinala Candau (2002a, p.
54), “a educação multicultural – como preferem denominar os norte-
americanos – passa a ter como um de seus objetivos tornar audíveis
e visíveis rostos e vozes até então silenciados e invisibilizados”.
Na Europa, a perspectiva multicultural emerge por força
das questões trazidas pela “grande migração de trabalhadores pou-
co qualiicados, oriundos, principalmente de suas ex-colônias da
América Latina, do Caribe, da África e da Ásia” (Candau, 2002a, p.
55). Esta realidade tornou-se mais complexa nos anos 1950 e 1960
porque se, inicialmente, os imigrantes icavam por um período tem-
porário, muitos permaneceram, constituíram famílias e seus ilhos
passaram a frequentar as escolas europeias. Este fato exigiu dos
países europeus respostas para se conviver com tamanha diversi-
dade de culturas.
Apesar de todo o movimento de renovação educacional,
iniciado a partir do im dos anos 1970, com o objetivo de minorar “o
preconceito e a discriminação sofridos pelos que chegam, o medo
e a repulsa dos que os recebem, o choque de culturas e o fracasso
escolar dos imigrantes” (Candau, 2002a, p. 57), a Europa continua,
até hoje, às voltas com conlitos culturais.
Na América Latina, a perspectiva multicultural origina-se
a partir de um contexto marcado pela colonização europeia e pelas
relações de poder assimétricas estabelecidas entre colonizadores
(euro-ocidentais) e colonizados (ameríndios).
Este cenário icou ainda mais complexo com a chegada de
africanos, que foram escravizados e assim como os ameríndios, “não
vinham de um único lugar do continente africano ou de um único

100
PERSPECTIVA MULTICULTURAL EM EDUCAÇÃO

grupo cultural. Entre eles existiam muitas diferenças e, como em


qualquer povo ou grupo social, grandes disputas” (Candau, 2002a,
p. 59).
Desde suas origens, a história da América Latina foi marca-
da por relações assimétricas de poder e pela pluralidade de etnias.
A chegada de imigrantes europeus e asiáticos contribuiu para que a
multiplicidade étnica icasse ainda mais complexiicada.
No caso especíico do Brasil,

a imigração de italianos, alemães, suíços, etc., tinha


uma explícita política racial por trás. Segundo seus
idealizadores, era preciso “branquear” o país de mula-
tos. Os imigrantes europeus chegaram ao Brasil com
vantagens de acesso à terra e ao emprego que jamais
foram imaginadas pelos negros que aqui já estavam
e com os quais a sociedade brasileira tinha – e ainda
tem – uma enorme dívida social (Candau, 2002a, p.
59).

A breve descrição da gênese da preocupação multicultur-


al nos Estados Unidos, Europa e América Latina, demonstra as dife-
renças existentes em cada um desses contextos e essas diferenças
reletem-se nas tendências e propostas de educação multicultural
que vêm sendo desenvolvidas em diversos países.
Como já foi salientado, anteriormente, a perspectiva mul-
ticultural não nasceu nas universidades e no âmbito acadêmico em
geral, ela é “fruto” das lutas dos grupos marginalizados social e cul-
turalmente, mas está “atravessada” pelo acadêmico e pelo social.
De acordo com Gonçalves & Silva (2000:17), a relexão a
partir das práticas pedagógicas tem sido importante, pois, “o mul-
ticulturalismo tem propiciado encontros fecundos entre as teorias
sociológicas e as pesquisas em educação”.
Nesse sentido, alguns modelos de educação multicultural
vêm sendo propostos por diversos autores. Podemos citar, no con-
texto norte-americano, o trabalho que vem sendo desenvolvido por
Peter McLaren28 e que possui caráter eminentemente político-social,
28 Seu trabalho remete-se especialmente ao contexto norte-americano e está situado no

101
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

pois visa “interrogar a institucionalização da igualdade formal base-


ada nos imperativos do mundo anglo, masculino e branco, favore-
cendo a transformação dessas instituições que produzem relações
assimétricas de poder e privilégios” (McLaren, 1997, p. 96).
Outro autor importante no contexto norte-americano é
James A. Banks. Para ele, a educação multicultural possui caráter
reformador e deve realizar profundas mudanças no sistema edu-
cacional. Assim, a principal inalidade da educação multicultural é
“favorecer que todos os estudantes desenvolvam habilidades, ati-
tudes e conhecimentos necessários para atuar no contexto da sua
própria cultura étnica, no da cultura dominante, assim como para
interagir com outras culturas e situar-se em contextos diferentes de
sua própria origem” (Banks, 1999, p. 2).
Este autor propõe um modelo próprio de educação multi-
cultural que seja um referente para o dia-a-dia das salas de aula e
29

que está baseado em cinco dimensões interligadas.


No contexto europeu, a diversidade cultural é, em geral,
analisada na perspectiva intercultural. Podemos citar os trabalhos
do autor francês Jean-Claude Forquin (1993) na área de currículo
e da autora espanhola Margarita Bartolomé Pina (1997)30 que tem
como uma de suas principais preocupações identiicar os modelos
educativos que vêm sendo desenvolvidos nas escolas espanholas
nas quais o pluralismo étnico é contemplado.
Em nosso país, o processo de desmistiicação da democra-
cia racial favoreceu o desenvolvimento do movimento multicultur-
alista. De acordo com Gonçalves & Silva (2000), fatores endógenos
e exógenos contribuíram para desestabilizar a imagem de paraíso
racial com a qual a sociedade brasileira costumava representar-se.
Sabemos que o “mito da democracia racial” esteve e ainda está in-
enfoque que ele mesmo denomina de multiculturalismo crítico e, mais recentemente, mul-
ticulturalismo revolucionário. O multiculturalismo crítico diferencia-se do multiculturalismo
conservador ou empresarial, do multiculturalismo humanista liberal e do multiculturalismo
liberal de esquerda.
29 O modelo de educação multicultural proposto por James Banks enfatiza que as ativida-
des desenvolvidas nessa perspectiva devem estar integradas umas às outras para que não se
constituam em iniciativas isoladas. As cinco dimensões apontadas pelo autor têm por objeti-
vo promover esta inter-relação. São elas: integração do conteúdo; processo de construção do
conhecimento; redução do preconceito; pedagogia da equidade; empoderamento/fortaleci-
mento de diferentes grupos.
30 Citados por Candau (2002a, p. 91)

102
PERSPECTIVA MULTICULTURAL EM EDUCAÇÃO

scrito no imaginário social brasileiro e, apesar de todas as críticas


recebidas ao longo dos anos, permanece atual. A ideia de que so-
mos um povo mestiço, misturado, aberto aos contatos inter-raci-
ais, pluriétnico, não conlitivo, povoa a mente da maior parte dos
brasileiros e brasileiras.
No Brasil, a preocupação com a questão da educação
multicultural é bastante recente, porém, “além das inluências inter-
nacionais, tem emergido uma produção original. Trata-se de uma
temática que vem se airmando nos meios acadêmicos de forma
crescente” (Candau, 2002a, p. 96).
Esta autora destaca também que grupos de pesquisa31 de
diferentes universidades, em diversas regiões do país, vêm se orga-
nizando e realizando trabalhos, a partir de diversas perspectivas e
enfoques, que se relacionam direta ou indiretamente com a prob-
lemática da educação multicultural.
Os autores nacionais que abordam a temática estão, em
geral, situados na chamada perspectiva crítica, ou seja, aquela que
entende a educação multicultural como “um princípio orientador
de uma educação para a democracia em um mundo marcado pela
globalização e o pluralismo cultural” (Candau, 2002a, p. 81). Sig-
niica dizer que o multiculturalismo em educação situa-se em um
momento histórico e social deinido e tem como objetivo construir
uma educação verdadeiramente democrática, que dê conta da
multiplicidade de universos culturais de seus alunos e alunas e que
possa intervir, criticamente, nas relações de poder que organizam
a diferença. Também é preciso airmar a inluência do pensamento
pós-moderno e pós-crítico, por mais ampla e ambígua que seja esta
perspectiva; se vem fazendo cada vez mais presente nas relexões
multiculturalistas de diferentes autores.

Multiculturalismo X interculturalismo

Ao abordarmos a problemática das relações entre educa-


ção e cultura(s), faz-se necessário clariicar o conlito semântico que
31 Candau cita como exemplos os trabalhos desenvolvidos na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

103
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

envolve termos como “multicultural/intercultural”32, uma vez que


eles vêm sendo utilizados, muitas vezes, como sinônimos.
Candau (2002, p. 97) entende o multiculturalismo como
“uma realidade social na qual convivem diferentes grupos culturais.
A tomada de consciência da presença de diferentes grupos culturais
numa mesma sociedade, em geral, é motivada por fatos concretos
que explicitam diferentes interesses, discriminações e preconceitos
presentes no tecido social”.
Para a autora, reconhecer e/ou airmar o caráter multicul-
tural de uma sociedade não leva espontaneamente ao desenvolvi-
mento de uma dinâmica que priorize processos interculturais.
O interculturalismo supõe a deliberada inter-relação entre
diferentes culturas. Nesse sentido, Sedano (apud Candau, 2000, p.
55), airma que:

[...] o preixo inter indica uma relação entre vários el-


ementos diferentes: marca uma reciprocidade (intera-
ção, intercâmbio, ruptura do isolamento) e, ao mesmo
tempo, uma separação ou disjuntiva (interdição, in-
terposição, diferença). Este preixo não corresponde a
um “mero indicador retórico, mas se refere a um pro-
cesso dinâmico marcado pela reciprocidade de per-
spectivas”. Caracteriza uma vontade de mudança, de
ação no contexto de uma sociedade multicultural.

Outro autor citado por Candau (2002, p. 75) é Jordan, que


considera que os termos “multicultural” e “intercultural” são fre-
quentemente empregados como sinônimos. Esse autor propõe uma
diferenciação entre eles. Nessa perspectiva, enfatiza uma maior ad-
equação da expressão intercultural ao delimitar o que a educação
intercultural não é: “educação compensatória, assimilacionista, um
simples ideal pedagógico humanista, um conjunto de atividades
pensadas e dirigidas para os grupos culturalmente minoritários.
Para Jordan, ao deinirmos o que a educação intercultural não é, se
está ao mesmo tempo delineando o que ela é”.
32 Termos e expressões como: “cultura”, “educação multi, pluri, inter e transcultural”, bem
como o conceito de cultura, abarcam diferentes interpretações e estão, frequentemente, pre-
sentes na produção bibliográica sobre essa temática.

104
PERSPECTIVA MULTICULTURAL EM EDUCAÇÃO

O interculturalismo ainda é pouco trabalhado na literatura


brasileira, mas autores como Candau (2002), Fleuri (2000) e Canen
(1999) assumem essa perspectiva em seus trabalhos.
Candau (2002, p. 99) situa-se como favorável ao modelo
de educação intercultural e propõe a recontextualização das práti-
cas docentes diante dos desaios levantados pela educação inter-
cultural: “trata-se de um processo permanente, sempre inacabado,
marcado por uma intenção de promover uma relação democrática
entre os grupos involucrados e não unicamente uma coexistência
pacíica num mesmo território. Esta seria a condição fundamental
para qualquer processo ser qualiicado de intercultural”.
Para esta autora, a promoção de processos educativos
que contemplem esta perspectiva deve apresentar alguns critérios
básicos: 1) a educação deve ser vista como uma prática social; 2) a
educação intercultural não deve ser reduzida a determinadas áreas
curriculares, atividades ou situações, nem restringir-se a determina-
dos grupos sociais; 3) esta perspectiva deve questionar o etnocen-
trismo, bem como os conteúdos selecionados; 4) deve articular ao
nível das políticas educacionais e das práticas pedagógicas o recon-
hecimento e a valorização da diversidade cultural com relação às
diferentes identidades; 5) deve afetar não apenas o currículo explí-
cito, mas também o currículo oculto e as relações com os diferentes
agentes do processo educativo (Candau, 2000, p. 58).
Fleuri (2000, p. 75) é outro autor que assume esta mesma
perspectiva. Para ele,

a relação intercultural indica uma situação em que


pessoas de culturas diferentes interagem, ou uma
atividade que requer tal interação. A ênfase na rela-
ção intencional entre sujeitos de diferentes culturas
constitui o traço característico da relação intercul-
tural. O que pressupõe opções e ações deliberadas,
particularmente no campo da educação.

Assim, podemos perceber que o reconhecimento da diver-


sidade cultural admite diferentes enfoques e perspectivas (multi/in-
ter/pluricultural). Porém ica evidenciado que, sejam quais forem as

105
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

abordagens, há uma conluência de ideias no sentido de favorecer


processos de airmação de identidades culturais especíicas, de rup-
tura com uma visão essencialista das culturas e das identidades cul-
turais.

Multiculturalismo e questões correlatas

A perspectiva multicultural em educação pretende insti-


tuir “nos sistemas de ensino a ilosoia do pluralismo cultural, ao re-
conhecer e valorizar a importância da diversidade étnica e cultural,
na coniguração de estilos de vida, experiências sociais, identidades
pessoais e oportunidades educacionais acessíveis a pessoas, gru-
pos, nações” (Gonçalves & Silva, 2000, p. 55).
A pluralidade cultural deve, portanto, ser incorporada,
positivamente, nos sistemas de ensino para que as diferentes “voz-
es” e manifestações culturais possam se fazer presentes. Para que
isso ocorra é necessário que haja uma ressigniicação dos currículos
que vêm sendo adotados pelas instituições de ensino.
Além da questão curricular, os estudos sobre multicultur-
alismo vêm estimulando relexões sobre formação docente, políti-
cas educacionais, identidades, etc. Neste item, abordaremos, espe-
ciicamente, ainda que de forma resumida, algumas relexões sobre
multiculturalismo e currículo.
Para Moreira & Silva (2000, p. 8), o currículo é considerado
um artefato social e cultural:

O currículo não é um elemento inocente e neutro de


transmissão desinteressada do conhecimento social.
O currículo está implicado nas relações de poder, o
currículo transmite visões sociais particulares e inter-
essadas, o currículo produz identidades individuais e
sociais particulares. O currículo não é um elemento
transcendente e atemporal – ele tem uma história,
vinculada a formas especíicas e contingentes de or-
ganização da sociedade e da educação.

106
PERSPECTIVA MULTICULTURAL EM EDUCAÇÃO

Desse modo, podemos dizer que o currículo corresponde a


uma seleção da cultura que, “ao enfatizar determinados saberes e ao
omitir outros, expressa uma posição político-ideológica que opera
a favor dos interesses de determinados grupos. Essa seleção, por-
tanto, não é nem pode ser vista como neutra ou cientíica” (Canen &
Moreira, 2001, p. 7). Ou seja, inúmeras “vozes” são silenciadas desde
a concepção dos currículos até sua execução nas salas de aula.
Na perspectiva multicultural, a interseção multicultural-
ismo-currículo assume especial relevância porque visa, segundo
Canen & Moreira (2001, p. 30), a dois propósitos básicos: 1) promov-
er o respeito pela diversidade, reduzindo preconceitos, estimulan-
do atitudes positivas em relação ao “diferente”, promovendo a ca-
pacidade de assumir outras perspectivas; 2) preparar alunos para o
trabalho coletivo em prol de justiça social, evidenciando as relações
de poder envolvidas na construção da diferença, criando oportuni-
dades de sucesso acadêmico para todos os alunos, incentivando
habilidades e atitudes necessárias ao fortalecimento do poder in-
dividual e grupal.
Para Candau (2002b, p. 12), os professores têm diiculdade
de lidar com a “questão didático-pedagógica na perspectiva multi/
intercultural e de romper uma representação uniforme do aluno/a”.
Nesse sentido, a contribuição da perspectiva multicultural
em educação pode ser adequada e enriquecedora, uma vez que
essa abordagem procura problematizar os mecanismos que refor-
çam as relações de poder que constroem as diferenças, através de
uma prática curricular “multiculturalmente orientada” que contri-
buirá para “ilustrar conceitos e princípios com dados provenientes
de culturas diversiicadas, focalizar as diferenças como processos de
construção, decodiicar teorias e conceitos na perspectiva do outro,
bem como desconstruir mensagens etnocêntricas, racistas e dis-
criminatórias” (Canen & Moreira, 2001, p. 32).
De uma maneira geral, as instituições de ensino não es-
tão acostumadas a lidar com a diversidade cultural, apresentam um
caráter monocultural e reforçam mecanismos de discriminação e
preconceito vigentes na sociedade.

107
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Considerações inais

O objetivo deste trabalho era apresentar algumas re-


lexões sobre as relações entre cultura(s) e educação. A presença de
diferentes “vozes” que expressam diversas culturas nas instituições
de ensino formal, em seus diferentes graus, provoca novas questões
e estimula o aprofundamento na perspectiva multi/intercultural.
Tais perspectivas trouxeram para o campo da educação
uma série de questões sobre os centrismos culturais, a seleção de
conteúdos curriculares que privilegia alguns saberes e omite out-
ros, o respeito às diferenças étnicas e culturais, a valorização da plu-
ralidade de experiências culturais dos chamados grupos marginal-
izados social e culturalmente.
Além disso, essas abordagens questionam os sistemas
educacionais enquanto espaços monoculturais e propõem a real-
ização de profundas mudanças nesses sistemas através do desen-
volvimento de atitudes, propostas curriculares e pedagógicas que
sejam sensíveis à diversidade cultural.
Nessas perspectivas, educadores/as e instituições são
chamados/as a redimensionar suas propostas educativas, ressignii-
car seus currículos e práticas, suas formas de avaliação, de modo
que a sensibilização para a diversidade cultural possa ser incorpo-
rada, positivamente, nos sistemas de ensino para que as diferentes
“vozes” e manifestações culturais se façam presentes.
As instituições de ensino brasileiras estão inseridas em um
contexto plural e trabalham para uma sociedade também plural,
portanto, precisam incorporar essa questão porque formam sujei-
tos que serão chamados a ser agentes sociais e culturais neste con-
texto.
Neste sentido, a educação multicultural “não abarca ap-
enas o trabalho com grupos ou identidades marginalizadas”; deve
contribuir efetivamente “para uma transformação social que abra
espaço para a diversidade. Educação multicultural, portanto, é para
todos” (Canen & Moreira, 2001, p. 34).
O desaio da construção de uma perspectiva educacional
que reconheça e valorize as diferenças e promova uma educação

108
PERSPECTIVA MULTICULTURAL EM EDUCAÇÃO

multicultural icou explicitada ao longo desse trabalho. O tema da


diversidade/pluralidade cultural nas instituições de ensino apresen-
ta para o campo da educação um conjunto de “novas” e instigantes
questões que não podem mais ser desconsideradas pelas escolas
brasileiras. Passar de um multiculturalismo descritivo para enfatizar
um projeto político-pedagógico intercultural deve ser o horizonte a
ser perseguido por todos/as aqueles/as que estão mergulhados/as
no cotidiano escolar.

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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110
QUANDO A LEI
PROPICIA UM ENCONTRO:
NEGROS E ÍNDIOS NA
CONSTRUÇÃO DE NOVOS
PARADIGMAS PARA A
EDUCAÇÃO
Kelly Russo33

Há cinco anos acompanho o desenvolvimento da educa-


ção escolar indígena no Brasil e, ao ser convidada para participar
desta coletânea, lembrei-me de uma frase, dita por uma liderança
carajá, durante um curso de capacitação para professores indíge-
nas. Na aula, conversávamos sobre as ações airmativas, sobre as
posições favoráveis e contrárias às cotas para negros nas universi-
dades públicas e ela, depois de algum tempo em silêncio, comen-
tou pensativa: “a gente tinha que aprender mais com o movimento
negro... Eles estão mais avançados que nós nessas discussões”. Com
esta frase, ela me fez perceber a necessidade de um diálogo inter-
cultural ainda mais amplo do que aquele defendido no Programa
de Educação Escolar Diferenciada, Bilíngue e Intercultural, desen-
volvido para populações indígenas desde 1994, pelo Ministério de
Educação Brasileiro. Essa líderança carajá mostrou que o diálogo in-
tercultural deve ter sua atenção voltada não só para o diálogo entre
grupos minoritários e sociedade nacional, como também ser capaz
de incentivar o intercâmbio de experiências entre os próprios movi-
33 Mestre em Ciências Sociais com orientação em Educação pela Faculdade Latino-Ame-
ricana de Ciências Sociais (Flacso-Argentina), especializada em Direitos Humanos e Diversi-
dade Cultural, Doutoranda em Educação Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. É pesquisadora integrante do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e
Cultura(s), coordenado por Vera Candau no Departamento de Educação da mesma universi-
dade.

111
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

mentos étnico-raciais existentes no país. Talvez a Lei n. 11.645 possa


servir como um bom meio para esse encontro.
Foi a partir dessa perspectiva que este artigo foi escrito.
Pretende contribuir com esse encontro entre professores, movimen-
tos negros e indígenas através de algumas relexões sobre o ensino
fundamental. Inicia retomando os estudos sobre a representação
desses “outros”, negros e indígenas, nos livros didáticos; depois,
apresenta relexões sobre as diferentes concepções sobre infância
e educação que emergem nestes movimentos; e, por im, propõe
algumas considerações sobre o diálogo intercultural e as práti-
cas educativas antirracistas. Em todo o texto procuro desenvolver
aproximações entre questões indígenas e aquelas apresentadas pe-
los movimentos negros, ou seja, entre esses dois universos culturais.
E “universo” aqui foi utilizado propositalmente, visto que não é pos-
sível desconsiderar estas tantas cosmologias existentes sob o termo
“negro” ou “indígena”34. Mas a possibilidade de diálogo entre esses
dois grupos justiica a pretensão deste artigo que, certamente, não
irá dar conta de toda a complexidade existente nesta relação, mas
pode estabelecer alguns indícios para se começar uma boa con-
versa. E, para felicidade de todos nós, educadores brasileiros, esta
conversa está sendo iniciada no espaço escolar.

Os livros didáticos e a representação do outro


na sala de aula

Os livros cheios de iguras de um país grande, com


plantações de cana-de-açúcar, muitas fábricas e toda
gente satisfeita. Com o tempo percebi que quando
você abre um desses livros, você vai aprendendo a
visão de uma classe social, da elite brasileira. (...) Na
verdade eu penso em uma escola que represente a re-
alidade da vida, que fale da situação da comunidade,
que fale que esta terra é nossa, que o branco não

34 No Brasil existem cerca de 210 povos indígenas, mais de cem territórios quilombolas
reconhecidos e quase uma centena de organizações que lutam pelos direitos e ações ligados
aos movimentos negros.

112
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

descobriu, mas invadiu. Tenho 45 anos, e somente


agora que sou professor indígena da minha comuni-
dade é que sei que Cabral não descobriu o Brasil, ele
roubou.

Algemiro da Silva – professor indígena Guarani35

Essa é uma lei que chega atrasada, o que mostra a ex-


istência do preconceito na nossa sociedade. Os livros
didáticos, como os que existem até o momento, são
um exemplo crucial disso: omitem a história negra e
restringem personagens políticos apenas à igura de
Zumbi. (...) Que criança vai querer se identiicar com
uma igura que só apanha?

Manolo Garcia Florentino36

O livro didático ocupa um espaço importante na educação


escolar. Apesar de crianças e jovens terem o acesso a um luxo muito
maior e intenso de informações, ainda é ele uma base importante
para a construção de referencias signiicativos sobre a própria cul-
tura e a de outros povos e países. Como faz referência Telles (1984),
o livro didático constitui-se em uma autoridade, que precisa ser
questionada e ampliada pelo professor. E como essa “autoridade”
tem representado as populações indígenas e afrodescendentes de
nosso país? Existe espaço para que outros modelos de organização
social possam ser considerados não de modo “primitivo” ou “atrasa-
do”, mas como alternativas possíveis e valiosas para o desenvolvi-
mento? Permite a discussão da própria ideia de desenvolvimento
como um conceito contextualizado e construído socialmente? E,
colocando ênfase na preocupação central desse artigo, as críticas
levantadas por pesquisadores/indigenistas possuem aproximação
com aquelas discutidas pelos movimentos negros?
Em relação aos povos indígenas, que não representam
mais de 700 mil habitantes no país, a maior parte da população
brasileira jamais teve contato pessoal com qualquer índio, nem
35 Disponível no site da organização Pró-índio, UERJ.
36 Citado em Góis (2007).

113
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

visitou uma aldeia indígena. Como chama atenção Freire (2002), a


representação que cada brasileiro tem do índio é prioritariamente
aquela que lhe foi transmitida na sala de aula pelo professor, com
ajuda do livro didático e dos discursos midiáticos que tendem a re-
forçar essa mesma representação. Também em relação aos afrode-
scendentes, Silva (1995, p. 45) analisa como o livro didático irá omitir
o processo histórico-cultural, o cotidiano e as experiências dos seg-
mentos subalternos da sociedade: “Em relação ao segmento negro,
sua quase total ausência nos livros e a sua rara presença de forma
estereotipada concorrem em grande parte para a fragmentação da
sua identidade e autoestima.”
Dessa forma, a existência de uma lei que inclui o ensino
da História da África e da História dos povos indígenas na educa-
ção formal terá como primeiro impacto intensiicar a revisão já exis-
tente (pela pressão dos movimentos sociais), sobre como o “outro”
é construído e representado no espaço escolar. Sobre isso, Grupi-
oni (1996) e Lopes da Silva (1987), a partir dos estudos realizados
por historiadores, pedagogos e antropólogos sobre como os livros
didáticos brasileiros representam os povos indígenas, apontam al-
gumas considerações que me parecem fundamentais para procurar
pontos de encontro entre as formas de representação que o livro
didático faz de populações indígenas, como também dos negros.
A primeira consideração é que, apesar de os livros didáti-
cos, geralmente, valorizarem uma nacionalidade que surge da di-
versidade, as contribuições dos índios e dos negros são quase sem-
pre enfocadas no passado. O indígena será “selvagem e bravo” para
ressaltar a coragem dos primeiros exploradores, preguiçoso e indo-
lente no contexto da escravidão, e corajoso e inocente para a con-
strução romantizada de uma identidade nacional mestiça. No caso
da população negra, Nascimento (1980) chama atenção de como
sua história se inicia através do tráico de africanos escravizados. Em
ambos os casos, são negados os saberes que esses homens e mul-
heres construíram sobre distintas áreas do conhecimento: culturas,
religiões, línguas, artes, ciências e tecnologias. São vistos como
vítimas de um sistema escravista, no caso dos negros, mas não são
oferecidos elementos para que sejam vistos também como sujeitos
históricos. São representados no passado sem muitos elementos
que possam aportar para a vida contemporânea do país.

114
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

A segunda crítica faz referência exatamente à forma como


esse passado é elaborado. Ele faz parte de uma história estanque,
marcada por eventos organizados a partir de uma historiograia
europeia. São privilegiados os feitos e as conquistas das potências
europeias, silenciadas as transformações e processos de desenvolvi-
mento dos povos africanos e daqueles que aqui viviam. É descon-
siderada a história milenar dos dois continentes, tornando irrele-
vantes todo o processo neles vivenciados, fazendo-os dependentes
e subalternos aos ritmos e dinâmicas ditadas pelas sociedades
europeias. Na questão indígena brasileira essa visão é ainda mais
constrangedora quando percebemos que essa subalternidade não
existe apenas em relação ao modelo europeu de desenvolvimento,
mas também em relação àqueles povos do continente considera-
dos mais “desenvolvidos”, e são citados como exemplos os povos
incas, maias e astecas.
Nessa comparação, não se questiona o próprio conceito
de desenvolvimento. Cada tecnologia, cada forma organizativa em
cada contexto irá vivenciar processos diferentes de desenvolvim-
ento. E cada povo também deine e ressigniica a ideia de desen-
volvimento, portanto, a única explicação para que alguns povos
americanos sejam vistos como mais evoluídos é fato de estarem
organizados em um modelo mais próximo ao que se reconhece
como Estado, por dominarem grandes dimensões territoriais ou por
terem desenvolvido tecnologias para a medição do tempo similares
àquelas desenvolvidas por povos europeus. Em outras palavras, o
critério para que uma sociedade seja mais ou menos desenvolvida
é seu grau de proximidade com a organização europeia. A preocu-
pação básica é o que ocorre na Europa, ignorando a diversidade de
histórias de desenvolvimento existentes no continente americano.
Tanto as culturas ameríndias quanto as africanas serão marcadas
pela ausência: falta da escrita, falta de governo, falta de tecnologia
para lidar com metais, falta de agricultura, entre outras “faltas” que
justiicariam suas participações simpliicadas e pontuais em nossa
história.
A terceira crítica terá relação direta a essa simpliicação
dos livros didáticos. Povos negros e indígenas são muitas vezes
apresentados por iconograias da época, fatos etnográicos descon-
textualizados, criando um quadro de exotismo, de detalhes incom-

115
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

preensíveis, de uma diferença impossível de ser compreendida. Nas


palavras de Grupioni (1996, p. 425):

os livros didáticos produzem a mágica de fazer aparec-


er e desaparecer os índios na história do Brasil. O que
parece mais grave neste procedimento é que, ao jogar
os índios no passado, os livros didáticos não preparam
os alunos para entenderem a presença dos índios no
presente e no futuro. E isto acontece, muito embora,
as crianças sejam cotidianamente bombardeadas pe-
los meios de comunicação com informações sobre os
índios hoje. Deste modo, elas não são preparadas para
enfrentar uma sociedade pluriétnica, onde os índios,
parte de nosso presente e também de nosso futuro,
enfrentam problemas que são vivenciados por outras
parcelas da sociedade brasileira.

Apesar de o autor fazer referência exclusiva à questão


indígena, não é difícil notar como essa mesma “mágica” acontece
quando os livros didáticos organizam a participação negra em
nossa sociedade a partir do tráico negreiro. Também torna difícil
entender a participação dos negros como sujeitos históricos no pre-
sente e futuro de nosso país, visto que sua representação é sempre
fragmentada e pontual. Mas é importante ressaltar uma diferença
fundamental: por um lado, no caso das populações negras, o re-
conhecimento dos territórios quilombolas e suas lutas são pouco
ou quase nunca visibilizados pela grande mídia, por outro, quando
esse tema está em pauta, não parecem sofrer tão fortemente essa
relação cruel que identiica o reconhecimento de territórios indí-
genas como parte de uma conspiração pela internacionalização da
Floresta Amazônica ou como ações que ameaçam à soberania na-
cional37. Ao trazer essa discussão para outros âmbitos, no caso dos
índios, sua representação está fortemente vinculada a uma diversi-
37 Ramos (1997) mostra como o uso de discursos nacionalistas que defendem o país de
complôs orquestrados por ONGs ou missões religiosas estrangeiras (que visariam à interna-
cionalização da Amazônia por meio dos povos indígenas), costumam ser reativados sempre
no contexto de reconhecimento ou ampliação de territórios indígenas. Os recentes debates
sobre a homologação do Território Indígena Raposa Serra do Sol, território já demarcado e
reconhecido, mas que sofre muitas resistências para que se inalize esse processo, mostra
– uma vez mais – como a temática da terra é sempre tensa e conlituosa no Brasil.

116
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

dade que precisa ser preservada, desde que estejam distantes38; no


caso dos negros, sua imagem é cotidianamente conectada com a
pobreza, a marginalidade e a violência das grandes cidades. Pouco
se fala sobre a participação desses grupos na construção da riqueza
nacional, sua atuação cientíica ou sobre resistências e lutas con-
temporâneas.
A quarta consideração que deve ser feita é como os livros
didáticos não consideram as diferenças existentes dentro desses
mesmos grupos, tornando-os índios ou negros “genéricos”. Como
todas as culturas são organizadas sob o paradigma evolucionista,
numa escala temporal que coloca a sociedade europeia no ápice
do desenvolvimento humano, as contribuições de tantas e varia-
das populações indígenas e negras passam a ser reduzidas em uma
imagem genérica desses mesmos grupos. O “índio genérico” é car-
acterizado por fazer canoas, falar tupi-guarani, viver em ocas, andar
nu e comer mandioca, apesar de nem todos realizarem essas ativi-
dades e de toda a diversidade entre suas concepções do mundo
ou da riqueza de seus sistemas de reciprocidade e das diferentes
rotinas comunitárias. Habitam regiões urbanas (incluindo grandes
capitais como São Paulo e Brasília), zonas rurais e lorestais e cada
um desses povos possuem estruturas, histórias e vivências diferen-
tes entre si. Mas se falamos de indígenas, a imagem predominante
é a dos grupos que habitam o Território Indígena Xingu.
No caso das populações afrodescendentes, Regina Pinto
(1987, p. 32), realizou uma signiicativa revisão bibliográica, acerca
das imagens veiculadas sobre o negro e airma que:

Praticamente todos os autores que se dedicaram ao


estudo do negro chamam a atenção para as imagens
e as representações negativas vigentes na nossa so-
38 Em Mato Grosso, estado que possui mais de 20 diferentes povos indígenas, nenhuma
universidade pública aceitou a proposta de cotas destinadas às populações indígenas. Foi
admitida a deinição de cotas para estudantes negros, não para indígenas. Na literatura, di-
ferentes autores já chamaram atenção para um fenômeno recorrente no Brasil: enquanto a
população das grandes capitais – geralmente afastadas dos territórios indígenas – valoriza
a diversidade e defende a defesa da diferença étnica, nas cidades e comunidades vizinhas
aos territórios, a maior parte de seus habitantes (envolvida em atividades econômicas con-
trastantes ao modelo de desenvolvimento existente nas aldeias) é contrária à demarcação
e costuma relacionar termos como: sujos, incapazes, fedidos, preguiçosos, ladrões ou ainda
latifundiários improdutivos.

117
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

ciedade a respeito desse segmento racial. O negro é


desvalorizado, tanto do ponto de vista físico, intelec-
tual, cultural, como moral; a cor e os traços fenotipi-
camente negros são considerados antiestéticos; a
cultura e os costumes africanos são reputados como
primitivos; há uma depreciação da sua inteligência e
uma descrença na sua capacidade; coloca-se em dúv-
ida sua probidade moral e ética.

Cabe ressaltar que essas análises foram feitas antes da


inclusão da temática “Pluralidade Cultural” como tema transversal
do Ensino Fundamental (1997), antes da aprovação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais Indígenas em 2002, ou da criação da Secre-
taria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad)
em 2004, atos do Governo Federal que parecem sinalizar outra com-
preensão da sociedade nacional e sua diversidade. Mas, apesar das
políticas públicas, os textos didáticos parecem absorver com bas-
tante lentidão essa mudança. Gobbi (2006, p. 107), após analisar a
representação da temática indígena nas coleções de livros didáticos
de História recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didáti-
co nos anos de 1999, 2002 e 2005, para a 5ª e 8ª séries do Ensino
Fundamental, veriicou:

a permanência de algumas temáticas apontadas por


pesquisas anteriores – como a reprodução de es-
tereótipos, a utilização de pressupostos evolucioni-
stas, a presença de noções etnocêntricas, a menção
aos povos indígenas como pertencentes ao pas-
sado, a desconsideração dos saberes indígenas, as
inúmeras imprecisões conceituais, a confusão na gra-
ia dos nomes indígenas, entre outros aspectos. Con-
tudo, também foram encontrados alguns avanços no
tratamento dado à temática indígena e à diversidade
cultural em alguns dos referidos livros, como a veicu-
lação de informações mais atualizadas, mais próximas
da realidade, ou o uso do conceito de cultura. (...) São
permanências e avanços que, quase sempre, apare-
cem lado a lado, ou seja: num mesmo livro, ou numa
mesma coleção didática, podemos encontrar con-

118
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

cepções completamente equivocadas em relação aos


povos indígenas e às suas culturas, seguidas daquelas
informações mais atualizadas, mais próximas da reali-
dade ou que, de algum modo, os valorizem.

Em relação à representação dos negros, Menegassi e Sou-


za (2005) conirmam o mesmo caminho de continuidades e peque-
nos avanços, ao analisarem os livros didáticos de Língua Portugue-
sa, de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental, recomendados pelo
MEC. Esses autores airmam a presença de formas de preconceito
e estereótipos presentes de forma implícita, até mesmo explícita,
no livro didático de Português e sugerem como professores podem
lidar com o tema, isto é,

o educador deve tentar demonstrar ao aluno que o


livro didático não é dono da verdade absoluta, e fazer
com que ele esteja sempre alerta, sendo crítico, ao se
deparar com situações discriminatórias. Na realidade,
cabe ao professor mostrar ao aluno o preconceito e a
discriminação marcados pelos autores dos livros. Esta
postura, além de despertar o senso crítico no aluno,
desenvolve uma série de estratégias de leitura eica-
zes na formação do aluno leitor.

Crochik (1997, p. 145) também discute a atuação do profes-


sor em relação ao uso dos livros didáticos: “a questão do preconceito
deve ser diretamente discutida, procurando o professor esclarecer a
falsidade de seu conteúdo”, isto é, o educador deve demonstrar ao
aluno que o livro didático também é uma construção, uma deter-
minada visão sobre os fatos, e assim, fazer com que os alunos ques-
tionem “verdades” e sejam críticos ao se depararem com situações
discriminatórias.
A visibilidade estereotipada ou fragmentada alimenta um
discurso de país mestiço que invisibiliza as condições e lutas desses
homens e mulheres, negros e índios, na sociedade brasileira con-
temporânea. Claro que o livro didático não seria capaz de dar conta
de todas as diferenças, mas por que não considerá-las desde outras
perspectivas? Por que, a partir dessas diferentes visões, não discutir

119
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

os modelos de desenvolvimento e organizações existentes em lugar


de utilizá-los para consolidar apenas uma visão única – econômica,
política, religiosa e estética – como hegemônica? Nessa direção pas-
samos, a partir das experiências e vivências de alguns dos grupos
negros e indígenas de diferentes regiões do país, ao questionamen-
to de uma concepção também hegemônica em nossa sociedade, a
de infância.

Diferentes infâncias, diferentes educações

Eu não vou começar a gritar com os alunos, ou exigir


pra fazerem leitura, ou icarem quietos, eu não posso,
eu quero continuar respeitando a minha cultura (...). É
muito difícil concentrar eles, mas também não podemos
falar com eles, eles mesmos têm que ‘sacar’. Isso já vem
da tradição da gente. Não podemos dar uma idéia e eles
serem obrigados a fazer (...) Eles é que têm que pensar
no futuro deles.

Com esta frase o professor indígena Paulo Supretaprã Xa-


vante respondeu sobre o que faz quando seus alunos não realizam
os exercícios propostos em sala de aula. Sua resposta, aliada às ob-
servações de campo39, evidencia uma diferença fundamental entre
a concepção que a sua etnia possui sobre a criança e a visão que pre-
domina em nossa sociedade. Na organização social xavante, a cri-
ança não será, ela já é alguém consciente e responsável por seus atos,
por isso será necessária “muita conversa” e não coação, para que os
alunos acompanhem os ensinamentos de seu professor. Também,
nesta cultura, é o aprendiz quem deve iniciar a conversa – demonst-
rando interesse através de perguntas – não quem ensina.
Ao vivenciar a educação na sociedade xavante, povo ha-
39 Os dados empíricos sobre a comunidade xavante foram recolhidos durante trabalho de
campo realizado em 2004 e 2005, na aldeia Etêñeritipa, Território Rio das Mortes, MT. Durante
a pesquisa foram entrevistados cerca de 40% dos habitantes, incluindo professores indígenas
e não indígenas que vivem na comunidade, além de alunos e seus familiares. Também fo-
ram realizadas observações cotidianas da rotina comunitária e escolar. O material de campo
também inclui questionários sociolinguísticos que visam identiicar os contextos de usos da
língua indígena e do português tanto na escola, como na aldeia.

120
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

bitante da região Centro-oeste brasileira, não é possível pensar


em uma abordagem em que a socialização ocorra como uma ação
adulta sobre crianças em formação. Nesta organização social, todos
– crianças e adultos – estão em formação contínua, pois precisam
passar coletivamente por diferentes etapas da vida social. Esta so-
ciedade é constituída por uma complexa segmentação, onde indi-
víduos pertencem a uma determinada “categoria de idade”, refer-
ente ao seu desenvolvimento biológico e social, e a uma “classe
de idade” especíica, relativa ao status que adquire e sua posição
naquela sociedade. Sendo assim, a educação aqui signiica alcançar
e ultrapassar diferentes categorias e classes de idade vividas sempre
coletivamente.
A educação e a sociabilidade das crianças xavantes ocor-
rem de modo gradual e contínuo em diversos espaços comunitári-
os. As crianças acompanham os mais velhos nos afazeres domésti-
cos, sem a existência de uma clara diferenciação entre o que seriam
atividades “infantis” ou “de adultos”. Através de atividades práticas,
da oralidade, da observação e repetição, da relação com seus famili-
ares. “Brincando de fazer coisas de verdade”40, meninos e meninas
aprendem a identiicar os limites e códigos que regem a sua socie-
dade. Aprendem e reinventam a “tradição”, um valor que atravessa
todos os processos educativos dessa sociedade. Em outras palavras,
a educação xavante é desenvolvida de modo espontâneo assim
como a vida na comunidade, como explica Nunes (2001, p. 72):

(...) essa falta de ordem, ou melhor, uma ordem vivida


de outro modo, imersa num espírito lúdico, espon-
tânea e sem compromisso, que pode estar no cerne
de todo um processo educacional. Ainal, o que pode
parecer caótico e sem regras obedece a esquemas
rigorosos de construção e transmissão de saberes, e
é deste modo que as crianças os incorporam e deles
vão tomando consciência.

Essa observação sobre a visão de infância e de educação


na realidade xavante é consoante ao que Cohn (2001) encontrou
entre os xikrin, região amazônica, e com o que Ferreira (2001) e
40 Expressão utilizada por Nunes, 2001: 73.

121
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Freire (2008) constataram entre os guaranis, na costa brasileira, en-


tre outros trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros. Para
pensar a criança em sociedades indígenas é preciso então, ter como
premissa a autonomia do universo infantil e as diferentes concep-
ções de infância existentes em cada organização social.
Nascimento (1980) deine quilombo como um “movimento
amplo e permanente” que tem origem na vivência de povos africa-
nos que se recusavam à submissão e exploração do sistema colonial
escravista, mas que não pode ser visto apenas no passado: está pre-
sente nos dias de hoje, em diversos terreiros ou espaços organiza-
dos por afrodescendentes como parte desse movimento pela def-
esa de uma organização social, econômica e política própria, capaz
de articular a ancestralidade africana através dos tempos. Sendo as-
sim, se nas sociedades indígenas podemos perceber outras signii-
cações para a ideia de infância, talvez o conceito de ancestralidade
defendido pelos movimentos negros, também possam oferecer
algumas pistas sobre uma concepção diversa de infância. Guedes
(2005, p. 77), com ajuda de Mãe Palmira de Iansã, pode contribuir
com esta relexão ao relatar um pouco da relação entre crianças e
adultos no terreiro de candomblé:

Os pés ainda pequenos vão gingando, as crianças es-


tão nas rodas de santo do barracão, nas obrigações
no terreiro e nas festas. Mãos ainda bem pequenas
batem os atabaques na batida certinha para convocar
os orixás. Quando conheci Ricardo Nery, o menininho
gorducho de apenas quatro anos me impressionou
pela força com que batia o atabaque. Ao fazer isso,
às vezes Ricardo segura uma das varas (atori) com a
boca e toca o couro do tambor com as costas da mão
direita. Mãe Palmira me disse que ninguém ensinou
Ricardo a bater assim. “É um gesto ancestral”, me rev-
elou a Mãe-de-santo, ainda em 1992. (...) As crianças
estão no terreiro e desempenham funções como os
adultos. Muitas são iniciadas e algumas, depois de um
longo aprendizado, estão preparadas para receberem
os orixás.

122
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

A ancestralidade é um luxo contínuo, vivido e revivido


cotidianamente, também através da ação das crianças, agentes im-
portantes em todo o processo. Na organização religiosa/social do
candomblé, as crianças desempenham papéis importantes, sem
grande hierarquização em relação aos adultos:

As crianças estão misturadas aos adultos nos terreiros.


Devem respeito aos mais velhos, mas são igualmente
respeitadas por eles. No terreiro, é o tempo que a pes-
soa tem de iniciado que conta. A antiguidade iniciáti-
ca é superior à idade real. Por exemplo: se um adulto
chega ao terreiro para começar a aprender a religião,
uma criança já iniciada pode perfeitamente ser re-
sponsabilizada para lhe passar os ensinamentos. No
terreiro de Mãe Palmira uma criança toma a bênção
a alguém mais velho da mesma forma que um adulto
toma a bênção à criança. As expressões são sempre
“Abença, meu pai” ou “Abença, minha mãe” (Guedes,
2005, p. 86).

De forma similar ao que acontece nas sociedades indíge-


nas, entre populações afrodescentendes a educação também se dá
em diferentes espaços. Beniste (2001, p. 38):

A sociedade inteira é sua escola; moralidade não é so-


mente ensinada, é vivida. Coragem não é ensinada, é
demonstrada. Persistência e devoção para obrigação
são também exibidas. O número de certiicados con-
quistados mede o sucesso de uma pessoa, mas não
o seu valor. São marcas de condecoração, mas não
revelam uma pessoa como Omolúwàbí41.

A “tradição” e a “ancestralidade” são eixos fundamentais


para se entender a educação que se dá de forma ampliada, em dife-
41 Em outro fragmento de Beniste, apresentado por Guedes (2005, p. 88), encontramos
a deinição de Omolúwàbí: “um bom caráter em todos os sentidos da vida, e que inclui o
respeito aos mais velhos, lealdade para os pais e a tradição local, honestidade, assistência
aos necessitados e um desejo irresistível ao trabalho. É um processo de vida longa, onde a
sociedade inteira é a escola”.

123
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

rentes espaços sociais nesses contextos especíicos. Mas tê-los como


eixo educativo não signiica congelar um passado essencializado e
folclorizado. Tanto povos indígenas como movimentos afrodescen-
dentes vivenciam em seu cotidiano a tensão entre o tradicional e o
novo. E essa tensão se dá, muitas vezes, a partir da ação das crianças
e adolescentes que criam novas dinâmicas e atuam como verda-
deiros agentes neste processo.
Jovens da comunidade remanescente de quilombo de
São José da Serra, na cidade de Valença, no Rio de Janeiro, por ex-
emplo, assumem a tradição e a modernidade como uma relação
espontânea e natural, ao defenderem sua identidade através do
jongo, como remanescentes de quilombos, mas também serem fãs
de funk ou de “qualquer outro ritmo, porque o jovem tem que con-
hecer outras coisas”42. De modo semelhante, no Território Xavante
de Rio das Mortes, Mato Grosso, são os adolescentes os mais dire-
tos quando questionados sobre seus interesses na escola: querem
aprender a escrever língua materna e a usar o computador, assim
como ter aulas de artesanato tradicional (fazer esteiras e lechas) e
aprender o português e o inglês, porque se é importante “preservar
a nossa raiz”, igualmente importante é “poder se comunicar com os
brancos”43.
Mesmo na tradição ocidental a ideia de “infância universal”
vem sofrendo modiicações. O estudo histórico de Philippe Ariès
(1988 [1962]) A criança e a vida familiar no Antigo Regime analisa a
infância como uma construção social histórica do ocidente. No Bra-
sil, diferentes educadores e pesquisadores, baseados nos estudos
da Sociologia e Antropologia da Infância, têm procurado ressaltar
a criança como agente, sujeito em um processo de elaboração cul-
tural. Revisão esta que leva a discussão também para o campo da
metodologia de pesquisa: alguns pesquisadores defendem que os
estudos não devem ser sobre ou para as crianças, mas realizados
com elas44. Mas, apesar dessa discussão existir no campo teórico, ai-
nda é difícil perceber suas dinâmicas na base das atuais discussões
existentes na educação infantil brasileira.
42 O Observatório Jovem lançou, em julho de 2006, o documentário “Sementes da Memó-
ria”, disponível http://www.uf.br acessado em maio de 2008.
43 Opiniões de adolescentes xavantes entrevistados durante o trabalho de campo.
44 Corsaro (2005).

124
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

As demandas pela extensão da Educação Infantil (inclu-


indo creche e pré-escolar), por exemplo, podem ser vistas com res-
salva para grupos que vivam longe dos grandes centros urbanos,
como em regiões rurais ou territórios reconhecidos pelo recorte ét-
nico-racial. Nestes contextos, a institucionalização da criança feita
mais prematuramente prejudica, se não ameaça, etapas valiosas de
socialização familiar e comunitária referentes à primeira infância.
Como explica Dona Léa, professora, mãe e liderança indígena da
Aldeia Serro Marangatu, Mato Grosso do Sul:

A criança é a esperança para o grupo, a educação é feita


pela oralidade, prática, exemplos, de conselhos... Não é
limitada, é ininita! Cada fase a criança vai estar rece-
bendo uma educação diferente... A educação da escola
é diferente da educação da família. Idade para ir para a
escola: 7/8 anos - antes dessa idade a criança depende,
precisa da educação da família para aprender a obe-
decer mitos, preparar a família oralmente e prática....
Criança signiica herdeiro: levando o conhecimento de
geração para geração. Uma criança feliz é aquela que
tem carinho, afeto, exemplos. A criança é muito obser-
vadora (citado em Nascimento, 2006, p. 1).

Como nos lembra Cohn (2005, p. 22), “o que é ser criança,


ou quando acaba a infância, pode ser pensado de maneira muito di-
versa em diferentes contextos socioculturais”, e um pesquisador da
educação deve ser capaz de apreender essa diferença. Se a institu-
cionalização da criança pode representar maior apoio e segurança
em determinados contextos, em outros, a entrada prematura na
vida escolar pode ferir uma das bases da organização comunitária,
assim como a autonomia de escolha do próprio grupo45.
James e Prout (citados em Lopes da Silva, 2001, p. 18), com
base em diversos estudos sobre o lugar da criança em distintas so-
ciedades, delimitaram seis princípios que poderiam estar na base
de um novo paradigma para o estudo da infância: 1) a infância deve
45 Nascimento (2006) encontra uma situação de resistência e questionamento dos líderes
indígenas da Aldeia Serro Marangatu, município da Antonio João/MS, sobre a inclusão tem-
prana das crianças na escola municipal. Uma resistência semelhante foi percebida durante o
trabalho de campo realizado junto à comunidade xavante do TI Rio das Mortes.

125
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

ser entendida como construção social, não é uma característica


natural nem universal dos grupos humanos; 2) a infância deve ser
considerada como variável de análise social, tal como gênero, classe
ou etnicidade; 3) as relações sociais e a cultura das crianças são
merecedoras de estudos em si mesmas, sem desconsiderar estas
em seu contexto cultural; 4) as crianças devem ser vistas como ati-
vas na construção e determinação da própria vida social; 5) a etno-
graia é um método particularmente útil ao estudo da infância; 6) a
proclamação do novo paradigma da sociologia da infância também
deve incluir e responder ao processo de reconstrução da infância
nas sociedades.
No movimento negro quilombola e nos movimentos in-
dígenas, os elementos identitários de um povo – línguas, famílias,
práticas religiosas, ritualísticas, formas organizativas e coletivas de
desenvolvimento – devem ser retomados na reinvenção de políti-
cas e estratégias de luta. A ideia de infância não vai estar fora desse
contexto, portanto, a educação escolar também precisa aprender a
lidar com essa tensão. Para isso, um saber não deve anular outros,
que serão bem-vindos desde que trabalhados de forma não hierar-
quizada.

O saber local e a educação escolar


No candomblé tudo é cíclico, começa e recomeça. Por
isso dançamos em roda. O mais velho vai puxando a
roda, mas lá na frente vai o abíyàn, aquele que nem
é feito ainda, mas sabe que, um dia, encontrará seu
lugar na roda. Ainda assim, nem ao que tem mais
tempo de iniciado é dado o direito de se gabar. A hu-
mildade é fundamental.
Mãe Palmira de Iansã46

A escola caminha ao lado de nossa cultura


para que possamos ter conhecimento da nossa realidade
e airmar o conhecimento de outros, exteriores.
Carta de professores xavantes4.
46 Citado em Guedes (2005).
47 Publicada no Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. 2002.

126
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

A organização escolar vive hoje muitas tensões entre no-


vos e velhos paradigmas. E essa tensão atravessa diferentes espa-
ços e práticas, sobretudo o currículo escolar. Outras lógicas sobre
a deinição de saberes podem contribuir, e muito, para uma rein-
venção da educação formal. O sociólogo venezuelano Daniel Mato
(2005) discute como as práticas socioeducativas de produção de
conhecimento, desenvolvidas em espaços acadêmicos, são apre-
sentadas como as únicas legítimas em lugar de se reconhecer e
valorizar a diversidade. O autor lembra que em diferentes contextos
sociais e institucionais são estabelecidos diversos tipos de pergun-
tas e métodos para respondê-las, ou seja, são produzidos diferentes
tipos de saberes, teorias e práticas socioeducativas.
Daniel Mato questiona a distinção entre um saber “cientíi-
co” – que teria validez universal – e outro “popular” ou “étnico” – que
teria validez local, regional. Todo saber está marcado pelo contexto
institucional e social em que é produzido. No caso particular da
América Latina, a ruptura das relações coloniais não acabaram por
completo com as formas de subordinação e/ou exclusão dos po-
vos indígenas ou dos negros. As relações hierárquicas entre tipos
de saber, um pretensamente universal e outro deinido como local,
são parte dessa dinâmica. Essa omissão sobre o caráter contextu-
almente relativo dos conhecimentos e sua divisão hierárquica não
atinge somente as populações indígenas ou comunidades negras
dos países latino-americanos, mas todas as sociedades. Nas pala-
vras do autor:

La negación consciente o incoscientemente de la


condición pluri e intercultural propia de todas las so-
ciedades latinoamericanas constituye un signiicativo
lastre histórico, por lo que implica en términos de ig-
norancia acerca de nosotros mismos. (...) El lastre que
supone esta negación no sólo afecta las posibilidades
de construir sociedades más justas e incluyentes, sino
también que cada una de estas sociedades pueda
utilizar todos los saberes y talentos a su alcance para
construir su presente y futuro, en lugar de privarse de
aprovechar cada uno de ellos (Mato, 2005, p. 124).

Secretaria de Educação Fundamental (MEC: Brasília).

127
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Outros autores latino-americanos vão além nesta dis-


cussão sobre saber: não é apenas uma questão de valorização so-
cial sobre a produção de conhecimentos, mas o reconhecimento de
que as relações epistemológicas também participam de uma geo-
política do poder. Só ao reconhecer as relações de poder existentes
também no campo da produção das ciências, dizem eles, será pos-
sível desvelar a postura do homem branco, ocidental e europeu, que
costuma autorrepresentar seu conhecimento como o único capaz
de adquirir universalidade e de descartar os conhecimentos não
ocidentais por serem “particularistas”, incapazes de adquirir univer-
salidade. Esse conjunto de autores é reconhecido como decoloniais,
pois procuram discutir a produção do saber a partir de uma ciência
“outra”, que esteja na fronteira destas relações coloniais48.
Reconhecer os saberes, as práticas, as tecnologias, a ciên-
cia desenvolvida por complexas organizações sociais existentes nos
continentes americano e africano pode contribuir para uma amplia-
ção e redeinição do que deve ser considerado como “saber escolar”
ou conteúdos disciplinares. A Lei n. 11.645 é um passo importante
para que seja possível a construção de uma nova relação entre so-
ciedade maior, movimentos indígenas e movimentos negros, quan-
do estes são vistos não apenas como vítimas, mas sujeitos sócio-
históricos, produtores de história, cultura e ciências.
Como esses movimentos de revisão dos conteúdos esco-
lares têm impactado a educação escolar? Em relação às escolas lo-
calizadas em territórios indígenas, centenas de novas experiências
têm acontecido no campo da educação pública. Cada um dos cerca
de 200 povos indígenas existentes em território nacional procura,
agora, apropriar-se da escola municipal ou estadual instalada em
seus territórios, revisando conteúdos e práticas de ensino e apre-
ndizagem49. De forma semelhante, comunidades quilombolas pro-
curam transformar a organização escolar para incluir nesse espaço
valores e saberes compartilhados historicamente.
Pascarelli Filho e Umbelino (2008) analisam como algumas
comunidades remanescentes de quilombos realizaram mudanças
48 Alguns dos principais autores deste movimento são: Walter Mignolo, Enrique Dussel,
Santiago Castro-Gomez e Catherine Walsh.
49 Existem vários estudos sobre as experiências de professores indígenas em escolas públi-
cas instaladas em seus territórios. Um dos mais recentes e completos é a coletânea organiza-
da por Lopes da Silva e Ferreira, citada na bibliograia deste artigo.

128
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

bem-sucedidas na prática pedagógica, com o objetivo de com-


preender a importância das questões relacionadas à diversidade ét-
nico-racial e lidar positivamente com elas. Os autores destacam al-
guns temas fundamentais: preservar os recursos naturais existentes
na comunidade, valorizar os costumes da cultura afro-brasileira e a
preocupação com a importância do resgate histórico da cultura lo-
cal, ressigniicar a dinâmica do poder e as relações sociais de domi-
nação. E dessa forma:

aboliu-se da prática pedagógica quilombola


a desarticulação entre o saber local e a cultura
escolar; o espontaneísmo pseudodidático mani-
festo pela falta de planejamento entre os profes-
sores; a manutenção ideológica de que o negro
somente contribuiu para a formação da socie-
dade brasileira como escravo. Buscando-se el-
ementos simbólicos e culturais que inluem no
processo identitário da comunidade, obtém-se
um currículo que atende à especiicidade étnica
e cultural dos quilombolas.
Trabalhar insistentemente a autoestima e a con-
scientização da cidadania da criança negra com
a criança não negra, a possibilidade de conhec-
er uma cultura diferente da apresentada que
de maneira alguma está num patamar abaixo
ou acima, é conscientizar de que estamos num
universo de culturas diferentes que devem ser
respeitadas nas suas individualidades (Pascarelli
Filho e Umbelino, 2008).

Movimentos indígenas e negros procuram estabelecer


um novo canal de comunicação curricular com o mundo, para ap-
ropriarem-se e construírem novos saberes. No campo da educa-
ção, diferentes autores têm discutido esta tensão produzida pela
inclusão da perspectiva intercultural no cotidiano escolar. Candau
(2002, 2003, 2004 e 2006) contribui com uma vasta produção sobre
o tema, principalmente a partir do campo da didática e nas rela-
ções professor-aluno; Fleuri (2003, 1998) apresenta estudos tanto

129
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

na educação escolar quanto na relação de movimentos sociais e


educação formal. Paradigmas “outros” surgem no campo educativo
e a interculturalidade deve ser o princípio fundamental para que
novas relações, muito mais inclusivas e democráticas, estejam pre-
sentes no espaço escolar, nos cursos de formação de professores e
na pesquisa acadêmica.

O diálogo intercultural e as práticas


antirracistas

Sou negro/a, atabaque corre em minhas veias, a minha cor.


É a força do Axé e do Candomblé.
A minha vida, foi sempre lutar pela liberdade,
Sonhada pelos meus ancestrais, que vieram da Mãe preta África.
Lutaram junto com o valente Zumbi, foi ele quem nos libertou...
Afoxé Alaim Oyó50

Somos iguais e diferentes.


Iguais no corpo, na inteligência e no respeito.
Diferentes na língua, no jeito, no costume.
Somos todos iguais e diferentes: índios, negros e brancos.
Professores indígenas do Acre51.

Um dos anciãos do povo xavante, quando comentava a


relação conlituosa com os não índios respondeu: “ninguém respei-
ta o que não conhece”. Portanto, as jovens lideranças indígenas do
Território Rio das Mortes deveriam não só aprender sobre a “cultura
dos brancos”, mas também difundir sua própria cultura no espaço
exterior à aldeia. Com esse objetivo, vários projetos foram desen-
volvidos em grandes capitais do país, assim como em pequenas ci-
dades vizinhas a esse território, incluindo exposições fotográicas,
publicações de livros, lançamento de CD e atividades de intercâm-
bio cultural pensadas especiicamente para as escolas públicas.

50 Citado em Marques, Rosa. Consciência negra: uma questão de identidade. Disponível no


site do Fórum Brasileiro de Economia Solidária e Relações Raciais.
51 Publicado no Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. 2002. Secretaria
de Educação Fundamental (MEC: Brasília).

130
QUANDO A LEI PROPICIA UM ENCONTRO

Com apoio de organizações não governamentais, produz-


iram um livro escrito em português, repleto de fotograias e peque-
nos textos sobre a cultura xavante. Fizeram também parcerias com
a Secretaria de Educação de diferentes municípios para visitar as
escolas apresentando esse material e discutir com as crianças suas
representações sobre os povos indígenas. Segundo Caime Waiassé,
um dos professores xavantes que participaram desses encontros,
“era engraçado ver as perguntas dos alunos sobre se a gente comia
gente, se nas aldeias as pessoas andam peladas ou queriam saber
por que a gente não gosta de trabalhar...”. Mas essas crianças, ilhas
de fazendeiros ou madeireiros, crescem em um ambiente de forte
conlito de interesses com os povos indígenas... Nesse contexto de
tamanho antagonismo, pequenas visitas às escolas podem mudar
essa relação? “Não sei se vai mudar, mas ajuda... Porque sem esses
projetos as crianças só terão uma visão, agora elas conhecem os dois
lados e podem escolher melhor”, respondeu sabiamente Caime.
Esse foi o caminho escolhido pelo povo xavante. De forma
similar, outros povos indígenas têm se organizado em associações
autônomas para buscarem recursos para o desenvolvimento de
projetos interculturais dentro de suas aldeias, mas também fora de-
las. Sabem que ainda não é o suiciente. Cobram do poder público
maior empenho para solucionar conlitos e políticas que ajudem a
eliminar o preconceito. Em relação aos movimentos negros, suas
ações têm conseguido um maior impacto na opinião pública ao
questionar o mito de democracia racial e propor políticas de ação
airmativa.
Os movimentos negros têm se caracterizado por suas lu-
tas contra o racismo em suas diferentes manifestações. Através de
suas ações, incentivam uma revisão sobre o ideário que defende a
existência de um entrecruzamento pacíico de diferentes raças, com
ênfase na igura do mestiço. Esse ideário elimina o conlito, perpetu-
ando estereótipos e preconceitos. Ao levar esse debate ao campo
educativo, esses grupos têm conseguido incluir garantias para o
ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, valorização
da diversidade cultural e das identidades culturais negras. O inter-
culturalismo defendido por esses grupos, acima de tudo, desvela o
racismo e as práticas discriminatórias que perpassam o cotidiano
das nossas sociedades e instituições educativas sem serem recon-
hecidas.

131
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

O trabalho desses dois grupos, movimentos negros e indí-


genas, têm conseguido ampliar discussões e politizar debates para
que a democracia racial seja uma realidade na educação e na so-
ciedade brasileira. Mais do que reconhecer a diversidade, é preciso
discutir as diferenças que foram apagadas na construção de nossa
sociedade. Para isso, o diálogo intercultural – que inclui a relação
de poder inerente nessa construção, que procura se relacionar com
os diferentes saberes de forma não hierarquizada e propõe uma
revisão epistemológica sobre a universalidade desses mesmos sa-
beres – sem dúvida se apresenta como o melhor caminho para a
existência de uma prática não racista na educação brasileira. Recon-
hecer a existência e o direito da diferença em um espaço que his-
toricamente impôs a igualdade pode ser um primeiro e importante
passo.

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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134
A QUESTÃO RACIAL
NO ENSINO DE CIÊNCIAS
Eliezer Batista de Oliveira52
Hilda da Silva Gomes53

Na nossa formação como biólogos aprendemos a ter um


olhar mais crítico sobre a ciência e sobre os seus atores. Nós também
pudemos conhecer as várias implicações que essa ciência exerce,
inclusive, no modo pelo qual as pessoas veem o mundo e podem
ter suas decisões orientadas por ela.
Quando começamos a trabalhar no Programa de Educação
sobre o Negro na Sociedade Brasileira, da Faculdade de Educação
da Universidade Federal Fluminense (Penesb/FEUFF), em agosto de
2003, começamos a nos inteirar sobre a necessidade dos estudos
sobre a questão racial no Brasil.
Nesse mesmo ano ocorreu III Seminário Nacional Relações
Raciais e Educação, realizado pelo Penesb/FEUFF, quando pudemos
ter uma visão ampla sobre a questão do negro brasileiro.
A participação do Dr. Sérgio Danilo Junho Pena (UFMG)
nesse evento também foi muito importante, pois, através dos seus
estudos sobre a genética da população brasileira, foi demonstrado
que somos um povo miscigenado por essência, embora exista na
nossa sociedade uma divisão dos segmentos sociais demarcados,
em parte, pela cor da pele. Ele também mostrou através de estudos
comparativos do material genético dos vários grupos humanos que
52 Mestre em Biologia. Pesquisador do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade
Brasileira - PENESB/FEUFF
53 Mestre em Educação. Professora de Ciências do Instituto de Educação Prof. Ismael Couti-
nho/IEPIC. Professora dos Cursos de Pedagogia e Ciências Biológicas das Faculdades Integra-
das Maria Thereza e Universidade Estácio de Sá.

135
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

as diferenças são mínimas entre eles e, por isso, não justiicam usar-
se o termo “raça” para a espécie humana em biologia.
O Brasil, mesmo tendo abolido a escravidão do negro há
mais de cem anos, vem amargando no seio da sua sociedade o
preconceito racial. As marcas deixadas na nossa população tanto
pelo racialismo do século XIX e início do século XX, quanto pela es-
cravidão, foram profundas e têm suas repercussões no mundo so-
cial contemporâneo.
A despeito de as diferenças fenotípicas serem irrelevantes
no âmbito das ciências biológicas, na interação humana são atribuí-
dos signiicados sociais a tais diferenças, sendo a brancura consid-
erada algo bom, independentemente das qualidades pessoais dos
brancos, enquanto o fenótipo negro é socialmente um estigma
de inferioridade, independente das qualidades pessoais do negro.
Nesse sentido, ganham espaço, nas ciências sociais e humanas, as
relexões sobre o que ocorre na interação entre negros e brancos e
suas consequências para os indivíduos e para a sociedade. Também
por essa razão sugerimos que a educação provoque o cruzamento
das duas áreas de conhecimento, ciências naturais por meio da bio-
logia, que comprova a inconsistência cientíica do racismo, e ciên-
cias humanas e sociais, que revelam a sua existência e reletem so-
bre os seus efeitos no sujeito negro e na sociedade de modo geral.
O propósito do cruzamento sugerido é despertar nos usuários da
educação um olhar de estranhamento diante do racismo e provocar
a sua desnaturalização.
Nesta pesquisa, nos propomos a averiguar as possibili-
dades de inserir os estudos sobre a população negra no ensino de
ciências na escola fundamental, oferecendo subsídios para uma for-
mação mais humana dos estudantes.
A existência ou não de raças humanas ainda gera algumas
polêmicas dentro do meio cientíico. Dentro da sociobiologia, um
grupo de renomados cientistas ainda sustentam que haja uma as-
sociação direta entre baixo QI, pobreza, criminalidade e grupos ra-
ciais não brancos.
Na medicina, o Food and Drug Administration (FDA) dos
Estados Unidos, em 2003 orientou os médicos a tomarem nota das
informações raciais na coleta dos dados clínicos dos seus pacientes.

136
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

O que motivou essa decisão foram estudos estatísticos que demon-


stram a maior incidência de algumas doenças em determinados
grupos étnicos. Além disso, existem artigos médicos que sustentam
a tese de que certas drogas seriam mais eicazes em pessoas com
ancestrais africanos.
O racismo foi uma doutrina fomentada para sustentar uma
superioridade biológica, cultural e/ou moral de determinada popu-
lação, povo ou grupo social considerado como raça.
Entre os homens existe uma grande diversidade. Esses
diferem em habilidades físicas, mentais, na cor da pele, altura, além
de apresentarem um dimorismo sexual marcante. Esse fato sempre
foi algo que levou as pessoas a se perguntarem sobre o motivo des-
sas diferenças.
Com o surgimento das Ciências Biológicas e, em especial,
da Genética, abriu-se uma perspectiva para se explicar esta grande
diversidade de características entre as pessoas: a herança genética
dos nossos pais. Esta herança estaria contida nos cromossomos,
que conteriam todas as informações do indivíduo, como se fosse
um resumo da pessoa. Com essa crença, uma forma de reducionis-
mo biológico, muitas questões puderam ser elucidadas. A medicina,
por exemplo, usa costumeiramente essa prática reducionista para
airmar a predisposição de uma pessoa para doenças que são her-
dadas geneticamente.
Contudo, o poder e o fascínio exercidos pelo reducionis-
mo54 biológico, mesmo antes do surgimento da genética, levaram
muitos cientistas consagrados do passado a alguns erros. O mais
lamentável desses erros foi endossar as diferenças de classes e re-
forçar uma suposta hierarquia entre as raças.
Na hierarquia entre as raças, o homem branco sempre era
colocado como a raça superior. A justiicativa dos cientistas daquela
época para pôr o homem branco (grupo caucásico) acima dos ama-
relos (grupo mongólico) e dos negros (grupo negróide) estava as-
sociada ao tamanho da caixa craniana. Para muitos, a inteligência
54 Ato ou prática de analisar ou descrever um fenômeno, desenvolver a solução de um pro-
blema, etc., supondo ou procurando mostrar que certos elementos ou conceitos complexos
não devem ser compreendidos ou explicados em si mesmos, mas referidos a, ou substituídos
por outros, situados em um nível de explicação ou descrição considerado mais básico (Novo
Dicionário Aurélio).

137
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

do homem estava diretamente associada à capacidade volumétrica


craniana. Desse modo, quanto maior o volume cerebral, maior seria
a inteligência da pessoa.
Desde meados até o im do século XIX as medições de
cabeças (craniometria) popularizadas por Broca eram tidas como
a explicação cientíica para a superioridade do homem branco.
Os trabalhos cientíicos publicados, então, demonstravam que o
homem branco possuía uma capacidade craniana maior do que
aquela dos amarelos e dos negros. Contudo, vários problemas met-
odológicos foram revelados nesses estudos. O processo de escolha
das amostras, a metodologia diferenciada para cada grupo racial, a
omissão de alguns dados ou mesmo a sua forma de apresentação,
direcionavam os resultados, ou seja, as supostas provas cientíicas
eram obtidas pela predisposição do pesquisador em justiicar o
status quo. Esse processo poderia ocorrer, em alguns casos, mesmo
sem que o pesquisador se desse conta disso, contudo, o resultado
inal era conirmar uma discriminação que já existia.
Mesmo cientistas como Charles Darwin (1809-1882), um
revolucionário para a sua época e criador da Teoria Evolutiva55, não
icou imune a esse tipo de erro. Por exemplo: ao classiicar alguns
grupos de humanos negros da África (hotentote), Darwin os colo-
cou como espécies intermediárias entre o homem branco e os sí-
mios. Juntamente com esses grupos humanos, na mesma condição
intermediária, estavam os chimpanzés.
Essa ideia de superioridade do homem branco era tão
aceita no pensamento do século XIX que até mesmo abolicionistas
convictos pregavam a libertação dos escravos não por considera-
rem os negros iguais aos brancos, mas por pena de um ser menos
favorecido intelectualmente.
Hoje se sabe que não existe uma correlação direta entre o
tamanho do cérebro e a inteligência, embora, para o senso comum,
essa correlação equivocada ainda persista como verdadeira. Além
disso, a inteligência é algo muito complexo, não pode ser determi-
nada pelos genes e está ligada ao desenvolvimento do indivíduo e
suas construções pessoais nas interações sociais.
55 Teoria baseada na ideia de que as espécies animais e vegetais sofrem modiicações gra-
duais ao longo das gerações, que levam ao surgimento de raças e espécies novas (Encyclopa-
edia Britannica Brasil).

138
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Entende-se desses exemplos que a ciência mantém um


diálogo constante com a sociedade que a cerca, podendo não só,
como geralmente se pensa, inluenciar o senso comum dominante,
mas, também, por ele ser inluenciada.
O genoma humano tem aproximadamente 35 mil genes,
dois quais apenas 4 a 6 deles são responsáveis pela cor da pele. Isso
mostra a diferença insigniicante de uma característica considerada
tão marcante pela sociedade.
Além da pele humana existem outras diferenças genéticas
que são desprezadas como marcadores de diferentes grupos hu-
manos como, por exemplo, o lóbulo da orelha (preso ou solto), o
dobrar da língua e a sensibilidade ao PTC. Outras diferenças passam
despercebidas pelos nossos sentidos, mas que podem fazer uma
diferença crucial, como é o caso do tipo sanguíneo. O fator ABO do
sangue pode aproximar indivíduos de biótipos diferentes, mas que
possuem o mesmo tipo de sangue, permitindo, assim, que haja uma
transfusão de sangue entre eles.
“Raça” é um termo usado para distinguir um grupo de
animais que possuem características fenotípicas comuns. Mas para
que esse termo seja utilizado é preciso se levar em consideração o
luxo gênico entre as suas populações. O luxo gênico se dá pela
dispersão dos indivíduos e sua capacidade de se reproduzir e de-
ixar descendentes férteis nas novas localidades. Uma espécie com
pouco luxo gênico entre suas populações teria nessas populações
raças distintas. Ao contrário, uma espécie com muito luxo gênico
entre suas populações não teria raças distintas. Logo, biologica-
mente falando, o termo “raça” não pode ser aplicado para a espécie
humana, uma vez que essa apresenta grande dispersão e grande
luxo gênico entre as suas populações. Mais que isto, todos os seres
humanos são biologicamente deinidos como a raça humana, taxo-
nomicamente denominada Homo sapiens sapiens. Geneticamente,
as diferenças entre dois grupos humanos são menores do que as
diferenças existentes entre indivíduos dentro de um mesmo grupo.
Assim, a ideia de diferentes raças em seres humanos é completa-
mente errada do ponto de vista cientíico e biológico.
As características que apresentamos são o resultado da
nossa herança genética, mais a inluência de fatores ambientais que
ajam reprimindo ou acionando nossos genes.

139
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Uma dessas características é a cor da pele, que é determi-


nada pela melanina.
A pele é o maior órgão do corpo humano. Ela tem uma
área de cobertura entre 1,5 a 2m2, sendo responsável por um sexto
do nosso peso corporal. As funções da nossa pele são: servir como
uma barreira ao meio externo; servir como um canal de comunica-
ção com o meio externo; proteger-nos contra perda de água; utilizar
pigmentos celulares especiais para nos proteger da radiação ultra-
violeta do sol; produzir vitamina D na camada epidérmica, quando
exposta aos raios solares; ajudar na regulação da temperatura do
nosso corpo através das glândulas sudoríparas; ajudar na regulação
do metabolismo. Além disso, possui qualidades de beleza estética.
A estrutura da nossa pele está dividida em três estratos:
epiderme, derme e hipoderme. Os queratinócitos são o grupo celu-
lar mais abundante da epiderme. Essas células produzem proteína
de queratina que proporcionam alguma rigidez no exterior das ca-
madas da pele. Os cabelos são queratinócitos mortos. Os melanóci-
tos são células pouco abundantes na epiderme e que produzem o
pigmento melanina. Esse pigmento produzido pelos melanócitos é
transferido para as células do cabelo ou da epiderme. Os grânulos
de melanina são injetados para dentro (ou ingeridos) dos querat-
inócitos. Os grânulos de melanina se acumulam ao redor do núcleo
de cada queratinócito (Figuras 1 e 2). A melanina absorve os nocivos
raios ultravioleta antes que eles possam chegar ao núcleo, proteg-
endo o DNA do núcleo dos danos causados por esse fator. Quando
a melanina é produzida e distribuída convenientemente na pele, as
células em divisão são protegidas de mutações que podem, por sua
vez, serem causadas pelos nocivos raios ultravioleta.
Figura 1. A estrutura da epiderme.

140
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Figura 2. A distribuição da melanina para as células da epiderme.

As diferenças na cor da pele são devidas, em sua maio-


ria, às diferenças nos tipos e quantidade de pigmentos. As peles
escurecidas (bronzeadas) pela exposição ao sol são causadas pelo
movimento da melanina existente, e pelo aumento da produção de
melanina pelo melanócito.
Dentre os caracteres que apresentam variação na espécie
humana, o que mais chama a atenção é a cor da pele. Muitas hipó-
teses foram levantadas para explicar o porquê dessa diferença. A
explicação mais provável está relacionada à radiação solar.
A latitude é um fator que está intimamente relacionado à
biogeograia dos tipos humanos. A radiação ultravioleta (UV) vindo
da luz solar é capaz de causar efeitos deletérios ao homem. Através
de uma observação supericial podemos notar que os nativos das
regiões trópicas apresentam uma cor de pele mais escura. Ao con-
trário disso, as pessoas nativas de regiões temperadas têm um tom
de pele mais claro. Esse fato poderia ser explicado pela seleção, em
áreas mais ensolaradas, das pessoas de pele mais escura, uma vez
que, nessas regiões, a cor escura conferiria uma vantagem adapta-
tiva em relação às pessoas de cútis mais clara, que seriam mais afe-
tadas pelo câncer de pele pela menor proteção aos raios UV. Outros
autores acrescentam que a pele branca é mais resistente ao con-
gelamento do que a pele negra, o que seria uma vantagem deste
fenótipo em regiões mais frias. Um outro aspecto importante seria
a formação da vitamina D3, que se dá na pele pela ação dos raios
UV. Em lugares onde há pouca incidência de luz solar, as pessoas

141
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

de pele mais clara teriam uma vantagem adaptativa, pois a pouca


quantidade de melanina facilitaria a entrada e absorção desses raios
pelas células da pele.
Contudo, essa relação direta entre latitude, vitamina D3 e
cor da pele não é tão perfeita assim. Como poderíamos explicar os
esquimós que possuem uma tez mais escura e habitam regiões com
pouca iluminação anual? A resposta para isso estaria na obtenção
da vitamina D3 por outros meios. Uma outra forma de se adquirir
vitaminas é através da alimentação. Os esquimós possuem uma
dieta rica em peixes, que são uma fonte natural de vitamina D3. Essa
resposta nos leva a crer na grande importância das vitaminas em
detrimento da suposta fragilidade da pele mais escura ao congela-
mento.
Além da vitamina D3, o folato é outra vitamina que pode
explicar essa distribuição espacial da espécie humana em função
da cor da pele. O folato é sensível à radiação e quando exposto à luz
é destruído. Desse modo, as pessoas de pele escura têm uma van-
tagem adaptativa em relação às pessoas de pele clara em regiões
ensolaradas, pois o folato estaria protegido pela maior pigmenta-
ção da pele. Hoje, as necessidades de folato e vitamina D3 do nosso
corpo podem ser supridas por uma alimentação balanceada.
Quando falamos de seleção natural devemos ter sempre
em mente que esse processo é contínuo e leva milhares de anos.
Acredita-se que o gênero Homo, do qual fazemos parte, tenha sur-
gido há dois milhões de anos na África. No decorrer da evolução,
esse gênero foi adquirindo uma pele com cada vez menos pelos e
mais glândulas sudoríparas. A ausência de pelos trouxe o agravante
da exposição direta da pele ao sol. A pele dos primeiros hominídeos
teria uma coloração como a dos chimpanzés, que são os nossos par-
entes vivos mais próximos e que apresentam o corpo coberto de
pelos escuros e uma pele clara. Desse modo, o aparecimento da cor
de pele mais escura seria uma vantagem adaptativa para os primei-
ros Homo sp. que habitavam as regiões ensolaradas da África.
O conhecimento e domínio de todos esses saberes são de
fundamental importância para o professor falar sobre o racismo no
ensino de ciências.

142
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Em uma pesquisa feita pelo Penesb/FEUFF, foi distribuído


um questionário para mais de 100 alunos dos cursos de formação
de professores de duas universidades. As perguntas abordavam o
tema racismo no ensino de ciências.
A maior parte desses alunos possuíam curso normal (61%),
trabalham ou já trabalharam em sala de aula (59%), lecionavam no
ensino fundamental ou infantil (96%), se declararam como sendo
da cor branca (51%).
Quando foram perguntados sobre o por que existem cores
de pele diferentes, a maioria respondeu que se devia à miscigena-
ção (40%). Apenas 8,8% citaram em suas repostas a melanina, 12%
o DNA e 9,6% a evolução. Contudo, nenhuma resposta foi comple-
tamente correta. Outros 13,6% relacionaram raça à cor da pele (Ta-
bela 1).

Tabela 1. Pergunta: Por que existem cores de pele humana diferentes?

No de pessoas que
Respostas %
responderam
Miscigenação 50 40
DNA 15 12
Melanina 11 8,8
Evolução 12 9,6
Não respondeu 20 16
Raças 17 13,6
Total 125 100

Sobre como surgiram essas diferenças da cor da pele (Ta-


bela 2), 56% falaram que se deviam à miscigenação, 12,8% disseram
que tinham a ver com a evolução e 6,4% responderam que elas
sempre existiram. Nenhuma resposta associou corretamente a teo-
ria evolutiva da espécie humana com a cor da pele.

143
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Tabela 2. Pergunta: Como surgiram essas diferenças?

No de pessoas que
Respostas %
responderam
Evolução 16 12,8
Miscigenação 70 56
Por preconceito 13 10,4
Sempre existiu 8 6,4
Não respondeu 18 14,4
Total 125 100

Quando foi perguntado sobre o que essas diferenças de


cor representam em nossa sociedade (Tabela 3), mais de 75% cita-
ram a palavra “preconceito” ou coisas similares.

Tabela 3. Pergunta: O que essas diferenças representam


em nossa sociedade?

No de pessoas que
Respostas %
responderam
Preconceito 96 75,6
Diversidade 22 17,3
Sem resposta 3 2,4
Outros 6 4,7
Total 127 100

A última pergunta (Tabela 4) foi objetiva e interrogava


se eles sabiam o que era raça e como a deiniam. Mais de 30% re-
sponderam que são sabiam deinir raça. Dos que responderam essa
pergunta, ninguém disse que raça é uma subespécie, que é o con-
ceito biológico desse termo. As repostas foram diversas e confusas,
citando desde cor da pele, origem, à semelhanças físicas, etc.

144
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Tabela 4. Pergunta: O que é raça?

No de pessoas que
Respostas %
responderam
Não respondeu 9 9,4
Não há raça humana 16 16,7
Cor da pele 18 18,8
Origem 33 34,4
Características 10 10,4
fenotípicas comuns
Outros 10 10,4
Total 96 100

Com isso, podemos dizer que ainda há uma grande neces-


sidade de se difundirem os saberes sobre a questão racial entre os
professores. E, mesmo havendo por parte deles o conhecimento de
alguns aspectos biológicos (DNA, proteína e melanina) que estão
diretamente associados a esse tema, eles não fazem uma associa-
ção imediata entre eles e as diferenças físicas humanas.
Segundo o Dr. John Willinsky, “o assessoramento da ciên-
cia na organização das relações sociais por gênero e raça precisa ser
trazido para o currículo das ciências e para a preparação dos profes-
sores de ciências. Precisa se tornar uma expressão da preocupação
atual sobre a literatura cientíica e sobre os novos programas educa-
cionais que relacionam ciência, tecnologia e sociedade”.
O propósito desta pesquisa encontra respaldo na atual
Lei de Diretrizes e Bases, artigo 26-A, que determina a inclusão dos
estudos sobre a população afro-brasileira e africana nos currículos
escolares.
O currículo para a formação de professores do ensino
fundamental hoje não tem como um dos seus temas a questão ra-
cial no ensino de ciências biológicas. Por ser um estudo que vem
ganhando espaço de discussão dentro do meio acadêmico, muitas
dúvidas têm surgido sobre o tema.

145
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Por isso, a questão racial em biologia exige do proissional


em educação uma formação atualizada e consistente, para que ele
possa abordar esse assunto em sala de aula com clareza.
Segundo o Novo Dicionário Aurélio (2002), currículo “corre-
sponde às matérias constantes de um curso”. Ampliando esse con-
ceito, é importante entender que existem diferentes visões para a
construção e encaminhamento de um currículo.
Dentro da história das teorias educacionais encontramos
as vertentes conservadora e crítica. Na vertente conservadora, é
possível identiicar um currículo tecnicísta (Ralph Tyler), em que a
lógica da eiciência dos recursos de métodos e ensino se impõem
em detrimento das relações entre sociedade e educação. No Brasil
essa ideologia se fez presente na implantação da Lei n. 5.692/71,
que, numa reforma educacional, cria o ensino de 1o e 2o graus (an-
tigo primário, ginásio e cientíico), valorizando o ensino proissional.
O currículo era entendido como ciência natural, em que a cultura,
experiências, vivências e conhecimentos do aluno são ignoradas.
Dessa forma, o trabalho docente não se desenvolve percebendo
diferenças culturais, diversidades sociais ou a própria realidade.
Na vertente crítica aparecem teorias de reprodução social
(Louis Althusser) e cultural (Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passe-
ron). Estas teorias entendem que existe uma relação íntima entre
sociedade e educação em que a escola reproduz as relações sociais
e o modo de produção capitalista.
Mais recentemente, outros autores, como Michael Apple e
Henry Giroux, defendem uma ideia de superação, em que a escola
passa a ser vista como um espaço legítimo no qual se estabelecem
múltiplas relações possibilitando a construção de um currículo fun-
damentado numa ciência crítica.
Nessa visão o currículo é visto como “política cultural”
e entendido como mola mestra para a conscientização de alunos
e alunas no conhecimento e exercício de seus direitos e deveres
como cidadãos. O trabalho docente então deve estar apoiado não
só nas matérias constantes do curso, mas também na exposição e
discussão de questões éticas, políticas e sociais.

146
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Entendemos que, para dar visibilidade a essa proposta ed-


ucativa, é fundamental a participação de professores e professoras
na escolha, seleção e organização dos assuntos que podem integrar
um planejamento curricular.
Sabemos que existe um currículo manifesto que está pre-
sente nos planos de ensino, curso e aula, mas visceralmente articu-
lado está o currículo oculto que representa um “corpus ideológico”
que acaba fazendo parte do senso comum. Nesse nível ainda po-
dem circular ideias que reforçam comportamentos e atitudes que
implícita ou explicitamente podem interferir, afetar, inluenciar e/ou
prejudicar o rendimento escolar dos discentes. Essas ideias podem
remeter a preconceitos, intolerâncias e discriminações enraizados
e que estão ligados às relações de classe, gênero, raça, religião e
cultura.
Vivemos em um país com grande diversidade racial e
podemos observar que existem muitas lacunas nos conteúdos es-
colares apontando para a ausência de referências históricas, cult-
urais, geográicas, linguísticas e cientíicas que deem embasamento
e explicações que possam favorecer não só a construção do conhe-
cimento, mas também a elaboração de conceitos mais complexos e
amplos, contribuindo para a formação e reforço da autoestima de
nossos jovens.
Atualmente presenciamos um debate sobre multicultural-
ismo que procura tecer uma abordagem crítica criando condições
para o estabelecimento de um diálogo sobre respeito às diferenças,
voltando sua análise para a educação, em especial, para a forma-
ção de professores, além da pluralidade cultural (PCNs, 2000), em
que se discute o papel de diferentes povos no contexto cultural e
educacional. Como a escola e o corpo docente podem se organi-
zar e estruturar para fomentar esta discussão e alinhavar estratégias
educativas?
Segundo Silva (2001), no que se refere aos currículos esco-
lares, chamou-se a atenção para a falta de conteúdos ligados à cul-
tura afro-brasileira que estejam apontando para a importância des-
sa população na construção da identidade brasileira, não apenas no
registro folclórico ou de datas comemorativas, mas principalmente
buscando uma revolução de mentalidades para a compreensão

147
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

do respeito às diferenças. Como transformar ou incluir nos conteú-


dos de ensino as informações que atendam a essa demanda? Com
certeza investindo-se na formação do professor de forma a torná-
lo competente, subsidiando suas ações para tratar destas questões
em sala de aula.
Podemos, por exemplo, avaliar um trecho retirado de um
livro de ciências de 2a série (Fanizzi & Gil, 2002, p. 146):

Os seres humanos são todos iguais. O que muda são


os órgãos do sistema genital e a aparência. O corpo
dos seres humanos pode ter órgãos diferentes, há
pessoas do sexo masculino e do sexo feminino. A
aparência também pode mudar, há pessoas baixas,
altas, de pele clara, de pele escura, magras, gordas,
louras, ruivas, morenas...

Somos todos iguais nesse sentido? Todos temos direito à


vida, liberdade, educação, segundo a nossa Constituição, isto deve-
ria nos tornar iguais, mas em nossa sociedade estratiicada existem
desigualdades que nos abrem portas diferentes. Biologicamente
somos iguais? Temos um código genético que nos aponta diferen-
ças marcantes e que se de um lado nos separa e afasta, ao mesmo
tempo nos aproxima e une quando a genética molecular airma que
raças humanas não existem do ponto de vista biológico, concluin-
do que nossas diferenças expressas em nosso genótipo e vistas em
nosso fenótipo são o resultado da dispersão geográica do homem
moderno (Pena, 2004).
É fundamental construir um olhar mais crítico para os con-
teúdos de ciências apresentados, veiculados e desenvolvidos nos
livros didáticos e propor uma reformulação curricular que apresen-
te estratégias pedagógicas que desaiem os estereótipos que se en-
contram associados à população negra e mestiça avançando para
a construção de um currículo que relita uma grande mudança de
mentalidades.
Nessa perspectiva, o saber cientíico aliado ao fazer ped-
agógico deve valorizar a fomentação de uma problematização das
práticas sociais para a sensibilização e ampliação de horizontes fr-

148
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

ente à realidade, apostando em uma proposta que redeina prio-


ridades e utilize a contribuição de todos os povos no desenvolvi-
mento curricular respeitando e valorizando as diferenças étnicas e
culturais.

Referências bibliográicas

BAMSHAD, Michael J.; OLSON, Steve E. Ambigüidades que limitam uma


deinição de raça. Scientiic American Brasil, São Paulo, n. 20, p. 74-
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______. Documentos de identidade. Uma introdução às teorias do currí-
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149
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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p. 77-118.

150
ETNOMATEMÁTICA:
UM NOVO OLHAR
PARA SALA DE AULA .
56

Danielle Bastos Lopes5


Flávia Barbeito Moreno 58
Luiz Fernandes de Oliveira59

[...] quando a rosa desabrocha, as abelhas vêm es-


pontaneamente sugar o mel. Deixemos que a rosa de
nosso coração, de nossa alma e caráter desabroche
completamente na sociedade brasileira, a partir de
um testemunho de nossa capacidade, autogestão,
diálogo e ética, para que essa sociedade desconstrua,
rapidamente, o discurso e prática atuais que causam
a exclusão dos povos colonizados. Os resultados e o
respeito aparecerão (Eliane Potiguara).

Introdução

Há séculos os povos produziam saberes e estabeleciam tr-


ocas desses conhecimentos a im de expandir seus horizontes cult-
urais. Porém foi no século XV, com as grandes navegações, que esses
diversos conhecimentos entraram em contato fecundo. Os conhe-
cimentos dos povos orientais e ocidentais se chocaram, provendo a
ambas as culturas, novos signiicados e tecnologias.
56 Texto apresentado e publicado nos anais do V Seminário de Institutos, Colégios e Escolas
de Aplicação das Universidades Brasileiras. Cultura, história, sujeitos e singularidades. Reali-
zado na UERJ de 16 a 20 de novembro de 2007.
57 Graduanda em Pedagogia pela UERJ.
58 Graduada em Letras/Inglês pela UERJ. Diretora Adjunta da Escola Municipal Humberto
Campos – RJ e Professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental do CAp.–UERJ.
59 Doutorando em Educação Brasileira pela PUC – Rio, Professor Assistente da UERJ e Pro-
fessor de Sociologia da Faetec.

151
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

No entanto, esse contato não se estabeleceu de forma


harmônica, o movimento das cruzadas, que tinha como missão “a
libertação da Terra Santa”, partia do pressuposto que era necessário
catequizar os povos não cristãos, instituindo a religião e a cultura
ocidental. Do movimento das Cruzadas adveio o período de colo-
nização, no qual as grandes potências europeias dominaram as “no-
vas terras”, escravizando, catequizando ou dizimando os habitantes
que ali preexistiam.
A construção da identidade nacional brasileira também
seguiu a imposição violenta da cultura eurocêntrica, dizimando
populações indígenas e trazendo povos negros africanos como es-
cravos para o trabalho forçado. Negros e índios eram vistos como
não humanos, sem alma e suas culturas e saberes foram desquali-
icadas.
O primeiro ato para legitimar a discriminação de um
grupo de pessoas é desumanizá-lo. Por um lado, os africanos es-
cravizados foram reduzidos a uma espécie de inumano universal,
por outro, o indígena, tratado como um inocente animal selvagem,
um “mamífero” da loresta preguiçoso. Estas denominações racistas
e preconceituosas têm sua origem no processo de colonização do
Brasil e se perpetuam atualmente.
A instituição escolar, como um instrumento de produção
de conhecimentos, é uma das principais responsáveis por manter
este ideário racista em nossa sociedade. No entanto, esse “precon-
ceito” se apresenta nos currículos de forma velada. A escola contribui
para a perpetuação do mito da “democracia racial”60, ou seja, onde
as três etnias – branca, negra e índia – conviveriam de forma har-
mônica e respeitosa. O currículo escolar não apresenta os saberes
dos povos colonizados. Estes, quando expostos, são apresentados
de forma supericial e folclórica, dando pouca importância para o
papel destas sociedades na moderna sociedade brasileira.
Segundo Foucault (1999), a modernidade produz saberes
a im de tornar administráveis os objetos sobre os quais fala. O cur-
rículo está diretamente ligado a relações de poder, que estão pre-
60 Referimo-nos à democracia racial como mito, pois essa falsa ideologia esconde o racismo
existente na sociedade brasileira, camulando o preconceito no Brasil que desvaloriza o índio
e o negro em sua formação indentitária.

152
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

sentes nas variações do conceito de verdade e realidade, visto que


estas são deinidas segundo um jogo de correlação de forças, regi-
do por aqueles que têm o poder de narrar o outro, estabelecendo,
assim, o que tem ou não estatuto de realidade. Por isso, o currículo
pode signiicar um cruel espaço de dominação, exclusão e subal-
ternidade cultural.
A partir dos anos setenta, a sociologia obteve relevância
na analise curricular, tais estudos tiveram origem nos Estados Uni-
dos e Inglaterra. Os estudos sobre currículo, antes restringidos à or-
ganização do conhecimento escolar, ganham dimensões amplas, o
caráter neutro é renegado e a intencionalidade do currículo e sua
representação social passam ser problematizadas. A analise de sua
dimensão histórica e social é utilizada para compreender as rela-
ções de poder existentes na sociedade. A sociologia da educação
torna-se meio de análise das relações sociais.
O ensino matemático oferecido pelo currículo formal tam-
bém estabelece relações de poder eurocêntricas. A matemática é
essencialmente uma linguagem e, como toda linguagem, é con-
stituída de códigos, sistema de comunicação e de representação
da realidade construído ao longo da história. Portanto, aprender
matemática é aprender a utilizar suas diferentes linguagens. Por
muitos anos, a matemática esteve aprisionada a rigores lógicos e
abstrações descontextualizadas historicamente. O contexto históri-
co do fazer matemático não encontra representatividade nos cur-
rículos escolares. As razões de estudar matemática nunca são es-
clarecidas ao educando.
O estudo da história da matemática contextualiza o ensi-
no matemático no tempo e no espaço. Assim, ela desmistiica a con-
cepção de que a matemática teve sua origem em um estado primi-
tivo que evoluiu uniformemente sob os caminhos da matemática
ocidental.
Nesta perspectiva, a etnomatemática tem como obje-
tivo ampliar a concepção cultural do fazer matemático, daí sua
importância fundamental para a desconstrução da subordinação
histórica dessas diversas culturas.

153
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Conceituando etnomatemática

O estudo étnico da matemática era conceituado a partir


da etnociência61. Surgem, então, diversos termos metafóricos para
essa matemática diferenciada do contexto escolar.
O conceito de etnomatemática foi utilizado pela primeira
vez em 1985 por Ubiratam d`Ambrosio62, em seu livro Ethnomath-
ematics its place in the History of Mathematics.
Etno se refere à etnia. De maneira simplista, podemos diz-
er que representa um grupo de pessoas da mesma cultura, língua
própria, ritos próprios, etc., ou seja, características culturais bem de-
limitadas para que possamos caracterizar como um grupo diferen-
ciado. No Brasil, por exemplo, temos uma quantidade muito grande
de grupos étnicos, se pensarmos somente os índios, há 220 etnias e
188 línguas diferenciadas.
O termo “etnomatemática” ainda é muito discutido. Para
os antropólogos, é parte da etnologia de um grupo; já para os edu-
cadores, é um método educacional da matemática; e para outros
pesquisadores, como d`Ambrosio, é um subconjunto da matemáti-
ca que, por sua vez, é um subconjunto da educação. Neste texto
utilizaremos o conceito de etnomatemática da teoria educacional.
Entendemos a escola como campo discursivo, que pre-
tende compreender toda a signiicação de uma comunidade de
abrangência nacional, mas que nunca compreendeu as contri-
buições cientíicas dos povos não europeus nem a diversidade que
nos une como sociedade brasileira. A etnomatemática traz uma
proposta inovadora de reconhecimento e combate à dominação
cultural. No Brasil, temos como exemplo de culturas desvalorizadas
a dos povos indígenas, de ascendência africana e camponesa (os
trabalhadores rurais sem terra).
D’Ambrosio (1985) diferenciou a etnomatemática das de-
mais como a utilização de métodos matemáticos desenvolvidos por
povos na sua luta pela sobrevivência. A luta pela reforma agrária
61 Conceito utilizado desde o im do século XIV para o estudo da ciência das culturas não
centro-europeias
62 Mestre e doutor em Matemática pela Universidade de São Paulo e professor dos pro-
gramas de Pós-Graduação em Historia da Ciência e em Educação Matemática da PUC de São
Paulo.

154
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

no Brasil, por exemplo, desenvolvida pelo Movimento dos Trabal-


hadores Rurais Sem Terra, compreende formas peculiares de se pro-
duzir matemática.
A matemática camponesa está comprometida com a ne-
cessidade de subsistência da comunidade sem-terra. A importância
que possui um lote de terra para nela viver e produzir, por milhares
de famílias, faz com que a prática da medição da terra tenha signii-
cativa importância.
O Método de Cubação (medida da terra) é feito de forma
diferenciada da matemática tradicional. Este método tem inspirado
diversas pesquisas em etnomatemática, e os resultados têm mostra-
do uma multiplicidade de procedimentos que variam de acordo
com a região dos assentamentos. Nos assentamentos do sul são uti-
lizadas cordas, também chamadas de sogas, como instrumentos de
medição das divisas de terra.
A relação tempo-espaço também é deinida de forma dife-
rente nos assentamentos. Três horas de trator correspondem a um
hectare, logo, os hectares são medidos a partir das horas de trab-
alho de um trator. A ferramenta de trabalho e os custos a ela relacio-
nados são meios matemáticos para solucionar as problemáticas da
produção agrícola.
Existem ainda outras práticas presentes na vida destas co-
munidades, como a cubagem da madeira, entre outras (medição do
tronco da árvore). Todas têm as marcas da cultura camponesa sem-
terra, que se move pelo empenho em subsistir no campo e na luta
por um projeto coletivo de mudança social.
A ideologia que a escola acredita e promove, ou seja, a
igualdade, deve ser questionada. Currículos estipulados através
de um modelo homogeneizador, em que o diferente é chamado
de exótico, não emancipa ou promove autonomia. A formação do
educando ica limitada a “uma versão da história”. Tais currículos
constroem o que Marisa Vorraber Costa chama de “emancipação
dirigida”:

[...] mesmo as narrativas que se intitulam “emanci-


patórias” anunciam a centralidade da escola na tarefa
de produzir subjetividades adequadas ao que tais

155
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

projetos consideram desejável, o que evidencia uma


forma muito peculiar de emancipação. Seria mais ou
menos do que falar em “emancipação dirigida (Costa,
1999, p. 35).

Portanto, o estudo contextualizado e amplo da matemáti-


ca permite uma condição emancipatória e autônoma da existência
humana. Questionar esses dogmas da relação sociedade-cultura,
é meio para aceitação de que todas as culturas se inluenciam, até
mesmo as extintas.

A matemática para os povos indígenas

Quase toda a população brasileira descende de um pro-


cesso de miscigenação no qual o índio está inserido. Entretanto,
grande parte dessa mesma população jamais teve contato pessoal
com qualquer cultura indígena, pelo menos conscientemente. Os
indígenas, também chamados pelos colonizadores de “bugres” ou
“negros da terra”, nunca estiveram no pensamento coletivo brasileiro
na forma de cidadão brasileiro.
O Brasil republicano tem o indígena como à negação en-
carnada do desejo positivista de ordem e progresso; como um per-
sonagem do passado. Até hoje, é folclorizado nas escolas brasileiras
no dia 19 de Abril, quando as crianças são “fantasiadas” em uma es-
pécie de idealização da igura do índio de quinhentos anos atrás,
independente dos seus contextos socioculturais atuais. Tal concep-
ção se generaliza e prevalece até hoje no imaginário popular, isto é,
no senso comum.
No livro Cinco idéias equivocadas sobre o índio, o profes-
sor e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas
da UERJ, Jose Ribamar Bessa Freire (1999), aponta os principais en-
ganos cometidos no cotidiano escolar. Um deles é o fato de a cul-
tura indígena ser apresentada como atrasada. Os currículos formais
desconhecem o reinamento e inovações dos conhecimentos indí-
genas. A imagem do “índio genérico” é nociva, pois esconde vários
povos diferentes e muitas vezes não intercomunicantes entre si.

156
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Outro equívoco se refere ao congelamento destas culturas.


Na “era da inclusão”, da globalização e da ideologia multicultural,
vemos o índio contemporâneo através de uma ótica ultrapassada,
ou seja, ainda se pensa no índio de Pero Vaz de Caminha. “Essa liber-
dade de transitar em outras culturas que gostamos, a escola não
concede aos índios, quando congela suas culturas” (Bessa Freire e
Malheiros, 2000).
É importante ressaltar que a antiguidade grega assemel-
hava-se aos índios com relação à prática de transmissão do conhe-
cimento por meio da oralidade. Entretanto, um fenômeno histórico
separa e diferencia os dois casos: a Grécia é hoje uma nação sober-
ana e berço da ilosoia ocidental. Os gregos e sua cultura sobre-
viveram às adversidades e vivem até hoje para contarem eles mes-
mos as suas histórias. Já as populações indígenas que resistiram ao
processo colonizador e “civilizatório”, muitas tiveram suas culturas e
conhecimentos destruídos.
Florestan Fernandes demonstrou a existência de um dis-
curso pedagógico dos índios sobre os processos de transmissão da
cultura, a natureza dos conhecimentos transmitidos e as funções so-
ciais da educação, comprovando que a ilosoia não era monopólio
dos povos da Europa, e que os índios eram capazes de produzir sa-
beres, só que em outro tipo de prática: o cotidiano.
A prática matemática destes povos também se dá a par-
tir das atividades do dia a dia. Eduardo Sebastiani (2007), pesqui-
sador do núcleo Interdisciplinar de matemática de Campinas, em
um artigo à revista Scientiic American, relatou os conhecimentos
matemáticos dos povos Taripé e Waimiri-Atroari.
Os Taripé ocupam a região norte do Mato Grosso, às mar-
gens do Araguaia. A unidade primeira de numeração é o dois. A
matemática, como já dito anteriormente, é uma linguagem, logo
se adapta ao cotidiano e as necessidades do grupo. Na aldeia, os
trabalhos são feitos coletivamente, logo, a numeração dois relete
o principio fundamental para existência da aldeia. Conhecimentos
físicos como a refração, é conhecida pelos Taripés, ao pescar eles
lançam a lecha no ponto certo para alcançar o peixe, que não é o
que os olhos humanos enxergam.

157
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Os Waimiri-Atroari são remanescentes da região Amazonas


e parte do estado de Roraima, este povo conta somente até cinco,
assim como os povos Mundurucus do sul do Pará (1 - awynimi; 2 -
typytyna; 3 - takynynapa; 4 - takynynapa e 5 - warenypa, que repre-
senta uma mão). Este mesmo povo tem instrumento para marcação
do tempo. O nome deste instrumento é Catyba, que ajuda a marcar
o tempo para a festa de iniciação (Maryba) do índio criança.
A racionalidade deste povo difere da lógica aristotélica,
no entanto, não signiica ser inferior a mesma. O conhecimento
matemático se adequa perfeitamente para solucionar os problemas
dos aldeamentos. Os Waimiri-Atroari estão no programa de escolas
diferenciadas, ou seja, uma escola indígena construída na aldeia,
que tem como fundamentação, os conhecimentos indígenas trans-
mitidos por professores nativos desta mesma aldeia.
Nestes projetos de escola, o conhecimento não índio é
ensinado a partir de uma contextualização indígena. Os professo-
res utilizam instrumentos do cotidiano como canoas, arcos, cestos
etc., para ensinar o conhecimento matemático ocidental às crianças
com signiicação contextualizada. Contextualização é o que falta
em nossas escolas, pois não aprendemos os “porquês” e as origens
do conhecimento matemático.
É necessário que futuros educadores se conscientizem de
que não é apenas o fato de existir escolas indígenas interculturais e
bilíngues, que vai solucionar a problemática da negação do papel
do indígena. A escola deve reconhecer esta cultura, pois, só assim,
estaremos efetivamente democratizando o ensino brasileiro e com-
batendo a discriminação racial.
Porém, não só o indígena brasileiro tem sua historia mar-
cada pela dizimação e imposição cultural da elite dominante. Os ín-
dios Utes dos EUA têm uma matemática própria, dotada de saberes
desconhecidos por nós.
Políticas Públicas se fazem necessárias dentro e fora do
universo acadêmico, para que o índio pare de somente “ser conta-
do” e passe a “contar-se” a partir de sua própria produção de conhe-
cimento.

158
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Saberes matemáticos de matriz africana

Airmávamos que D’Ambrósio (2001) deine a Etno-


matemática como uma “metadeinição etimológica”, pois faz elabo-
rações sobre as etnos, os matemas, e as ticas, na tentativa de en-
tender o ciclo do conhecimento, ou seja, a geração, a organização
intelectual, a organização social, e a difusão do conhecimento ad-
quirido pelos grupos culturais. Nesta dinâmica cultural, não existe
uma História da Matemática como um processo, mas sim como um
registro seletivo dos fatos e das práticas que serviram para esta ap-
ropriação. Este fato faz brotar a vertente histórica do programa et-
nomatemática através da releitura da História do Conhecimento.
Essa corrente de pensamento vem justiicando as airma-
ções de Cunha Jr. (2005) de que se o ocidente pensa que descobriu a
geometria fractal, que tem grande utilidade nas áreas de produção
de circuitos semicondutores, nos campos da informática para repre-
sentação e reconstrução de formas complexas, desconhece que as
formas fractais existem de longa data no continente africano, onde
estas embasaram construções de cidades, formas geométricas para
estamparia de roupas e nas arquiteturas africanas.
Enim, quando pensamos no ensino da matemática, não
podemos isolá-la da história, pois este isolamento é um despoja-
mento de sentido. Isto vem a demonstrar que a humanidade, para
interpretar e intervir no mundo, se utilizou de diversos recursos, di-
versas linguagens, uma delas é a matemática.
Diversos estudiosos vêm demonstrando que experiências
de aprendizagem com crianças têm mostrado a importância de se
passar, durante a representação de conceitos matemáticos, por out-
ros tipos de linguagens como, por exemplo, as linguagens artísticas,
literárias, biológicas, geográicas e a língua materna.
Neste sentido, por que nossas escolas ainda não consid-
eram a capoeira com seus movimentos geométricos, o jogo de
búzios com suas probabilidades de adivinhação ou os ritmos de
matriz africana no Brasil, como componentes culturais carregados
de linguagem matemática?

159
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Cunha Jr. (2006), nos conta que nos anos de 1980 as


ciências da matemática de sistemas dinâmicos complexos, se im-
pactaram com o triunfo da teoria do Caos. Esta mudou a visão dos
cientistas “e sobre a nossa capacidade em prever fatos da natureza
através das ciências”.
Assim descrevia:

A teoria do Caos explica organização interna de


grandes distúrbios que pareciam serem totalmente
desorganizados e sem uma explicação matemática.
Foi uma teoria revolucionária que mostrou a im-
portância de pequenos efeitos físicos na produção de
gigantescos efeitos no futuro distantes. A divulgação
da teoria do Caos foi feita dizendo que ela demon-
strava que a batida das asas de uma borboleta na
Ásia poderia ser o início de uma imensa turbulência
atmosférica como um tufão no Caribe alguns me-
ses ou anos mais tarde. A exposição desta teoria do
Caos se realizou por uma representação matemática
especiica em diagramas circulares mostrando as tra-
jetórias caóticas das variáveis observadas (Cunha Jr.,
2006, p. 7).

De forma irônica, o autor se pergunta: “O que havia de im-


pressionante em tudo isto?” Para os que não conhecem os saberes
africanos e seus descendentes na diáspora brasileira, seria um ab-
surdo airmar que a teoria do caos já existia há séculos nas repre-
sentações da Deusa Oya, nas religiões africanas, em diversas partes
da África.
Cunha Jr. destaca:

No Mali, na Nigéria, no Congo, em Angola, na África


do Sul. Esta representação está relacionada na cultura
de Terreiro, com os fenômenos de turbulência atmos-
férica de grandes ventos. O trabalho de Judith Gleason
era mais surpreendente, pois mostra a existência de
uma combinação turbulenta atmosférica de dimen-

160
A QUESTÃO RACIAL NO ENSINO DE CIÊNCIAS

são continental e de formação caótica justamente so-


bre o continente africano e muito bem representada
no conhecimento religioso do Candomblé. Deduzi-
mos daí que o conhecimento da teoria do Caos, que é
recente para a ciência ocidental, já estava registrado e
exempliicado como conhecimento religioso africano
de diversas formas. Esta impressionante constatação
mexeu demais com a minha emoção e com o meu
respeito, para com os conhecimentos de Terreiro, ou
melhor, dizendo, o conhecimento guardado pelas
sociedades tradicionais afrodescendentes. O meu
respeito pelo conhecimento ancestral triplicou, não
se tratava apenas da minha história, mas de histórias
signiicativas para o conhecimento da humanidade
(Cunha Jr., 2006, p. 7).

Portanto, nas constatações subjetivas do autor, não tinha


como não se inquietar com a organização dos chamados jogos de
adivinhação africanos. Será o jogo de búzios no Brasil um elemento
cultural completamente desconhecido, já que um de seus aspectos
matemáticos mais importantes é a probabilidade?
Kammi (1990) airma que a criança que pensa ativamente
na vida diária pensa sobre muitas coisas simultaneamente. Parafra-
seando Kammi, nós também pensamos ativamente na vida diária
muitas coisas simultaneamente, e nestes pensamentos, certamente
carregamos muitas heranças culturais que não provém somente de
uma cultura cartesiana e europeia.

Referências bibliográicas

BESSA FREIRE, J. R. Os cinco equívocos sobre o índio. Rio de Janeiro: UERJ,


1999.
BESSA FREIRE, J. R.; MALHEIROS, M. Aldeamentos indígenas do Rio de Ja-
neiro. Rio de Janeiro: Programa de Estudos dos Povos Indígenas da
UERJ. 2000.
COSTA, M. V. (Org.). Currículo nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro:
DP&A, 1999.

161
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

CUNHA Jr, H. Formas geométricas e estruturas fractais na cultura africana


e afrodescendentes. In: BARBOSA, L. M. de A.; SILVA, P. B. G. e; SIL-
VÉRIO, V. R. (Org.) De preto a afrodescendente: trajetos de pesquisa
sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. São
Carlos: Edufscar, 2005.
_______. Afroetnomatemática, África e afrodescendência. Disponível em:
http://www.mulheresnegras.org/afroetnoma.html, 2006. Acessado
em Janeiro de 2007.
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Rio de Janeiro: Ed. Ática, 1985.
_______. Etnomatemática. Rio de Janeiro: Ed. Ática, 2001.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.
KAMMI, C. A criança e o número: implicações educacionais da teoria de
Piaget para a atuação junto a escolares de 4 a 6 anos. Campinas:
Papirus, 1990.
SEBASTIANI, E. Racionalidade dos índios brasileiros. Revista Scientiic Ame-
rican. Etnomatemática. Edição Especial n. 11, 2007.

162
O MENINO BULIDOR : 63

UMA DIFERENÇA QUE


NÃO CONSEGUIMOS
COMPREENDER
Margarida dos Santos64

Todo mundo tem direito à igualdade quando a dife-


rença discrimina. E todo mundo tem direito à diferen-
ça quando a igualdade descaracteriza.

Boaventura de Souza Santos.

Por que trabalhar com a diferença no cotidiano escolar


dos anos iniciais do Ensino Fundamental? Como temos trabalhado
com a diferença? Como essa preocupação tem aparecido em nos-
sas práticas pedagógicas? O que ainda precisamos aprender? Por
que ainda ressoa o slogan “Precisamos trabalhar com as diferen-
ças”? Não estamos trabalhando com as diferenças ao classiicarmos
e agruparmos alunos em fortes, fracos e regulares em sala de aula;
ao formamos a lista dos aprovados e reprovados; ao separamos os
que podem aprender daqueles que julgamos “incapazes” para apre-
nder? Seria esse o único modo de trabalharmos com as diferenças?
No que o reconhecimento e a valorização das diferenças podem
63 Uso o termo “Bulidor” como derivativo do verbo “bulir”, que, segundo o Novo Dicioná-
rio Aurélio, quer dizer mover, balançar, pôr as mãos, mexer, mover-se, provocar, mexer-se.
Também porque, na minha infância, ouvia minha avó, natural do sertão pernambucano,
usar constantemente o verbo “bulir”. Neste artigo, chamo de “Bulidores” meninos que têm
“mexido” comigo, desaiando-me a aprenderensinar (Alves, 2000) aqueles que têm suas vidas
marcados pelo fracasso escolar.
64 Mestre em Educação pela UFF. Especialista em Educação Especial pela UNIRIO. Especia-
lista em Alfabetização de Crianças das Classes Populares. Professora Alfabetizadora dos anos
iniciais do Ensino Fundamental da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro desde
1985. Responsável pelo projeto Lendo e Escrevendo no CAp. ISERJ / FAETEC. Professora do 1º
ano de escolaridade do Ensino Fundamental do CAp UERJ.

163
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

contribuir para o enfrentamento da problemática do fracasso esco-


lar? Na discussão sobre a diferença há lugar para igualdade?
Em minha caminhada pelo chão da escola pública do Rio
de Janeiro venho percebendo que ainda existe um modo aprendido
e hegemônico de lidar com as diferenças como sinônimo de falta.
Por desconiar que uma das causas da produção do fracasso escolar
possa estar vinculada a esse modo de lidarmos com as diferenças
na escola é que venho me desaiando a interrogá-lo e procurando
aprender a reinventar ações escolares pautadas no princípio do re-
conhecimento e valorização das diferenças expressas nos corpos
dos alunos, nos seus modos de falarem, de expressarem e se apro-
priarem dos conhecimentos. Assumo esse compromisso em minha
prática pedagógica por acreditar que esta seja uma das possibili-
dades de contribuir com o êxito de alunos cujas histórias anunciam
e denunciam o fracasso.
Tais ações vêm se realizando no espaçotempo do projeto
Lendo e Escrevendo, projeto de colaboração pedagógica a esses
alunos, no qual venho me tornando professora pesquisadora (Alves
& Garcia, 2002). Sendo assim, nesse texto procuro socializar e pôr
em discussão a experiência (Larossa, 2002) de me desaiar a inter-
rogar esse modo aprendido de trabalhar com as diferenças sociais,
raciais e de aprendizagem no cotidiano escolar, junto a um grupo
de alunos e alunas que têm vivido o fracasso nos anos iniciais do
Ensino Fundamental.
O projeto a que me referi anteriormente vem sendo real-
izado no Ensino Fundamental do Colégio de Aplicação do Instituto
Superior de Educação do Rio de Janeiro - ISERJ, uma escola cen-
tenária, localizada no bairro da Tijuca. A referida escola recebe alu-
nos que residem em diversos bairros da cidade do Rio de Janeiro.
Dos setecentos alunos matriculados do 1º ao 5º ano do Ensino Fun-
damental 64 participam, atualmente, do projeto Lendo e Escreven-
do. No espaçotempo do projeto venho procurando compreender
até que ponto práticas pedagógicas sintonizadas com a ideia de
homogeneização, apoiadas numa suposta igualdade de condições,
podem contribuir para processo de fracasso escolar vivido por al-
guns dos meninos e das meninas com quem tenho trabalhado. Para
tanto, assumo como ponto de partida o movimento de interrogar as
evidências da incapacidade dos alunos, que desde muito cedo têm

164
O MENINO BULIDOR

carregado o peso do fracasso escolar em seus ombros infantis. Dito


isso, resta perguntar: Quem são os alunos que têm fracassado? De
onde vêm os alunos que frequentam o projeto Lendo e Escrevendo?
A maioria dos alunos que participam do projeto Lendo e
Escrevendo são negros e mestiços e residem muito próximo à es-
cola ou nos morros localizados nos bairros do Estácio (Fogueteiro,
Zinco, Querosene, São Carlos) e da Tijuca (Formiga, Matinha, Borel).
Vivem em localidades onde se concentra a maioria da população
de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro. Os moradores ainda
convivem com a precariedade dos serviços de saneamento básico,
saúde, transporte, entre outros. Para muitos deles a miséria tem sido
uma realidade. Atualmente, as comunidades onde vivem têm en-
frentado o crescimento da violência em virtude das disputas pelo
tráico de drogas. A maioria dos alunos e alunas que chegam ao
projeto Lendo e Escrevendo carregam, além das marcas dessa reali-
dade, um conjunto de experiências que revelam diferentes modos
de ser, compreender, aprender e de estar no mundo, vividas nesse
espaço, que em geral são ignoradas pela escola.
Como professora-pesquisadora, tenho procurado me afa-
star de um discurso e de uma prática pedagógica que usam as dife-
renças sociais e as precárias condições de vida de muitos de nos-
sos alunos e alunas para justiicar a situação de fracasso escolar em
que se encontram. Que insiste em apagar a diferença quando esta
cumpre o papel de airmar nossos alunos e os iguala naquilo que os
nega. Neste processo tenho buscado compreender e reinventar per-
cursos para a realização de práticas pedagógicas junto a alunos con-
siderados “incapazes” de aprender. Eles têm me ajudado a ver que
os caminhos não estão prontos, precisam ser criados na interação
realizada em nossos encontros. Isso tem me levado a procurar, nas
ações dos alunos, indícios (Ginzburg, 1991) de seus interesses, seus
saberes e suas lógicas, ajudando a gerar com eles possíveis práticas
pedagógicas favoráveis ao processo ensino-aprendizagem.
Trabalhar com indícios pressupõe a atitude de duvidar e
interrogar o que se apresenta como evidente. Uma situação apre-
sentada como impossibilidade de aprendizagem é, por exemplo,
aquela em que um aluno repete uma determinada série várias vez-
es, o que o leva a ser considerado incapaz. No entanto, se, em vez
de aceitarmos tacitamente a ideia de incapacidade, indagássemos

165
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

sobre as razões que impedem a mudança desse quadro, talvez a


história pudesse ser outra. Este é o movimento que venho procu-
rando fazer. Ao desviar o olhar do fracasso explícito na repetência e
focar na possibilidade expressa na permanência do aluno, tenho a
oportunidade de encontrar indícios que me levem a desconiar de
que o aluno considerado incapaz possa ser, também, um sobrevi-
vente lutando por ajuda.
O ato de interrogar as evidências pode servir para ori-
entar a busca de novos indícios que nos levem a construir ações
pedagógicas mais favoráveis ao processo de aprendizagem, além
de ajudar a retirar o rótulo da incapacidade dos alunos e alunas.
Enquanto as evidências, como verdades inquestionáveis, tendem a
nos aprisionar no terreno das certezas, os indícios podem nos fazer
caminhar em busca de possibilidades, orientados pela capacidade
de perguntar e de duvidar. Venho sendo desaiada a aprender a “ver”
(Von Foster, 1996) e a trabalhar com os indícios da capacidade para
aprender dos alunos. Porque não aceito e não acredito no fracasso
escolar como única possibilidade para a vida escolar dos alunos que
têm chegado ao projeto Lendo e Escrevendo. Reconheço ser uma
busca ainda inexperiente, mas insisto, porque acredito e luto, son-
hando com melhores condições de permanência no cotidiano esco-
lar para todos os alunos e para nós, professores(as).
Venho descobrindo na experiência com os alunos, que
seus diferentes processos de aprendizagem, seus interesses, os mo-
dos como se relacionam com o conhecimento e seus saberes guar-
dam indícios que precisam ser investigados, só podem ser vistos se
desconiarmos das evidências presentes nas histórias dos alunos
que fracassam na escola e passarmos a interrogá-las. A busca e re-
invenção de caminhos têm se constituído num processo investiga-
tivo do qual tenho retirado alguns fragmentos que têm me ajudado
a escrever uma outra leitura do fracasso escolar vivido por alguns
alunos e alunas.
Sinto-me desaiada a fazer essa outra leitura, orientada,
também, pela seguinte denúncia: “O fracasso da escola elementar
é administrado por um discurso cientíico que, escudado em sua
competência, naturaliza esse fracasso aos olhos de todos os en-
volvidos no processo” (Patto, 1991). A autora condena o discurso
que expressa certa cegueira de boa parte dos envolvidos no pro-

166
O MENINO BULIDOR

cesso de aprendizagem de criança e jovens, no que diz respeito à


natureza social e política do fracasso escolar, quando visto como
natural e reduzido a uma questão de incapacidade do indivíduo ou
de um determinado grupo (alunos, professoras, família). Denuncia
a parcialidade de um discurso que expressa uma compreensão da
criança pobre como “carente”, “doente”, “desinteressada”, “desatenta”,
“pouco inteligente”, “apática”, “agressiva”, “agitada”; adjetivos utiliza-
dos para justiicar a não aprendizagem escolar de alunos e alunas
que vivem a experiência do fracasso. Na relação prática-teoria-práti-
ca, a teoria assume o papel de lente que me ajuda a ver o que antes
sequer desconiava que pudesse existir.
A infância pobre, negra e mestiça, que frequenta a escola
pública, tende a ser considerada incapaz de usufruir plenamente
o direito à educação escolar; direito porque as mães e os pais das
classes populares têm lutado historicamente, inclusive, enfrentan-
do horas e até dias nas ilas para garantir a seus ilhos uma vaga nas
escolas públicas. Segundo Azoilda Trindade “deve-se mudar o para-
digma da falta para o da potência. Cada um é único. Aquele é meu
aluno e é com ele que preciso aprender a lidar” (2001). Procuro me
aproximar da perspectiva apontada pela autora para compreender
o outro e aprender a ensinar, considerando a diferença que os meni-
nos e as meninas das classes populares trazem em seus corpos. Esse
modo ainda hegemônico de compreender as crianças da escola
pública parece diicultar muito a organização de práticas pedagógi-
cas que possam reconhecer e valorizar seus saberes, uma vez que
são vistas apenas do ponto de vista do que lhes falta. Um modo de
compreender a diferença, que desperdiça sua riqueza por consid-
erá-la um entrave para o processo ensinoaprendizagem. No entanto,
penso que o trabalho com indícios pode contribuir para o processo
de desnaturalização do fracasso dessas crianças, porque nos desaia
a buscar o que se encontra oculto pelo discurso que reconhece a
diferença como elemento da negação. Tomando como referencial o
paradigma da complexidade (Morin, 2001), podemos evitar cair na
armadilha das oposições em relação aos saberes e ao modo de ser
de nossos alunos. Poderíamos compreender e reconhecer que eles
possuem conhecimentos, mas também desconhecimentos, tensão
que nutre o processo de novas aprendizagens.

167
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Nos estudos de Esteban (2001), uma discussão que assume


o fracasso escolar como uma das faces da desigualdade social, mas
que também evidencia que a escola pode ser muito mais do que um
espaço-tempo de reprodução de preconceitos e desigualdades.

A escola não é simplesmente um espaço de re-


produção do contexto social, uma vez que nela são
geradas práticas especíicas através das quais a
desigualdade se constrói e, em alguns momentos,
permite a construção de práticas alternativas que su-
perem, ou tentam superar as desigualdades iniciais
(2001, p. 30).

Fortalecida por essas e outras contribuições teóricas, pela


experiência com os alunos e pela importância da escola em minha
vida, tenho procurado assumir o desaio de aprender a construir
práticas pedagógicas que se afastem do processo de reprodução
do modelo desigual. Assim, em vez de tentar enquadrar os alunos
e alunas numa prática reprodutora, ainda tão venerada pela escola,
venho me desaiando a explorar a força da criação presente nos dife-
rentes modos de aprender, de compreender, de demonstrar conhe-
cimentos, sentimentos expressos por eles ao longo dos encontros
no Lendo e Escrevendo. Encontrar as questões e os assuntos que os
mobilizam a aprender tem sido um outro movimento importante,
porque são estes que têm ajudado a compor práticas que possam
favorecer a aprendizagem dos alunos.

***

Para continuar a conversa tomo de empréstimo um con-


vite feito por Azoilda Trindade (1999). O convite da autora nos lem-
bra que é preciso humanizar as relações, especialmente, no âmbito
do cotidiano escolar, onde lidamos com vidas. Como ela, convido a
todos e a todas que:

imagine suas salas de aula, seus alunos e alunas e


traga-os à sua memória lembrando-lhes os jeitos, os

168
O MENINO BULIDOR

cheiros, os sorrisos, as implicâncias, as angústias, os


medos, as vestes e adereços, as peles, as palavras, as
belezas... Tente lembrar deles com paixão, com o en-
volvimento de quem sabe na pele, no corpo e na alma
o que é o cotidiano escolar e guarde aquecidamente
[...] (Trindade, 2001, p. 7).

O cotidiano escolar é esse espaçotempo de onde vêm as


lembranças, onde presente e passado se misturam e o desejo de um
futuro melhor também é presente. Cotidiano escolar, considerado
por muitos como espaço apenas de reprodução, que a vida com
seu potencial criador insiste em contradizer. Vida transbordante das
nossas salas de aula, corporiicada na presença dos nossos alunos e
alunas de carne, osso e coração. Vidas que às vezes esquecemos, ou
não temos coragem de olhar de frente, demoradamente. Animada
pelas palavras da autora me aventuro a olhar, ou melhor, a repa-
rar na experiência vivida com estes meninos e meninas, no espaço-
tempo do projeto Lendo e Escrevendo, trazendo dois fragmentos
da experiência para a frente da cena. Fragmentos tecidos na relação
prática-teoria-prática para compreender os caminhos pelos quais
tenho sido desaiada a aprenderensinar (Alves, 2000)

Histórias de aprenderensinar
com meninos Bulidores...

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece,


o que nos toca.
(Larossa, 2002)

Durante dois anos alunos considerados como incapazes


de aprender e que não acompanhavam a turma foram retirados
de suas turmas, chamadas de “regulares”, e agrupados nas “turmas
especiais”, numa clara tentativa da escola de compor turmas ho-
mogêneas. Embora nem todas concordássemos com esse encamin-
hamento, ele prevaleceu por algum tempo. Ao término de dois anos,
não havia professora que se disponibilizasse para trabalhar com as

169
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

turmas. A tensão entre os diferentes pontos de vista a respeito dos


encaminhamentos que deveríamos dar ao problema do fracasso es-
colar e a recusa das professoras para o trabalho na “turma especial”
levou-nos a desmanchá-la e redistribuir os alunos nas turmas ditas
regulares. Com a “redistribuição” dos alunos nas turmas regulares, o
problema, que até então tinha icado apenas nas mãos de algumas
professoras responsáveis pela “turma especial”, passou a ser vivido
por um maior número de proissionais na escola. Assim, o problema
do fracasso escolar começou a ganhar maior visibilidade. Eram con-
stantes, em nossos Centros de Estudos e Conselhos de Classe, men-
ções a problemas de aprendizagem e disciplina. Não só os alunos
vindos da “turma especial” eram citados. O fracasso não se restringia
apenas aos ex-alunos da referida turma, também atingia aqueles cu-
jos nomes não eram mencionados em nossos encontros, mas curio-
samente engrossavam as estatísticas da reprovação. A problemática
enfrentada pelos alunos e alunas, aliada às constantes queixas das
professoras, foi discutida durante a elaboração da nossa proposta
pedagógica em 1998. Nesse documento, registramos a necessidade
e a nossa intenção de realizarmos uma investigação em torno da
situação daqueles alunos que estavam vivendo o fracasso escolar.
Um dos espaçostempos de investigação viria a se tornar o projeto
Lendo e Escrevendo.
Na época atuava na Orientação Pedagógica65 e procurei me
aproximar dos alunos e alunas que eram citados constantemente
por suas professoras. Desconiava que havia algo a respeito deles/
as que nós ainda não estávamos conseguindo perceber e dizer. Às
vezes, visitava a sala de aula a pedido de algumas professoras. Foi
numa dessas idas à sala de aula que me deparei com o desespero da
professora de Douglas. Ele se recusava a realizar as provas. Ocupava
seu tempo caminhando pela sala, brincando com um lápis que dizia
ser seu avião. O barulho produzido por Douglas estava incomodan-
do demais as crianças e a professora. Diante da situação, perguntei
se ela gostaria que eu o levasse para que realizasse a prova comigo.
A professora aceitou. Tanto ela quanto a turma pareciam aliviadas.
Douglas, por sua vez, não se opôs, talvez porque já nos conhecês-
semos e também porque a saída da sala poderia representar a pos-
65 Orientação Pedagógica, nomeação atribuída ao proissional (em geral professor) que
atua junto a outros professores, que deveria ser um colaborador e mediador das discussões
referentes às práticas pedagógicas realizadas.

170
O MENINO BULIDOR

sibilidade de se livrar daquela situação. Disse-lhe que poderia levar


o seu avião para que descesse a rampa brincando com ele.
Enquanto descíamos, algo curioso acontecia. O menino
havia se esquecido do avião e disparou a falar do seu direito de
brincar. Reclamava do pouco tempo que a escola dava para que as
crianças brincassem. Os seus questionamentos me izeram desviar
do caminho. Em vez de ir para a sala da Orientação Pedagógica, fo-
mos para o bosque da escola, um belo lugar com muitas árvores.
Fazia calor. Escolhemos uma árvore forte de raízes salientes. Ali nos
sentamos. Douglas ia descobrindo as formiguinhas que saíam de
um buraco da velha árvore e me convidava a olhar dizendo: “Olha
como elas são bonitinhas!”.
Ele me convidava a ler o mundo sob sua ótica e eu tam-
bém o convidava a penetrar no mundo da escrita e ler o texto que
havia recusado. Para minha surpresa, Douglas lia e conseguia re-
sponder por escrito às perguntas que, por coincidência ou não, fala-
va de insetos. Seria coincidência? Douglas teria prestado atenção às
formigas porque os conhecimentos veiculados no texto permitiam
que izesse a articulação entre o lido e o vivido? A observação que
Douglas fazia das formigas estaria inluenciando o modo como lia?
O espaço em que nos encontrávamos teria inluenciado a mudança
de atitude de Douglas? O menino, que não realizava as tarefas esco-
lares impostas, teria se envolvido na realização da prova em decor-
rência da interação dialógica ocorrida durante o nosso encontro?
A minha atitude de prestar atenção às formigas descobertas por
Douglas teria interferido na dinâmica do nosso encontro?
Aqueles momentos junto a Douglas eram de aprendiza-
gens. Eu descobria que era isso que eu queria aprender a fazer:
descobrir como chegar até as crianças que pareciam inatingíveis
e poder com elas interagir. A partir da experiência, intuía que era
preciso chegar onde o interesse do menino ou da menina estava,
para tentar conectar o que eu, professora, julgasse importante.
Acredito que esse tenha sido um dos momentos mais importantes
da experiência, mesmo sem ter muita clareza, começava a deinir os
três eixos que têm orientado a prática pedagógica no projeto Lendo
e Escrevendo, que são: os interesses, os saberes e as necessidades
dos alunos. Em geral, a lógica da escola prescreve que os meninos
se atenham ao que a professora considera importante, no entanto,

171
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

quantas vezes deixamos de ouvir ou ignoramos o que é considera-


do importante para as crianças? Durante aqueles momentos com
Douglas, eu estava dando os meus primeiros passos para aprender
a arte de negociar sentidos com as crianças. O encontro com Doug-
las produzia um encontro comigo mesma, e ali se tecia mais um io
com o qual o projeto seria posteriormente alinhavado.
A cada momento novas queixas apareciam e, com
frequência, relacionavam-se às crianças vindas da “classe especial”.
Mais uma vez me sentia comprometida com o percurso escolar das
crianças e percebia a necessidade de ajudar a tecer uma história de
êxito. Porém o cotidiano parecia trazer apenas o fracasso como pos-
sibilidade. Com a extinção das “turmas especiais”, fortalecia-se um
discurso de que nada mais poderia ser feito por alguns daqueles
alunos que não obtiveram êxito escolar durante o tempo que pas-
saram na referida turma. Preocupavam-me, especialmente, as refer-
ências feitas a Wellington:

Já tentamos tudo o que sabíamos e podíamos e nada


deu jeito no Wellington. Ele foi meu aluno na “turma
especial”. Era um horror, batia em todo mundo e não
conseguiu aprender. Ele deve ter algum problema...
mental.
(Professora da “turma especial”)

Juntava-se a comentários como esses uma outra airma-


ção, em tom de desistência: Todo o possível já havia sido feito. O que
estaríamos chamando de “todo o possível”? A referência feita ao
aluno se assemelhava àquela que costuma ser feita aos pacientes
em fase terminal em alguns hospitais públicos. Estaríamos decre-
tando a morte da vida escolar de Wellington? A fala da professora
me fazia pensar no que vinha aprendendo sobre a ambivalência do
ser e das situações. Começava a querer ver o avesso da situação.
Tentava encontrar na própria fala os indícios de vida. Assim, pergun-
tava-me, desconiada, por saber ser improvável que tivéssemos ten-
tado todo o possível. Não precisei ir muito longe, a resposta estava
em sua própria fala. O todo possível estava dentro do que já sabia
fazer. Diante disso, perguntava-me outra vez: Não seria o momento
de tentar o que ainda não sabíamos, o que nos levaria a aprender?

172
O MENINO BULIDOR

Seria pior a constatação de que o menino foi lançado no exílio da


turma especial, ou de que a instituição, diante de sua diiculdade
para ensinar, tem se eximido da responsabilidade, culpabilizando
aqueles que não têm como se defender? Quem estaria doente
nessa história: criança, instituição, família, professoras, as práticas, o
pensamento que orienta as práticas?
Alunos como Wellington explicitam a inviabilidade de
objetivarmos e coisiicarmos o ser. Talvez o nosso maior problema
estivesse no fato de querermos “dar um jeito no Wellington”, numa
clara tentativa de moldá-lo, enquadrá-lo aos padrões da escola.
Parecia que o insucesso dessa tentativa representava o fracasso es-
colar de Wellington, o que me leva a pensar que, se desejamos inve-
stir em práticas pedagógicas que possam promover o êxito escolar,
precisamos nos preocupar em considerar os alunos como sujeitos
na relação e não como objetos sobre os quais agimos. Uma pos-
sibilidade seria encontrar, “com” Wellington meios que o ajudassem
a superar a situação de fracasso escolar em que se encontrava. Mas
como ver? Von Foster (1996) nos alerta que não vemos o que não
acreditamos, sendo assim, como “ver” que o equívoco em relação
aos meninos poderia ser nosso? Como deslocar o nosso olhar do
que eles ainda não sabem para o que já sabem? Como desconiar de
que nós, também, podemos ser parte e solução do problema?
Comecei a me perguntar se o comportamento “inquieto”
e “agitado” dele em seus primeiros anos de escolaridade poderia
ser um outro modo de manifestação da curiosidade infantil. Certa
desconiança tem me levado a pensar que a diiculdade para lidar
com ele possa ter sido decorrente de uma incapacidade de acom-
panhar meninos que nos desaiam a enfrentar o desconhecimento,
além de existir uma tendência em atribuir rótulos às crianças cujas
atitudes não compreendemos. Por isso, trago para relexão um ret-
alho da história de Wellington que muito me tem feito pensar. Trata-
se de um retalho antigo, um tanto maltratado, alinhavado com o io
da dúvida. Seria Wellington um menino agitado ou apenas curioso,
ou quem sabe uma coisa e outra? Ao lembrar do aluno hoje, a sen-
sação é de que ele era um menino em ebulição, como a maioria dos
meninos de seis anos que carregam dentro de si uma vida pulsante,
mas que tentamos conter na escola. É uma hipótese que me leva a
chamar Wellington, neste retalho, de Menino Bulidor.

173
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Chegando à Classe de Alfabetização, em 1993, o Menino


Bulidor encontrou a professora com quem bulia sem parar. Ela não
entendia aquele menino irrequieto. Além de bulir com a professora,
também o fazia com as outras crianças e com os objetos da sala.
Explorava todos os espaços possíveis. Estaria tentando encontrar o
seu lugar num espaço tão diferente daquele em que vivia? Estar-
ia procurando um modo de escapar da cadeira e das folhinhas de
exercício, artefatos usados para fazê-lo parar? Estaria tentando es-
capar da disciplinarização dos corpos e mentes que parece se iniciar
com a escolarização? Se a professora pestanejasse, ele escapuliria
da sala, para visitar ou incomodar (?) outras salas.
Fazendo o que podia, a professora estendia suas mãos para
as do menino segurar; mas, sensível como todo menino, sentia que
aquela era uma tentativa desesperada para não deixá-lo escapulir.
Ela precisava segurar forte para que o menino pudesse se aquietar.
O menino explorava os espaços com seu corpo todo, queria ver,
sentir, tocar, saber, conhecer. Quem sabe estivesse procurando um
bom motivo para gostar de icar. Não usava as palavras para dizer
o que queria. Será que adiantaria? Tal atitude tornava difícil a con-
vivência do menino em sala de aula. Era um espaço onde a palavra
escrita, a cada dia, ganhava mais primazia, onde a palavra falada até
circulava, apesar de nem ser utilizada pelo menino que bulia com
todos. Mesmo quando se via aprisionado pela linguagem do cas-
tigo ou pela prática controladora, punha-se a piscar como se fosse
menino vaga-lume, parecendo a nós, desavisadas, uma espécie de
tique nervoso. Desconio que aquele era o jeito que ele encontrou
para continuar bulindo com a gente, mesmo quando achávamos
que estava sob nosso controle.
Talvez, ele estivesse apenas em busca de mãos que lhe
dessem segurança, acalmassem e pudessem acompanhá-lo em seu
desejo de conhecer e se reconhecer naquele espaço tão diferente
do que vivia, onde passaria diariamente cinco horas de sua vida. Ah,
se a professora soubesse ou se pudéssemos imaginar que as mãos
também poderiam ser estendidas para acompanhar os meninos e
as meninas que nessa idade adoram bisbilhotar, descobrir como
as coisas funcionam, explorar espaços... Algumas crianças têm um
“monte” de perguntas guardadas, mas ainda não sabem perguntar
com palavras, pondo-se a fazê-lo com o corpo todo, como o Me-

174
O MENINO BULIDOR

nino Bulidor. Desconio que esse possa ser um outro jeito de sua
curiosidade se explicitar. Coisa estranha de entender, porque fomos
acostumados a ser curiosos só com os olhos. Ao longo de nossas
vidas, parece que nos ensinaram a esquecer de exercitar a curiosi-
dade com o nariz, com a pele, com os ouvidos e com a língua. Sem
atentar para isso, mesmo sem querer, ajudamos nossas crianças a
também esquecerem. Assim como a professora do Menino Buli-
dor, nenhuma de nós da equipe de alfabetização em 1993 poderia
imaginar que aquele pudesse ser um modo de manifestar sua curio-
sidade, porque essa possibilidade se afastava muito da imaginação
hegemônica de que o Menino Bulidor pudesse ter algum distúrbio
neurológico, isso sim, era mais fácil de acreditar. Não conseguíamos
imaginar diferente, porque essa tinha sido uma outra coisa da qual
nos izeram esquecer.
Penso que o Menino Bulidor pudesse estar nos instigando
a pensar e, quem sabe, lembrar que poderiam existir diversos moti-
vos para a sua atitude. Parecia reclamar que parássemos para pensar
por que uma criança de apenas seis anos vivia aquele tipo de rela-
ção com a escola, de modo que só conseguíamos ver em suas ações
aspectos que serviam para desqualiicá-la. Por que não conseguía-
mos ler as atitudes do menino também como uma manifestação
de curiosidade infantil? Por que nós não fomos curiosas a ponto de
saber e compreender a relação do menino com a escola?
Brecht, um homem que sabe bulir com a gente através de
seus escritos, faz uma provocação nos seus versos, que muito tem
mexido comigo, levando-me a pensar em nossas ações e interações
com o Menino Bulidor.

Do rio que tudo arrasta


Diz-se que é violento,
Ninguém diz violentas
As margens que o cerceiam.

Inluenciada por essa e outras tantas leituras, venho acei-


tando o desaio de repensar a ideia de que a diiculdade possa es-
tar apenas no “outro”, a criança e o jovem, que não se comporta e
aprende exatamente como esperamos, sem sequer desconiarmos

175
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

da nossa diiculdade para compreender a multiplicidade de formas


para revelar criticidade, curiosidade, aprendizagem, amorosidade. É
comum lermos que devemos estimular a curiosidade infantil, mas
o que, às vezes, desconhecemos são as formas como ela se revela.
Não seria o caso de aprender a compreender e reconhecer as várias
manifestações da curiosidade infantil? Seria possível estimular cu-
riosidade de crianças coninadas entre as paredes da sala de aula?
A nossa incapacidade para compreender ica escamoteada. Em seu
lugar ganha visibilidade o fracasso daqueles meninos e meninas que
frustram a nossa expectativa de ver alunos críticos e criativos “caindo
do céu”. Faço estes questionamentos apoiada na interlocução com
Freire (1997) sobre a importância da curiosidade no processo de for-
mação de cidadãos capazes de ler o mundo criticamente, quando
acentua o papel da prática educativa no processo de desenvolvim-
ento da curiosidade crítica, insatisfeita, que nos faz assumir uma pos-
tura interrogativa do mundo. Desconio de que desperdiçamos os
diferentes modos de demonstrá-la, porque ainda não conseguimos
compreendê-los. Paulo Freire nos apresenta algumas manifestações
da curiosidade: “A curiosidade como inquietação indagadora, como
inclinação ao desilamento de algo, como pergunta verbalizada ou
não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que
sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital (1997, p. 35).
Wellington representa tantos outros meninos e meninas
que têm olhos bulidores, ouvidos vivos, peles acordadas, mãos cu-
riosas, que a tudo e a todos interrogam com seus corpos. Eles ex-
pressam sua curiosidade de diversos modos, talvez porque ainda
não tenham sido capturados por um modo disciplinador de ser cu-
rioso apenas com os olhos. Muitos parecem ainda não ter descobe-
rto a sua capacidade de perguntar com palavras. São crianças que
exigem que aprendamos uma linguagem pouco valorizada e até
mesmo abandonada. Reiro-me à linguagem corporal, por muitos
banalizada, mas nos meios populares muito presente, onde nos últi-
mos tempos, “o silêncio vale ouro”, “em boca fechada não entra mos-
quito”, “quem muito fala acaba na vala”, “o olho viu, a boca piu” são
expressões recomendadas. A linguagem do corpo parece que vira
instrumento de poder na luta que ajuda a sobreviver. Sendo assim,
cabe perguntar: O que deveríamos considerar numa prática alfabet-
izadora favorável ao processo de apropriação da linguagem escrita
de meninos e meninas que estão inseridos em práticas culturais nas

176
O MENINO BULIDOR

quais parece prevalecer a linguagem gestual? Quais seriam as con-


sequências para as crianças das classes populares se no lugar de se
negar a linguagem que as crianças trazem ao entrar, se começasse a
valorizá-las e se apresentassem outras linguagens, com o propósito
dos seus saberes ampliar? A resposta eu não sei, mas talvez esse seja
um bom modo de começar.
Os anos transcorriam, enquanto isso a fama do Menino
Bulidor se espalhava. Compreendê-lo ninguém conseguia. Fazía-
mos referência a ele como: “agressivo”, “violento”, “perverso”, “fujão”,
“inquieto”. Na coordenação, tinha lugar garantido. Do contrário
podíamos encontrá-lo pelos corredores bulindo com todos que
conseguia encontrar. Inconformado com a situação que vivia na es-
cola, agredia os amigos e permanecia muito pouco em sala. Seria
um menino “sem jeito”? Em 1998, o menino resolveu bulir comigo.
Na época, estava com 11 anos e tinha sido “reintegrado” numa tur-
ma de 1ª série depois de ter icado dois anos na “turma especial”. En-
quanto conversávamos sobre uma coisa errada que havia feito em
sala de aula, comecei a aconselhá-lo para que procurasse estudar e
não icasse tanto tempo fora da sala. Depois que ouviu tudo, deixou
escapar uma pergunta que parecia engasgada. Para perguntar des-
viava o olhar, talvez estivesse com medo da resposta: Tia, por que
eles já sabem ler e eu não? O Menino Bulidor estaria virando menino
perguntador?
Sua pergunta bulia comigo. Para ela não tinha uma boa re-
sposta, mesmo assim, tentei arriscar, dizendo a Wellington que não
era bem assim, pois ele já estava lendo e logo chegaria lá. Mas como
chegar? Esse era um desaio que nós tínhamos que enfrentar juntos.
O menino não compreendia: se já sabia, como suas professoras não
viam? Como poderia? De tudo o que lhe acontecia nada contribuía
para que pudesse acreditar em suas possibilidades (reprovações;
indicação para “turma especial”; ameaça de transferência para uma
turma de aceleração na escola municipal; reingresso numa turma
de 1ª série, quando muitos de seus amigos foram para a 3ª, 4ª e 5ª
série). O que seria ainal?
O menino não dizia, mas o que queria mesmo era ser igual
aos outros. Mas seria isso mesmo? Ou desejava apenas pertencer?
Ele havia aprendido a ver sua diferença como incapacidade, uma
visão de si mesmo que não o ajudava a reconhecer os conhecimen-

177
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

tos que possuía. A sua própria pergunta trazia um desejo de querer


ser igual, um desejo de compreender o que estava acontecendo.
O menino estaria requerendo o direito de ser, pertencer e ter o di-
reito de aprender? Aquele menino sabia, é como Gramsci (1989)
dizia, sabia porque sentia. Com ele eu aprendia que o direito igual
aos outros de aprender a ler era uma igualdade que o favorecia. O
menino agora estava aprendendo a perguntar usando as palavras
que queria, agora precisava acreditar que sabia. Ironicamente, sua
pergunta não poderia ser respondida com palavras, mas, sim, com
atos. A pergunta de Wellington não me permitiu parar, porque nela
havia encontrado uma pista: era preciso caminhar, era preciso apre-
nderensinar se quisesse encontrar possíveis respostas para o que o
menino estava a me perguntar. Por onde começar? Mais uma pista
eu acabava de encontrar: o Menino Bulidor também era question-
ador e gostava de perguntar.
Ainda não sabia, mas a pergunta do menino exigia que eu
descobrisse que tão importante quanto ler os livros e manuais para
achar algumas respostas, seria aprender a fazer uma leitura mais at-
enta e amorosa dos meninos e meninas de carne, osso e coração que
povoam o cotidiano escolar. Wellington expunha mais alguns ios,
eu os segurava, mesmo sem saber exatamente por quê. Adorava
falar de política, comentar reportagens dos jornais televisivos, gos-
tava de conversar e discutir sobre os problemas da escola. Olhando
para esses indícios de interesses e saberes, resolvemos dedicar nos-
sos encontros à elaboração do Jornal do Iserj. Durante os encontros,
algo surpreendente eu descobria, aquele menino já lia. A situação
me fazia lembrar o que Maturana (1999) nos diz da importância de
aprendermos e não desperdiçar o saber fazer dos nossos alunos e
de não esquecermos de ensiná-los a olhar o que fazem.
Alunos como Douglas e Wellington têm nos desaiado no
projeto Lendo e Escrevendo e fora dele. A opção de me pôr ao lado
deles permite aprender a viver a insegurança de não saber o que
fazer em muitas situações, levando-me a lançar mão de elementos
como faro, golpe de vista, intuição (Ginzburg, 1991) para que o en-
contro entre nós acontecesse. Estes são alguns dos saberes docentes
necessários que não consegui encontrar nos manuais para ensinar
crianças a ler e a escrever. A realização da prática pedagógica com
esses alunos exige ações que combinem agilidade e um perman-

178
O MENINO BULIDOR

ente estado de vigília para que não desperdicemos oportunidades


de captar no voo algumas oportunidades de trabalho. Parece-me
que este se constitui um modo de viver, na prática, o convite de
Paulo Freire: o de realizarmos a “leitura da classe de alunos como
se fosse um texto a ser decifrado, a ser compreendido” (1998, p. 67).
Com esses alunos comecei a compreender que suas diferenças não
podem se constituir em um problema de aprendizagem. No entan-
to, precisamos reconhecê-las como um problema a ser considerado
na reinvenção e redeinição dos princípios que têm orientado os
nossos modos de ensinar. A experiência vivida com a maioria dos
alunos e alunas que chegam ao projeto Lendo e Escrevendo me
confronta com o meu estado de inacabamento e com a insuiciência
do conhecimento que possuo. Não há receitas, mas sim uma busca
permanente de alternativas a partir de uma interação dialógica com
eles. Aos 16 anos, o Menino Bulidor que havia se tornado pergunta-
dor, agora queria virar escritor. No projeto de escrever em camisetas
aproveitou para contar a quem quisesse saber o que pensava sobre
a escola e suas regras.

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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180
OLHA AQUELE PRETO ALI!
QUANDO A DIFERENÇA
INTERROGA A PRODUÇÃO
CURRICULAR: O QUE FAZER?
Rita de Cássia Prazeres Frangella 66

Hoje vivemos num contexto de diferenças alardeadas, res-


saltadas, até comemoradas. Somos diferentes, vivemos num mun-
do plural! Parece simples e consensual o trato com a diferença, com
o múltiplo. Mas como se dá isso no cotidiano escolar? Arrisco-me
nesse desaio pensando com e a partir de uma situação vivida:

Março de 2006

Observar a crianças nesse início de ano e perceber as


relações entre elas é bem interessante. [...] B. chora à
toa. Tudo é grande para ele. Hoje veio chorando, nem
conseguia falar. Perguntei o que foi. Um colega ha-
via empurrado, se desentendido na disputa por um
brinquedo. Coisa de criança, mas que necessita da
nossa intervenção. Mas, a partir do seu relato, percebi
que minha intervenção ia além. Quando perguntei ao
B. quem tinha feito o que ele me relatava, soluçan-
do ele me respondeu apontando: “aquele preto ali!”
Referia-se ao E. A cara de surpresa/espanto/não sei
bem o que do E., não sei se foi pelo fato de ser relat-

66 Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora ad-


junta do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – Cap/UERJ. Pesquisadora do
GPFORMADI, desenvolvendo pesquisas relacionadas a formação de professores, cultura e di-
ferença na produção curricular. Coordenadora do curso de extensão “Educação, currículo e
cultura: os anos iniciais do ensino fundamental”.

181
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

ado à professora o que ele tinha feito ou de ele ser o


preto apontado.

(Diário de Campo de uma turma de alfabetização do


ano letivo de 2006)

O que podemos depreender desse fragmento? Como en-


caminhar essa questão no dia-a-dia da escola? Tratar o tema como
representatividade da pluralidade hoje presente na escola, como
diversidade e heterogeneidade, implica uma presença ambígua,
que, na verdade, gera apagamento e não diálogo. A diversidade in-
cita a tolerância com o outro e não o enfrentamento da diferença,
no diálogo que negocia com diferentes posições sem que se possa
homogeneizá-las.
Scliar (2002) fala das relações de alteridade produzidas no
encontro com o outro, questionando até se essas são produzidas
como alteridade ou mesmidade. Quem é o outro preto ali? Sujeito
a ser respeitado, meu outro. Outro em diálogo ou silenciado pelo
respeito aparente? Como negociar com a diferença; trazê-la como
rasura na prática cotidiana?
O diálogo com autores pós-coloniais, como Bhabha (2001)
e Hall (2003), possibilita a discussão da diferença e cultura como
prática discursiva. Bhabha, em suas análises, dedica especial aten-
ção à discussão sobre o que considera como principal estratégia do
discurso colonial: a produção de estereótipos. Diz que o estereótipo
ixa uma identidade a ser reconhecida, marca distintiva e que se dá
de forma discursiva.
As teorizações pós-coloniais nos ajudam a interpelar a
questão da presença do outro na escola, fornecendo subsídios para
a compreensão dos esquemas desenvolvidos na fabricação da dife-
rença como inferioridade ou diversidade, principalmente explici-
tando que se trata da construção de uma narrativa que imbrica rela-
ções de poder/saber.
Sendo assim, a discussão sobre a cultura e identidade
tornou-se imprescindível para a sustentar as argumentações feitas
em favor da defesa de práticas multi/interculturais no cotidiano es-
colar. Penso que organizá-la como tal passa pela discussão e prob-

182
OLHA AQUELE PRETO ALI!

lematização da elaboração curricular, uma vez que podemos com-


preender o currículo como prática de produção, de signiicação, de
elaboração identitária. Que currículo então?
Nesse estudo dedico-me a organizar um escopo teórico
de sustentação do trabalho de produção curricular, inicialmente
discutindo a produção do currículo como produção cultural, in-
terrogando o que se constrói como prática de enunciação desses
sujeitos no e pelo currículo, argumentando acerca da produção do
currículo como entrelugar, na fronteira da discussão da diferença
cultural de forma a potencializar uma prática de fato dialógica.

Cultura e identidade como prática discursiva

Entendendo a enunciação como sendo mais que a fala


de alguém, mas como espaço de elaboração de sentidos que se
dá em meio às relações estabelecidas entre os sujeitos, podemos
inferir que a cultura é uma questão de enunciação, pois estamos
tratando da prática de signiicações. As diferentes ações cotidianas
que são desenvolvidas por sujeitos e têm signiicados partilhados
por grupos coniguram-se como relações culturais. As signiicações
construídas são produzidas no âmbito da cultura e é nesse terreno
que operam. A cultura como enunciação é a consideração de que
os sujeitos e os signiicados das práticas são elaborados na medida
em que são mencionados, posicionados e representados discursi-
vamente. Conceber a cultura como enunciação é abalar a concep-
ção do cultural como tradição, sistema estável, modelo, mas o de-
sestabiliza por expor que o ato da enunciação é atravessado pela
diferença no processo da linguagem, diferença que é fundamental
para a produção de sentidos. Assim, os signiicados culturais não
são unitários e homogêneos. A aproximação da cultura às questões
de linguagem revela operações que se dão na elaboração de signii-
cados e relações. Bhabha (2001) explica que a produção de sentidos
não se dá como simples ato de comunicação entre eu e outro, mas
esses lugares de enunciação são mobilizados na passagem por um
outro espaço que é o das condições da linguagem e da enunciação
enquanto ação performática e/ou institucional que pode ser incon-
sciente. Essa dinâmica revela uma issura, ambivalência que revela

183
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

que não há um signiicado nem contexto mimético que subjazem à


enunciação. Assim,

[...] é apenas quando compreendemos que todas as


airmações e sistemas culturais são construídos nesse
espaço contraditório e ambivalente da enunciação
que começamos a compreender porque as reivin-
dicações hierárquicas de originalidade ou “pureza”
inerentes às culturas são insustentáveis, mesmo antes
de recorrermos a instâncias históricas empíricas que
demonstram seu hibridismo (p. 67).

Dessa forma, a cultura como enunciação é o reconheci-


mento do espaço da enunciação como cisão, o que articula a dis-
cussão da produção da cultura aos conceitos de diálogo e da res-
signiicação/reapropriação/reconstrução de sentidos elaborados
pelos sujeitos. Pondo a discussão no campo da linguagem parto
da premissa que a noção de linguagem está vinculada à noção do
sujeito. O sujeito modiica a linguagem e é modiicado pela lingua-
gem; é nas conversas mais informais ou nas relexões mais profun-
das, é no aparente monólogo, mas que se faz com o exterior, com
um outro, ainda que idealizado, que nos tornamos sujeitos relexi-
vos. Assim, é na relação intersubjetiva que se constitui a linguagem
– na qual também nos constituímos. O outro é fundamental para
a construção do conhecimento, inclusive pelo conhecimento de si
próprio. As relações de alteridade estabelecidas são fundamentais à
medida que a palavra dita pode ter uma réplica produzindo tensões
que exigem negociação, confronto, consenso, diálogo...
O entendimento do signo como arena de confronto em
torno do signiicado pressupõe negociação, articulação na consti-
tuição do que Bakthin chama de auditório social. Assim, sugere o
caráter dinâmico e dialógico da linguagem como espaço formativo
onde não há “nem um nem outro”, mas um espaço dialógico de de-
sarticulação/articulação e não de substituição da linguagem. O em-
bate gerado e as negociações enfrentadas são processos produtivos
que reconstroem continuamente a linguagem e os sujeitos.
Assim, ica patente que a construção de signiicados pelos
sujeitos se dá na cultura, a partir das redes discursivas em que nos

184
OLHA AQUELE PRETO ALI!

envolvemos. Podemos compreender as redes discursivas como re-


des conceituais em que diferentes discursos se entrecruzam e que,
ao serem tramados, vão signiicando nossa prática social, vão con-
stituindo os sujeitos neles envolvidos. Reside aí a importância da
compreensão das formações discursivas, pois os enunciados subje-
tivam os indivíduos, participam do processo de formação de iden-
tidades.
A construção de identidades híbridas se calca na pos-
sibilidade de diálogo entre diferentes elaborações. A dialogicid-
ade e a polifonia discutidas por Bakthin descortinam dinâmicas
de construção da identidade, entendendo o papel do discurso na
constituição de identidades e relações sociais, o que afeta a forma
como os sujeitos se identiicam e se posicionam em contextos soci-
ais especíicos. Quando se focaliza a construção do eu, percebe-se
a importância de a dimensão da linguagem ser considerada, uma
vez que a identidade não é dada, mas construída nas relações so-
ciais – que envolvem relações de poder que posicionam os sujeitos
– com os sistemas de conhecimento e crença. Estes afetam as per-
spectivas de ação-formação dos sujeitos, incidindo na formação de
identidades sociais, construindo discursivamente representações e
mediações que elaboram e orientam o posicionamento dos indi-
víduos.
Hall (2003), na percepção da fecundidade das ideias de
Bakthin em diálogo com os Estudos Culturais, comenta que

[...] o dialógico enfatiza os termos variáveis do antag-


onismo, a interseção de diferentes valências no ter-
reno discursivo, em vez das bifurcações da dialética.
O diálogo expõe rigorosamente a falta de garantia de
uma lógica ou lei para o jogo da signiicação, os posi-
cionamentos ininitamente variáveis dos locais de
enunciação, em contraste com as posições dadas do
antagonismo de classe concebidas de forma clássica.
A noção de articulação/desarticulação interrompe o
maniqueísmo ou a rigidez binária da lógica da luta
de classe, em sua concepção clássica, como igura ar-
quetípica da transformação (p. 235).

185
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Assim, o que se pode airmar é que a formulação identi-


tária, como produção cultural, se faz na e pela linguagem; como
Bhabha (2001) airma, a identidade se constrói na cultura como ato
de enunciação. Bakthin (2004) explica o que seria enunciação: como
ato de fala (verbal ou não) se coloca na moldura de que

[...] a verdadeira substância da língua não é consti-


tuída por um sistema abstrato de formas lingüísticas
nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo
ato psicoisiológico de sua produção, mas pelo fenô-
meno social da interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações. A interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua (p.
123).

E ressalta:

Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela


é determinada tanto pelo fato de que procede de al-
guém como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locu-
tor e do ouvinte. [...] A situação social mais imediata
e o meio social mais amplo determinam completa-
mente e, por assim dizer, a partir do seu próprio inte-
rior a estrutura da enunciação (p. 113).

Ao tratar dessa forma a questão, Bakthin explicita a


condição da palavra como mais que uma representação da reali-
dade exterior, como arena de luta em que se produz uma realidade
não só exterior, mas principalmente interior na medida em que é so-
bre o espaço discursivo que se constrói a rede de signiicações que
orienta a elaboração do discurso interior. Enfatizar essas relações
é focalizar o caráter construtivo da linguagem em relação à identi-
dade, que explicita as relações de poder envolvidas na demarcação
do lugar ocupado pelos indivíduos, como funcionam e os processos
de mudança em questão. No dizer de Bakthin (2004, p. 41):

a palavra penetra literalmente em todas as relações

186
OLHA AQUELE PRETO ALI!

entre os indivíduos, nas relações de colaboração, nas


de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida
cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As pa-
lavras são tecidas a partir de uma multidão de ios ide-
ológicos e servem de trama a todas as relações sociais
em todos os domínios. É, portanto, claro que a pala-
vra será sempre o indicador mais sensível de todas as
transformações sociais, mesmo aquelas que apenas
despontam, que ainda não tomaram forma, que ai-
nda não abriram caminho para sistemas ideológicos
estruturados e bem formados. [...] A palavra é capaz
de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais
efêmeras das mudanças sociais.

Referindo-se à elaboração da consciência, o autor airma


que a expressão externa, os diferentes enunciados têm uma ação
reversiva, agindo sobre a atividade mental que busca elementos e
formas de adaptação que façam com que os enunciados próprios
do sujeito sejam possíveis no enquadramento da moldura social,
dos enunciados coletivos. Assim, se através da palavra, deino-me
em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à cole-
tividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e
os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra
apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum
do locutor e interlocutor (p. 113).
O ato de enunciação estabelece o espaço discursivo que
não é nem de um nem de outro; é uma zona fronteiriça de nego-
ciação.
A enunciação só pertence ao sujeito individual como ato
isiológico; Bakthin (2004) airma que a materialização da palavra
como signo torna a questão da propriedade complexa já que a es-
trutura da enunciação se enraíza no social. Dessa forma, vislumbra-
se que as enunciações são artefatos culturais, produzidas cultural-
mente e que reciprocamente produzem cultura.
Pensar a cultura como enunciação esclarece a dinâmica de
produção dos discursos identitários. Com base em Bakthin, é pos-
sível airmar que a enunciação organiza a consciência individual,
sendo produzida na tensão da atividade mental coletiva e atividade
mental para si.

187
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Entendendo a identidade como projeção – ponte que se


lança entre eu e o outro, ica a interrogação de como discutir com os
termos dessa proposição. Eu e outro dessa forma estabelecidos sug-
erem a polarização de forças. O próprio Bakthin argumenta sobre
isso ao colocar a interação socioverbal como realidade fundamen-
tal da linguagem. Não se trata de trabalhar com posições abstratas
nem com conlitos dicotômicos; Bakhtin busca a unidade dos con-
trários pela síntese dialética: o dialogismo.
Bhabha amplia a discussão quando trata da questão da
diferença. Impossível retirar a ponte e fundar uma síntese. O diálogo
proposto por Bakthin se põe, a partir de Bhabha, como o tempo e
o lugar da negociação, da tradução, postas no campo da diferença.
A problematização que o autor traz apresenta o diálogo compreen-
dendo o enfrentamento necessário que exige pensar a negociação
como diálogo inacabado, em que os termos produzidos não se limi-
tam à criação de um sentido único a ser partilhado. Se assim fosse,
não se consideraria a enunciação da cultura na perspectiva da dife-
rença e sim da diversidade, “onde o outro texto continua sempre
sendo o horizonte exegético da diferença, nunca o agente ativo da
articulação” (Bhabha, 2001, p. 59).
Evidenciar a diferença como tal sem buscar a redução de
um sistema de referências comuns signiica a assunção de uma out-
ra temporalidade para enunciação. Apropriando-me da imagem da
ponte lançada por Bakthin, se a diferença se apresenta no ato da
enunciação cultural, no estabelecimento de fronteiras, ou nas mar-
gens da ponte, onde se colocar? Se para Bakthin superar o binaris-
mo se dá pelo diálogo numa síntese que retira a ponte e aproxima
as margens, Bhabha sugere pensar sobre o que a ponte se coloca.
Que fosso é esse que ela permite atravessar? O lugar da enunciação
“atravessa a ponte” é atravessado pela diferença das/nas fronteiras
que cria um espaço de ambivalência dos signiicados, um terceiro
espaço de enunciação que desaia a noção de identidade absoluta.
Nele o “nem um nem outro” abre espaço para formulações híbridas
produzidas no diálogo com as diferenças.
Bhabha (2001, p. 67 e 68) diz:

É o Terceiro espaço, que embora em si irrepresentável,


constitui as condições discursivas da enunciação que
garantem que o signiicado e os símbolos da cultura

188
OLHA AQUELE PRETO ALI!

não tenham unidade ou ixidez primordial e que até


os mesmos signos possam ser apropriados, traduzi-
dos, re-historicizados e lidos de outro modo.

O desaio de compreender e se comprometer com essa


formulação traz o entendimento das discussões de identidade a
partir da defesa desta como produção híbrida, costurada no terceiro
espaço de enunciação. Entendendo a identidade como enunciação,
como posicionamento discursivo do indivíduo é possível entender
como essa elaboração territorializa os sujeitos, demarcando seu
lugar na enunciação da cultura, construindo-o.

O discurso mesmo é um operador que constitui ou


modiica tanto o sujeito quanto o objeto da enuncia-
ção, neste caso, o que conta como experiência de si. É
inserindo-se no discurso, aprendendo as regras de sua
gramática, de seu vocabulário e de sua sintaxe, partic-
ipando dessas práticas de descrição e redescrição de
si mesma, que a pessoa se constitui e transforma sua
subjetividade (Larrosa, 2000, p. 68).

Assim, como incita Bhabha (2001, p. 81), “o que se inter-


roga não é simplesmente a imagem da pessoa, mas o lugar discur-
sivo e disciplinar de onde as questões de identidade são estratégica
e institucionalmente colocadas”.
Essas questões iluminam a interrogação que faço acerca
da identidade, sugerindo que a compreensão da elaboração do dis-
curso identitário docente precisa ser compreendido na rasura na
cultura como enunciação. Sua explicitação está além da combina-
ção de saberes especializados e pedagógicos, mas articulam múlti-
plas dimensões que carecem aprofundamento. Nesse estudo, ao
airmar que a construção identitária perpassa se constrói no e pelo
currículo, é preciso buscar as conexões entre identidade e currículo,
localizando-os no terreno da cultura.
Num sentido amplo, o currículo é entendido como tudo
aquilo que se desenvolve no cotidiano escolar e o compõe, envol-
vendo alunos, professores e outros atores envolvidos nesse processo.

189
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Contudo, para além dessa visão generalista, é preciso compreender


que concepção de currículo está em pauta, pois esta permeia e in-
dica possíveis caminhos investigativos.
A ideia de que currículo é tudo que envolve e é envolvido
no cotidiano escolar reduz o currículo ao conjunto de atividades
que se desenvolvem dentro da escola, numa concepção que (se é
que esta é possível de fato) sugere uma dicotomia entre a escola e o
contexto em que ela se insere.
Entendido dessa forma, reduzido às disposições esco-
lares internas, o currículo desvincula-se do seu contexto social. Tal
visão perpassa a história da educação desde a Antiguidade Clássica,
quando a educação diferenciada entre as camadas da população
distanciava-as das questões cotidianas, tendo seu ápice na Idade
Média, nas escolas dos bispados e mosteiros, onde a educação se
pautava em conhecimentos quase que ensimesmados (Hébrad,
1990). No entanto, o reconhecimento de que o currículo é atraves-
sado por questões de ordem sociocultural e que se constitui a partir
do enfrentamento de diferentes visões de mundo não permite por
si só um alargamento dos estudos curriculares. Onde se originam
esses conlitos? Que conlitos são esses?
Assume-se então o currículo como construção sociocul-
tural, um fazer-se que não se dá de forma linear, homogênea e su-
postamente neutra, mas se marca pela dinâmica das relações soci-
ais em que está envolvido, relações que o atravessam, sendo este
organizado então a partir de visões de mundo privilegiadas em det-
rimento de outras, o que aponta para o currículo como campo de
lutas que não podem deixar de ser consideradas.
Diante de tais questionamentos, percebe-se que chegar
a uma deinição precisa do que é currículo trata-se de uma tarefa
difícil tendo em vista a ambiguidade e elasticidade que permite que
se abriguem sob o currículo questões de naturezas diversas. Em ver-
dade, a diiculdade de deinir o currículo relaciona-se com o fato
de a escola cumprir diferentes ins educativos que se traduzem em
projetos educacionais-currículos diversos. Sacristán (1998, p. 127)
ressalta:

190
OLHA AQUELE PRETO ALI!

A evolução do tratamento dos problemas curricula-


res conduz ao dilatamento dos signiicados que com-
preende para moldar o que se pretende na educação
(projeto), como organizá-lo dentro da escola (orga-
nização, desenvolvimento), mas também para rele-
tir melhor os fenômenos curriculares tal como ocor-
rem realmente no ensino (prática) que se realiza nas
condições concretas.

Defende então que essas múltiplas faces da questão fa-


zem com que o pensamento curricular que tem se desenvolvido
para ser entendido deva trazer à discussão os contextos nos quais
se elabora, que questões são priorizadas, o que faz com que o cur-
rículo seja representado diferentemente à luz de diferentes cor-
rentes de pensamento. O autor apresenta quatro vertentes para
entender a realidade que se organizam em torno de interrogações
que atribuem signiicado ao currículo: o que ensinar, o que se de-
seja ensinar e realmente o que se ensina, abrangência das estraté-
gias e métodos de ensino, como o currículo se processa – realidade
estanque ou processo em desenvolvimento. Da escolha feita diante
de tais interrogações dependerá a compreensão e elaboração da
realidade. Sendo assim, que diretriz assumir para a análise curricu-
lar? Sacristán (1998) alerta: “Para entender o currículo real é preciso
esclarecer os âmbitos práticos em que é elaborado e desenvolvido,
pois do contrário, estaríamos falando de um objeto reiicado à mar-
gem da realidade” (p. 129).
Trata-se de discutir o que é considerado relevante dentro
do currículo. As teorias curriculares buscam modelos explicativos
tomando como objetos de estudo os problemas que se fazem pre-
sentes no campo. As teorias se diferenciam pelo interesse que prior-
izam em sua análise.
O currículo pode ser entendido como soma de exigências
escolares, numa clara inluência de uma tradição acadêmica que
valoriza sobretudo a seleção dos conteúdos a serem ensinados,
uma seleção da cultura que deve ser transmitida na escola.
Pode-se também ver o currículo tendo como base às ex-
periências dos alunos num enfoque que privilegia a dimensão psi-
copedagógica dos processos em relevância. Numa outra direção, o

191
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

currículo é compreendido como questão de gestão administrativa,


em que se sobrepõem princípios de eicácia, controle e racionali-
dade, tratando o currículo como objeto a ser manipulado. Fruto das
contribuições críticas, num esquema que pretende o diálogo entre
diferentes contextos, o currículo pode ser compreendido a partir de
uma concepção dialética entre teoria-prática.
A partir das diferentes teorizações curriculares, ica pat-
ente a diiculdade de se buscar uma deinição única de currículo.
As diferentes construções se estruturam a partir de diferentes mar-
cos conceituais, concretizam diversos signiicados. Circulando entre
as diferentes conceituações, busco aportes numa perspectiva que
assume um enfoque processual em que o currículo é concebido
como invenção, artefato cultural, fruto de escolhas que desvelam
os conlitos e consensos que operam diversos mecanismos em seu
desenvolvimento. Assim, cabe pôr em evidência os contextos que
condicionam essa construção e através dela se expressam e gan-
ham signiicado.
Ainda que sob pena de uma conceitualização complexa,
ampla, imprecisa, a compreensão do currículo sob um enfoque pro-
cessual evita cortes abruptos que dicotomizam o que foi previsto
nos documentos e a ação cotidiana, dando visibilidade a um pro-
cesso de continuidade-descontinuidade entre intenções-realiza-
ções. Vê-se o currículo como território de interações entre contextos
diversos, num intrincado processo social que entrecruza contexto
social, econômico, político e cultural que dão signiicado e concret-
izam o currículo.
A compreensão do currículo real exige transcender o que
está manifesto nos documentos, nos guias curriculares tendo em
vista que o currículo prescrito expressa desejos e intenções que não
necessariamente retratam a realidade. A articulação com a prática
é o desaio do currículo: concretizar valores eleitos como orienta-
dores da prática. A assunção de uma perspectiva processual incide
justamente nesse ponto permitindo o questionamento e investiga-
ção desse processo: como as ideias e valores selecionados se trans-
formam em práticas.
Para analisar o processo, desvelam-se como pontos de
apoio diferentes instâncias que, se isoladamente não são o cur-

192
OLHA AQUELE PRETO ALI!

rículo real quando postas em relação, tendo em vista que não se


realizam de forma independente, expressam de diferentes formas
o currículo e ao se entrecruzarem o constituem e inferem a ele sig-
niicação. Trata-se de vislumbrar os documentos oiciais, livros de
texto, planos que as escolas fazem, tarefas de aprendizagem que
constituem o chamado currículo em ação e as avaliações que o val-
orizam. A dimensão processual do currículo esbarra e se contrapõe
às concepções que veem o currículo sob um ponto de vista técnico
e mecanicista, trabalho de especialista, que implica também uma
visão burocratizada das organizações escolares que caracterizariam
o processo educacional como sendo permeado de relações vertical-
izadas em que o professor é mero executor.
Nesse horizonte de debate, analisar o currículo posto dis-
cutindo o que permeia sua organização necessariamente não dá
conta de compreender o processo pelo qual determinadas visões,
conceitos e pressupostos predominam e não outros, girando sem-
pre em torno de uma força já vitoriosa e que não cansa de vencer à
medida que não se possibilita que o vencido seja discutido, trazido
à tona para o alargamento desses questionamentos.
Assim, coloca-se como desaio “desnaturalizar e histori-
cizar o currículo existente”; este é “um passo importante na tarefa
política de estabelecer objetivos alternativos e arranjos curriculares
alternativos que sejam transgressivos da ordem curricular existente”
(Silva, 1996, p. 93).
Como prática produtiva e de signiicação no currículo
circulam poderes/saberes que, mediados, articulados e negocia-
dos com/nas esferas e produções socioculturais dos grupos que os
praticam, objetiicam, narram, deinem, produzem e signiicam o
eu e/ou o outro, estabelecem o lugar e o não-lugar ocupado e a
ocupar, fazendo parte do processo de fabricação das identidades.
Costa (1999, p. 51) airma que “o currículo escolar é um lugar de cir-
culação das narrativas, mas, sobretudo, é um lugar privilegiado dos
processos de subjetivação, da socialização dirigida controlada. É em
grande parte à escola que tem sido atribuída a competência de con-
cretizar um projeto de indivíduo para um projeto de sociedade”.
Dessa forma, a autora apresenta o currículo como ter-
ritório de embate em torno da fabricação/consolidação de identi-

193
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

dades, uma vez que o currículo orientado pelas relações de poder


que o atravessam se institui como espaço de representações, pois
demarca –discursivamente – lugares ocupados pelos sujeitos, num
processo de diferenciação entre o eu e o outro narrado. Assim, há
toda uma rede conceitual que sustenta os discursos e as práticas
que produzem signiicados com e pelos quais os sujeitos se iden-
tiicam e buscam ocupar posições. Nesse sentido, há um processo
pelo qual as experiências vividas são selecionadas, ressigniicadas,
informando e formando os indivíduos.
O entendimento do currículo como esfera de produção
cultural retoma e reconigura a questão já assinalada pela teoria
crítica: não é o que e como se ensina que estão em jogo, mas quais
conhecimentos são considerados válidos. Problematizar a fabrica-
ção de identidades nas produções curriculares faz com que haja
necessidade de examinar a questão acrescentando: que grupos
consideram válidos os conhecimentos? Que outros são narrados e
representados no currículo? Que embates, enfrentamentos e diálo-
gos são possíveis? Como incita Hall (1997), trata-se de inquirir sobre
as formas de regulação presentes no currículo.
O entendimento do currículo como prática cultural difere
da acepção do currículo como seleção cultural. Aceitar a ideia de
seleção de cultura e conhecimento leva à visão da cultura como
unidade estável e ixa, conjunto do qual se extraem e selecionam as
questões, os conceitos, os saberes que devem ser ensinados, trans-
mitidos, perpetuados na escola. Sem querer negar a seleção presen-
te na prática educacional, entendo-a como parte da dinâmica cul-
tural, da cultura enquanto prática vivida, ação seletiva que integra o
processo que nega ou dá visibilidade ao que se produz.
Isso signiica tomar distância da concepção de que há o
mundo da cultura apresentado pela escola, sendo assim dois mun-
dos separados, conectados pela via da seleção e transmissão, mas
entender que quando se faz escola, educação, se faz cultura. Na
escola se pratica cultura, criam-se artefatos culturais, acepção que
se assenta na idéia de cultura não como conjunto harmônico de
produções humanas transmitidas e preservadas ao longo das gera-
ções, mas cultura no plural, numa perspectiva da pluralidade como
diferença e esta como força criadora. Aí talvez residam a diiculdade
e o desaio da assunção dessa perspectiva que explicita a complexi-
dade do conceito de cultura e sua conexão com o currículo.

194
OLHA AQUELE PRETO ALI!

As leituras de Bhabha (2001), Hall (1997, 2003) e outros


autores que têm centrado seus estudos no campo da cultura per-
mitem interpelar o currículo como artefato cultural, produtor de iden-
tidades; no caso deste estudo, focando as identidades docentes, pode
propiciar a problematização desse processo. Assumir a cultura como
plural implica um currículo que dirige suas ações para “as dinâmicas
das diferenças e as experiências inquietantes da alteridade” (Corazza,
2002, p. 106).
A articulação desses estudos com uma análise da lingua-
gem permite a compreensão do movimento em que se dá a formu-
lação de identidades, num amálgama de signiicações que são ne-
gociadas-traduzidas-dialogadas. A identidade pode ser vista como
forma de enunciação do sujeito e que se dá num espaço de ambiv-
alência de discursos e práticas.
Penso o currículo como prática discursiva no qual há ar-
ticulação/produção de signiicados, ou seja, o currículo é espaço de
elaboração de um discurso que orienta a prática. Ainda que esse
discurso não seja construído de forma plena e acabada, ele institui
os sentidos atribuídos às ações, fomenta e torna possíveis desejos
e projeções de trabalho. Como discurso, elabora, concorre, con-
strange, amplia os conceitos-chave em torno dos quais gravita a
produção na educação.
O currículo, assim, é o movimento da linguagem, são pala-
vras e suas réplicas construindo sujeitos e práticas. A linguagem não
é algo pronto, dado e acabado; “os sujeitos não adquirem sua língua
materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar
da consciência” (Bakhtin, 2004, p. 108). Fazendo uma analogia com
o currículo, este também não nasce pronto e acabado, traz em si a
dimensão do fazer-se continuamente a partir da ação dos múltiplos
agentes que nele se articulam, exige diálogo e negociação. Assim,
a elaboração curricular pode ser entendida como campo de con-
strução de linguagem.
Retomando Bakthin, que diz que os enunciados que pro-
nunciamos não são só nossos, mas construídos nas redes coletivas
de signiicação, na cultura, é preciso entender que o currículo como
cultura, como produção ambígua, produz formas de ser/saber/fazer
que não se limitam à reprodução de sistemas de signos já dados.

195
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

O currículo é o campo de discussão de produções cul-


turais de diferentes naturezas. A produção do currículo traz em si
a produção de discursos e concepções de mundo que articulam
tradições e saberes, reconigurando-os e recriando-os. Assim, como
espaço de diálogo e discussão, põe também em relação culturas
que são valorizadas, compreendidas de formas diferentes, produz-
indo sentidos sobre essa relação, conirmando ou questionando es-
tereótipos, grupos culturais, sujeitos e saberes. Nesse sentido, cur-
rículo não se implanta, não se aplica: se produz de forma contínua e
nessa produção tem efeitos sobre as práticas sociais.
Nas relações que se estabelecem, nas decisões curricula-
res tomadas, os sentidos que se produzem dialogam com sujeitos
implicando sua dimensão individual, sua elaboração como sujeito,
ou seja, as identidades, constituindo-se como campo de formação
identitária.
Se nos construímos na e pela linguagem e entendendo
o currículo como campo discursivo e de produção de linguagem,
a produção curricular incita a produção identitária. Entendendo a
identidade como elaboração que se dá no contexto sociocultural
em que estamos inseridos nas práticas cotidianas e que se dá prin-
cipalmente de forma relacional e intersubjetiva, o currículo como
espaço de diálogo e negociação em torno dos sentidos dados à for-
mação traz para seu desenvolvimento relações de alteridade que
balizam a formulação de identidades. A projeção de sujeitos for-
mados a partir deste ou daquele currículo elenca parâmetros para
o ser e sua atuação, delimitando suas possibilidades de diálogo,
além de determinar quem é o outro, o reverso do que se projeta.
Assim, se a identidade pode ser vista como forma de posiciona-
mento dos sujeitos frente ao mundo, remetendo ao self, é preciso
também contextualizar a identidade. O currículo como produtor de
identidade signiica também pensar o que se projeta como sujeito
a ser formado. No contexto atual, penso que discutir identidade se
dá no diálogo com alteridades, na busca pelo reconhecimento de
uma outridade que não signiica a busca pelo mesmo, mas a pos-
sibilidade da formação de um sujeito sensível que possa se colocar
no lugar do outro, que amplie sua visão de forma a compreender
as diferenças sem querer aniquilá-las, mas reconhecendo-as como
limite de discussão e exigência de enfrentamento e produção.

196
OLHA AQUELE PRETO ALI!

Por um currículo na fronteira:


entrelugar de formação

A contemporaneidade expõe a presença da diferença


como afrontamento; do combate e questionamento da homoge-
neização moderna, a diferença emerge com força desconcertante:
não mais combatida, apreciada até, impõe o desaio de como viver
com e na diferença. A reparticularização das identidades revela a
ambiguidade dos paradoxos dos tempos contemporâneos: por um
lado há o combate a um passado assimilacionista, universalista e
homogêneo; por outro os processos de globalização instituem no-
vas formas de universalização e homogeneidade. Nesse sentido, há
a emergência de novas iliações: gênero, raça, etnia, cultura, sexo
são categorias assumidas por grupos que reivindicam o reconheci-
mento de suas “particularidades”. Assim, há uma forma de reencon-
tro subjetivo que se dá na diferenciação entre esses posicionamen-
tos. A ênfase na noção de diferença é fundamental para o debate
sobre a constituição das identidades.
Trata-se de ir além de formulações “originais”, arguindo a
articulação de diferenças. Os múltiplos posicionamentos – ou ident-
idades fragmentadas – decorreriam das negociações/traduções das
diferenças, do diálogo (Bakthin, 2004) entre elas, criando espaços
intersticiais, os entrelugares, como explica Bhabha (2001)
O autor, ao destacar a concepção de tradução/negocia-
ção, o faz na perspectiva de que esta pode signiicar um outro lugar
cultural e político de enfrentamento, ao trazer a possibilidade de
articulação de elementos contraditórios, numa construção que não
é nem um nem outro, mas um híbrido. Ressalta que a contribuição
da negociação é criar e estabelecer o entrelugar.
Numa crítica ácida à questão da diferença relacionando-a
à tradução, Bhabha sugere que essa tradução seja vista como outra
forma de argumentação

A cultura só emerge como um problema ou uma prob-


lemática no ponto em que há uma perda de signii-
cado na contestação e articulação da vida cotidiana
entre classes, gêneros, raças, nações. Todavia, a reali-

197
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

dade do limite ou do texto-limite da cultura é rara-


mente teorizada fora das bem-intencionadas polêmi-
cas moralistas contra o preconceito e o estereótipo ou
da asserção generalizadora do racismo individual ou
institucional – isso descreve o efeito e não a estrutura
do problema. A necessidade de pensar o limite da cul-
tura como um problema da enunciação da diferença
cultural é rejeitado (p. 63).

Há uma ambivalência em que o sentido do enunciado


nunca é transparente. O autor diz que “o pacto da interpretação
nunca é simplesmente um ato de comunicação entre eu e o você
designados no enunciado. A produção de sentido requer que esses
dois lugares sejam mobilizados na passagem por um terceiro espa-
ço” (p. 66). Esse espaço seria o entrelugar, que, como temporalidade
disjuntiva, opera a partir de processos de negociação/tradução. A
compreensão desse processo possibilita o entendimento da iden-
tidade como híbrida, tornando impensáveis a pureza, a originali-
dade e os sectarismos. Trata-se da diferença como temporalidade
descontínua, intertextual.
Essas formulações em torno da identidade se dão enraiza-
das no terreno da cultura, uma vez que “ela está perpassada por to-
das as práticas sociais e constitui a soma dos inter-relacionamentos
das mesmas” (Hall, 2003, p. 136).
Os inter-relacionamentos incitam negociações que provo-
cam rupturas, criando campos de signiicação na articulação-desar-
ticulação-rearticulação de enunciados que evidenciam e deslocam
a diferença. É nesse processo que a identidade se torna movediça,
na possibilidade do entrelugar identitário.
A argumentação em defesa da identidade assim entendi-
da se assenta na perspectiva de compreensão da identidade como
construção dialógica. Vista como luida e não ixa, a identidade per-
mite/exige a experiência da alteridade.
Pensar a identidade no entrelugar é posicioná-la na fron-
teira, rompendo com a polarização sem, contudo, incorrer no apaga-
mento das diferenças, o que é feito numa concepção de sujeito uni-
versal. Trata-se de, na fronteira, buscar criar o espaço de negociação,
de interação entre elementos ditos “antagônicos”.

198
OLHA AQUELE PRETO ALI!

O que problematizo é exatamente esse ponto: mais que


uma posição, defendo a identidade como performatividade que
permite o ir-e-vir, o encontro/desencontro, a diferença como pre-
sença. Transformar a diferença de negatividade a ser superada em
positividade problemática, mas imprescindível implica a formação
de sujeitos que reconheçam o outro não como alguém a tolerar,
mas outro no diálogo, no confronto, em relações de/com/na dife-
rença-alteridade.
Essa perspectiva orienta as análises sobre a produção cur-
ricular que tenho desenvolvido. Num currículo apresentado como
posto a favor da construção de uma educação democrática, a favor
das classes populares, há que se interrogar como e quais as rela-
ções se estabelecem entre currículo e identidade – o que se constrói
como prática de enunciação desses sujeitos no e pelo currículo?

Referências Bibliográicas

BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,


1992.
______. Marxismo e ilosoia da linguagem. 11 ed. São Paulo: Editora Hu-
citec, 2004.
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200
DIÁLOGOS NA
ALFABETIZAÇÃO:
A CONTRIBUIÇÃO
DA LEITURA DO MUNDO
Jaqueline Luzia da Silva

Diálogos na alfabetização

Temos muito a aprender com os alunos a quem en-


sinamos. Para que isso se dê, é preciso transcender
o tradicionalismo monótono, arrogante e elitista,
segundo o qual o professor tudo sabe e o aluno não
sabe nada.
Paulo Freire

O presente texto tem origem numa pesquisa68 realizada


com alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental de uma es-
cola pública municipal da Zona Norte do Rio de Janeiro. A pesquisa,
de natureza qualitativa, sobre a relação entre a leitura do mundo
das crianças e a leitura da palavra, teve como objetivo geral veriicar
como a alfabetização pode sofrer inluências da vida fora da escola,
na qual estão inseridos os educandos, e quais as inluências exerci-
das pelo processo de alfabetização no cotidiano dos mesmos.
Aqui, trabalharemos com questões relevantes levantadas
na pesquisa de campo realizada com quatro crianças, da classe de

67 Mestre em Educação pela UFRJ e Doutoranda em Educação pela PUC-Rio. Professora da


Rede Municipal do Rio de Janeiro.
68 Neste capítulo, será trabalhada parte da pesquisa intitulada “Alfabetização e Letramento:
leitura do mundo – leitura da palavra – releitura do mundo” (SILVA, 2005).

201
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

progressão69 e das turmas de 3ª série, sendo dois meninos, de nove


e 12 anos, e duas meninas, de nove e dez anos70.
Os diálogos foram promovidos através de dinâmicas re-
alizadas no momento da aula, numa outra sala, com a permissão
das professoras, durante cerca de uma hora e meia cada uma. Nessa
atividade, foi proporcionado um momento de conversa informal
entre a pesquisadora e as crianças envolvidas na pesquisa (essas
conversas foram gravadas e posteriormente, transcritas). Foi pos-
sível perceber como elas interagem e como se expressam em seus
próprios termos. Pretendeu-se recuperar sempre, em um novo tex-
to, a palavra das crianças, daí a importância das citações, que foram
utilizadas como um mosaico de ideias cuja intenção foi explicitar
o movimento da relação leitura do mundo/leitura da palavra que
permeou e orientou a pesquisa.

Nessa perspectiva, a criança deixa de ser um objeto a


ser conhecido, reconquistando seu lugar de sujeito e
autora no mundo em que se encontra estabelecida.
Sendo sujeito, a criança não pode permanecer sem
voz, e é no diálogo com o outro que ela mostra a in-
dissociabilidade entre a forma e o conteúdo da sua
existência ativa no mundo (Jobim e Souza, 1994, p.
24).

A escolha das dinâmicas teve o objetivo de perceber a in-


teração entre as crianças, além de sua própria fala sobre suas per-
spectivas e assuntos do cotidiano dentro e fora da escola. Optou-se
por essa forma de coleta de dados, além das entrevistas e das ob-
servações, porque houve a necessidade de se proporcionar um mo-
mento para que houvesse o intercâmbio de ideias, concepções, ex-
posição de suas leituras de mundo e, consequentemente, relexão
a partir do diálogo com as outras crianças e/ou a pesquisadora. Tre-
69 A Classe de Progressão consistia numa turma especial para a qual eram enviados, até o
ano de 2006 (na Rede Municipal do Rio de Janeiro), os alunos que, ao inal do terceiro ano do
primeiro Ciclo de Formação (equivalente à segunda série no ensino seriado), não conseguiam
alcançar a alfabetização necessária para serem aprovados e promovidos para a terceira série
ou que ingressavam na escola com nove anos ou mais.
70 Os nomes verdadeiros das crianças foram substituídos por nomes ictícios, para que fos-
sem preservados o anonimato dos pesquisados e sua integridade moral. No trabalho, foram
apresentados como Aline, Lucas, Pedro e Júlia.

202
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

chos das falas presentes nas dinâmicas permeiam o presente texto,


com o intuito de que seja possível perceber o discurso dos sujeitos
da pesquisa.

É por meio da linguagem que a criança constrói a


representação da realidade na qual está inserida. Ag-
indo, ela é capaz de transformar a realidade, mas, ao
mesmo tempo, é também transformada por esse seu
modo de agir no mundo. Sua participação na dialética
da subordinação e do controle deve ser entendida a
partir do papel que ela assume na recriação de sua
realidade histórica por meio do uso que faz da lingua-
gem nas interações sociais (Jobim e Souza, 1994, p.
24).

Entendendo a alfabetização

A relação entre a leitura do mundo e a leitura da palavra,


levantada como ponto de partida para o trabalho de pesquisa, se
remete ao lugar da prática, o lugar da sala de aula, o lugar dos pro-
fessores. O trabalho com a alfabetização revela o quanto a realidade
social da qual os alunos fazem parte interfere no seu processo de
aprendizagem. Pensamos ser impossível, como educadores, não
darmos visibilidade, ou ignorarmos a realidade social, a história de
vida dos educandos.
Assim, a alfabetização deve ser vista como um processo,
não como uma prática mecânica de decodiicação, com início e im
previstos. Ela é uma tarefa qualiicadora, que permite aos sujeitos
apropriarem-se devidamente do sistema, para fazer o uso correto
no meio social.
Por isso, Magda Soares (2003a, p. 20) deixa claro que “não
basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso
do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de
escrita que a sociedade faz continuamente”. Nestes termos, tratare-
mos aqui de uma complementação entre as duas concepções: a de
alfabetização e a de letramento. A pesquisa tomou por base a con-

203
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

cepção de alfabetização criada por Paulo Freire, que se relaciona di-


retamente à discussão de letramento trazida a nossa realidade.
É a própria Magda Soares quem airma ser Paulo Freire
aquele que põe em prática uma alfabetização voltada para o letra-
mento, pois ele sempre esteve posicionado contra a distância entre
as lições escolares e a experiência existencial do alfabetizando, que
empilha tijolos e mora em favela. Airma também que Freire, quando
cria sua concepção de alfabetização, “transforma fundamentalmente
o material com que se alfabetiza, o objetivo com que se alfabetiza,
as relações sociais em que se alfabetiza – enim: o método com que
se alfabetiza” (Soares, 2003b, p. 120). Ângela Kleiman (2003) reitera
essa airmação, quando diz que a alfabetização vista por Freire é
aquela capaz de levar o analfabeto a organizar relexivamente seu
pensamento, desenvolver a consciência crítica, introduzi-lo num
processo real de democratização da cultura e de libertação. Trata-
mos, enim, da alfabetização enquanto um processo, cujo objetivo
é a formação do sujeito letrado.
Quando se pensa nas causas do fracasso escolar na etapa
da alfabetização, os questionamentos geralmente não são respon-
didos, ou ainda são estigmatizados. O que é necessário veriicar é o
que não está nas regras e quais as exceções quando se trata da in-
luência do meio em que vive o educando naquilo que é trabalhado
em sala de aula.
A via de regra se constitui na seguinte argumentação: se o
indivíduo vive em um ambiente propício ao aprendizado da leitura
e da escrita, rodeado de livros, pessoas alfabetizadas, sem deiciên-
cias biológicas ou psicológicas, em um contexto social favorável, al-
cançará sua alfabetização muito mais rápida do que outro que não
tem os suportes necessários ao processo alfabetizador.
O que se constatou na pesquisa foram as exceções a essa
regra. Nem todos os alunos que possuem os instrumentos para o
processo alcançam-no com sucesso. Por outro lado, alguns, não pos-
suindo tal suporte, conseguem alfabetizar-se. É o que a pesquisa de
Lahire, sobre o sucesso escolar nos meios populares, traz como con-
tribuição. Ele coloca a importância de se levar em consideração o
papel que a criança irá dar ao texto escrito dentro do espaço escolar,
visto que nem sempre as experiências que as crianças têm em casa

204
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

são vividas positivamente e estão de acordo com as modalidades


de socialização escolar do texto escrito:

[...] famílias não totalmente “desprovidas de recursos”,


sobretudo do ponto de vista do capital escolar, pos-
suem ilhos com enormes diiculdades escolares, ao
passo que outras, cujas características objetivas le-
variam a pensar que a escolaridade dos ilhos pode-
ria ser custosa, possuem crianças com boa e mesmo
muito boa situação escolar (Lahire, 1997, p. 11 e 12).

É na teoria freireana que percebemos a importância de


desmistiicar a classiicação prévia dos alunos que chegam às es-
colas. É o exercício da compreensão da leitura de mundo do edu-
cando e do papel da escola enquanto instrumento para a releitura
do mundo, através da leitura da palavra.
Por isso, o presente estudo é cíclico e propõe a leitura do
mundo – leitura da palavra – releitura do mundo. O trabalho visou
perceber as inluências do meio em que os educandos vivem na
aquisição da leitura e escrita, e como eles transformam seu meio a
partir daquilo que foi adquirido, numa constante interação entre o
que a criança traz para a sala de aula e como ela aplica seus conhe-
cimentos em seu cotidiano. Esse caminho vai muito além da apre-
ensão da língua, abrange aqueles conhecimentos práticos de vida
que auxiliam (e muitas vezes são pré-requisitos para) o processo de
alfabetização, independente do instrumental mecânico de decodi-
icação da língua.
Pretendemos aprofundar conhecimentos, partindo da
realidade em que os professores se encontram: a sala de aula e as
relações que estabelecem com os alunos, bem como as que eles
estabelecem entre si e com o meio em que vivem. As relações foram
observadas continuamente, na medida em que estavam intimam-
ente ligadas com o cotidiano do espaço escolar.
Os diálogos com as crianças envolvidas na pesquisa sa-
lientam, em muitos momentos, uma crítica à escola por parte delas.
Em outros momentos, as crianças mostram o quanto já sabem, o
que aprenderam fora da escola e dão pistas para o trabalho ped-

205
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

agógico. Vejamos, como exemplo, o diálogo abaixo, sobre o uso do


computador:

[Aline] – Aqui na escola deveria ter um curso de informática.


Disseram que ia ter, mas até agora nada.
[Pedro] – Sabia que eu não iz curso de informática, mas sei mexer
muito no computador?
[Pesquisadora (Pesq.)] – Como?
[Pedro] - Meu amigo mexia muito em computador e tinha um na
casa dele. Aí disse pra mim que eu tinha que aprender a mexer.
Aí eu fui jogar no Maremoto71. Não tem o Maremoto? Então eu
comecei a mexer e aprendi.
[Pesq.] – O computador é importante? Por quê?
[Júlia] – Para fazer pesquisas para a escola.
[Lucas] – Para se comunicar com outras pessoas.
[Aline] – Para nós arrumarmos um emprego. Com curso de
informática é melhor.
[Pedro] – Amanhã ou depois poderemos ter um computador.

Como Regina Leite Garcia (2004) nos apresenta (e o trecho


acima deixa claro), a instituição escolar é relacionada a uma melho-
ria nas condições de vida da população, o que resulta numa predi-
leção pela escola em detrimento dos conhecimentos trazidos pelos
estudantes. Ela atribui essa preferência ao fato das classes populares
alimentarem uma ilusão fecunda com relação à escola, pois essa in-
stituição potencializa a população para a conquista de uma cidada-
nia ativa, da autonomia e dos avanços para a democratização da
sociedade, ainda que, muitas vezes, não garanta a certeza de uma
melhoria de vida individual.
A educação escolar veio, ao longo dos anos, assumindo o
papel de base de posição social. Quanto mais o indivíduo estuda,
mais valor ele tem na sociedade. Os alunos de diferentes escolas se
separam pelo modo de aquisição de conhecimentos e pela orga-

71 Maremoto é um telecentro, onde as pessoas pagam para acessar a internet ou jogar,


situado na comunidade onde residem as crianças. Esses telecentros comunitários são comu-
mente chamados de lan houses.

206
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

nização da aprendizagem. É por isso que a instituição escolar neces-


sita tratar o educando com iguais condições de direitos e deveres
para que possa reduzir as desigualdades, eliminando mecanismos
de discriminação que diicultam o desenvolvimento da aprendiza-
gem e o processo de conscientização dos indivíduos, responsável
pela formação da autonomia intelectual para a intervenção na re-
alidade.
Numa prática pedagógica que se pretende libertadora, os
educandos são convidados a pensar. Ser consciente é uma forma
radical de ser, de homens e mulheres que refazendo o mundo que
não izeram, fazem o seu mundo, e neste fazer e refazer, se refazem,
de acordo com o que diz Paulo Freire. A alfabetização envolve a
compreensão crítica da realidade. Para que a leitura de um texto
seja completa, é preciso que venha precedida pela “leitura” do con-
texto social a que se refere.
O sujeito alfabetizado não só se reconhece como um ser
em construção, como também se reconhece enquanto criador de
sua própria história. Por isso, a história de vida desse educando é
tão importante de ser investigada, a partir de si mesmo e das outras
pessoas com quem estabelece relações.
A discussão precisa ser encarada levando-se em conta a
historicidade do processo de amadurecimento dessa concepção.
Pensar no papel da escola signiica analisar como essa instituição
foi, ao longo do tempo, sendo democratizada, ou seja, quando e
como foi ocorrendo o fenômeno da escola para todos. E como a de-
mocratização do acesso falhou com relação à democratização da
escola. Hoje, cerca de 98% das crianças brasileiras com idade entre
7 e 14 anos frequentam a escola, mas é preciso questionar a quali-
dade da aprendizagem a que estão sendo submetidas.
Magda Soares (2000) nos remete à análise da escola que
se torna, ao longo do tempo, aberta às crianças das camadas popu-
lares, mas também fortemente excludente, produzindo o fracasso
escolar destes mesmos estudantes. É preciso investigar as relações
de força materiais e simbólicas determinantes de uma sociedade
estratiicada em classes e desvendar os pressupostos ideológicos
do fracasso das camadas populares na escola, que é, na verdade,
um fracasso da escola.

207
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

Leitura do mundo e leitura da palavra

Ler o mundo signiica apreender a linguagem do mundo,


traduzindo e representando este mundo. O ponto de partida para
a construção do conhecimento do mundo é a própria localidade do
educando, ou seja, sua compreensão do mundo, nas mais variadas
dimensões de sua prática social, sua fala, sua forma de calcular, seus
saberes, enim, sua bagagem cultural.
Alfabetizar na perspectiva da leitura do mundo signiica
respeitar os saberes dos educandos, valorizando-se todas as poten-
cialidades dos indivíduos, para que efetive um caminho de desen-
volvimento de todas as pessoas, de todas as idades, em que todos
tenham acesso a informações, manifestações culturais, troca de ex-
periências, etc. A leitura de mundo começa, então, pela leitura do
lugar, do espaço existencial do acontecer humano. Parte, assim, das
ideias que o educando elaborou e que não foram ensinadas pelo
professor, mas construídas pelo aprendiz. E revela a inteligência do
mundo que vem cultural e socialmente se constituindo.
Assim, não é porque o professor não ensina algo que o
aluno necessariamente não aprende tal conteúdo. Ir à escola é ap-
enas uma das maneiras de aprender. Nada impede que a criança
aprenda com os pais, com as outras crianças, sozinha ou em relação
com os conhecimentos já adquiridos.
O aluno faz um investimento a cada nova hipótese apre-
sentada para a resolução de um problema, uma questão, um exer-
cício. Este esforço precisa ser reconhecido, porque, caso contrário,
poderá não haver mais investimento das próximas vezes. É preciso
que haja um diálogo entre o que se quer que o estudante aprenda e
o que ele pensa, uma lógica para onde se mova todo o seu esforço.
Algumas práticas escolares se apresentam contrárias à in-
tenção de valorização dos conhecimentos prévios e à relação direta
com as experiências dentro do espaço escolar. Mairce Araújo (2001,
p. 93) registra a fala de uma criança sobre a importância dos conhe-
cimentos aprendidos na escola:

Em vez de aprender a ler o gibi, aprendem a fazer de-


veres. Foi exatamente essa a resposta que ouvimos,
em nossa pesquisa, quando perguntamos à criança:

208
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

“Para que você quer aprender a ler e a escrever?”. Ela


não teve dúvidas em responder:

– Para aprender fazer dever, né?

Estabelecer elos entre os conteúdos e a vida prática sig-


niica que a escola deve possibilitar vivências com a leitura e a es-
crita que tenham relevância e signiicado para a vida da criança,
lhe permitindo reletir sobre sua realidade e compreendê-la. Desta
forma, o aprendizado da língua vai sendo conquistado num proces-
so de tentativas, aproximações, confrontos e conlitos, construindo
conhecimentos e incorporando-os a sua atividade cotidiana. “Uma
escola comprometida com as crianças das classes populares tem,
portanto, como uma de suas principais tarefas responder ao desejo
da criança de aprender, construindo para isso um ambiente desaia-
dor e signiicativo” (Araújo, 2001, p. 93).
É assim que a alfabetização conduz o sujeito ao caminho
da cidadania, enquanto processo de construção, fruto do ensino e
da aprendizagem. Muito mais do que conhecer direitos e deveres, a
cidadania deve ser compreendida enquanto processo de resgate da
identidade dos sujeitos que durante centenas de anos foram furta-
dos de suas práticas sociais. Por isso, a alfabetização e o letramen-
to, bem como toda a educação, têm um papel fundamental neste
caminho, de busca de consciência e de reconstrução da história.
Torna-se cada vez mais necessário valorizar os conheci-
mentos trazidos pelo educando até à escola. Essa valorização dos
saberes construídos fora das situações escolares é condição para
que os alunos tomem consciência do que sabem e de quanto sa-
bem. Entretanto, muitas vezes o que vemos é o contrário disto. A
escola assume práticas que excluem as informações que as crianças
possuem, como se o primeiro ano na escola fosse o início da vida
do aluno. Nessas escolas, o conhecimento não “aparece como um
processo a ser construído, como se o fato de pensar, questionar, le-
vantar hipóteses, buscar respostas só acontecesse com as crianças
depois que elas entrassem para a escola” (Araújo, 2001, p. 84).
Assim, é necessário que o currículo – conjunto de conteú-
dos, habilidades, valores selecionados pela escola para serem ofer-
ecidos aos alunos e que estão sempre articulados aos interesses da
sociedade – seja construído considerando as condições materiais

209
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

de vida das crianças, para que, em vez de imprimir a subalterniza-


ção, ajude as crianças das classes populares a entenderem que as
questões sociais (saúde, educação, saneamento, etc.) “dependem
muito mais das condições concretas que devem ser garantidas
à população por políticas sociais, do que da vontade individual”
(Araújo, 2001, p. 87).
No diálogo abaixo, as crianças demonstram o que pensam
da escola e qual a relação entre escola e conhecimento. Para elas, a
escola vai muito além do ensino dos conteúdos escolares e, ao mes-
mo tempo, se articula com o que elas aprendem em casa, na família.
É interessante perceber qual concepção de educação aparece nas
falas e qual o papel da escola na formação dos alunos.
[Pesq.] – Para “passar de ano”, vocês dependem de quem?
[Júlia] – Da nossa sabedoria.
[Pedro] – De nós mesmos. A professora passa uma prova e
depende de mim, passar ou não.
[Aline] – Da professora.
[Pesq.] – Por quê? Se algum aluno vier para a escola, sem se
interessar pelos estudos, ele consegue passar de ano?
[Todos] – Não.
[Aline] – A escola ensina a gente a viver.
[Pesq.] – Vocês concordam com isso?
[Pedro] – A escola ensina a gente a falar palavras certas.
[Aline] – A escola dá a educação.
[Lucas] – A educação vem de casa.
[Pesq.] – Então a escola não dá educação?
[Lucas] – A escola ensina a não fazer violência e guerra.
[Júlia] – Mas na escola também tem violência. Na minha sala tem
muita briga.
[...]
[Pesq.] – A educação da escola é somente para ler e escrever?
[Aline] – A escola ensina a respeitar, a não xingar os outros.
[Pesq.] – E a educação em casa, serve para quê?
[Aline] – É para a gente passar para os outros. Para aprender, por
exemplo, que não se pode engravidar cedo.

210
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

[Pedro] – A minha professora disse que cada vez que a gente


estuda, o nosso cérebro ica maior. Se não estudamos, ele diminui.
[Pesq.] – E você acredita nisso?
[Pedro] – Acredito. Cada vez que a gente erra e conserta o erro,
e aprende, o nosso cérebro vai crescendo. Mas não cresce de
verdade, não. Cresce em conhecimentos. Eu nunca vou querer
parar de estudar. Eu quero ser advogado.

Assim como no trecho acima, as crianças reletem sobre as


ações que são vividas em seu cotidiano e essas leituras que fazem
do mundo em que vivem se tornam base do processo de apropria-
ção da leitura e da escrita (Araújo, 2004). Essa relexão nos leva a
pensar na formação do sujeito enquanto cidadão, tarefa da escola
que muitas vezes tem sido deixada de lado por se acreditar que esse
espaço não é responsável por essa formação. É preciso que a escola,
mais do que ensinante do aprender a ler e a escrever, forneça sub-
sídios para que as crianças, desde cedo, aprendam a pensar e argu-
mentar, desenvolvendo uma consciência social e crítica.
Isso signiica romper com a distância entre a escola e a re-
alidade do educando. Os conteúdos precisam fazer sentido para ele.
E fazer sentido é estabelecer relações, aproximar-se da realidade
vivida, muito mais do que se preocupar simplesmente com a forma,
na busca de um melhor método ou da melhor cartilha. Este pensa-
mento é o que impulsiona o trabalho para que se compreenda o
sentido da valorização dos conhecimentos dos alunos. Partir da re-
alidade do aluno não limita o aprendizado à a realidade do aluno
“apenas”. A escola deve facilitar o desenvolvimento da capacidade
de compreensão, a reconstrução crítica do conhecimento e a reor-
ganização racional e signiicativa da informação reconstruída.
Para que isso ocorra de fato, é preciso pensar nos conteú-
dos da alfabetização, que devem partir da necessidade de que a cri-
ança descubra o sentido da escrita, investindo numa relação orgâni-
ca entre a criança e a linguagem escrita. Estes conteúdos devem,
portanto, ser extraídos da necessidade de a criança se conhecer e
conhecer mais o mundo a sua volta. Por isso, a forma de se possibili-
tar a apropriação da leitura e da escrita deve ser diferente, devendo
garantir as “mais variadas vivências possíveis com a escrita, no seu
uso e função social” (Araújo, 2001, p. 91).

211
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

As palavras não estão soltas. Elas são dialeticamente liga-


das à realidade, na medida em que os alfabetizandos descrevem-
na e, portanto, fazem a leitura da realidade e chegam à leitura da
escrita. Há, então, um ir-e-vir constante entre a leitura do mundo, a
leitura da palavra e a releitura do mundo. Assim, muito mais do que
uma memorização do ba-be-bi-bo-bu ou uma transferência de con-
hecimentos do professor ao aluno, a alfabetização precisa ser um
processo de busca e tentativas de mudança, numa recepção ativa
do educando. Transformar a experiência educativa em puro trein-
amento técnico é reduzir o que há de mais humano na educação: o
seu caráter formador.

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí


que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e reali-
dade se prendem dinamicamente. A compreensão do
texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica
a percepção das relações entre o texto e o contexto
(Freire, 1982, p. 11).

Nesse sentido, é preciso que a escola compreenda e in-


terprete as diferentes vivências das crianças das classes populares,
que, na maior parte das vezes, desde muito cedo, são obrigadas a
pensar e a organizar sua própria vida. A elas cabe a tarefa de pen-
sar a solução para os seus problemas, desde os mais simples aos
mais complexos. Essas vivências contribuem inegavelmente para a
produção de “diferentes formas de ler o mundo, de buscar soluções,
de inventar saídas, que superam a pouca idade e ampliam suas es-
tratégias de sobrevivência” (Araújo, 2004, p. 153). Mesmo assim, a
escola ainda as trata como incapazes para a aquisição da leitura e
da escrita, imaturas para a tal aprendizagem – visto que sempre ne-
cessitam de pré-requisitos culturais para o aprendizado. Ainda não
existe uma compreensão necessária de que a realidade delas, bem
como suas explicações e perspectivas, revelam uma capacidade de
síntese e abstração reais, porque essas crianças – assim como to-
das as outras – já vivem em ambientes alfabetizadores e, portanto,
fazem leituras de mundo múltiplas, híbridas e complexas. Resta à
escola compreendê-las e principalmente reconhecê-las em seu sa-

212
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

ber, fazendo com que o ambiente escolar relita a complexidade


das experiências vividas pelas crianças, para que facilite seu enten-
dimento da importância de saber ler a palavra.
No diálogo abaixo, Pedro demonstra uma postura frente à
avaliação da professora, que utiliza uma espécie de “castigo” para os
alunos que não fazem o trabalho de casa. Pedro toma uma atitude
que, aparentemente, resolve o problema por ele enfrentado:
[Pesq.] – Já aconteceu alguma vez de vocês quererem parar de
estudar, sem vontade de vir à escola?
[Pedro] – Já. Fiquei três dias sem vir à escola.
[Pesq.] – Por que este seu desinteresse?
[Pedro] – Eu não pensei em parar de estudar, só deu uma
preguiça. Mas não sei por quê. Às vezes, a professora fala: “Quem
não izer o dever de casa, eu vou dar um I72 amanhã”. Se eu não
tiver feito o dever, então eu falto. Mas só se eu não tiver feito o
dever.
[Pesq.] – E no outro dia em que você vem à aula?
[Pedro] – No outro dia, ela não dá mais o I. Só no dia seguinte.

A situação apresentada por Pedro revela o quanto as


ações pedagógicas precisam ser planejadas e pensadas para que
contribuam com o bom funcionamento da escola. Faltar porque
não fez a tarefa foi a estratégia encontrada pelo aluno, contudo, é
necessário que a escola pense em suas próprias estratégias de aval-
iação, para que sirvam de diagnóstico e formação e não somente
como uma espécie de sanção negativa.

Construindo caminhos para a leitura da palavra

O conhecimento é o eixo fundamental da relação do aluno


com a escola e os professores. Aquilo que se ensina deine, não so-
mente a estrutura de organização do próprio conteúdo, como todas
as interações que têm lugar em sala de aula. É em torno do conhe-
cimento que gira toda a situação escolar, o que vai interferir na con-
stituição do próprio sujeito, porque afeta a sua maneira de perceber
72 Conceito da avaliação bimestral escolar considerado insatisfatório ( I ).

213
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

o mundo e a formação da sua consciência, portanto, a construção


de sua identidade.
Da forma como a criança se expressa, ela parece com-
preender o papel de ensinante exercido pelo professor. Cabe aos
professores favorecerem a relação entre os conteúdos e o cotidiano,
a realidade e a história de vida de cada educando e não diicultar ou
obstruir a relação desta com o conhecimento.
É o domínio da cotidianidade, trazido por Freire, que deve
ser apreendido pela escola. Levar em consideração a leitura de
mundo do educando é muito mais do que ouvi-lo e demonstrar in-
teresse. É preciso aproveitar tais conhecimentos durante as aulas.
Relacionar a vida aos conteúdos trabalhados. Garantir o signiicado
dos temas, mostrando como são aplicáveis à prática. Reconhecer
que o que acontece em casa, na rua, no ônibus, o que é transmitido
na tv, no rádio, nos jornais, tem relação com aquilo que se aprende
na escola.
O diálogo a seguir transmite as impressões dos alunos
quanto ao aprendizado da leitura e da escrita. É interessante perce-
ber como eles apreendem o sentido da alfabetização. Cada criança
tem uma história e uma relação com ela. Seria muito importante
que os professores ouvissem estas histórias e pautassem sua ação
pedagógica nestas relações estabelecidas. Assim, icaria facilitado
o trabalho de compreensão das diiculdades de aprendizagem, tão
presentes em nossas salas de aula.

[Pesq.] – Como vocês aprenderam a ler? Vocês se lembram como
foi?
[Aline] – Quando eu era pequena, eu via minha mãe lendo, então
pegava o papel e ia rabiscando. Eu entrei na escola, via algumas
crianças escrevendo o cabeçalho antes da professora, e icava
tremendo de medo.
[Lucas] – Eu aprendi a ler juntando as letras, aos pouquinhos,
desde a 1ª série.
[Pedro] – Eu aprendi a ler com o jornal. Eu ia juntando as
letras e perguntando para minha mãe se estava certo, e ela ia
conirmando quando eu acertava.
[Júlia] – Eu aprendi a ler lendo os livros de historinhas.

214
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

[Pesq.] – Todos falaram como aprenderam a ler, mas ler é igual a


escrever?
[Todos] – Não.
[Pesq.] – Então, como vocês aprenderam a escrever?
[Júlia] – Escrever é mais difícil. Quando eu tava na 1ª série, eu não
sabia que existiam palavras com g mudo, ch,... Quando a gente
aprende a ler, acha que já sabe escrever tudo. Quando vai escrever,
vê que não sabe direito escrever quase nada.
[Pesq.] – O que aprendemos primeiro, a leitura ou a escrita?
[Todos] – A leitura.
[Pedro] – Eu acho que os dois devem vir juntos. Porque quando
eu escrevo uma carta, a outra pessoa lê, responde, e você lê a
resposta. Então, você lê e escreve ao mesmo tempo.
[Aline] – Você também lê o que você mesmo escreveu.
[Júlia] – No começo, eu escrevia muito enrolado. Misturava as
letras, depois de um tempo é que eu aprendi a escrever direito.
[Pesq.] – O que é mais fácil, ler ou escrever?
[Todos] – Ler.
[Júlia] – Eu acho mais fácil ler, porque o mundo tem mais coisas
para ler.

As falas das crianças relevam que se a leitura e a escrita


não estiverem a serviço do mundo, de nada adianta sua existência.
A alfabetização não caminha sozinha, mas coexiste com a socie-
dade, como instrumento desta para que o indivíduo se locomova
e atue consciente de seu papel no mundo. Nesse sentido, estar al-
fabetizado garante um outro modo de ver, de viver neste mundo.
Entretanto, isso não basta para que ocorra uma transformação. Prin-
cipalmente porque o desejo de mudar o mundo independe de o su-
jeito ser alfabetizado ou não. Da mesma maneira, o indivíduo pode
adquirir essa condição e permanecer em sua “mesmice”, ignorando
a realidade a sua volta.

O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com


os outros me põe numa posição em face do mundo
que não é a de quem nada tem a ver com ele. Ainal,
a minha presença no mundo não é a de quem a ele

215
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

se adapta mas a de quem nele se insere. É a posição


de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito
também da História (Freire, 2000, p. 60).

É o refazer constante de que nos fala Paulo Freire. O pro-


cesso de conscientização proporciona o reconhecimento do próprio
inacabamento do ser humano, que percebe a trajetória da vida so-
cial como uma construção (e reconstrução) permanente. O sujeito
alfabetizado não apenas reconhece-se como ser em construção di-
ante de sua inconclusão, mas também é capaz de fazer sua própria
história, interferir nela e por ela ser feito. Por isso, deve existir uma
atitude de respeito e estímulo à capacidade criadora do educando,
que movido pela curiosidade – assim como o educador e todos os
que se encontram no processo educativo – ensina ao aprender e
aprende ao ensinar.
Para Freire, torna-se necessária uma educação corajosa,
que enfrente a discussão com o homem comum, de seu direito a
participar da sua sociedade. É preciso uma educação que leve o
homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e
de seu espaço, à intimidade com eles, a uma tentativa constante de
mudança de atitude.

Por uma releitura do mundo

Mesmo após tantos debates acerca do papel da escola, até


hoje ela ainda é vista como o local do conhecimento. Acreditando
nisso, escola e sociedade em geral acabam por desqualiicar o con-
hecimento adquirido no cotidiano, no trabalho, nas lutas do dia-a-
dia. Esse conhecimento não é válido e não garante nenhum mérito
a quem o possui. A escola tornou-se um divisor de águas, no qual
quem sabe é aquele que frequentou a escola (Garcia, 2004).
Emilia Ferreiro também aponta a instituição escolar como
uma guardiã desse objeto social que é a língua escrita, pois solicita
do sujeito “em processo de aprendizagem uma atitude de respeito
cego diante desse objeto, que não se propõe como um objeto sobre
o qual pode atuar, mas como um objeto para ser contemplado e
reproduzido ielmente, sem modiicá-lo” (Ferreiro, 2001, p. 21). O en-
sino do domínio da leitura e da escrita, dessa forma, continua sendo

216
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

aquele das práticas mais tradicionais, que supõem que a apren-


dizagem ocorre através da repetição, da memorização, da cópia de
modelos, da mecanização. Assim, a escrita deixa de ser um objeto
social para ser um objeto exclusivamente escolar.
Essa concepção ica clara quando, nas falas a seguir, os
alunos icam confusos quando dizem que não estudam durante a
Educação Física. Ainal, a ideia enraizada nas mentes das crianças é
a de que esse espaço, por não ser a sala de aula, não é um espaço
de estudo.
[Pesq.] - Vocês gostam de estudar?
[Todos] - Sim, gostamos.
[Pesq.] - Vocês estudam quando? Só aqui na escola?
[Pedro] – Em casa, na Educação Física...
[Pesq.] - Na Educação Física vocês estudam?
[Júlia] – A gente não estuda, mas aprende muitas coisas.
[Lucas] – A gente faz exercícios.
[Pesq.] – O que vocês acham da escola?
[Júlia] – Bom. Porque aqui a gente aprende muitas coisas. Aprende
a ler, escrever.
[Aline] – Boa. Porque a gente aprende ler, escrever, muitas coisas
para ser alguém na vida.
[Pedro] – Acho a escola mais ou menos.
[Pesq.] – Por quê?
[Pedro] – Porque ela não tem tanta série.
[Pesq.] – Ah! Você queria que ela fosse até a 8ª série...
[Pedro] – É isso!
[Pesq.] – Por que você gostaria que ela fosse até a 8ª série?
[Pedro] – Por que aí eu ia continuar estudando nesta escola.

O diálogo acima tem ligação direta com a concepção de


Freire sobre a educação que deve permitir que o sujeito se construa
e adquira a capacidade de transformar o mundo, estabelecendo
com os outros homens relações de reciprocidade, de criação de
cultura e de produção da história. Mas ainda é preciso questionar
sobre a relação entre esta educação transformadora e o que os edu-
candos correspondem com o “ser alguém na vida”, que está muito

217
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

mais ligado a uma concepção de mudança individual. Ser alguém


indica um futuro remoto, como se, nesse momento, a criança ainda
não fosse alguém. Ela será alguém na vida a partir da escola, e não
no presente. É por isso que a escola precisa rever todos os procedi-
mentos pedagógicos que contribuam para a não percepção da re-
alidade histórica dos alunos e para a domesticação humana.
Para alcançar uma alfabetização de qualidade, certamente
as crianças enfrentarão diiculdades. Porém Emilia Ferreiro airma
que não será mais difícil do que outros processos de aquisição de
conhecimentos, principalmente se descobrirem, desde cedo, que a
escrita é interessante e merece ser conhecida, através de contex-
tos sociais funcionais. “A escrita lhes apresenta desaios intelectuais,
problemas que terão que resolver, precisamente para chegar a en-
tender quais são as regras de construção internas do sistema” (Fer-
reiro, 2001, p. 32).
Paulo Freire também dá um novo sentido ao conceito de
estudar, porque essa ação não é uma relação passiva com o objeto
estudado. “Estudar é desocultar, é ganhar a compreensão mais ex-
ata do objeto, é perceber suas relações com outros objetos. Implica
que o estudioso, sujeito do estudo, se arrisque, se aventure, sem o
que não cria nem recria” (2002, p. 33). Estudar exige uma postura
crítica, que precisa ser praticada. O estudante precisa ser desaiado
pelo texto que lê. A postura crítica pressupõe que esse estudante
assuma o papel de sujeito deste ato; que assuma uma atitude frente
ao mundo, a partir daquilo que estuda; que assuma uma relação de
diálogo com o autor do texto; que perceba o ato de estudar como
um momento de criação e recriação de ideias.
O diálogo abaixo mostra como os alunos percebem a es-
cola enquanto o espaço do aprender. E como tudo o que a escola
ensina é considerado importante. Este diálogo demonstra o quanto
é fundamental que a escola favoreça a produção de ambientes alfa-
betizadores diretamente relacionados à realidade dos educandos,
com materiais concretos e textos reais, que garantam a verdadeira
apropriação da leitura. Uma educação distante da vida prática das
crianças não estabelece signiicados que garantam a aprendiza-
gem.
[Pesq.] – O que vocês acham da escola?
[Lucas] – Eu acho muito legal, porque a gente ica melhor, na hora
do recreio a gente brinca.

218
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

[Pesq.] – Quer dizer que você gosta por causa da hora do recreio...
[risos]
[Pedro] – A gente aprende muita coisa.
[Júlia] – Eu gosto por causa dos ensinamentos, a gente aprende
coisas.
[Aline] – É um lugar muito bom. Aqui na escola a gente aprende
mais do que lá fora.
[Pesq.] – E lá fora, a gente não aprende muitas coisas?
[Aline] – Lá fora a gente pode até aprender as coisas, mas aquilo
que é mais importante, a gente só aprende na escola.
[Júlia] – Na escola a gente aprende a ler e a escrever. O que a gente
não aprende fora da escola, a gente aprende aqui dentro.
[Pedro] – As pessoas que não sabem ler e escrever, aqui vão
aprender, com a professora.
[Pesq.] – Então, não dá para aprender a ler e escrever se não
formos à escola?
[Lucas] – Dá para aprender com os responsáveis.
[Aline] – Dá pra aprender em cursos, mas é difícil. Ensinar coisas
de 8ª série e 2º grau é mais difícil.
[Júlia] – É, mas nem todo mundo sabe ensinar!

É preciso que a escola encare todos os espaços como


propícios à aprendizagem. Desde a sala de aula, até a quadra ou o
pátio. A escola é um espaço de aprendizagens, e como tal, deve val-
orizar a convivência entre os sujeitos que coexistem neste espaço
e potencializá-los para que reconheçam o ambiente escolar como
um espaço de interações educativas. São estas relações, com seus
pares e com os diversos ambientes (dentro e fora da escola) que
garantem o ensino e a aprendizagem, não somente da leitura e da
escrita, mas também de outros “conteúdos”, necessários à prática da
releitura do mundo.
Isso é o que Freire chama de “assanhar” a cognitividade73
do aluno, de maneira que este conheça o objeto, expondo-se a ele
e aos outros sujeitos. Do contrário, não haverá ensino. O educador
deve provocar os conhecimentos do educando. Ezequiel Theodoro
da Silva (2002) propõe uma orientação escolar para a leitura a “pas-
73 Para Paulo Freire, a cognitividade é a capacidade de conhecer em ação.

219
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

sos largos”. Para ele, leitura a “passos largos” signiica que é ne-
cessário que se comece a ler com o objetivo de enxergar melhor o
mundo, compreender nossa sociedade e nós mesmos dentro dela e
começar a ler para descobrir os porquês dos diferentes aspectos da
vida. Assim, a leitura garantirá programas signiicativos de ensino
que resultem na transformação, na emancipação, na libertação dos
leitores.
Por isso, se faz necessária a interlocução nas salas de aula
entre as atividades de leitura, de fala, de discussão, de debate, de
escuta e de escrita. Essas práticas garantem uma pedagogia capaz
de permitir que as vozes dos sujeitos estudantes se relacionem em
esquemas de comunicação autêntica, destruindo dessa maneira, a
pedagogia do silêncio.
Assim, é fundamental identiicar de que maneira nossas
escolas podem contribuir efetivamente para a valorização dos con-
hecimentos trazidos pelos educandos ao espaço escolar e como
podem relacionar os conteúdos curriculares aos conhecimentos
produzidos pela experiência existencial dos educandos, desde seu
primeiro dia de aula até o último. O diálogo abaixo demonstra como
a leitura inluencia na vida fora da escola e como as crianças utilizam
os conhecimentos que constroem na escola:

[Pesq.] – Onde estão estas coisas para ler?


[Aline] – Quando você viaja, quando dirige, lê as placas.
[Júlia] – Quando você lê uma história de terror, ou um conto de
fadas, você se imagina dentro da história, vivendo aquilo tudo.
[Aline] – Eu viajei com meu tio para Vitória. Na hora da parada,
meu tio pediu para eu ir para o ônibus, enquanto ele ia comprar
café. Eu acabei entrando no ônibus errado, porque eu não sabia
ler e escrever.
[Lucas] – Um dia eu fui pra Aparecida do Norte com minha
família. A minha mãe falava: “Marca aí o número do ônibus”. E eu
ia dizendo qual era o nosso ônibus.
[Pesq.] – Então, a gente não lê somente as letras, mas também os
números... E os desenhos, a gente também lê?
[Pedro] – Sim. Eu aprendi a ler assim, olhando os desenhos e
vendo como se escrevia.

220
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

[Lucas] – A primeira coisa que a gente lê são as iguras. Quando


você vê o desenho, ica imaginando como se escreve.

A dimensão individual do sujeito que conhece não basta


para explicar o seu próprio ato de conhecer. O conhecimento é so-
cial, apesar de não ser possível negar a dimensão individual. Mas é a
condição social que explica o ato de conhecimento. Assim, a escola
deveria, reconhecendo o caráter social do ato de conhecer, favorec-
er as qualidades individuais, garantindo o resgate dos sujeitos en-
quanto indivíduos dentro de uma prática social, ligada à produção e
à vida material de uma sociedade (Freire e Guimarães, 1988).
Intervir no mundo é, portanto, o maior objetivo da alfabet-
ização consciente. Não é possível aceitar a adaptação. O sujeito con-
sciente é aquele que se percebe como ser histórico e ético, capaz de
optar, de decidir, de romper. Assumindo uma postura crítica, con-
statando a realidade para mudar e não para se acomodar. Conscien-
te de que mudar é difícil, mas é possível. Contudo, Freire salienta que
saber que a mudança é possível ainda não é mudar. Mas a atitude
frente à consciência da mudança é muito contrária ao imobilismo fa-
talista. É sabendo da mudança possível, apesar da diiculdade, que
o oprimido nutre sua esperança.
Neste sentido, a educação necessária à sociedade atual é
aquela que visa à formação de pessoas críticas, que raciocinem rá-
pido e sejam curiosas e indagadoras. É necessário, portanto, que os
educadores, ensinando os conteúdos aos educandos, lhes ensine
também a pensar criticamente. É essa postura perante o mundo
que, na visão de Freire, move os sujeitos, através de sua curiosidade,
colocando-os impacientes diante do mundo que não izeram, para
acrescentar a ele (ao mundo) algo novo que fazem.
Daí a importância do papel da dialogicidade, que é cheia
de curiosidade, de inquietação e de respeito mútuo entre os sujei-
tos que dialogam. Mas Paulo Freire e Ira Shor deixam claro: dialogar
não é tagarelar, ao contrário, signiica estar aberto à comunicação,
objetiva construir a curiosidade epistemológica, ou seja, a preocu-
pação em apreender a razão de ser do objeto. O professor dialógico
continua sendo professor, isto é, professor e aluno são diferentes.
Contudo, a diferença entre professor e aluno não pode ser an-

221
DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

tagônica. Numa sala de aula que se pretende democrática, que visa


à libertação, não é permitido o antagonismo, que gera o autorita-
rismo (Freire e Shor, 2000).
É preciso que a escola reconheça a alfabetização do ponto
de vista do letramento, não apenas enquanto decodiicação da lín-
gua, mas a partir da incorporação das práticas sociais que a leitura e
a escrita demandam. Assim, faz-se necessária a produção escrita de
textos e não de palavras ou sílabas descontextualizadas, que nada
signiicam para os alunos, sujeitos concretos de seu espaço social.
O diálogo a seguir mostra como a escola pode estabelecer relações
entre estes e outros conhecimentos e como as crianças interpretam
estes conhecimentos a partir da experiência existencial que já pos-
suem.
[Lucas] – No mês passado, a Júlia usou a calculadora na prova de
matemática.
[Pesq.] – Você fez isso, Júlia? Por quê?
[Júlia] – Porque eu tinha uma calculadora, ela era toda bonitinha.
[Pesq.] – Você não sabia fazer contas no papel?
[Júlia] – Com a calculadora, ajudava mais na hora da prova.
[Pesq.] – Vocês todos sabem calcular com a calculadora?
[Todos] – Sim.
[Pesq.] – Vocês acham que a calculadora serve para nós, no dia-a-
dia?
[Aline] – A calculadora faz as contas mais rápido que a gente.
[Pedro] – Mas a pessoa tem que saber usar a calculadora. Não
adianta só colocar “1 x 1”. Tem que saber fazer a conta.
[Pesq.] – Com quem vocês aprenderam a usar a calculadora?
[Pedro] – Com meu tio.
[Júlia] – Aprendi com a professora.
[Pesq.] – Alguém mais aprendeu a usar a calculadora com a
professora?
[Lucas] – Não pode usar a calculadora na escola. A professora já
pegou uma da minha mão.
[Pesq.] – Por que é difícil ver uma professora ensinar as crianças a
trabalharem com a calculadora?
[Aline] – Porque a criança é burra!

222
DIÁLOGOS NA ALFABETIZAÇÃO

[Pesq.] – Ah! E vocês são “burros”?


[risos]
[Lucas] – É porque a calculadora “dá” as respostas dos deveres.
[Pedro] – Porque a professora quer ensinar e não dar a resposta
pronta.
[Aline] – Eu nunca estudei com uma professora que deixa usar a
calculadora. Se deixar, a criança não aprende.
[Pesq.] – Se eu mexer na calculadora, eu não vou aprender?
[Aline] – Não.
[Pesq.] – Por quê?
[Lucas] – Porque a calculadora “dá” a cola. Se eu tô com
diiculdade na conta de dividir e uso a calculadora, eu dou a
resposta, mas não aprendo nada.
[Pesq.] – Então me dá um exemplo de como eu posso aprender
usando a calculadora? Quando ela não “dá” a cola ?
[Júlia] – Na conta de dividir. Se tiver sobra, não vai dar a resposta
de quanto sobrou. Então se eu não souber fazer a conta no papel,
não vou saber dizer quanto sobrou.

Esse exercício crítico da releitura do mundo pode vir a ser


o instrumento mais eicaz de transformação das estruturas sociais.
E assim, em vez de a educação ser encarada ingenuamente, como
algo milagroso, que sozinha seja capaz de mudar a sociedade, é vis-
ta como um caminho para a realização da conscientização dos indi-
víduos. Reler o mundo é uma atitude que essas crianças já demon-
stram, através de questionamentos como os apresentados acima.
Contudo, o que percebemos é que a escola ainda não considera a
conscientização destes sujeitos.
A releitura do mundo será realizada por uma ação educa-
tiva capaz de subsidiar os educandos para que observem a reali-
dade de maneira diferente a partir do processo de alfabetização. É
essa postura diante do mundo, não garantida apenas pela leitura
da palavra, mas impulsionada por ela, que deve ser o objetivo. Uma
alfabetização de qualidade permitirá aos educandos fazer a leitura
da leitura do mundo anteriormente feita. E assim, os educandos es-
tarão alfabetizados não somente para continuar no circuito escolar,
mas para a vida cidadã.

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DA GESTÃO DOS RISCOS À INVENÇÃO DO FUTURO

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