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FACULDADE DE LETRAS E CIENCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA

LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA

1º SEMESTRE, 4º ANO, LABORAL

ANTROPOLOGIA DA SAÚDE E DOENÇA

Docentes: Carla Braga e Esmeralda Mariano

Discente: Etílio Simião Muchanga

Ficha de leitura

1. Introdução
Partindo de trabalho de campo (os dados foram recolhidos na província de Manica e Maputo) e
revisão de literatura, Braga (2019) analisa como a produção agrícola influencia na adesão ou
pouca procura de serviços sanitários no tratamento do HIV/SIDA. Essa análise constitui uma
crítica as visões nacionalistas presente nas políticas públicas e práticas profissionais no campo da
saúde em Moçambique, caracterizadas pela homogeneização e hierarquização linear dos
aderentes aos serviços clínicos, neste caso concreto, ao tratamento do HIV/SIDA. Moçambique
apresenta aproximadamente 75% da população como praticante da agricultura familiar como
uma das estratégias de sobrevivência diária.

2. Desconstruindo visões de homogeneização nacional


Segundo Braga (2019), Moçambique em 2004 introduz o tratamento Antirretroviral através do
sector público (TARV), almejando disponibilizar esse tratamento a todo país. Como parte desse

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ensejo, em 2015 Moçambique possuía 937 unidades sanitárias com serviços Antirretroviais, o
que até então, manifesta a desigualdade entre a oferta e a procura dos serviços antirretrovirais no
país. Como forma a estimular o comprimento do tratamento, criou-se o Tratamento sob
Observação Directa (TOD), no qual todos os pacientes, durante as primeiras duas semanas do
tratamento, tomam os medicamentos na unidade sanitária. Depois desse processo, os pacientes
passam a medicar em casa, devendo apenas fazer o levantamento mensal dos medicamentos.
É nesta estratégia do TOD que a autora elabora o seu argumento da invisibilidade do trabalho
agrícola no TARV. Subsidiada por exemplos etnográficos ao longo do artigo, Braga (2019)
demostra a hierarquização linear do que consiste prioridade a nível geral, no sector sanitário em
Manica. O acesso a TARV em locais com poucos recursos de subsistência/sobrevivência é
caracterizado pela participação de vários determinantes, tanto do nível natural (as estacões de
precipitação), assim como do nível sociocultural (a diversificação de meios de sustento que
albergam o trabalho da agricultura em pequena escala, pequeno comércio informal, pagamento
por tarefa [biscato] e distância residência-unidade sanitária). Tanto os factores naturais e os
factores socioculturais influenciam o acesso a TARV pois, cada paciente com recursos escassos
para sua sobrevivência familiar deve combinar esses elementos e ajusta-los às prescrições
médicas.
Como parte desse ajuste, alguns usuários dos serviços TARV optam pelo adiantamento no
levantamento de medicamentos para dois ou mais meses, como forma a cumprir as suas
exigências pessoais (busca pelo sustento) e o dever de zelar pela sua saúde. O acesso a
medicamentos adiantados não é de escolha livre, mas existem pessoas pré-estabelecidas que
tutelam essas trocas, devendo, quem assim desejar, fazê-lo mediante a autorização dessa figura.
Nesse pedido de autorização, essa figura superintendente aceita, segundo as observações de
Braga (2019), os pedidos por motivações de escolas e trabalhos “oficiais”, mas recusa os pedidos
dos camponeses, chegando nessa recusa, a submeter os requerentes camponeses a escolherem
entre a machamba e TARV. Essa atitude de recusa aos pedidos dos camponeses são justificados
pela tomada da prática agrícola como não trabalho ou como algo secundário que pode ser adiado
para outra ocasião, sem averiguar o real cenário dos camponeses (Braga, 2019).
A desconsideração da agricultura familiar em Moçambique é secular. De acordo a autora, a
invisibilidade e subestimação da agricultura equivale a desvalorização do próprio camponês e
seu modo de vida. Tanto o poder colonial e poder pós-colonial sempre apresentaram políticas

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hostis ao campesinato, visível pelo aumento da insatisfação camponesa e alienação estatal. No
caso concreto da TARV esta desconsideração é visível pela exclusão da distância residência-
centro sanitário que constitui factor de difíceis consultas regulares nas datas pré-estabelecidas,
com maior expressão, nos períodos em que os camponeses devem prestar mais tempo a
machamba. Então, quando os profissionais da saúde recusam levantamentos adiantados e
repudiam os atrasos nos levantamentos colocam os utentes da TARV num dilema, ou
sustento/sobrevivência familiar, ou TARV.
A visão de prática de sustento, agricultura de pequena escala, aqui mencionado alberga em si
várias questões tais como a fome, falta de transporte, capacidade fisiológica de digerir os
medicamentos que em alguns casos originam ou problemas clínicos, o acordar e ter o que digerir.
No parágrafo anterior referi ao dilema ao qual o sistema nacional de saúde pública nacional (a
disponibilização restrita dos TARV) e os profissionais de saúde expõem os utentes dos
antirretrovirais. Esse dilema é resultado do conflito da temporalidade entre a realidade agrícola e
a realidade sanitária acompanhada do desmerecimento voluntário atribuído aos camponeses
pelos profissionais de saúde. Nessa atitude de desprestígio coloca-se de fora a realidade dos
camponeses, os quais garantem a sua subsistência diariamente através do trabalho informal e
mediante as estacões de plantio e colheita. Esses conflitos, segundo Braga (2019), acompanhado
da violência física (doenças geradas pela medicação irregular e desajustadas as exigências do
próprio organismo, me refiro a má nutrição) e violência psicológica (os desaforos enfrentados
pelos camponeses quando buscam estratégia de ajustamento entre a sua saúde e o sustento,
acompanhado pelos “insultos” dos profissionais de saúde os quais estão incapacitados a lidar
com as especificidades dos pacientes pela tomada exclusiva da racionalidade metropolitana que
irracionaliza a racionalidade dos camponeses) levam a atitudes de sacrifício na relação paciente-
agricultura e profissionais-centro sanitário, que culminam na pouca aderência ao TARV. Sendo
que parte maioritária de agricultores são mulheres, Braga (2019) propõe a elevação dessa questão
a dimensão de problema de género.

3. Conclusão
Enfim, segundo a autora, o acesso a TARV e seu comprimento em zonas com poucos recursos
pode ser dificultado por factores como a fome, falta de transporte pela ausência do próprio
transporte ou fundos para pagar pelo deslocamento casa-hospital e consequente resultado da

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relação paciente-profissional de saúde. Eu penso que além de usar o conceito “zona”, seja mais
proveitoso usar o conceito “contexto”, por achar que essas dificuldades mesmo incidirem
violentamente em certos contextos, geograficamente delimitados, não sejam de carácter
exclusivo geográfico. O recurso ao conceito contexto permite, penso, olhar essa questão da
desigualdade social e clínica até mesmo em locais “urbanos”, mas com esses casos em pessoas
específicas.
Eu acho que outro aspecto de mais-valia do recurso contexto seja a sua aplicação, como no artigo
foi explanado, noutros domínios onde a desigualdade social institucionalizada está patente.
Quanto ao texto acho-o interessante e motivador na carreira antropológica, mas sempre fica uma
questão, será que essa desigualdade institucionalizada, os seus praticantes a nível local e nacional
estão despercebidos da sua existência? Como contribuir na mudança desse cenário de jogo de
poder a mercê do bem-estar dos imbricados desse jogo?

4. Referência bibliográfica
Braga, Carla. 2019. “Machamba não é trabalho!”: HIV/SIDA e Produção Agrícola no centro de
Moçambique. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 27(3).

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