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ULBRA – REGIONAL: TEMPOS E ESPAÇOS – PROF.

ORLANDO ALBANI – 2019/01

Imaginário
Imaginário é uma palavra que desde as últimas décadas do século xx invadiu a produção da História no mundo
ocidental. Intrinsecamente envolvido com a chamada Nova História francesa e com a produção de uma História das
Mentalidades, seu estudo, no entanto, ultrapassa as fronteiras da História, atingindo a Antropologia e a Filosofia.
Imaginário significa o conjunto de imagens guardadas no inconsciente coletivo de uma sociedade ou de um grupo
social; é o depósito de imagens de memória e imaginação. Ele abarca todas as representações de uma sociedade, toda
a experiência humana, coletiva ou individual: as ideias sobre a morte, sobre o futuro, sobre o corpo. Para Gilbert Durant,
é um museu mental no qual estão todas as imagens passadas, presentes e as que ainda serão produzidas por dada
sociedade. O imaginário é parte do mundo real, do cotidiano, não é algo independente. Na verdade, ele diz respeito
diretamente às formas de viver e de pensar de uma sociedade. As imagens que o constituem não são iconográficas, ou
seja, não são fotos, filmes, imagens concretas, mas sim figuras de memória, imagens mentais que representam as coisas
que temos em nosso cotidiano.
Cada imaginário possui uma ou mais imagens ideais de mulher, possui uma ou várias imagens da morte, da vida,
de Deus, do governo, da Nação, do trabalho etc. Essas imagens são construídas na memória coletiva a partir da forma
como as pessoas, em seus grupos sociais, entendem o cotidiano ao seu redor, ou seja, da noção de representação. O
conceito de representação, por sua vez, está em íntima conexão com o de imaginário e diz respeito à forma pela qual
um indivíduo ou um grupo vê determinada imagem, determinado elemento de sua cultura ou sociedade. Por exemplo,
a elite açucareira na sociedade escravista via as mulheres negras de forma bem específica: como pessoas libidinosas,
que não gostavam de trabalhar, precisavam de disciplina. Assim, essa elite representava as mulheres negras de uma
maneira que tinha tudo a ver com sua posição na estrutura social. Nesse sentido, a representação é a forma como um
grupo social vê e explica um elemento de sua sociedade. E no caso da representação que a elite construiu sobre as
mulheres negras, ela logo passou a constituir o imaginário da sociedade escravista, criando uma imagem da mulher
negra, estereotipada e indiferente às singularidades de cada indivíduo. Por outro lado, a forma como lemos uma imagem
muda constantemente e depende de nossa posição na estrutura social. Desse modo, é possível estudarmos a evolução
das representações de uma imagem ao longo do tempo. Foi isso, por exemplo, que fez Maurice Agulhon com a imagem
da República na França, entre a Revolução e o fim do século XIX, acompanhando as mudanças na forma pela qual a
sociedade francesa representou a República ao longo desse período e percebendo que com as mudanças políticas e
sociais mudavam também as representações da República. Assim, podemos perceber que as imagens não são fixas nem
imóveis, bem como que as representações que constituem o imaginário mudam também de acordo com o período.
O estudo das representações e do imaginário pode ser feito tanto sobre imagens iconográficas quanto sobre
discursos, pois ambos reproduzem figuras de memória, e cada imagem é um traço da mentalidade coletiva de sua
época. Nesse sentido, uma obra de arte está repleta de imagens da memória e da imaginação, e nunca expressa somente
as ideias de seu autor, mas remete sempre ao contexto histórico que o envolve. Assim, um autor, por mais que tente ser
original, não pode fugir ao imaginário ao qual pertence e compartilha com muitos outros.
O estudo do imaginário chegou à História com a Psicologia e a Antropologia, aparecendo de forma sistemática
pela primeira vez nos trabalhos dos fundadores de Annales, Marc Bloch e Lucien Febvre. Mas foi a terceira geração de
Annales, a Nova História, que deu ênfase especial ao imaginário, com seus estudos sobre mentalidades e cultura,
derrubando a ideia de que o que era concreto era mais importante do que o que era invisível. Para historiadores como
Georges Duby, o mundo invisível, imaginado, é tão importante para a vivência cotidiana quanto o mundo visível. O
mundo imaginado, de sonhos, angústias, inquietações, se projeta no mundo “real”, na sociedade. E isso pode ser visto,
por exemplo, na Arte. Duby, como outros historiadores do imaginário, foi bastante influenciado pelo trabalho do
holandês Johannes Huizinga, que já em 1919 afirmava que o sentido de uma sociedade estava em seu sistema de
representações, seu imaginário e na forma como ele se relacionava com as estruturas sociais, com a “realidade”.
Mas não é fácil estudar o imaginário, pois este não é independente. Para conhecermos as representações de
um grupo ou de uma sociedade temos de conhecer todo seu sistema social, a religião, as relações de classe, as formas
de comunicação etc., pois o imaginário perpassa todos esses elementos e só pode ser estudado em interação com a
observação da totalidade da estrutura social. É por isso que um dos métodos mais bem-sucedidos para o estudo do
imaginário é a Etno-história, conjunto de técnicas baseado na Etnografia, a descrição de sociedades ditas primitivas. Na
Etno-história, a comunidade que se quer estudar é isolada, e todos os seus elementos sociais, econômicos e culturais
são observados e descritos sem que o pesquisador se preocupe com a origem dessa sociedade, com suas ramificações
futuras, nem com suas ligações com outras comunidades. Assim, é possível estudar a totalidade da sociedade,
conhecendo-a a fundo e chegando até seu imaginário. Obra clássica que exemplifica o emprego da Etno-história é
Montaillou, de Le Roy Ladurie, que por meio de processos inquisitoriais reconstitui o cotidiano e o imaginário de uma
vila francesa medieval.
ULBRA – REGIONAL: TEMPOS E ESPAÇOS – PROF. ORLANDO ALBANI – 2019/01

Mas o imaginário não é estudado apenas na História, e um dos maiores especialistas é o filósofo francês Gilbert
Durant. Para ele, enquanto as civilizações não ocidentais, asiáticas, pré-colombianas ou africanas nunca separaram as
verdades fornecidas pelas imagens das fornecidas pela escrita, o Ocidente foi criando, ao longo do tempo, uma antipatia
pela imagem e uma supervalorização da escrita, que o empobreceu. Esse desprezo pela imagem teve um de seus mais
fortes precursores no Antigo Testamento, que proibia a adoração de imagens, proibição herdada pelo Cristianismo e
pelo Islã. Essa imagem contestada era a iconografia dos ídolos, ícones, imagens concretas. Mas o pensamento clássico
grego também contribuiu para a queda do valor das imagens no Ocidente, pois Sócrates, Platão e Aristóteles, por
exemplo, acreditavam que a única forma de acesso à verdade era por meio do raciocínio promovido pela experiência
dos fatos, e as imagens, consideradas figuras da imaginação, não se encaixavam nessa definição. Na Idade Moderna,
com a Revolução Científica de Descartes e Newton, a imagem foi mais uma vez desvalorizada. A imaginação, os
questionamentos metafísicos, a poética, tudo isso caiu em descrédito perante o pensamento racional, científico,
dedutivo, que teve seu auge no cientificismo do século xix. Dessa forma, tornou-se dominante no Ocidente o
pensamento sem imagens. Mas Durant ressalva que em todos os tempos sempre existiu resistência a essa tendência no
próprio Ocidente, começando pelo próprio Platão e seu mundo das ideias, passando por São Francisco e Santo Inácio
de Loyola, com seus exercícios espirituais, e muitos outros. Apesar disso, o discurso dominante ocidental tornou-se
aquele em que a experiência racional supera a experiência espiritual ou sensitiva. Assim é que, para Durant, a atual
supremacia da imagem e da mídia no Ocidente é um paradoxo, pois essa imagem é fruto do próprio cientificismo, do
progresso, e por ser “enlatada” tem o efeito inverso que as imagens normalmente têm: diminuem a capacidade
imaginativa, impondo uma ditadura da propaganda e da imagem sem sentido.
Mas a pós-modernidade trouxe grandes críticas a esse pensamento sem imagem. A partir dela, na História e nas
ciências humanas, o imaginário ganhou seu lugar como realidade concreta. A obra de Cornelius Castoriadis é um
exemplo dessa revalorização da imagem promovida pela pós-modernidade. Para ele, o que mantém uma sociedade
unida é seu complexo de normas, valores, linguagem, costumes etc., complexo unificado por uma instituição maior, a
instituição imaginária da sociedade. Para ele, toda sociedade cria seu próprio mundo, definindo o que é real e o que
não é. A sociedade, nesse sentido, é apenas um sistema de interpretação do mundo, criado por ela mesma.
No entanto, os críticos da pós-modernidade censuram essa importância excessiva dada ao imaginário. Para
Michel Zaidan, por exemplo, a afirmação de que a sociedade é construída pelo seu próprio imaginário deixa de lado a
realidade objetiva, as estruturas econômicas, sociais, a política. De acordo com ele, essa supervalorização da
representação, do discurso, é feita em detrimento da realidade e leva à crença de que a História é apenas uma
experiência pessoal do historiador e não pode nunca chegar à verdade.
Mas nem todos os trabalhos sobre imaginário descreem totalmente do real. Roger Chartier, por exemplo,
afirma que toda representação do mundo social é construída pelos interesses do grupo que a elaborou, sendo
necessário observar as representações e discursos a partir da posição social de quem os utiliza, segundo ele, assim como
existe luta econômica pela hegemonia da sociedade, também existe luta de representações, cada grupo tentando impor
seus próprios valores aos outros. Além disso, Chartier acredita que não existe distinção entre a objetividade das
estruturas e a subjetividade das representações.
De todas essas considerações, vemos que o imaginário é um campo fértil para debates nas ciências humanas. É
igualmente um campo de estudos em constante crescimento, interligado à História das Mentalidades e à História
cultural. Para o professor de História, é também um conceito com grandes possibilidades didáticas: trabalhar com o
imaginário de sociedades passadas é se aproximar mais do cotidiano das pessoas em outros tempos, é torná-las mais
reais, mais próximas de nós, ao percebermos, por exemplo, que eram indivíduos com medos, angústias, anseios, desejos,
sonhos etc. Cabe ao professor dosar o estudo do imaginário em sala de aula, trabalhando com o cotidiano, os mitos, a
imaginação em períodos diversos, assim como com a abordagem da sociedade, da economia, do contexto histórico em
questão. Não devemos cair na superficialidade de trabalhar apenas os aspectos mais pitorescos, esquecendo as
estruturas econômicas ou as mudanças políticas. Esse é o perigo das abordagens culturais: a perda de profundidade.
Para fugir dele, podemos mesclar textos culturais, sobre o imaginário e as mentalidades, com trabalhos sobre a estrutura
econômica e social. As experiências didáticas podem também ser mescladas: para trabalhar a totalidade de uma
sociedade, podemos empregar ao mesmo tempo aulas expositivas, pesquisas, seminários, excursões; cada prática
abordando um aspecto diferente da sociedade em foco. [FONTE: SILVA, Kalina V.; SILVA, Maciel H.. DICIONÁRIO
DE CONCEITOS HISTÓRICOS. – São Paulo: Contexto, 2014. – pag. 213 – 217]

Sugestões de leitura
Castoriadis, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Chartier, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1988.
Durant, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2001.

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