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DESTRUIÇÃO DA FAMÍLIA
Debbie – Eu não estava querendo magoar ninguém, Papai. Eu te amo. E amo a Mamãe.
E amo a Vovó e o Vovô também – e claro, amo a Hazel – Mas o fato é, é que eu sei que
vou amar mais o meu bebê. E é assim que tem que ser Papai – independente do tanto
que eu amo você, eu vou amar mais o meu bebê. E eu tenho medo disso. Você não tem
medo? Quando você olha para o mundo? – quando você imagina o futuro? Tenho medo
Papai – pelo meu bebê. E me desculpa mesmo, porque eu sei que é Natal e eu não
deveria estar falando assim sobre coisas horríveis, mas é que eu simplesmente não posso
evitar.
Mamãe – Você não tem que se desculpar, Deb. Tommy não está bravo, não é Tom?
Pausa
Mamãe – Tem sim. O que você comprou? Vamos – diga – nos faça feliz.
Mamãe – Sério?
Vovó – Verdade.
Mamãe – Um pé bonito?
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Mamãe – Maravilhoso!
Hazel – Ela quer dizer pornografia. (Para Vovô) Por que você não baixa da internet,
Vovô?
Vovó – Ele tem medo que alguém descubra a identidade dele, Hazel – e de qualquer
maneira, é sempre melhor ter a revista.
Mamãe – Olha, eu sinto muito, mas acho isso errado. Eu não compraria pornografia
para o Tommy.
Debbie – Por favor, para, Mamãe – por que você está tentando fazer o Vovô se sentir
culpado. Ele não vai fazer nada - ele só vai olhar – olhar não é crime.
Vovô – Não fale de mim desse jeito, senhorita. Não sou senil nem impotente – posso
muito mais do que pode parecer.
Pausa
Vovó – Não diga isso, Tom – claro que está bem assada – está deliciosa, Sandra.
Mamãe – Obrigada.
Mamãe – Obrigada.
Mamãe – O pescoço.
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Mamãe – Não recheei.
Vovó – Tem certeza? Porque essas bactérias podem ser muito / perigosas.
Mamãe – Obrigada.
Papai – Então por que estou com esse gosto de vômito na boca?
Papai – Bom, nesse caso, deve ser minha filha particularmente egoísta trazendo de
novo à tona o assunto de sua não planejada e mal arquitetada gravidez diante de toda
nossa família sendo que ela sequer sabe o nome do pai.
Pausa
Vovó – Ele é assim desde pequeno. As pessoas não mudam. Mas ele precisa mesmo
controlar esse temperamento – principalmente no Natal.
Vovó – As pessoas não mudam – você vai se conscientizar disso quando tiver minha
idade.
Mamãe – Hazel.
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Hazel – Ela fez uma lista enorme com tudo que ela quer – e só porque está grávida,
ganhou tudo que pediu.
Hazel – Por que ela não pega ônibus? A Vovó é velha e pega ônibus. E daí que eu
ganhei um vestido – grande coisa – não foi caro assim.
Papai – Mamãe? – de ônibus? – vocês tão brincando – qual foi a última vez que a
senhora pegou um ônibus, Mamãe?
Vovó – Não, ele está certo – isso é fato. Hazel, seu pai está certo, eu não pego ônibus,
ando de taxi. Devo ser uma vovó velha e feia – como você gentilmente assinalou – mas
eu ainda gosto de sentar no banco de trás do taxi e de ser levada pelas ruas –
principalmente durante o pôr do sol do verão com todos os cheiros das plantas e dos
restaurantes vindos através da janela – e ver todas essas pessoas jovens sem filhos em
roupas leves de verão, uma multidão pelas calçadas diante das lojas e dos bares. Gosto
de ver o taxímetro rodando. Gosto de pensar ah, esses dois minutos no taxi já me
custaram o que aquele homem levou uma hora para ganhar esvaziando latões de lixo. E
em noites como essa é glorioso estar no taxi e o fato de eu estar pagando por essa
felicidade faz minha felicidade ser ainda mais doce – e o fato de aquele homem ter que
sofrer e trabalhar só para pagar despesas básicas como luz e água faz minha felicidade
ainda mais doce. Quando estou cruzando essas ruas entulhadas de gente de sua idade,
Hazel, todas essas pessoas sem filhos e sem ninguém para cuidar se espremendo para
fora dos bares como formigas saindo de seus formigueiros, eu às vezes penso se nós não
estamos na beira de alguma enorme e magnífica mudança – vocês não acham? Quero
dizer uma mudança no nosso real material humano. Ainda mais comparado com essa
gravidez da sua irmã – essa gravidez não esperada e idiotamente não planejada como
deveria ter sido, e mais, medicada acima da necessidade por aquelas mesmas razões
lucrativas que têm frequentemente me feito (oh, eu admito) me feito voar para
conferências e me feito reservar quartos em hotéis confortáveis – quero dizer,
confortáveis comparados com o tipo de quarto da reprodução da sua irmã – envolvendo
um tipo de homem, um tipo de penetração, e até talvez (estou só chutando agora,
Debbie) um tipo de olhar arregalado de amor – esse tipo de reprodução deve ser
somente capaz de produzir em larga escala mais do mesmo – mais e mais exatamente do
mesmo – e é isso mesmo que a gente quer? Porque o que estou imaginando – Hazel –
naquele meu taxi, é um novo tipo de ser humano magnífico que pode mesmo nem ser
humano.
Hazel – Bom, eu ainda não vejo motivo para ela precisar de um carro.
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Debbie explode.
Mamãe – por favor, não saia da mesa – por favor – por favor, não exploda desse jeito –
ela não quis dizer isso.
Hazel – Bom, me desculpem, mas eu acho que o jeito que vocês estão paparicando ela é
horrível.
Pausa
Vovó – Ah, eu sei que você acha que sou uma idiota, Tom.
Mamãe – Olha, eu sei que sou apenas sua mãe, Hazel. E sei que isso significa que vou
fazer compras e cozinhar e fazer limpeza para você para sempre. Você voltará para casa
após o seu segundo casamento falido, assim como, eu tenho certeza de que você voltará
para casa após seu primeiro casamento falido, assim como você costumava voltar das
viagens da escola com sua grande mochila cheia de roupa suja para eu lavar e esperando
pelo seu jantar. E tudo bem. Eu concordo que é impossível achar homens leais e
generosos como seu pai, ou como seu Avô aqui. Sim, sou só sua mãe, e como tal eu
espero ser pisada e pisada – e espero desaparecer como um degrau de pedra – e estou
preparada – como uma pedra – para sofrer isso tudo. Mas isso não significa que não
tenho sentimentos, Hazel. Meu coração não é uma pedra.
Mamãe – Obrigada.
Hazel sai.
Tudo bem por aí, Terry? Você quer um pouco mais de carne?
Vovô – Olha, fiquem vocês sabendo que eu não sou senil nem impotente. – Só um
pouco, por favor – Não serei desmoralizado e não serei colocado em um asilo. Há vários
tipos de ereções – uma ereção não precisa ser dura como rocha – e ainda assim pode ser
útil. Eu nunca o prendi no porão. Nunca abusei de você, Thomas – e nunca abusei da
sua mãe – nem mesmo na época em que isso era moda. Passei minha vida nadando
contra a maré. Bem, claro que já tive que fazer um empréstimo na vida, mas eu o paguei
– a polícia não me assusta: não cometo crimes – nenhum crime sério - não me façam
acreditar que estou perdendo a memória e que podem me trancar em um asilo. Eu lutei
para chegar até aqui – tenho dinheiro no banco e gasto como quero: gosto de sorvetes e
de corridas de barcos – e isso não quer dizer que sou uma criança e que deva ser tratado
como tal. Lembrem que vocês estão olhando para um homem que passou quarenta anos
como clínico geral e dez anos na cadeia por um crime que nunca cometeu – ou há algo
de errado em eu enviar kits anti-gravidade para homens que vão ao espaço? Eu queria
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que o Tom tivesse ido ao espaço – eu o segurei no alto quando ele era um bebê e
mostrei a ele a lua – lembra disso, Tom? – lembra daquele pijama de ursinho? Ele podia
ter caminhado na lua – ele não precisava ter passado toda a vida num trabalho
burocrático – pulando de emprego – mas ele não teve a chama – a lua estava muito
longe – ele não podia ser chateado com uma aventura dessas.
Papai – Você nunca esteve preso, Papai. Você nunca foi médico.
Vovô – Nunca disse que fui, Tommy garoto. Não sou idiota.
Papai – Ajudava com a casa? Ele não era capaz de encher uma máquina com roupa.
Papai – Devo estar ficando surdo – sim – mas pelo menos tenho inteligência para ligar
meu aparelho de surdez.
Hazel – Não: a culpa foi minha. Me desculpe mesmo, Mamãe. Eu fui uma completa
filha da puta.
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Debbie – Nós vamos cantar para você, Vovó.
Mamãe – Cantar?
Hazel – Nós queremos cantar para todos vocês, como fazíamos quando éramos
pequenas.
INCRÍVEL PLANO
O revólver disparar
E o cara acertar
Vou mirar seu cabeção
Meter bala em seu culhão
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A faca é real
A lâmina letal
O meu nome tatuar
Se mentir vai se ferrar
Entra do fundo, de onde ele podia ser visto em silêncio: Tio Bob.
Tio Bob usa roupas distintas, talvez uma bem passada camisa pólo e um par de calças
novas.
Tio Bob – Bem, para ser franco com você, eu realmente não faço idéia. Pensei em
simplesmente aparecer, então eu vim. Uma passada repentina. Eu anseio pela
companhia de vocês – anseio em estar com todos vocês – e aqui estou eu. Espero não
dar trabalho.
Tio Bob – Não não não não não – nada de cadeira – Não vou ficar.
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Vovó – Você acabou de chegar.
Hazel – Por favor – por favor, fica – por que não pode ficar?
Tio Bob – Escutem – eu adoraria ficar. Vocês acham que eu não quero? Claro que eu
quero. Que casa mais aconchegante, e com que grande grande acolhimento vocês todos
me receberam. Há tantas razões para eu ficar – e todas elas bastante persuasivas: o
cheiro da carne no forno – vinho tinto – o barulhinho do fogo na lareira (não há lareira)
– essas duas meninas adoráveis com suas vidas inteiras pela frente – e até – se meu
instinto não me engana – e em geral ele me engana – e até – no caso da linda Debbie –
sim – a promessa – e em tão apropriada época do ano! – a radiante promessa de uma
nova vida que se aproxima. E ainda há o prazer de ver minha irmã outra vez – como vai,
Sandra? Não demonstre tanto medo de mim, eu to bem – e de ser – graças ao seu
casamento com nosso Tom aqui – posso te chamar de Tom, Tommy? Ou você prefere
Thomas? – Não tenho certeza se ele consegue me escutar – deixa pra lá, de ser, graças
ao seu casamento com Thomas, Tom, o que seja, parte agora dessa família. Porque sou,
sim, parte agora dessa família, entre os quais eu numero essa senhora Margaret – Peg,
como eu acho que você gosta de ser chamada – sim: Doutora Peg e Terry aqui – feliz
natal, Terry – numero esses dois seres humanos Terry e Peg entre os meus mais valiosos
amigos – e eu estou sendo perfeitamente sincero sobre isso, mesmo podendo ver em
seus olhos – Terry – que você não necessariamente acredita em mim – o que é uma
pena.
Tio Bob – Sinto muito em saber isso, Debbie – mas seu vovô ainda precisa
compreender que quando eu digo que considero ele um amigo, eu to falando sério.
Porque eu realmente quis dizer isso, Terry. Não sou daqueles que conseguem dizer o
que não acreditam – entendeu?
Lindo – de verdade, lindo – sim, tenho mesmo persuasivas razões para estar –
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Debbie – Você tá me machucando.
Tio Bob – Me desculpa – apertei demais? – eu queria poder – sim, eu realmente queria
poder mas não posso. Eu quero, mas não posso. Te machuquei? Me desculpa.
Agora, espera – obviamente – obviamente – eu preferia muito mais que ela mesma
dissesse isso a vocês. Eu disse a ela: uma coisa dessas, Madeleine, você mesma é que
tem que dizer a eles – não eu. Mas Madeleine disse que ela não consegue. E é verdade:
honestamente, ela não consegue. Não há simplesmente uma hora livre no dia. É
monstruosa a carga de trabalho que ela tem. Tanto é que ela está respondendo emails
agora – lá fora no carro – eu sei: é Natal – é injusto – inacreditável – mas esse é o tipo
de vida que ela está levando – agora – acreditem – ela não consegue – como que ela não
consegue? – porque assim que entrarmos no avião o tempo estará morto – horas de nada
– temazepam e então, nada – tempo totalmente morto até aterrissarmos - e mesmo
quando... mesmo quando Bem, de qualquer maneira – o que é que eu estava dizendo? –
ah claro, sobre a Madeleine – sobre o que ela gostaria de dizer a vocês,
Obrigado, Hazel. Que lindo vestido. É novo? Gostei disso – como é nome disso?
Hazel – A barra?
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Tio Bob – O que é que tem, Terry?
(Leve e mais intenso) Mas olha: não sou eu falando agora, é Madeleine. Ela odeia vocês.
Ela acha cada um de vocês, cada um no seu jeito, abominável. Mas vai mais fundo do
que isso, vai muito além disso, muito mais fundo do que isso, porque a coisa afeta ela
fisicamente – afeta a pele dela – por isso agora mesmo – lá fora no carro – ela está tendo
que se entupir de creme. Ela tá sufocada. Vocês, na verdade, estão afetando – sim – é
fato – a capacidade dela de respirar. E é você, Peg, você e o Terry – tudo bem, vamos lá,
vamos começar,por vocês dois então – vocês dois são muito velhos, e ela odeia vocês.
Tá bom? Ela odeia esse esse esse cheiro de vocês – ela diz que vocês dois
cheiram como um tapete velho molhado e queria que vocês estivessem mortos. É
horrível. Eu sei. E não só mortos, ela queria apagar vocês. Eu queria poder selecionar
eles – isso é o que ela diz de fato – e apertar o delete. Eu queria – sim –
permanentemente não só deletar os dois mas cada uma de suas células, cada memória
deles. O que é que me interessa as lojinhas que eles compravam doces? E daí que a Peg
com cinco anos cortou o joelho e ainda tem a cicatriz – e se o Terry se lembra do
barulho das carroças, que caralho isso me interessa, que caralho isso me interessa, ela
diz. Peg, e mais isso tem um custo, um custo considerável, Terry – manter vivo alguém
como você custa dinheiro. Por quê? Por quê? Por quê? – diz Madeleine – nos
importamos? E por favor: não sou eu que digo isso, é ela – sim, por quê nos importamos
com esses velhos idiotas? Olhe pra vida dos dois – uma sucessão de fracassos – um
negócio falindo após o outro: madeireira – acessórios para gatos via correio – depois
teve o pré-agendamento de viagens – não é isso? – para o espaço, para o qual vocês
ficaram com o dinheiro dos clientes após todo o imbecil projeto / ter desmoronado.
Tio Bob – Sim, todos faliram, Terry – todos faliram – e por favor, não me interrompa,
querida, porque eu tenho que pegar um avião e o que eu estou tentando dizer é longo, é
muito muito longo e é difícil lembrar de tudo – sim todos faliram. Todos. E quando a
pobre Madeleine pensa nessa vida de fracassos coroada agora por seu colapso mental,
eu tenho que dizer a vocês, que ela não quer apenas gritar, ela quer tomar ácido.
Mamãe – Robert?
Tio Bob – O que foi? – (pra si) Mas é mais profundo do que isso, mais profundo do que
isso – quer beber ácido, mas vai mais fundo, muito mais fundo do que isso –
O que foi?
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Tio Bob – Você acha que eu não quero ir? Você acha que sinto algum prazer em ter que
estar aqui repetindo o que uma outra pessoa me instruiu a dizer? Você pensa que isso
não me dói? E eu sinto muito, mas ela está certa, Sandra: isso é tão típico de você,
típico de você não conseguir entender o quanto seu próprio irmão pode estar sofrendo
neste exato momento – não é? – não é? Olhe pra mim – não é?
Isso deixa ela enojada, Tom. Me desculpe, sei como dizer isso. Mas ela insiste pra que
eu diga. É o amor. São os longos longos aterrorizantes anos de amor. Eu fui instruído a
dizer a vocês que aqueles longos anos de amor viraram cinzas – sim, é isso mesmo –
queimaram todo o oxigênio e o que ficou foi um vácuo. Eles sequer ouvem minha voz –
ela diz – porque não há ar que possa levar o som até eles. (Ele perde o que estava
dizendo) O mesmo espaço em branco... espaço em branco... o mesmo /espaço em
branco...
Papai – Você precisa se acalmar, Bob, garoto. Tome um drink – venha – é Natal /
relaxe.
Tio Bob - ...que ilumina o mesmo espaço em branco e sim – é isso – se vocês me
deixarem terminar – ela quer pegar sua cabeça, Sandra, entre as duas mãos dela e batê-
la contra a parede – é horrível, horrível – sim, bater a cabeça da minha própria irmã –
bater mesmo – repetidamente contra a parede até que seus seus seus dentes – sim –
se quebrem dentro da boca. Agora – as duas meninas – hummm – para as duas
meninas... (Ele perde o que ia dizer.)
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Hazel – Ah, não, nada nunca é sua culpa – senhorinha “Estou grávida / me comprem
um carro.”
Vovó – Grávidas hoje em dia precisam mesmo de um carro, Robert - / Debbie está
certa.
Tio Bob (para si) – mas é mais profundo do que, é mais profundo do que, do que a
coisa toda / vai muito mais fundo do que isso...
Vovô – Nem todos faliram, Peg – por que ele disse que a coisa do foguete espacial /
faliu?
Tio Bob – (ainda mais leve e intenso) Por que é que você nasceu, Deborah?
Tio Bob – Ela diz: por que é que aquelas duas garotas deles tiveram a ousadia de
nascer? – É terrível. – Não havia teste? ela diz. Por que é que sua irmã não abortou as
duas? – Isso não é a coisa mais horrível que se possa dizer? – E quando Madeleine
pensa nas células de vocês grudadas no útero da minha irmã se separando e separando,
cada célula com a mesma proteína no coração e agora o mesmo código proteico repetido
e repetido dentro do cordão umbilical da jovem Debbie, ela me chacoalha para me
acordar. Sim, ela chacoalha até acordar o pobre Tio Bob de vocês, meninas, e me morde
– vocês conseguem imaginar? E quando eu digo morde, eu quero dizer morde para valer
– escorre sangue. E então ela passa a mão dela desse jeito, meninas, sobre a minha face
– na cama no escuro, meninas – desse jeito – sobre os pobres pobres olhos e lábios do
tio de vocês. E ela sussurra: aquela família – por que é que aquelas meninas tiveram a
ousadia de nascer? O que elas pensavam que iam encontrar na terra? Árvores? Trilhas
legais? Elas esperavam encontrar folhas de peras na primavera? E agora no inverno –
ela diz – quando elas depilam com cera suas pernas na frente da lareira – elas ainda
estão esperando ouvir o alegre pisco de peito ruivo?
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Duas cenas se desenvolvem ao mesmo tempo: no fundo, a família lida calma e
ternamente com Vovô, que engoliu algo por uma via errada e começou a tossir. Na
frente, Tio Bob atende o celular, enquanto Hazel o assiste.
Só estou dizendo que sou um ser Mamãe – Vamos colocá-lo de pé. Ela
humano, não uma máquina: não está certa. Você vai machucá-lo. Não.
consigo – não – não – o que seja –
simplesmente não consigo – Debbie – Vamos lá, Vovô. Fique de
pé.
Eu sei a hora que parte o avião. Estou
completamente ciente da hora que o Vovó – Se ele está engasgado – ele
avião parte, minha querida – nós está engasgado – não vai fazer
planejamos assim – não se preocupe – diferença colocá-lo de pé.
a coisa toda aqui está está está Debbie (colocando ele de pé) – Isso,
está sob controle. Vovô. Tussa. Está melhor agora?
Como? Talvez o senhor queira ir ao
banheiro?
Por que isso?
Papai – Quer ir ao banheiro, Papai?
O banheiro? Não. Me escuta: você não Quer que alguém lave seu rosto?
pode –
Vovô anda em direção ao Tio Bob.
Você não pode vir aqui usar o
banheiro, Madeleine. Não. Debbie – O senhor está indo na
direção errada Vovô.
(Merda. Caralho.)
Também te amo.
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Tio Bob termina o telefonema e vê o Vovô vindo na direção dele. Durante a cena a luz
vai caindo em “fade”.
Vovô – Isso mesmo, seu bocudo. (em um crescente de autoridade e veemência) Eu não
passei os melhores anos da minha vida na cadeia para você vir aqui agora, nesse dia,
com essa sua boca grande me envenenar – e envenenar essa família.
Tapete fedendo a inundação? Vá pro inferno, Bobby garoto. Você é quem não cheira
nada bem.
Um barulho. Todos, exceto Vovô, viram para ver o que é. Madeleine acaba de entrar e
tropeçar em algo no chão. Ela parece uma simples e imprevisível mulher e carrega
uma grande mala.
Madeleine – Obrigada.
Debbie – Papai?
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Vovó – Madeleine engordou? Debbie pega as pílulas do Vovô.
Mamãe e Papai abrem uma caixa Bob – Acho que não, Peg. Por quê?
de papelão com lâmpadas
embrulhadas em jornal. Eles Vovó – Ela me parece mais obesa
Papai – O
colocam as lâmpadas emquê?
diversos do que eu me lembrava dela.
soquetes e as Debbie
acendem.
– Que horas são? Hazel – Mais obesa?
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Bob – Sim, estamos – nós estamos a
caminho do aeroporto nesse exato
momento.
(para Deb) – Não consigo
controlar sua irmã
- exatamente
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Falando ininterruptamente desde o momento em que ela aparece – e totalmente
transformada – Madeleine volta. Ela está usando um lindo vestido de alta costura e
irradia charme, carisma, convicção e poder.
Porque esse seu irmão, Sandra – e muito obrigado por me deixar usar o seu banheiro –
pode ser terrivelmente indiscreto. Ele não consegue guardar um segredo que seja. E
mais, sexualmente também – você consegue, Robbie?
Madeleine – Cadê a mala? Cadê a mala? Estou falando da sua indiscrição, (pega na
mão dele) Não to falando de bagagem – sim, sexualmente ele fala de tudo, ele
simplesmente não se contém – não que eu ligue – é da natureza dele – eu espero isso –
eu o encorajo – ele precisa disso – tentem vocês pará-lo! – não é assim, meninas? (se
aproximando de Hazel) Aposto que ele já fez essa aqui – doeu? – ele deixou marcas? –
ele foi rapidinho – no banheiro? – ou foi naquela gracinha de cama com travesseiro em
forma de coração? – sim – sim – posso ver nos olhos dela – foi a primeira vez dela? –
ele nunca se lembra, minha querida – o problema não é você – (aproximando-se de
Debbie) E opa – opa – opa – opa – essa deve ser a que engravidou – que tristeza – isso é
de dar pena e de uma tristeza – mas, oh, meu Deus de repente eu me dei conta onde é
que eu ia me trocar?
Não dá pra dizer a vocês o quanto é quente e flexível – me sinto como se tivesse
encaixada dentro da minha própria vagina. Seda pura. Vocês podem tocar se quiserem.
Madeleine – Hã?
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Madeleine – Achei que eu fosse amiga. Achei que eu fosse amiga de suas filhas, amiga
de sua família. Mas tudo bem tudo bem tudo bem –
(Com um novo foco) Escuta, Sandra, percebi que não vou fundo. Nenhum de nós vai
fundo como vocês todos. Nós vamos Robbie?
Madeleine – O Robbie tenta – mas eu sequer faço essa tentativa. Ir fundo? Por quê?
Não. E vou repetir. Não. Porque essa nossa nova vida – o que vai ser? Vamos, Robbie –
eu disse o que vai ser essa nossa nova vida?
O quê?
O quê? DIGA!
Madeleine – Fina – Tom – Sandra – meninas – Terry – Peg – uma fina lâmina de vidro.
E é claro que ele já disse tudo para vocês. Não disse?
Tio Bob – Sim, eu disse tudo aquilo. Por favor – vamos pegar a / mala agora.
Tio Bob a beija cautelosamente nos lábios. Percebendo que ela aceita, ele tenta fazer
com que o beijo se torne mais profundo e sexual. Madeleine deixa progredir, depois
habilmente o empurra para trás, e olha para os demais com ar de triunfo.
E musica!
Ela canta:
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Mas eu nunca vou fundo
Eu nunca vou fundo
A fundo eu nunca vou
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AS CINCO LIBERDADES ESSENCIAS DO INDIVÍDUO
E – Eu escrevo o roteiro da minha própria vida. Faço de mim o que eu sou. Essa minha
face é única – e essa minha voz é única. Ninguém – olha só - fala do jeito que eu falo
agora. Ninguém se parece comigo e ninguém – eu disse olha só – ninguém consegue
imitar esse meu jeito de falar.
T – Eu sou o cara.
T – Eu sou o cara.
Pausa
C – De jeito nenhum.
E – De jeito nenhum alguém pode falar do jeito que eu falo. Eu faço de mim o que sou:
Sou livre- ok? – para me inventar enquanto sigo.
T – Sim me invento enquanto sigo. Sou aquele que faz de mim o que sou.
C – Eu disse que sou aquele que faz de mim o que sou – ok? Tenho minha própria voz:
Não repito o que as outras pessoas falam.
E – De jeito nenhum eu repito o que as outras pessoas falam. Sou aquele que escreve o
roteiro.
T – Sim sou aquele escrevendo o roteiro da minha própria vida agora. Sou eu que faço
de mim o que sou – não a minha mãe nem meu pai.
C – De jeito nenhum minha mãe ou meu pai fazem de mim o que sou. De jeito nenhum
eu repito o que outras pessoas falam ou sigo – obviamente – algum tipo de roteiro.
C – Por favor não venha aqui me dizendo que eu não faço o que eu faço ou que eu faço
o que não faço. Não venha tentar me dizer que não vivo como eu vivo. Eu sou forte. Eu
tenho escolhas
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C – Eu posso construir um foguete espacial no meu próprio quintal.
T – Sou eu quem destrói a furadeira elétrica de alta velocidade do papai, e sou eu quem
destrói a escova de privada cor de rosa da mamãe. Eu destruo o sofá dela e mais as duas
cadeiras combinando, e aí ela perde a cabeça. Eu destruo a TV dela. Pego uma marreta e
destruo a cama deles e o abajur de cabeceira e o relógio de cabeceira. Eu destruo a mesa
de cabeceira da minha mãe e sua penteadeira com os três espelhos. Com um machado –
é fato – eu destruo a cadeira de balanço. Com um machado – é fato – eu destruo o
quadro dos dois cisnes. Sou eu quem destrói o guarda-roupa da mamãe. Sou eu quem
destrói o guarda-roupa do papai e quebra o cinzeiro de vidro agora que ele está morto.
Eu quebro a espreguiçadeira de plástico branco do papai, quebro as ferramentas de
jardim – a enxada – o ancinho. Eu destruo o carrinho de chá de sábado com bandeja
destacável da minha mãe. Sou eu quem destrói os potes, frigideiras e o mixer elétrico –
sim o mixer elétrico e o conteúdo dos armários, quero dizer todos os pratos tigelas facas
garfos colheres e pacotes de macarrão. E mais eu pego o aparelho auditivo do papai e
quebro assim! no meio de dois tijolos. Tudo certo. Posso lidar com isso.
T – Sim.
E – Sim.
T – Deixa comigo.
C – Sim, pode deixar comigo – Eu escrevo o roteiro e posso lidar com ele.
E – Não venha aqui me dizer que não posso. Não venha aqui me dizer que não sei como
viver e que não sou desejável. Que se foda se você não gosta do jeito que eu falo.
T – Que se foda se você não gosta da minha religião, sim, ou do jeito que eu falo.
C – Então que se foda completamente se você não gosta da minha o quê? O quê? O
quê? Vamos lá – fala – minha deficiência?
E – Racista.
T – Anti-semita.
C – Fascista do corpo.
E – Cuzão.
E – Que se foda se você não gosta dos meus saltos ou da minha saia curta. Não venha
aqui me dizer como devo me vestir: Eu tenho um estilo único.
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T – Estou escolhendo aqui e agora o curso da minha própria vida nesse momento e mais
estou fazendo com que tenha sentido.
C – Você acha que minha vida não faz sentido? Você acha que eu o quê? Que eu
esqueci minha própria senha?
E – Você acha mesmo que eu não posso abrir o documento da minha própria vida?
T – Errado!
E – que não posso mudar o que eu gosto? – que não posso deletar o que quer que eu
queira?
T – Errado!
C – Você pensa mesmo que eu não posso deletar meus próprios pais ou alterar a minha
aparência? Você acha mesmo que eu não posso fazer mudanças no meu próprio corpo e
mantê-las
T – Errado!
C – ou te falar quando me foder ou te falar quando parar? Você acredita mesmo que eu
não posso acessar meu amor mais profundo 24 horas por dia 7 dias por semana e
aprofundá-lo ainda mais? Você acha que eu não tenho essas habilidades?-
T – Errado!
C – que não posso escrever meu próprio roteiro? – que não posso transformar um crime
sexual em algo vantajoso pra mim? – que não posso tornar um sanduíche de frango ou o
grito de uma criança sequestrada em minha própria vantagem pessoal?
E – Você pensa que eu não sei como clicar num trauma e arrastá-lo para dentro do
documento da minha própria vida? Você pensa que eu não sei onde inserir o foguete
espacial?
T – Errado!
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DO QUE PRECISA UM SER HUMANO
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(NADA POLÍTICO)
E – Eu não quero causar problemas no aeroporto: levanto meus braços, afasto minhas
pernas, me deixo ser revistada. Quanto mais tempo sou revistada, mais segura eu me
sinto. E mais: estou feliz por estar na fila: é lógico.
E – Eu disse que é lógico entrar na fila, é lógico passar um de cada vez através do arco
do detector de metais. Faz sentido voltar pra trás se o alarme soar, e faz sentido ser
revistada e filmada. Não é como se eu estivesse procurando problemas.
R – Estou afastando minhas pernas. Estou deixando meu corpo ser tocado. É um corpo
normal, não representa nada. Meu corpo é ok. Tenho uma bunda ok.
D – Essa é minha bunda- ela não representa nada. Minha bunda não é parte de um
grupo. Minha bunda é feliz aceitando as coisas como elas são, e mais, não há nada
escondido dentro dela.
D – Não tenho nada escondido em meu ânus. Minha vagina está vazia. Eu deixo minha
vagina ser revistada. Quanto mais profundamente você vasculha minha vagina, ambas
nos sentimos mais seguras – não é nada político – não há nada político sobre meu corpo.
E – Não há nada político sobre meu corpo e não há nada político sobre as minhas férias.
R – Nada mesmo.
D – Eu disse que não há nada político sobre minhas férias mesmo - eu volto renovada -
não é como se tivesse algo a esconder- eu afasto minhas pernas.
E – Eu afasto minhas pernas, eu me deixo ser revistada, e mais, eu abro minha bolsa. Eu
não tenho nada a esconder – estou trazendo – calças de férias, chapéu de férias.
R – Sim essas são minhas próprias criancinhas. Eu não as roubei, não as estou
traficando. Suas vaginas como vocês podem ver estão vazias como estão vazios seus
bichinhos de pelúcia.
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E – Que doçura!
R – Não há nada político sobre minhas crianças ou suas escolas. Minhas crianças como
vocês podem ver perfeitamente bem são cem por cento normais – levantam seus braços,
afastam suas pernas, apresentam seus próprios documentos
D – Radiografias de queijo – scanners dos meus olhos e mais cliques para explorar
minha conta bancária mais cliques para identificar minha data de nascimento e atual
regime de remédios – não tenho nada a esconder.
D – Não tenho nada mesmo a esconder: minhas medicações estão na sacola – veja você
mesmo – não é nada político.
D – Minha medicação está numa sacola transparente – não é nada político – quanto
mais eu estou medicada mais ambos me sinto segura.
R – Quanto mais profundamente eu medico meu próprio filho, ambos nos sentimos
mais seguros. Eu tenho direito a identificar a molécula.
R – Eu tenho direito de examinar meu próprio filho. Tenho um direito humano – sim –
a identificar a molécula que faz meu filho infeliz ou impede que meu filho se concentre
ou que o faz gritar.
E – Que doçura!
2
R – Se meu filho corre pelo aeroporto gritando, eu lhe dou sua medicação. Se ele tosse
– se ele não consegue se concentrar.
R – Se meu filho diz que se foda a Imigração. Se meu filho xinga a aeromoça de puta.
R – Se meu filho fala seu cuzão para um oficial com uma arma ou começa atacá-lo com
os punhos, eu o medico.
E – Que doçura!
R – Eu corrijo meu filho: dou a ele o xarope cor de rosa – e o alimento com a cápsula
amarela.
E – Ele gosta de ser corrigido – gosta da luta para abrir as mandíbulas - e o quão calmo
R – Sim o quão calmo ele está agora depois do xarope cor de rosa – o quão inteligente
depois da cápsula de cem miligramas
R – E mais quando eu leio pra ele um livro para adultos como os olhinhos dele brilham!
Vocês precisam ver como ele segue as travessuras traiçoeiras de Susan e Bill – e da
melhor amiga de Susan, Jenny. Ah o Bill ama a Susan tão profundamente – mas confia
nela tão pouco! Ele a deixa trancada – mas mesmo trancada ela mente - se esgueira pra
fora - volta pra sua velha amiga Jenny – se espalha no divã macio e afasta suas pernas -
e Bill descobre. Ah sim, que agonia quando Bill descobre que ela está molhada entre as
pernas pela Jenny! Mas ao invés de se confrontar com ela, ele só faz mais promessas e
dá a ela – a Susan quero dizer – presentes cada vez mais extravagantes! Um vestido!
Um carro de luxo! Ah o que faz o ciúme! O que faz a agonia autodestrutiva do amor
humano! - mas ei ei ei – não que eu seja esnobe com relação a meu filho.
E – De jeito nenhum.
D – De jeito nenhum, você acha que estou falando o quê? – que existe um tipo de
entretenimento baseado num texto intelectual pra mim e um outro tipo de
entretenimento – bem deixa eu ver – hummm – o quê – tipo um filme baseado em lixo
proletário? - sério? - é isso o que você pensa? - para os menos favorecidos? - para os o
quê? Para os pobres? Me poupe. Você está brincando. Não me venha com essa merda.
D – Não venha com essa merda sobre ricos e pobres pra cima de mim – cresça – sim
você ouviu oque eu disse: cresça – e não tem nada político nisso – isso é sobre mim e
como eu me sinto.
R – Como posso não sentir o que eu sinto sobre meu próprio filho? Como posso não
sentir o que eu sinto sobre meus próprios sentimentos? Porque é um fato que eu sinto o
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que eu sinto. Não venha aqui me dizer que eu deveria o quê? Deveria resistir à
segurança. Por que eu deveria resistir à segurança? Não. Eu preciso da segurança. Eu
acredito na segurança. Eu completo a segurança. Eu fecho a minha bolsa.
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C – Substitua meu coração e aumente meus peitos – faça meus lábios crescerem.
C – Afaste as minhas pernas – faça amor comigo – me foda e suma com o meu filho –
me surpreenda no meu aniversário – me surpreenda com um filhote de gatinho.
T – Faça de mim um pai de nove anos de idade – me examine – me interne para testes.
C – Me foda e suma com o meu filho e mais me interne para testes – teste meu sangue –
teste minha saliva – eu tenho esse direito – esfregue um cotonete na minha boca.
A – Tire sangue – examine meu corpo – escaneie meu cérebro - eu tenho esse direito.
C – Eu tenho direito a ser escaneada – tenho direito que me ofereçam uma grande
variedade de doenças sérias: câncer terrível, sofrimento terrível.
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C – Meu medo terrível da demência – do parto – das fortes dores de cabeça - da péssima
ressaca- minha reação alérgica a frutos do mar – meu choque anafilático.
C – Minha visão defeituosa e o fedor dos meus dentes cariados – meu vício em
remédios controlados.
A – Minha uretra que arde, minha perda de peso crônica, minha interdição, minhas
estrias, meu nariz quebrado e vício em sexo, vício em morfina, vício em compras e mais
meu estresse pós-traumático e mais minha infertilidade e mais minha longa longa
história de abusos.
T – Meus anos de horrível abuso nas mãos daqueles em quem eu confiava: minha mãe
abusiva, meu padre abusivo.
A – Meu bebê horrível e abusivo mais flashbacks do meu padre abusivo. Tire sangue.
A – Me ofereça terapia.
A – Me salve.
C – Me examine.
pare.
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D – É verdade eu decidi que precisava de terapia. Eu decidi que precisava mudar. Havia
coisas no meu passado que eu não estava confrontando. Eu precisava confrontar essas
coisas e mudar.
E – Por exemplo –
A – Por exemplo, nunca falei com ninguém sobre minha mãe. Nunca falei com ninguém
sobre meu Pai e minha Mãe. Nunca falei com ninguém sobre minha infância.
A – Eu tinha flashbacks –
E – Sim eu tinha flashbacks da minha infância e mais eu tinha problemas com meu
parceiro sexual.
A – Eu estava irritada.
D – Eu estava irritada. Eu precisava deixar minha raiva para trás e seguir em frente.
A – Eu precisava falar com papai. Mas como eu podia falar com papai? Eu nunca tinha
falado com papai. O papai nunca falou comigo.
A – Papai nunca falou comigo e papai nunca falou com mamãe. Papai nunca falou. Será
que papai tinha flashbacks? Se papai tinha flashbacks ele nunca falou sobre eles e se o
telefone tocava papai nunca atendia.
A – Papai nunca atendia o telefone. O telefone tocava e tocava, papai nunca atendia.
Existiam problemas que papai não estava confrontando? Coisas sobre seu corpo? –
coisas sobre o telefone?
A – Eu não podia falar com ninguém sobre papai. Eu não podia falar com ninguém
sobre a irmã de mamãe. Eu tentei.
E – Eu tentei.
D – Eu tentei.
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E – Eu tentei falar sobre a irmã da mamãe com o meu parceiro mas havia problemas:
havia problemas com o corpo do meu parceiro e havia problemas com o gato do meu
parceiro. Eu estava irritado.
E – Eu tinha flashbacks.
A – Eu tinha flashbacks onde eu via neve – podia ver neve – podia ver um jardim sob a
neve – caules negros de um bosque de groselheiras – neve espremida dentro das minhas
luvas de lã – tinha papai perto do foguete espacial queimando uma pilha de folhas, olha
– e depois sumia.
A – Tinha o cheiro da luva úmida, tinha a mamãe empurrando o carrinho de chá com o
chá de sábado, olha – e depois sumia. Tinha aquela batida forte no vidro – olha, olha,
escuta! – e depois sumia. O que significavam esses flashbacks?
E – O que significavam esses flashbacks? Por que eu estava irritada com o gato do meu
parceiro? Por que quando o meu parceiro me tocava eu fugia? Era por causa do gato?
E – Era o gato ou a irmã da minha mãe? Por que a irmã da minha mãe estava batendo na
janela? Por que fazia aquele som? Ela estava batendo com quê- era uma chave? Eu tinha
parado de apreciar comida.
A – Sim.
A – Sim.
A – Sim.
D – Eu odiava mesmo meu trabalho. Sinto muito. Odiava minha chefe. Eu odiava o jeito
quieto dela de ficar atrás de mim enquanto eu trabalhava. O jeito que ela comia
sanduíches me irritava.
E – O jeito que ela cutucava o recheio com a unha, o jeito que ela falava hummm tem
pouco frango.
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D – O jeito que ela falava tem pouco frango me irritava: eu não podia falar com ela. Eu
tentei.
D – Eu tentei e tentei falar com ela sobre meu trabalho, eu tentei falar com ela sobre
meu pai, sobre meus flashbacks. Eu tentei e tentei falar com ela sobre apreciar sexo mas
havia um trauma: havia um trauma no passado da minha chefe. Por que outra razão ela
cutucaria o recheio do sanduíche? Por que outra razão ela pintaria as unhas de verde
brilhante? Minha chefe estava transtornada. Talvez os pais dela – quem sabe? Era por
causa de raça? Era por causa de classe social? Eu me recusava a especular.
D – Eu estava irritado agora que meu pai estava morto. Como eu poderia conversar com
papai agora que papai estava morto? Como eu poderia conversar com papai sobre meus
flashbacks? Agora eu não poderia conversar nunca com papai sobre o frango da minha
chefe ou as batidas da irmã da minha mãe. Agora eu não poderia falar nunca com papai
sobre o corpo do papai. Papai estava morto.
A – Eu nunca falaria com meu pai sobre minha mãe. Eu nunca falaria com meu pai
sobre a massa perdida do universo. Eu estava sozinho. Sim eu estava sozinho. Eu odiava
meus pés.
A – Eu odiava - é verdade – olhar meus próprios pés. Eu odiava – sim isso é verdade –
olhar entre minhas próprias pernas agora que papai estava morto. Eu fugi do meu
parceiro, eu fugi do olhar fixo do meu parceiro. Havia coisas sobre o meu corpo com as
quais eu não podia me confrontar. Eu precisava deixar essas coisas para trás e seguir em
frente. Eu usava meias.
E – Eu usava meias. Eu cobria meus pés. O tempo todo eu cobria meus pés com meias e
cobria o meio das pernas. Eu estava apavorado. Eu estava aprisionado pelo olhar fixo do
meu parceiro. Eu não podia amar, eu não podia amar a mim mesmo ou confiar no meu
parceiro. Eu não podia afastar as minhas pernas ou confiar meu amor ao meu parceiro.
D – Eu não podia comer castanhas. Não havia uma só castanha que eu pudesse comer.
Castanhas me enjoavam.
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D – Eu me rastejava até minha cama e cobria o meio das minhas pernas. Eu cobria
minha cabeça. Minhas meias eram cor de rosa. Eu não conseguia dormir.
E – Eu podia provar vômito. Meu parceiro dormia. Eu não podia confiar meu amor ao
meu parceiro. O quarto estava escuro. Eu cobria minha cabeça. Eu cobria o meio das
minhas pernas. Eu vi o bosque de groselhas do papai coroado com neve.
Longo silêncio.
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R – Eu como, eu me olho, checo se estou bem, vejo meus próprios olhos, eu pareço
bem.
R – Eu pareço muito bem. Eu pareço bem gostosa. Tenho feito exercícios. Eu pareço
uma boa foda.
D – To fodendo com meus bons amigos depois checando meu peso. Eu como peixe.
D – Olha pra mim. Eu disse pra olhar pra mim. Olha pra mim comendo fruta. Olha pra
minha boca – não só para os dentes – olhe pra além dos meus dentes, olhe para além da
minha língua – olhe dentro da minha garganta – venha através de minha garganta e
entre no meu estômago – entre no meu estômago, passe pelo meu intestino e olhe ao
redor, sim, dê uma boa olhada ao redor do meu intestino, dê uma boa olhada, dê uma
boa olhada no meu agradável e longo intestino e emirja pela minha bunda. Olha pra
mim. Olha pra minha bunda.
C – To andando de bicicleta.
2
minha própria bunda por trás do jeito que você pode ver minha bunda quando você está
atrás de mim.
T – Havia muita merda sobre o quanto as coisas iam mal, sobre como as pessoas
paravam de viver e morriam. Eu to dizendo que eu estaria de saco cheio com essa
história de que havia pouco peixe – ou pouco dinheiro – e com o tanto de crianças
adoecidas, e com o quanto era ruim e difícil pra caralho.
D – Todo mundo tinha cortes de cabelo realmente horrorosos e mais eles estavam sendo
acuados e baleados ou estavam deixando suas crianças doentes ou havia um iminente
não-sei- o-quê –
T – Catástrofe.
T – O mundo estava sempre acabando, isso mesmo, numa explosão de luz ou por
escassez. O tempo passou – ah sim – mas o tempo não tornou nada melhor – o tempo
faz você se sentir uma merda.
R – O tempo faz você sentir que você desperdiçou sua vida: ou você passou sua vida
com a pessoa errada ou nunca achou a pessoa certa pra passar a vida com você –
lembra? ou passou toda sua vida com a pessoa certa mas é claro que nunca se deu conta
disso até que a pessoa adoeceu ou morreu e você ficou sozinho sim completamente
sozinho – e então veio a tsunami, então veio qualquer coisa como uma aniquilante
explosão de luz. Foi uma merda tão grande, um vazio tão horrível: ninguém nadava,
ninguém andava de bicicleta, ninguém comia fruta. Eu entrava em uma loja de sapatos e
não havia sapatos, ou entrava em um teatro e lá não havia sei lá o quê –
R – Sim eu ia em uma loja de comida em outros tempos e via que não tinha comida, ou
num banco e o banco estava sem dinheiro. Mas agora –
D – Mas agora –
2
C – Mas agora –
T – Mas agora –
R – Porque o que eu estava falando é que agora quando eu vou à loja de peixe tem peixe
– tem peixe – tainha e cioba – caranguejos frescos.
D – Tem – sim – uma tainha na loja de peixe e ameixas maduras na frutaria e mais se eu
quiser mocassins de marinheiro com solado de cordas na loja de sapatos então eu os
compro. Compro os mocassins. Vou velejar com eles.
T – Vou velejar – é fato – com meus mocassins de sola de corda – um aceno do mar –
mergulhando do deck envernizado.
C – Eu espirro água.
D – Eu gosto de espirrar muita água! Olhe como eu aceno – olhe como eu flutuo na
quente luz branca.
C – Eu flutuo muito na quente luz branca do sol que bate perto do barco! Depois subo
pela corda. Depois tomo um gole de uma bebida gelada, dou uma mordida num lanche
quente.
R – Eu estou mordendo. Estou mordendo a boca da minha amiga agora. Tomo um gole
do sangue da minha amiga. Estou molhando meus lábios com sangue e mais lanchando
caranguejo fresco.
T – Estou lanchando caranguejo fresco muito! Estou mordendo muito! Estou mordendo
com força. Estou lanchando sangue muito! Olhe os meus lábios molhados! Olhe o meu
pau duro!
Pausa.
Está olhando?
D – Sim.
2
à indefinida extensão da minha vida, quando estiver na posição para notar o potencial
não só do meu barco, não só da minha bicicleta ou do meu rabo e olhos sorridentes –
não só dos meus dentes afiados – mas de toda circular expansão da minha inteligência –
você não percebe? – eu te perguntei: você não percebe?
Pausa
Eu checo meus vegetais. Checo o sangue nos meus inchaços. Eu pareço bem.
MEU UMBIGO
2
NA REPÚBLICA DA FELICIDADE
Paradiso, I, 91
Uma sala enorme. Durante o dia. Grandes janelas sugerem uma paisagem verde – mas
a paisagem é indistinta.
A sala está completamente vazia – exceto, talvez, pelo que se parece com uma mesa
para máquinas de datilografia. Tio Bob está sozinho. Escuta.
Maddy?
Madeleine?
Ele escuta
Maddy?
Madeleine – Onde eu achei frango? Bom, estava no sanduíche. Estava delicioso. Tava
ótimo. Quer um?
Madeleine – É – um sanduíche.
2
Madeleine – Tem certeza?
Pausa
Madeleine – Então?
Madeleine – Tá pronto?
Madeleine – Robbie?
Pausa
Tio Bob (com humor) – Tipo o quê? Não. Sua vaca. Claro que não.
Madeleine – Agora.
2
Tio Bob (sorrindo) – Tenho que lembrar de tanta coisa.
Madeleine – Não. Você não tem. O que você quer dizer? Lembrar do quê?
Madeleine – Eu não disse pra você dizer coisa nenhuma: você fala o que você quiser.
Madeleine – Sim, o que você quiser, Robbie – você sabe que pode – seja lá o que for.
Pode me chamar de vaca, você pode dizer o que você quiser. Vai. Diz.
Algum problema?
Madeleine – É isso mesmo que você está dizendo ou você quer dizer que quer que eu
ajude a você a dizer alguma coisa?
Madeleine – Eu disse: “me ajuda” é o que você quer dizer mesmo ou você/ quer dizer-?
Tio Bob – Não sei. Você disse que eu podia dizer qualquer coisa.
Madeleine – Faça que tenha sentido – tem que fazer sentido, Robbie – você não vê o
quanto isso é importante? Tem que haver regras.
Madeleine – Bem, minhas regras, claro – você não vê o quanto isso é importante?
Então?
Madeleine – Como?
2
Tio Bob – Sim, eu sei como você é.
O quê?
Madeleine – Mas estou aqui, Robbie. Exatamente aqui na sua frente. Você pode ver
como eu sou. Eu sou assim.
Madeleine – Sim, estou Robbie, olhe pra mim. Olhe pra mim. Eu disse não se vire e
olhe pra mim.
Ele olha.
Agora. Me diga como eu sou – não diga que não consegue se lembrar.
2
Tio Bob – É?
Madeleine – Fale.
Madeleine – Lacuna?
Madeleine – A cabeça dela é uma lacuna – é isso que você diz pra todos eles?
Madeleine – Nas suas palestras – Estou falando das palestras que você dá para eles, pra
todos eles, Robbie – estou falando do seu emprego – estou falando sobre / a canção.
Madeleine – Como?
Tio Bob – Por que você não me deixa dormir? – Por que você está sempre me
chacoalhando pra me acordar?
Tio Bob – Mas você sabe o quanto eu sou feliz. Você não precisa me chacoalhar.
Madeleine – Não?
Madeleine – Te mordo pra te acordar. Eu quero que você veja a árvore. Eu quero que
você veja as flores brancas. E oh – oh – Robbie – o limpo ar da primavera! – Eu preciso
que você acorde por mim e sorria.
Madeleine – Não – nunca – você se debate – você range os dentes – você se debate e
range os dentes no meio das minhas pernas.
2
Madeleine – Sim, você se achega entre minhas pernas como se você não estivesse feliz.
Por quê você esqueceu?
Madeleine – Eu acho que você esqueceu o quanto você é mesmo feliz. Eu acho que
você está começando a esquecer o quanto esse mundo faz você feliz – rangendo seus
dentes – agarrando – se debatendo. O que é que você quer? O que é que você não tem?
Madeleine – Hum?
Madeleine – Hum?
Tio Bob – Não sei – Não sei até que você me diga – mas, escuta – escuta – você
você você me disse “ a árvore” – mas eu não a vejo – e mais, você me diz “ oh
as flores brancas” – mas onde – sim – onde está o galho carregado delas? E quando
você me diz – você me diz – “puro ar de primavera” por que é que eu não sinto esse ar
passando pelo meu rosto? Por que é que eu só sinto as suas mãos? Ou seus dentes
afiados?
Que palestras? Onde estão todos eles? Por que é que eles não estão se aglomerando pela
escadaria? Ou usando copinhos de café? Por que é que não estou ouvindo o amassar dos
copinhos plásticos? É porque estou surdo?
Você fala do mundo mas eu escuto e escuto e eu não o escuto. Para onde foi o mundo?
O que foi que nós fizemos? – nós o selecionamos e clicamos? –mmmm? Nós o
deletamos por engano? Porque eu olho por aquela janela e eu não reconheço o que estou
vendo, como se eu estivesse abrindo a minha boca agora, minha querida – olha para ela
2
– olha – abrindo a boca agora – aqui – minha boca – agora – olha para ela – e eu não sei
o que está vindo – isso é o que estou dizendo ou isso é o que você disse para eu dizer?
Como posso saber? Quando é que eu vou me lembrar? E claro, eu sou feliz, mas me
sinto como aqueles personagens, Madeleine, cruzando uma ponte enquanto a ponte vai
se desmoronando atrás de mim, ripa, por ripa e eu continuo fugindo – como? O que é
que não me deixa cair?
Madeleine – Robbie?
Tio Bob (introspectivo) – Mas é mais profundo do que isso, mais profundo do que isso,
a coisa toda vai mais / fundo do que isso.
Madeleine – Robbie?
Madeleine – Por favor, não grite. Por que é que você sempre fica assim?
Madeleine – Sim, mas por que é que você sempre fica assim? O que é que todos eles
vão pensar – mmmm? Porque você precisa do respeito deles.
2
Tio Bob – Com cada sílaba excitante da nossa canção.
Pausa
Madeleine – Eu sei, mas estou falando de outra coisa agora – sobre te levar para uma
viagem.
Madeleine – Não é?
Madeleine – Podemos ir do jeito que você quiser. Mas precisamos deixar você um
pouco mais arrumado primeiro, não é? (sorri) Olhe pra você.
Ela vai até ele e afetivamente ajusta suas roupas. É a primeira vez que eles se
aproximam fisicamente.
E os seus olhos.
2
Madeleine – Durante a noite.
Quando eu mordo.
Beije, Robbie.
Ela sorri e está para se virar quando ele a agarra e a beija com mais força. Ela luta
para se livrar – uma longa e silenciosa intensa luta – até que finalmente ele é
empurrado para longe.
Madeleine?
Ele escuta.
Madeleine?
(introspectivo) Mas é mais profundo do que isso, mais profundo do que isso, vai muito
mais fundo do que isso.
2
Uma música estranha se torna audível – uma frase brilhante e repetitiva – meio música,
meio máquina.
Ele escuta.
Madeleine?
Madeleine reaparece com uma fonte de som – uma caixinha brilhante, que ela coloca
no chão. Ela entrega um microfone ao Tio Bob.
No microfone.
Madeleine – No microfone.
Tio Bob –
Pausa longa
FIM