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Repertório, Salvador, nº 26, p.88-94, 2016.

PARADOXOS E
PARADIGMAS: A
ETNOCENOLOGIA, OS
SABERES E SEUS LÉXICOS*
Graça Veloso1

Resumo: Trata-se este de uma reflexão sobre os proces- Espetaculares Organizados – PCHEO, nomes como
sos de consolidação da Etnocenologia como uma nova Jean Duvignaud, Cherif Khaznadar, Jean-Marie Pra-
área de saberes sobre a cena na contemporaneidade. dier, Rafael Mandressi e Armindo Bião, dentre outros,
Desde sua criação, em colóquio realizado na Maison des passaram pelo envolvimento em intermináveis, e muitas
Cultures du Monde, em Paris, em 1995, os pesquisado- vezes duras, discussões teóricas. Ao ponto de, com o
res ligados a esta nova disciplina tem se deparado com passar do tempo, chegarmos à conclusão de que a Et-
um de seus maiores desafios: a definição de seu corpus nocenologia teria pelos menos duas vertentes distintas:
de investigação, seu objeto de estudos. Já nos embates uma francesa, cujas referências principais ficaram em
iniciais, para a formulação de seus escritos de fundação, Pradier, e outra, brasileira (inicialmente baiana), centra-
diversas foram as abordagens, o que resultou, em vários lizada na figura de Armindo Bião. E mesmo a definição
momentos, em acaloradas disputas intelectuais. Para se de Práticas e Comportamentos Humanos Espetacula-
chegar ao consenso epistemológico de que a disciplina res Organizados deixou de ser algo que contemplava
iria estudar as Práticas e Comportamentos Humanos a todos nós. Assim, refletindo sobre o corpus teórico
metodológico da Etnocenologia, este trabalho se pro-
põe também a discutir a questão da utilização de um
* Conferência realizada no I Encontro Nacional de Et- léxico próprio e referente a cada manifestação investi-
nocenologia, de 12 a 15 de abril, Salvador - Bahia. gada, como estratégia de reconhecimento da alteridade.
1
Graça Veloso (Jorge das Graças Veloso) é ator, dire-
tor teatral e dramaturgo. Com pós-doutorado em Arte Palavras-chave: Etnocenologia. Artes cênicas. Saberes
e Cultura Visual (2014) pela Universidade Federal de da cena.
Goiás – UFG, tem doutorado (2005) e mestrado (2001)
em Artes Cênicas, ambos pela Universidade Federal Résumé: Ce travail est une réflexion sur le processus
da Bahia – UFBA. Graduado em Comunicação So- de la consolidation de l`Ethnoscénologie comme un
cial – Publicidade e Propaganda (UNICEUB – 1978) nouveau domaine de la connaissance sur la scène de la
e Licenciatura em Artes Cênicas (Faculdade Dulcina, contemporanéité. Depuis sa création dans le colloque
2006), é docente no Departamento de Artes Cênicas realisé à la Maison des Cultures du Monde à Paris en
nos Programas de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes 1995, les chercheurs associés à cette nouvelle discipline
(VIS), Artes Cênicas (CEN) e ProfArtes da Universi- sont confrontés à l'un de ses plus grands défis: définir
dade de Brasília. Pesquisador em Etnocenologia, é au- votre recherche de corpus, leur objet d'étude. Déjà dans
tor de A Visita do Divino; Benedito e, em parceria com les premiers affrontements, pour la formulation de ses
Jove Benedito Veloso, Memória Recontada, todos pela écrits de foundation, ils ont différentes approches, qui
Thesaurus Editora, e Bendito Divino Consagrado (no ont abouti dans des conflits intellectuels chauffés. Pour
prelo). Contato: jorgegracaveloso@gmail.com. atteindre le consensus épistémologique que la discipline
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allait étudier les Pratiques et Comportements humains a disciplina iria estudar as Práticas e Comporta-
spectaculaires orgarnisés - PCHEO, des noms comme mentos Humanos Espetaculares Organizados –
Jean Duvignaud, Cherif Khaznadar, Jean-Marie Pra- PCHEO, nomes como Jean Duvignaud, Cherif
dier, Rafael Mandressi et Armindo Biao, entre autres, Khaznadar, Jean-Marie Pradier, Rafael Mandressi
ont commencé à participer des discussions théoriques e Armindo Bião, dentre outros, passaram pelo en-
interminables, et souvent difficiles. Au point, au fil du
volvimento em intermináveis e, muitas vezes du-
temps, arriver à la conclusion que l`Ethnoscénologie
aurait au moins deux zones distinctes: une Française, ras, discussões teóricas. Debatia-se desde o nome
dont les références principales étaient en Pradier, et da disciplina3 até se deveriam estar incluídas, como
un autre Brésilienne (initialement Baiana), centrée sur corpus de investigação, a cena cotidiana e/ou as
la figure de Armindo Biao. Et même la définition des mediadas por novas tecnologias. Com o passar do
Pratiques et Comportements humains spectaculaires tempo, chegamos à conclusão de que a Etnoceno-
orgarnisés a cessé d'être quelque chose qui ressemblait logia teria estabelecido pelos menos duas vertentes
à nous tous. Ainsi, en réfléchissant sur le corpus théori- distintas: uma francesa, cujas referências principais
que et méthodologique de l`Ethnoscénologie, ce travail ficaram em Pradier, e outra, brasileira (inicialmente
propose discuter la question de l'utilisation d'un lexique baiana), centralizada na figura de Armindo Bião,
spécifique et connexe à chaque manifestation enquête, precocemente falecido em 2013. Sobre essa distin-
comme stratégie de la reconnaissancede l'altérité.
ção, Bião diz:
Mots-clés: Ethnocenologie. Art scènique. La connais-
[São também] objetos da etnocenologia: os fe-
sance de la scène.
nômenos da rotina social. Isto nos diferencia
da perspectiva de Jean-Marie Pradier, exposta
Desde sua criação, em colóquio realizado na em nosso manifesto fundador, por exemplo,
Maison des Cultures du Monde, em Paris, em 1995 bem como da perspectiva de Chérif Khaznadar
(MANIFESTO, 1996), a Etnocenologia tem se (1999, 55-59), exposta em sua comunicação ao
deparado com um de seus maiores desafios: o es- III Colóquio Internacional de Etnocenolgia, re-
tabelecimento de um corpus de investigação, seu alizado em Salvador em 1997, que excluem esse
objeto de estudos. Não que eu considere esta uma terceiro grupo de objetos do campo da etnoce-
questão de importância tão fundamental para uma nologia (BIÃO, 2011).
área em que o principal foco é deslocado para os
diálogos com a pluralidade dos saberes humanos. Com a consolidação da Etnocenologia, ainda de
Existe, porém, uma demanda estabelecida naquilo vida tão breve, inclusive a definição de PCHEO
que poderíamos chamar de pensamento prevalente deixou de ser algo que contemplava a todos nós,
em todos os encontros de etnocenólogos em que mesmo que continue sendo usada em escritos de
tenho participado. E é exatamente por isso, e por um sem número de pesquisadores. E, refletindo
ter compartilhado, durante muitos anos, das dis- sobre o seu corpus teórico metodológico, isto me
cussões realizadas no âmbito do GT de Etnoceno- leva também a discutir a questão da utilização de
logia da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós- um léxico próprio, e referente a cada manifestação
-Graduação em Artes Cênicas – ABRACE, que me investigada, como estratégia de reconhecimento da
proponho a fazer esta breve reflexão2. alteridade, princípio norteador de todas as motiva-
Já nos embates iniciais, para a formulação dos ções para sua fundação acadêmica. Antes, porém,
escritos de fundação da nova etnociência, diversas
foram as abordagens, o que resultou, em vários
momentos, em acaloradas disputas intelectuais. 3
Chegou-se a aventar a possibilidade da nova discipli-
Para se chegar ao consenso epistemológico de que na se chamar Etnoteatrologia, o que foi descartado por
se considerar que este termo manteria os estudos sob a
égide dos estudos teatrais, o que se propunha romper.
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Por quase oito anos eu dividi, primeiro com Ar- E Bião defendia que, com o passar do tempo, o radical
mindo Bião e depois com Gilberto Icle, a Coordenação Etno deveria ser retirado, ficando como nome defini-
do Grupo de Trabalho em Etnocenologia da ABRACE tivo Cenologia Geral (BIÃO, 1999).
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considero necessário compreender que, como to- Complementar às grandes áreas de conhecimen-
das as narrativas, a nossa também é feita de um to das Ciências e da Filosofia, a Arte singra por
lugar determinado e objetivamente estabelecido. mares de criação que deveriam estar livres de pa-
O astrofísico brasileiro Marcelo Gleiser (2001), radigmas excludentes, para navegar entre as ma-
se referenciando em Nietsche, afirma que a espécie ravilhas do paradoxo e do infinito de opções da
poesia. Uma grande possível lição das Artes para
humana se guia, para se perpetuar no planeta, pela
as outras áreas de conhecimento e para nossas
dor da consciência da própria finitude. Ao que eu sociedades é a da possibilidade de convivência de
completo: mesmo tendo o imaginário uma produ- poéticas diversas, opostas, contraditórias.
ção de infinitudes. Nos dizeres de Gleiser, Teorias,
Religião e Arte são tentativas de sobreviver à nossa Então, convivendo com as possibilidades dos
curta vida, portanto são aspirações de eternidade. paradoxos, nos estabelecemos na compreensão
Os saberes científicos buscam, incessantemente, de que, por mais que nos definamos como (etno)
eternizar o físico. Quanto mais longa nossa vida, ciência, por esta perspectiva, estamos no campo
mais vencemos a finitude materializada no corpo dos saberes estéticos, dos fazeres artísticos, aque-
que somos. Os saberes sagracionais, para aliviar o les pelos quais tentamos nos eternizar pelas obras
medo da morte e a dor de perder uma pessoa ama- que produzimos, me remetendo novamente a Glei-
da, transformam o fim da vida numa passagem a ser. Queiramos ou não, são saberes distintos dos
outro estado, numa transcendência de eternidade, científicos e dos sagracionais religiosos. Este é o
seja ela por que abordagem religiosa for. E, final- nosso lugar de narrativa. E um dos paradoxos com
mente, os saberes artísticos nos proporcionam a os quais convivemos é o fato de que os saberes
possibilidade de eternização através de nossa obra. sagracionais, mesmo estando na origem dos outros
Na busca da compreensão de como se dá esta dois, estão, como área de conhecimento, fora da
relação no nosso cotidiano, há alguns anos, numa academia. Durante toda a modernidade, inclusive,
comunicação oral em um dos encontros da Abrace foi pregado, pelo império da racionalidade, que o
(VELOSO, 2007), eu propus quatro maneiras dis- mundo deveria se desencantar do Sagrado, chegan-
tintas de saberes e fazeres humanos: os saberes di- do àquilo que Max Weber definiu como o “desen-
recionados à sobrevivência, aqueles que o homem cantamento do mundo”. Com a arte, porém, se dá
usa para a produção do trabalho e suas tecnologias um pouco diferenciadamente. Mesmo fazendo par-
e dos mecanismos de aperfeiçoamento físico, vol- te de um conjunto de áreas que são, historicamen-
tados para o combate às doenças e para o aumento te, consideradas como de categoria inferior, nas
da expectativa de vida; os saberes destinados à fol- hierarquias das disciplinas universitárias, ela lá está.
gança e à vadiagem, em que o interesse é facilitar A Universidade de Brasília, por exemplo, em seu
o prazer e o ócio, através do lazer; os saberes vol- projeto original, criado por Darcy Ribeiro, deveria
tados para a sagração, pelos quais a espécie se or- ser composta de um Instituto Central de Ciências,
ganiza para adorar e agradecer as ações atribuídas o ICC, e de um Instituto Central de Artes, ICA.
às várias divindades; e, finalmente, os saberes para Com o passar do tempo, o ICA se transformou
o estar juntos, nos quais o que importa são os me- no esvaziado IdA, Instituto de Artes, sem espaço
canismos criados para as práticas de si na relação próprio e em permanente luta para ter atendidas
com o outro. minimamente suas demandas. Como prova desse
Toda esta formulação não deixa, porém, de se descaso, pode ser citada uma simples reforma do
afirmar como um paradoxo. Por mais infinitas que Teatro do Departamento de Artes Cênicas, interdi-
sejam essas concepções de eternidade e de práticas tado por falta de segurança há mais de cinco anos.
cotidianas, elas são produções da finitude de cor- Mas voltemos às discussões iniciais.
pos absolutamente imanentes. Só que paradoxos, Adaílton Santos, em contundente crítica aos
entretanto, são próprios de nosso campo de atu- criadores da Etnocenologia, afirma que esta não
ação, conforme propõe Fernando Pinheiro Villar atende aos estados paradigmáticos do conheci-
(2013, p. 2): mento científico, preconizados por Thomas Kuhn.
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Ele diz que uma proposição de estudo só se torna do outro. Assim, penso em todas as interações,
em ciência quando obedece a um “[...] nexo lógico as mais banais e cotidianas, nas quais, podemos
entre premissas fatuais, processos de demonstra- compreender, todas as pessoas envolvidas agem,
ção, critérios de verificação e resultados obtidos” simultaneamente, como atores e espectadores da
(SANTOS, 2012, p. 20). Ora, contrariamente ao interação (aqui utilizo esses vocábulos do mundo
do teatro certamente – e apenas – como metá-
que fazem muitos de meus colegas etnocenólogos,
fora). A consciência reflexiva de que cada um aí
que contestam esta afirmação, eu não a considero presente age e reage em função do outro pode
um problema a ser solucionado. Isto, a meu ver, existir de modo claro ou difuso ou obscuro, mas
está a nosso favor, pois nos retira da obrigatorieda- nunca de modo explicitamente compactuado –
de de submissão aos paradigmas para nos colocar ou convencionalmente explicitado o tempo todo.
no conforto dos espaços paradoxais dos saberes [...] amplamente praticado pela maioria absoluta
estéticos. Por estes, as divergências, ao contrário de dos indivíduos de cada sociedade, de um modo
excluir, formulam complementaridades agregado- inerente a cada cultura, que codifica suas intera-
ras de alteridades, ou, como tenho falado, ajuntam ções ordinárias e transmite seus códigos para se
desmundos4. manter viva e coesa. Espetacularidade [...] como
Assim, compreendendo que falamos de um lu- qualidade ou procedimento de espetáculo [...] que
compreendo como uma categoria também reco-
gar diferente das narrativas científicas e das sagra-
nhecível em algumas das interações humanas. [...]
cionais, se nos apresentam as três abordagens que Aí, e então, de modo – em geral – menos banal e
me proponho a enfrentar nestes escritos. Falo par- cotidiano, que no caso da teatralidade, podemos
tindo de minhas práticas artísticas, nas quais pes- perceber uma distinção entre (mais uma vez, de
quiso estados de corpos em manifestações cênicas modo metafórico) atores e espectadores. Aqui e
que estou denominando de afro-pindorâmicas, e agora, a consciência reflexiva sobre essa distinção
das relações de aprendizagem com estudantes, na é maior e – geralmente – mais visível e clara. [...]
graduação, no Departamento de Artes Cênicas, e Assim como a teatralidade, a “espetacularidade”
nas pós-graduações, em Artes, em Artes Cênicas contribui para a coesão e a manutenção viva da
e Mestrado Profissional em Artes – ProfArtes, do cultura (BIÃO, 2009a, pp. 34-36)..
IdA/UnB. Por essas referências, me aproximo das
noções levantadas por Armindo Bião para nosso Já nas definições de Ritos Cotidianos, Ritos
objeto: Os Corpos em Teatralidade e Espetacula- Espetaculares e Espetáculos, propriamente ditos,
ridade, nos Ritos Cotidianos, nos Ritos Espetacu- Bião diz:
lares e nos Espetáculos propriamente ditos, repre- Buscando enfrentar a problemática da defini-
sentados nos estados de consciência da ação para ção dos objetos da etnocenologia, originalmente
a alteridade. descritos como as “práticas e os comportamentos
Teatralidade e espetacularidade, nos dizeres de humanos espetaculares organizados” (Pradier, Ma-
Bião, se diferenciam pela dimensão da consciência nifesto 21-22), eu próprio sugeri, posteriormente,
mútua entre o atuante e seu espectador: organizá-los em três subgrupos: artes do espetá-
culo, ritos espetaculares e formas cotidianas espe-
Teatralidade [...] De fato, toda interação humana tacularizadas pelo olhar do pesquisador. Mais re-
ocorre porque seus participantes organizam suas centemente, eu atribuiria a esses três conjuntos ou
ações e se situam no espaço em função do olhar subgrupos, a condição de serem, respectivamente,
objetos substantivos, adjetivos e adverbiais. Uso
aqui, por minha própria conta, três classes gramati-
4
Proponho este neologismo, utilizado por Ana Mi- cais: substantivo, adjetivo e advérbio. Assim, subs-
randa como título de um livro de 1996 (MIRANDA, tantivamente, seriam objetos da etnocenologia, no
1996) para refletir sobre as impossibilidades que, por âmbito do primeiro conjunto de objetos, o que se
meus pensares, temos de acessar a alteridade. O outro, compreende, em língua portuguesa (também em
por mais afinidades que ele possa vir a ter com meu
outras línguas, mas provavelmente de modo mais
universo, será sempre um desmundo, uma negação do
mundo que conheço.
explícito, sobretudo, naquelas lingüisticamente apa-
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rentadas ao português), como as diversas “artes do grupos pelos quais são praticadas, devem perma-
espetáculo”. [...] o teatro, a dança, a ópera, o circo, necer com o máximo possível de sua originalidade
a música cênica, o happening, a performance e o primeva. Geralmente são vistas como objetos de
folguedo popular [...] realização reconhecível por estudo de pesquisadores cujo maior referencial te-
todos como “arte”, em seu sentido mais gratuito órico se localiza em pensamentos eurocêntricos e
e simplificado. Sua função precípua seria o diver- que, via de regra, assumem o discurso em nome
timento, o prazer e a fruição estética (no sentido dos fazedores.
sensorial e de padrão compartilhado de beleza) [...] b – Para os ideólogos da “cultura popular”, tra-
Também seriam objetos de interesse da etnoceno- dução adaptada de folclore, existe uma lógica de
logia o que denominei de ritos espetaculares, ou, defesa política e demarcação de espaço, ao colocar
dito de outra forma, aqueles fenômenos apenas ad- toda a diversidade cultural na generalização do ter-
jetivamente espetaculares. [Eu tenho definido este mo. Para esses, quem faz cultura popular assume
grupo como aquele que, percebido de fora pode ser politicamente o lugar onde foi posto pelas elites,
considerado como espetacular, mas que pode pres- que se definiram como fazedoras de uma cultura
cindir de espectadores para acontecer, o que seria erudita, diversa do que faz o povo. Também são
impossível nos espetáculos]. É o campo dos rituais discursos de defesa de identidades étnicas e sociais,
religiosos e políticos, dos festejos públicos, enfim, geralmente formulados por outrem. É muito re-
dos ritos representativos ou comemorativos, na corrente se encontrar, nesse conjunto de pensa-
terminologia de Émile Dürkheim (1985, 542-546). dores, intelectuais, acadêmicos ou pesquisadores
Nesse grupo de objetos, ser espetacular seria uma que se tornam eles próprios praticantes de algu-
qualidade complementar, imprescindível decerto ma manifestação expressiva, e que se fundamen-
para sua conformação, mas não substantivamen- tam em referências europeias ou norte americanas
te essencial. [...] Finalmente, objetos espetaculares para formular suas discussões. Para estes, não é
adverbiais seriam aqueles pertencentes ao terceiro incomum se chamar, por exemplo, um brincante
grupo de objetos da etnocenologia: os fenômenos de Bumba-meu-boi de ator popular, uma figura do
da rotina social que podem se constituir em even- Cavalo Marinho de personagem, ou um cantorio
tos, consideráveis, a depender do ponto de vista de da Folia de Reis de performance; e,
um espectador, como espetaculares, a partir de uma c – Para as narrativas da alteridade, os saberes e
espécie de atitude de estranhamento que os tornaria fazeres culturais, na sua pluralidade, são reconheci-
extraordinários para um estudante, um estudioso, dos por suas falas internas, formuladas pelos pró-
um curioso, um pesquisador, enfim, um grupo de prios fazedores. Neste universo, onde reconheço
interessados em pesquisá-los (BIÃO, 2011). que se localizam as proposições da Etnocenologia,
Como podemos perceber, são escolhas claras e para as artes cênicas, da Etnomusicologia, para a
objetivas de lugares de narrativas. No campo das música, e da Cultura Visual, para as Artes Visuais,
tradições, em que se localiza grande parte dessas cada prática se constitui por uma lógica interna e
teatralidades e espetacularidades, o segundo con- por elementos constitutivos singulares a cada uma
junto de noções que me proponho a discutir, me delas. Aqui, como não se formula um pensamen-
coloca naquele lugar dos saberes artísticos, em to generalizante, cada manifestação é estudada a
permanente diálogo com todas as áreas de conhe- partir de seu interior e do que compreendem que
cimento. Dali me vejo refletindo sobre as aproxi- estão fazendo os seus fazedores. E as referências
mações dos sujeitos pesquisados por três possibi- teóricas são todas as que possibilitam os diálogos
lidades para nos localizarmos nessas perspectivas: a partir desse deslocamento do lugar de fala, com
a – Pela perspectiva interpretativa dos folclo- uma aproximação maior de pensadores de outros
ristas históricos, essas manifestações são vistas de centros que não os europeus.
fora, e como “cultura do povo” que são, devem Finalmente, me estabelecendo nesse último gru-
manter-se em seu lugar de criação, defendendo po, de reconhecimento do direito que o outro tem
uma pureza e uma permanência improváveis. De- de exercer sua própria narrativa, levanto a ques-
fendidas como mantenedoras de identidades dos tão da utilização de léxicos próprios a cada fazer
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e a cada grupo de fazedores. Inegavelmente, toda Entre os Ka’apor, grupo étnico que sobrevive
e qualquer manifestação expressiva humana, seja entre o Pará e o Maranhão, quando a criança co-
ela tradicional (das antigas ou das novas tradições) meça a balbuciar as primeiras palavras, ela passa
ou não, tem um léxico próprio, que é capaz de dar também pelo ritual de acolhimento pelo grupo.
conta de tudo que lhe diz respeito. Não estou, com Chamado originalmente de ta’yn h-upir-há, se dá da
isto, negando o direito que seus fazedores têm de seguinte maneira: numa grande roda, a criança é
incorporar definições de outras áreas. O que estou entregue pelos pais a seu “carregador” (aquele que
afirmando é: o que melhor define o saber e o fazer a acompanhará por toda a vida). Este a ergue ao sol
de cada grupo cultural é o léxico adotado por eles nascente (para ter longa vida), a apresenta a cada
mesmos. Para exemplificar a utilização de termos participante da roda. Com alegria, não precisando
que não dão conta daquilo a que se referem, gosta- impor nenhuma condição para recebê-lo no grupo,
ria de, aqui, citar a palavra batismo e a sua utiliza- o seu carregador lhe dá o nome pelo qual será conhe-
ção em duas circunstâncias distintas. cido. O significado deste acolhimento é o de feste-
Na tradição monoteísta cristã, batismo, bati- jar a chegada de um novo ser, incondicionalmente.
zado, vem de um princípio fundante da religião. Como o grupo passou a ser largamente estudado
Quando nasce uma criança, ou quando o grupo re- por pesquisadores que vão conhecer seus costu-
cebe um convertido, este novo membro da comu- mes e sua arte plumária, o ritual do ta’yn h-upir-há
nidade tem que passar pelo ritual de acolhimento. começou a ser chamado de “batizado”, levando a
Porém, o que está por trás deste ato, é uma afirma- quem escuta ou lê sobre o assunto, uma ideia di-
ção de que “nós te acolhemos no grupo, mas, po- versa daquilo que efetivamente acontece. A criança
rém, todavia, para isto temos que ‘lavar’ (por isso o Ka’apor não necessita de nenhum “batismo” para
batismo com água) o teu corpo do pecado original, ser aceita no grupo, mas quando dizemos esta pa-
aquele que tu carregas por teres nascido humano”. lavra, o significado que prevalece é o nosso. E mes-
E só é reconhecido como participante daquela Ec- mo eles vêm, com o passar do tempo, utilizando
lésia, da Igreja, daquela comunidade, o que passou batismo para se referir ao ritual. Como consequ-
por esta “purificação”. João Batista “lavou” o cor- ência natural, a palavra original irá desaparecer da
po de Cristo, batizando-o no Rio Jordão, confor- própria relação social estabelecida pela língua do
me determina um dos sacramentos pregados pela grupo, ficando somente a do colonizador, mesmo
Igreja Católica: tendo outro significado e mesmo não dando conta
daquilo que é, verdadeiramente, o ritual.
Adão e Eva pecaram gravemente, desobedecen- Voltando ainda ao texto, a vida ainda breve da
do a Deus, querendo ser iguais a Deus. Foram, etnocenologia, em um de seus últimos escritos, Ar-
por isso, expulsos do Paraíso. Passaram a sofrer mindo Bião (2011) claramente problematiza esta
e a morrer. Deus castigou-os e transmitiu a todos questão:
os filhos de Adão, ou seja, a todos os homens, o
pecado original. Mas Deus prometeu a Adão e
Considerou-se aqui o poder abstrato e mágico
Eva que enviaria seu próprio Filho, segunda Pes-
da palavra, bem como suas possíveis implica-
soa da Santíssima Trindade, que seria igualmente
ções ideológicas, ainda que – admito – a partir
homem, para morrer na Cruz e pagar assim o
de meus próprios preconceitos. O léxico, apenas
pecado de Adão e Eva e todos os outros peca-
entrevisto (Bião, “Um Léxico para a Etnoceno-
dos. Mas não basta que Jesus tenha morrido na
logia”), não levou em conta, por exemplo, a pa-
Cruz. É preciso ainda que essa morte de Jesus
lavra performance, utilizada por muitos colegas
seja aplicada sobre as almas para que elas reen-
na etnocenologia. De fato, considero que essa
contrem a amizade de Deus, ou seja, se tornem
palavra só contribui para a confusão epistemo-
filhos de Deus e tenham apagado o pecado origi-
lógica e metodológica na etnocenologia. Prefiro
nal. Foi então para aplicar seu Sangue derramado
também denominar o artista do espetáculo, ou
na Cruz sobre nossas almas que Jesus instituiu o
o participante ativo da forma, ou arte espetacu-
Sacramento do Batismo (PARÓQUIA NOSSA
lar, com as palavras usadas pelos próprios pra-
SENHORA AUXILIADORA, 2015).
ticantes dos objetos de nossos estudos, quando
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se autodenominam atores, dançarinos, músicos, ___. A vida ainda breve da etnocenologia: uma
brincantes, brincadores, sambadores e outros. nova perspectiva transdiciplinar para as artes do es-
Prefiro sinceramente isso a usar outras palavras petáculo. Cátedra de Artes nº 10 (2011). Faculdad
já sugeridas: performer, actante, ator-dançarino de Artes. Pontifícia Universidad Católica de Chile.
ou ator-bailarino-intérprete, por exemplo. E à Disponível em: http://catedradeartes.uc.cl/pdf/
palavra performance, tão polissêmica (Cohen
catedra%2010/la%20aun%20breve%20vida%20
240-243), prefiro, sempre, usar espetáculo, fun-
ção, brincadeira, jogo ou festa, conforme quem de%20la%20estnoescenologia.pdf
vive e faz chama aquilo que faz e vive. GLEISER, Marcelo. O Fim da Terra e do Céu: O
apocalipse na ciência e na religião. São Paulo: Com-
Então, partindo desta compreensão, minha op- panhia das Letras, 2001.
ção pelo uso do léxico do fazedor se dá porque ra- MANIFESTO da Etnocenologia (Trecho). In:
ramente me sinto contemplado pelas nominações TEIXEIRA, João Gabriel L. C. (Org.). Performáticos,
exteriores. Para mim, performance não dá conta do performance e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1996.
que faz o guia de folia, por exemplo, que faz um MIRANDA, Ana. Desmundo. São Paulo: Compa-
“cantorio”. Da mesma forma que considero que nhia das Letras, 1996.
“brincante” é muito mais apropriado para definir Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora Bom Retiro.
quem “bota figura” na “brincadeira” do Cavalo Ma- O Sacramento do Batismo. Disponível em: http://
rinho. Como Bião, também prefiro a referência de www.auxiliadora.org.br/sacramentos/batismo.
“quem vive e faz” ao falar daquilo “que faz e vive”. html. Acesso em 26.06.2015.
SANTOS, Adaílton. A etnocenologia e seu método: pes-
quisa contemporânea em artes cênicas. Salvador: Edufba,
2012.
REFERÊNCIAS VELOSO, Jorge das Graças. Saberes e Fazeres:
significações e re-significações acadêmicas no uni-
BIÃO, Armindo. Um léxico para a etnocenologia: verso do conhecimento comum. In: Anais da IV
proposta preliminar. In: ___ Etnocenologia e a cena Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes
baiana: textos reunidos. Prefácio Michel Maffesoli. Cênicas. Disponível em: http://www.portalabrace.
Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009a. 389 p. org/ivreuniao/dramaturgia.htm
___. Aspectos epistemológicos e metodológicos VILLAR, Fernando Pinheiro. Algo mais sobre per-
da etnocenologia: por uma Cenologia Geral. In: formance, teatro e teatro performance – sangran-
Memória ABRACE I: Anais do I Congresso Brasi- do o “performão”. In: BEIGUI, Alex e BRAGA,
leiro de Pesquisa e pós-graduação em Artes Cêni- Bya (Org). Treinamentos e modos de existência. Natal:
cas, Salvador: UFBA, 1999; p. 364 – 367. EDUFRN, 2013. Pp. 127-162.

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